Oitava edição - Composição - Revista de Ciências Sociais/UFMS

Transcrição

Oitava edição - Composição - Revista de Ciências Sociais/UFMS
Editorial
Composição, Revista eletrônica de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, surgiu com a missão de ampliar o debate de assuntos pertinentes às ciências
sociais na época atual, marcada pelas transformações constantes e pela rapidez das mudanças.
Neste número apresenta as contribuições vindas do Chile e de diversos estados brasileiros,
apresentando
discussões
acerca
da
religião,
do
feminismo,
movimento
sociais,
desenvolvimento local, sociabilidade, trabalho, partidos políticos, historiografia e outros
temas, enriquecendo a literatura das ciências sociais. Aproveito a oportunidade para agradecer
os pesquisadores colaboradores e revisores. Espero que todos possam aproveitar. Boa leitura.
SUMÁRIO
JUVENTUDE E TRABALHO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO DOS
ESTAGIÁRIOS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA.
Bruno Azevedo Moura ............................................................................................................................. 03
FAMÍLIA, POLÍTICA E MOVIMENTO SOCIAL: ASSENTAMENTOS ENQUANTO
ESPAÇOS DE CONSTRUÇÃO DE NOVAS CONCEPÇÕES SOBRE O PODER.
Arnaldo José Zangelmi, Fabrício Roberto Costa Oliveira e Izabella Fátima Oliveira de Sales ............... 23
PERSPECTIVAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL E FORMAÇÃO DE CAPITAL
SOCIAL NUM ACAMPAMENTO EM CAMPO VERDE – MT.
José Roberto Lopes, Reginaldo Brito da Costa, Josemar de Campos Maciel, Maria Augusta de
Castilho e Roberto Antonio Ticle de Melo e Souza ................................................................................. 42
INTELECTUAIS E A POLITICA INDIGENA EM MATO GROSSO DO SUL: UMA
CONTRIBUIÇÃO SOBRE A CONSTRUÇÃO – ANTROPOLÓGICA (d) NO TEMPO
PRESENTE.
Jean Paulo Pereira de Menezes ................................................................................................................
64
CATÓLICOS DE TODA A NAÇÃO, UNÍ-VOS! – O CATOLICISMO POLÍTICO NO
BRASIL (1890-1934).
Carlos Eduardo Pinto Procópio................................................................................................................
83
GESTÃO DAS ÁGUAS METROPOLITANAS E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.
Elizabeth Borelli.......................................................................................................................................
102
DOES THE GROWTH OF A POST-MATERIALIST MIDDLE CLASS HELP LABOURBASED PARTIES TO OVERCOME THE ‘DILEMMA OF ELECTORAL SOCIALISM’?
Nicolas Fleet .............................................................................................................................................
117
FEMINISMO DEMOCRÁTICO: POR UMA CIDADANIA PLENA E PARTICIPATIVA.
Carla Christina Passos ............................................................................................................................... 130
VOZES FEMININAS DE LARANJEIRAS: RELAÇÕES DE GÊNERO, FAMÍLIA E
GERAÇÕES NA CULTURA DE UMA CIDADE PATRIMÔNIO SERGIPANA.
Janaina Cardoso de Mello ......................................................................................................................... 147
“É UM LUGAR SÓ”: SOCIABILIDADES E CONFLITOS EM UM ESPAÇO PÚBLICO NO
RECIFE.
163
Normando Jorge de Albuquerque Melo ....................................................................................................
2
JUVENTUDE E TRABALHO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO DOS
ESTAGIÁRIOS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Youth and work: considerations about the situation of interns at the University of Brasília
Bruno Azevedo Moura 1
Resumo: Este artigo apresenta os resultados de discussão teórica que conduziu uma pesquisa sobre as
percepções dos estagiários da Universidade de Brasília (UnB) sobre o trabalho que realizam. Problematiza a
situação das juventudes contemporâneas sob o escopo de três dimensões distintas. Esforça-se, em primeiro lugar,
em discutir acerca das perspectivas teóricas ambivalentes que descrevem o mundo contemporâneo. Em seguida,
retrata as ambigüidades que manipulam a fase de não ser crianças e nem adultos, sobretudo, a partir de um
enfoque do desenvolvimento das pesquisas sobre a juventude. Por fim, discute as perspectivas dos jovens do
mundo do trabalho a partir de uma concepção da reestruturação do trabalho, que implica diversificação e
pluralidade de categorias de trabalho e novas formas de trabalho.
Palavras-chave: Trabalhadores jovens, trabalhos precários, juventudes.
Abstract: This article presents the results of a theoretical discussion that was produced in a research about the
perceptions of interns at the University of Brasília (UnB) about the work they produce. It focuses on the life
situations of contemporary youth, appealing to three different analytical dimensions. First off, it discusses about
the ambivalent theoretical perspectives that describe the contemporary world. Subsequently, it aims to portray
the ambiguities that manipulate the life phase of not being child nor adult, mostly by appealing to the
development of recent social research about youth characteristics. Lastly, this article intends to discuss youth
perspectives towards the world of work from new concepts such as the restructuring of work which specifically
implies into the diversification and plurality of job categories and new forms of work.
Key words: Young workers, precarious work, youth.
Introdução
O presente artigo é baseado em uma pesquisa que tinha como objetivo relatar as
experiências de jovens universitários que estagiavam na Universidade de Brasília (UnB),
realizada em 2008 e 2009. Essa pesquisa procurava problematizar a categoria estágio de
trabalho e aprofundar a relação dinâmica entre juventude, trabalho e mundo contemporâneo
para compreender a relação entre estágio e estagiário. Utilizou como fonte de dados 15
entrevistas em profundidade e 3 entrevistas com emprego de fotografias tiradas pelos próprios
pesquisados. Concluiu que a combinação entre trabalho precário e trabalhador jovem e
flexível fornece o meio ideal pelo qual o estágio se torna uma opção econômica eficiente para
instituições contratantes. Concluiu também, a partir dos princípios e fundamentos da
1
Bolsista do CNPq, aluno de Mestrado em Sociologia na Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do
Núcleo de Pesquisa sobre o Ensino Superior da Universidade de Brasília (NESUB). Bacharel em Sociologia na
UnB em 2008. Endereço eletrônico: [email protected]. Telefone: (61) 81317999.
3
economia neoliberal, que o estágio é o produto e, indiretamente, representa a lógica neoliberal
que busca fundir os indivíduos, paulatinamente, aos meios de produção, eliminando a
antinomia que há entre forças produtivas e relações sociais de produção.
O presente artigo problematiza a situação da juventude e pergunta quem é o jovem
contemporâneo e quais as suas características, dilemas, entraves sociais e psicológicos frente
às variadas circunstâncias da vida em um mundo em processo de constante transformação e
ressignificação. Procura relacionar a sociologia da juventude com a sociologia do trabalho
contemporâneo, especialmente, para esta última, no que diz respeito às novas formas e
significados de trabalho. Tem como objetivo geral arquitetar um quadro de juventude
contemporânea que se encontra tomada por situações de vida no mercado do trabalho em que
a dúvida e a indecisão incidem como recurso principal no processo de tomada de decisão.
Apresenta como objeto três perspectivas da incerteza juvenil: (I). a incerteza do mundo
contemporâneo; (II). a incerteza da faixa-etária ou da própria etapa de vida; (III). a incerteza
na esfera do trabalho contemporâneo.
1. Considerações teóricas acerca do mundo contemporâneo
A intranqüilidade é uma condição psicossocial específica que a época contemporânea
proporciona. Há vários autores que escrevem sobre esse estado contemporâneo de
instabilidade, desequilíbrio e liquidez. Os autores clássicos, Simmel, Durkheim e Weber, ao
escrever sobre as mudanças produzidas pela modernidade, já indicavam que a sociedade
moderna trazia consigo tendências ameaçadoras para o bem-estar psíquico e social dos
indivíduos (LYON, 1998). Vale ressaltar que as primeiras análises sociais emitiram notas de
advertência e preocupação. Quer seja Marx, Durkeim, Weber ou Simmel, todos detectaram
ameaças que poderiam trazer fortes desequilíbrios à sociedade. Marx encontrou capitalistas
exploradores e trabalhadores alienados. Durkheim detectou sensações de ansiedade no que diz
respeito à extremada especialização do trabalho e as novas divisões do trabalho. Weber temia
4
que a burocratização poderia servir como um prisão de ferro, relegando a um plano inferior a
autoconsciência de seus agentes. Já Simmel sentiu que a sociedade de estranhos produziria
novo isolamento e fragmentação social, com o indivíduo se tornando um estranho no meio de
muitos.
Simmel (1972), levando em consideração a transição da sociedade rural para a
sociedade urbana, estudou o urbanismo como uma organização racional peculiar da
modernidade. Considerava que a metrópole tinha um efeito sobre a vida mental, uma vez que
intensificava os estímulos nervosos dos indivíduos, acarretando no desenvolvimento da
intelectualidade e da racionalização da vida social.
Com o processo de intelectualização do homem, Simmel observa que a mente
moderna se tornou mais e mais calculista. Pontualidade, calculabilidade e exatidão
transformaram em sinônimos da vida urbana. Conseqüentemente, no espaço urbano, os
relacionamentos tornaram-se menos procurados e mais indiferentes, consolidando mais
espaço ao desenvolvimento das individualidades. A impessoalidade se instalou nos
relacionamentos urbanos, promovendo uma subjetividade altamente particular e, com isso, um
estilo de vida descolado, desvinculado de obrigações sociais. Apesar de uma aparente
contradição, Simmel produz uma proposição: as pessoas que conduzem suas vidas em espaços
urbanos em nenhum lugar se sentem tão solitárias e perdidas quanto na multidão
metropolitana. Nesse sentido, a vida metropolitana, enquanto protagoniza indivíduos
marcados pela indiferença, passa a ser distinguida pelo seu caráter reservado e retraído –
atitude blasé. O resultado disso, conforme explica Simmel, é o advento da individualidade
como aspecto central da modernidade urbana e o isolamento humano.
Robert Castel (2005) preocupou-se com o resultado das conclusões de Simmel,
tomando como enfoque o trabalho e as perspectivas de um mundo em crise. A sociedade é
vista como agente passivo dos novos desdobramentos sociais, políticos e econômicos, que
geram problemas de integração social. Situações relativas à precariedade, à vulnerabilidade, à
insegurança e a processos de desfiliação se manifestam e, por conseguinte, transformam a
5
realidade vista a partir do trabalho como centralidade da vida social. Para o autor, a nova
questão social refere-se à crise da sociedade salarial e a incapacidade do trabalho atual de
providenciar integração social.
Analisando o contexto, Castel identifica três manifestações principais sobre a
problemática do emprego: o desemprego, a precarização do trabalho e a individualização.
Menciona que a vulnerabilidade, que nascia do excesso de coerções, hoje nasce por causa do
enfraquecimento das proteções. Esse estado de abandono, produzido pela ausência de
proteções e pela descaracterização dos direitos de segunda geração, pode resultar em um
individualismo negativo. Distinto da concepção do individualismo moderno de Simmel, o
individualismo negativo decorre de uma metamorfose que apresenta hoje a questão de ter que
enfrentar vulnerabilidades pós-proteções, ou seja, a não garantia dos direitos fundamentais
sociais e a perda de regulamentos coletivos. Em relação ao jovem, Castel afirma que ele “é
completamente individualizado e superposto pela falta de vínculos e de suportes em relação
ao trabalho, à transmissão familiar, à possibilidade de construir um futuro” (CASTEL, 2005,
p. 603).
A falta de continuidade e a variabilidade parece ser a condição do mundo
contemporâneo. Os resultados fidedignos desse estado de vivência contemporizada, cercada
por um emaranhado de incerteza e pessimismo, expressam-se nas divergências entre os
fenômenos que os intelectuais perceberam ou têm percebido. O fato é que todos observam
mudanças drásticas no cotidiano, mudanças, em suma, não previstas pelo projeto iluminista
que resultou na modernidade.
Ulrich Beck (2000) também questiona o momento histórico contemporâneo. Enfatiza
que a sociedade de trabalho está se tornando uma sociedade de riscos. A dimensão tradicional
da sociedade de trabalho, com seus life-long jobs (empregos que perduravam por toda a vida
ativa do trabalhador), vem sendo suplantada por um mundo muito menos estável, marcado
pela flexibilidade no trabalho – com remunerações mais baixas, mas com uma maior
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autonomia individual e controle –, pelo crescimento dos trabalhos informais e pela
pluralização do trabalho.
Um elemento relevante em sua obra é sua perspectiva de um mundo contemporâneo
enfrentando um rumo ainda incerto. A trajetória mundial calcada em processos contínuos e
descontínuos de encontros e desencontros, mutações e transformações viciosas, levam a
entender que mudanças sociais e econômicas na estrutura de uma sociedade ocorrem com
freqüência. Sua forma de pensar leva a subtender que o mundo está em um processo de
transformação, onde as pessoas passarão a viver em formas diferentes. Em suma, supondo
alguns possíveis desdobramentos, prevê que esse novo estilo de vida da segunda modernidade
propiciará um estilo de vida semelhante ao daquele encarado pelas mulheres nas últimas
décadas, que não envolve trabalhos permanentes de carreira, mas que, em contraposição,
envolve combinações de trabalho de meio-período, contratos casuais, trabalho nãoremunerado e atividades voluntárias.
Nesse contexto, Bauman (2001) contextualiza o desenvolvimento psíquico e
emocional da sociedade pela excessiva fragmentação e transitoriedade social. Propõe uma
perspectiva da contemporaneidade que é, em muitas instâncias, semelhante à teoria de Castel,
pois constata a distância mais concreta entre Estado e indivíduo.
Bauman (1998) sugere que houve uma passagem da segurança à liberdade individual.
Enquanto Freud, consoante ao raciocínio crítico de Bauman, apostava no sofrimento e no malestar humano devido à falta de liberdade individual diante de uma estrutura opressora ou
demasiadamente opressiva, Bauman, pelo contrário, explica que no mundo contemporâneo os
mal-estares provêm do fato de haver considerável liberdade individual. Bauman explica que
Freud esclarecia sobre a realidade sócio-psíquica como sendo limitada pelo excesso de
segurança que a modernidade impunha. O mesmo explica que para Freud havia um
mecanismo social de controle elevado que restringia por sobremaneira os instintos humanos.
Isso, segundo Freud (1969), transgredia a vida humana, e impunha sobre a vida humana uma
7
considerável carga de sofrimento; um verdadeiro mal-estar devido ao excesso de regras e
ordem.
Em uma análise mais contemporânea do que a de Freud, Bauman revela que a
liberdade sobressai, ao invés da segurança. Comenta que “as mulheres e os homens pósmodernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de
felicidade” (BAUMAN, 1998, p. 10). Enquanto o mal-estar da modernidade provinha de uma
espécie de segurança que tolerava uma liberdade excessivamente restringida na busca de
felicidade individual, o mal-estar da pós-modernidade provém de uma espécie de liberdade de
procura por prazer, que tolera uma segurança individual limitada.
A intranqüilidade da época é explorada por meio de outra perspectiva das ciências
sociais que tende a enfatizar, com maior veemência, o peso das instituições sobre os
indivíduos. Richard Sennett (2006) destaca o capitalismo flexível como o cerne da questão
social. Ele constata que o mundo está sob a condição da flexibilidade universal, a qual penetra
todos os aspectos da vida individual, inclusive as próprias dinâmicas das instituições. Ao
causar ansiedade – pelo fato das pessoas não terem identificado quais caminhos irão seguir ou
quais riscos estão suscetíveis a correrem – e proporcionar maior grau de liberdade, na
verdade, essa nova ordem impõe novos modelos de controles e, em resumo, coloca o conceito
de liberdade em ameaça. Na maioria das vezes não passa de um sistema de poder ilegível.
Propõe estudar, então, esse novo desdobramento do capitalismo que, segundo suas pesquisas,
desemboca em processos de desvinculação social, haja vista que ataca, sobretudo, qualidades
de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros.
Levando essas teorias e discernimentos intelectuais em consideração, talvez seja nessa
mentalidade autônoma que a juventude transita em busca de sentido de vida, perseguindo
sonhos, ambições, pretensões, aspirações e todo um legado sócio-histórico. A saber, Alberto
Melucci (1997) realça essa capacidade dos jovens contemporâneos quando retrata acerca da
biografia da juventude que se tornou menos previsível. Para ele, os projetos de vida passaram
mais do que nunca a depender da escolha autônoma do indivíduo.
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2. Abordagens de estudo sobre juventude
Depreende-se, nos estudos com jovens, o cuidado que deve ser tomado quando se
emprega o termo juventude, considerando o fato que o fenômeno, sob o plano empíricoteórico, implica concepções multidimensionais e plurifacetadas.
A
categoria
sociológica
juventude
subentende
pluralidade,
domínio
da
heterogeneidade. O estudo da juventude considera grupos diferentes, jovens em situações
sociais diferentes, jovens com experiências de vidas assimétricas, com distintos níveis de
educação, com crenças e valores marcados pela diversidade, com ambições e pretensões que
variam descomedidamente. Ao invés de se falar em uma juventude marcada por um aspecto
valorativo universal, conforme apresentado a partir da década de 1960, a multiplicidade do
fenômeno em voga é destacada no mundo acadêmico. Posto isso, adota-se como premissa, no
contexto de estudos científicos sobre a juventude contemporânea, que a pluralidade juvenil
não é passível de ser submetida a um processo de homogeneização ou, ainda, singularização.
Juventudes, nesse sentido, seria o termo científico mais adequado para compreender a
comunidade juvenil contemporânea.
Em estudos sobre as juventudes, Raisa Ojala (2008) explica que a prudência e a
precaução, ou seja, o cuidado do pesquisador deve conter quaisquer tendências que levem a
generalizações. Essas generalizações tendem a ser perspectivas restritas ou parciais de um
emaranhado de situações específicas que cercam os jovens contemporâneos. De forma
semelhante, Heloisa Martins (2001) considera que estudos a respeito dos jovens derivados de
séries estatísticas são inclinados à homogeneização e se mostram incapazes de perceber a
diversidade que caracteriza as juventudes ou os modos de ser jovem.
Estudos mais recentes sobre a juventude constatam que a maneira pela qual os jovens
constroem suas narrativas de vida é a cada dia um processo mais e mais fragmentado. Esses
estudos tendem a indicar que os jovens contemporâneos são indivíduos polifônicos,
produzidos a partir de sucessivos episódios de vivências; indivíduos em intensa projeção de
9
vida, isto é, seres sociais em pleno processo de desenvolvimento muito incerto quanto ao
futuro. (PAIS, CAIRNS, PAPPÁMIKAIL, 2005; BECK, 2000; ABRAMO, 1997;
PERALVA, 1997).
Em relação às identidades e ao processo de construção de identidades no dia-a-dia,
Bauman (2005) revela que nada na condição humana é dado de uma vez por todas; a
modernidade transmite a noção de que, na medida em que tudo pode ser primeiramente feito,
tudo também pode ser desfeito ou transformado prontamente. Bauman traduz esse postulado
expondo que a cada dia a expectativa de vida das identidades simuladas é continuamente
reduzida.
Tendo em vista que a expectativa de vida das identidades é baixa, já que são
internalizadas como parte de um ethos que responde à lógica do imediato e do instantâneo, há
uma espécie de pensamento tem fé na concreção do seguinte. Em outras palavras, os
indivíduos contemporâneos, especialmente os jovens, depositam suas esperanças em outras
identidades quer estejam prontas quer estejam incompletas.
Essa lógica de produção de identidades expressa os fundamentos e princípios da
indústria cultural internalizada no indivíduo. Esta indústria, ao passo que organiza os
consumidores, tem por finalidade padronizá-los e sujeitá-los à potência da esfera econômica.
Nesse contexto, encontram-se os jovens que têm seus projetos de vida limitados pela indústria
cultural e pela fabricação de identidades que tem a vida do consumo como um fim em si. Vale
ressaltar que se o consumo por si próprio é um fim fornecido como estilo de vida aos
indivíduos, torna-se não apenas uma fonte inesgotável de criação de mundo, senão também
um mecanismo infalível de constante produção, reprodução e auto-sustentação.
Destarte, as biografias individuais são, com demasiada freqüência, histórias de
identidades descartadas. As histórias das biografias individuais, nesse contexto, são histórias
marcadas pela obsessão e compulsão, que devem ser concebidas como a essência do modo
moderno de ser.
10
A mudança obsessiva e compulsiva é especialmente enfatizada na produção de
identidades. Como é necessário modernizar-se para permanecer moderno, o sujeito se
submete ao projeto perpétuo de continuamente modernizar-se. Modernizar é continuar
renovando-se,
inovando,
auto-superando
e
quebrando
os
paradigmas
da
própria
individualidade; é estabelecer todos os meios para obtenção de felicidade própria.
Por outro lado, o verdadeiro problema e atualmente a maior preocupação é a incerteza
oposta: qual das identidades alternativas escolher e, tendo-lhe escolhido uma, por
quanto tempo se apegar a ela? [...] A construção da identidade assumiu a forma de
uma experimentação infindável. Os experimentos jamais terminam. Você assume uma
identidade num momento, mas muitas outras, ainda não testadas, estão na esquina
esperando que você as escolha. (BAUMAN, 2005, p. 91).
Vale ressaltar que à medida que esse processo de renovação é encaminhado, contrária
e conseqüentemente, superabunda um processo individual de incoerência e questionamento
com o próprio ser. O alto índice de versatilidade individual é capaz de gerar graves ameaças à
constituição e desenvolvimento da dimensão psicossocial do indivíduo, promovendo
desequilíbrios intensos, descompassos com o próprio ser. Não obstante, por outro lado, ao
procurar a emancipação, ao desligar desse fluxo, os indivíduos param de modernizar-se,
deixando de ser modernos.
Diferentemente de estudos pós-modernos que relatam a pluralidade das juventudes, há
estudos sobre jovens que uniformizam a juventude em torno de características formais ou
materiais. Tem-se como exemplo desses estudos a pesquisa de Hermes Zaneti (2001), que
teve como objetivo descobrir se havia uma atitude revolucionária que estaria latente na fase
da juventude. Com a participação de mais de 2.082 entrevistados, Zaneti pesquisou sobre a
juventude como força motora de processos transformadores e revolucionários, incitando que
talvez a atitude revolucionária vinculada à juventude seja uma característica especificamente
de uma faixa etária e não um fenômeno influenciado pelo status socioeconômico ou religioso.
Esses tipos de pesquisas revelam que há uma iniciativa à simplificação de uma
categoria. Seja pela tendência de contar com uma potencialidade latente de cunho
revolucionário ou pelo percurso de explicar a juventude por gerações, dando a essa categoria
11
um ponto central de inferências, tudo isso corrobora para a construção de explicações
incompletas e limitadas, tirando do fenômeno sua riqueza e sua complexidade.
Em outra perspectiva sociológica, evidencia-se que a juventude sempre foi sinônima
de rebeldia, revolta e quebra de paradigmas, tanto a juventude dos anos 60, quanto em relação
à juventude dos anos 80 e a juventude contemporânea. Essa concepção homogênea da
juventude no pensamento cotidiano a descreve como um problema social: como objeto de
disfunção ou anomia no processo de integração social. A continuidade social é colocada em
xeque constantemente pelas pessoas devido a essa característica subversiva da juventude de
quebrar ou romper com a tradição imposta, isto é, com os valores, crenças, normas e
instituições vigentes. Além do mais, esse pensamento não está atrelado a abordagens
funcionalistas, mas a visões abrangentes da sociedade que colocam a juventude como uma
incógnita social. A juventude, segundo essa perspectiva, é uma espécie de agente que
desencadeia pânico moral, que condensa os medos e as angústias relativos ao questionamento
da ordem social. Nesse sentido, trata-se de uma categoria distinguida pela capacidade
destrutiva, uma vez que é concebida como uma ameaça social.
A tendência reducionista de caracterizar a juventude singularmente, como detentora de
apenas algumas notáveis características, parece ser um processo naturalizado tanto no senso
comum, como no conhecimento científico. A juventude dos anos 60 e dos anos 70, por
exemplo, era marcada pela sua possibilidade de transformação profunda. Os acontecimentos
do ano 1968 na França, os movimentos diversos contra a Guerra do Vietnã e as manifestações
da juventude – movimentos estudantis, movimento hippie, os movimentos pacifistas,
movimentos ecologistas, entre outros – demonstravam a atitude crítica com referência às
ideologias estabelecidas e à ordem em vigor. Percebia-se um modelo oficial de juventude,
distinguível pela capacidade transformadora, e calcada no: idealismo, inovação, o espírito
rebelde criador de contracultura e ideações utópicas. Na verdade, era uma juventude dotada da
habilidade intrínseca de criticar. Esses jovens usufruíam de uma perspectiva crítica, que, por
12
conseguinte, colocava em dúvida a sociedade moderna e a razão como caminho do
desenvolvimento humano (BEST, KELLNER, 1997).
Best e Kellner (1997) relatam que os protestos da Guerra do Vietnã, a tomada
estudantil da Universidade de Columbia na primavera de 1968, entre outros eventos que
levaram estudantes e trabalhadores às ruas impeliram muitos a acreditarem na manifestação
da revolução, que uma ruptura com a sociedade e a cultura anterior estava de fato ocorrendo.
Alguns acreditavam que a contracultura estava criando uma sociedade e uma cultura
completamente nova, fundamentada em um novo arranjo de valores, sensibilidade,
consciência, cultura e instituições.
À medida que a juventude de 60 e 70 continha um espírito questionador e
revolucionário, a juventude de 80 se destacava pela sua inatividade na vida política ou em
movimentos sociais de grande alcance. A juventude e os jovens de 80, ao contentar em
providenciar para si mesmos, foram rotulados e reconhecidos por algumas características e
conceitos: transigentes, apáticos, passivos, tolerantes, conformistas, indiferentes, indivíduos
influenciados pelos índices altos de individualização, entre outros. (BAUMAN, 2001;
MELUCCI, 1997).
Conseqüentemente, a juventude de 80 apareceu como patológica por causa do excesso
de pragmatismo, falta de idealismo e compromisso político. De transformadora, passou a ser
conhecida como conformista, pois não exerceu peso social sobre a coletividade na vida
política. Tanto é verdade que o foco das pesquisas foi alterado, e a prerrogativa que era dada a
vida política da juventude foi transferida para a questão da marginalidade da vida juvenil em
estado de risco social (ABRAMO, 1997).
3. A perspectiva juvenil do mundo a partir do trabalho: mudança de foco
Em relação ao trabalho, os jovens da geração de 68 eram bem diferentes dos jovens da
geração contemporânea. Enquanto os jovens da geração de 68 introduziram valores e atitudes
13
anti-autoritárias nas relações de trabalho para a coletividade, os jovens da geração
contemporânea se preocupam com os elementos de liberdade e autonomia no trabalho em um
plano individual. Ou seja, por um lado, os jovens da geração de 68 quando defendiam a
igualdade em uma sociedade hierárquica, defendiam-na por intermédio de protestos coletivos,
tendo como finalidade garantir mais direitos e garantias trabalhistas para todos. Já, por outro
lado, o jovem da geração contemporânea não trava batalhas sociais coletivamente, porque está
enclausurado nas doutrinas do individualismo. Logo, fica mais claro que a percepção de vida
e de sociedade do jovem contemporâneo está voltada para si mesmo.
Antonio Chiese e Alberto Martinelli (1997) revelam que, no contexto contemporâneo,
nasce um novo significado do próprio conceito de trabalho para a juventude em específico.
Surge uma conduta mais racional para com o trabalho, assim como uma atitude mais
introspectiva em relação à própria construção de projetos de vida. Consciente ou
inconscientemente, perguntam como esse trabalho os ajudará a atingir seus objetivos. Os
autores alegam:
Grande parte dos jovens, tendo exorcizado a preocupação pelo posto de trabalho,
parece muito interessada nos conteúdos e nas modalidades de trabalho e manifestam
uma forte exigência de autonomia, não temem a flexibilidade da relação de trabalho,
chegando a encará-la favoravelmente, privilegiam a dimensão criativa do trabalho,
capaz de favorecer a realização pessoal, buscam oportunidades de aprendizagem e
crescimento profissional, com o objetivo de poder potencializar as próprias
capacidades. Neste sentido, é significativa a propensão ao trabalho autônomo, a abrir
um negócio por conta própria, a serem os únicos responsáveis pelo próprio trabalho.
(CHIESE, MARINELLI, 1997, p.115).
A autonomia ou certa margem de independência reflexiva é um requisito central para
compreensão da condição da juventude contemporânea, uma vez que os jovens
contemporâneos desfrutam de uma tendência a se importarem mais com suas trajetórias ou
projetos de vida, suas necessidades pessoais, do que com iniciativas que priorizam a
coletividade. Redimensionam o que é o trabalho sob a perspectiva de que o trabalho funciona
quase como rito de passagem do mundo infantil para o mundo adulto. Diante desse novo
quadro, Banjoit e Franssen conferem uma mudança na relação dos jovens com o trabalho:
Enquanto no modelo tradicional a realização pessoal estava subordinada ao trabalho,
hoje é o trabalho que tende a estar subordinado à realização pessoal, permanecendo
14
entretanto como um elemento e um lócus essencial, embora não exclusivo. Nesse
sentido, não se trata tanto uma rejeição do trabalho, mas sim uma reivindicação de um
trabalho que tenha sentido para o próprio indivíduo e/ou que lhe deixe tempo para
uma vida própria. (BAJOIT, FRANSSEN, 1997, p. 80).
Verifica-se que surge uma re-conceituação ou uma transformação da concepção de
trabalho. Nesse sentido, o quadro do trabalho juvenil no passado realçava a capacidade de
eternizar-se no trabalho, sacramentando a permanência no trabalho como a almejada trajetória
de vida. Uma vez alcançado o posto de trabalho, o jovem o via como permanente, e buscava
dentro dele crescer e destacar-se, procurando melhorar sua posição hierárquica e realizar o
sonho da tão esperada estabilidade e segurança empregatícia. Isso tudo mostra que a trajetória
de vida se vinculava ao trabalho em que se encontrava; a vida era centrada em apenas um
eixo: o posto de trabalho conquistado. Assim, não havia necessidade de preocupar-se com as
oportunidades fora do trabalho. O foco era o trabalho no qual se encontrava, pois esse
proporcionaria condições de providenciar a mesma situação empregatícia. Além da garantia
de trabalhar no mesmo local, possivelmente executando as mesmas tarefas e possuindo as
mesmas atribuições e deveres, restava, também, a garantia de estabilidade, pois mesmo o
indivíduo permanecendo no mesmo local de trabalho ou no mesmo cargo, havia a certeza de
que seu salário concomitantemente aumentasse. Ou seja, essas certezas propiciavam, bem
como facilitavam a construção de projetos concretos de vida, atados inteiramente ao que se
fazia.
Em contraste a esse quadro de estabilidade que assegurava o futuro a ser pensado pela
certeza de poder contar com o emprego, o contexto atual é de insegurança e de grande
mobilidade ocupacional. Trata-se de um contexto de escolhas em que os jovens são forçados a
refletir sobre as opções disponíveis e justificar suas decisões. Essa é a condição dos jovens
contemporâneos que são inspirados a cultivar biografias de escolha, por oposição a biografias
normais (PAIS, CAIRNS, PAPPÁMIKAIL, 2005).
4. O jovem e a reestruturação do trabalho
15
A própria tentativa de considerar os jovens e suas experiências, suas percepções,
formas de sociabilidade e atuação é uma idéia recente que ilustra a heterogeneidade no meio
juvenil e a pluralidade de trabalhos juvenis. Recentes pesquisas que retratam a
heterogeneidade no mundo juvenil são aquelas cujo foco é o jovem engajado no mercado de
trabalho formal ou informal, jovens em subempregos, em empreitadas trabalhistas precárias e
alternativas, como os estudos que discorrem sobre os jovens trabalhadores nas indústrias,
jovens em situação de risco, transgressão e delinqüência, etc. No entanto, apesar da escassez
de produção científica na área, encontram-se alguns estudos sobre os jovens aprendizes,
trainees e estagiários.
No âmbito dos temas da juventude contemporânea e a reestruturação do mercado de
trabalho, é importante perceber a magnitude de trabalhos e empreitadas trabalhistas que são
tipicamente destinadas aos jovens trabalhadores. Trata-se do surgimento de novos modelos de
categorias trabalhistas especificamente para ocupação de pessoas jovens.
Nos processos de reestruturação da produção de capital germina, no final da década de
70, o que célebres pensadores de múltiplas áreas do conhecimento chamarão de fenômenos da
instabilidade, flexibilização, precariedade, insegurança, entre outros. Diante do fenômeno
mundial denominado globalização, a realidade social global é influenciada, sobretudo, por um
divisor tecnológico que surgiu nos anos 70. Considerado, pela sua abrangência em todas as
instâncias da vida social, como uma nova etapa do capitalismo por muitos, trata-se da
Terceira Revolução Industrial: a Revolução da Tecnologia da Informação que está
transformando o modo de organizar-se em sociedade, bem como influenciando múltiplos
aspectos da vida social, como, por exemplo, o mundo do trabalho.
Pode-se afirmar que as mudanças impetradas pelo avanço técnico-científico possuem
reciprocidade com os novos desenvolvimentos mundiais na esfera do trabalho. Constata-se
que, a partir da década de 80, houve mudanças drásticas na estrutura social de produção e
consumo: aumento da informalidade e da flexibilização no mundo do trabalho,
desregulamentação de vários setores da economia e das relações de trabalho, aumento do
16
desemprego e do subemprego, aumento de trabalho em tempo parcial, em tempo limitado ou
por empreitada, entre outras variáveis que demonstram a precarização da vida social. Ao
mesmo tempo que o modo de produção modernizou-se, a estrutura do mundo de trabalho
precisou se adequar às novas demandas impostas. Fruto disso foi a proliferação de novas
categorias de emprego no mercado de trabalho, tais como trabalhos parciais, contratos
temporários, aprendizes, trainees e estagiários. Enquanto algumas categorias de trabalho
surgiram pela primeira vez, outras, como o estágio, mantiveram a terminologia tradicional e
foram readaptadas e reutilizadas a fim de atender outras exigências sócio-econômicas.
Ricardo Antunes (2002) aponta evidências de uma subproletarização intensificada nas
formas contemporâneas de trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado e
terceirizado. Classificado por Antunes como uma subproletarização, essa reestruturação gera
uma processualidade contraditória que se de um lado reduz trabalhos de carreira – trabalho
estável, job for life –, de outro lado aumenta o trabalho precário, o trabalho flexível, o
assalariamento no setor de prestação de serviços, a terceirização, a quantidade de
subcontratados e o trabalho temporário. Na verdade, o que se estabelece é um processo de
maior heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora ou da classe
que vive do trabalho:
Observa-se, no universo do mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo, uma
múltipla processualidade: de um lado verificou-se uma desproletarização do trabalho
industrial, fabril, nos países de capitalismo avançado, com maior ou menor
repercussão em áreas industrializadas do Terceiro Mundo. Em outras palavras, houve
uma diminuição da classe operária industrial tradicional. Mas, paralelamente,
efetivou-se uma expressiva expansão do trabalho assalariado, a partir da enorme
ampliação do assalariamento no setor de serviços [...] vivencia-se também uma
subproletarização intensificada, presente na expansão do trabalho parcial, temporário,
precário, subcontratado, terceirizado, que marca a sociedade dual no capitalismo
avançado [...] pode-se dizer, de maneira sintética, que há uma processualidade
contraditória que, de um lado, reduz o operariado industrial e fabril; de outro, aumenta
o subproletariado, o trabalho precário e o assalariamento no setor de serviços.
(ANTUNES, 2002, p. 49-50).
Em relação a esse desdobramento, essas diversas categorias têm em comum a
precariedade do emprego e da remuneração. Também têm em comum a desregulamentação
das condições de trabalho em relação às normas e leis em vigência e, conseqüentemente, a
17
regressão dos direitos e garantias sociais, assim como a ausência de proteção e expressão
sindicais. (ANTUNES, 2002).
Por conta dessas novas formas de precarização do mundo do trabalho, cria-se espaço
legítimo para nova organização do trabalho, motivada pela velocidade, produtividade,
atividades variadas no trabalho, precariedade nos laços empregatícios de trabalho e na
remuneração. Há, nesta reestruturação, o aumento drástico de categorias de trabalho,
desembocando na proliferação de empregos que não oferecem estabilidade contratual e
econômica, notadamente o trabalho temporário, terceirizações inadequadas e profissionais
sub-contratados. Ou seja, trata-se de trabalhos precários, que são empregos informais e que
têm por características a má remuneração, a insegurança empregatícia, poucos benefícios, a
falta de proteção legal e a falta de representação coletiva.
Diante dessa transformação da estrutura do mercado de trabalho, Heloísa Helena
Martins aponta que: “nestes tempos de economia globalizada, o que se tem observado é a
constituição de um padrão segmentado do mercado de trabalho, com um núcleo cada vez mais
reduzido de trabalhadores qualificados, com emprego permanente, em tempo integral”
(MARTINS, 1997, p. 97).
Sob condição de que hoje a lógica de eficiência no mercado de trabalho é reduzir os
número de trabalhadores especializados e empregar cada vez mais força de trabalho flexível,
germina um novo tipo de trabalhador marcado pela capacidade de acostumar-se às
circunstâncias. Trata-se de trabalhadores contemporâneos que se assemelham às condições
dos jovens contemporâneos: seres polivalentes e flexíveis, os quais se encaixam em trabalhos
precários.
5. Conclusões preliminares sobre a juventude da contemporaneidade frente ao primeiro
trabalho e conclusões objetivadas sobre o estágio
As dúvidas e as intranqüilidades da condição psicossocial específica que a época
contemporânea proporciona podem estar produzindo jovens que têm sido marcados pela
18
certeza de viver, contudo não pela certeza do que fazer, especialmente quando se atenta para
as configurações sociais que a reestruturação do trabalho tem gerado. Diante disso, é
necessário atentar para o fato que, atualmente, a precarização do trabalho tem reformulado a
concepção de ser jovem. Ou seja, à medida que se fala em precarização do trabalho, é preciso
observar também que há de se falar em precarização das situações de vida da juventude.
A precarização das situações de vida da juventude tem por condicionante três
dimensões importantes. A primeira é fruto da ambivalência que o mundo contemporâneo
transmite cuja maneira de se expressar, entre outras, ocorre pelo sentimento de incerteza e
intranqüilidade que influenciam o processo decisório de todos os indivíduos modernos,
especialmente os jovens. A precarização também advém da incerteza que a própria faixaetária ou etapa de vida proporciona. Além disso, a própria convivência e relacionamento com
formas precárias de trabalho promovem ainda mais a precarização da situação de vida da
juventude. Nesse último ponto, a precarização da juventude ultrapassa o impasse de terem que
se sujeitar a trabalhos precários.
Quanto ao estágio, as seguintes conjecturas foram averiguadas: (a) a fase de
aprendizagem educacional imposta pelo estágio está se desvirtuando, de modo que o
estagiário está sendo utilizado como mão-de-obra barata; (b) os jovens estagiários
contemporâneos, devido a sua autonomia e flexibilidade na vida profissional, usufruem de
uma capacidade adaptativa considerável que os leva a aturar a prática do estágio. Nesse
sentido, o estágio torna-se o primeiro emprego precarizado para os jovens, a primeira
experiência precária no mercado de trabalho.
O estágio se aproxima de uma proposta empresarial, a qual prepara o trabalhador para
a entrada no mercado de trabalho, mas não para o crescimento na própria empresa. Sobressai
nele a aprendizagem profissional, inclusive em detrimento da aprendizagem acadêmica. O
estágio prepara o jovem para enfrentar o mercado de trabalho, tanto em relação ao
conhecimento requisitado como em relação às próprias práticas de precarização. Em alguns
casos, o ambiente de trabalho é de aprender a aprender, pois há uma incompatibilidade entre o
19
conteúdo escolar e o conteúdo requisitado no estágio –grosso modo, os jovens não conseguem
instrumentalizar ou aplicar o conteúdo escolar. Há ocasiões em que aprendem conteúdos que
levam à aplicação do que vêem na instituição de ensino, como também há ocasiões em que
não aprendem, ou não têm oportunidade de instrumentalizar o conhecimento que recebem da
instituição de ensino. Por isso, num cenário de rápidas mudanças que demandam um
aprendizado em condições instáveis e incertas, o estágio é altamente variável, indeterminado,
flexível, sendo tanto benéfico para alguns participantes quanto prejudicial para outros
participantes.
O estágio é um passo fundamental que prepara o jovem para ser flexível. Um novo
tipo de trabalhador germina a partir do estágio, que é marcado pela capacidade de acostumarse às circunstâncias. Semelhantemente, como as teorias acerca da juventude nos mostram, os
jovens da contemporaneidade são seres flexíveis, que se acostumam facilmente às
circunstâncias psicológicas, políticas, econômicas, estruturais, sociais e culturais. Ao remeter
às relações entre agência e estrutura, fica bem clara a reciprocidade entre trabalho precarizado
e indivíduo flexível.
O estágio demonstra a eficiência que existe entre trabalho precarizado e indivíduo
flexível. Por isso, o estágio representa o futuro do mercado de trabalho nas condições
neoliberais existentes, caso não haja intervenções, regulamentos e normas públicas de
proteção que revertam a tendência da precarização do emprego, das condições do trabalho e
da remuneração. O estágio contemporâneo representa a lógica neoliberal que busca fundir o
indivíduo, paulatinamente, aos meios de produção, eliminando a antinomia que há entre as
forças produtivas e relações sociais de produção.
