Jaqueline Souza Gomes de Melo - Programa de Pós

Transcrição

Jaqueline Souza Gomes de Melo - Programa de Pós
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
MESTRADO ACADÊMICO
PRATICANTES E USUÁRIOS DE MAGIA NA PRIMEIRA
VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À BAHIA (1591-1593):
APRECIAÇÕES SOBRE RELAÇÕES SOCIAIS
JAQUELINE SOUZA GOMES DE MELO
Santo Antônio de Jesus, Bahia
Setembro/2012
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
MESTRADO ACADÊMICO
PRATICIPANTES E USUÁRIOS DE MAGIA NA PRIMEIRA
VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À BAHIA (1591-1593):
APRECIAÇÕES SOBRE RELAÇÕES SOCIAIS
JAQUELINE SOUZA GOMES DE MELO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Regional e Local da
Universidade do Estado da Bahia (PPGHIS/UNEB)
como requisito obrigatório para a obtenção do título
de Mestre em História.
Orientadora: Profª. Drª. Suzana Severs
Santo Antônio de Jesus, Bahia
Setembro/2012
3
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Melo, Jaqueline Souza Gomes de
Participantes e usuários de magia na primeira visitação do Santo Ofício à Bahia
(1591-1593) : apreciações sobre relações sociais. / Jaqueline Souza Gomes de Brasão
. – Santo Antonio de Jesus, 2011.
127f.
Orientadora: Profª. Drª Suzana Severs
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências
Humanas - Campus V. Programa de Pós Graduação em História Regional e Local, 2012.
Contém referências.
1. Inquisição - Bahia. 2. Feitiçaria – Bahia. 3. Magia - Bahia. I. Melo, Jaqueline Souza
Gomes de. II. Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas.
CDD: 272.2
4
PRATICANTES E USUÁRIOS DE MAGIA NA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO
OFÍCIO À BAHIA (1591-1593): APRECIAÇÕES SOBRE RELAÇÕES SOCIAIS
Autora: Jaqueline Souza Gomes de Melo
Orientadora: Profª. Drª. Suzana Severs
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia como requisito
necessário a obtenção do título de Mestre em História.
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio Nunes da Silva
_______________________________________________
Profª. Drª. Elisangela Oliveira Ferreira
_______________________________________________
Profª. Drª. Márcia Maria da Silva Barreiros
_______________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira
Santo Antônio de Jesus, 08 de Agosto de 2012.
5
Aos meus pais Sandra Gomes e Jacob Gomes
Ao meu esposo Tiago Melo
6
AGRADECIMENTOS
Antes de todos aos que aqui agradecerei, afirmo minha fé e agradeço a
Deus pela oportunidade, disciplina e inspiração para desenvolver este trabalho,
pois sem suas bênçãos a conclusão não seria possível. Assim, agradeço
imensamente a todos que a seguir serão mencionados.
Ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da
Universidade do Estado da Bahia que aceitou meu projeto de pesquisa, aqui
desenvolvido e apresentado.
À minha estimada orientadora Suzana Severs que com sua competência e
paciência soube orientar de maneira singular a condução de minha atividade de
pesquisa, tornando possível esta dissertação.
À querida Profª Drª. Márcia Barreiros, quem sempre acreditou no meu
trabalho e me deu muita força para seguir em frente.
Ao Fundo de Amparo a Pesquisa da Bahia - FAPESB, que durante certo
tempo apoiou-me financeiramente com bolsa de pesquisa.
Ao Prof. Dr. Marco Antônio Nunes da Silva e a Prof.ª Dr.ª Elisangela
Oliveira Ferreira que compuseram a Banca de Exame de Qualificação e que
também se fazem presentes na Banca de Defesa desta dissertação. Aos
professores que na condição de suplentes aceitaram ao convite para apreciarem
e analisarem essa dissertação.
Aos meus colegas da turma 2010.1 deste Mestrado em História Regional e
Local, especialmente a Napoliana Pereira que se tornou uma grande amiga e
confidente indispensável, e dos meus queridos colegas Álvaro Leal, Eliana Batista
e Luís Argolo.
À Prof.ª Dr.ª Elizete da Silva que me aceitou na condição de aluna especial
da disciplina “Tópicos do campo religioso brasileiro”, no Programa de PósGraduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana.
7
Ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Feira de Santana que disponibilizou meu ingresso como aluna especial,
disponibilizando também consulta e empréstimos de livros.