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FAMÍLIA, POLÍTICA E MOVIMENTO SOCIAL: ASSENTAMENTOS
ENQUANTO ESPAÇOS DE CONSTRUÇÃO DE NOVAS CONCEPÇÕES SOBRE
O PODER
Family, Politic and Social Movement: settlements while spaces of construction of new
conceptions about the power
Arnaldo José Zangelmi 1
Fabrício Roberto Costa Oliveira 2
Izabella Fátima Oliveira de Sales 3
Resumo: O objetivo desse artigo é situar parte do debate sobre família patriarcal, explorar suas relações com
algumas concepções políticas e discutir como mediações podem redimensionar essas relações. Nosso
argumento é de que os valores familiares são base importante de parte das concepções políticas brasileiras e
que, no processo de mediação dos movimentos sociais, em especial nos assentamentos, esses valores entram
em relação cotidiana com novas concepções sobre poder, o que pode gerar tensão e reconstrução criativa de
práticas e valores.
Palavras - chave: Família; Movimentos Sociais; Assentamentos Rurais.
Abstract: The purpose of this article is situate the discussion about patriarchal family, explore their relations
with some politics conceptions and discuses how mediations can resize these relations. Our argument is that
the family values are the basic part of Brazilians politics conceptions and that, in the mediation process of the
social movements, especially in the settlements, these values come into daily relations with new conceptions
about power, which can generate voltage and creative reconstruction of practices and values.
Key words: Family; Social Movements; Rural Settlements.
Introdução
Nesse artigo pretende-se discutir parte das bases da lógica política tradicional
brasileira e como os movimentos sociais têm apresentado concepções políticas alternativas,
em especial nos espaços dos assentamentos rurais frutos de mobilização pela reforma
agrária.
Inicialmente, desenvolve-se uma reflexão sobre a noção de família patriarcal,
passando pelas abordagens clássicas, pelos críticos e pelos estudos sobre as implicações
dessa lógica familiar para concepções e valores políticos presentes na realidade brasileira.
Em seguida, discute-se o papel dos movimentos sociais como proponentes de novas
1
Doutorando do Programa de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
(CPDA/UFRRJ) [email protected]
2
Doutorando do Programa de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
(CPDA/UFRRJ) [email protected]
3
Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) [email protected]
23
24
culturas políticas, transformadoras dos papéis sociais estabelecidos. Argumentamos que
esses movimentos encontram nos assentamentos rurais terrenos férteis para experiências
inovadoras, pelo espaço de crítica e experimentação que desenvolvem ao longo de sua
formação. Por fim, discutimos os desafios dos mediadores nesses contextos ao buscarem
confluir, num mesmo projeto, essas lógicas distintas, frutos de diferentes universos de
significação.
1- Família Patriarcal e Política
A noção de família patriarcal, enquanto forma de organização familiar que
conforma relações sociais, políticas e culturais mais amplas na sociedade brasileira, foi
discutida primordialmente na primeira metade do século XX e se tornou ponto de
referência para discussões sobre a identidade brasileira. Autores como Gilberto Freyre,
Oliveira Vianna e Antônio Cândido se tornaram clássicos ao descreverem e analisarem os
contornos e implicações da família patriarcal.
Gilberto Freyre (1998), com base na história colonial brasileira, apresenta a família
patriarcal como um conjunto de relações hierárquicas e complementares, cuja centralidade
é ocupada pela figura do senhor. Nessa configuração, cada pessoa é significada pelo seu
papel no sistema de relações, que tem a Casa Grande como foco organizador. Assim,
relações de mando, proteção e obediência seriam veículos de grande proximidade, que
incluiriam envolvimento e violência, sadismo e masoquismo.
A família patriarcal de Freyre seria um sistema de relações organizado em torno da
escravidão, do latifúndio agro-exportador e do patriarcado rural, regidas como uma
autarquia, na qual a lógica privada conduz a pública. A principio, essa noção não pretendia
explicar toda a sociedade brasileira, se restringindo aos engenhos nordestinos, porém
posteriormente esse modelo assume maior generalidade.
24
25
Oliveira Vianna (1987), analisando os quatro primeiros séculos da história do
Brasil, tentou compreender o direito costumeiro que rege nossas relações de poder,
argumentando que o caráter privado é o alicerce da construção política nacional. A vida
familiar seria, assim, a base das concepções e ações políticas no Brasil, regendo o posterior
sistema eleitoral em clãs, com redes clientelistas imunes às autoridades públicas.
Nesse sentido, o Estado teria um papel secundário na conformação do exercício do
poder. Como argumenta, “era perigoso, senão impossível, a estas autoridades penetrarem o
interior desses grandes domínios. Era tamanho o respeito e o medo que infundiam” (p.
175-176). Era, então, uma “imunidade de fato, de que gozavam estes feudatários
poderosos, dentro de cujos domínios as justiças ordinárias receavam penetrar” (p. 176).
Oliveira Vianna afirma que trata-se do “dever de fidelidade e obediência do ‘morador’ ao
senhor do domínio (...) e o dever correspondente deste de proteção e assistência aos seus
moradores. Tudo isto o período colonial preparou e legou ao IV século” (p. 178).
Assim,
os
“deveres
públicos
de
solidariedade
parental”,
baseados
na
consangüinidade e afinidade, configuraram valores políticos que constituíram a política
partidária. Nesse sentido, Vianna considera que mudanças democratizantes (por decreto)
como o sufrágio universal, não correspondia à cultura política da sociedade brasileira,
tendo caráter impositivo e exógeno. As transformações políticas seriam imposições do
Estado com base numa ideologia estrangeira. Como argumenta, “esse movimento
sincretista não teve nenhuma razão de ser local: era de pura providência exógena. Partiu do
centro, em obediência a uma ideologia que, por sua vez, não era nossa – que nos vinha da
Europa” (p. 229).
Antônio Cândido (1951), através da noção de família patriarcal retomada de Freyre,
propõe entender a especificidade brasileira e as transformações em curso. Cândido
25
26
argumenta que o núcleo familiar oficial era o centro organizador de relações baseadas
numa dominação hierarquizada, com cooperação e complementaridade.
Sua discussão sobre o papel da mulher é emblemático nesse sentido. Apesar de o
marido ocupar papel central, Cândido argumenta que seu poder não era absoluto. A mulher
teria espaços de iniciativa no controle de escravos domésticos, das crianças, na organização
do lar, de festas, etc. Assim, argumenta que essa cooperação e complementaridade faziam
com que a sensibilidade feminina não fosse suprimida, apesar da autoridade central do
marido. Ele também demonstra, assim como Vianna, como o líder da família assumia
proeminência política e econômica, na defesa de interesses privados, tendo um poder
personalista.
Segundo Cândido, a industrialização e a urbanização trazem mudanças
significativas. A família patriarcal passa a minguar empiricamente, resistindo
residualmente, permanecendo principalmente na memória. Novas relações se constituem,
reinventando papeis, lógicas dos casamentos, gerando desajustes entre antigas expectativas
e novos comportamentos.
Esses autores clássicos demonstram a centralidade da família patriarcal como
modelo organizador de relações sociais no Brasil. Vários estudos posteriores incorporaram
e revigoraram essa tradição, o que se tornou ponto de discussão polêmico sobre as
implicações teóricas, empíricas e políticas da utilização desse conceito como elemento
central da identidade nacional.
Assim, outros estudos se esforçaram também para demonstrar as limitações da
noção de família patriarcal para explicar as relações familiares - e assim, políticas, sociais,
culturais, etc. – da sociedade brasileira, advertindo para a existência de outras lógicas de
relacionamento, solidariedade e exercício do poder.
26
27
Destacam-se, por exemplo, os estudos de Emílio Willems sobre famílias de
imigrantes, camponeses, grupos religiosos, etc. que dão ênfase à variedade de organizações
familiares no Brasil. Seu estudo sobre a estrutura da família brasileira mostra as
especificidades de famílias populares rurais. Willems demonstra como as famílias
populares que estudou, principalmente em Cunha e Búzios, eram marcadas por uma lógica
mais flexível, menos regida por tabus e papéis rígidos (WILLEMS, 1953).
Ele demonstra, por exemplo, como as idéias que as classes alta e média faziam do
namoro, da virgindade, da fidelidade, etc. não se aplicavam às classes baixas, pois estas
não teriam a necessidade de preservar grandes patrimônios ou instituições. Entre famílias
pobres, os casamentos se davam de forma mais espontânea, muitas vezes informal; a
virgindade não era pré-requisito e, assim, a segregação entre os sexos não era essencial; os
casamentos eram relativamente instáveis, geralmente tendo fim por iniciativa das
mulheres, que podiam se casar novamente sem grandes problemas. Esses fatores, segundo
Willems, colocam em cheque a idéia de família extensa como padrão desejável.
O trabalho de Marisa Corrêa (1982) marca, dado o acúmulo de pesquisas sobre as
especificidades familiares, o questionamento mais incisivo sobre a validade da noção de
família patriarcal como padrão de compreensão da realidade familiar brasileira. Valendo-se
de estudos que demonstram a variedade de lógicas de relacionamento familiar, a autora
defende a existência de multiplicidade de formas de organização suprimidas pelo modelo
de família patriarcal. Enfatiza que é preciso ver o “resto”, as tensões e resistências ao
modelo da elite, que teria dado base aos trabalhos clássicos. Para Corrêa, autores como
Freyre e Cândido teriam incorporado esse olhar da elite de sua época, baseado na suposta
“ordem” da família dominante e suposto “caos” popular.
A intenção da autora é criticar a homogeneidade dessas interpretações, não negando
a existência da família patriarcal. Pretende “relativizar essa imagem dominante na
27
28
literatura sobre a família no Brasil. A ‘família patriarcal’ pode ter existido, e seu papel ter
sido extremamente importante, apenas não existiu sozinha, nem comandou do alto da
varanda da casa grande o processo total de formação da sociedade brasileira” (CORRÊA,
p. 25).
Afirma, com base em estudos demográficos, que o mais freqüente foi diagnosticado
como “irregular”, anomico e caótico, configurando uma opção dos estudiosos pelos
“vencedores”, uma minoria que concentrava as formas de exercício do poder. Esse olhar
do “dominante” fica claro no retrato sobre a situação da mulher, como complementar ao
marido, deslocando o foco de seu status inferior. Nesse sentido, argumenta que:
Em suma, o argumento da inferioridade da mulher, assim como do negro, do
cristão-novo, os dos filhos ilegítimos, na sociedade colonial deveria ser utilizado
com uma certa parcimônia e sempre contextualmente. Sua inferioridade foi
sempre argumentada politicamente e de maneira estratégica, em conformidade
com os interesses dos que detinham o poder de manipular esta informação (Idem,
p. 32).
Por fim, a autora enfatiza a variedade de formas de organização familiar - em várias
regiões, estratos sociais, épocas - permitindo um panorama mais rico, e incentiva trabalhos
que mostrem essa multiplicidade e questionem a quem serve os modelos estabelecidos.
Esse questionamento político seria tão importante quanto as reflexões teóricas e descrições
empíricas.
Alguns estudos recentes, como no caso de trabalhos sobre família escrava
(SCWARTZ, 1988; SLENES, 1999; GUEDES, 2008), têm contribuído para enriquecer as
discussões sobre novos arranjos de lógicas culturais específicas, que assumiram posição de
resistência, negociação e oposição em relação às formas de poder vigentes.
O trabalho de Slenes (1999) é emblemático nessas discussões, pois demonstra como
famílias escravas existiram e constituíram lógicas específicas, com base em tradições
compartilhadas, próprias à raiz africana, que configuraram um sentido de classe,
solidariedades e resistência contra o poder dos senhores. Estudando o caso de Campinas no
28
29
século XIX, ele caracterizou a existência de famílias estáveis entre os cativos e de formas
de solidariedade baseadas em memórias em comum, que influíam nas preferências de
moradia, nas representações sobre o fogo, etc.
Esse estudo de Slenes vai de encontro à tradição historiográfica fundada por autores
como Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, que consideravam o convívio
entre os escravos anomico, desagregado pela dominação senhorial. Também vai de
encontro, assim como Corrêa, à idéia de que a família patriarcal seria o único eixo
organizador da sociedade brasileira, sendo o restante uma massa amorfa que dispensaria
estudos mais profundos.
Buscando deslocar-se desse eixo de discussão, Roberto Da Matta (1987) defende
entendimento da noção de família patriarcal como um valor, para além de sua presença
empírica. Argumenta que os autores clássicos não negaram a diversidade, apenas
atentaram para o fato dela estar ancorada numa lógica dominante que organiza as relações
sociais e políticas brasileiras, lógica que detalharemos mais adiante.
Nesse mesmo sentido, Cintia Sarti (1992, p. 38) defendeu o uso da noção de família
patriarcal como “modelo de autoridade” que se estende para outras esferas da vida,
contribuindo para entender fenômenos como o pessoalismo, o privatismo, redes de
reciprocidades e hierarquias entre pobres urbanos. Assim, esses estudos abrem espaço para
que se pense a família patriarcal como valor político presente na sociedade brasileira, suas
formas de continuidade e transformação.
Alguns estudos de caráter mais histórico demonstram a existência dessa relação
entre valores familiares e ação política, como nos casos dos trabalhos de Letícia Bicalho
Canêdo, sobre elites mineiras, e Linda Lewim, sobre as paraibanas.
Canêdo (1994) discute os alicerces da memória política em Minas Gerais,
fortemente vinculados às redes familiares. Parte, assim, dos trabalhos de Cid Rebelo Horta
29
30
(1956) - que demonstra a hegemonia política de 27 famílias em Minas Gerais e sua
projeção nacional - e de Amilcar Vianna (1981), que afirma a maior importância das
alianças familiares em relação à produção agroexportadora como elemento de projeção
política.
Com base numa pesquisa genealógica, Canêdo (1994) desvenda como várias
gerações foram, através de estratégias familiares (como o casamento), acumulando capital
simbólico que se convertia em trunfo político para os novos tempos. Essas estratégias de
alianças criaram um perfil de homem político em Minas Gerais, protetor na distribuição de
recursos públicos, mediador entre as esferas local e central, com poder centrado em sua
personalidade e nome tradicional mantido na memória política.
Linda Lewim (1993) demonstra como a lógica de poder familiar prevaleceu na
Paraíba, mesmo diante do enfraquecimento do patriarcado de forma concreta. Assim, ela
enfatiza como esse modelo se abriu para redes políticas clientelistas, unindo parentes e
afins - como cunhados, amigos políticos – se aproximando do que Anthony Leeds (1964)
definiu como panelinha. Assim, se abriu espaço para grupos informais relativamente
fechados, regidos por lealdades que servem ao interesse comum dos seus integrantes.
Da Matta (1987) buscou, de forma mais ampla, entender os modelos de ação
política do brasileiro, partindo da noção de família patriarcal descrita pelos clássicos,
enquanto elo entre os universos privado e público. Argumenta que a identidade do
brasileiro é marcada por uma ambigüidade, pela presença de lógicas conflitantes pelas
quais os brasileiros transitam.
Valendo-se dos modelos individualista e holístico discutidos por Dumont (1983),
Da Matta afirma que a personalidade do brasileiro oscila entre o indivíduo e a pessoa (DA
MATTA, 1990), a rua e a casa (DA MATTA, 1985). Os valores da rua, dos indivíduos,
seriam marcados pela busca da igualdade, pela impessoalidade, pela observação de regras
30
31
universais. Já as marcas da pessoa são o pessoalismo, a integração da personalidade num
“todo” de relações que lhe atribui um papel, envolto em relações parciais e hierárquicas.
Esse segundo modelo seria configurado pelo perfil familiar discutido anteriormente,
caracterizado pelos vínculos familiares extrapolando para os cargos públicos (nepotismo),
pelo favor, pelas redes de lealdades, privilégios e proteções mútuas. A família seria, então,
a base da ação política, pois teria uma “ideologia de substância, ou seja, funda-se na crença
de existir uma substância comum (o sangue e a carne) que faz o grupo agir como tal,
exigindo e legitimando lealdade e devoção de seus membros” (DUMONT, 1983, p. 120).
Assim, as leis, e sua pretensão de universalidade, aparecem como elementos
exógenos, pois “as leis não podem ser o espelho das práticas sociais, mas são sempre
concebidas como instrumentos de correção ou remodelamento dessas práticas”. Nesse
sentido, a utilidade da lei aparece na ausência de poder, pois “as leis são sempre aplicadas
contra quem ainda não se mostrou relacionado aos poderosos”. Rituais emblemáticos como
o “jeitinho” e o “você sabe com quem está falando” são marcas desse sistema de relações
que rege grande parte de nossas relações de poder. (Idem, p. 122).
No entanto, o transito entre esses valores do brasileiro não se dá sem tensão, é
freqüentemente contestado, colocado em cheque frente à novas formas de se entender as
relações de poder. Nesse sentido, os movimentos sociais assumem proeminência na busca
por formas alternativas de relacionamento político.
2 - Cultura política dos movimentos sociais e assentamentos rurais
Alvarez, Dagnino e Escobar (2000) demonstram como os movimentos sociais, em
especial na América Latina, buscam criar novas culturas políticas, através da construção de
novas concepções e práticas culturais. Assim, os movimentos sociais subvertem condutas
31
32
estabelecidas, ressignificam a noções dominantes, em disputa com as formas de poder
vigentes.
Note-se que não se trata puramente de busca pelo poder, mas sim de busca por
mudanças nas formas de exercício do poder, alterando condutas habituais e expandindo as
discussões políticas para outras esferas. O conjunto de práticas - selecionadas da infinidade
da realidade - que são consideradas como políticas são questionadas pelos movimentos
sociais, que tentam expandir os questionamentos sobre as relações de poder para outros
âmbitos, menos institucionalizados, que normalmente não são vistos como objeto de
reflexão política.
Ao longo da história latino-americana, segundo os autores, as classes populares
foram levadas a crer que as decisões políticas não lhes cabiam, sendo espaço restrito às
elites estabelecidas em redes de lealdades pessoais inatingíveis para a maior parte da
população, ou atingíveis somente através do enquadramento em papéis submissos numa
hierarquia rígida e inquestionável. Portanto, essa realidade gerava dificuldade para o
surgimento de novos sujeitos politicamente autônomos, o que reforçava ainda mais a
exclusão e desigualdade social.
Assim, os movimentos sociais ressignificam a noção de cidadania na busca por
posturas políticas mais participativas, críticas, ambientadas em espaços públicos mais
amplos e maior noção de direitos. Ao buscar redefinir o universo do que conta como
político, vão de encontro ao autoritarismo vigente, gerando uma cultura política “nova e
híbrida”, que flui por canais exteriores ao Estado e poder oligárquico (DAGNINO;
ESCOBAR, 2000).
A noção de sujeito trabalhada por Alain Touraine (2006) também contribui nesse
sentido, por ser uma forma de organização da personalidade típica da sociedade
contemporânea e, em especial, dos movimentos sociais na atualidade. Para Touraine
32
33
estamos vivendo a decomposição dos sistemas e instituições sociais, que definiam papéis
rígidos para os indivíduos, os posicionavam em relações para além de sua possibilidade de
intervenção. Nesse novo contexto, os sujeitos são aqueles que assumiram a construção de
si, de sua trajetória individual e coletiva, construindo, dessa forma, a sociedade.
Em conflito com os poderes que limitam sua auto-construção, o sujeito repensa sua
posição no mundo, suas ações cotidianas, seus valores habituais, atribuindo um novo
sentido para sua existência. Como afirma Touraine “o sujeito se forma na vontade de
escapar às forças, às regras, aos poderes que nos impedem de sermos nós mesmos”. Ele é
“um chamamento a si mesmo, uma vontade de retorno a si mesmo, em sentido contrário à
vida ordinária” (TOURAINE, 2006, p. 119-120).
Essa força seria para Touraine o exercício da reflexividade (GIDDENS, 1991), com
um sentido específico em direção à busca por direitos, tanto universais (direito à igualdade
política, jurídica), quanto específicos (direito à diversidade cultural), forças em constante
tensão na atualidade.
O sujeito surge no contato com outros sujeitos, nos acontecimentos que questionam
as relações de poder, manifestações, momentos nos quais se assume a consciência de si
mesmo e a responsabilidade pela coletividade. Nessas situações, os indivíduos constituem
novas formas de viver, novas relações e valores. Um dos grandes exemplos para Touraine
seria o redimensionamento da sexualidade, da família e, em especial, do papel da mulher
na atualidade. Em ações que questionam as formas de poder autoritárias e hierárquicas
tradicionais, as mulheres, enquanto sujeito, conquistaram autonomia na construção de sua
identidade e proeminência na vida cultural, social e política, transformando
consideravelmente essas esferas.
No entanto, argumentamos aqui que essas transformações trazidas pelos
movimentos sociais não penetram na vida social de forma homogênea, sendo suscetíveis a
33
34
se desenvolverem de forma mais intensa em espaços mais abertos à experimentação. Nesse
sentido é que situamos os assentamentos enquanto ambientes propícios à criação cultural,
social e política mais intensa. Os assentamentos de reforma agrária, cuja criação foi
impulsionada pelas ações de mediadores de movimentos sociais, trazem, no processo de
luta pela terra e melhores condições de vida, a inovação de padrões de conduta com grande
potencial de trazer transformações mais amplas.
Os assentamentos rurais têm se apresentado como espaços privilegiados para a
construção e compreensão de experiências inovadoras em vários âmbitos: no referente às
práticas econômicas, como nas relações de trabalho e na nova percepção sobre a
propriedade privada; na cultura política, como nas tentativas de criação de novos
mecanismos de decisão; na sociabilidade, no que se refere às novas formas de criação e
manutenção dos laços comunitários; enfim, na possível construção de novas representações
sobre a realidade e novas identidades. As relações entre essas tentativas de inovação e as
continuidades de concepções tradicionais é questão central para o entendimento desses
processos.
Parte de um estudo de Wendy Wood (2010) contribui para compreendermos as
dimensões concretas das tensões em que esses processos de transformação se dão.
Discutindo a identidade de assentamentos do MST em Pernambuco, esse autor demonstra
as diferentes representações sobre a realidade vivida, alicerçadas em memórias sociais
distintas, o que por vezes ocasionou dissidências e distanciamentos. O autor relata o caso
de Eduardo 4, esclarecedor sobre o ponto que discutimos:
Eduardo tentou ensinar aos assentados uma nova “forma de fazer política”,
incentivando-os a deixar para trás a “política relacional e paternalista” da velha
era das plantações. De acordo com esse ponto de vista, os assentados precisavam
adotar uma noção mais moderna de direitos universais de cidadania, incluindo o
direito a liberdades políticas básicas e meios de vida sustentáveis que todos os
4
Eduardo é um líder renovador do MST na região de Água Preta, sendo retratado pelo autor como idealista e
entusiasta, representando os valores da organização nacional do MST.
34
35
brasileiros poderiam e deveriam reivindicar. Os ativistas regionais anteriores do
MST, ele argumentava, foram contaminados pela política das plantações, o que
levou os assentados a confundir os líderes do Movimento com os patrões para os
quais eles costumavam trabalhar. (WOOD, 2010 p. 390)
O choque entre a postura política de Eduardo e a tradição regional, incorporada
pelos mediadores que o antecederam, é nítido. Em outras passagens Wood explicita melhor
a percepção de Eduardo sobre a política tradicional e sua proposta inovadora, o que se
aproxima da discussão que desenvolvemos até aqui sobre a lógica familiar na política:
As lideranças anteriores, ele dizia, estavam “sempre dominando as discussões e
agindo como os velhos coronéis das plantações”. A percepção dos assentados em
relação a seus direitos, contudo, baseava-se em visões tradicionais clientelistas, e
não em noções universalistas de “direitos humanos” e “cidadania”. A ideia que
eles faziam de direitos implicava a presença de um protetor benevolente que
ofereceria segurança e assistência em momentos de necessidade. (Idem)
Eduardo também enfatizou a tensão que sua postura causou, o que levou ao
questionamento de sua autoridade e relevância para os trabalhadores rurais:
Essas visões dissonantes levaram os assentados a perceber Eduardo como um
líder politicamente incompetente, enquanto enalteciam Antonio como um líder
poderoso. Eduardo era especialmente criticado pelos assentados por não
proporcionar os recursos que eles esperavam do Movimento; uma mudança
afetada em grande parte pelos cortes orçamentários para o programa de reforma
agrária no segundo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Além
disso, o novo líder do MST violou normas políticas locais apoiando um
candidato do MST para deputado estadual nas eleições locais de 2002 e não o
filho do prefeito, que também era um candidato. Eduardo e outros líderes do
MST salientaram que os assentados tinham todo o direito de votar de acordo com
a própria consciência. Mas, na visão de muitos assentados, a decisão do MST de
negar apoio ao filho do prefeito reduziu a assistência da prefeitura para a
comunidade. (Idem, p. 391)
Os assentados contrapunham a postura de Eduardo à de Antônio, antigo líder do
MST na região, enfatizando a incapacidade de Eduardo em satisfazer as necessidades dos
assentados, o que enfraqueceu a filiação ao MST. O autor argumenta que:
A mudança na liderança do MST em 2001 e o impacto negativo que isso teve
sobre a filiação dos assentados ao Movimento salientam a natureza personalista
da política local nessa e em outras regiões do Brasil. E também ressalta a
importância da cultura na construção de idéias no marco da luta pela mudança
social. Antonio e outros líderes locais reproduziam um estilo de liderança que
fazia sentido para os assentados. Eles sabiam como jogar o jogo político local ao
35
36
mesmo tempo em que introduziam novas formas de organização coletiva.
Insatisfeitos com os novos líderes e sua incapacidade de proporcionar assistência
material, os assentados recorreram a uma estratégia bastante comum em
situações de conflito com o proprietário da plantação: eles simplesmente
partiram. Como um dos assentados que havia participado da ocupação da terra e
do acampamento descreveu: “Eu decidi sair do Movimento porque não estava
dando certo para mim. Todo esse ir e vir, e eu não ganhava nada para mim... Eu
prefiro trabalhar no meu terreno, lutando no meu próprio ritmo, do que ir a todas
aquelas reuniões”. (Idem, p. 391-392).
Segundo Melucci (1996) a penetração dos movimentos sociais na sociedade, a
lealdade e o envolvimento dos membros e o consenso dos diferentes grupos sociais
dependem da ação dos líderes. São os líderes que “agem como representantes de grupos e
guiam seus membros na busca de metas e lhes provê com algumas vantagens específicas”
(MELUCCI, 1996, p. 334).
Na perspectiva teórica de Melucci (1996) só é possível o estudo da liderança
quando se leva em conta a interação entre o líder e a base que o sustenta como tal 5. “O
fundamento da liderança deve ser buscado não na qualidade do líder ou na dependência
dos seus seguidores, mas no relacionamento, os tipos de relações que colocam os atores
juntos” (Idem, p.333). Assim, a liderança constitui-se como uma interação onde os
benefícios da relação precisam ser mútuos: para líderes e liderados.
Nesse sentido, é preciso que o líder “satisfaça as expectativas dos membros na
perseguição dos objetivos, representando o grupo no mundo externo e coordenando,
agindo e integrando atividades internas” (Idem, p. 334). Trata-se do que o autor chama de
poder de recompensa, que, podemos supor, talvez não estivesse presente na relação de
Eduardo com os assentados insatisfeitos com sua atuação.
O caso descrito por Wood (2010) representa parte considerável dos dilemas vividos
por mediadores em assentamentos de reforma agrária. A busca por novas formas de
relacionamento político com as autoridades locais e entre os assentados é freqüentemente
5
A ênfase na relação e interação na sustentação se dá com o propósito de criticar as vertentes teóricas do
carisma, que vêem o líder como “alguém imbuído de capacidade de manipular e agregar indivíduos
atomizados” (MELUCCI, 1996, p. 333).
36
37
um ponto de tensão entre assentados e lideranças. Esse fato fica mais claro quando
notamos casos em que o afastamento dos mediadores mais influentes após a conquista da
terra levou os assentados a se aproximarem da lógica política local, a despeito de parte das
concepções políticas, típicas dos movimentos sociais, construídas e/ou assimiladas no
processo de luta pela terra (ZANGELMI, 2007).
Essas relações aparecem ainda de forma mais complexa quando notamos também
que grande parte da existência e fluidez das formas de organização no campo estão
ancoradas nas redes de sociabilidades tradicionais e dependem dessas redes para sua
eficácia. Assim, é preciso lembrar que os movimentos sociais não emergem num vácuo,
não são realizáveis de forma abstrata, cartesiana, sobre uma página em branco em que se
possa desenhar uma nova sociedade. Eles são construídos e desenvolvidos por atores
concretos, imersos numa teia de significados culturais e formas de ação estruturadas por
gerações.
A lógica familiar como base para formas de organização no meio rural foi
evidenciada por Comerford (2003), no que se refere à formação e desenvolvimento de
sindicatos de trabalhadores rurais na Zona da Mata mineira. Ele demonstra como parte
importante da organização desses sindicatos estava ligada às relações familiares, seus
conflitos e estratégias de alianças. Assim, a atuação sindical, na busca por direitos, tinha
certa interdependência com as relações de parentesco na região, sendo um novo elemento
incluso em disputas com base nessa lógica tradicional.
Levando em conta que grande parte dos movimentos sociais no campo parte da
base construída por organizações em torno dos sindicatos e grupos religiosos, cabe
ressaltar a relevância do entendimento sobre a lógica política tradicional para compreender
a emergência e desenvolvimento de movimentos sociais que têm entre seus princípios a
formação de novas formas de exercício do poder. Ao que tudo indica um grande desafio
37
38
para os mediadores de movimentos sociais tem sido criar novas culturas políticas, sem
prescindir da vitalidade da antiga lógica que dá base para a concretude de suas ações. A
contradição das ações e discursos é um risco sempre presente nesses contextos, uma tensão
latente que, a qualquer momento, pode por em cheque a legitimidade da ação dos
mediadores, seja no âmbito concreto, local, ou no âmbito abstrato, ideológico, geral dos
movimentos.
O conceito de mediação desenvolvido por Neves (2008) contribui para entendermos
esse desafio para os mediadores. Para a autora, o processo de mediação trata-se de
intervenções de atores especializados, promotores de interações entre universos de
significação. Assim, cabe aos mediadores sistematizar as demandas dos atores envolvidos,
fazendo uma bricolagem através de fragmentos de significados provenientes de diferentes
contextos. Nesse sentido, os diversos grupos, com suas respectivas visões de mundo, são
colocados em interação, negociam, assim, um novo projeto, num novo arranjo.
Note-se que, nessa perspectiva, mediadores e mediados se influenciam
mutuamente, transformando-se, criando concepções alternativas tanto em relação ao grupo
de origem dos mediadores quando em relação à base tradicional dos mediados. Trata-se de
uma troca de saberes, de uma comunicação negociada entre agentes, que ganha contornos
específicos em cada contexto.
3 - Considerações finais
Diante dessas reflexões, percebemos que a atuação dos mediadores de movimentos
sociais em assentamentos rurais envolve a necessidade de pensar as diversas relações entre
as propostas transformadoras dos movimentos sociais e a cultura política tradicional,
buscando possibilidade de comunicação, convergências e combinações inovadoras. Essa
postura requer o reconhecimento das bases familiares da lógica política tradicional que
38
39
retratamos, o que demonstra que essa cultura está ancorada em formas de relacionamento
específicos.
Alguns estudos apontam transformações em curso nos assentamentos, como, por
exemplo, no papel da mulher (VALENCIANO; THOMAZ JUNIOR, 2002), o que altera a
lógica familiar tradicional. As relações familiares - como demonstramos anteriormente ponto básico da cultura política brasileira, são alteradas através de novas concepções
políticas que atingem o mundo privado. Assim, pode-se pensar que essas transformações
chegaram ao alicerce. Ou seja, há processos de reconstrução da família em estreita ligação
com processo de reconstrução da vida pública.
No entanto, essas transformações não são: “a salvação” trazida por movimentos
sociais representantes do progresso universal, iluminadores das trevas em que viveriam
comunidades tradicionais atrasadas. Trata-se, por outro lado, da interação entre saberes
advindos de fontes diferentes e que podem dialogar em nome de uma convergência,
hibridação, que, mesmo buscando transformação, está alicerçada em práticas concretas, no
cotidiano.
Da abertura de mediadores e mediados para essa interação construtiva de novas
concepções e práticas políticas pode depender a sustentabilidade das ações dos
movimentos sociais nos assentamentos. Cabe, então, questionar se esse processo de
interação pode construir, de forma equilibrada, algo novo que não seja tomado por
contradições insolúveis.
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41
PERSPECTIVAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL E FORMAÇÃO DE CAPITAL
SOCIAL NUM ACAMPAMENTO EM CAMPO VERDE – MT
Prospects for local development and capital formation in a Campo Verde - MT
José Roberto Lopes 1
Reginaldo Brito da Costa 2
Josemar de Campos Maciel 3
Maria Augusta de Castilho 4
Roberto Antonio Ticle de Melo e Souza 5
Resumo: O Objetivo deste trabalho é, na medida em que o capital humano no acampamento Dom Osório se
transforma, bem ou mal, em capital social, caracterizar a forma como as articulações entre o movimento social,
os atores governamentais e o terceiro setor, atuam na formação de redes comunitárias. O referido Acampamento
foi organizado pelo movimento dos trabalhadores acampados e assentados (MTA) em 2002 no município de
Campo Verde, Mato Grosso. Os resultados da pesquisa mostram que o maior problema do acampamento é a
governança, devido a ingerências dos agentes exógenos, ante a submissão dos acampados a um querer despótico
pautado em interesses não coletivos das lideranças do movimento.
Palavras-chave: Redes Comunitárias; Desenvolvimento Local; Reforma Agrária.
Abstract: The aim of the following study is to characterize the relationship between third sector, government
agencies and the population of the Dom Osorio provisional settlement, assessing the existence or not of
community nets. The Settlement was organized by MTA, movement of workers and settlers in Mato Grosso, in
2002 in the municipality of Campo Verde, State of Mato Grosso. The research points out that the biggest
problem in this process is the structure of governance, due to a big interference of exogenous agents and to the
submission of settlers to despotic interests of the leaders of the movement - not based upon collective interests.
Key words: Communitary Nets; Local Development; Land Reform.
Introdução
A reforma agrária no Brasil tem se estabelecido há alguns anos mediante
procedimentos governamentais responsivos a ações organizadas e reivindicatórias da
sociedade civil organizada em várias formas. Umas delas, as ocupações de terras tornaram-se
um instrumento comum de reivindicação em todo território brasileiro, através do trabalho de
organizações coletivas, conhecidas como movimentos sociais. Esses movimentos têm sido de
1
Mestre em Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco de Campo Grande, MS.
Professor do Mestrado em Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco de Campo Grande,
MS.
3
Professor do Mestrado em Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco de Campo Grande,
MS.
4
Professora e Vice-Coordenadora do Mestrado em Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom
Bosco de Campo Grande, MS.
5
Professor do Mestrado em Geografia da Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, MT.
2
42
certa forma legitimados pelo Estado Brasileiro, o qual responde com desapropriações de terras
solicitadas, distribuindo-as entre as famílias indicadas pelos mesmos ocupantes.
É no contexto dessas lógicas que surge o MTA (Movimento dos Trabalhadores dos
assentados e acampados de Mato Grosso). É uma organização que organiza acampamentos de
pessoas que reivindicam a posse da terra na região sul do Estado de Mato Grosso, como forma
de pressão social da comunidade mato-grossense junto ao Governo Federal para a conquista
de propriedades e o estabelecimento de assentamentos rurais. Esse é o caso do Acampamento
Dom Osório, localizado entre as cidades de Campo Verde e Primavera do Leste, nas
proximidades da rodovia federal BR 070, iniciado no ano de 2002, que ainda aguarda sua
transformação em assentamento. Tensões e conflitos emergem a cada dia das relações
socioterritoriais, motivados por interesses individuais, relações de poder e acesso a
informação.
O Objetivo deste trabalho é, na medida em que o capital humano no acampamento
Dom Osório se transforma em capital social, caracterizar a forma como as articulações entre o
movimento social, os atores governamentais e o terceiro setor, atuam na formação de redes
comunitárias. Para tanto, em primeiro lugar, apresenta-se o acampamento Dom Osório e o
perfil dos acampados. Em seguida, enfoca-se a perspectiva de desenvolvimento local com
articulações do terceiro setor e redes comunitárias.
1. O acampamento Dom Osório e o perfil dos seus acampados
O acampamento Dom Osório está localizado no município de Campo Verde, Estado
de Mato Grosso, dentro da fazenda Boa Esperança, propriedade objeto de desapropriação para
fins de reforma agrária pelos requerentes do MTA. O município de Campo Verde situa-se na
microrregião de Primavera do Leste, no sul do Estado de Mato Grosso, equidistante em
relação à metrópole, Cuiabá, e aos pólos regionais de Primavera do Leste e Rondonópolis. Em
43
fevereiro do 2008, através de visitas periódicas de observação ao acampamento Dom Osório,
percebeu-se haver 300 famílias que estavam divididas em 2 grupos denominados grupo 1 e
grupo 2, dentro da fazenda Boa Esperança.
Esta fazenda possui duas sedes, uma bem próxima da entrada no Rio das Mortes, e
outra distante a 10 km desta, práticamente no meio da fazenda. As familias estão divididas em
dois agrupamentos, em torno dessas sedes. Segundo os coordenadores do movimento, foi
preciso essa divisão para a ocupação e controle do território. Entre os dois grupos reinam
sentimentos de pertencimento distintos. Para as reuniões com o INCRA, há uma comissão
com representantes de ambos.
Indagados sobre esse comportamento, os coordenadores locais afirmam ser necessária
essa divisão para um controle da fazenda, mas os jogos de interesses dessas coordenações
favoreceram esse sentimento de divisão e apropriação dos espaços, no caso as sedes, criando
uma situação de animosidade interna, com vários conflitos. Ações como: tomadas de decisões
através das assembléias e reuniões, mobilizações, práticas culturais de religiosidades e festas
populares, ocorrem separadamente em cada grupo. Não há ações compartilhadas. No início
das visitas, foi indagado pelo porque dessa divisão, se o objetivo final é o assentamento de
todos. Essa indagação está no fundo de todo este trabalho.
O método de pesquisa foi indutivo, com ênfase no aspecto qualitativo
(problematização e interpretação). Os procedimentos metodológicos compreendem tanto um
levantamento de dados secundários (documentação e literatura), quanto um Levantamento de
dados primários (questionários, entrevistas e observação participante junto aos acampados). O
documento escrito principal do trabalho é o Plano de Desenvolvimento do Assentamento,
elaborado pela equipe da FAED – Fundação de Apoio a Educação e ao Desenvolvimento,
além, naturalmente, da voz dos acampados.
44
1.1 - Caracterização dos acampados
Todas as Tabelas e Gráficos que seguem foram extraídos do PDA Dom Osório,
elaborado pela FAED. Essa entidade obteve os dados quantitativos mediante um diagnóstico
rápido participativo (DRP) dos acampados. Sobre esse diagnóstico Kuhn (2008, p.16) explica
que:
O diagnóstico rápido participativo foi usado para se conhecer, avaliar e planejar
idéias, superar obstáculos, encontrar oportunidades, visando uma leitura coletiva da
realidade para, a partir desta, haver um planejamento também coletivo e desta forma
possibilitar a tomada de decisões para o bem estar de todos.
O número total entre homens e mulheres está distribuído em todas as faixas de forma
igualitária, o que aponta para a facilidade de aplicações de ações com o envolvimento de
todos de forma empreendedora nos arranjos produtivos que poderão se manifestar ou das
formas de força de trabalho.
Na análise da média de idade da população do acampamento, observa-se, entre outras
questões, que a faixa etária de 25 a 60 anos está representada por mais de 40% dos
acampados. Trata-se de pessoas que aliam vigor físico e experiência profissional, fatores
necessários à mão de obra para a implantação de projetos individuais ou coletivos,
salvaguardas de sustentabilidade.
O acampamento Dom Osório é formado por quase 70% de pessoas oriundas de outras
localidades, tanto de Mato Grosso quanto de outros Estados. As próprias pessoas acampadas
oriundas do município de Campo Verde, de acordo com os dados (30%), são formadas por
pessoas migradas de movimentos inter-regionais ocorridas no próprio Estado de Mato Grosso.
Campo Verde, que pertence a região de Primavera do Leste, apresentou o maior crescimento
dentro do Estado de Mato Grosso entre 1991-2000, com expressiva porcentagem de 13.3% de
taxa de crescimento apenas nessa década, o que a torna na região mais dinâmica do Estado. O
município, emancipado de Cuiabá, tem pouco mais de 20 anos de emancipação política.
45
Acampadas com interesses de obtenção de um lote da reforma agrária, essas pessoas
estão se adaptando a esse novo lugar - ainda estão se re-territorializando. Seus laços de
vizinhança ainda são incipientes. Como se pode ver no quadro a seguir, a mobilização de
pessoas realizada pelo MTA, não considerou apenas os trabalhadores com habilidades ligadas
ao campo, mas também de trabalhadores urbanos provavelmente desempregados. Esses
trabalhadores, em numero expressivo formado por profissionais liberais, sem experiência na
lida com a terra, necessitarão de capacitações para sua inserção em atividades rurais com toda
a complexidade que envolve desde a produção até a comercialização dos produtos. O quadro
acima indica um alto número de pessoas que desenvolveram atividades urbanas, em
comparação com as pessoas que indicaram atividades ligadas ao campo.
QUADRO 1. Habilidades Profissionais dos Acampados do Dom Osório, município de Campo Verde/MT.
Atividades Rurais
Atividades Urbanas
Profissão
Quant.
Profissão
Quant.
Profissão
Tratorista
Cortador de Cana
Inseminador
Vaqueiro
Cerqueiro
Saqueiro
Trabalhador em Laticínio
Domador
Técnico Agrícola
Pescador
Horticultor
Fruticultor
Classificador de Semente
Viveirista
Bióloga
40
08
06
35
18
10
04
03
07
05
12
01
01
05
01
Secretaria
Administrador
Professor
Açougueiro
Padeiro
Cozinheira
Doceira
Motorista
Mecânico
Eletricista
Funileiro
Borracheiro
Soldador
Carregador
Garimpeiro
Dragueiro
Armador
Prensista
Técnico Informática
Musico
Farmacêutico Prático
07
01
13
05
07
36
03
29
13
12
02
03
03
07
10
01
02
01
04
01
01
Artesão
Pedreiro
Carpinteiro
Pintor
Servente de Pedreiro
Marceneiro
Serralheiro
Encanador
Cabeleireira
Costureira
Manicure
Salgadeira
Domestica
Técnico em Enfermagem
Auxiliar de Enfermagem
Torneiro Mecânico
Picolezeiro
Vendedor
Vigilante
Cinegrafista
Quant.
10
50
28
08
10
07
02
02
07
05
04
05
08
03
03
01
02
37
21
01
Fonte: FAED-PDA (2008).
De acordo com os dados apontados no gráfico, há 9 pessoas com nível superior, o que
faz supor que possam ser profissionais com capacidade para atividades de docência na futura
unidade educacional, que será implantada no futuro assentamento. Com efeito, é de se
observar, que essa comunidade estará sendo formada a 57 quilômetros da sede do município,
46
e, o gerenciamento dos potenciais próprios da comunidade, implica na solução de problemas
atinentes às próprias necessidades (PIRES et all., 2008, p. 112).
Além dos dados secundários da condição sócio-econômica, levantados junto as
organizações públicas, Prefeitura Municipal de Campo Verde e FAED, realizou-se a aplicação
de um questionário com questões abertas no acampamento, para que as pessoas pudessem
expor seus ponto de vista com relação a todos os agentes que estão atuando junto a elas.
Os acampados são representados pelo MTA, todas as famílias são filiadas a esse
movimento, que possui estratégias de atuação pautadas no gerenciamento de pessoas através
de um sistema organizativo, baseado na participação solidária através de grupos, por eles
denominados núcleos, como unidades celulares facilitadoras de controle como um todo. Estão
divididos em núcleos de aproximadamente 30 pessoas que são coordenados por 2 pessoas
denominados coordenadores de núcleo.
Os relacionamentos interpessoais e a gestão comportamental de um acampamento têm
um controle baseado em um regimento que normatiza a disciplina funcional de práticas
participativas. Uma fala é significativa:
[...] então o movimento cria um regimento, regimento do acampamento, para
controlar o acampamento, tudo depende dos coordenadores. Aqui no Dom Osório,
tudo que foi errado foi punido, inclusive até mesmo para coordenadores de núcleo
(NEI)
Os coordenadores de equipe seguiam as regras acordadas como forma de manter uma
unidade regrista. Entretanto, ao longo da trajetória do acampamento as normas estabelecidas
no regimento foram sofrendo atenuações de acordo com o número de acampados, com
intervalos de ações disciplinares mais coercitivas à medida que o processo de desapropriação
da fazenda tornava-se mais iminente e o acampamento esvaziado, e ações disciplinares mais
brandas, à medida que se necessitava cooptar pessoas para recomporem o numero necessário
de famílias do acampamento para comporem a lista de peticionários junto ao INCRA como
clientes da reforma agrária.
47
Essas práticas gerenciais, baseadas em conveniências, contribuem substancialmente
para as ações divergentes na promoção de capital social. Um problema apontado pelos
acampados é a presença de oportunistas:
[...] por exemplo aqui tem os andorinha que são pessoas que nunca participa de nada,
nem de luta, nem de mobilização, de nada, só vem mesmo na hora que tá tudo beleza,
os coordenador do núcleo é que segura porque deve ter alguma propina por trás, o
andorinha deve bancar ele (TIRIRICA)
Essa figura do “andorinha” é um indício de interesses próprios de alguns dos
coordenadores locais que têm a mais completa autonomia do MTA em suas atribuições e
responsabilidades. Assim pessoas que tem atividades urbanas principalmente no municipio de
Campo Verde, fazem parte do acampamento apenas de direito mas não de fato, uma vez que
sugerem que há acampados que pagam de alguma forma para se manterem nessa situação.
Essa suspeitas são confirmadas no relato de um dos coordenadores do movimento que sobre
essa figura singular do “andorinha” declara: “andorinha são os companheiros que contribuem
molhando a mão dos coordenadores, e quem acaba penalizado com isso é quem está embaixo
da lona”.
Outra estratégia do movimento na tentativa de manutenção da unicidade do
acampamento e a seleção das famílias que comporão o futuro assentamento, ocorrem através
do que os acampados chamam de finanças, que tem dois coordenadores que desempenham
esse papel e controle, em cada núcleo. De acordo com o regimento essa contribuição mensal é
a primeira condição para pertencer ao grupo. Sobre a finalidade dessa contribuição assim
declara Oliveira, um dos líderes do movimento: “essas finanças são necessárias, as famílias
dão uma contribuição, uma mensalidade, quem administra isso é o próprio acampamento e
isso é prá cobrir despesas do movimento”.
Apesar da declaração dos líderes do movimento de que todo trabalho realizado por
eles, trata-se de uma forma voluntária para ajudar os companheiros a ter seu pedaço de terra, a
visão dos acampados sobre essa forma de atuação do movimento leva a discórdias e
48
desconfianças por parte dos contribuintes. O relato de Henrique é contundente nesse aspecto e
generaliza esse sentimento dentro do acampamento. Assim se reporta:
[...] No começo do acampamento tinha 1600 famílias que contribuíam com R$ 5,00
isso dá 8 mil reais por mês mas sempre a energia do acampamento, que era pra
bomba d’água, era cortada por falta de pagamento, e o povo ficava sem água, isso
quando o acampamento tava lá no Plínio Borges. O problema do povo é que
ninguém senta pra fazer conta, o senhor não acha que com 8 mil não dá pra pagar
uma conta de luz?, então para onde ia esse dinheiro?, pro acampamento é que não
era, era pro bolso dos coordenadores com certeza.
Analisando esses pensamentos, a atuação da coordenação do movimento remete-se a
reflexões sobre essas práticas, percebe-se que a falta de transparência e de informações são
talvez, aliados a descontinuidades de processos, a causa maior de desmotivações e
desconfianças dos comandados em relação ao comando.
Em sua Teoria das Hierarquias das Necessidades, Abraham H. Maslow, define que o
comportamento humano está baseado no atendimento de cinco sistemas hierárquicos das
necessidades humanas. A motivação vem do atendimento das necessidades estabelecidas em
escalas de expectativas. O atendimento de uma necessidade ancora a busca de uma nova
necessidade e “a discussão do desenvolvimento não pode passar a margem desses conceitos”
(PIRES et all., 2008, p.22). Cada personagem do acampamento tem uma motivação pessoal
quanto ao querer um lote proveniente da reforma agrária, entende-se lote a ser doado pelo
Governo Federal, através do Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA. Algumas
pessoas são motivadas pela necessidade de segurança, ter um lote, realizar um sonho, ter um
negócio e outras por necessidade de auto-afirmação da sua condição social perante a
sociedade.
No momento os acampados do Dom Osório, há mais de seis anos nessa condição
social, têm nas necessidades fisiológicas ou do corpo (água, comida, abrigo, etc.) a principal
necessidade de sobrevivência, como ponte de equilíbrio na busca da motivação principal pela
terra, e as práticas coletivas desse querer e as relações sócio-territoriais relacionadas dessas
participações, como a gênese de uma identidade coletiva.
49
Sobre a participação na vida social e o uso do tempo livre, Gubert (2005, p.107)
elucida que enquanto na Gemeinschaft (comunidade), a participação na vida associativa faz
parte do costume, uma vez ligadas às necessidades básicas do ser humano, na sociedade
moderna (nosso exemplo o acampamento) dependem muito mais de escolhas individuais,
seletivas e orientadas por interesses específicos.
Os acampados do Dom Osório, coletividade cosmopolita, ainda estão em processo de
re-territorialização. Entretanto, o terceiro setor ainda que incipiente e de forma tímida, começa
a surgir entre as pessoas do local, o seu fortalecimento será o resultado da constância dessas
práticas participativas. No relato de Lagoa é possível detectar esses agrupamentos de
interesses participativos alicerçados nos desejos de sociabilidade e reconhecimento: “o
acampamento tem uma equipe de futebol, o Boa Esperança Esporte Clube, que participa dos
torneios da região, geralmente a prefeitura manda ônibus pra carregar os atleta”.
No relato do Sr. Nei observa-se contradição na atuação política do MTA, com relação
aos interesses dos líderes do movimento. Este senhor emergiu como uma liderança local nata,
escolhido dentre os acampados. Seu relato demonstra insatisfação com relação a atuação das
lideranças estaduais do movimento e coloca em dúvida a missão do movimento quando
declara:
[...] O MTA foi um movimento de todos até 2 anos atrás, mas hoje não é mais um
movimento social, porque é um movimento só de duas pessoas, e o projeto deles é
organizar acampamento, ganhar terras e arrendar as terras e não tão nem aí pro povo.
Percebe-se que há interesses individuais que sobrepujam os interesses coletivos
orientados para o acampamento, entretanto, o fato desses acampados estarem ou aceitarem
essa situação em si, demonstra que há também um interesse individual de auto-afirmação ou
de status, um querer, que precisa ser subjugadas a um querer despótico para a busca do
atendimento de ambas as necessidades.
[...] Meu sonho é morar no sitio eu não gosto de morar na cidade, quero o lote por
causa desse sonho, da minha parte também quero mostrar pra minha família que sou
capaz de ter alguma coisa (CARMO).
50
No Quadro 02, logo abaixo, sumariza-se a visão dos acampados sobre a atuação de
agentes exógenos no cotidiano do acampamento, e na avaliação própria de parceiros e
companheiros. Os anseios e as articulações processadas na comunidade, que podem ou não
desencadear na formação de redes comunitárias, conforme se verá.
QUADRO 2 – As implicações das atuações dos atores exógenos na formação de redes comunitárias –
Acampamento Dom Osório
Assuntos abordados nos relatos Perspectiva de Desenvolvimento Local
O Quê
G
O
V
E
R
N
O
Quem
Atua
Visão dos
acampados sobre
a atuação
Expectativa
prevista
Contribuição para
melhoria da
qualidade de vida
Ministérios
Eficiente
Prover
condições
mínimas de
sobrevivencia
dos acampados
Estabelecimento de
políticas públicas
Incra
Ineficiente
Assegurar a
criação do
assentamento
de maneira
rápida
Legalização do
assentamento
Judiciário
Ineficiente
Assegurar o
cumprimento
da Lei
Preferência de
julgamento dos
processos
Funcionári
os Públicos
Ineficientes
Elaboração do
PDA e
instalação do
assentamento
Comprometimento
em sua atuação
Assuntos abordados nos
relatos
O
Quê
Quem Atua
Sindicato
Rural
T
E
R
C
E
I
R
O
Partidos
Políticos
Visão dos
acampado
s sobre a
atuação
Eficiente
Ineficiente
Fatores que impedem ou
estimulam a formação de redes
comunitárias
Ator secundário
Tibieza
Confiança dos acampados
através das políticas
públicas: ex. Bolsa familia,
sacolão.
Ator principal para o
andamento dos processos
Descrédito dos acampados
Gerador de incertezas
Empecilho para o
desenvolvimento local
Gerador de desconfiança
Visto como privilegiador
de
classes
Responsável pelo atraso do
assentamento rural
Descumpridores de prazos
Omissos
Tendências a imporem suas
vontades ante o querer dos
acampados
Perspectiva de Desenvolvimento Local
Expectativa
prevista
Organizar,
reivindicar e
informar
acampados sobre
procedimentos
legais
Promover ações
políticas que
atendam as
necessidades do
acampamento e
do futuro
assentamento
Contribuição
para melhoria da
qualidade de vida
Representação da
classe de
trablhadores rurais
Responsabilidade
social
Fatores que impedem ou estimulam a
formação de redes comunitárias
-
visão corporativista da sociedade
Alto grau de confiabilidade nessas
instituições
-
Atuações políticas interesseiras e
geradoras de desconfiança.
Interesse comunitário apenas para
beneficio próprio
-
51
S
E
T
O
R
Ong’s
Ineficiente
Associação
Comunitária
Quangos
Eficiente
Ineficiente
Assuntos abordados
nos relatos
O
Quê
Visão dos
Quem acampados
Atua
sobre
atuação
MTA
Ineficiente
A
C
A
M
P
A
D
O
S
Coord
Locais
Buscar recursos
necessários a
sustentabilidade
do futuro
assentamento
Possibilitar o
aporte de
recursos
financeiros
através dos
projetos previstos
no PDA
Prover o futuro
assentamento de
infra estrutura
necessária ao
desenvolvimento
local
Parcerias visando a
elaboração de
projetos
sustentáveis em
conjunto com as
entidades locais
-
Estabelecimento de
parcerias com
primeiro e segundo
setor
-
-
-
Realização das
ações previstas no
PDA
-
Expectativa
prevista
Representar,
coordenar ações
impactantes, buscar
parcerias, manter a
organização do
acampamento e
subsidiar ações
para instalação do
assentamento.
Promover a
Ineficientes organização do
acampamento
Ineficiente
Dependencia do Governo Federal
para aporte de recursos visando o
desenvolvimento de ações de infra
– estrutura
Perspectiva de melhoria da qualidade de vida
Contribuição para
melhoria da
qualidade de vida
Fatores que impedem ou estimulam a
formação de redes comunitárias
-
Intermediação de atos e
fatos que representem
os anseios dos
acampados
Representação
despojada de interesses
individuais
-
Acam
pados
Desconfiança dos acampados
sobre atuação dessas entidades
Falta de informação sobre atuação
das organizações
Falta de transparencia nas
prestação de contas dessas
entidades
Desconfiança nas lideranças locais
Capacidade de aglutinar forças
Propensão de alguns acampados
ao associativismo
Sentimento de pertença
embrionária
Formar uma
Solidariedade latente
comunidade a
por falta de liderança
partir da união e
confiável
associação de todos
-
-
Interesses economicos contrários
aos preceitos estabelecidos em sua
missão e dissonantes das práticas
sociais
Despreparo de gestão de lideranças
Ações privilegiadoras
Falta de transparencia na
divulgação da atuação
Voluntariedade
Falta de legalidade institucional
Indicadas pelos próprios
acampados
Falta de treinamento de relações
interpessoais
Tem se mostrados autocráticos
gerando desconfiança do grupo
Capacidade de Solidariedade
Desconfiança no próximo
Interesses economicos e privilégios
de alguns membros com anuencia
de coordenadores locais
Cultura associativista incipiente
Desconfiança nas lideranças locais
Segundo a visão dos acampados a atuação de diversos atores governamentais
(sobretudo o INCRA e o MDA), não correspondem às expectativas previstas e resultam em
questionamentos de ambas as partes, funcionários públicos e acampados, num jogo de
reclamações sobre a solução para os problemas criados no processo de assentamento dessas
pessoas. O MDA é percebido como um ator secundário, e apenas atende as necessidades
52
básicas de sobrevivência das famílias fornecendo “sacolão” de alimentos. Com relação ao
INCRA, é visto como ator principal e deveria assegurar a criação do assentamento de maneira
rápida. As constantes trocas de gestores e de gestões, refletem no descumprimento de prazos
por parte dos funcionários que aliados à omissão e a falta de comprometimento das equipes do
órgão, foi apontado como fatores que impedem o andamento dos processos, com reflexos
diretos na implantação do futuro assentamento.
Uma rede comunitária estabelece-se pela aglutinação de atuações de atores envolvidos
diretamente no fazer comunitário, assim organizações governamentais e não governamentais
tem papel preponderante no desenvolvimento local. O MTA promotor do acampamento Dom
Osório, como todo movimento social, não está legalmente instituído e estabelece como
estratégia de ação a parceria com o Terceiro Setor – para o desenvolvimento de ações e busca
de recursos financeiros, para a manutenção da ordem econômica e social do acampamento.
Há uma rede de cooperação atuando no Acampamento Dom Osório, embrionária da
formação de uma rede comunitária que poderá contribuir para a sustentabilidade do futuro
assentamento. Entretanto a atuação de algumas entidades dessa rede foi apontada pelos
acampados como ineficientes e geradoras de desconfiança, são elas: os partidos políticos, as
Ongs e os Quangos, entidades público-privadas, que poderiam propiciar infra-estrutura. Em
todas essas organizações citadas, os fatores apontados como impeditivos à formação de uma
rede comunitária foram: atuações dos gestores com interesses próprios, falta de transparência
nas prestações de contas com os recursos viabilizados e falta de informações sobre formas de
atuação na continuidade das ações.
Acrescente-se a isso a falta de habilidades desses agentes no trato com a diversidade
cultural dos membros do acampamento, da falta de profissionalização dessas diretorias e falta
de informações inclusive das leis que regem esse setor tanto com relação a atribuições quanto
de gestão de desempenhos. Por outro lado, entidades ligadas diretamente ao querer dos
53
acampados como o Sindicato Rural, tem um alto grau de confiabilidade que pode contribuir
para a capacidade de aglutinar forças em torno de interesses coletivos. O Sindicato Rural
promoveu em parceria com o SENAR, diversos cursos sobre práticas culturais sustentáveis e
também de gestão, especificamente associativismo e cooperativismo, que propiciaram
informações técnicas, conhecimentos empírico, legislações pertinentes a abordagens
ambientais sociais e econômicas, e entendimentos de atuações políticas locais ante a vontade
e o querer e de como fazer. Sendo assim o curso citado acima, mais do que um simples
chamamento à união de todos, fortaleceu a compreensão sobre a importância do
associativismo na governança local. As diversas formações de escolaridade entre os membros
do acampamento, favorecem olhares distintos de avaliação dos acampados sobre si mesmos.
Analisando a atuação do MTA, os acampados apontam ineficiência na atuação dos lideres do
movimento principalmente pactuado nas mudanças comportamentais de suas lideranças.
Preceituam ações motivadas por interesses dissonantes da prática solidária pregadas como
missão, ora com intervenções coercitivas, para manter a ordem, ora com ações
privilegiadoras, para manter interesses pessoais. A falta de transparência na divulgação das
ações executadas tem sido fator impeditivo no estabelecimento de confiança entre os
membros do acampamento.
2 - Perspectiva de desenvolvimento local com articulações do terceiro setor e redes
comunitárias
Importância do terceiro setor
A comunidade é dinâmica, formada por diversos tipos de pessoas, com suas ideias,
crenças, necessidades e pertencimentos de origem. A união de pensamentos e interesses faz
surgir diversos grupos, sejam igrejas, associações, clubes, que promoverão o fortalecimento
do sentido de coletividade. Huntington apud Reis (2003) observa que as iniciativas em geral,
54
inovações na resolução de problemas comuns, representam a força da solidariedade pelos
vínculos formados nessas associações de pessoas que a compõem e a capacidade que detêm
para o desenvolvimento comunitário.
A sociedade, em sentido próprio, constrói-se a partir da inter-ordenação de estruturas
específicas, que são capazes de funcionar como sistemas. Essa construção origina-se do
“processo de combinação dos homens entre si e destes com os outros componentes dessa
totalidade” (COSTA, 2003, p. 3). Podem fazer emergir manifestações e movimentos sociais
como práticas renovadoras de projetos futuros, que articulados, podem fomentar a
disseminação e estabilidade de suas práticas.
De acordo com Szazi (2006: p. 22), o aumento do número de organizações oriundas da
sociedade civil, intensificado a partir dos anos setenta, deu visibilidade a um novo ator social,
“o denominado terceiro setor, o conjunto de agentes privados com fins públicos”, que tentam
com suas iniciativas proteger o patrimônio social e ecológico brasileiro. Cada sociedade gera
seus próprios sistemas organizacionais porque "as pessoas tendem a agrupar-se em
organizações comunitárias que, ao longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, em
muitos casos, uma identidade cultural, comunal" (CASTELLS, 2000, p.79). Essas
organizações de interesses difusos, legitimadas em estatutos sociais, definem finalidades,
normas e procedimentos para cumprimento de ações, controle e limites pautados na lógica da
gestão eficiente pela comunidade e para a comunidade.
O gerenciamento dos potenciais próprios da comunidade implica no administrar,
dirigir, orientar-se por si mesmo; implica em problemas e soluções atinentes às próprias
necessidades. O fato de gerenciar, mesmo sendo pessoas, dificilmente encontrará respaldo
jurídico para interposição de ações, sem a efetiva organização jurídica dos quereres dessas
pessoas. Essa deveria ser a lógica dos movimentos sociais, que políticos, entretanto, exercem
55
apenas atividades reivindicatórias como podemos supor através desse trecho do relato de
Oliveira uma das lideranças máximas do MTA que nos explicou:
[...] Porque o movimento não é institucionalizado?, porque se forem poderão ser parados
pela Lei, o movimento é rotatório, o movimento é nômade quem o conduz são as pessoas,
o movimento não tem dono, e quem acha que é dono é automaticamente substituída.
A tendência mundial de diversificação de fontes de financiamentos, do aumento de
gastos de patrocinadores, fundações, associações voluntárias aliada a políticas de incentivos
governamentais (CUELLAR, 1996, p. 42), podem criar novas oportunidades e vínculos
solidários, que implicam em um sistema de relações de poder constituído em torno de
processos locais (AROCENA, 1995, p. 20). Esses sistemas poderão desencadear novas
dinâmicas de articulação e interação de inovações tecnológicas, e até propiciar o
desenvolvimento das potencialidades locais.
3- Articulação dos acampados com organizações governamentais e com o terceiro setor
Na elaboração do Plano de Desenvolvimento do Assentamento pela Fundação de
Apoio a Educação e ao Desenvolvimento – FAED, entidade publica ligada ao Centro Federal
de Educação Tecnológica – CEFET, a metodologia aplicada foi de reuniões setoriais com a
comunidade, de acordo com os núcleos consolidados no acampamento. No acampamento
Dom Osório, o gráfico 3 abaixo, mostra as relações atuais processadas no acampamento e a
rede comunitária embrionária que essas organizações sociais encerram.
GRÁFICO 1. A Rede Comunitária estabelecida no acampamento Dom Osório segundo a visão dos acampados.
56
ENTIDADES QUE ATUAM NO ACAMPAMENTO
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
Prefeitura de Campo Verde
Secretaria Municipal de Agicultura
INCRA
CEFET-Cuiabá
Secretaria Municipal de Assistencia Social
SENAR
SEBRAE
EMPAER
Secretaria Municipal de Educação
FUTUROS PARCEIROS
10.
11.
12.
13.
14.
15.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
Sindicato dos Trabalhadores Rurais
Secretaria de Estado de Desenvolvimento Rural
Intermat – Instituto de terras de Mato Grosso
FETAGRI
MTA
CEMAT – Rede Elétrica
EMBRAPA
Secretaria de Estado de meio Ambiente
Secretaria Municipal de esportes
Secretaria Municipal de Saúde
CONAB
INDEA
IBGE
Fonte: PDA – Dom Osório – FAED (2008)
Como se pode notar, os acampados percebem as Secretarias Municipais (Educação,
Esporte, Agricultura, Saúde, Assistência Social) como parceiros públicos do município
atuantes no futuro assentamento. Citam ainda outras entidades que já desenvolvem atividades
junto ao acampamento dentre eles: O INCRA, O Cefet, Cemat, IBGE, Conab, autarquias
atuantes como agentes exógenos com aplicação de suas técnicas – além do terceiro setor
(Senar, MTA e Sindicato dos trabalhadores Rurais).
Ainda de acordo com o Gráfico 1, os acampados sugeriram possíveis parceiros como
contribuintes para o estabelecimento de conexões, que poderão propiciar o fortalecimento da
rede comunitária, desencadeador de desenvolvimento local: Embrapa, Sebrae, Empaer, Seder,
Sema, Indea, Ibama, Intermat.
O estabelecimento de uma rede de relacionamentos, com organizações governamentais
e não governamentais – o terceiro setor – poderá engendrar atuações e desafios que somente o
entrelaçamento entre elas, poderá resultar na solidificação e sustentabilidade do futuro
assentamento. O desenvolvimento pode não advir apenas de intenções programáticas em
planos, programas e projetos, antes de poderem criar riquezas, o ser humano tem de aprender
a trabalhar juntos, e, para que haja progresso subseqüente, novas forma de organizações tem
de ser idealizadas (FUKUYAMA, 1996, p. 61).
57
4 - Agentes exógenos, capital social e Desenvolvimento Local
O acampamento Dom Osório foi organizado em 2002. Desde então, entre ações
políticas, engajamentos e desmotivações, os remanescentes estão há 6 anos “embaixo da
lona”. A deixou de ser por um pedaço de chão e passou a ser uma questão de sobrevivência e
de necessidades fisiológicas, como se vê abaixo:
[...] Eu estou no acampamento desde o primeiro dia, fiquei sabendo desse movimento por
uma amiga, vim lá do nortão, de Juruena, vendi tudo que tinha, hoje eu não tenho mais
nada, só esse barraco pra me amparar, nessa lida que parece não ter fim (IRANI).
Durante esse tempo, no acampamento as interações processadas no cotidiano
promoveram mudanças no comportamento associadas à “posse de uma identidade legitima”.
A falta de reconhecimento das lideranças do movimento, ou as tentativas de sufocamento de
uma força emergente de uma unidade local, apontam para o separatismo como único “meio
realista de combater ou de anular os efeitos de dominação” (BOURDIEU, 2004, p.128 -129).
Essas mudanças processuais se fazem sentir no trecho abaixo:
[...] O acampamento esta dividido em grupo 1 e grupo 2 por causa de uma liderança do
movimento que queria arrendar a fazenda pra beneficiar mais a ele do que os outros, e aí
simplesmente nós perderíamos a terra, e para ele o importante é o dinheiro, a turma do 1
então se revoltaram e ele foi ao INCRA e disse que esse pessoal não fazia mais parte do
movimento, já o outro grupo era mais pacífico e aceitava tudo, mas conseguiu não
arrendar através de conversas da comunidade (DILDA)...
Essa forma de atuação das lideranças do movimento, baseadas em interesses
individuais, ante os procedimentos apregoados em sua missão, perverte a lógica simbólica em
que o “existir não é somente ser diferente, mas também ser reconhecido legitimamente
diferente” (BOURDIEU, 2004, p. 129), resulta em extremos de desconfiança dos liderados,
que de acordo com Fukuyama (1996, p.66) “tende a isolar e pulverizar seus membros”.
O Terceiro setor pode contribuir substancialmente com as comunidades, através de
conhecimentos técnicos, assessorando a elaboração de projetos e planos de trabalho que
promovam a sustentabilidade comunitária. No acampamento Dom Osório, esta foi à lógica de
atuação da FAED, que esboçou com a comunidade o Plano de Desenvolvimento do
58
Assentamento. Surgiu uma proposta atrelada a um programa governamental do Ministério do
Desenvolvimento Agrário e é um projeto a médio prazo conceituado como um modelo de
desenvolvimento alternativo na busca da sustentabilidade da futura comunidade. Entretanto a
visão dos acampados sobre o resultado apresentado, mostra distinções de aceitação nas formas
elencadas, alem da desconfiança de relações comportamentais referidas anteriormente:
[...] No PDA tem reserva nativa, coletiva, que contempla todo mundo, do jeito que era pra
ser, não é assim que ficou, tem lote que ficou no mato, a CEFET errou muito nisso aí, a
maneira de medir os lotes é que está errado, tem excesso de terra aqui dentro, tem um
cerrado que não foi cortado, lá no areião arrumaram uma parte, mas tudo errado
(TIRIRICA).
O principal parceiro público do acampamento é o INCRA, que intermedia as relações
políticas e sociais das necessidades fisiológicas dos acampados, quando lhes fornece cestas
básicas de alimentação, por exemplo. Dos interesses do movimento representantes dos
acampados e que são os interlocutores de suas reivindicações, dos atores exógenos que
contribuem com conhecimentos empíricos na elaboração de planos de trabalho visando à
sustentabilidade do futuro assentamento, atendendo critérios e prerrogativas estabelecidas nos
programas governamentais.
A reforma agrária deveria ser pautada numa política pública com responsabilidade. O
acampamento Dom Osório, está entrando em seu sétimo ano de luta, e a resolução desse
conflito, parece cada dia mais distante, os acampados demonstram essas preocupações, como
no trecho abaixo:
[...] O Erro tá no INCRA e na Justiça em Brasília, o governo federal decretou a fazenda
para fim social, o Juiz emitiu a posse, os ministros do STF, derrubaram nossa emissão de
posse, então os poderes tem divergência, depois de tudo isso ainda aparece um
desembargador querendo parar todos os PAs (projetos de assentamento), de 2007 pra cá,
isso é uma bagunça da justiça, o INCRA é uma casa sem comando, quando entra um
superintendente que faz aí alguma coisa, o governo troca por outro que não faz nada, e
isso é feito por causa dos políticos. O INCRA é uma casa da mãe Joana (NEI).
A escolarização, desde a alfabetização até a formação profissional, também pode
tornar-se uma ferramenta indispensável de construção de possibilidades de expressão e de
59
constituição da subjetividade, e de instrumentação de reivindicações e lutas, pela desigualdade
social e cultural (PIRES, 2008, p.108). De fato, no ano de 2008, o Senar ministrou diversos
cursos em parceria com o Sindicato Rural de Campo Verde no acampamento. De acordo com
o Sindicato, os cursos foram: Administração de pequenas propriedades, apicultura, artesanato
com argila, Associativismo e cooperativismo, Bordado em ponto cruz, Caprino cultura,
Cultivo do Maracujá, Educação Ambiental, Fabricação caseira de produtos de higiene e
limpeza, Identificação e uso de plantas medicinais, Minhocultura, Panificação caseira,
Planejamento e aproveitamento dos alimentos, Produção caseira de derivados de soja.
Mais do que conteúdos programáticos de disseminação de técnicas e preparatórios,
essas ações tem desempenhado o papel de catalisadores, como atividades socializadoras e de
formação de cidadania no diálogo que se precederá de agora em diante, da reivindicação de
direitos e de comportamentos ajustados com sentido de grupos.
De acordo com Botelho (2001, p.78) as políticas públicas podem contribuir para o
desenvolvimento local se levarem em consideração a circulação das várias formas de
expressão e a promoção das formas de cultura. Estas formas de promoção cultural são
traduzidas nas práticas desencadeadas através das festas populares vivenciadas nas
comunidades, mantendo o rito e alimentando alimenta o imaginário coletivo - assegurando a
coesão da sociedade. As celebrações comunitárias podem ser definidas como ações de
simbolização, “como práticas coletivas de resistência como parte da história e memória”
(ITANI, 2003, p.13-14). De acordo com Claxston (1994, p 20) "só há desenvolvimento
quando arraigado na cultura e tradição". Isso é reforçada por Cuellar (1996, p. 38) quando
enuncia que: "as sociedades criam procedimentos complexos e arraigados em sua cultura para
proteger e administrar seus recursos", e reiterado por Ávila (2006, p. 67) que confirma: que as
“mudanças culturais” precisam ter “...penetração nas maneiras de pensar e agir das pessoas,
individuadas e em comunidade”.
60
5 - Considerações Finais
As principais conclusões a que se chegou no decorrer das observações inerentes à
realização da pesquisa sobre o acampamento Dom Osório são as que seguem:
1. O acampamento Dom Osório agrupa pessoas oriundas das mais diversas partes do
país, que trazem consigo valores, costumes, práticas culturais e sentimentos de pertença ainda
ligadas a sua região de origem. Estão desterritorializados. Sobrevivem da assistência do
Estado (Programa Bolsa Família do Governo Federal e sacolões distribuídos pelo Incra).
2. O MTA representa os acampamentos humanos e alguns assentamentos consolidados
na região sul do Estado de Mato Grosso, e utiliza como estratégia de atuação a pressão, como
forma de chamar a atenção da sociedade para a visibilidade de suas ações, e, a coerção dos
acampados como forma de manter a governança local. Despojado de legalidade institucional,
o MTA busca amparo nas entidades não governamentais, o terceiro setor, para consecução de
seus objetivos através do estabelecimento de parcerias.
3. Embora embrionárias, as atuações do terceiro setor e dos órgãos governamentais
principiaram a formação de uma rede de cooperação dentro do acampamento Dom Osório que
poderá contribuir para a sustentabilidade do futuro assentamento e o conseqüente
desenvolvimento local. Quando questionados sobre essas atuações, os acampados apontaram
fatores desestimuladores para a continuidade dessa rede comunitária: o Incra e o Poder
Judiciário têm tem uma atuação ineficiente que gera incertezas e, portanto descrédito dos
acampados; o sindicato rural e os partidos políticos têm visão corporativa; as Ongs são
incapazes de aliar conhecimentos tácitos com empíricos, e são geradoras de desconfiança;
embora embrionária dentro do acampamento, o sentimento de pertença ainda em processo
gestacional tem levado a maioria a não aderir as práticas associativas porque os líderes do
movimento estão se autoproclamando membros da diretoria executiva de uma futura
organização, mas suas atuações recentes os desabonam a ocupar tais cargos pelos acampados;
61
no MTA, lideranças com interesses econômicos dissonantes das práticas sociais e ações
privilegiadoras de uns em detrimento a outros, tem sido determinante na falta de confiança
dos associados ao movimento.
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63
Intelectuais e a política indígena na América do Sul:
Uma contribuição sobre a construção histórica-antropológica (d) no tempo presente
Intellectuals and Indigenous politics in South America:
A contribution on the historical-anthropological (d) in the present tense
Jean Paulo Pereira de Menezes 1
Resumo: Ao desenvolvermos procedimentos teórico-metodológicos em trabalhos de pesquisa nas ciências
humanas, observamos, especialmente na produção historiográfica, a importância acerca das fontes e diálogos
com outras áreas do conhecimento para tal inferência em determinado objeto de estudo e trabalho do historiador.
Atualmente a historiografia comporta uma série de perspectivas teóricas e metodológicas para conceber o que
são fontes históricas e como proceder – respeitando as singularidades de cada caso – diante destas e mesmo
perante a ausência das mesmas. Procuramos, aqui, apresentar algumas contribuições para o debate sobre a
construção historiográfica, do e no, tempo presente. Organizamos considerações que tiveram por base o trabalho
de pesquisa de mestrado sobre os intelectuais, a política e suas perspectivas, onde desenvolvemos um estudo de
caso sobre o Centro de Estudos Indígenas Miguel Angel de Menéndez (CEIMAM) da UNESP de Araraquara no
Estado de São Paulo.
Palavras-chave: Política indigenista; historiografia; etno-história
Abstract: In developing theoretical and methodological procedures in research work in the humanities, we
observed, especially in the historical production, the importance of the sources and dialogues with other fields of
knowledge to such an inference on a particular object of study and work of the historian. Today, historians are a
number of theoretical and methodological perspectives to design what are historical sources and how to proceed
- while respecting the peculiarities of each case - on these and even without them. We seek here to present some
contributions to the debate on the historiographical construction of and, this time. Organize considerations were
based on the work of master's research on intellectuals, politics and prospects, where we develop a case study of
the Center for Indian Studies Miguel Angel Menendez (CEIMAM) of Araraquara UNESP in Sao Paulo .
Key words: Indian policy; historiography; ethnohistory
INTRODUÇÃO
A história indígena e o indigenismo na década de 80 nos apresentam uma série de
transformações no que se refere aos sujeitos e isso nos propõem algumas reflexões que
compartilhamos aqui.
Nas últimas décadas, intensifica-se a participação das populações indígenas nos
processos de luta pela identificação e reconhecimento de suas terras, contando cada vez mais
para isso com o engajamento de não-índios através de instituições comprometidas em suas
1
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados-MS.
Membro do Grupo de Estudos Filosofia da Páxis, UNESP Rio Preto-SP.
65
perspectivas de vieses diversos, como o CIMI, a ABA, o ISA, centros de estudos
universitários, entre outras.
As publicações sobre uma nova história indígena, juntamente com as organizações
indígenas passaram a ocupar cada vez mais espaço na discussão da questão, principalmente a
partir dos anos 80, ou seja, em uma paisagem de crítica á política indigenista do Estado.
Evidentemente isso não isenta o tema de uma série de questionamentos realizados sobre o que
é de fato a história indígena? É uma história escrita pelos povos indígenas? É uma história dos
povos indígenas escrita pelos não-indígenas? São questões bem amadurecidas neste nosso
presente imediato de 2009, mas que sempre nos valem generosos debates e novos
questionamentos sobre a questão indígena. Como afirmou na entrada da década de 90, John
Manuel Monteiro, sobre esse processo, o desafio da história indígena:
[...]. Em anos recentes, um renovado diálogo entre a antropologia e a história tem
propiciado, nas Américas como um todo – sem falar de outras partes do mundo-, um
surto significativo de estudos sobre a história dos povos colonizados, estudos que
oferecem o contraponto das dinâmicas locais e regionais para se repensar tanto as
abordagens estruturalistas quanto as teses globalizantes anteriores. [...] Em
contrapartida, a antropologia histórica buscava qualificar a ação consciente [...] dos
povos nativos enquanto sujeitos da história, desenvolvendo estratégias políticas e
moldando o próprio futuro diante dos desafios e das condições do contato e da
dominação (Monteiro, 1995: 226).
Propomos aqui a apresentação de uma pesquisa realizada durante esses três últimos
anos, entendendo-a como parte de um processo que antecede a década de 90, e, para fazê-lo,
uma pequena digressão é importante. Como afirma Monteiro (1992), os desafios da história
indígena no Brasil são encarados diante de uma perspectiva de diálogos entre historiografia e
antropologia diante dos vieses tradicionais de abordagem, estruturais e/ou parte das
globalizantes.
Em abril de 1982 era fundado o Grupo de Estudos Indígenas Kurumim no município
de Araraquara, Estado de São Paulo, ligado a um grupo de intelectuais do Departamento de
Antropologia, Política e Filosofia da Universidade Estadual Paulista, com o objetivo de
65
66
divulgar a história dos povos indígenas do Brasil através de estudos e publicações. O Grupo
de Estudos Kurumim tinha a sua frente, como organizadora, Silvia Maria S. Carvalho,
naquele momento professora do Departamento de Antropologia. Contava com a participação,
especialmente, dos estudantes do curso de Ciências Sociais da UNESP de Araraquara, embora
aberto ao público mais amplo interessado na história indígena do Brasil.
Para divulgação do Grupo Kurumim, fora desenvolvido, de forma quase “artesanal”,
um boletim informativo (depois chamado Terra Indígena) que passou a ser o seu instrumento
propagandístico em sintonia com um conjunto de teses que nortearam o desenvolvimento do
Grupo de Estudos sobre a questão indígena no Brasil. Desta forma, o Grupo Kurumim
(CEIMAM), em seus encontros periódicos, passou a se constituir em local de estudos e
debates criadores de um espaço de engajamento intelectual acerca deste novo paradigma da
história indígena e do indigenismo no país.
Outra importante relação é aquela que nos remete as condições históricas das décadas
de 70 e 80 no Brasil, fortemente marcadas pela repressão e a violência do Estado ditatorial
para com a nação. Cabendo aos espaços públicos, mesmo que ideologizados pela classe
hegemônica (Marx), um papel crucial para o desenvolvimento da crítica possível, ou seja, de
engajamento político. O Kurumim, em dada proporção, acaba por constituir-se em um desses
espaços em que o raio de ação poderia ser estendido, porém, não distante da retaliação e
dificuldades enfrentadas por aqueles que se propunham a entender a sociedade nacional nas
suas mais variadas perspectivas.
No mesmo ano de fundação do Grupo Kurumim (CEIMAM), em 1982, fora lançado o
Boletim Mensal, com o objetivo de veicular informações sobre a situação da questão indígena
brasileira, estendendo-se a América Latina, ao mesmo passo que se buscava divulgar o Grupo
de Estudos de forma pública.
Tratava-se de uma pequena brochura, como disse a própria Silvia M. S. Carvalho:
66
67
“[...] o buretim... que é assim, um buretim artesanal, eu registrava né, eu que
datilografava que aquele tempo era datilografia, era distribuído para a secretaria de
educação, aqui, e para os professores [...] nas escolas. Então os professores
começaram a ter outra visão dos índios. Porque os próprios professores tinham
aquela visão que aparece no livro de história que é: o índio na época do
descobrimento, não é? Depois o índio acaba [...]” (DEPOIMENTO OBTIDO EM
ABRIL, 2008).