Aos funcionários do Instituo Geográfico e Histórico Brasileiro e da
Biblioteca Pública da Bahia que pacientemente me auxiliaram na busca por obras
raras e imprescindíveis para nossa investigação.
Aos meus amados e respeitados pais Sandra Gomes e Jacob Gomes que
estiveram e estão comigo em todos os momentos da vida.
As minhas queridas irmãs Jamile Gomes e Viviane Lopes que
pacientemente me aturaram nesta trajetória de pesquisa.
Ao meu amigo e esposo Tiago Melo, que a todo o momento me incentivou
para a conclusão deste trabalho.
Aos meus tios Luís Rocha, Norma Salgueiro, Linda Gomes e a minha avó
Isaura Sousa pelo apoio.
Aos meus sogros João Melo e Maria da Silva que também me apoiaram
nesta caminhada.
A todos os meus familiares que mesmo à distância acreditou em meu
potencial especialmente aqueles que não estão presentes neste plano espiritual,
as tias Evani Rocha e Dalva Brito, e aos avós Carlos de Sousa, Ruth Brito, e
Antônio Brito.
Às minhas amigas de graduação Alexandra Melo, Camila Góes e Taiane
Pugas, que tanto me estimularam para a realização deste Curso de Mestrado. E
as minhas amigas Ariadne Magalhães e Mayara Pascoal que pacientemente
ouviram minhas dificuldades e me fizeram rir nestes tempos.
A todos e todas que direta ou indiretamente contribuíram para a produção e
conclusão desta caminhada desta prática historiográfica.
8
RESUMO
Criada para combater especialmente a heresia judaica, a Inquisição ibérica foi
uma instituição que fiscalizou e puniu práticas consideradas heréticas, bem como
comportamentos contrários à doutrina católica. Assim como na Espanha, em
Portugal o alvo principal do Santo Ofício foi à extirpação das ações dos cristãosnovos judaizantes; entretanto, outras culpas foram perseguidas e penitenciadas
como os casos de bruxaria e feitiçaria. As garras inquisitoriais também se
estenderam aos habitantes da nova terra, a América portuguesa. Nesta
dissertação trataremos de casos de feitiçaria que ocorreram na “cidade da Bahia”
e seu entorno observando as relações sociais entre feiticeiras/os e seus clientes
durante a Primeira Visitação do Santo Ofício entre 1591 a 1593. Para tanto,
utilizamos dois processos inquisitoriais movidos contra as acusadas de feitiçaria
Maria Gonçalves Cajada e sua vizinha Violante Carneira, escolhidos por melhor
refletir exemplo de convivência a ser estudado.
Palavras-chave: Inquisição, América portuguesa, Bahia, feitiçaria.
9
RESUMEN
Creada para combatir especialmente la herejía judaica, la inquisición ibérica fue
una institución que fiscalizó y punió prácticas consideradas heréticas, bien como
comportamientos que causarían cierto prejuicio a la sociedad moderna ibérica y
sus colonias. Así como en España, en Portugal la asesta principal del Santo Oficio
fue a la extirpación de las acciones de los cristianos nuevos judaizantes,
entretanto otras culpas fueron perseguidas y penitenciadas como los casos de
brujería y hechizaría. Las garras inquisitoriales también se extendieron a los
habitantes de la tierra nueva, la América portuguesa. En esta disertación
trataremos de casos de hechizaría que ocurrieron en la “ciudad de Bahia” y su
alrededor no perdiendo de vista las relaciones sociales entres hechiceros y sus
clientes durante la Primera Visitación del Santo Oficio entre 1591 a 1593. Para
tanto, utilizamos dos procesos inquisitoriales producidos contra las acusadas de
hechizaría Maria Gonçalves Cajada y su vecina Violante Carneira, elegidos por
mejor reflejar ejemplo de convivencia a ser estudiado.
Palabras claves: Inquisición, América portuguesa, Bahia, hechizaría.
10
SUMÁRIO
Introdução ..........................................................................................................................11
Capítulo I. Algumas considerações sobre a Inquisição e a repressão à bruxaria:
Da Europa medieval aos quinhentos da América portuguesa Erro! Indicador não
definido.
1. A repressão contra os bruxos na inquisição......................................................36
2. A Inquisição na América portuguesa: apresentando a capitania da Bahia ..39
2.1.
2.1.1.
As Visitações e feitiçaria na Bahia ..................................................................44
A Primeira Visitação .......................................................................................44
Capítulo II. A Magia, o oficiante e o usuário: Suas relações sociais na Bahia .......56
1. Os tipos de contatos sociais e a magia na Bahia .............................................57
1.1.