Certamente sem muitas pretensões, mas que vinha compor um quadro de publicações
nitidamente engajadas nas lutas em defesa dos povos indígenas e contra a ditadura militar no
mandato de João Baptista Figueiredo e que por extensão, contribuiria fortemente na formação
de seus intelectuais na defesa dos povos indígenas. Apontamento este que pudemos constatar
em trabalho de campo no desenvolver da interlocução com membros do antigo Grupo
Kurumim e novas gerações do CEIMAM. Observamos três gerações de intelectuais
engajados: os da década de fundação, os da geração de fim de 80 e durante os anos 90, e, os
membros mais novos também engajados de alguma forma na proposta do CEIMAM,
especialmente alunos do curso de Ciências Sociais da UNESP de Araraquara. Desta forma,
nitidamente, fica evidente a preocupação do CEIMAM na formação de membros
organicamente constituídos. O desenvolvimento de intelectuais orgânicos nos remete a
Gramsci, quando nos movimentamos sobre a sua importância para determinadas instituições e
o Centro de Estudos no decorrer desses 27 anos acabou por se valer desta importante
preocupação. Constituiu-se um quadro de intelectuais, organizados intelectualmente ao redor
da primeira geração do CEIMAM, emblematicamente a partir de Silvia Maria S. de Carvalho
e Miguel Angel de Menéndez. Certamente, quando falamos de intelectual orgânico do
CEIMAM, o fazemos no plural, não apenas aos sujeitos participantes do Centro, mas também
em relação a suas perspectivas temáticas, teóricas e metodológicas. As fontes documentais
acerca destes anos iniciais do Kurumim (CEIMAM) nos sugerem o entendimento de uma
perspectiva crítica em relação ao Estado e a sua política, seja a indigenista ou não. Os textos
publicados são de fortes inferências contra o governo militar e de aberta crítica as frentes de
expansão do capitalismo no território nacional. Faz-se a crítica ao poder controlador das
67
68
terras, a insuficiência da justiça ao não fazer valer as determinações a favor dos povos
indígenas, ao Estado repressor como um todo. Nestes anos de sua fundação o CEIMAM
trilhou a crítica pública ao lado de seus interlocutores, indígenas e não indígenas: O CIMI
(Conselho Indigenista Missionário) e seu veículo de comunicação, o jornal Porantim; a UNI,
divulgando as deliberações sobre os povos indígenas em litígios, sejam eles com o Estado e o
capital rural, através dos latifundiários, arrendatários, mineradoras, madeireiras e garimpos,
juntamente ao setor da produção industrial interligados aos interesses desse tipo indústria.
Uma segunda geração pode ser identificada entre os alunos de Silvia Maria S. de
Carvalho e Miguel A. Menéndez, representando, assim, a continuidade das atividades do
Grupo, e, posteriormente, do Centro de Estudos que recebera o nome de um de seus
intelectuais da primeira geração: Miguel A. de Menéndez. A segunda geração do CEIMAM é
composta por variados egressos, dos quais muitos passaram e alguns permaneceram.
A terceira geração do CEIMAM foi por nós classificada como a mais recente,
tratando-se de alunos da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, e de outras
instituições, que inspirados na primeira e segunda geração do CEIMAM, continuam a
participar do Centro de Estudos, partilhando de uma perspectiva mais pluralista, assim como a
segunda geração, no que diz respeito às temáticas. Nesta tentativa de classificação, das
gerações intelectuais do antigo Grupo de Estudos Kurumim, há a marcante crítica ao
capitalismo que perpassa as três gerações, cada vez mais marcadas pela ação fenomênica no
que se refere à sociedade capitalista. Principalmente quando se observa a temática e a
perspectiva do Kurumim em relação às críticas políticas no período de transição do Grupo
para Centro de Estudos.
Com o desenvolver das atividades nas décadas posteriores a sua fundação, o Grupo
Kurumim passa por uma série de transformações e podemos observar que a publicação Terra
Indígena, de forma clara nos apresenta esses sinais. Em 1984 o Boletim passa a se chamar
68
69
Terra Indígena, com uma estruturação mais voltada para a publicação de artigos sobre a
questão indígena, não se focalizando como nos números iniciais, na veiculação de eventos do
movimento indígena. Observamos que ao decorrer das publicações da revista Terra Indígena,
a mesma, paulatinamente, perdia aquele seu caráter de diagramação “quase artesanal” para
ganhar um perfil mais acadêmico, embora voltado para os interesses da questão indígena. Este
perfil pode ser evidenciado através de sua estrutura estética, e, principalmente, pela linguagem
das matérias e artigos que buscam com maior profundidade a publicização da questão
indígena, avançando para uma abordagem mais qualitativa de acordo com o rigor da produção
acadêmica tradicional. Hoje, a Revista não vem sendo mais editada, como constatamos em
trabalho de campo, por conta de motivos financeiros, os quais impedem o CEIMAM de
continuar veiculando suas proposituras através de sua publicação inaugural: o Boletim.
1 - A relação sujeito objeto
Para estudarmos e entendermos o objeto de investigação (o CEIMAM) fora necessário
penetrar no mesmo, buscando um tipo de inferência específico das ciências humanas ao lidar
com o desenvolvimento de interpretações e produção da escrita de uma história onde os
sujeitos de análises são também protagonistas vivos e reais do que se estuda. Assim, partimos
da realidade empírica, onde desenvolvemos, apoiados em uma concepção de ontologia 2 que
tem como base o materialismo histórico dialético, rumo à problematização de nosso objeto de
análise, focando entender a contribuição do CEIMAM para a história indígena Terena do
Estado do Mato Grosso do Sul.
A localização de nosso objeto no tempo, não se restringiu ao recorte temporal de
nossas fontes documentais, pois se buscou entender os anos recortados (1982-1992) de uma
2
Para um maior entendimento sobre a Ontologia do ser social, os trabalhos de LESSA (1992; 1993; 1994 a;
1994 b; 1995 a; 1995 b; 1995 c; 1996 a; 1996 b; 1996 c; 1996 d; 1997a; 1997 b;) professor da Universidade
Federal de Alagoas (Maceió), constituem-se em uma inicial leitura sobre o tema. Evidentemente, para uma
leitura de fonte bibliográfica primária, sobre o assunto, a obra de LUKÁCS (1979).
69
70
forma global, retrocedendo e antecedendo no tempo para a busca do entendimento do que foi
e é o CEIMAM diante da totalidade e assim poder esquadrinhar uma compreensão objetiva
possível acerca de sua contribuição para a história indígena Terena.
A história do tempo presente que postulamos na pesquisa foi fundada na dialética
marxiana como método de entendimento da História. Um instrumento teórico-metodológico
que nos possibilitou entender o CEIMAM em uma chave ontológica e não apenas como um
objeto empiricamente ao léu do processo histórico das aparências sensíveis.
Desta maneira, ao localizarmos o estudo de caso no tempo presente 3, não o fazemos de
forma isolada ou mesmo recortada da sociedade. Procuramos proceder, em todas as etapas da
pesquisa de acordo com as paisagens históricas construídas pelos seus intelectuais, que se
debruçaram sobre o povo Terena, jamais nos distanciando dos tecidos sociais desta paisagem
que é dialeticamente sensível e concreta. O trabalho buscou entender o CEIMAM como um
espaço onde os “indivíduos produzem em sociedade, portanto a produção dos indivíduos
determinada socialmente, é por certo o ponto de partida” (MARX, 1978:103) 4.
Historiar ontologicamente (LUKÁCS, 1979:11-35) o CEIMAM, nos pareceu a opção
cabível para se iniciar uma melhor compreensão do trabalho de pesquisa e sua problemática
estudada. Acreditamos que ao conhecer suficientemente o objeto e visualizá-lo em
movimento, o leitor também possa apreender nossas considerações e possíveis inferências
3
No desenvolvimento deste estudo de caso sobre o Centro de Estudos Indígenas Miguel Angel de Menéndez
(CEIMAM), nos preocupamos com a história do tempo presente. E, a história do tempo presente que buscamos
desenvolver, não está presa ao paradigma francês da década de 70, em especial, nos trabalhos de René Remond,
Jean- Pierre Rioux, Jean-Françoise Sirinelli, Charles Becker, Jacques Revel, Roger Chartier, Michael de
Certeau, entre outros, que juntamente ao lado de outros annalistas se remetem ao estudo e escrita de uma
história “quente” do tempo presente. Neste trabalho, lançamos mão dessas contribuições, mas nossa principal
inspiração se localiza no século XIX, através da produção marxiana que muito anteriormente se ocuparam de
um tipo de história do tempo presente onde a relação entre sujeito e objeto já é entendida como histórica e
dialética na construção social.
4
Não é parte de nossas proposições apresentar nesta pesquisa uma abordagem maior acerca da história do tempo
presente em Marx e Engels, ou mesmo, deter-se a ontologia do ser de base marxiana. Desta forma detemo-nos
em apresentar alguns aportes destas categorias uma vez que são importantes para a compreensão da pesquisa no
que se refere ao “local” que parte a análise empreendida durante a dissertação.
70
71
críticas sobre o mesmo e sua produção intelectual acerca do povo Terena.
Ao nos referirmos a historiar ontologicamente, estamos distantes do historicismo 5
(LOWY, 2008:75-103). Trata-se de uma perspectiva ontológica de entendimento do objeto,
desta maneira, não se limitando a entendê-lo de forma isolada do sujeito. Ao contrário,
procuramos entender o objeto justamente em relação com o sujeito, e o mesmo, em relação ao
sujeito com o objeto. Assim não nos detemos a uma lógica formal da epistemologia da classe
hegemônica e sim a uma lógica dialética (LEFEBVRE, 1983), onde o ser como categoria
ontológica se constrói a partir das relações que contraem ou deixa de contrair com a natureza
através do trabalho como categoria nodal (LEFEBVRE, 1983: 12-43).
Esta perspectiva ontológica que adotamos para o entendimento do CEIMAM tem
como fonte referencial a produção marxiana, especificamente os Manuscritos de Paris de
1844, onde Marx apresenta uma importante contribuição à ontologia do ser. Para que se
compreenda a perspectiva ontológica que desenvolvemos nesta dissertação é necessário que
se tenha minimamente uma compreensão dessa base ontológica marxiana, onde o ser é o
constructo deste com a natureza, do sujeito e a história (Marx, 1978:01-38).
Assim a acepção de história do tempo presente que movimentou-se durante a análise, é
a síntese que resulta da preocupação desenvolvida por Marx e Engels quando da busca do
entendimento da economia política mistificada de sua época; das contribuições críticas da
historiografia francesa, principalmente da década de 60 e 70, quando busca-se o entendimento
da história recente, juntamente com seus personagens vivos e atuantes. Uma síntese que nos
propiciou um horizonte de estudo muito mais amplo se comparado ao isolacionismo teóricoconceitual na História.
5
Ao nos reportarmos ao historicismo, o fazemos em sintonia com Michael Lowy, identificando a existência de
uma ampla tradição desta perspectiva, desde Ranke, Droysen, Wilhelm Dilthey até Karl Mannheim. Assim,
entendemos que o historicismo, tributário do positivismo, principalmente no século XIX na Alemanha, não se
constitui simplesmente a manifestação do positivismo de Comte aplicado a produção histórica, trata-se de algo
muito mais amplo com manifestações que o distingue do positivismo e mesmo de parte da tradição marxista
também tributária do positivismo e do historicismo. Para um aprofundamento, ver o conjunto de conferencias de
Michael Lowy realizadas em 1985 e publicadas no Brasil pela Cortez Editora em 2008.
71
72
2 - A relação entre História e Antropologia
Após essa breve digressão sobre o objeto e parte dos procedimentos teóricometodológicos utilizados durante a investigação em um programa de História, apontamos
agora as possibilidades de relações entre a Antropologia e a historiografia no tempo presente.
Esbarramo-nos na universidade com uma série de problemáticas no que diz respeito às
propostas de trabalhos intelectuais. Problemáticas as quais seriam bem vindas se as mesmas
não se estabelecessem com propósitos escusos ao desenvolvimento cognitivo que se propõe a
comunidade acadêmica.
A trajetória das ciências humanas vem composta por uma série de dilemas e desafios
nos quais os historiadores de viés mais tradicionalista ainda possuem, ao que nos parece,
muito o que considerar e provavelmente rever. Por viés tradicionalista nos referimos aos
procedimentos ideologizados pelo historicismo e as suas limitações em se relacionar com seus
“documentos” históricos. Uma problemática que aparentemente pode se manifestar de modo
sutil, mas que ainda marca a postura de um número considerável de historiadores. Basta
desenvolvermos algumas pequenas investigações e provavelmente identificaremos este viés
tradicionalista muito próximos de nós, seja nos programas de graduação e pós- graduação das
universidades.
Ao apresentar esta problemática, o viés tradicionalista de caráter historicista, não a
fazemos ignorando as contribuições do positivismo na história enquanto ciência. É evidente
que a seriedade e a tentativa de inferir uma análise às fontes, esta corrente de historiadores,
principalmente no século XIX e iniciar do século XX, nos apresentaram perspectivas possível
para a sua época e de sucesso, uma vez que procuravam objetivar racionalmente acerca do
fato histórico. Mas, que nos façamos bem entendidos, uma contribuição que deve ser muito
bem compreendida no espaço de “Cronos”. Hoje, a perspectiva historicista se faz existente,
72
73
através das suas preocupações ainda válidas no que tange a tentativa de buscar no objeto
concreto, respostas concretas e verdadeiras. Mas este mesmo estado de “Cronos” caminha por
suas estradas não se limitando em encontrar apenas o historicismo e sim um conjunto de
perspectivas que unidas coerentemente podem contribuir em muito para que o intelectual
possa construir o saber epistêmico na história do presente.
Na historiografia, a escrita da história no ocidente, vem passando por uma série de
crescimentos nos últimos séculos que “garantem” ao historiador o respeito no mundo
intelectual por vários motivos, um deles, e estamos convencidos disto, é o trato que o mesmo
estabelece com suas fontes (documentos), ou seja, a relação dialógica que permite o
historiador a indagar suas fontes com um rigor “invejável” nas demais áreas das ciências
sociais.
O século XIX estabelecera um quadro teórico bastante competente para o seu contexto
histórico, principalmente quando observamos as preocupações em explicar os fenômenos que
a economia política acabava por proporcionar àqueles intelectuais da Europa que olhavam
para a América, África, Ásia e Oceania envolvidos direta e indiretamente com o
industrialismo global e a sua reprodução acelerada. De cognições apologéticas e críticas as
ciências humanas, passaram a se congregar e por vezes se hostilizarem. Um tipo nada ideal,
mas bem realista no campo das ciências, em especial a ciências históricas.
Nos primeiros decênios do século XX, a historiografia se deparava com mais uma
inovadora perspectiva, na realidade, já apresentada em meados do século XIX com os textos
marxianos, nos referimos à perspectiva interdisciplinar, em especial aquela apresentada pela
historiografia francesa nos anos 20 e 30 com os Annales. Principalmente sobre o que hoje
entendemos como fontes históricas. Objetivava-se aproveitar tudo o que coerentemente fosse
possível na busca do entendimento do objeto. Intensificava-se a critica interna dos
documentos, lançava-se mão de outras áreas para a investigação metodológica e a
73
74
compreensão teórica da pesquisa. Contribuições que inegavelmente alavancaram o oficio de
historiador não apenas na universidade, mas em todo o Estado organizado politicamente.
No Brasil esta perspectiva também se fez presente, seja nas obras de Gilberto Freyre,
quando promove o diálogo entre história, sociologia e antropologia na década de 30 em Casa
Grande & Senzala; seja com Caio Prado Junior ao propor um outro viés metodológico
calcado no materialismo histórico em Evolução política do Brasil e Formação do Brasil
contemporâneo, dialogando história, filosofia, economia e sociologia; com Sérgio Buarque de
Holanda em Raízes do Brasil, Visão do Paraíso e Monções, interligando história, sociologia
(também alemã) e história regional para os estudos brasileiros; posterior a 30, Florestan
Fernandes propondo sociologia, antropologia e “história indígena”, com A organização social
dos Tupinambá; seja Darcy Ribeiro apresentando uma antropologia histórica, provavelmente
muito próxima do que entendemos hoje por etnoistória (OLIVEIRA, 2003) em Os Índios e a
Civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno, entre outros, e
fartamente outros intelectuais que diretamente proporam esta nova perspectiva para o trabalho
em ciências humanas no Brasil. Como podemos observar no parágrafo anterior, é notória a
presença da relação entre história, sociologia, filosofia e antropologia.
3 - Perspectivas interdisciplinares na construção cognitiva da história
Como já introduzimos, estamos convencidos de que as relações interdisciplinares nas
ciências humanas, como por exemplo, aquelas firmadas entre história e antropologia, se
constituem em um fenômeno epistêmico que além de inovar, contribui em uma maior e
melhor percepção cognitiva do objeto. Entretanto, é necessário não idearmos a
interdisciplinaridade como uma entidade metafísica idealista, que por si só será capaz de
conduzir a perspectiva de totalidade, tão fragmentada pelo modo de produção capitalista.
74
75
Retomando a problematização inicial, muitos intelectuais nas ciências humanas, por
difícil que seja entender, continuam a postular uma “história pura” e assim também com a
antropologia, filosofia e sociologia. Não nos preocuparemos aqui com o denuncismo, pois
seria necessário uma listagem fatigante de nomes e trabalhos, os quais não se compõe em
nosso objeto de comunicação por hora. Mas para não sermos enquadrado em um campo de
criticismo, basta nos valermos das produções enviesadas pela ortodoxia que se intitula
duvidosamente de “marxista” ou ainda, os paradigmas da história após as frustrações de 1968,
provocando em uma considerável gama de intelectuais das ciências humanas um
comportamento niilista e por vezes pós-moderno, este ultimo, no sentido mais vulgar do
termo 6.
Ao pensarmos o trabalho em ciências históricas, devemos confessar, possuímos
algumas dificuldades em relacionar uma investigação de forma compartimentada, que entenda
documentos chancelados como os mais confiáveis e melhores portadores de vestígios para o
trabalho de investigação do historiador na busca de marcas capazes de fornecerem o caminho,
“as pegadas” do fato histórico em verdade absolutamente objetiva. Assim fosse, concordamos
com o arqueólogo R. G. Collingwood, quando apresenta o historiador de cola e tesoura
(COLLINGWOOD, 1981). Assim sendo, apresentaremos algumas contribuições vitais para a
produção intelectual, partindo, como postulamos neste artigo, da perspectiva interdisciplinar
entre história e antropologia.
6
Devemos esclarecer que nos referimos ao pós-moderno reducionista do sujeito ao abstrato vulgar, não nos
referindo absolutamente aos intelectuais que constantemente, principalmente na década de 70, serão rotulados
por todos os ângulos como pós-modernos e posteriormente enquadrados como intelectuais incoerentes diante de
uma razão cognitiva.
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4 - História e etnologia: contribuições elementares para o pesquisador 7
Muitos historiadores se agrupam objetivando diferenciarem-se dos demais cientistas
sociais como especialistas em determinados recortes epistemológicos em “sua” área de
conhecimento. O mesmo ocorre com etnólogos, quando se entendem especialistas em
determinados grupos étnicos e assim com os demais intelectuais. Mas afinal, qual é o objeto
da história e da etnologia? Acreditamos que o objetivo é o mesmo: estudar a organização
social; e que o objeto também se constitui para as duas: o homem. Então, qual a diferença
entre estas duas áreas do conhecimento? Responderemos de imediato que as diferenças estão
nos procedimentos metodológicos e evidentemente nos quadros teóricos que postulam um ou
mais métodos para analisarem este mesmo objeto na História. Mesmo correndo o risco de
sermos entendidos como determinadores de uma sentença forte e superficial, continuaremos
com esta resposta, que na melhor das hipóteses é uma boa conjetura para prosseguirmos nesta
construção que nos dá suporte narrativo.
De acordo com nossos pressupostos, este agrupar-se em relação aos intelectuais das
ciências humanas, também pode contribuir para que a perspectiva interdisciplinar seja
marginalizada, mesmo que não absolutamente, haja vista que a construção de uma identidade
grupal pode ser juntamente com este fenômeno, a própria construção de uma paisagem
interdisciplinar, criando o grupo dos ecléticos, dos postuladores transdiscilpinares e os
próprios intelectuais interdisciplinares.
O que postulamos de forma positiva é a comunicação constante entre as disciplinas
como forma de desenvolvimento coerente do conhecimento, seja sobre as comunidades
indígenas na América, sobre as organizações políticas na América Latina, sobre a teoria do
conhecimento, etc.
7
Poderíamos abordar, evidentemente, a Arqueologia como grande contribuidora, mas por questões pertinentes a
síntese, o espaço aqui não seria suficiente, pois também deveríamos estender-mos à Filosofia, Economia etc.
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Uma demonstração nítida de contribuições elementares para o trabalho intelectual é o
relacionamento entre etnologia e história, no que tange aos procedimentos metodológicos. Do
historiador o etnólogo pode beber do rigor com as fontes, na forma de dialogar com a
produção escrita ou não, na preocupação em fazer a crítica interna e externa ao documento
seja ele escrito ou não, com ou sem chancelas (uma antiga preocupação historicista). Do
etnólogo, o historiador pode e tem muito que aprender, a nosso ver, principalmente sobre as
fontes orais, procurando não apenas desenvolver entrevistas e coletar depoimentos através de
questionários e formulários, que mais intimidam do que informam. Talvez o historiador fosse
neste diálogo, o mais beneficiado, uma vez que nos identificamos entre estes. Certamente, a
busca do etnólogo em estabelecer uma relação de interlocução com seu objeto seja a
contribuição mais saliente ao historiador, principalmente quando os “documentos”
tradicionais não existem mais para poderem entender o seu recorte epistemológico. Os
procedimentos do etnólogo em trabalho de campo fornecem ao historiador um quadro
metodológico vital para a interpretação de informações que servirão à escrita da História.
Roberto Cardoso de Oliveira em O trabalho do Antropólogo (1998), fala da
“efetivação do famoso circulo hermenêutico, da interligação dialética” e acreditamos que a
história pode contribuir em muito com esta preocupação, uma vez que pode se pautar por uma
metodologia dialética, a qual também atende as preocupações da antropologia como método 8.
No capítulo inicial deste importante livro para o historiador, Oliveira preocupa-se em
apresentar as etapas da construção do conhecimento antropológico. Referimos-nos ao “Olhar,
Ouvir e Escrever” (OLIVEIRA, 1998), como uma grande tarefa do ofício do
antropólogo/historiador e a necessidade de interligá-las uma realidade do presente.
Identificando ai a problemática de ordem epistemológica em jovens pesquisadores.
8
Não entendemos que exista um método capaz de abarcar todas as preocupações da história e da antropologia,
que evidentemente há aqueles que melhor contribuem para verificar determinadas problemáticas.
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78
Assim entendemos de ambos os lados (historiadores e antropólogos) a contribuição
através de um olhar etnográfico diacronicamente preparado teoricamente sobre o seu objeto.
O ouvir do objeto como interlocutor, buscando a efetivação de uma relação que se difira da
seca relação tradicional pesquisador/informante; e, o escrever como uma segunda etapa do
trabalho, pois realiza longe do campo, sob os auspícios das instituições de pesquisa, em seu
gabinete etc. (Oliveira, 1998), considerações estas apresentadas por Geertz, como cita Roberto
Cardoso em seus capítulos iniciais. Assim tentaremos representar através de uma ilustração as
etapas do trabalho do antropólogo que entendemos em muito contribuir para o ofício do
historiador, em especial daqueles que trabalham com história indígena (isso sem recorremos a
enquadramentos anteriormente questionados):
TRABALHO DE CAMPO
PRIMEIRA parte/etapa ---------
OLHAR
OUVIR
\
/
\
/
SEGUNDA parte/etapa --------------------- ESCREVER
A mais alta função cognitiva.
Sendo a segunda parte/etapa, mais distinta da primeira por se tratar da textualização,
do desenvolvimento do suporte narrativo da interlocução de campo. Mas aqui já entraríamos
em uma importante extensão de nosso tema, o qual não objetivamos tratar neste momento.
Demonstrado então, apenas algumas das contribuições interdisciplinares entre história e
etnologia, seguiremos então com as demais problematizações que perfazem este nosso artigo,
na intenção de demonstrar minimamente alguns apontamentos que nos convencem de que a
perspectiva interdisciplinar não se apresenta com um problema, mas sim como contribuidora
na busca do entendimento dos vários problemas e ordem cognitiva nas ciências humanas.
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5 - A ortodoxia intelectual e suas limitações epistemológicas
Retomando a questão da ortodoxia intelectual sobre as suas limitações somos
convencidos que estes “grupos” de cientistas sociais estão fadados a marginalidade a qual os
mesmos acabam por decretar, uns mais conscientes que outros, uma vez que se isolam e
negam uma relação dialógica com seus pares, a princípio, comprometidos com a construção
epistemológica.
Incrivelmente, quando nos referimos a ortodoxia intelectual, encontramos muitos
rótulos que postulam utilizar-se da dialética para produzirem o conhecimento. Mas que tipo
de dialética seria esta? A do olhar atlântico, do ouvir a moda ou de escrever sozinho?
Preocupamos-nos com esta problemática questão, uma vez que a crítica se estende aos
“marxistas” vulgares, muitas vezes injustamente às produções que além de pertencerem ao
mais refinado materialismo histórico, são enquadrados como os tais ortodoxos que nos
referimos no decorrer deste artigo. Seria lamentável pensar desta forma, pois a
interdisciplinaridade já era uma pratica entre os clássicos textos marxianos do século XIX,
“interfazendo”, história, filosofia, economia, geografia política e sociologia, e até mesmo o
que se configuraria como antropologia. O mesmo se considerarmos muitos intelectuais
constantemente taxados pejorativamente como pós-modernos como é o caso de alguns
antropólogos utilizados mesmo em nossa argumentação construtiva de uma cognição.
Á esta ortodoxia problematizada em nossa narrativa cabe uma série de limitações
epistemologias uma vez que não se permitem como praticantes de um exercício de abstração
epistemologia que seja capaz de questionar suas convicções rumo à verificação de tal
conhecimento, procedimento etc. Esta “psicanálise do erro” (PACHECO, 1999), poderia em
muito contribuir para que muitos cientistas sociais, em especial historiadores não ficassem
obliterados em função da incoerência que facilmente os desclassificam no contexto da
produção e contribuição cientifica das humanidades.
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6 - Considerações Finais
Procuramos apresentar neste artigo algumas relações entre história e antropologia com
o objetivo de realizar alguns apontamentos acerca da interdisciplinaridade nas ciências
humanas, introduzindo também algumas problemáticas que tal perspectiva se depara em
programas de pesquisa nas universidades brasileiras.
Certamente outras questões foram e poderão ser observados com o desenvolvimento
de outras leituras acerca do tema que se constitui de forma iniciante. Em nenhum momento
foi nosso objetivo dar cabo de tal problemática, mas assim mesmo nos preocupamos em
percorrer caminhos que possibilitem o desenvolvimento da crítica e ao mesmo tempo, que
sejamos objeto de outras construções críticas, pois entendemos que somente assim poderemos
caminhar pelo nada fácil caminho da intelecção.
Independentemente de paradigmas teóricos procuramos apresentar problemas que
partem de nós ao outros. Se assim fomos entendidos pelos leitores, nos demos como
contribuidores mínimos de algo máximo: a construção crítica, mesmo que isso nos valha boas
ou más criticas.
Uma outra preocupação foi a de iniciarmos o suporte narrativo desta comunicação
dissertativa “fugindo” aos padrões da acadêmica, justamente para provocar sensações diversas
em nossos interlocutores textuais, certamente mais experientes nesta construção intelectual.
Entendemos que outros trabalhos sobre a formação intelectual dos cientistas sociais,
especialmente do historiador, devam ser elaborados com mais freqüência em nossa
universidade, uma vez que nos referimos à um dos germes da intelectualidade do sujeito
histórico.
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CATÓLICOS DE TODA A NAÇÃO, UNÍ-VOS!
– O CATOLICISMO POLÍTICO NO BRASIL (1890-1934)
Catholics across the nation, unite! – Political Catholicism in Brazil (1890-1934)
Carlos Eduardo Pinto Procópio
1
Resumo: A proposta deste texto é traçar um panorama acerca do catolicismo político no Brasil entre os anos de 1890
e 1934. Será debatido, num primeiro momento, como esse catolicismo tomou uma forma eminentemente
nacionalista, produzindo uma linguagem que será desenvolvida por um conjunto de ações clericais e leigas visando a
emergência da Igreja Católica (IC) como uma força política respeitável. Em seguida será discutido o modo como
esse catolicismo político, influenciado sem dúvida pelo discurso nacionalista, mas ultrapassando-o, torna-se um
catolicismo militante e de conquista, chegando a tomar a frente das decisões político-constitucionais que se
desenrolaram durante o período supracitado.
Palavras-chave: catolicismo político, nacionalismo, Brasil.
Abstract: The purpose of this paper is to give an overview of political Catholicism in Brazil between 1890 and
1934. At first, how this Catholicism has taken an eminently nationalist form, producing a language that would be
developed by a set of clerical and lay’s actions aiming at the emergence of the Catholic Church (CC) as a strong
political force will be discussed. Then, we move on to how this political Catholicism, undoubtedly influenced by the
nationalist discourse - but going beyond it - becomes a militant one as well as conquest-oriented, to the point of
taking the lead of the political and constitutional decisions which took place during the aforementioned period of
time.
Key words: Political Catholicism, Nationalism, Brazil.
Introdução
A proposta deste artigo é traçar um panorama acerca do catolicismo político no Brasil
entre os anos de 1890 e 1934. Será debatido, num primeiro momento, como esse catolicismo
tomou uma forma eminentemente nacionalista, produzindo uma linguagem que será desenvolvida
por um conjunto de ações clericais e leigas visando a emergência da Igreja Católica (IC) como
uma força política respeitável. Em seguida será discutido o modo como esse catolicismo político,
influenciado sem dúvida pelo discurso nacionalista, mas ultrapassando-o, torna-se um
1
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Este artigo foi desenvolvido no âmbito
da disciplina Teorias em Ciências Sociais, ministrado pelo professor Francisco Colom Gonzáles, do Instituto de
Filosofia do Conselho Superior de Investigações Científicas (Espanha). E-mail: [email protected]
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catolicismo militante e de conquista, chegando a tomar a frente das decisões políticoconstitucionais que se desenrolaram durante o período supracitado.
A idéia de catolicismo político está ligada à dimensão política e social de formato reativo
e com certa iniciativa própria que tomou o catolicismo ao longo do século XIX e no início do
XX. Oriundo de um processo de modernização política e social que rechaçava a presença pública
da religião, o catolicismo político pode ser considerado um movimento que “reclamou uma
inspiração católica para os valores e fins de suas ações, ou seja, a procura de uma política
especificamente católica” (Colom e Rivero, 2006, p. 9). As formas de articulação políticoreligiosa que emergem a partir de então se voltam sobremaneira para a idéia de nação católica,
levando o catolicismo a “ligar os fundamentos culturais e institucionais do Estado aos princípios
religiosos” (p. 10). Paralelo a este fundamentação católica da nação emerge a idéia de Estado
com instância de regulamentação necessária à manutenção da ordem, que se converte “em
elemento para a salvação da sociedade, na medida em que o ultramontanismo deixa de ser o
remédio dos problemas da modernidade nos países católicos” (Ibid., p. 11). Segundo Colom e
Rivero, em lugar do ultramontanismo, “se recorre a uma solução [muitas vezes] autoritária e
nacional: a ditadura do sabre frente a ditadura do punhal” (Idem.).
Nesse contexto, o catolicismo político toma com objetivo “a defesa dos interesses e
prerrogativas da Igreja em escala nacional [e] a organização de lealdades políticas sobre uma
base confessional apresentada como uma possibilidade efetiva de mobilização nacional” (Ibid., p.
12). Como consequência notar-se-á um conjunto de processos mais ou menos próximos de
emergência da IC nos espaços públicos nacionais, sobretudo íbero-americanos, muitos dos quais
dando vazão para governos denominados autoritários, à medida que ambos puderam, por
direcionamento político, se complementarem. A partir desse momento, “se atribuía ao Estado
uma função supletiva, que se limitava a ‘dirigir, vigiar, estimular e reprimir, dependendo da
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exigência dos casos e da necessidade’, com o fim de preservar a estrutura hierárquica global, pois
‘quanto mais vigorosamente reine a ordem hierárquica entre as diversas associações, tanto mais
firme será a autoridade e o poder social e tanto mais próspera e feliz será a condição do Estado’”
(Ibid., p. 11-12). É nessa perspectiva que tentarei explorar essa modalidade de catolicismo no
Brasil.
A miúde, a emergência do catolicismo político brasileiro tem como pano de fundo a
substituição do regime monárquico pelo republicano (1889) e a promulgação da constituição de
1891, que aboliu, dentre outras coisas, os privilégios da Igreja Católica (IC), que até então vivia
sobre o regime do padroado. Se por um lado a IC se viu livre do placet real – benefício que, para
muitos clérigos, minava a livre ação eclesiástica no Brasil -, por outro lado viu o seu não
reconhecimento como religião nacional, algo que sempre tivera. Alijada da esfera pública, foi
despojada para a esfera individual, perdendo seus direitos políticos e influência pública no que
diz respeito à relação com o Estado.
Contudo, mesmo perdendo espaço político ao nível estatal, sua condição de religião
majoritária dos brasileiros não se modificou. Pelo menos ao nível de mobilização política e social
a IC se mostrará mais eficaz, atraindo um número maior de pessoas para as suas festas religiosas
do que as festas cívicas oficiais. Mesmo com essa pretensa hegemonia, a condição de religião
privada e oficialmente não reconhecida era insatisfatória. Apesar de grande parte da hierarquia
católica não desejar retomar os vínculos políticos do período monárquico, entre eles era lugar
comum a idéia de retomar a influência sobre o Estado, mais como uma salvaguarda moral
vigilante do que como uma teocracia.
Nesse sentido a IC instaura uma cruzada contra a república laica de inspiração liberal e
positivista, mobilizando intelectuais clérigos e leigos, que se dirigem para espaços de
conscientização política, como a imprensa, através de manifestações públicas, órgãos de
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formação e assistência (grêmios, associações, etc). Através desses espaços é que um projeto
político católico penetrou na vida social do país, criando e difundindo, num primeiro momento,
uma estreita relação entre patriotismo e fé católica, para em seguida restabelecer vínculos diretos
com o Estado, pela via da colaboração mútua. Num primeiro momento a IC desejava mexer com
o brio do brasileiro, ressaltando sua natureza e sina religiosa, enfatizando seu compromisso
civilizatório tanto para com a pátria como para o espírito religioso que a constitui.
O nacionalismo católico respaldava-se na “consciência de que o verdadeiro patriotismo
inclui necessariamente uma confissão de fé católica, tanto na vida pessoal como na pública”. Para
os disseminadores desse nacionalismo, “impedir o brasileiro de ser oficialmente católico significa
[va] a perda de sua própria nacionalidade” (Matos, 1990, p 5). Nesse momento, segundo Frater
Matos, esboça-se a consciência “de que ‘ser brasileiro’ e ‘ser católico’ são duas faces da mesma
medalha, sendo que uma necessariamente não exclui a outra, [sendo que] sem esta unidade
existencial, a Pátria corre perigo e os destinos da Nação se desviam de seu curso histórico!”
(Idem.).
Uma das primeiras referências para o nacionalismo católico foi o Padre Julia Maria a
partir de 1890, que afirmava que “desde os primórdios da colonização nosso país já possuía sua
‘religião nacional’, intimamente associada à índole do brasileiro e parte essencial de sua honra
patriótica” (Julio Maria, 1950: p. 134.). Julio Maria afirmava que “foi a unidade religiosa que
produziu a unidade política [uma vez que] o altar não foi uma criação do trono”. Considerava “a
liberdade da Igreja frente ao Estado como um benefício [...] permitindo seu crescimento e
fortalecimento”. Para Julio Maria “a crise, no Brasil, ‘não é uma crise política, cuja solução
depende de formas de governo [,] é uma crise moral, desde o antigo regime, das classes dirigentes
da nação, e que só pode ser resolvida por uma reação católica’” (Julio Maria, 1900: p. 125).
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O nacionalismo católico evocava um conjunto de razões históricas para se justificar. A
principal delas foi o nascimento da pátria sob as bênçãos de Deus, através das mãos do português
frei Henrique, que teria realizado o primeiro ato público oficial em terras brasileiras, através da
celebração de uma missa, e assim consumando o destino religioso da pátria (Matos, 1990: p 8).
Enfatizava-se ainda o catolicismo como fator essencial da unidade nacional através da cruz, que
animou as caravelas portuguesas e o espírito da colonização, sem a qual “não teríamos nem
unidade de terra, nem de língua, nem de fé [...], não teríamos o Brasil” (Ibid., p. 9).
Na medida em que esse nacionalismo vai se desenvolvendo, um conjunto de críticas à
república começa a emergir. Os nacionalistas católicos denunciavam a república liberalpositivista, que para eles seria incapaz de “deitar raízes na alma do povo” (Ibid., p. 11), porque
deslocada do espírito nacional católico. Essa crítica foi expressa em 6 de novembro de 1890,
quando alguns clérigos ofereceram um memorial à assembléia constituinte, denominado “‘grito
de consciência nacional’, alertando para ‘os triunfos alcançados pelo ímpio positivismo, que
rejeitou a Cruz da nossa bandeira para aí inscrever sua triste legenda e o seu louco simbolismo’”
(Ibid, p. 15). Em 12 de Janeiro de 1891, Dom Macedo Costa, arcebispo do estado da Bahia, se
dirigiu a esta mesma assembléia afirmando que “se a constituição que for aprovada violar a
consciência católica, se ela ferir com odiosas disposições de exceção a fibra religiosa do povo
brasileiro, um conflito permanente se estabelecerá no seio de nossa querida Pátria, conflito que
devemos considerar como a maior das calamidades” (Macedo Costa apud Matos, 1990: p. 15-16).
Com essas preocupações como pano de fundo, o arcebispo afirmava que um Estado só poderia se
fundar e se manter quando se faz justo e respeitoso para com “sentimentos mais íntimos dos
povos”. Esse sentimento íntimo é essencialmente católico, a força moral do brasileiro, segundo
Dom Macedo Costa, que é “grande e bem organizada e conta com o porvir” (Ibid., p. 16). Nesse
sentido, oferecia a contribuição da IC “inteira, de coração leal e aberto, para a consolidação da
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ordem, da paz pública e do bem-estar do nosso país”, enfatizando que os constituintes não
deveriam recusar “a aliança e o apoio desta força moral, que dirige e contém um povo nos limites
do dever e da obediência aos poderes constituídos, quando estes sabem promover o bem do povo,
respeitando sua fé e as suas justas liberdades” (Idem.).
Apesar desses apelos, a IC perdeu seu reconhecimento oficial e a República se fez
descolada da religião majoritária. Mas as primeiras décadas da república foram abaladas por
crises de ordem política e social. Protestos e revoltas surgiam contra o novo Estado, à medida que
este não conseguia resolver os problemas de ordens diversas. Diante desse cenário o
nacionalismo católico vai ganhando contornos. A explicação dos católicos para a crise
generalizada estava relacionada ao fato de que “o Brasil renegou a prestar a devida homenagem
ao Rei dos reis, Jesus Cristo, esquecendo-se de que é dele que derivam a autoridade e os direitos
políticos” (Matos, 1990: p. 19). Para estes, “a crise do Brasil é, antes de tudo, uma crise moral [e
seria] pela recuperação da religião, ‘base fundamental da nacionalidade’ que se garant[iria] a
reconstrução da Pátria” (Ibid, p. 20).
A partir deste contexto emerge uma idéia de engajamento, onde o nacionalismo católico
torna-se um catolicismo de combate, que denunciava as mazelas republicanas e incentivava o
desabrochar missionário, convocando os católicos brasileiros em defesa da pátria (Ibid., p. 3336). A principal preocupação desses nacionalistas católicos era a de “reimplantar no Brasil
‘apóstata’ a ‘ordem cristã’ que, igualmente, garantirá a ‘estabilidade’ do Estado e do poder
constituído” (Ibid., p.46). A partir desse momento, a IC, ao poucos, vai se transformando em
força social e política reconhecida, na medida em que vai conquistando lugar de destaque na vida
republicana através de eventos cívico-religiosos e pronunciamentos públicos em defesa da ordem
e da moralidade.
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Dois eventos públicos são importantes nesse sentido: o Congresso Eucarístico em setembro de
1922 no Rio de Janeiro e a construção do Cristo Redentor no Corcovado. Nessas ocasiões
chamava a atenção o grande número de pessoas envolvidas, sobretudo sua organização e
reconhecimento dos procedimentos em matéria religiosa (Matos, 1990). Os clérigos
utilizavam-se desta unidade para reforçar a importância social e política da IC, uma vez que
sua autoridade estava expressa através do bom andamento das atividades realizadas. Além
desses eventos, existiu um conjunto de pastorais coletivas que conclamavam a importância da
religião católica no Brasil, sobretudo como mantenedora da ordem e do progresso nacionais.
O Congresso Eucarístico de 1922 teria “deixado em todo nosso povo a convicção de que a IC
continuava a ser [...] um dos mais poderosos redutos de patriotismo e uma das melhores
escolas de educação cívica” (Ibid., p.295). A Procissão Eucarística pelas ruas da então capital
brasileira, atividade final deste Congresso demonstrou, segundo Matos, que “nenhuma outra
instituição concorre mais para que se tornem uma realidade as palavras do lema inscrito nas
dobras da bandeira nacional” (Idem.). Nesse sentido “a procissão foi ‘uma manifestação
ardente e insofismável da vitalidade católica no país’, que ‘anima a alma da nacionalidade’ [,]
um acentuado cunho patriótico [e uma] peregrinação cívica” (Idem).
Em relação ao Cristo Redentor (cujas discussões para a construção se iniciaram em 1921),
este “foi proposto exatamente para expressar o reconhecimento de que o Brasil era
essencialmente um país católico” (Giumbelli, 2008: p. 84), possuindo o mesmo significado da
Estátua da Liberdade nos EUA. Para Dom João Becker, o Brasil seria, ao abrigar o Cristo
Redentor, “o guia das nações [...], o mentor das democracias pela legítima interpretação do lema
republicano de liberdade, igualdade e fraternidade” (Ibid., p. 78). Percebe-se que a posição do
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nacionalismo católico é justamente colocar o Brasil na vanguarda da modernidade, ao mesmo
tempo em que se fortalecia enquanto baluarte da cristandade.
Para o nacionalismo católico “a religião é vista como poderoso instrumento para
salvaguardar a moralidade do povo, sustentar a ordem e a autoridade legitimamente estabelecidas
e promover o verdadeiro amor à pátria” (Matos, 1990: p. 87). Aparecem motivos de ordem
patriótica, quando se afirma que “sem religião não há moral, não há respeito à autoridade, não há
patriotismo” (Ibid., p. 89). Como demonstrou Matos, “na opinião dos líderes católicos [é] na IC
que a pátria encontra a mais autorizada intérprete das genuínas tradições e valores nacionais e a
única verdadeira garantia para o futuro promissor” (Ibid., 130). O progresso do Brasil dependeria
da vitalidade religiosa, casada com “parâmetros efetivos da instituição eclesiástica com sua
hierarquia” (Idem.).
Um dos instrumentos para a consolidação desta espécie de patriotismo estava na defesa do
ensino religioso, pois, para os nacionalistas católicos, “o conhecimento da doutrina cristã,
através do ensino religioso, é tido como condição básica para a reconstrução da Pátria” (Ibid.,
p. 90). Dom Helvécio de Oliveira, por exemplo, afirmava que “não é, pois a multidão de
homens que salva a Nação, mas a formação do homem nos princípios da moral cristã”
(Oliveira, 1923: p. 155). O que se queria é “apresentar à nação [...] o tipo sagrado de Homem
Perfeito” (Idem.). Outro instrumento do nacionalismo católico foi a criação de uma imprensa,
colocada a serviço da recristianização e da defesa patriótica da nação brasileira católica.
No universo católico aparecem duas revistas, a revista Brasiléia (fundada 1917) e a revista Gil
Blas (fundada em 1919). A revista Brasiléia era “uma publicação destinada a defender o
‘brasileirismo puro e integral’ [onde] a religião e a moral são vistas como os verdadeiros
alicerces da pátria”. Esta “revista conclama[va] os intelectuais a colaborarem com ela e
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censura[vam] os que reduz[iam] o Brasil ao Rio de Janeiro, cidade cosmopolita, estrangeira e
comercial, voltada para fins essencialmente materiais” (Lippi, 1990: p. 149). A revista Gil
Blas pretendia “defender as reivindicações operárias dentro dos princípios de Leão XIII,
[conclamando] o Congresso a resolver o quanto antes o problema do trabalho e o Executivo a
cumprir a risca o programa de previdência social, [ressaltando] também que as greves são o
início da revolução, a qual só será evitada se os homens públicos intervierem em favor dos
oprimidos” (Ibid., p. 151).
O nacionalismo católico elegeu alguns inimigos, anti-nacionais porque anti-católicos.
Como exemplo pode-se citar a questão das escolas protestantes. Para o padre Álvaro
Negromonte, “é calculo de elementar patriotismo não favorecer estes institutos que o dólar não
pode manter aqui sem grandes interesses”. Para este padre, seriam nesses colégios onde “o
imperialismo norte-americano prepara[va] a realização de seus desígnios [dividindo] a fé
nacional do Brasil – o maior e mais poderoso elemento de nossa unidade - [e enfraquecendo] a
resistência que se poderia levantar mais tarde” (Negromonte, 1931: p.1).
No mesmo tom ficava a oposição ao protestantismo, pois se afirmava que “ser católico [é]
conditio sine qua non para ser patriota”. Portanto, “quem não confessava a fé católica
dificilmente poderia ser considerado um verdadeiro brasileiro” (Matos, 1990: p. 156). Mario
Lima afirmava que “o povo brasileiro, formado nos princípios católicos, que foram [...] os
delineadores de seu traço perpétuo; o povo brasileiro, que deve sua unidade de seu território à fé
católica, que o animou nas lutas contra o calvinista francês e o protestante holandês; o povo
brasileiro não abandonará a sua religião nacional e a defesa de suas crenças, [o protestantismo é]
‘o eterno inimigo da nossa pátria, da nossa raça e da nossa história’” (Lima, 1929: p: 403). Dom
Silvério enfatizava que “sejamos católicos, e sejamos brasileiros católicos, conservemos nossa fé,
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única em que pode haver salvação; Brasileiros, zelemos a independência de nossa pátria, [pois]
proteger de alguma forma a doutrina protestante é um crime contra a Fé, é uma traição a nossa
pátria” (Silvério, 1922: p. 6).
Isso expressa uma posição anti-estadunidense por parte dos nacionalistas católicos. Para
Lippi, “o confronto com os EUA faz sua reentrada no pensamento católico e fornece
fundamentação ideológica para o combate ao estrangeiro” (Lippi, 1990: p. 173). Para o autor
católico Alceu Amoroso Lima, segundo Lippi, “o mundo moderno não deve ser visto como uma
luta entre civilização e cultura, mas como o embate entre dois tipos de civilização”. Para ele
existiriam duas modernidades, uma católica - que tem a ver com “a renovação espiritual do
mundo” – e outra protestante – “constituída sobre o pragmatismo, a nova face do materialismo”
(Idem.).
A maçonaria seria outra instituição anti-patriótica porque anti-católica, sendo considerada
uma “escola da desmoralização nacional e da degradação sistemática do nosso caráter coletivo”
(Matos, 1990: p.163). A maçonaria se colocava contra o ensino religioso nas escolas, contra a
subvenção estatal de instituições religiosas, a favor da eliminação dos conventos e das festas
públicas religiosas. Nesse sentido a maçonaria brasileira defendia a completa laicidade do Estado
e intentava contra a IC, o que fez com que não fosse poupada das críticas clericais e acusada de
perverter o espírito patriótico, pois contrária aos princípios que a IC considerava serem a base da
brasilidade.
O divórcio também era combatido, pois significaria a “ruína da tradicional família católica
e da própria pátria”, já que para a IC a pátria teria por base a família, nos moldes cristãos. Os
nacionalistas católicos afirmavam que “uma eventual ‘lei do divórcio’ num país ‘maciçamente
católico’ só pode ser fruto amargo do caráter liberal e agnóstico da Constituição ‘sem Deus’, em
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flagrante contraste com as ‘autênticas aspirações da maioria nacional” (Ibid., p. 166). Seria
também um crime contra a nacionalidade, na medida em que o divórcio minaria a família, que
seria a estrutura elementar da pátria para os católicos.
O nacionalismo católico teve seu apogeu na década de 1920, na medida em que a crise se
alastrava. Diante da grande instabilidade civil que a crise provocava, as autoridades políticas se
voltavam para a IC, “buscando apoio moral e colaboração na manutenção da ordem” (Matos,
1990: p.91), uma vez que a própria IC conseguia manter de modo estável a relação com seus
fiéis. Lucia Lippi afirma que é “diante da incompetência e da fraqueza do governo, [que] a Igreja
passava a ser vista como melhor guardiã da unidade nacional, além de simbolizar o passado,
[sendo] nesse quadro que ressurgiu o prestígio da Igreja, instituição poderosa e disciplinada, em
oposição à fraqueza do governo parlamentar”, ao mesmo tempo em que se reacendia “a
necessidade de pensar o Brasil do ponto de vista brasileiro” (Lippi, 1990: p. 53). Para Lippi,
“essa transformação de padrões culturais teve como pano de fundo o confronto e a releitura da
tradição, ou seja, a releitura da interpretação histórica” (Ibid., p.126). Nesse sentido “a
nacionalidade enquanto sistema de idéias centrada na identidade e na autoconsciência
necessariamente discute com a tradição vigente [sendo] preciso reestruturá-la ou construir sua
versão sobre o passado que substitua a interpretação interior” (Ibid., p. 142).
Álvaro Bomilcar foi um dos responsáveis pelo nacionalismo católico dos anos de 1920,
fornecendo “os elementos que comporão o ideário dos movimentos nacionalistas e do
movimento católico dos anos 20” (Ibid., p. 142). Com ele emerge um nacionalismo militante,
cuja bandeira nacionalista propunha “um programa de luta e a necessidade de organização de
movimentos que deveriam atuar na salvação do país” (Ibid., p. 145). Uma outra figura
importante foi Alcebíades Delamare, diretor da revista Gil Blas. Delamare escreveu em 1924
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“As duas bandeiras: catolicismo e brasilidade”, um marco da militância católica. Neste
manuscrito afirmava que não poderia haver independência política sem independência
econômica e condenava o controle por estrangeiros do comércio, da indústria e da imprensa.
Completava o texto dizendo que a “ordem militar que justifica e defende Deus, Pátria e
Família cedeu a vez à ordem pacífica, ou mais propriamente à ordem judaica, que significa o
materialismo, a pança, a confusão, o ludibrio e a má fé, a roubar, de mãos dadas, da Religião,
da Virtude e do heroísmo’” (Delamare apud Lippi, p. 153). A visão nacionalista de Delamare
se resumia a Deus e Pátria, pois, para ele, “o primeiro é a força irresistível que nos atrai para a
perfectabilidade do nosso espírito; o segundo é o ímã que nos prende ao solo que nascemos”.
Inspirava-se em Mussolini, que estaria “redimindo a Itália de todos os erros do passado’ e
pretende reerguer a ‘italinidade’ com a junção do civismo e da religião”. Nesse sentido conclui
que “o nacionalismo dominará o Brasil [...] no dia em que todos se convencerem de que o
catolicismo é a única força capaz de dirigir e governar o Brasil, [pois] sem catolicismo não há,
nem pode haver, nacionalismo” (Idem.).
A figura mais expressiva do nacionalismo católico dos anos 1920 foi sem dúvida Jackson de
Figueiredo. O nacionalismo de Jackson caracterizou-se “por ter profundas ‘conotações
moralistas, preocupada em extirpar da nação os vícios que a inquinam, que a corrompem [e]
que impede a realização do que há de mais vital no país, [que é] a instauração da ordem’”
(Lippi, 1990: p. 169). Jackson tem uma grande preocupação com a formação das elites, que
para ele seriam as únicas capazes de “identificar o que deve ser criticado nas tradições da
pátria e o que deve ser recuperado e transformado em dogma” (Idem.). Para ele “haveria uma
herança positiva, verdadeira, que constitui a tradição, e outra que deve ser negada” (Ibid., p.
170). Jackson acreditava que os nacionalistas deveriam ter a obrigação de “indagar da
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consciência nacional quais as tradições e os costumes, as idéias que de fato lhe são essenciais”
(Figueiredo apud Lippi, p. 170). Para ele, “a tradição brasileira, desde os tempos coloniais,
define-se como católica, [sendo] o catolicismo a força de ordem moral e religiosa que
arregimenta todas as forças do país” (Idem.). Aí reside a importância da elite, que Jackson
apontava como, diante a desordem geral na qual se encontrava o Brasil, “a ‘coluna de fogo’
[que] reconstruiria a pátria, vista enquanto ‘povo hierarquizado, governado, zeloso de
legítimas tradições, consciente de sua fé e crente na sua consciência’” (Ibid., p.171).
O nacionalismo católico teve como marca importante a tentativa de conversão das elites
políticas, já que o povo brasileiro carregava forte marca católica, “por nascimento e formação”.
Falava-se da inexistência de elites católicas no Brasil (Lippi, 1990: p. 166). Desse modo a ênfase
recaia para a catolização das elites, uma vez que a Igreja já tinha legitimidade popular. Como
consequência, de acordo com Lippi, ocorre “o predomínio no interior da Igreja de uma política
voltada para a legitimação dos governos republicanos, desde que a liberdade de culto e de ensino
religioso, enfim, a liberdade de ação da Igreja, fosse garantida” (Idem.). A partir da década de 20,
“a Igreja passou a fornecer suporte religioso às instituições governamentais [atuando junto aos]
governos Epitácio Pessoa e Artur Bernades [quando] foi acertada com Dom Sebastião Leme
(então arcebispo do Rio de Janeiro) a colaboração entre Igreja e Estado no intuito de manter a
ordem e promover o progresso nacional” (Idem.).
O nacionalismo católico está colado com a idéia de que a tradição brasileira é uma tradição
católica, que é ‘terra de Santa Cruz’. Catolicismo e nacionalismo são aí sinônimos, estando
“todas as esferas de ação humana subordinadas à nacionalidade que está plantada sobre o
catolicismo” (Ibid., p. 172). Para Lippi, o nacionalismo católico “decorria do fato de a pátria
brasileira ser resultante da história, entendida como plano de Deus, [sendo] este plano divino
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96
que harmoniza catolicismo e nacionalidade, favorecendo as coincidências entre o discurso
religioso, a nacionalidade e o conservador” (Idem.).
De acordo com Lippi, “a afirmação do nacionalismo no discurso católico tem características
bem particulares: o nacionalismo é um caminho específico, natural e divino no Brasil na
trajetória da cristandade, caminho este muitas vezes ameaçado pelas idéias e práticas
racionalistas, liberais, agnósticas e céticas das elites brasileiras, influenciadas por doutrinas
originárias de outros contextos, [cabendo à IC] a vigilância, a cruzada restauradora” (Ibid.,
p.174). Lippi conclui que essas “propostas nacionalistas [...] tendem a se auto-atribuir uma
missão salvadora, acentuando uma glória passada a ser resgatada, ou futura a ser construída”
(Ibid., p.189). Nesse sentido “o nacionalismo, enquanto sentimento natural e imanente dos
povos” está comprometido com a defesa das nossas tradições, abrindo caminho para o
nacionalismo católico [onde] as nossas tradições estão corporificadas no papel do catolicismo
e da IC na história do Brasil” (Ibid., p. 192).
Se o catolicismo político nos anos 1920 tem como marca forte o discurso nacionalista, a
transição para os anos 1930 conhecerá uma marca mais engajada e afim com o Estado
brasileiro, à medida que o reconhecimento político da IC vai aumentando. Desde a década de
1920 “a militância dos católicos na política se enquadra[va] dentro da perspectiva de
‘recristianizar’ o Brasil e recuperar para a IC o ‘prestígio social’ ao qual julgava ter
plenamente direitos, sendo o catolicismo ‘a religião da esmagadora maioria do povo
brasileiro’” (Matos, 1990: p. 235). Nesse sentido, a intenção era “repor a República no
caminho da ordem cristã” (Idem.), única maneira de unir o Brasil, de acordo com os
nacionalistas católicos.
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Para tanto os católicos não pouparam esforços, tanto no âmbito clerical quanto no leigo. Uma
das propostas que apareceram ao longo dos anos 1920 foi a fundação de um partido católico,
que pudesse agrupar candidatos compromissados diretamente com o interesse da IC. Mas essa
proposta não emplacou devido a resistência do episcopado brasileiro, que via um paradoxo
entre a idéia de Igreja Universal e a de Partido Católico (Ibid., p. 236-238). Por outro lado,
emplacou a idéia de voto como dever, como contribuição para o bem geral da nação, idéia que
foi fortemente encampada no âmbito clerical e largamente difundida no laicato (Ibid., p. 241).
Uma consequência disso foi a criação em 1932/1933 da Liga Eleitoral Católica (LEC), que
organizou um lista de candidatos que apoiavam o projeto mínimo da IC (assistência religiosa
facultativa às classes armadas; ensino religioso facultativo nas escolas públicas;
reconhecimento civil dos casamentos religiosos paralelo à indissolubilidade do mesmo).
O eixo muda definitivamente para a IC com a Revolução getulista de 1930. Esta foi fruto da
crise econômica que também assolou o país em 1929 e da crise política das oligarquias que
governavam o Brasil a quase 40 anos, cada vez mais incapazes de emplacar qualquer projeto
de desenvolvimento satisfatório e de manter a ordem pública . No plano político, a
liminaridade é a fraude das eleições de 1929, quando a chapa denominada Aliança Liberal,
encabeçada por Getúlio Vargas (Rio Grande do Sul) e tendo como vice João Pessoa (Paraíba),
foi derrotada pela chapa de Julio Prestes (São Paulo), candidato das oligarquias. Getúlio, junto
com Antônio Carlos de Andrada, católico declarado e governador de Minas Gerais,
conspiraram contra o governo federal e tomaram o poder no Rio de Janeiro (Ibid., p. 245-246).
É na tomada da capital federal pelas forças revolucionárias que se pôde ver uma nova
reentrada da IC na vida política nacional. O então presidente Washinton Luiz ficou sitiado no
Palácio do Catete, sede da República, relutando a deposição. Dom Leme, que acabara de
97
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voltar ao Brasil trazendo o título de Cardeal, é convidado a intervir junto ao presidente
deposto. Foi pelas mãos do Cardeal que o presidente (deposto) deixa o Palácio do governo,
saindo dali ileso e sem esboçar qualquer interesse em contra-atacar. De acordo com Oscar
Beozzo, “a primeira República, que iniciara sua história estabelecendo a separação entre Igreja
e Estado e excluindo a IC da nova ordem liberal positivista, sai paradoxalmente de cena, 40
anos depois, pelas mãos de um membro da hierarquia da IC” (Beozzo apud Matos, 1990:
p.246).
A partir deste momento estreitam-se os laços entre a IC e o regime que se instaurava. Se por
um lado Vargas não ficou “insensível diante da emergência do catolicismo como força social”,
por outro lado a IC “não poupava esforços para demonstrar aos novos detentores do poder sua
inegável força política pela movimentação das massas” (Matos, 1990: p. 249). Diante dessa
força aparente que representava o catolicismo, Dom Leme entrega a Vargas uma lista de
reivindicações católicas, sobretudo enfatizando o programa mínimo da IC, quando da
inauguração do Cristo Redentor no Corcovado no Rio de Janeiro, em 12 de outubro de 1931 2
(Idem.).
Além da aproximação entre a hierarquia católica e Getúlio e da participação de muitos
católicos no governo provisório 3, criou-se a LEC, visando o uso das eleições como
instrumento de pressão. Amoroso Lima afirmou que “essa forma de organização extra-política
e suprapartidária é a única que corresponde, no momento, não só as exigências da consciência
católica brasileira, mas ainda aos mais altos interesses do bem social da nacionalidade,
2
Esta data é central para a penetração do discurso nacionalista católico. O 12 de outubro, dia destinado a comemorar
a memória da descoberta da América por Cristóvão Colombo, fazendo parte do calendário oficial da República até
então (Martins, 2009), ganha uma dupla conotação católica, sendo tanto o dia destinado ao reconhecimento de Jesus
Cristo como figura presente no cotidiano do brasileiro, quanto o dia destinado à consagração de Nossa Senhora
Aparecida como Padroeira do Brasil.
3
Dentre muitos, os mais conhecidos foram os políticos Francisco Campos e Gustavo Capanema e os escritores
Monteiro Lobato e Cecília Meireles.
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coibindo o exagero das divisões partidárias e criando terrenos comuns de entendimentos entre
as grandes correntes políticas do país” (Amoroso Lima, 1934: p. 1).
Nas eleições de 1933, a LEC recebeu um número significativo de candidatos. Seu mote era
pelo sufragamento dos homens que, dentro dos princípios cristãos, colocassem o Estado “de
acordo com os sentimentos da nação” (Matos, 1990: p. 257). A LEC saiu vitoriosa, tanto no
nível regional quanto no nível nacional, o que deu livre acesso a IC aos meandros dos projetos
de reformas constitucionais que se desenvolveriam no ano seguinte. A constituição
promulgada alguns meses depois das eleições garantiu a incorporação dos pontos
fundamentais do programa da LEC, instaurando um regime de colaboração entre IC e Estado,
porém completamente diferente da colaboração conhecida no período pré-republicano.
A constituição promulgada em 1934 garantiu alguns pontos que recolocavam a IC no cenário
político brasileiro: no prefácio da Constituição coloca-se a frase “sob a proteção de Deus”;
direitos civis para os religiosos; personalidade jurídica das ordens religiosas; assistência
espiritual às organizações militares; casamento religioso ganha validade civil; proibição do
divórcio; financiamento público de organizações religiosas; ensino religioso facultativo nas
escolas públicas (Moreira Alves, 1979: p. 37). A partir desse novo cenário, a IC apresentar-seá “como força moderadora nas tensões e conflitos sociais da época, [defendendo] a ordem
social vigente, agora batizada pela Carta Magna de 34 e [pelo] princípio de obediência à
Autoridade estabelecida” (Matos, 1990: p. 261).
O panorama aqui explanado demonstrou que o catolicismo político brasileiro trilhou
um caminho exitoso, desde a configuração de sua marca nacionalista, passando pela tentativa
de ativação/mobilização popular desse nacionalismo, até a penetração na estrutura estatal,
quando conseguiu colocar em pauta suas reivindicações, muitas das quais atendidas
99
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satisfatoriamente. Esse sucesso deveu-se sem dúvida tanto a atividade de muitos intelectuais
oriundos do âmbito clerical (padres e bispos) quanto dos intelectuais oriundos do âmbito leigo,
mas é importante ressaltar que a marca católica do povo brasileiro foi preponderante para que
a ideologia de um grupo minoritário ganhasse espaço junto a outros grupos políticos que
igualmente possuíam seus projetos particulares de estado-nação. Numa época em que as
massas se voltavam para uma mobilização efetiva, o catolicismo político atuou como
catalisador de muitos dos seus anseios, o que levou ao afunilamento, num só discurso, de suas
perspectivas com as perspectivas daquelas. E é por isso que os grupos políticos concorrentes
viam no catolicismo um aliado importante para emplacar parte de seus projetos. Visto que o
catolicismo político brasileiro não desenvolveu uma organização partidária ou até mesmo
faccionária – a exceção foram os integralistas, que tiveram vida curta e pouco apoio das
massas e elites católicas – o que restou foi o compromisso com os grupos que menos
chocavam com suas perspectivas. A partir de uma lógica de ajuda mútua é que o catolicismo
se re-insere na esfera estatal, tentando aí fazer valer suas perspectivas.
Bibliografia
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(4/9/1934).
DOM SILVÉRIO. Cartas Pastorais. Petrópolis: s/ ed., 1922.
FARIAS, Damião Duque. Em defesa da ordem: aspectos da práxis conservadora católica
no meio operário em São Paulo (1930-1945). São Paulo: Ed Hucitec, 1998.
GIUMBELLI, Emerson. A modernidade do Cristo Redentor. DADOS, Rio de Janeiro, v.
51, n. 1, 2008.
100
101
JULIO MARIA. A Igreja e a República. Brasília: Ed Unb, 1981 (1900).
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LIMA, Mário de. O bom combate. Imprensa Oficial, Belo Horizonte, 1929.
LIPPI, Lúcia. A questão nacional na primeira república. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.
MARTINS, Gabriela. A sacralização da república. Trabalho apresentado nas Jornadas sobre
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MATOS, Frater. Um estudo histórico sobre o catolicismo militante (1922-1930). Belo
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MOREIRA ALVES, Márcio. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense:
1979.
NEGROMONTE, Padre Álvaro. A sombra da mão crispada. In: O Horizonte, ano 9, nº 834
(19/12/1931).
OLIVEIRA, Dom Helvécio. Circular. In: Boletim Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana,
ano 22, nº 10 (10/1923).
VILAÇA, Antônio Carlos. O pensamento católico no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Zahar:
1975.
101
102
GESTÃO DAS ÁGUAS METROPOLITANAS E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Metropolitan water management and sustainable development
Elizabeth Borelli 1
Resumo: O texto apresenta uma reflexão acerca da importância da água em termos de sustentabilidade da qualidade
de vida no espaço urbano das regiões metropolitanas, ilustrada pelo caso dos mananciais da Grande São Paulo. A
relação entre população e meio ambiente é abordada segundo o enfoque do desenvolvimento sustentável pensado
numa dimensão espacial, onde o contexto urbano é cenário da questão social contemporânea, em meio à necessidade
de ações de preservação ambiental. Nessa perspectiva, constata-se que a urbanização reduziu a oferta de áreas
disponíveis, gerando uma dinâmica fundiária especulativa, com mecanismos de segregação sócio-espacial; às
localizações mais favorecidas correspondem maiores preços, configurando-se um processo de estratificação social. A
análise das formas de uso e ocupação do solo nas regiões de mananciais nos remete à questão teórica do espaçomercadoria e nos instiga a projetar cenários sócio-econômicos em médio prazo.
Palavras-chave: desenvolvimento sustentável; mananciais; região metropolitana.
Abstract: The text presents a discussion about the importance of water in terms of sustainability of the quality of life
in urban space of metropolitan regions, illustrated by the case of the Greater Sao Paulo Springs. The relation between
population and environment is addressed by the focus of sustainable development those thoughts in a spatial
dimension, the urban context is the main question contemporary in the social scenario, in the actions of the need for
environmental preservation. In this perspective, we can verify that the urbanization reduced the supply of available
areas, generating a dynamic land speculation, with mechanisms for socio-spatial segregation, the most favored
locations correspond higher prices, setting up a process of social stratification. The analysis of the forms of use and
land cover in regions of source in question refers to the theory of space-commodity and instigate us projecting socioeconomic scenarios in a
medium term.
Key words: sustainable development; sources; metropolitan region.
Introdução
Este trabalho se propõe a discutir os vínculos entre as questões ambientais e as questões
sociais no espaço urbano, que permeiam a gestão das águas metropolitanas de São Paulo, numa
tentativa de se analisar cidade e urbano sob a ótica das relações de classe e propriedade.
Indubitavelmente, São Paulo emerge como megalópole, dentro de um novo padrão de
urbanização, passando de uma população de cerca de 270 mil habitantes, no final do século XIX,
1
Doutora em Sociologia e Mestre em Economia Política. Professora da Faculdade de Economia, Administração,
Ciências Contábeis e Atuariais da PUC-SP
102
103
para 19,7 milhões, no início do século XXI (SEADE, 2006). Não obstante, poder ser considerada
a capital financeira da América latina, cerca de 40% de sua população vive em áreas irregulares,
incluindo-se favelas, cortiços e habitações improvisadas, de forma periférica, à margem.
A Região Metropolitana de São Paulo – RMSP - constitui-se, assim, no foco da questão
dos recursos hídricos do País, dada a significativa demanda existente, frente a uma escassez
relativa – considerando-se suas particularidades urbanas – agravada, ainda, pela crescente
degradação de seus mananciais.
A região apresenta uma demanda cada vez maior de água, cujo atendimento depende de
uma conjugação de fatores de ordem econômica, política, administrativa e técnica, para fazer
frente ao seu ritmo e crescimento. Por outro lado, conflitos e dificuldades no atendimento às
demandas surgem dos usos múltiplos dos mananciais, das concentrações populacionais próximas
das áreas de mananciais, gerando a sua poluição – que pode comprometer o manancial a ponto de
inviabilizá-lo – processo este que, se não controlado, irá redundar em escassez de recursos
hídricos para o abastecimento público.
Em função desse quadro, julgamos oportuno investigar as formas utilizadas pelo Estado
para disciplinar o uso e a ocupação do solo da megalópole, de maneira a equacionar a questão do
abastecimento hídrico, delineando, num primeiro momento, o perfil atual de recursos hídricos da
região.
A preocupação com a manutenção e melhorias da qualidade e da quantidade dos recursos
hídricos em geral deve nortear a problemática dos mananciais na RMSP, considerando-se o
caráter de usos para o abastecimento público que envolve a questão.
103
104
1 - Recursos Hídricos e Processo de Urbanização
Desde o início do século XX, a forma de opção para a apropriação dos recursos hídricos
disponíveis na Grande São Paulo, representados, basicamente, pelo trecho superior do Rio Tietê e
seus tributários, recaiu sobre a priorização da produção energética. Para tanto, foram
sucessivamente implantados a usina de Parnaíba (atual Edgard de Souza), o reservatório de
Guarapiranga, a usina de Cubatão I e o reservatório Billings, o sistema de reversão TietêPinheiros e a usina hidrelétrica de Cubatão II.
A áreas metropolitanas surgem, exatamente, a partir da concentração crescente da
população, atraída por um conjunto de atividades econômicas em núcleos urbanos que começam
a ultrapassar os limites de seus municípios, incorporando regiões vizinhas, dando origem ao
aparecimento das conurbações. 2
Dessa forma, a oferta de energia elétrica abundante propiciou condições para o
crescimento, de início, da cidade de São Paulo, estendendo-se, posteriormente, aos seus entornos,
dando origem à mais importante aglomeração urbana do País : a
Grande São Paulo.O
crescimento demográfico e a expansão industrial tornaram competitivo o uso dos recursos
hídricos regionais, uma vez que os pequenos mananciais disponíveis na área de jurisdição de cada
município já não se mostravam suficientes para o abastecimento da crescente demanda para fins
de abastecimento.
Em 1929, através de convênio, São Paulo passou a utilizar para os seus sistemas de
abastecimento, águas provenientes do reservatório de Guarapiranga, construído pela
concessionária elétrica Light para atuar como regulador de vazões para suas usinas geradoras.
2
Entende-se por conurbação a integração física e funcional entre duas ou mais cidades próximas, formando um
conjunto só.
104
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Contudo, o problema de abastecimento de água foi se agravando à medida que aumentava
a concorrência entre os usos de água na região: a geração de energia elétrica, o abastecimento de
água e a disposição de esgoto.
Em 1958, o reservatório Billings, concebido como regulador de vazões para as usinas de
Cubatão, passou a fornecer água para a região do ABC. A primeira grande alteração institucional
no setor do abastecimento de água na RMSP ocorreu em 1968, com a criação da Companhia
Metropolitana de Água de São Paulo – COMASP, empresa de economia mista com o objetivo de
captar, tratar e aduzir água potável aos 37 municípios que constituíam a Grande São Paulo. À sua
criação seguiu-se, em 1969, a da Companhia de Saneamento de São Paulo – SANESP - com o
objetivo de coletar e proceder à disposição final de esgotos da Grande São Paulo.
Em 1973, ocorre a fusão dessas três empresas, dando origem à Companhia de Saneamento
Básico do Estado de São Paulo – SABESP, tendo por metas: planejar, executar e operar serviços
de saneamento básico em todo o território de São Paulo, respeitando a autonomia dos municípios.
A atual Divisão Hidrográfica do Estado de São Paulo, elaborada a partir de critérios físicoterritoriais, sociais e econômicos, estabelece 22 bacias hidrográficas 3, consideradas Unidades de
Gerenciamento de Recursos Hídricos (UGRH’s). (SABESP, 1997).
Considerando-se que manejo, planejamento e gestão de recursos devem ser realizados no
âmbito de bacias e sub-bacias, torna-se possível avaliar os diversos padrões de uso e ocupação do
espaço, bem como características ambientais, sem se perder o controle sobre o conjunto de
mananciais de interesse regional. Localizada nas cabeceiras de bacias hidrográficas, sendo a
principal a bacia do Rio Tietê, a região da Grande São Paulo não dispõe de rios suficientemente
caudalosos para se retirar as quantidades de água necessárias ao atendimento das demandas. Esse
3
Entende-se por bacia hidrográfica a área de drenagem do escoamento superficial das águas que alimentam um curso
de água, separando-se de outras bacias pelos divisores representados pelas partes mais altas do relevo.
105
106
fato condicionou a concepção do sistema de abastecimento de água potável, composto por
diversos sistemas produtores, além da importação de água de bacias vizinhas, de forma a
complementar os volumes necessários à demanda.
Significativa parcela da RMSP (em torno de 70%) ocupa os 5.620km2 da Bacia
Hidrográfica do AltoTietê ; nela estão situados 34 dos seus 39 municípios. Trata-se de uma
região com questões urbanas extremamente complexas, dadas as elevadas taxas de urbanização,
agravadas pela limitada disponibilidade de recursos hídricos, pela deterioração da sua qualidade e
competição pelo uso. A bacia é composta pelas áreas drenadas pelo Rio Tietê em seu alto curso,
onde este recebe afluentes como o Rio Pinheiros, o Rio Tamanduateí e o Rio Juqueri, entre
outros, além de conter os importantes reservatórios Billings, Guarapiranga e Paiva Castro.
(CUSTÓDIO, 1994, P.17).
A Região Metropolitana de São Paulo, considerada a maior área urbana brasileira,
apresenta, hoje, um dos quadros mais críticos do país, em termos de garantia de água em
quantidade e qualidade para o abastecimento de sua população. Com certeza, isso se deve à
gestão inadequada do recurso ao longo do tempo, frente à ocupação urbana desordenada das
áreas de mananciais mais próximas, como as bacias hidrográficas da Billings e do Guarapiranga,
e das péssimas condições de conservação das áreas mais distantes, como as represas do Sistema
Cantareira.
A RMSP importa mais de 50% da água que consome da Bacia do Rio Piracicaba,
através do Sistema Cantareira - que está localizado a mais de 70 Km do centro de São Paulo e
conta com seis represas interligadas por túneis. O restante da água é produzida pelos mananciais
que ainda restam na região – principalmente a represa Billings, a bacia do Guarapiranga e as
cabeceiras do Rio Tietê - e que sofrem intenso processo de ocupação . Ou seja, a região é
obrigada a importar água e a investir em sistemas de tratamento avançado para transformar água
106
107
de péssima qualidade em água potável As áreas de mananciais da RMSP - que são responsáveis
pela produção de água para abastecimento de toda a população, além da manutenção de
atividades econômicas - ocupam 52% do seu território, englobando total ou parcialmente 25 dos
39 municípios que compõem a região. Para atender à demanda de abastecimento atual de sua
população, são necessários oito sistemas produtores de água, responsáveis por aproximadamente
68 mil litros de água por segundo (ou 5,8 bilhões de litros de água por dia).
(htpp://www.mananciais.org.br).
Os reservatórios Guarapiranga e Billings ocupam uma porção significativa de área da
RMSP: 33,9 km2 e 130km2. Contudo, os expressivos corpos d’água da região não podem ser
plenamente utilizados para abastecimento humano, uma vez que, durante décadas, receberam alta
carga poluidora de indústrias e esgoto doméstico sem tratamento, o que provocou a degradação
das águas reservadas.Vale lembrar que, em sua concepção original, ambos os reservatórios foram
criados para viabilizar a produção energética ( em 1907 e 1924, respectivamente).
QUADRO 1 : Disponibilidade de Água, por manancial
SISTEMA
VOLUME DE ÁGUA PRODUZIDO
(mil litros/segundo)
Alto Cotia
Baixo Cotia
Alto Tietê
Cantareira
Guarapiranga
Ribeirão da Estiva
Rio Claro
Rio Grande
(Billings)
1
0,90
10
33
14
0,1
4
4,8
POPULAÇÃO ATENDIDA
(mil habitantes
400
460
3.600
8.100
3.800
40
1.200
1.600
FONTE: ISA (2006)
Esse conjunto de sistemas de captação de água é operado pela SABESP, sendo que a
gestão da água , desde 1994, ficou a cargo do Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto-Tietê 107
108
Cbaht, que integra uma rede de instâncias gestoras regionais que compõem o Sistema Integrado
dos recursos Hídricos do Estado e São Paulo – SIGRH, criado pela lei 7663/91.Este sistema adota
a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gestão.Contudo, o processo de expansão
capitalista utiliza recursos naturais de modo contínuo, além de degradar o ambiente, dificultando
o sistema de abastecimento da água, uma vez que o ciclo da água é maior que o tempo da
reprodução ampliada do capital, que atende às decisões do investimento.(RIBEIRO, 2004).
Por outro lado, a geração de lixo - em média, 12mil toneladas diárias (2000) - se
constitui em fator de obstáculo à obtenção de água de melhor qualidade, já que boa parte dos
volumes é disposta de forma irregular e sem tratamento, contaminando o lençol freático
(RIBEIRO & GÜNTHER, 2003).
O comprometimento das águas dos mananciais que abastecem a RMSP está relacionado
ao modelo de desenvolvimento econômico adotado, que, ao priorizar a indústria, levou o estado a
fornecer várias concessões para a produção de energia elétrica, em detrimento da produção de
água, que deixou de ter um incremento proporcional ao crescimento da população. A opção por
investimentos na área de energia elétrica , na esfera estadual, era, pois, um reflexo de uma
preocupação mais geral, expressa num contexto de definições a nível nacional.
O cenário da política econômica condicionou a expansão de um grande parque
industrial, favorecido pela oferta de energia a preços baixos, propiciando o rápido processo de
urbanização de São Paulo, e com ele, exigências de uma infra-estrutura urbana compatível com
as novas necessidades da população.
Como resultante de uma infra-estrutura urbana inadequada, configurou-se uma situação
de deterioração ambiental, com enchentes, deslizamentos, erosão, níveis insuportáveis de
poluição do ar e das águas, enfim, um cenário de degradação das condições de vida; por outro
108
109
lado, contingentes de famílias, por falta de alternativa, passam a ocupar, indiscriminadamente,
beiras de córregos, várzeas de rios e represas.
Com a prática de invasões, desmatamentos e a proliferação de loteamentos clandestinos,
os mananciais tornam-se sistematicamente contaminados por esgotos domésticos e lançamentos
de lixo em córregos, sem contar os despejos químicos provenientes das indústrias metropolitanas,
ameaçando a qualidade dos reservatórios – parte fundamental do sistema de abastecimento.
A qualidade das águas dos rios e represas piora a cada ano. Analisando o caso do
Sistema Guarapiranga - que abastece 3,8 milhões de pessoas residentes na zona sudoeste da
capital paulista, incluindo as regiões de Santo Amaro, Morumbi, Pinheiros e Butantã - constata-se
que se trata da maior ameaça entre todos os que abastecem a RMSP. O quadro é preocupante: a
população que vive ao redor da represa aumentou em quase 40% nos anos 90 (1991 e 2000),
estimada em 800 mil pessoas. Os municípios de Cotia, Embu, Juquitiba, São Lourenço da Serra,
além de São Paulo, estão parcialmente inseridos na área da bacia, enquanto que Embu-Guaçu e
Itapecerica da Serra estão integralmente inseridos nela.
Apenas como exemplificação, a taxa geométrica de crescimento anual da população do
município de Embu-Guaçu, de 2000 a 2006 foi de 4,43%, e a de Itapecerica da Serra, 4,58%,
enquanto que a do Estado de São Paulo situou-se em 1,52%, no mesmo período.Por outro lado,
em Embu-Guaçu, o nível de atendimento de esgoto sanitário é de apenas 14,13%,e o de
Itapecerica, 24,88%.Ou seja, houve um expressivo aumento do contingente populacional, para
uma infra-estrutura de saneamento básico extremamente deficiente. Se considerarmos a
população da Bacia do Guarapiranga como um todo, tem-se que apenas cerca de 50% dos
habitantes da região tem algum sistema de coleta de esgotos; portanto, a maioria do esgoto
coletado continua sendo despejada na represa! (SEADE, 2006).
109
110
O gritante aumento populacional, que transformou a Guarapiranga num “manancial
urbano”, se deve à expansão dos chamados “bairros dormitórios” nos arredores da represa, por
sua proximidade com o “centro dinâmico” da capital paulista, que se deslocou para sul e oeste,
concentrando grandes hotéis e empresas geradoras de empregos.
No ano de 2003, mais da metade da área total da Bacia Hidrográfica da Guarapiranga
encontrava-se alterada por atividades humanas; parte dessa alteração (16%) refere-se aos usos
urbanos, e o restante a usos diversos, como agricultura, mineração e solo exposto. As áreas com
vegetação remanescente de Mata Atlântica - essenciais para a manutenção da capacidade de
produção hídrica e para o equilíbrio ambiental da região - ocupavam, em 2003, apenas 37% da
área da bacia. Entre 1989 e 2003, as áreas urbanas aumentaram em 19%, e mais da metade deste
crescimento se deu sobre áreas com severas restrições à ocupação. A situação é tão grave e
descontrolada que nem as Áreas de Preservação Permanente (APPs) - protegidas por leis federal
e estadual por serem áreas ambientalmente mais frágeis, como o entorno de rios e nascentes foram poupadas. (htpp://(www.socioambiental.org).
A necessidade de melhoria das condições socioambientais da Guarapiranga é premente,
uma vez que a Região Metropolitana de São Paulo dispõe de poucas fontes de água com
qualidade e quantidade adequadas para o abastecimento público. No início de 2006, foi aprovada
a Lei Específica da Bacia do Guarapiranga (nº 12.233/2006), com o objetivo de proteger e
recuperar a região, constituindo-se no marco inicial para reverter o processo de degradação e
garantir o uso da represa para o abastecimento público.
A Represa Billings é o maior reservatório de água da Região Metropolitana de São
Paulo; sua área de drenagem abrange integralmente o município de Rio Grande da Serra e
parcialmente os municípios de Diadema, Ribeirão Pires, Santo André, São Bernardo do Campo e
São Paulo.
110
111
De acordo com o Diagnóstico Socioambiental publicado pelo ISA em 2000, a Bacia
Hidrográfica da Billings apresenta um quadro preocupante. Apesar de ser protegida pela Lei de
Proteção dos Mananciais desde a década de 70, a região vem sofrendo ao longo dos últimos anos
as conseqüências de um processo acelerado de ocupação irregular, detectado pelo Poder Público,
porém, não suficientemente contido.
A principal tendência identificada no território da Bacia Hidrográfica da Billings, no
período de 1989 a 1999, foi a substituição da cobertura florestal nativa - Mata Atlântica,
fundamental para a produção de água em quantidade e qualidade adequadas ao abastecimento
público - por áreas ocupadas por atividades humanas, principalmente aquelas ligadas a usos
urbanos. Este processo tem ocorrido através do surgimento de novas ocupações, consolidação da
ocupação existente e transformação de áreas rurais em áreas urbanas.
Estima-se que, entre 1989 e 1999, a região da Billings tenha registrado crescimento
urbano da ordem de 31,7%. Mais de 45% da ocupação urbana nos municípios da Bacia ocorreu
em áreas com sérias ou severas restrições ao assentamento: encostas íngremes, regiões de aluvião
ou de várzea que exigem cuidados especiais para implantação de qualquer tipo de ocupação
urbana. Apenas 11,8% da mancha urbana aconteceu em áreas consideradas favoráveis, denotando
a ausência de um processo de planejamento urbano, não obstante estar ocorrendo uma ocupação
extremamente acelerada.
Além destes aspectos, o fato das áreas urbanas não consolidadas terem apresentado uma
porcentagem de crescimento significativamente superior ao das áreas urbanas consolidadas,
respectivamente 47,9% e 27,3% no período, indica que o processo de urbanização está em
expansão na bacia. Sendo assim, o problema tende a se agravar caso não sejam adotadas medidas
urgentes para reverter esta tendência.