As relações de vizinhaça ..................................................................................62
1.2.
As relações financeiras .....................................................................................68
2. A magia: seus tipos e motivações .......................................................................71
Capítulo III: Feitiçaria ma capitania da bahia: estudos de casos ..............................87
1. Violante Carneira ...................................................................................................88
2. Maria Gonçalves Cajada.......................................................................................96
Considerações finais ..................................................................................................... 111
Referências ..................................................................................................................... 114
Apêndice.......................................................................................................................... 120
11
INTRODUÇÃO
Conquista de amores, amansamento de maridos, cura de doenças, morte
de cônjuges e inimigos, destruição de colheitas e catástrofes naturais foram
alguns dos resultados que os usos das práticas mágicas podiam oferecer.
Estudos apontam que desde as antigas civilizações os oficiantes mágicos foram
solicitados para a resolução de problemas cotidianos ao mesmo tempo em que
tiveram seus adeptos e atos perseguidos e reprimidos 1.
Entretanto, não podemos datar de maneira precisa o surgimento da efetiva
perseguição aos praticantes de magia. Sabe-se que antes do estabelecimento da
Inquisição medieval eles já eram alvo de persecuções. Por vezes, suas práticas
eram classificadas como atos supersticiosos, seja por conta da justiça eclesiástica
seja pela justiça civil, mas foi principalmente com a instituição da Inquisição
medieval que a busca e captura desses infiéis e suas práticas se intensificaram.
Durante a Idade Média cabia à justiça secular e eclesiástica a prisão,
julgamento e punição aos transgressores e hereges católicos. Foi com o
estabelecimento da Inquisição ainda no Medievo que a magia deixou de ser
classificada como um pecado público e passou a ser classificada como heresia
sendo, portanto considerada crime de heresia perseguida e julgada pela Igreja.
Perseguição que correu também durante o funcionamento da Inquisição moderna,
que, mesmo não sendo a bruxaria e feitiçaria o maior alvo das perseguições
contra a fé, dói continuou sendo perseguida e punida neste instante deixando de
ser heresia pertencendo ao rol das apostasias2.
Com a instituição da Inquisição moderna ibérica os oficiantes de magia
passaram a ter suas práticas classificadas como heresia, momento em que
também surgiram os principais conceitos e termos para designar seu ofício e seus
1
Ver, por exemplo, os estudos de BAROJA, Júlio Caro. As bruxas e seu mundo. Lisboa: Editora
Vega. 1979. NOGUE IRA, Carlos Roberto F. Bruxaria e História. As práticas mágicas no Ocidente
Cristão. Bauru: EDUSC, 2004. MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século
XVII. Uma análise da psicologia histórica. São Paulo: Perspectiva, 1979. THOMAS, Keith. O
declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. TREVOR-HOPPE R, Hugh. A crise do
século XVII. Religião, reforma e mudança social. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
2
FALBEL, Nachman. Heresias medievais. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 24.
12
oficiantes. Vocábulos diversos – feitiçaria, bruxaria, feitiço, sortilégio, saludador,
curandeiro, dentre outros – que surgiram não apenas nos lugares onde a
Inquisição se fez presente, mas em grande parte da Europa cristã. Era preciso
extirpá-las.
A magia foi duplamente qualificada como boa ou má. Para o contexto da
modernidade europeia, estudiosos como Robert Mandrou 3 e Hugh Trevor-Roper 4,
a exemplo, classificam a magia em feitiçaria e bruxaria, sendo seus oficiantes
designados como encantadores, feiticeiros, bruxos, adivinhadores, magos e até
mesmo mágicos, denominações que variavam de acordo com o tipo de prática
que realizavam e da localidade geográfica onde residiam.
A feitiçaria foi durante muito tempo considerada como uma prática de
magia branca ou benéfica. Geralmente era realizada individualmente e utilizada
frequentemente para sanar problemas de saúde, acelerar as colheitas, ou trazer
sorte na vida afetiva. E, apesar de não ser legitimada pelos Reinos era tolerada
desde que fosse provado que não causaria malefício à sociedade.
Já a bruxaria era contrária à feitiçaria. Podendo ser também denominada
como magia negra ou feitiçaria diabólica. Foi o tipo de magia que mais sofreu
perseguição. Para que seus atos fossem realizados era necessário auxílio de
forças sobrenaturais, firmados com um pacto demoníaco, além da obrigação da
participação de seus seguidores em encontros noturnos nos chamados sabás,
onde eram reafirmados laços de união e submissão ao demônio.