111
112
A preservação dos mananciais é crucial para garantir água potável suficiente para a
região metropolitana, cuja população continuará crescendo até 2025, quando, calcula-se, estará
entre 23,5 milhões e 24 milhões de habitantes, segundo a Coordenadoria da Secretaria de
Saneamento e Energia do Estado de São Paulo.
2 - O Processo de Estruturação Metropolitana e o Desenvolvimento Sustentável
A definição institucional da Grande São Paulo enquanto unidade territorial de ação
regional resultou de um processo iniciado em 1967, quando, já em termos de figura jurídica das
regiões metropolitanas, ela surge como objeto de ação para a gestão do Estado.Nesse ano, passa a
ser considerada uma das “unidades territoriais polarizadas” definidas pela reforma Arroba
Martins, enquanto forma de regionalização da gestão governamental e de seu planejamento.
Para uma análise da estrutura urbana da Grande São Paulo, podemos partir de uma
conceituação em termos de arranjo físico dos espaços e instalações presentes no meio urbano,
pelos quais a população e as atividades econômicas implantam-se no território e se articulam
entre si. (COSTA, 1984).
Nessa ótica, três aspectos significativos da estrutura urbana devem ser destacados: como
quadro definidor de “habitat”, cuja permanência e deslocamentos no espaço urbano são
orientados por atividades e instalações vinculadas à estrutura urbana; como quadro condicionador
do sistema produtivo, com aspectos significativos tanto para as empresas como para o poder
Público; e como condicionador da ecologia, à medida que a expansão urbana altera as condições
do solo, hidrologia, cobertura vegetal e qualidade do ar, podendo comprometer os recursos
envolvidos.
112
113
Nesse contexto, cada habitante ou empresa procura se instalar da forma mais vantajosa
possível, dentro de espaços demandados transacionados no mercado, somando-se a demanda de
investidores que procuram capitalizar os efeitos da valorização imobiliária.
Esse processo se caracteriza por seguir, basicamente, a lógica do setor imobiliário, que
divide a terra urbana, a transforma e multiplica o solo pelas instalações e edificações que produz
e, finalmente, incorpora, sob forma de valor imobiliário, os benefícios representados pela infraestrutura pública e pelas vantagens locacionais geradas pelos demais agentes.(BORELLI, 1999).
No caso da Grande São Paulo, a lógica do capital imobiliário apontou para a
predominância do crescimento dos vetores do quadrante Sul, e redundando em inconvenientes
ecológicos.Considerando-se as tendências de ampliação das grandes concentrações industriais,
seu crescimento espontâneo se choca com o interesse público de proteção aos mananciais de água
das represas Billings e Guarapiranga. Essa área ainda dispõe de terra, porém com uso restringido
por lei, constituindo-se em área de conflitos de interesses, situada entre dois mananciais
importantes para o abastecimento da Grande São Paulo. Dessa forma, a área manteve
remanescentes da zona rural; porém, a falta de fiscalização por parte dos governos estadual e
municipal e, sobretudo, a ausência de políticas habitacionais consistentes, voltadas à população
de baixa renda, inviabilizaram o controle da ocupação urbana na região.
Diversos bairros periféricos foram se formando em empreendimentos clandestinos ou
irregulares nas áreas de proteção aos mananciais. Por outro lado, a população que não dispõe de
renda sequer para pagar aluguéis de cortiços ou para adquirir lotes distantes, se assenta em
favelas, de forma a poder morar na cidade sem consumir as mercadorias imobiliárias, através da
ocupação ilegal e precária de terrenos públicos ou particulares.
113
114
Assim, a estrutura do processo de evolução urbana reflete uma dinâmica histórica,
configurada a um nível territorial, condicionada pelo passado e condicionadora do
desenvolvimento futuro.
Essa questão nos remete a uma reflexão em termos do chamado “desenvolvimento
sustentável”, que pressupõe o crescimento para todos e recomenda a redução do ritmo de
exploração da natureza, de forma a legar recursos para as gerações futuras. Para tanto, seriam
indispensáveis mudanças na estrutura de produção e consumo, invertendo o quadro de
degradação ambiental e miséria social a partir de suas causas. Essa concepção de
“desenvolvimento sustentável” articula as idéias de desenvolvimento econômico e capacidade de
sustento.
Na abordagem mais usual, a análise pauta-se na relação do tema ambiental com a
problemática do desenvolvimento, surgindo o conceito de “desenvolvimento sustentado”,
cabendo à ONU o papel de autoridade máxima no que tange às questões ambientais.O Relatório
Brundtland ou “Nosso Futuro Comum”, enumerou sucessos e fracassos do desenvolvimento
mundial. Entre os aspectos positivos, constatou-se: expectativa de vida crescente, mortalidade
infantil decrescente, maior grau de alfabetização, inovações técnicas e científicas, aumento da
produção de alimentos em relação ao crescimento populacional. Por outro lado, foram detectados
pontos negativos, tais como: o aumento da erosão do solo e a expansão de áreas desérticas,
desaparecimento de florestas, poluição do ar crescente ameaçando a camada de ozônio, fracasso
nos programas de desenvolvimento, aumento de toxidade de resíduos produzidos pela indústria e
agricultura nas cadeias alimentares e áreas de mananciais.
Na RMSP, é inquestionável a necessidade de se implementar políticas públicas orientadas
para tornar a cidade sustentável, do ponto de vista social e ambiental. Uma agenda para a
sustentabilidade urbana deve ter entre seus objetivos a geração de empregos com práticas
114
115
sustentáveis e, por outro lado, a participação da população nos processos decisórios, como forma
de se criar co-responsabilidade pelo monitoramento da degradação socioambiental.(JACOBI,
2006).
As áreas de mananciais da Grande São Paulo tipificam uma situação que clama por um
tratamento de política pública embasado na tese do desenvolvimento sustentável, uma vez que a
cidade, como resultante de transformação do espaço natural, é parte desse espaço e está inserida
na própria dinâmica ambiental.
Referências
BORELLI, Elizabeth. A dinâmica do uso e ocupação do solo na bacia do
Guarapiranga.Dissertação de mestrado. EPP Economia Política. PUC-SP. São Paulo:1999.
COSTA, Luiz Carlos.Aspectos do processo de produção das periferias da Grande São Paulo.
FAU-USP. São Paulo:1984.
CUSTÓDIO, Vanderli. A apropriação dos recursos hídricos e abastecimento de água na
RMSP. Dissertação de mestrado. Departamento de geografia. FFCLH/USP.São Paulo:1994.
Fundação SEADE. Perfil Municipal. São Paulo: 2006.
JACOBI, Pedro.Dilemas socioambientais na gestãometropolitana: do risco à busca da
sustentabilidade urbana. Política &Trabalho, ano 23, n.25. João Pessoa .PPGS-UFPb: 2006.
RIBEIRO, Helena & GÜNTHER,Wanda.Urbanização, modelo de desenvolvimento e a
problemática dos resíduos sólidos urbanos. In : RIBEIRO, Wagner Costa (org.). Patrimônio
ambiental brasileiro. São Paulo . Edusp/Impresp: 2003.
RIBEIRO, Wagner.Gestão das águas metropolitanas.In CARLOS, Ana Fani Alessandri e
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino (org.). Geografias de São Paulo: a metrópole do século
XXI.São Paulo. Contexto: 2004.
SABESP. Ecossistema São Paulo: abastecimento de água na região metropolitana de São
Paulo. São Paulo : 1997.
115
116
htpp://www.mananciais.org.br (acesso em 01/07/2010).
htpp://www.socioambiental.org (acesso em 15/08/2010).
116
117
DOES THE GROWTH OF A POST-MATERIALIST MIDDLE CLASS HELP LABOURBASED PARTIES TO OVERCOME THE ‘DILEMMA OF ELECTORAL SOCIALISM’?
Será que o aumento de uma classe média pós-materialista ajuda os partidos da classe trabalhadora
a superar o ‘dilema do socialismo eleitoral’?
Nicolas Fleet 1
Resumo: Este artigo examina analiticamente as oportunidades e limitações das forças trabalhistas construídas em
base a reclamações sobre a redistribuição da renda, para mobilizar as classes médias pós-materialistas construídas
sobre orientações para o reconhecimento social. Este dilema consiste na situação na qual as forças trabalhistas
abandonam suas metas de transformações socialistas em favor da expansão de seus eleitores. Assim, a pergunta que
este artigo tenta responder é se a incorporação de novas classes médias, com valores pós-materialistas, às classes
trabalhadoras contribui a expandir o eleitorado e a fortalecer a identidade das políticas socialistas, ou, se pelo
contrário, têm o efeito de minar as capacidades de mobilização política da esquerda. A principal resposta que este
artigo entrega é que a incorporação de novas classes médias às forças trabalhistas tende a incrementar a
complexidade do dilema eleitoral descrito, abrindo linhas de investigação relevantes sobre a relação entre força
trabalhista, trabalho e instituições políticas.
Palavras-chave: partidos políticos; classe trabalhadora; eleitorado.
Abstract: This article analytically examines the opportunities and limitations for labour based parties, built on
claims for economic redistribution, to mobilize postmaterialist middle classes, constructed around orientations for
social recognition, as a feasible strategy to overcome the dilemma of electoral socialism. Such dilemma consists in
the situation in which labour based parties abandon its goals of socialist transformation in favour of the expansion of
its constituencies. Thus, the question that this paper tries to answer is whether the incorporation new middle classes,
with postmaterialists value orientations, into working class parties contributes to expand the electoral base and to
strengthen the political identity of socialist politics or, conversely, it has the effect of undermining the capacities for
political mobilization of the left. The main answer provided by this article is that the incorporation of new middle
classes into labour based parties tends to increase the complexity of the described electoral dilemma, opening
relevant lines of research on the relation between labour, democracy and institutional politics.
Key words: political parties, working class voters
1
Sociólogo, Universidad de Chile MSc in Political Sociology, London School of Economics and Political Science
Phd © in Sociology, University of Cambridge
117
118
I. Introduction
This essay discusses the role played by emergent new social groups, which have been
defined by their postmaterialist orientations, as a potential constituency for left wing parties. The
question above states the possibility that these new postmaterialist middle classes may take part
in the socialist movement in such a way that a considerable increase in the left wing vote could
be expected, enough to overcome their electoral stagnation and, consequently, to ensure future
triumphs at the booth. Moreover, the question is more precise, and suggests that postmaterialists
social groups, now or in the future, may help labour-based parties to overcome the dilemma of
electoral socialism, that is, the structural limitation faced by socialist parties to incorporate
middle classes voters without losing their working class base, in order to reach the 50 percent
threshold necessary to win a majority government and to legislate society into socialism. A
straightforward answer to this question is no, because, as a hypothesis, the incorporation of a
postmaterialist base, and the satisfaction of their political requirements, may introduce new
inconsistencies between the political parties and their social base, which tend to make the old
dilemma an even deeper one. This answer is build on a three part reasoning: first, postmaterialist
values are not the major predictor of actual voting behaviour, but rather they have been at the
base of new forms of political action and movements, therefore, they explain new ways of
political self-placement. Second, postmaterialists tend to raise new issues that may run counter to
the interests of the established working class base of these parties, if they are espoused by the
traditional socialist or social democrats parties. Third, postmaterialists are not likely to be in
favour of highly institutionalized and hierarchical bureaucratic organizations, such as the state or
mass parties, because those have been historically the main tools of the socialist movement and
the reformism to lead to social changes.
118
119
II. Electoral socialism: the institutional path
Labour parties have been the institutionalization of interests, values and practices of the
working class. Moreover, they have been the main vehicle through which the working class have
solved their current conflicts and furthered ideas of social progress linked to the political goals of
socialism. Political parties offered the workers movement a way to answer the challenges set by
the day-to-day conflicts and, at the same time, to take care of the aims of social change.
Therefore, labour parties have served as a catalyst for class formation and as a tool for political
mobilization. According to Przewroski (1986), without the role played by labour parties, workers
were likely to be organized under other principles of collective identity such as national, local,
confessional, and so forth. Hence, parties were essential in the consolidation of a specific class
consciousness: the meant leap from “class in itself” to “class for itself” in the vision of Lukács.
However, labour parties have not been a frame in order to preserve the purity of class
identity and class interests. Conversely, parties have mediated between the working class and the
rest of society and, therefore, can be regarded as a decisive form of political integration. In the
first place, they have mediated the relationship between the working class and the bourgeois
political institutions: the state. In general, the administrative power can be characterized by the
processing of collective demands as individual ones, which introduces elements of fragmentation
within the labour movement. Second, they have mediated between the working class and other
classes. Alliances accompanied the formation and development of labour parties from the
beginning. According to Esping-Andersen (1988), labour parties were the result of the alliance
between workers and farmers in order to achieve political representation in societies in which the
polity was organized under the principle of ownership. Further alliances buttressed the struggles
119
120
of the working class for political, social and economic recognition since changes in the class
structure of their societies demanded tactical adjustments. Thereby, the main trend has been the
incorporation, within the labour parties, of members from other social classes in order to improve
their constituency to gain in political power, but these very alliances have introduced elements of
disrupt within the working class core. Third, mediation has been introduced within the labour
parties, because in their organizational structure a bureaucracy emerged with the purpose to deal
with the political tasks. “A relation of representation is thus imposed upon the class by the very
nature of capitalist democratic institutions. Masses do not act directly in defence of their interests;
they delegate this defence”. (Przeworski, 1986: 14)
As Offe describes in relation to the analogous case of unions:
“for the sake of their power, unions are forced to maintain a precarious balance between
mobilization of resources and mobilization of activity, between size and collective
identity, and between bureaucracy (which allow them to accumulate power) and internal
democracy (which allow them to exercise power)” (Offe, 1986: 187)
In a way, those features of labour parties can be regarded as the result of their
involvement into the institutional politics of capitalist society. The resign upon direct action of
the working class against the capitalist society implies the submission of the labour parties under
the rules of the political exchange, the securing of immediate benefits for the social base in order
to keep the solidarity of class, and the following of a reformist path. Admittedly, reformism can
not be automatically regarded as a kind of betrayal of the socialist goals. For instance, “the
Swedish and Austrian Marxist believed that meaningful reforms ‘within the confines of
capitalism’ could accelerate socialism, if only a way could be found to nurture the latent
socialization of capitalist development” (Esping-Andersen, 1988: 9). Thus, reformism and
socialism are in a continuum. However, it is difficult to discuss whether some concrete policies
are actually leading to socialism or they strengthen the capitalism system, because that kind of
120
121
discussion belongs to the practical realm and its attempts to achieve equilibrium between tactics
and strategy. What is actually part of the discussion is that a necessary consequence of social
reformism and the incorporation of labour parties into the capitalist institutions is the ‘dilemma of
electoral socialism’.
Soon after the first expansion of the social democrat voting between 1900 and 1920, when
the Danish labour party won a European high 46.1 of the popular vote 2, there was a clear
awareness about the ceiling reached in the growing of the working class after the process of
industrialization. Moreover, “the prediction that the displaced members of the old middle classes
would either become proletarians or join the army unemployed did not materialize” (Przeworski,
1986: 23). In no country the 50 percent threshold was obtained so the battle of numbers was a lost
cause. The electoral dilemma appeared when labour based parties decided to seek for electoral
support beyond the working class. In order to reach a majority, labour parties found allies in the
middle classes. The electoral dilemma implies the erosion of the working class identity of the
party among new social groups, which shared with the original members the conditions of
individuals, consumers, citizens, but not of workers. Among the new targets of the labour parties
were new middle class (clerical, technical and sales personnel in private and public sectors),
young (students), elderly (retirees) and housewives. This broader basis of the party allowed them
to enforce their electoral power but, at the same time, diluted the main goals of the party into
current bargains and political reforms. The ‘class’ character of the party was under question: the
‘labour party’ became the ‘people’s party’.
2
In Przeworski (1986) page 19 there is a summary about the electoral results obtained by social democrat parties in
Europe during the first twenty years of the twentieth century.
121
122
Two immediate consequences derive from this dilemma. The first one is that the political
appeal of the party moves from a class based one, therefore ‘collective’, to other which is prone
to highlight the individual benefits which can be gained as a result of the militancy or, at least,
from electoral support. This movement can be read as the de-radicalization of the demands of the
party, which in the first place were strong claims for material redistribution and social change,
thereafter moved towards a form of retrenchment of the welfare state. The second one is what has
been called electoral trade-off, which is the exchange of voters to the party from the working
class to the middle class. In other words, the trade-off supposes that it is expectable that the
inclusion of middle class members in the labour party may suspend or alter the satisfaction of
interests of the working class constituency, in such a way that it may lead to a relative exodus of
workers from the party supporters. The trade-off perspective implies that the main goals or
interests of both classes are somewhat at odds so a political alliance is a complex task. Thus,
when a party offers to promote or protect specific economic interests of other groups it must
partially sacrifice some workers interests.
Nevertheless, according to Diane Sainsbury (1990) the trade-off effect is not that drastic.
The case of Scandinavian countries, specifically the case of Sweden, shows that even when a
broader alliance with the middle classes has been fostered by the labour parties the social base of
workers remained important. According to Sainsbury, the Swedish case exhibits an electorate
who has not lost its political class identification. This shows that the opposition of interests
between middle classes and workers is not a necessary fact. They can coincide in the same set of
policies and institutions. In the same vein, Przeworski 3 has stated that the particular interests of
the working class do not necessarily coincide with the socialist project. Workers can choose to
3
A discussion in this direction can be found in Przeworski “Material interests, class compromise, and the transition
to socialism”, published in the compilation, Roemer (ed): “Analytical marxism” (1999)
122
123
satisfy their welfare requirements under capitalism and, thus, they can reach a wage agreement
with the bourgeoisie. Furthermore, this wage agreement can take the form of political control
over part of the profits. This is when the class compromise of the welfare state takes place.
So, what is the electoral dilemma if it is not solely the electoral trade-off between the
workers and the middle classes? “The closer the party is to being a majority party, the more likely
it is to have dropped its commitments to a socialist transformation” (Koelble, 1992: 363).
Therefore, the electoral dilemma is “the abandonment of socialist policies to gain voting support
from allies” (Koelble, 1992: 363). In this manner, the dilemma of electoral socialism is not just
the special effect caused by particular party tactics, rather it is a function of electoral politics in
general, which is not likely to overcome merely through the inclusion of new segments of the
middle classes, such as the postmaterialist new middle classes. In the words of Przeworski:
“participation in electoral politics is necessary if the movement for socialism is to find mass
support among workers, yet this very participation appears to obstruct the attainment of final
goals” (Przeworski, 1986: 13).
III. Postmaterialist constituencies and the riddle of electoral socialism
Since the 1970’s, Ronald Inglehart has been studying the gradual shift from materialist to
postmaterialist
values
in
age
cohorts
among
industrial
countries.
The
distinction
materialist/postmaterialist has been constructed upon a battery of questions that assess the value
given by respondents to ‘material security’ or ‘social solidarity’ respectively. The hypothesis is
that, because of the sustained levels of economic welfare and material security reached in these
countries during the past decades, the materialist orientations toward economic growth as a
precondition of social prosperity have been displaced of the political priorities of the new
123
124
generations vis-à-vis the increasing demands for greater autonomy, democracy and social
equality. In the opinion of Inglehart these new postmaterialists seem to be forming a new class,
which actually constitutes a new source of political mobilization. Furthermore, their
postmaterialist orientations have been traced at the base of the new social movements.
Inglehart’s conclusions have two implications for this discussion: on one hand, that
politics organized around scarcity or the redistribution of wealth, which constituted the classic
economic policies of the left, are something from the past: “[…] as a society moves closer to an
equal income distribution, the political base of support for further redistribution becomes
narrower” (Inglehart, 1990: 252). Consequently, political conflicts that were the expression of the
class cleavage fade and yield to new kind of conflicts, related to the materialist/postmaterialist
cleavage. On the other hand, postmaterialists seem to be concentrated in the middle classes and
they seem to have a left wing sensibility. Thus, despite the fact that middle classes have been
largely associated with the right, and that postmaterialism is, in a way, opposed to left wing
policies, such as state intervention in the economy, these new middle classes represent an
opportunity for increased political mobilization of the left. Is this resurrection possible? Is this
postmaterialist middle class the one who will overcome the electoral stagnation of socialist
parties? Is the 50 percent threshold finally going to be surpassed, with the help of these new
constituencies, and thus the whole society legislated into socialism? Three main factors suggest
that this is not the case.
A. Postmaterialism and party alignments
According to the empirical data displayed in “Culture shift in advanced industrial
society”, actual voting behaviour in terms of left/right polarization can mainly be explained by
124
125
religion, then social class and finally the values of the respondent (Inglehart, 1990: 309). Hence,
postmaterialist values are not a strong predictor for voting behaviour and, according to Inglehart,
this happens because the electoral patterns remain attached to party loyalties. What it is even
more interesting, since postmaterialists seem not to be linked to specific party loyalties toward
the left, is that the electoral support for the socialist or communist parties have not been
significantly benefited from the raise of postmaterialist constituencies:
[…] despite their middle classes origins, the postmaterialist electorate was shifting to the
left. But since 1973, socialist have gained very little and communist have actually lost
ground among postmaterialists. By far the most impressive gains have been made by the
environmentalist parties, which have now emerged as the prototypical postmaterialist
parties (Inglehart, 1990: 280).
In view of the fact that socialist parties have been the major left wing parties, and
therefore, those who have been closer to reaching majority, the mobilization of postmaterialist
constituencies in their favour may be regarded as an additional support in order to overcome the
electoral dilemma. However, postmaterialists tend to vote for environmentalist parties, such as
the case of the Socialistisk Folkeparti in Denmark and Norway, which has caused divisions in the
electoral base of the Social Democracy. Postmaterialism plays a role in the decomposition of the
relation between the party and its social base: ecologists left parties with upper middle classes
support, or nationalist and extreme right parties with working class support are some expressions
of this phenomenon.
B. New issues
Since the sixties, the rise of issues related to the environment, nuclear policies, gender and
so forth has explained the emergence of new parties of the left. This emergence, in turn, has
125
126
threatened the traditional left. Any response on behalf of the social democrats carried
consequences:
[…] the attempt to move left provoked losses to the right and, even more important,
helped unify the traditionally divided bourgeois parties against social democracy. The
room for social democratic maneuver therefore remained narrow (Esping-Andersen,
1988: 95).
Thus, the rise of new issues has worsened the electoral dilemma for the traditional left
wing:
[…] when postmaterialist issues (such as environmentalism, the women’s movement,
unilateral disarmament, opposition to nuclear power) become central, they may stimulate
a reaction in which part of the working class sides with the right to, reaffirm the
traditional materialist emphasis on economic growth, military security and domestic
order(Inglehart, 1990: 259).
The account given by Koelble shows that the electoral stagnation of labour based parties
during the eighties can be explained by their incapacity to assume a position and, thereby, to
design policies according to these new issues. Nonetheless, the reorientation of the left in this
direction may induce the labour parties to run against the established interests of their working
class base. The dilemma remains, and so far takes the form of an electoral riddle: it implies not
only pressure to take position over different issues but to do it in such a way that ensures not
loosening the working class vote at the expender by the opportunistic incorporation of new
political orientations. Still, this effect is not a mere result of the appearance of postmaterialists in
the political spectrum. It is a practical consequence of the assumption of the left, that places
mainly upon the emancipate role of industrial labour and the development of the technology of
productive forces the platform for the political socialization of the working class and the trigger
for the transformation into socialism. According to Offe, the left emphasis on the materialist pole
comes from the relative economic insecurity of workers, in a way that their materialistic claims
126
127
are the centre of gravitation of any other orientation. Thus, the rise of postmaterialist value
orientations can be read as the rebirth of forgotten working class issues, and of the forms of
action suitable to put those issues in practice. In this sense new social movements correspond to
“some of the non institutional forms of politics used earlier by the working-class movement
itself” (Offe, 1987: 79).
C. Positions toward the role of the political institutions in social change
Finally, the third reason why postmaterialists are not to support electoral socialism is due
to the disagreement on the role played by administrative intervention on society:
Its adherents [of postmaterialism] tend to favour social change; and almost any program
of social change presupposes that the government will be the instrument to bring it
about. But the postmaterialist left -far more that the traditional left- regards the state as a
potential instrument of oppression and exploitation. (Inglehart, 1990: 304).
Indeed, the illusion of the social democracy was that the use administrative means could serve as
a neutral mean to reach an emancipated form of life. But, “the absorption of the political parties
by the state is accompanied by the displacement of democratic formation of political will into a
largely programming political system” (Habermas, 1990: 13). Moreover, postmaterialist tend to
reject their participation within highly bureaucratized and hierarchical organizations and, as it has
been explained above, this is one of the mediations that the political participation of the workers
movement into the capitalist order introduces.
To conclude this point, there is one even more fundamental opposition between
materialists and postmaterialists on the left. While the socialist parties have been in favour of the
127
128
intervention of the state in the economy, and the nationalization of the means of production,
postmaterialists have largely rejected this as a form of falsified socialism which sets
administrative obstacles to the goal of democratic socialization of production.
Conclusion
To the question whether the new postmaterialist middle classes will help the labour-based
parties to overcome the dilemma of electoral socialism, the answer must be no. This answer is not
because political similarities were not found between the traditional left and the new
postmaterialist left, but rather because they differ in how to initiate social change. The electoral
dilemma is, therefore, not only a matter of the size of the constituency but of the mobilization of
worker interests through mass political organizations and capitalist political institutions. The
electoral dilemma implies the recognition that the interests of the workers do not necessarily
coincide with the socialist goal.
The materialist and postmaterialist lefts are different: the first is defined as a social actor
in terms of economic rationality, while the second, over secure life conditions, has sought for
other forms of political definition. Still, similarities exist between these two groups. The rejection
of the colonization of the market and the administrative power over social solidarity are but a few
examples of this common ground. However a political synthesis in this direction can only be
attained on basis of broad social security and it can be expected that such a convergence will not
follow the path of mass parties.
128
129
References
Esping-Andersen, Gosta: Politics against markets. New Jersey: Princeton University Press,
1988.
Habermas, Jürgen: “What does socialism mean today? The rectifying revolution and the
need for new thinking for the left”. New Left Review number 183; London,1990.
Inglehart, Ronald: Culture shift in advanced industrial society. New Jersey: Princeton
University Press,1990.
Koelble, Thomas: “Social democracy between structure and choice”. Comparative Politics,
vol. 24, number 3, 1992.
Offe, Claus: Disorganized capitalism: contemporary transformations of work and politics.
Cambridge: Polity.
Offe, Claus: “Challenging the Boundaries of Institutional Politics: Social Movements since
the 1960s” in Maier, Charles: Challenging the boundaries of the political. Cambridge:
Cambridge University Press, 1987.
Przeworski, Adam: Capitalism and social democracy. Cambridge: Cambridge University
Press,1986.
Przeworski, Adam: “Material interests, class compromise, and the transition to socialism”,
in Roemer, John (ed.) Analytical Marxism. Cambridge: Cambridge University Press,1999.
Przeworski, Adam and Sprague, John: Paper stones: a history of electoral socialism. Chicago:
University of Chicago Press,1986.
Sainsbury, Diane: “Party strategies and the electoral trade-off of class based parties. A
critique and application of the ‘dilemma of electoral socialism’”. European Journal of
Political Research, vol. 18, number 1, 1990.
129
130
FEMINISMO DEMOCRÁTICO: POR UMA CIDADANIA PLENA E PARTICIPATIVA.
Feminism democratic: for full citizenship and participatory
Carla Christina Passos 1
Resumo: A busca pela cidadania plena foi um fator propulsor para debates no movimento feminista desde a sua
primeira geração nos séculos XVIII e XIX. Assim, o movimento feminista fomentou questionamentos sobre a
construção da estrutura do capitalismo patriarcal para pensar sobre quais os obstáculos que interferem na inclusão de
novos sujeitos para as práticas políticas contemporâneas.
Palavras chaves: movimento feminista, patriarcado, cidadania.
Abstract: The quest for full citizenship was a key driver for discuss in the feminist movement since its first
generation in the XVIII and XIX centuries Thus, the feminist movement at that time and now raise questions about
the construction of the structure of patriarchal capitalism, to think about what obstacles that interfere with the
inclusion of new subjects for contemporary political practices.
Key words: feminist movement, patriarchy, citizenship.
I. A BUSCA PELA CIDADANIA
O Estado liberal como “república representativa” é composto por três instâncias de poder: o
executivo (responsável pela administração dos negócios e serviços públicos), o legislativo
(encarregado pela elaboração das leis) e o judiciário (magistrados encarregados pela execução
das leis). Esse corpo político, de acordo com Chauí (2000, p.522), possui também um grupo de
pessoas, militares profissionais- Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) e forças
auxiliares (polícias e corpo de bombeiros), que são destinados a garantir a ordem interna, e a
defesa externa quanto à soberania do país e sua territorialidade.
A origem do liberalismo legitimava a ação e a prática política limitada a uma
representação dos cidadãos considerados como sujeitos universais: homens livres, independentes
e possuidores de propriedade privada. O pressuposto da liberdade individual e da igualdade
rejeitava os argumentos da doutrina feudal que subordinava a vontade através de Deus ou de seus
1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, Gênero e Feminismo
(PPGNEIM) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/Universidade Federal da Bahia. Mestre em História de
Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]
130
131
representantes na terra: a Igreja Católica ou o rei. No contrato social, segundo Rosseau (2006), o
indivíduo livre deve concordar em ser subordinado de outro homem por sua livre vontade.
Todavia, para organizar a base política do pensamento liberal, os movimentos revolucionários do
século XVIII e XIX suscitaram um discurso de mudança na vida social, porém a lógica da
liberdade civil e por igualdade se sujeitava apenas aos interesses da classe burguesa ansiosa em
expandir suas relações econômicas mercantis e comerciais e assim, necessitava de uma
prerrogativa que ousasse transpor os limites dos costumes e tradições seculares. Esse conceito
deu origem ao sujeito universal destinatário do poder político que por intermédio do contrato
social, ratifica a existência de relações sociais sustentadas por um Estado, no qual os
representantes da sociedade civil organizada pudessem mediar e não intervir nas relações
contratuais da própria sociedade. Em defesa da democracia liberal, os representantes eram eleitos
pelo voto censitário, ou seja, apenas aqueles possuidores de renda ou propriedade poderiam votar.
A historiografia do conceito de cidadão inclui o pensamento do discurso iluminista que
considerava a cidadania como uma prerrogativa do masculino. “Na medida em que a cidadania
era ainda função da individualidade, ela só podia ser vista como uma prerrogativa dos homens”
(SCOTT, 1995, p.16).
As teorias políticas da Revolução Francesa conceituavam o sujeito homem, heterossexual,
branco, burguês como universal, derivando assim, a essência singular ao sexo masculino, e dessa
abstração seria possível a igualdade política, social e econômica que excluía as mulheres, na
condição de que elas seriam beneficiadas através de seus esposos. Contudo, paradoxalmente, essa
definição de igualdade política excluía também aqueles que não possuíam características julgadas
necessárias de acordo com gênero, raça/etnia e classe.
Portanto, estavam excluídos de representação política, não só as mulheres, mas também
todos aqueles que não possuíam propriedade ou renda, ou seja, a maioria da população. A
131
132
contradição do discurso da representação política e as idéias de liberdade, igualdade e
fraternidade, preconizadas pela Revolução Francesa, assim como, os movimentos revolucionários
burguês dos séculos XVIII e XIX tanto na Inglaterra, França e Estados Unidos, fomentou não só
a consolidação da burguesia como classe dominante, mais também as lutas sufragistas e pela
ampliação da cidadania plena para os grupos excluídos e sujeitos a dominação, negros, asiáticos,
mulheres e homens que desejavam instituir uma sociedade com justiça social e consciência
política.
...eis por que, em todas as revoluções burguesas, vemos sempre acontecer o mesmo
processo: a burguesia estimula a participação popular, porque precisa que a sociedade
toda lute contra o poder existente; conseguida a mudança política, com a passagem do
poder da monarquia à república, a burguesia considera a revolução terminada; as
classes populares, porém a prosseguem, pois aspiram ao poder democrático e desejam
mudanças sociais; a burguesia vitoriosa passa a reprimir as classes populares
revolucionárias, desarma o povo que ela própria armara, prende e tortura e mata os
chefes populares, e encerra pela força o processo revolucionário, garantindo, com o
liberalismo, a separação entre o Estado e a sociedade.
( CHAUÍ, 2000, p.524).
De acordo com Patteman, a cidadania é uma categoria patriarcal, uma vez que a imagem
do cidadão foi construída dentro do terreno masculino. A cidadania obtida nas democracias
liberais reproduz uma cidadania forjada dentro da estrutura patriarcal. Nessa estrutura, as
qualidades e atributos femininos são desvalorizados. A participação da mulher no mundo público,
ainda teria a interferência, de acordo com Patteman- com o dilema de Wolstonecraft:
...exigir a igualdade é aceitar a concepção patriarcal de cidadania, a qual implica que as
mulheres devem ser parecidas com os homens, enquanto que insistir em que os
atributos às capacidades e atividades distintas das mulheres seja dada expressão e sejam
forjadores de cidadania é pedir o impossível, posto que tal diferença é exatamente o que
a cidadania patriarcal exclui ( MOUFFE, 1993, p.37).
Não obstante, a autora argumentava que tal dilema era falso, pois ao compreender a
questão de igualdade versus diferença, nos levaria a crer em uma essência homogênea de mulher,
bem como na essência homogênea de homem. Todavia essas entidades não são idênticas ou
opostas e nem evidenciam a exclusão de uma série de relações existentes de classe, raça,
132
133
orientação sexual, ou de localização geográfica. A dimensão das experiências individuais na
democracia resulta em acrescentar não só a diferença sexual, mas incorporar o reconhecimento
das multiplicidades das variadas relações sociais originadas pela interseccionalidade com o
conceito de cidadania. Desse modo, fica sem sentido, de acordo com Vargas (1996, p.33), afirmar
a diferença a custo da igualdade como pares opostos. Ainda segundo Vargas ao citar Mouffe,
descreve que a autora “aposta na construção de uma alternativa democrática cujo objetivo seja a
articulação de distintas lutas ligadas as diferentes formas de opressão”. A presente discussão
ainda é retratada por Scott ao resgatar uma cuidadosa análise do binômio: igualdade versus
diferença, quando se reporta a crítica da teórica Martha Minow para rechaçar a idéia do dilema da
diferença.
Minow afirma que ignorar a diferença no caso dos grupos subordinados ”deixa em
seu lugar uma neutralidade defeituosa”, mas centrar-se na diferença pode acentuar o
estigma do “desvio.” Tanto centrar-se na diferença como ignorá-la provocam o risco de
recriá-la. Este é o dilema da diferença. ( SCOTT, 2001, p.211).
A autora ainda nos alerta sobre a necessidade de um olhar crítico para evitar as
permanências e as divergências da construção do significado desses conceitos, assim, uma
resposta mais apropriada para o movimento feminista seria desvelar “a relação de poder
construída ao colocar a igualdade como antítese da diferença”, e principalmente, recusar os
binarismos essencialistas nas ações políticas. A condição alternativa para escapar do binômio
seria resgatar o significado da diferença própria nas relações construídas pela igualdade, ou seja,
a compreensão das diferenças culturais, a constituição das identidades individuais ou coletivas, o
reconhecimento da natureza complexa dos contextos discursivos (SCOTT, 2001, p.222). O
resgate da apropriação da diferença evita categorias absolutas e universais, além das explicações
simplistas da construção binária, "a renúncia à verdade essencial” e em troca, validarem a
133
134
articulação de uma prática política de mulheres e homens além dos arquétipos desenvolvidos
sobre elas, e mesmo sobre eles.
Ávila (2001, p.31) também pressupõe que o conceito de patriarcado fundamenta a
referência analítica das relações de poder e domínio das estruturas sociais e desiguais que
diferenciam mulheres e homens, evidenciando a opressão e sujeição de mulheres e todos os
sujeitos marginais à condição de dominação. A influência do patriarcado na sociedade
contemporânea tem origem no período colonial, no Brasil, sofreu transformações e adaptações no
sentido de manter em sua constituição ideológica o discurso da naturalização subjetiva da vida
social e justificar a exploração de classe, raça/etnia e de gênero. O patriarcado moderno se orienta
por intermédio do contrato sexual, onde estão demarcadas os papéis a serem desempenhados por
homens e mulheres e assim, proporciona uma contínua dominação dos homens e a sujeição das
mulheres.
No estado natural, todas as mulheres se tornam servas, e todas as mulheres são
excluídas do pacto original. Isto significa que todas as mulheres deixam de se tornar
indivíduos civis. Nenhuma mulher é sujeito livre.
( PATTEMAN, 1988, p.80)
A questão do patriarcado, na sociedade civil, retoma a legitimidade do poder de um
indivíduo, homem, perante a sujeição e a opressão de outro, a mulher. O direito da esposa sujeita
a dominação do marido foi ratificado com o contrato sexual, desse modo, o matrimônio outorga
direitos relativos ao poder conjugal, e não político, originados pela ordem natural da vida. Para os
teóricos do contrato social, as mulheres teriam condições de participar do contrato de casamento,
mais eram inapropriadas a participarem de outros contratos civis. Diante disso, para a esfera
privada é atribuído um significado apolítico, independente das relações contratuais onde
participam dois indivíduos dispostos a estabelecer vínculos contratuais. Apenas a esfera pública
garantiria a possibilidade de firmar contratos entre indivíduos iguais. A considerar o pressuposto
134
135
do contratualismo que entende que o indivíduo livre detém, pelo menos, a posse de sua própria
pessoa e pode assim, ser detentor de propriedades e travar relações políticas e sociais dentro de
seu interesse pessoal.
A partir das brechas evidenciadas pelas contradições do pensamento iluminista, as
mulheres puderam se envolver em diversos movimentos políticos que reivindicavam,
inicialmente, a possibilidade do sufrágio universal e educação igual para homens e mulheres, e
tais movimentos deram origem ao movimento feminista que levantou questões pertinentes para a
agenda política dos grupos excluídos, e ainda agregou diversas lutas por diferentes objetivos.
Cada organização quer seja o movimento de mulheres rurais ou de mulheres negras ou de
movimentos populares, segundo Ávila, exige um discurso dialético que comporta as
transformações históricas das relações sociais de gênero. Todas as discussões dos movimentos
feministas são fortalecidas por coalizões estratégicas na reivindicação por justiça social, bem
como na mudança de símbolos e signos que estruturam a vida social. Uma das reflexões
relevantes do movimento feminista é a própria concepção de igualdade. A luz do conceito
originário do pensamento liberal, as relações hierárquicas baseadas pelo sexo são consequências
de uma ordem natural com papéis definidos para homens e mulheres, e culturalmente
compartidos e legitimados pelas gerações. Dessa forma, foi definida a esfera pública/política e a
esfera privada/doméstica como espaços dicotômicos e o caminho da cidadania foi construído com
a privação da participação política em favor de um sujeito masculino, branco e heterossexual.
A igualdade pretendida pelas mulheres que se organizaram politicamente nos séculos
XVIII e XIX foi, sobretudo, fundada no direito de serem iguais aos homens. Uma
mudança radical trazida pelo feminismo contemporâneo é a desconstrução dessa
igualdade. (ÁVILA, 2001, p.21).
Uma apropriação significativa das teorias feministas, de acordo com Ávila, seria a
transformação do próprio conceito de cidadania em um processo dialético de mudança social e a
135
136
adesão das mulheres, assim como, na redefinição do sujeito, congregando a multiplicidade de
identidade de homens e mulheres das diversas classes sociais, raça/etnia, orientação sexual e
localidade geográfica. Na nova dimensão, a cidadania se resignifica como um “conjunto de
direitos civis, políticos e sociais, que foram conquistados, nessa ordem, historicamente” (ÁVILA,
2001, p.23). A base da mudança social tem o enfoque de tornar possível a busca da cidadania
política, garantindo a conquista pelo exercício do debate na recomposição das forças políticas.
II. CIDADANIA DIFERENCIADA
A dificuldade em efetivar a transformação social se dá por força da lógica liberal que
sustenta as desigualdades sociais e sua subseqüente hierarquização das relações sociais e
culturais. As teorias feministas vêm analisando e criticando o Estado liberal e suas condições de
cidadania, aponta as interjeições e incongruências contra a uma prática política consciente. A
principal contradição do liberalismo faz referencia a um discurso que pressupõe que a
universalidade possa dar conta do ideal de acesso à cidadania, entretanto, o sentido de generalizar
as relações sociais, na realidade, neutraliza as ações políticas e cria obstáculos ao invisibilizar a
diferença na perspectiva democrática. A experiência da cidadania, indubitavelmente, também
implica em garantir a titularidade dos direitos civis para todos.
Na verdade, o poder da democracia reside na capacidade que tem para transformar o
indivíduo enquanto professor, comerciante, executivo, criança, parente, trabalhador
artista, amigo ou mãe, em um tipo especial de ente político, um cidadão entre outros
cidadãos. Assim, a democracia nos oferece uma identidade que nem o liberalismo, com
sua propensão a contemplar o cidadão com indivíduo com direitos, nem o
maternalismo, com a atenção que presta a maternidade, nos dão (DIETZ, 2001, p.22).
O modelo do pensamento moderno político, conforme analisa a autora Young (1996,
p.99), advoga em favor da cidadania universal. Tal posicionamento busca uma cidadania que
136
137
possa transcender a particularidade e a diferença. Todavia, as leis e regras que compreendem a
universalidade apenas cegam as diferenças de grupos ou individuais. Não obstante, os
movimentos sociais do século XX apontam que apesar da suposta ampliação dos direitos não
resultou em ampliação de igualdade e justiça para os grupos excluídos, sendo assim, considerados
como cidadãos de segunda classe. Young (1996) acredita que o conceito de cidadania
diferenciada possa incluir a participação das pessoas para uma cidadania plena.
Segundo Dietz (2001) não devemos sugerir que as feministas liberais atuam a partir de
uma questão infrutífera, ou seja, o mito da igualdade de oportunidades, contudo, ao se valerem do
gênero como categoria de análise favorecem atuações políticas positivas, como a lei Maria da
Penha, salários equivalentes ou a ampliação do mercado de trabalho, todas essas práticas políticas
outorgadas à condição do liberalismo. Entretanto a autora expõe que as críticas das feministas
marxistas que compreendem o patriarcado como um sistema de poder capitalista, que protege e
legitima uma estrutura política do Estado liberal, predominantemente masculino, perpetua a
opressão e a exclusão das mulheres. Na análise do feminismo marxista, a derrota do Estado
liberal possibilitaria uma mudança social com a apropriação dos meios de produção e com fim
das relações de opressão. Porém, Dietz (2001, p.23) reconhece que essa análise é ainda
incompleta na medida em que a liberdade conquistada pelo marxismo emerge das relações
econômicas e necessariamente não oferece transformação na autonomia e liberdade para os
cidadãos, tanto para as mulheres quanto para os homens. Dessa forma, a autora considera que
existe um significado a mais na política feminista e sua relação revolucionária com o Estado
liberal. Uma valiosa contribuição da análise crítica feminista seria a possibilidade de conceber a
política como um compromisso de ação coletiva. Destarte envolve a consciência e o debate
político frente às questões da comunidade ou em favor da própria nação. Na verdade, a
concepção de democracia dá oportunidade a um amplo debate e se orienta em valores que
137
138
favorecem o respeito mútuo como liberdade positiva e fomenta o autogoverno compartilhado
com todos os cidadãos.
[...] o compromisso feminista com a cidadania democrática não deve se confundir nem
como a política liberal de grupos de pressão e governo representativo, nem com a idéia
de que depois da vitória ou derrota, a respeito de um assunto, terminou o jogo e
podemos “voltar para casa”.
(DIETZ, 2001 p.23).
Não obstante, Ávila ratifica tal afirmação, argumentando que o projeto de mercantilização
da cidadania, cria a ilusão da igualdade de oportunidade para todos e todas, sendo assim, apenas
necessária a “competição saudável”. A ilusão se dá em entender a competição como justa, pois de
acordo com as reais regras do mercado mesmo com o discurso que prega a igualdade, na prática,
os significados culturais e sociais são hierarquizados e diferenciam o acesso às oportunidades
para ricos e pobres, negros e brancos, norte (Europa e EUA) e sul (África e América Latina),
mulheres e homens. O processo de politização dialético deverá levar em conta a construção de
novos significados de cidadania e que prevaleçam as novas possibilidades de solidariedade e de
justiça social. Essas idéias auxiliam na compreensão da invisibilidade das mulheres como
cidadãs, assim, evidenciam também a razão da não participação, ou melhor, da invisibilidade da
mulher nos cenários de guerra. Para tanto reconhecemos a possibilidade da incorporação de uma
cidadania diferenciada o que torna visível “as mulheres como mulheres” bem como tudo que
simbolizam. Todavia, não poderemos naturalizar interpretações biológicas de homens e mulheres,
pois elas interferem no reconhecimento da condição feminina “como humanidade comum de
homens e mulheres”. Mouffe argumentou que a capacidade de dar a vida através da maternidade
deveria ter a mesma importância política de comprovar a verdadeira cidadania: a vontade de lutar
como soldado e morrer pela pátria (1993, p.37). Destarte, o reconhecimento da cidadania
diferenciada da mulher possibilitaria agregar valores como rusticidade, espírito de corpo e
iniciativa como capacidades viáveis a concepção de ambos os sexos, abandonando o sujeito
138
139
universal masculino para inserir uma experiência corpórea que compartilhe características a
serem consideradas como comuns e que reduzam os antagonismos homem/mulher.
O Estado liberal como mediador dos conflitos e regulador das ações dos indivíduos que se
dispõem a perseguir interesses privados atenderiam a tradição republicana, pois situa as
atividades de cidadania apenas na esfera pública, ou mesmo a interesses particulares. Para
Rosseau, os cidadãos ao participarem da discussão pública, transcenderiam a suas vidas
particulares e buscariam adotar decisões que influenciassem o bem comum. A cidadania seria
como um domínio e controle das necessidades e desejos individuais. Contudo, as pressões de
interesses particulares acabam por adotar um discurso com valores e normas masculinas, fundado
por homens, em torno de uma universalidade metafórica articulada pela razão despojada de
emoções.
as virtudes da cidadania como expressão da universalidade da humanidade, excluíram
conscientemente a algumas pessoas em função de que não se adaptaram ao ponto de
vista geral, ou bem porque sua inclusão dispensaria e dividiria pessoas e assuntos
públicos ( YOUNG, 1996, p.102).
Scott (1992, p.37) ainda refere que as feministas acusaram que tanto a Revolução, quanto
a “primeira, segunda e terceira repúblicas de ter traído os princípios universais de liberdade,
igualdade e fraternidade ao recusar o direito à cidadania para a mulher”. A exclusão tem por base
a diferença sexual entre homens e mulheres, de acordo com Rosseau (apud SCOTT, 1992, p.34),
o homem deveria perseguir os seus desejos, e a mulher deveria reprimi-los para salvaguardar os
interesses da harmonia social. Dessa forma, o conceito de cidadania passou a excluir os não
indivíduos, como as mulheres. Rosseau estabeleceu em seu livro “Do contrato social”, o princípio
de fortalecer o Estado com a união de homens com objetivos comuns, e destarte, uma sociedade
que pudesse se defender e se proteger em harmonia através de um pacto social.
139
140
De forma ambígua, a sociedade contemporânea ao conceder a ampliação de uma
sociedade de bem-estar enfraqueceu o envolvimento individual nas práticas políticas, reduzindo o
debate dos grupos de oprimidos e fragmentando a política para assuntos de interesse a
determinados grupos de pressão, e assim, estabelecer prioridades para lograr nas ações coletivas.
Para Young (2006, p.100), esse controle facilita o domínio dos interesses empresariais, militares
e demais interesses hegemônicos.
A concepção do Exército Nacional constituído, em sua origem, por homens que
defendiam a manutenção e soberania do Estado e incorporava cidadãos que pudessem lutar por
seu país. Essa visão androcêntrica de cidadania excluiu a mulher na organização da composição
da estrutura política e assim, o acesso às decisões do poder quer seja nas instâncias do executivo,
legislativo ou judiciário, mantendo uma imagem ideal quanto a necessidade de proteção e
subordinação, características singulares do contexto doméstico.
Os homens aptos a defender o Estado, eram capazes de atender o chamado nacional. No
conceito de soldado-cidadão, o direito de combater em favor da nação como o direito do voto
estabeleceria o direito de participar da construção do Estado, emergindo como marca indelével da
cidadania e da participação efetiva da democracia política. Para a defesa do Estado, ou para a
manutenção de sua soberania, a missão das Forças Armadas reforça os ideais de nacionalidade.
O conceito do profissional militar sempre esteve ligado aos padrões de força física,
virilidade, coragem, respeito, austeridade como traços que norteiam a figura do militar. Diante do
conceito culturalmente androcêntrico, homens e mulheres são biologicamente definidos. Esses
arranjos sócio-culturais se refletem na organização da divisão do trabalho em que observamos as
relações de dominação e subordinação entre o homem-mulher, e representava uma imagem
feminina correlacionada à reprodução e trabalhos domésticos que tende a explicar como natural o
caráter da relação mulher-esfera privada. (CARREIRAS, 1997, p.45).
140
141
Silveira (2003, p.3) relata que, inicialmente, as organizações burocráticas sofreram
influência direta das instituições militares. Entretanto, com as transformações mundiais pós
Guerra Fria, essas organizações passaram a influenciar significativamente a instituição militar.
Em conseqüência houve um processo de civilização, ao aproximar as necessidades técnicoadministrativas da instituição militar às atividades profissionais civis. Assim, diante das
mudanças no mercado de trabalho, uma das transformações diretas foi à inserção da mulher nos
diversos papéis da sociedade, não só em atividades compreendidas como peculiares às
características femininas, mas também em atribuições que outrora era desempenhado
exclusivamente por homens. Destarte, poderíamos pressupor que com a inserção das mulheres
nos variados setores do mercado de trabalho, houve uma significativa mudança em sua cidadania
em razão de uma participação mais efetiva na esfera pública. Ou mesmo, questionar se houve um
aumento na autonomia das mulheres no âmbito público? Precisamente a resposta seria não.
Principalmente quando observamos que o acesso aos centros de poder e decisão ainda são
basicamente masculinos, o que restringe a atuação da mulher e ao mesmo tempo, reforça a
importância das ações coletivas dos movimentos sociais para efetivar as mudanças necessárias
nas agendas políticas e de transformação social.
Na história das mulheres, as investigações têm demonstrado que elas não foram ausentes
dos acontecimentos históricos, mas sim, foram sistematicamente omitidas dos registros oficiais
(SCOTT, 1992, p.39), a partir do pressuposto que o fenômeno da invisibilidade da mulher se dá
em virtude que a história do desenvolvimento da sociedade tem sido quase sempre narrada pelos
homens, identificados como a humanidade.
A utilização do termo gênero, inicialmente, esteve associada sob a conotação do sinônimo
de mulher, o que ajustou a uma terminologia científica e neutra, subtraindo o seu projeto político.
Assim, as mulheres são incorporadas como sujeitos sociais, sem constituir um ameaça (SCOTT,
141
142
1992, p.75). Não obstante, a essencialização do feminino dissolve o sujeito político-mulher e
restabelece o distanciamento entre o movimento político e a academia - uma questão epistêmica.
Para restabelecer o agir político que envolvia os movimentos feministas da década de 60 se
reconstituiu a categoria mulher, a ser reconhecida nas suas multiplicidades, e ainda permite
mapear as semelhanças para fortalecer as diretrizes políticas através da coalizão.
Dada a multiplicidade do sujeito social constituído em gênero, raça/etnia e classesitua-se fora de cogitação a totalidade de uma categoria ou classe. Não resta senão o
caminho das alianças entre desiguais, fenômeno contingente e efêmero, mas sempre
renovável, para se tentar construir uma sociedade menos iníqua e mais propiciadora do
desenvolvimento pleno de cada um: homem ou mulher, branco ou negro, mais ou
menos abastado. (SAFIOTTI, 2003, p.59)
Assim, o movimento feminista considera que multiplicidade do sujeito nos remete a
interseccionalidade de gênero, raça/etnia, classe, orientação sexual, região geográfica como
fatores que interferem em posicionamentos específicos, ações e interesses políticos, todavia
existe a possibilidade de intersecções nodais e assim, interagir em interesses convergentes, a
exemplo de campanhas contra a violência ou a favor dos direitos reprodutivos. Entretanto na
atuação em defesa do feminismo, Dietz (2001) adverte na tentação da radicalização em torno dos
assuntos sobre a mulher, ou seja, o “mulherismo”. Nessa premissa não podemos propor que o
feminismo direcione a capacidade de ação democrática para as mulheres em virtude de seus
predicados como mãe, esposa e suas relações com o cuidado. O apelo das feministas
maternalistas para esse debate descredencia as experiências de grupos diversos, como os “kibuts”
ou mesmo de mulheres que não desejam se tornarem mães ou famílias que não possuem o
estereotipo da participação de um homem e uma mulher como pai e mãe.
Na presente análise, compreendemos que os feminismos contestam o poder das verdades
inquestionáveis apoiadas pelo discurso científico e que legitima “descobertas essencialistas”
142
143
como naturais, e ao mesmo tempo, interferem no reconhecimento de uma cidadania diferenciada
que comporte os vários sujeitos co-participes na estruturação da sociedade contemporânea.
as teorias darwnistas da seleção natural são um exemplo destas legitimadoras; as teorias
biológicas sobre a diferença sexual são outro. O poder dessas verdades provém da
forma em que funcionam como fatos ou premissas básicas para ambos os lados, em um
debate, de tal maneira que o que realiza é um conflito entre os terrenos discursivos e
não um questionamento dessas verdades (SCOTT, 2001, p.206).
Tal fato reduz as mulheres ao doméstico e à procriação e os homens, à força muscular e
ao trabalho. Portanto, o termo gênero resignifica “as relações sociais entre os sexos”, ou seja,
uma forma de identificar subjetivamente como que as relações sócio-culturais constroem as
idéias dos papéis sexuais adequados para homens e mulheres. Assim, o real desafio da utilização
do conceito gênero consiste em alinhar a teoria com o processo histórico concebido em um
contexto específico.
Scott (1992) ainda cita que o termo gênero conduz ao fato que as relações entre os sexos
são relações sociais articuladas tanto em sua estrutura quanto em sua ideologia. Todavia o
conceito não oferece instrumentos que possam questionar como essas relações são construídas,
nem como funcionam ou quando mudam. Em termos dos estudos feministas sobre o micro-poder
das mulheres, até pode-se observar estratégias utilizadas para subverter o domínio masculino
sobre as mulheres. Entretanto, o cerne das relações desiguais de poder entre os sexos é o processo
primário da objetivação da manutenção do domínio masculino perpetrado na construção do ato de
dominar em palavra, do mito dos papéis sociais constituídos em realidade. As análises continuam
vinculadas à diferença da força física entre homens e mulheres, pressupondo um significado
permanente das estruturas sócio-culturais. Mas, especificamente, a interpretação do conceito de
gênero acaba sendo restrita aos estudos da família e das experiências domésticas. Desse modo,
busca-se estender esses estudos para sistemas que envolvem arranjos sociais da mulher branca,
negra, latino-americana, asiática, mãe, filha, tia, avó, solteira, casada, viúva, divorciada, e que
143
144
atendam as necessidades como trabalhadora ativa em um mercado de trabalho cada vez mais
competitivo e exigente, e concomitante ainda execute ou mesmo gerencie, as tarefas de educação
dos filhos, o cuidado com casa e com a estrutura da organização familiar. Como conciliar a esfera
pública das relações com o trabalho e as responsabilidades da esfera privada/vida doméstica se na
assimetria das funções dedicadas ao mundo privado ainda permanece o reconhecimento da
mulher como a principal responsável? Para Scott, as identidades possuem um sistema de
significados que interagem nos processos de diferenciação e de distinção em uma oposição
binária que privilegia os aspectos masculinos. Uma interpretação da categoria gênero bastante
pertinente implica na percepção dos sujeitos em processo constante de construção, permitindo
transpor o antagonismo subjetivamente produzido por homens e mulheres, e salientar que a
linguagem poderá ser um objeto adequado de análise.
O gênero, então, fornece um meio de decodificar o significado e compreender as
complexas conexões entre as várias formas de interação humana (SCOTT, 1992, p.89).
Nesse sentido, Escandon (1992, p.14) reconhece as perspectivas de uma mudança no
enfoque tradicional para privilegiar a análise das relações entre os gêneros. Essas relações entre
os sexos se convertem em uma categoria social, ou mesmo, uma construção social em um
determinado tempo e espaço, não em uma relação condicionada pela biologia. Sendo assim
possível criar novos caminhos e transpor a lógica da ordem natural dos fatos e manter uma
atitude concreta na perspectiva de mudança social quer seja na participação e representação
política, quer seja na ampliação dos debates para além dos centros acadêmicos.
144
145
III. CONCLUSÃO:
A construção de uma realidade atual sobre a representação do gênero na sociedade
implica nas experiências vivenciadas que permitirão a possibilidade de um novo significado nas
relações sociais. Na abordagem de Scott, a história é composta dos significados subjetivos e
coletivos de homens e mulheres, uma categoria identitária produzida pelos sujeitos e
transformada de acordo com o espaço e tempo, assim, considerado um fenômeno histórico (1994,
p.19). Na busca de uma categoria analítica, não podemos dividir em compartimentos a visão de
uma grande parte da história social, que distribui para a categoria sexo e gênero o discurso sobre
a família, assim como a vida do trabalho para discutir classe e comunidade. Um significado
importante na incorporação de gênero se dá na reflexão de como funcionam as organizações e as
relações sociais nelas engendradas, assim como, poder desconstruir a “lógica circular” dos
estudos de gênero como um processo que legitima e mantém as assimetrias das experiências
femininas e masculinas.
Nos primórdios anos do século XXI, a convivência das experiências democráticas
compartilhadas delineia uma cidadania diferenciada que se valeria da inspiração de relações
políticas e desafiem os limites do Estado liberal, para tanto se faz necessário o compromisso com
a inclusão e a participação ativa de homens e mulheres nas variadas especificidades históricosócio-culturais ao fortalecer e revigorar um debate político envolvente e positivo.
145
146
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146
147
VOZES FEMININAS DE LARANJEIRAS: RELAÇÕES DE GÊNERO, FAMÍLIA E
GERAÇÕES NA CULTURA DE UMA CIDADE PATRIMÔNIO SERGIPANA.
Female voices of Laranjeiras: relations of gender, family and anerations in the culture of a
serpana city heritage
Janaina Cardoso de Mello 1
Resumo: Na cidade de Laranjeiras, em Sergipe, vozes femininas atuam na preservação das memórias da cultura
local tecendo redes de solidariedade que as permitem vivenciar relações de gênero, família e gerações em meio às
vantagens e desvantagens de morar em uma cidade patrimônio reconhecida pelo IPHAN.
Palavras-chave: gênero; memória; cultura.
Abstract: In the city of Laranjeiras, at Sergipe, feminine voices work to preserve the memories of local culture
building networks of solidarity that allows them to experience gender relations, family and generations among the
advantages and disadvantages of living in a city heritage recognized by the IPHAN.
Key words: gender; memory; culture.
A Teia de Penélope das memórias femininas de Laranjeiras.
Laranjeiras, município histórico localizado no Vale do Cotingüiba, em Sergipe, com sua
arquitetura barroca e neoclássica fruto da colonização portuguesa, mas também berço da
confluência de etnias negras e indígenas ressalta-se como um manancial de ricas manifestações
folclóricas revelando resistência e vitalidade representadas anualmente no Encontro Cultural,
durante o mês de janeiro 2.
1
Doutora em História Social (UFRJ), Professora Adjunta I da Área de Cultura Histórica do Núcleo de Museologia
da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Líder do GEMPS/CNPq – Grupo de Estudos e Pesquisas em Memória e
Patrimônio Sergipano, pesquisa realizada na cidade de Laranjeiras no âmbito do GEMPS, com apoio financeiro da
FAPITEC-SE, bolsistas da PROEX-UFS e bolsista de graduação AT-NM/CNPq. Agradecimento especial às alunas:
Vera Helem do Nascimento e Iris Christina dos Santos Lima que atuaram na coleta das entrevistas do projeto entre
2009 e 2010. UFS – Campus Laranjeiras, Rua Samuel de Oliveira, s/nº, Centro – Laranjeiras/SE, CEP:49170-000.
Tel: (79)3281-2939/ (79)8817-2416. E-mail: [email protected]
2
O Encontro Cultural de Laranjeiras foi criado em 1976 com a finalidade de estudar, pesquisar e divulgar o folclore
e as diversas manifestações populares locais, ocorrendo sempre no período dos festejos de Santos Reis no mês de
janeiro.
147
148
De 1878 a 1904, a cidade de Laranjeiras vivenciou o seu "período áureo", ostentando o
título de “Atenas Sergipana”. O termômetro da efervescência cultural da cidade era balizado por
dois grandes teatros: o Santo Antônio e o São Pedro, por onde desfilaram grandes nomes
nacionais.
A emergência do aspecto cultural da cidade na contemporaneidade, embora trate com
respeito algumas personalidades femininas fundamentais às tradições populares locais, ainda
projeta essas mulheres como coadjuvantes no processo de ressignificação, resistência e
manutenção de registros de experiências que só podem ser compreendidas através do estudo das
relações de gênero que estabelecem continuidades e rupturas na trajetória de várias gerações.
Esse artigo, portanto, tem como objetivo analisar as vivências e iniciativas de mulheres
comuns que hoje residem em Laranjeiras e ao trazerem em si a herança cultural legada por
Zizinha Guimarães, Carmelita Fontes, Umbelina Araújo e Dona Lalinha, reelaboram seu fazer
cotidiano, delineando-se como protagonistas de uma “cidade-patrimônio”.
Para além do patrimônio material de “pedra e cal” ou do patrimônio imaterial de
celebrações e ensinamentos, o que está no cerne da “Teia de Penélope” 3 que será tecida no
decorrer desse escrito corporifica o aspecto demasiadamente humano e subjetivo, expresso na
oralidade, na construção de identidades plurais e singulares, memórias e representações sociais e
culturais a respeito do viver cotidiano.
3
Remetendo-se a mitologia de Penélope, esposa de Ulisses (rei de Ítaca) que para esquivar-se de novas núpcias
prometera casar-se assim que terminasse de tecer um manto no qual trabalhava arduamente durante o dia para
ocultamente desmanchá-lo à noite ao longo de trinta anos, quando então seu marido – dado como morto – regressa
da Guerra de Tróia. Assim será esse artigo ao trabalhar com a memória e a oralidade como pressupostos basilares
dos estudos das relações de gênero em Laranjeiras, percebendo-as como um conhecimento aberto em contínuo
processo de transformação e ressignificação por seus agentes primordiais: mulheres e homens de Sergipe.
148
149
1 - Vozes femininas laranjeirenses no ofício historiográfico.
A pesquisa iniciou-se em 2009 com a realização de entrevistas orais fechadas, gravadas
em MP-3, compondo um universo de 40 mulheres residentes nos arredores do Quarteirão dos
Trapiches em Laranjeiras, buscando coletar suas experiências de vida nesse local. Sendo o
gênero 4 um potencial demarcador das memórias 5 – em narrativas biográficas ou em tradições
orais – a fala dessas mulheres permite entender a relação dessas com a cidade em meio à
dinâmica de seus afazeres. Descortinar as falas das mulheres laranjeirenses permite transitar pelo
imaginário daquelas que criam seus filhos nesse espaço e assim tecem as redes de sociabilidade.
Lembrando-se sempre de que “a história oral não é um fim em si mesma, mas um meio de
conhecimento” (ALBERTI, 1990:29).
A contemporaneidade enseja grandes desafios à humanidade. A velocidade das
transformações cotidianas impõe as sociedades um ritmo mais intenso, quase visceral, no curso
da tecnologia. A era da informática e de seus espaços cyber virtuais remete homens e mulheres
em um turbilhão de informações, significados e símbolos que a cada momento são revitalizados,
reconstituídos e resignificados (LÉVY, 1993).
São as gravações digitais das mulheres da atualidade que humanizam a técnica fria e
imortalizam o carinho expresso pela comunidade à Eufrozina Amélia Guimarães, nascida em
Laranjeiras em 1872, nomeada professora pública em 1904, fundadora da escola laranjeirense e
4
Compreendendo a categoria gênero como um dado inerente ao processo de identidade vinculado aos papéis sexuais
femininos ou masculinos estabelecidos pela cultura no âmbito da coletividade, sendo portanto produzidos e
internalizados pela sociedade. Papéis esses que podem ser desempenhados por qualquer pessoa, de acordo com suas
experiências de vida, independente de seu sexo biológico. (Cf. MELLO; SANTOS, 2008:20)
5
Seguindo a noção de Henry Rousso (2003:94-95) para o qual na memória coletiva “seu atributo mais imediato é
garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao ‘tempo que muda’, as rupturas que são o destino
de toda vida humana; em suma, ela constitui – eis uma banalidade – um elemento essencial da identidade, da
percepção de si e dos outros”.
149
150
exímia no domínio da língua portuguesa, da aritmética, da geografia, da história, do francês, do
esperanto, além de dedicar-se também ao teatro e à música ao tocar no órgão da igreja matriz.
Essa emérita personalidade feminina local inspirou em 2009 a confecção do documentário
“Zizinha Guimarães: mulher, negra e mestra” realizado pelo Colégio Estadual Zizinha Guimarães
por iniciativa das professoras Beijanizy Abadia e Patrícia Dantas junto aos alunos que
participaram do projeto de produção audiovisual do curso Educação Patrimonial e TV Escola da
SEED/SE.
O recurso aos caminhos da história oral 6 permitiu identificar as marcas da professora do
século XIX nas novas gerações de professores e alunos no tempo presente, compreendendo as
ações de preservação dos testemunhos capazes de fornecer um sentido às experiências individuais
e coletivas daqueles que transitam por um espaço de memória – a escola e a praça com o busto de
Zizinha – tornado vivo e reelaborado com o auxílio das novas tecnologias que articulam história,
vídeo e internet. Segundo Marco Aurélio Santana:
a construção da cidadania, garantindo uma cidade-cidadã, não pode prescindir da
construção e preservação da memória dos grupos, uma vez que ao abrir espaços para a
inclusão de novos patrimônios a cidadania produz sua memória (2000:51).
Idéia que remete à compreensão de Nestor Canclini (1994: 95-115) ao ampliar a noção de
patrimônio cultural para além de monumentos arquitetônicos, percebendo-o também como uma
rede de solidariedades, ou seja, um lugar de cumplicidade social que não tem por fim último
perseguir a autenticidade, mas reconstituir a verossimilhança histórica através de linguagens,
conhecimentos, tradições e modos de usar os bens e espaços físicos.
6
A história oral inseriu-se no Brasil nos anos de 1970, porém somente na década de 90 expandiu-se com a realização
de diversos seminários e fundamentalmente com a criação da Associação Brasileira de História Oral (ABHO) em
1994 e a resultante publicação de seu Boletim. De acordo com Janaina Amado e Marieta de Moraes (2002:IX; XIV):
na história oral, existe a geração de documentos (entrevistas) que possuem uma característica singular: são resultados
do diálogo entre entrevistador e entrevistado, entre sujeito e objeto de estudo; isso leva o historiador a afastar-se de
interpretações fundadas numa rígida separação entre sujeito/ objeto de pesquisa, e a buscar caminhos alternativos de
interpretação.
150
151
A escolha do método para a realização de entrevistas baseou-se nos princípios que
norteiam a relação testemunha-entrevistador mesmo antes da coleta das fontes orais. Por isso, a
coleta dos registros orais ocorreu mediante os passos indicados por Chantal de Tourtier-Bonazzi
(2002: 234-240) compreendendo: a seleção das testemunhas (mulheres de 15 a 60 anos residentes
em Laranjeiras), o lugar das entrevistas (casas, escola, comércio, biblioteca pública), o roteiro das
entrevistas e a transcrição do material gravado.
As entrevistas seguiram um roteiro previamente determinado, partindo da contribuição
pessoal (memória) experimentada por cada mulher entrevistada, sua relação com a história
cultural local (município) e articulações mais gerais (Estado/país). Posteriormente, o material
coletado passou do processo de transcrição para uma análise do discurso dentro da perspectiva
francesa de Eni Orlandi (1978; 1986) e Dominique Pêcheux (1975).
2 - Da “cidadade-patrimônio” às vozes femininas da Atenas sergipana.
A cidade brasileira como lócus de centralidade é de fato tardia em sua historicidade, pois
enquanto parte integrante do Império ultramarino português, somente no século XVIII cidades
como Salvador e Recife exercem sua influência sobre a aristocracia agrária para que esta
vivenciasse a experiência urbana. Na América Portuguesa a relação agricultura-exportação
configurava o modus vivandi de uma sociedade multifacetada composta por brancos portugueses
e de outras nacionalidades, índios e negros. Ao mesmo tempo, as obras arquitetônicas
personificadas em catedrais, igrejas, prédios de ordens religiosas, palácios, casas, moradias dos
mais diversos estilos, de origem européia, possuíam também marcas da mestiçagem resultante
desse encontro multi-étnico.
151
152
Os centros históricos passaram a representar o traçado inicial da cidade, compondo
estruturas urbanas e arquitetônicas que expressam as manifestações políticas, econômicas,
sociais, culturais e tecnológicas, das formações culturais dos diferentes períodos históricos, por
meio dos quais evoluíram, estruturas unitárias ou fragmentárias, ainda que tenham se
transformado ao longo do tempo e se apresentem como testemunhos de civilizações passadas
(SALCEDO, 2007: 15).
Desde sua origem, os centros históricos ocupam uma função residencial, ou seja, abrigam
homens, mulheres e crianças que habitam esse espaço enquanto palco permanente para suas
atividades de descanso, lazer e serviços em geral, ligados aos hábitos e práticas de uma cultura
própria a cada grupo social do local.
A arquitetura residencial é a testemunha viva das manifestações sociais e culturais das
gerações anteriores e daqueles que ocupam esse espaço na atualidade. Assim: “o patrimônio
arquitetônico é um capital espiritual, cultural, econômico e social cujos valores são
insubstituíveis”. (CONSELHO DA EUROPA, 1995: 246).
Rogério Proença Leite (2006:47) percebeu em seus estudos, que nas últimas décadas do
século XX, houve significativas mudanças no valor dos bens simbólicos preservados, refazendo o
próprio conceito de patrimônio dentro de uma concepção mais fluida que implica em práticas
voltadas para o consumo dos lugares. Atuando o desenvolvimento urbano como um agente
estruturador dos big business, ou seja, na comercialização da “cidade-patrimônio”, seja através do
turismo ou especulação imobiliária.
A cidade de Laranjeiras iniciou seu processo de estruturação no século XVIII, tendo
surgido às margens do rio Cotinguiba onde havia um pé de laranjeira, sob o qual os viajantes
descansavam protegendo-se do sol e entoando canções românticas até que chegasse o momento
de se porem na estrada novamente. Para além das versões poéticas, a certeza é que a cidade se
152
153
tornou uma das principais cidades comerciais de Sergipe Del Rey, obtendo da produção da
canavieira sua principal fonte de renda (SILVA; NOGUEIRA, 2009:40).
Laranjeiras foi elevada a condição de Vila em 07 de agosto de 1832, mas em 1824 já era a
povoação mais rica da província de Sergipe com mais de sessenta engenhos de açúcar, fábricas
de charutos e aguardentes e representações comerciais européias. Em 4 de maio de 1848 passou a
condição de cidade, preservando na contemporaneidade marcas dos estilos barroco e neoclássico
em sua arquitetura fruto da riqueza do seu passado. Terra da Taieira, do Lambe Sujo e
Caboclinhos, é uma cidade rica em manifestações da cultura imaterial, mas também um centro
histórico, uma “cidade-patrimônio” que na rota do projeto MONUMENTA/ IPHAN traz em seu
entorno as marcas do passado revitalizado e os desafios do convívio humano com a preservação
da arquitetura restaurada na atualidade, com o antigo que se faz novo.
Nessa terra percebida como uma “Atenas sergipana”, os moradores ufanam-se em suas
falas e memórias de terem como “filha da terra” Carmelita Pinto Fontes que em 1962, fundou a
Academia Sergipana de Jovens Escritores, inicialmente alocada no Ginásio de Aplicação da
Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe. Licenciada em Letras, com pós-graduação em Língua
Portuguesa, Linguística, Literatura Francesa e Híspano-Americana, Carmelita, professora de
Língua Portuguesa e Estilística da Universidade Federal de Sergipe, imortal da Academia
Sergipana de Letras. Os textos de Carmelita publicados em vários jornais nacionais e de Lisboa,
assim como as obras de sua autoria como “Baladas do Inútil Silêncio” e “Verdeoutono”, com
Gizelda Morais e Núbia Marques, e “Tempo de Dezembro” constituem um laço emocional, um
viés de identificação subjetiva entre a poetisa e moradores de Laranjeiras que jamais a
conheceram pessoalmente.
Vozes que ao expor, contar, referir, dizer, registrar, por em memória (e portanto lidar com
a temporalidade) compõem a semântica explicativa do termo “narrar”. Atividade que as mulheres
153
154
laranjeirenses, como “guardiãs da memória local” fazem com maestria da evocação de figuras
ilustres que demonstram o percurso das conquistas femininas no mundo das letras e da academia
(casos de Zizinha e Carmelita) às representações culturais femininas presentes em festejos sacros
ou populares que possuem no contingente feminino seu alicerce de realização e manutenção. São
“mulheres-narradoras” mas também “mulheres-narrativas”, pois “quem narra suas lembranças,
recria e comunica experiências marcadas pelas diferenciações estabelecidas pelas construções de
gênero” (KOFES; PISCITELLI, 1997:347).
Assim, as entrevistadas destacam o Venerável Coro da Matriz do Sagrado Coração de
Jesus de Laranjeiras, ao qual Zizinha Guimarães pertenceu, que hoje sob uma regência masculina
segue com quatro vozes eminentemente femininas apresentando cânticos sacros e populares.
Também são rememoradas de forma incisiva as lideranças de Dona Umbelina Araújo na Taieira e
de Dona Lalinha no Reisado, manifestações que se definem como pontos centrais de
identificação cultural dos laranjeirenses e em sua apropriação do espaço urbano no qual residem.
A Taieira, iniciada no século XVIII, se configura como um dos primeiros grupos
folclóricos de Laranjeiras. É um grupo de folguedo com brincantes que dirigem louvores a São
Benedito e a Nossa Senhora do Rosário. O seu repertório é formado por cânticos religiosos e
também profanos.
Para a coordenadora do grupo, Maria do Espírito Santo, a Taieira é uma manifestação de
matriz africana que obteve conotação religiosa em Sergipe, tendo surgido a partir de uma
promessa feita a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário por Dona Isméria, avó de Dona
Umbelina Araújo, antiga mestra das Taieiras. Descreve Beatriz Góis Dantas (1972:19):
Quando a manhã já formada clareia a cidade, mocinhas com trajes coloridos e chapéus
vistosos vão-se sobressaindo, enfeitando a rua da Cacimba e adjacências. São as taieiras
convergindo para a modesta casa de Bilina, a organizadora do festejo, onde vão juntar-se
às rainhas, aí alojadas desde a véspera, vindas de Aracaju onde hoje residem.
154
155
Moças e crianças cantam e dançam em um cortejo acompanhado por tambor e
querequechés (ganzás), evoluindo às margens do rio Contiguiba numa saudação ao porto.
Seguem então para a Igreja de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário – a velha igreja
dedicada aos santos protetores dos negros – onde ocupam o interior do templo para assistir a
missa e ao seu término participarem da coroação das rainhas pelo padre que as abençoa. Mais
cânticos são entoados louvando os santos. Terminado o ritual na igreja, o festejo retorna a rua,
visitando casas, partilhando dos lanches previamente preparados, angariando também doações em
dinheiro. Á noite findam-se os cantos e as danças, reunindo-se em frente à casa da organizadora
para de lá se dispersarem vencidas pelo cansaço.
De acordo com a organizadora Maria do Espírito Santo: “para nós é muito importante que
tudo o que veio do passado continue do mesmo jeito. Por isso, estamos trazendo hoje as lacraias 7
que há muito tempo se apresentavam com as taieiras”. O que revela a preocupação por parte da
nova geração com a manutenção de suas raízes frente aos perigos do esquecimento e das
transformações ensejadas pelo “novo”.
O Reisado, outra manifestação tradicional de importância no folclore de Laranjeiras,
constitui-se como um auto popular do ciclo natalino com origem portuguesa que remonta ao
Brasil do século XIX como “reisado” ou “reiseiros” pelas comemorações serem realizadas na
véspera e no dia de Reis do calendário católico, anunciando o nascimento de Jesus Cristo. Possui
uma seqüência musical composta de: abrição de porta ou pedição de sala, marcha de entrada,
louvação aos donos da casa, louvação ao Menino Jesus, parte das figuras, entremeios (falas do
Caboclo e da Dona do Baile), cantigas de amor, chula (só dança), entrada do Boi e retirada. Os
sons do triângulo, da zabumba e da sanfona geralmente marcam a dança do reisado mas em
7
Lacraias são as mucamas das rainhas que há muito tempo não integravam o ritual.
155
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Laranjeiras Dona Lalinha inovou ao incorporar o cavaquinho que foi tocado por ela até a sua
morte.
Salienta-se ainda o protagonismo feminino na Dona do Baile, ou Dona Deusa,
considerada a figura mais importante no Reisado, pois é ela quem batiza as integrantes do grupo.
No Reisado dos Idosos Sagrado Coração de Jesus, de Laranjeiras, as “meninas” recebem
denominações variadas: Cigana, Canarinho, Borboleta, Sereia, Viúva e dentre outras. Aquelas
que não representam uma personagem se vestem de vermelho ou de azul, usando um chapéu com
flores e fitas coloridas. De acordo com Aglaé Fontes de Alencar (2003): “o azul era homenagem
à pureza de Maria e o vermelho era o sangue de Jesus por nós derramado”.
Além das danças e dos cantos de pedição de sala (licença para dançar), louvação à Maria,
Jesus, detentores de cargos de poder e pessoas estimadas, o Reisado possui o “entremez”,
correspondente à dramatização conduzida pela Dona do Baile e outro personagem importante na
brincadeira, o Mateus. “A Dona do Baile vai anunciando o que o grupo apresenta, sempre
instigada pelo Caboclo ou Mateus com suas piadas e suas brincadeiras, ora com a platéia, ora
com o figural”, ressalta Aglaé Fontes de Alencar (2003).
Aprendiz de Dona Lalinha, Maria de Lourdes dos Santos, hoje com 70 anos, é a Cigana
no Reisado Sagrado Coração de Jesus, com apresentações de seu grupo em Sergipe e Alagoas.
Nascida e criada em Laranjeiras, ela brinca desde pequena e proclama: “Sou muito velha, mas
por dentro me sinto bem jovem. Quanto mais brinco, mais tenho vontade”.
Outra manifestação cultural considerada para-folclórica 8, por estudiosos do tema como
Aglaé Fontes de Alencar (2003), mas que aparece nos relatos das vozes femininas de Laranjeiras
de forma entusiasmada diz respeito ao “samba de parelha” do povoado quilombola Mussuca,
formado por vinte e uma pessoas, sendo dezessete mulheres e quatro homens, que resolveram
8
Pois traz elementos novos criados por grupos já extintos ou decadentes, não possuindo uma temporalidade antiga.
156
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revitalizar o divertimento de seus antepassados surgido das brincadeiras de roda. Dona Nadir atua
como cantora do grupo e toca ganzá. Atualmente só as mulheres participam da dança, fugindo às
suas características originais, utilizando-se dos recursos necessários para a continuidade da
brincadeira.
A narrativa das mulheres jovens, maduras e idosas que foram entrevistadas ao longo da
pesquisa demonstra duas perspectivas interessantes: primeiro a potencialidade feminina para a
liderança cultural que é transmitida em família através de gerações, família essa que em sentido
lato sensu é entendida para além dos laços consangüíneos, mas no conjunto das relações de
proximidade e partilha de experiências entre vizinhos e brincantes. Em segundo lugar uma
extremada preocupação com as mudanças no traçado urbano de Laranjeiras nos últimos tempos,
relacionando a atração do “novo” ao desinteresse de alguns jovens com a manutenção das
tradições ou a incorporação de elementos “alienígenas” (como carros de som ou trio elétricos) às
brincadeiras. Nesse sentido, estaria aí o papel fundamental da mulher – enquanto mãe e primeira
educadora – no resgate e valorização das raízes culturais que lhes propiciam o orgulho de
residirem naquela territorialidade.
De acordo com Stuart Hall, o século XX sofreu uma intensa transformação estrutural de
suas sociedades:
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fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia raça e
nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como
indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades
pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta
perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento –
descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si
mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. (1999:09)
Imiscuídas no âmbito do capitalismo, onde a valoração das formas de produção moderna
muitas vezes entra em conflito com a perspectiva da vida no interior de uma “cidade-patrimônio”,
essas vozes femininas expõem um cotidiano de subjetividades de “mães, filhas, sobrinhas,
esposas” numa compreensão cidadã a respeito de si mesmas. Para essas mulheres laranjeirenses,
o plano cultural lhe diz quem são, lhe oferece um lugar de pertencimento, identificação e melhor
convívio com os homens que fazem parte de suas vidas, não de forma submissa, mas através de
uma negociação igualitária na construção de sua historicidade. Nesse sentido as relações de
gênero não são vistas como antagônicas ou subservientes, mas como complementares,
equilibradas e essenciais para a continuidade das tradições locais.
Outrora essas mulheres acorriam ao quiosque de zinco em frente à biblioteca pública para
consumir seus lanches no horário de almoço, ou simplesmente deixava-se sentar na beirada da
calçada para fumar um cigarro de palha degustando uma pamonha doce enquanto apreciavam as
ruínas do Trapiche deixando-se levar por devaneios de um passado distante. Agora, a paisagem
está modificada, o IPHAN restaurou os locais de uso comum e alguns pontos que antes lhes
referenciavam foram removidos (como o antigo quiosque) enquanto “estrangeiros” circulam e se
apossam dos espaços de uma cidade que para eles é território de passagem. De Aracaju provém
grande parte dos alunos da universidade federal para os cursos de Teatro, Dança, Museologia,
Arqueologia e Arquitetura, enquanto seus filhos no ensino fundamental e médio ainda sonham
com um emprego nas fábricas de fertilizante e cimento dos arredores. Mas essa também não é
uma realidade fixa, pois novos horizontes se constituem e essas matronas se vêem dispostas a
158
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integrar com suas famílias os espaços revitalizados, nos bancos universitários, como profissionais
e/ou como apreciadores de eventos culturais. Conforme salientou Rachel Soihet ocorre na:
Abordagem do cotidiano, a “re-descoberta de papéis informais, de situações inéditas e
atípicas” que possibilitem o desvendamento de processos sociais invisíveis, ante uma
perspectiva normativa, são algumas das diferentes posturas no tocante aos estudos sobre
as mulheres. (SOIHET, 1998:83)
Assim, longe de se excluírem da nova realidade que se lhes apresenta, desejam elas ser
parte da “novidade” de forma constitutiva e não apenas observadora. Por isso ocuparam os
espaços da universidade federal na realização do Encontro Cultural de Laranjeiras em janeiro de
2010, para mostrar aos “de fora” que são bem vindos ao seu mundo que deve ser de todos se
houver interação respeitosa às práticas culturais ancestrais que resgataram Laranjeiras das
sombras de sua decadência econômica.
Conclusões
A riqueza das memórias coletivas das mulheres comuns de Laranjeiras revela sua
potencialidade em assegurar a identidade pela qual um grupo se auto-reconhece, seja ele familiar
e/ou geracional. Na espacialidade onde as transformações urbanas alteraram o cotidiano
referencial, a oralidade tornou-se a via ideal para o resgate das particularidades da vida dos
agentes sociais de uma história cultural compartilhada.
Paul Thompson (1992) já havia detectado o valor das fontes orais na história social
moderna, uma vez que a oralidade proporciona presença histórica e reconhecimento àquelas
pessoas cujos pontos de vista e valores foram descartados pela ‘história vista de cima’ na
vigência da hegemonia de dados rankeana que privilegiou o registro oficial escrito das ações
políticas dos altos representantes da hierarquia sócio-econômica e cultural. Consistindo então a
159
160
história oral no instrumento capaz de reconstituir melhores os aspectos triviais das vidas das
pessoas comuns, sendo utilizada também para contestar e confirmar outras fontes.
As opiniões femininas, impressões e emoções configuram processos de inter-relação com
o local, da construção de identidades plurais e singulares, memórias e representações sociais a
respeito de seu viver cotidiano, por isso a importância do resgate e da visibilidade dessas vozes
femininas anônimas. Em Laranjeiras, as vozes femininas deixam de ser memórias intimistas as
quais Orest Ranum (1991) denominou como “lugares do íntimo” (cartas, agendas, diários) para
ser memórias públicas e sociais.
A constituição de um acervo material capaz de transformar essa memória oral volátil em
um arquivo digitalizado incorporado ao patrimônio cultural da Biblioteca Central de Laranjeiras
(BICAL), enseja uma contribuição não apenas para a valorização de mulheres que foram
lançadas ao obscurantismo da contemporaneidade, mas colabora, sobretudo para lhes oferecer um
espaço de preservação ao legado de suas vidas – o conhecimento ancestral – configurando-o em
herança para o aprendizado de gerações presentes e futuras.
A adoção desse recurso também permite, por exemplo, ás pessoas com deficiências de
audição o acesso ao material coletado na perspectiva de que o produto de uma pesquisa possa
abranger o maior quantitativo de formas de acessibilidade ao seu conteúdo.
Uma população que tem domínio das informações aprende a importância da salvaguarda,
preservação e promoção do patrimônio cultural, adquirindo ferramentas para reivindicar seus
direitos junto às instâncias competentes, além de valorizar sua identidade cultural e de gênero
dentro da sergipanidade que lhe conduz.
160
161
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“É UM LUGAR SÓ”: SOCIABILIDADES E CONFLITOS EM UM ESPAÇO
PÚBLICO NO RECIFE
"In just one place": sociability and conflict in a public space of Recife
Normando Jorge de Albuquerque Melo 1
Resumo: Este artigo é resultado de uma pesquisa sócio-antropológica realizada em um cruzamento do Bairro da
Boa Vista, no centro do Recife-PE, autodenominado Fun Fashion. Ali pude identificar um processo de
reapropriação do espaço marcado pelo uso do lazer. A observação direta e as entrevistas semi-estruturadas me
permitiram uma aproximação da dinâmica que ali se desenvolvia. Em confronto com as forças da moral e da
ordem, mas com a bênção da noite, aquele cruzamento parece configurar-se como uma “mancha” (neste caso,
significando aquela situação nas brincadeiras de “pega” em que o indivíduo se encontra livre) onde todos “se
permitem”.
Palavras-chave: Cidade, astúcias, lugar.
Abstract: This article is the result of a socio-anthropological research realized on intersections of the District of
Boa Vista in the downtown Recife-PE, self-styled Fun Fashion. There I was able to identify a process of
reappropriation of space noticeable by the use for leisure. The direct observation and the semi-structured
interviews have allowed me an approximation of the dynamics that unfolded there. In confrontation with the
forces of morality and order, but with the blessing of the night, that intersections seems to configure itself as a
"stain" (in this case, meaning that the situation in the games of "hide and seek" in which the individual is free)
where all "Allowed."
Key words: City, astuteness, place.
Introdução
A cidade é “a coisa humana por excelência”, diz-nos Lévi-Strauss (1970). É
exatamente esta sua humanidade que faz a cidade interessante aos olhos do cientista social. A
cidade não é somente pedra, cal e asfalto; é também os homens e as mulheres que por ela
circulam e que a praticam todos os dias. Nela podemos observar o cotidiano, objeto principal
de uma antropologia do ordinário e do anônimo, onde se dá uma “infinidade de relações
‘infinitesimais’ cuja integração faz a vida social” (Bourdieu, 2004, p. 11). É no cotidiano,
lugar da improvisação e da resistência ao poder, que identificamos a emergência das várias
1
Normando Jorge de Albuquerque Melo é doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro ([email protected]).
163
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formas de reapropriação/reinvenção do espaço, construtoras de novas paisagens marcadas pela
informalidade que agride a ordem da cidade eminentemente narcisista, preocupada com o seu
capital simbólico. Olhar a cidade pela janela do cotidiano, pois, permite-nos ver uma paisagem
complexa, marcada pelo intenso dialogismo ordem-desordem, no qual estão em jogo várias
formas de esconder e de localizar.
Foi no Recife, capital pernambucana, que vi se desenrolar pela primeira vez o drama da
cidade, que paga o seu tributo diário à teatralidade. Como um projeto de ordem, a cidade
procura combater tudo aquilo que parece obedecer ao acaso, e não ao determinismo de
esquemas pré-fixados de organização; no entanto, pela borda e pela brecha da paisagem
hegemônica disseminam-se paisagens transversais (De Certeau, 1994). Há uma cidade inteira
sendo disputada. De canto a canto, por onde andarmos encontraremos o mesmo processo, pelo
qual os indivíduos reapropriam-se do espaço e reinventam-se com ele. Moradia, fé, trabalho e
lazer são expressões deste processo de reapropriação/reinvenção cotidiana do espaço – bem
menos separadas entre si do que eu apresento aqui. Compõem uma cidade inteira que aparece,
desaparece e torna a aparecer. Uma cidade que é só de sábado ou de domingo, às vezes a
semana inteira, sem hora, às vezes só durante a noite ou dia. Cidade provisória, cidade fumaça,
que chega de carro-de-mão, bicicleta, mochila ou caixa de papelão. Cidade informal que não
consta nos mapas oficiais, nem figura nos cartões postais; porém, mais visível do que as
fantasmagorias que a cidade ilumina.
Essas ocupações/usos irregulares florescem como que regados pela impotência do
Estado, pela espoliação do Capital, pelo consentimento sutil da sociedade – ainda que estas
mesmas instituições os rechacem – e pelas “astúcias” de que nos fala De Certeau (1994). Essas
“astúcias”, “maneiras de fazer”, “modos de operação”, “esquemas de ação”, “caça não
164
165
autorizada”, “arte de dar golpes”, “inventividade artesanal”, “criatividade dispersa, tática e
bricoladora”, entoam uma só nota: os indivíduos não se entregam passivamente à disciplina e
escapam ao poder, sem, no entanto, deixá-lo. Foi sob este ângulo que pude observar a
dinâmica de um escuro cruzamento do Bairro da Boa Vista, no centro da cidade do Recife-PE,
reconhecido como Fun Fashion, ou simplesmente, Fun.
1 - A cidade
Tenho me dedicado há algum tempo ao eixo temático: cidade-imagem-espaço-poder.
Acredito que é preciso repensar a(s) cidade(s) e aqui eu o faço partindo do problema da ordem
e da desordem. Não se trata de reiterar falsas separações que nos fazem descambar para um
dos dois lados, mas de observar as tensões produzidas nesta relação, simultaneamente
complementar, antagônica e concorrente (Morin, 1979). Tal foi a perspectiva/expectativa que
me levou a investigar os subterrâneos das práticas desviacionistas do uso do espaço e os seu
múltiplos sentidos. Ora, “a ordem reinante serve de suporte para produções inúmeras, ao passo
que torna seus proprietários cegos para essa criatividade” (De Certeau, 1994, p. 50) – eis o
lugar das “astúcias”.
Observada em sua longa-duração, a cidade desenvolveu-se em uma direção: o
ordenamento. Se a aldeia se distinguia da savana, criando a oposição entre o “dentro” e o
“fora”; a cidade murada tenta controlar os fluxos. Ela representa um lugar – um “próprio” –
que pode ser circunscrito, e que desta forma serve de base a uma gestão de suas relações com
uma exterioridade distinta – os seus “outros” (De Certeau, 1994). Como bem lembra Kasper
(2006), “próprio”, em francês (propre), tanto significa “próprio”, como “limpo”, resgatando a
dimensão da “pureza”, ou antes, da “ordem”. A cidade, como local onde (e de onde) o poder
165
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se exerce, foi construída segundo esse modelo discursivo. Nenhum outro gesto exprime tão
bem a qualidade do esforço empregado na sua construção quanto o de “varrer”. Não é este o
ato territorial por excelência? Não é para o ordenamento do ambiente que levam todos os
caminhos da história da cidade?
Das utopias de Owen e Fourier ao pensamento de Le Corbusier, a nova ordem social é
construída, justamente, abolindo o tempo, reconstruindo uma cidade nova, ordenada, na
qual não apenas o sujo pode ser separado do limpo, mas na qual tudo pode ser
predeterminado e, portanto, controlado(Decandia, 2003, p. 183).
Tudo o que ofende a ordem, que não está em conformidade com a imagem que se
deseja construir, é tomado como sujo. E como não pode ser eliminada, pois é um subproduto
imanente do esforço ordenador, a sujeira tenderá a compartilhar o espaço dos amantes e de
todos aqueles cuja vergonha e/ou a indiferença impõe uma vida de sombra e segredo. Tal qual
o indivíduo estigmatizado (Goffman, 1975), a cidade busca esconder os seus símbolos de
estigma, (ao mesmo tempo em que evidencia os seus símbolos de prestígio). “Removemos os
dejetos da maneira mais radical e efetiva: tornando-os invisíveis, por não olhá-los, e
inimagináveis, por não pensarmos neles” (Baumann, 2005, p. 38). Assim, o duplo movimento
que caracteriza as relações de lugar e de visibilidade no processo de produção do espaço:
excluir para esconder/esconder para excluir (Melo, 2004).
A sujeira torna-se uma imagem impedida, uma presença não reconhecida, uma
ausência. É destinada a um lugar fora do lugar, um “não-onde”. O “não-onde” tem um
contorno próprio e em nada diz respeito ao “não-lugar” de Augé (1994), que se apresenta em
estado de fluxo, insensível a tudo o que passa por ele, lócus de uma experiência “irrelacional”
incapaz de fecundar identidades e produzir vínculos. O “não-lugar” não se realiza
166
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completamente, da mesma forma que o “lugar” 2 não é totalmente apagado, para o autor, um e
outro são “polaridades fugidias”. O “não-onde”, ao contrário, realiza-se como um “lugar” de
rejeição social, sem que isso comprometa suas propriedades “topofílicas”, aquele elo afetivo
que os indivíduos e grupos estabelecem com o lugar (Tuan, 1980). Ele remete não ao “fluxo”,
mas a “sociodinâmica da estigmatização”, às tensões e conflitos entre estabelecidos e
outsiders (Elias e Scotson, 2000) – que sinaliza sua centralidade nesta pesquisa.
Entendemos, pois, a cidade como uma arena em que as forças organizadoras da ordem
e da concordância e as forças da discordância, do caos, da surpresa, do inesperado, se
enfrentam em uma tensão permanente. Imbricadas nas redes de vigilância (que se expandem)
disseminam-se as redes de anti-disciplina (que se encolhem). A cidade mostra-se rebelde, ela
liga-se a um dinamismo de forças sem identidade legível, sem transparência racional e
impossível de gerir, que escapa aos cálculos e revela a presença de conflitos humanos. A
cidade é o que acontece enquanto está sendo planejada. “O cotidiano se inventa com mil
maneiras de caça não autorizada” (De Certeau, 1994), que escondidas, disseminam-se nos
espaços definidos e ocupados pelos sistemas da produção. Foucault (2004), do alto do seu
panoptismo, não conseguiu ver o que se passava nas bordas e brechas, “lugar” das táticas,
como as baratas e as formigas sempre souberam.
A cidade é (re)inventada cotidianamente por heróis anônimos que reapropriam-se do
espaço e o recompõem. Aos poucos, ações pontuais de menor escopo, se impõem no campo
visual inserindo-se na cidade da ordem, disputando-a. Estas presenças “irregulares”,
identificadas com o direito de escolha da população, confrontam a autocracia da racionalidade
2
Enquanto o “lugar” de Augé (1994) enfatiza a realização de identidades, o “lugar” de De Certeau (1994) enfatiza o
exercício do poder, sem que isso implique em uma contradição efetiva entre os dois conceitos.
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técnico-burocrática. Configura-se uma situação de tensão entre a engenharia profissional
comprometida com os padrões do saber oficial, e a engenharia marginal resultante das
tecnologias do saber difuso (“astúcias”), orientada para sua reprodução.
A “astúcia” é uma força-fraca. Ela está para as “táticas”, como o “próprio” está para as
“estratégias”. De Certeau (1994) opõe uma a outra. Se a “estratégia” é um cálculo que conta
com um lugar que serve de base a uma gestão de suas relações com o “outro” (paradigma da
cidade); a “tática”, por outro lado, não conta com uma fronteira que garanta a autonomia do
seu campo de ação (um “próprio”) e portanto, “só tem como lugar o lugar do outro”, e ocupao (literalmente). “São tanto menos visíveis como as redes do enquadramento se fazem mais
apertadas, ágeis e totalitárias” (De Certeau, 1994, p. 94), perceptíveis somente pelas erosões
que provocam nos lugares. Enquanto o “próprio” é uma vitória do lugar sobre o tempo (pois
que se deseja estável – ordem), a “tática” que não dispõe de base para capitalizar os seus
proveitos e não consegue assegurar a sua independência diante das circunstâncias, depende e
explora o tempo. A oportunidade faz a “tática”, ato e maneira de aproveitar a ocasião, e assim,
escapa ao poder sem deixá-lo.
A sua produção não é fruto apenas de decisões conscientes. A cidade escapa às
tentativas de disciplinamento institucional e acaba por se desenvolver pelas brechas destas
mesmas tentativas de controle e disciplinamento, como a Fedora dos relatos de Marco Polo ao
Kublai Kahn:
Em todas as épocas, alguém, vendo Fedora tal como era, havia imaginado um modo de
transformá-la na cidade ideal, mas enquanto construía o seu modelo em miniatura,
Fedora já não era mais a mesma de antes e o que até ontem havia sido um possível
futuro hoje não passava de um brinquedo numa esfera de vidro (Calvino, 1990, p. 32).
168
169
A ação disciplinadora das políticas urbanas não é determinante no uso dos espaços. Ainda
que esta ação seja quase sempre acachapante (ignorando os usos ordinários do espaço e operando
um controle repressivo de seus usuários), o espaço não é praticado somente segundo as suas
destinações oficiais. Longe de qualquer determinismo, trata-se de uma relação entre limites e
possibilidades. A partir da observação do processo de gentrification 3 implementado no Bairro do
Recife, Leite (2004) mostrou como, apesar do disciplinamento, da higienização e da segregação
promovidos por tal projeto, tais espaços não são necessariamente esvaziados. A tese defendida
pelo autor é de que
as políticas culturais e práticas sociais que segregam esses espaços para o consumo não
contribuem necessariamente para um esvaziamento do sentido público desses espaços
urbanos, da mesma forma que não impedem que novas formas cotidianas de
apropriação política dos lugares, marcadas pela publização e politização das diferenças,
qualifiquem esse espaços da cidade como espaços públicos (2004, p. 23).
A cidade apresenta-se não como uma exterioridade insular absoluta, mas como uma
experiência integral e integradora, do humano que a cria, pratica, vive, transforma e se
transforma com ela. O espaço urbano é produto de uma relação complexa e tensa, e nele se
inscrevem as contradições e conflitos existentes nas relações sociais, ainda que por vezes,
permaneçam encobertos pelos vários tipos de cegueiras.
2 - A Fun
Foi isso que me levou ao cruzamento da Rua José de Alencar com a Rua do Giriquiti,
no bairro da Boa Vista, centro da cidade do Recife-PE. A luz do dia, e nas noites da maior
parte dos dias da semana, aquele é um cruzamento bem comum. As ruas são relativamente
estreitas e a circulação de carros e pedestres naquele cruzamento está muito abaixo do que se
3
Gentrification é uma expressão que começou a circular por volta de 1960, designava um tipo de intervenção urbana
(em expansão nos Estados Unidos) caracterizada pela reabilitação residencial de bairros centrais. No entanto, esta
política já não se resume a estas pequenas operações, mas expande-se como processo produtor de centralidades e
paisagens de poder, mercantilizando o patrimônio.
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costuma observar em outros pontos do centro do Recife. Em suma, mesmo o observador mais
astuto, não iria supor que nas noites de sexta-feira aquele cruzamento seria tomado por
representantes de várias tribos urbanas, com seus trajes e performances peculiares, a procura
do que eles identificam como “diversão”. Aquele cruzamento era um velho conhecido meu
(quando estudante de uma escola localizada no mesmo bairro), e a partir do ano de 2003
tornou-se um percurso rotineiro (quando professor de uma escola situada em uma rua
adjacente). Percorrer essas ruas não me garantiu conhecer seus segredos, eles chegaram até
mim por meio dos meus alunos, que nas noites de sexta-feira compartilhavam o mesmo
destino de muitos outros jovens: a Fun Fashion.
De início, o local não despertou meu interesse, nem como boêmio. Havia um certo
desprezo de minha parte em relação aquilo que para mim era uma “algazarra” (imagem pela
qual eles se sentem e são vistos pela população em geral). Nunca cheguei a ser um
freqüentador, nem mesmo depois da pesquisa (embora, sem o desprezo inicial). Esta só me
surgiu no ano seguinte (2004), talvez como o resultado combinado de dois fatores: 1- a minha
necessidade de estender para outros contextos a observação de práticas desviacionistas do uso
do espaço urbano e as tensões e conflitos dela decorrentes que eu vinha desenvolvendo nas
margens do Rio Capibaribe em um contexto habitacional (Melo, 2004); 2- e do acúmulo dos
relatos que eu ouvia a cada semana dos meus alunos sobre seus desempenhos nas noites de
sexta-feira. Constituído o interesse de pesquisa, esses mesmos alunos foram os meus guias de
navegação naquele cruzamento, mostrando toda a sua expertise ao me apresentarem cada uma
das “tribos” que protagonizam a dinâmica daquele espaço.
Durante quatro sextas-feiras consecutivas, entre fins de setembro e início de outubro de
2004, pude observar o espaço, suas práticas, seus freqüentadores e as relações que eles
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textualizam. As informações coletadas por meio de entrevistas semi-estruturadas e da
observação direta, bem como as impressões que elas geraram neste pesquisador, foram
sistematizadas e resultaram em um esboço para um artigo futuro, que acabou não vingando na
ocasião. Entre 2004 e 2005, os telejornais locais passaram a veicular matérias sobre o lugar
semanalmente, apontando para os transtornos que os moradores da área passavam naquelas
sextas-feiras e, sobretudo, para o consumo de álcool por menores de idade, além da venda de
drogas ilícitas e da prostituição. Com a publicidade negativa que aquele cruzamento começou
a ganhar, a polícia passou a se fazer presente (empreendendo algumas operações no local), e
um ano depois (2005) eu fui atraído novamente por aquele campo com o propósito de retomar
o projeto que estava engavetado. Daí seguiram-se mais quatro sextas-feiras consecutivas de
observação direta e conversas informais, quase no mesmo período do ano em que realizei
minha primeira investida de pesquisa (setembro/outubro). Novamente o artigo não veio.
Recentemente, quando eu já havia abandonado completamente aquele projeto, um
encontro inesperado com um antigo freqüentador da Fun Fashion, que fora meu interlocutor
em 2004, o trouxe novamente. Seis anos depois, ele, que já não freqüentava mais o lugar há
uns três anos, me perguntara sobre a pesquisa (“em que ela tinha dado”). Eu disse que ela
havia sido abandonada, mas que em resposta àquela cobrança, eu retomá-la-ia mais uma vez.
Definitivamente, o destino dela não era a gaveta. Movido por um sentimento de dívida com
aqueles que investiram na pesquisa, dedicando seu tempo e sua paciência ao pesquisador e
compartilhando suas experiências com este, eu retornava ao velho cruzamento. Este
reencontro permitir-me-ia observar como estava o lugar cinco anos depois da minha última
visita de pesquisa e, sobretudo, rever o meu próprio trabalho, retificando ou ratificando minhas
considerações de outrora.
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Conforme já foi dito, cheguei na Fun Fashion em 2004, guiado por alguns de meus
alunos e iniciei um processo de pesquisa com o interesse de observar a forma como se
conduzia aquela experiência de reapropriação/reinvenção do espaço em função do lazer (lazer
de uns e trabalho de outros). Eu queria saber como tudo aquilo havia começado, saber de que
matéria bruta aquela dinâmica emergia. Para isto, apostei em uma análise que privilegiasse as
trajetórias através do tempo-espaço. Aproximei-me de um grupo de freqüentadores que
guardavam um pouco dessa memória. Eles contaram que quando começou em 2002, a Fun
Fashion (ou simplesmente Fun) era um “fiteiro” na Rua do Giriquiti, próximo ao Shopping
Boa Vista. Neste “fiteiro”, além dos confeitos, pipocas, biscoitos e das miudezas em geral (que
encontramos em um “fiteiro” típico), também vendia-se vinho e reproduzia-se músicas do
gênero tecno e rock (permitindo que os freqüentadores ouvissem seus próprios CDs mediante
pagamento). Nas noites de sexta-feira, estudantes das escolas do centro (principalmente do
Colégio Brasil, Colégio Alpha, Colégio Carneiro Leão, Ginásio Pernambucano, Escola
Oliveira Lima, Colégio Municipal Pedro Augusto) rumavam para o lugar em busca do
“divertimento da moda” (traduzindo do inglês Fun Fashion), formando uma massa que hoje
atinge uma média de 300 pessoas.
“A gente começou a ir por curiosidade, pra ver o que era. Depois ia em busca do vinho,
da música, da dança, da companhia, da resenha, da farra, do divertimento, da liberdade”
(João – 18 anos).
“Cada um escolhe o motivo pelo qual quer ir para a Fun Fashion, existem aqueles que
vão para se encontrar com os amigos e a namorada, existem aqueles que saem do
trabalho, escola ou faculdade e querem sair para beber e curtir a noite de sexta, existem
também aqueles que querem sair para fugir dos pais para beber, fumar e fazer aquilo
que não podiam fazer no cotidiano” (Lucas – 18 anos).
Nesta primeira fase da Fun Fashion, ela atraía um público proporcionalmente menor e
menos diversificado do que aquele que conheci em 2004, segundo os jovens que freqüentavam
o espaço desde o início. Uma centena de “roqueiros”, é como poderia ser definido o público
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que se reunia em torno do fiteiro na Rua do Giriquiti. Jovens de ambos os sexos, entre os 14 e
os 20, vestidos de forma característica: jeans folgado, camisas pretas com emblemas de bandas
de rock, botas, sobretudos, maquiagem pesada e adornos metálicos (pulseiras, anéis, crucifixos
enormes, alargadores e piercings), começavam a chegar a partir das 18:00 horas e as 19:00 o
lugar estava “bombando” (lotado). As proximidades do fiteiro ficavam tomadas pelos jovens
que se aproveitavam do pequeno fluxo de automóveis daquela rua para circular livremente.
Eles podem chegar sozinhos, esperando encontrar algum conhecido que já esteja no
local, e nesse caso, “tanto faz você encontrar um grupo e passar a noite conversando, como
não encontrar ninguém e ficar a noite toda sozinho” (José – 18 anos). Mas em geral, os grupos
já chegavam no lugar formados, em função principalmente das relações que os jovens
mantinham nas suas escolas de origem. Isso não quer dizer que eles permaneciam isolados e
não faziam novos contatos (no entanto, mesmo que os indivíduos circulassem por outros
grupos, regressavam sempre ao grupo de origem fazendo prevalecer os laços construídos fora
daquele espaço). Havia sempre a namorada ou o amigo de alguém do outro grupo que
proporcionaria os primeiros contatos, a paquera que aproximaria o encontro casual de olhares,
um comentário mais alto que despertaria o interesse. Mesmo uma camisa poderia servir de
motivo para se estabelecerem os primeiros contatos. Conforme evidenciou João:
“A gente começou a se falar por causa da camisa que ele tava usando. Eu gostei do que
tinha escrito e pedi pra ele se virar pra eu ler. Aí a gente ficou conversando... eu
também era fã daquela banda” (João – 18 anos).
Ali reunidos, eles consomem álcool (ainda que não tenham idade adequada), fumam,
dançam, conversam e dão “longos pegas (beijos e abraços) atrás das árvores, encostados no
muro”, favorecidos pela pouca iluminação do local e pela ausência dos aparelhos coercitivos
institucionais. Eles afirmam nunca terem visto tráfico no local. A maconha era consumida sim,
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mas ela era levada por aqueles que pretendiam consumi-la. Eles se referem tanto à primeira
fase da Fun Fashion, como ao período em que a pesquisa estava sendo realizada, sua segunda
fase (marcada pelo aumento do público, de sua faixa etária e de sua diversificação). Nenhuma
matéria havia sido veiculada na imprensa local até então, e não se via a polícia no local.
Em meados de outubro de 2003, a Fun Fashion foi fechada sob a alegação de que o
“fiteiro” não tinha autorização para ocupar aquele local, tendo o mesmo sido retirado. Os
freqüentadores atribuem o fato as queixas dos moradores por conta do barulho que não tinha
hora para acabar (embora o local já estivesse completamente esvaziado às 22:00 horas, quando
os jovens começavam a seguir para os pontos de ônibus); e principalmente, as pressões
exercidas pelo Shopping Boa Vista, que achava que a atividade naquele local lhe transmitia
uma imagem negativa. Eles não eram rejeitados enquanto freqüentadores deste shopping, mas
recebiam atenção especial dos seguranças, dizendo-se assediados pelos seguranças. Pedro diz
entre risos: “Acho que eles tinham medo da gente”. Leite (2004) aponta para uma diferença de
abordagem da polícia em dois pólos do Recife Antigo. No pólo do Bom Jesus (que transmitia
uma imagem ordeira), a polícia ficava do lado de dentro vigiando os indesejáveis do lado de
fora; no pólo Rua da Moeda (cuja imagem era da “desordem”), a polícia ficava do lado de
fora, vigiando os indesejáveis do lado de dentro.
Aquele número demasiadamente grande de indivíduos aglomerados em função de um
sentido de liberdade via álcool, sexo e drogas, começou a turvar a “ordem pública” – ordem
social, moral, estética. Estas presenças são consideradas impuras, perigosas, pois que ligadas a
práticas que não estão em acordo com os princípios de “civilidade”, de “urbanidade”. Também
parece fortalecer sua imagem negativa, o fato de que este lugar é marcado pelo uso do lazer,
em desacordo com a moral trabalhista-produtivista que se impôs como a principal fonte de
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identidade e sociabilidade, excluindo todos aqueles que não têm familiaridade com ela (De
Masi, 2001). Isso não quer dizer que a reapropriação/reinvenção do espaço pelo/para o uso do
trabalho não encontra obstáculos (também houve perseguição a feiras livres e camelôs) 4, mas
enquanto o trabalho “dignifica o homem” e justifica em parte as ocupações irregulares do
espaço, o ócio não faz nada disso. Ao contrário, “fonte dos maus vícios”, o ócio acaba por
reforçar a imagem de desordem que a combinação juventude-álcool-sexo já imprime ao lugar.
Depois de um mês sem atividade a Fun Fashion retornou. Agora não se tratava mais de
um “fiteiro”, mas de uma bicicleta equipada com dois isopores carregados de vinho e um
sistema de som.
“O shopping tava preocupado com a reputação dele. Ele quis tirar a gente, mas a gente
não saiu” (José – 18 anos).
“Era uma rua, agora ficou maior, é uma encruzilhada e cada vez chega mais gente. Tá
crescendo muito por conta do comentário” (Mateus – 18 anos).
A mudança, da rua para esquina (espacialmente insignificante, mas com grandes
conseqüências no funcionamento do lugar), colocou a Fun Fashion no centro de um circuito
de “lazer alcoólico-sexual” estruturado no local. O Restaurante Mustang, o Pithausen (um bar)
e a boate 7 Cores (todos de freqüência GLS), os motéis da Rua Barão de São Borja e o
próprio Shopping Boa Vista, muito utilizado pelos freqüentadores da rua (principalmente os
banheiros e o gamestation), fazem parte desta “mancha”. Segundo Magnani (1996), a
“mancha”, mais do que o “pedaço”, apresenta uma implantação mais sólida tanto na paisagem
como no imaginário.
4
Diante da perseguição, o Sindicato dos Feirantes de Pernambuco mobilizou o exemplo do Rio de Janeiro e São
Paulo, no sentido de mostrar que “esses centros, mesmo sendo adiantados, continuam respeitando a existência das
feiras livres, muitas, inclusive, em dias diversos da semana”. Diário de Pernambuco, “Feirantes mandam buscar
plano de abastecimento para oferecer à PMR”, 15 de Fevereiro de 1970.
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“As atividades que oferece e as práticas que propicia são o resultado de uma
multiplicidade de relações entre seus equipamentos, edificações e vias de acesso – o
que garante uma maior continuidade, transformando-a, assim, em um ponto de
referência físico, visível e público para um número mais amplo de usuários” (Magnani,
1996, p. 42-41).
O nome Fun Fashion tornou-se então uma denominação da “mancha” e não só do
estabelecimento comercial em si, que agora concorre com diversas outras carrocinhas de
alimentos, bebidas e CDs, que foram atraídas para aquela rua estreita e mal iluminada.
“A Fun Fashion agora é tudo isso, todas essas barraquinhas que ficam aqui na rua, tudo
isso aqui, de um lado a outro, um ponto de referência” (Mateus – 18 anos).
“Tudo começou com um lugar para sair e beber na sexta à noite. Cresceu, mas depois se
tornou um local com crises de incertezas de sua própria existência, até que durante um
certo tempo as ruas já não eram mais movimentadas como antes, mas hoje está de volta
e crescendo como antes. Livre para ser frequentada pelas mais diversas tribos, que vêm
de todos os cantos para se encontrar em uma encruzilhada no centro da cidade do
Recife em plena sexta-feira à noite, para beber, dançar, conversar e curtir a vida”
(Lucas – 18 anos).
Como dissemos, a segunda fase da Fun Fashion foi marcada pelo aumento do público e,
principalmente, sua diversificação. Os penteados (longos, curtos, raspados, espetados,
rastafari, blackpower, franjas cobrindo os olhos) denotavam de imediato a grande diversidade
de “tribos” que se aglomeravam no local. O ambiente em que predominava o preto dos
“roqueiros” coloria-se com a presença cada vez mais forte dos “clubbers” e “emos”. O lugar
passou a atrair também os grupos que habitualmente freqüentavam o Shopping Boa Vista,
como é o caso dos surdos-mudos. Com a aproximação espacial ocorrida entre a Fun Fashion
(referindo-me estritamente ao estabelecimento comercial) e o Pithousen (um bar tradicional
do público GLS), houve um aumento na participação de homossexuais, que antes
permaneciam à margem.
“Aqui tinha alguns que eram homossexuais, mas a maioria deles ficava do outro lado.
Agora tá tudo muito perto. É um lugar só” (Pedro – 19 anos).
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O lugar conserva-se ainda como tipicamente jovem, mais houve um aumento na idade
média dos freqüentadores de 14-20 para 14-35 anos em função da participação crescente do
público GLS (mais velho). Mas a contribuição deste público não se restringiu a elevação da
faixa etária, produziu-se também sobre o tipo de música executada no local.
“Antigamente era só rock e música eletrônica, mas agora já tá rolando até brega. Tem
pra todos os gostos, uma diversidade muito grande. Foram os gays que trouxeram a
diversidade” (Mateus – 18 anos).
Hardcores, headbangers, góticos, emos, clubbers, indies, skatistas, travestis, toda essa
“diversidade” em “um lugar só” convivendo em “harmonia”. O discurso que ideologiza a Fun
Fashion é o da “diversidade” e o do “respeito às diferenças”. Já diz a sabedoria popular: “à
noite todos os gatos são pardos”, e onde não há diferenciação não há contaminação (Douglas,
1976). É claro que eles percebem as diferenças, mas não erguem fronteiras.
“Aqui dá todo tipo de classe social. Não tem frescura homem e mulher. Rock e brega é
tudo igual” (José – 18 anos).
Essa mentalidade é atribuída ao ser “roqueiro”, que se orgulha de sua “mente aberta”.
O lugar aparece nos discursos como um grande exemplo de coexistência pacífica. Em 2004 e
em 2005 não presenciei nenhuma briga no local, e os únicos dois relatos que ouvi nessas
ocasiões acerca disso referiam-se a situações originadas fora dali. Isso não quer dizer que
provocações não existam entre os grupos. Não faltam oportunidades para o preconceito ou
para a “tiração de onda” entre as “tribos”. Hostilidades e brincadeiras ocorrem o tempo todo,
quase sempre com um caráter sexual, mas sem maiores repercussões. Os “emos” são o alvo
preferencial das provocações e também a forma prioritária de provocar. Se na Fun não se
trocam socos, o mesmo não se pode dizer dos beijos. Desse modo, ao contrário do que
ocorreu em relação a brigas, os relatos sobre assédios foram muito freqüentes. O assédio não
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se fazia só verbalmente, mas também com o “toque” e a “pegada”, e constituam a forma de
sociabilidade por excelência daquele lugar. Fato que não se dá apenas com os homossexuais
entre si, ou com os heterossexuais, mas entre ambos também, e daí não decorre conflito. Tudo
é levado como brincadeira, e eles entendem que quem está ali, tacitamente, está disposto a
isto. A Fun é o lugar da “pegação”.
É o uso daquele espaço comum, como reivindicação de liberdade, que caracteriza a
identidade dos freqüentadores. Não é a roupa, a música, a classe social, a opção sexual. A
“carteirinha” está associada à freqüência, à participação. Os consumos existem (da música, da
bebida, etc), mas este espaço é marcado pela primazia do uso. Segundo eles, a liberdade é o
que todo mundo quer, e ali eles a têm. Por estarem na rua eles se sentem livres. Mas não é o
caso de se restabelecer a velha e, em muitos casos, falsa oposição entre a casa e a rua. Ora,
casas abertas existem e ruas fechadas também. Assim, a Fun Fashion configura-se uma
“mancha” em um sentido diferente daquele utilizado por Magnani (1996), mas significando
aquela situação nas brincadeiras de “pega” em que o indivíduo se encontra “livre”.
“É um espaço público que tá na rua e que você pode fazer o que bem entender. Curtir a
vida sem ser repreendido” (Mateus – 18 anos).
A superexposição da sexualidade (junto com a exacerbação do álcool) acabam por
definir o lugar como um ambiente do descontrole, da falta de normas, da devassidão, do caos
moral, da pouca vergonha, e do perigo. Estes jovens, aparentemente dispostos a tudo para
convencer os colegas de como são “livres” e “modernos”, escandalizavam os passantes com
suas performances. Tenho vários registros em diário de campo das ocasiões em que os
seguranças do shopping mandaram alguns jovens sentarem “direito” na mureta da calçada.
Segundo um dos seguranças, aquilo “pertencia ao shopping”, se eles quisessem “poderiam
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ficar sentados, mas deitados não”. Era bastante comum que os jovens se deitassem nessa
mureta ficando um com a cabeça no colo do outro (independente de serem do mesmo sexo ou
de sexos opostos). Quanto à prostituição, embora neguem ter conhecimento da ocorrência
desta prática, alguns deles afirmaram conhecer quem prestasse favores homossexuais em troca
de pequenas importâncias ou outros favores. Não tardaria para que o local se constituísse em
objeto de assédio policial, que encontrava uma justificativa legítima no consumo de bebida
alcoólica por menores de idade, se nada mais fosse encontrado.
Voltar para Fun Fashion hoje (2010) significou revisar as minhas observações de antes
e ver até que ponto elas valiam para o mesmo caso seis anos depois, sobretudo em relação ao
discurso do respeito mútuo e da tolerância. Tentei entrar em contato com outros dos meus
interlocutores da época a fim de nos encontrarmos na Fun, mas alguns dos telefones que eu
conservava desde 2004 não estavam mais em atividade. Dentre os que foram localizados,
apenas um ainda era freqüentador do velho cruzamento, aquele que fora identificado como
João, agora com 24 anos. O tempo todo ele dizia que “a Fun está muito diferente”, “a Fun não
é mais a mesma”, “a Fun mudou muito”. Ele referia-se ao comércio de drogas no local, e a
principal característica da Fun Fashion, o clima “pacífico”, como uma característica do
passado. O tráfico e os freqüentes atos de violência datam mais ou menos da mesma época,
três anos passados; e segundo João, são protagonizados pelos mesmos atores.
Marquei com João na varanda do Shopping Boa Vista (área reservada para fumantes)
que oferece uma ampla vista do cruzamento onde as tribos se reúnem. Ele chegou com dois
amigos, novos freqüentadores da Fun, e não demorou para que pudéssemos acompanhar lá de
cima as cenas de violência das quais falávamos. As brigas não tomam grandes proporções,
mas atrapalham a festa. Apesar de brigas terem se tornando freqüentes, o discurso do respeito
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mútuo e da tolerância permanece forte no local, que continua sendo definido nestes termos.
Eles explicam que as brigas não estão ligadas as interações entre as “tribos” que freqüentam a
Fun Fashion, não dizem respeito aos estilos de cada um. Elas são promovidas por “estranhos”
ao lugar, pessoas de fora que não têm o “espírito da Fun”, que vão para pertubar, xingar,
realizar pequenos furtos... “Os freqüentadores da Fun aprendem a respeitar a diversidade”
(João – 24 anos).
Em seis anos o lugar renovou seu público. A propaganda “boca-a-boca” é o mecanismo
central dessa renovação, e mesmo os mais novos freqüentadores já reproduzem no discurso o
“espírito da Fun Fashion”, que parece em nada ter sofrido com o aumento do consumo de
drogas (e de sua venda explícita) e da violência no local. A presença de “galerosos”, não
identificados como freqüentadores da Fun, permitiu o fortalecimento da identidade do lugar. A
Fun Fashion continua sendo percebida como um “ponto de encontro”, um “lugar de pegação”,
um “espaço para quem quer se divertir”, definido em termos da “liberdade” e do “respeito
mútuo” (ainda que a comparação com o passado faça emergir um sentimento de saudade).
Nesse sentido, Fun Fashion não é apenas o nome de uma “mancha”, define uma prática e um
discurso, uma forma de se relacionar que vai se inscrevendo física e simbolicamente no
espaço, estabelecendo nele limites e possibilidades. O espaço transforma-se em lugar,
território emocional, cheio de significados, arquivo de lembranças onde se imprimem os
rastros da nossa passagem.
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Considerações Finais
Movimentos difíceis de gerir insinuam-se astuciosamente pelas “brechas” da paisagem
“hegemônica” da cidade (que se expande), e inscrevem nela paisagens “transversais” (que se
encolhem), expressando demandas silenciosas de agências difusas. Eles constituem a dinâmica
das cidades, o modo pelo qual alguns “lugares” desaparecem e “os outros” colocam-se no
“lugar”, ultrapassando os limites fixados para o seu uso. São fantasmas que rondam a cidade
disciplinar e que ela busca exorcizar, excluindo para esconder e escondendo para excluir.
Relação íntima (de um encaixe) entre um uso “tático” que afaga a cidade (e a pratica), e um
abuso “estratégico” que espanca o “outro” (e o impede de praticá-la).
A observação da Fun Fashion sugeriu um processo de reapropriação/reinvenção do
espaço pelo/para o uso do lazer. Na(s) cidade(s), onde tudo cheira a desigualdade e exclusão, este
espaço configura-se como uma “mancha” (neste caso, significando aquela situação nas
brincadeiras de “pega” em que o indivíduo se encontra livre), um espaço aberto, sem fronteiras
demarcadas (não as percebi e tudo leva a crer que não existem, ao menos por enquanto). Válvula
de escape ou não, respondendo a toda exclusão, sob o nome de Fun Fashion, estes jovens
construíram um espaço marcado pela liberdade, onde todos “se permitem”. Naquela escuridão, a
cidade se (re)inventa, arranjando novas formas de sociabilidade, astúcias sutis, táticas,
resistências, em busca da viabilização da vida.
Não se trata, no entanto, de negar as desigualdades, a exploração, os efeitos perversos do
sistema capitalista, a ação repressora do Estado, as humilhações públicas, muito menos as
fronteiras de classe e a segregação espacial. Mas trata-se, sobretudo, de iluminar as jaulas que
segregam e confinam os grupos humanos lhes tirando a humanidade, de questionar o direito à
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182
cidade organizada pela técnica à serviço do Capital e de reconhecer a vitalidade das práticas em
busca de um princípio de ação que anima mais do que ordena e reclama seu direito à cidade.
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