Contasse que estas cerimônias geralmente aconteciam em locais
afastados da comunidade, na maioria das vezes eram realizadas nos dias de
sábados de lua cheia e em companhia de outras bruxas e bruxos. Era também
um momento para a consumação de encontros e “orgias” sexuais das bruxas com
demônios em forma de homem ou de animais.
3
MANDROU, Robert. Magistrados e f eiticeiros na França do século XVII. Uma análise da
psicologia histórica. São Paulo: Perspectiva, 1979.
4
TREVOR-HOPER, Hugh. A crise do século XVII. Religião, a Reforma e a mudanç a social. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2003.
13
Entretanto, a designação que melhor se aplica aos casos ocorridos na
Bahia colonial é a denominação de feitiçaria, pois, ao observarmos a
documentação inquisitorial pesquisada, ficou claro que os praticantes de magia
residentes nesta capitania não informam pactos demoníacos – característica
fundamental para a efetivação de bruxaria – além disso, é o termo que com maior
frequência aparece nos documentos pesquisados. Todavia, em alguns casos
fazemos uso da denominação feitiçaria diabólica ou mesmo bruxaria quando
pertinente, já que essas práticas foram realizadas na América portuguesa mesmo
que em menor proporção, sendo assim referidas nas fontes analisadas.
Estabelecida em 1536, a Inquisição portuguesa direcionou sobre o território
metropolitano e colonial a necessidade da fiscalização, perseguição e punição
aos hereges. Foram fundados seis tribunais no Reino, nas dioceses de Lisboa,
Coimbra, Évora, Porto, Tomar e Lamego – sendo que os três últimos foram
suspensos - e um tribunal em Gôa, única colônia lusitana que teve um Tribunal do
Santo Ofício em funcionamento.
O Tribunal de Lisboa foi responsável pela fiscalização da América
portuguesa que, por inúmeras razões discutidas por diversos historiadores, não
teve um Tribunal aí estabelecido 5. A Inquisição aqui se fez presente durante os
quase três séculos de seu funcionamento por meio de inspeções de eclesiásticos,
sob a responsabilidade, sobretudo, dos bispos e funcionários da Inquisição –
como os visitadores que realizaram duas Visitações, além da presença constante
de Comissários do Santo Ofício, especialmente no século XVIII, responsáveis por
realizar as diligências solicitadas pelo Tribunal de Lisboa, ouvir confissões e
delações, mandar prender, dentre outras atividades estritamente ligadas ao bom
funcionamento da Inquisição no ultramar 6.
5
PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil. Aspectos da sua actuação nas
capitanias do sul. De meados do século XV I ao início do século XV III. Coimbra: Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, 2006.
6
Sobre o funcionamento do Santo Ofício na Bahia, a tese de Doutoramento de Grayce Mayre
Bonfim Souza. Para remédio das almas: Comissários, Qualificadores e Notários da Inquisição
portuguesa na B ahia (1692-1804). S alvador: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia, 2009. [Doutoramento].
14
Na Bahia foram feitas duas Visitações. A primeira, ocorrida entre os anos
de 1591 a 1593, ficou ao encargo do Visitador Heitor Furtado de Mendonça.
Visitação que não ficou restrita a Bahia e ao término das atividades realizadas no
(antigo) Colégio da Companhia de Jesus, o Visitador e sua comitiva partiram para
Pernambuco, permanecendo nesta capitania até 1595. A segunda visitação, esta
restrita à capitania da Bahia, ocorreu entre os anos de 1618 e 1620, sob a
responsabilidade do visitador Marcos Teixeira. Ambas tiveram os mesmos
objetivos: fiscalizar a fé católica e buscar hereges para serem processados e
sentenciados por suas culpas.
Inquirir de perto as displicências dos costumes, as indiferenças e
distorções da crença eram a missão de que se imbuiu o licenciado
Heitor Furtado de Mendonça capitão fidalgo d’el rei e do
Desembargo do Paço, [...] seu poder de julgamento limitava-se aos
bígamos, blasfemos e culpados menores, devendo remeter a
Lisboa os acusados de judaísmo, sodomia, feitiçaria e outras culpas
com seus respectivos processos.7
Diversos motivos trouxeram os visitadores à Bahia. Motivos que iam desde
as queixas de padres jesuítas, ao enviarem constantemente ao reino cartas
contando sobre atitudes e comportamentos infiéis dos colonos, além das
frequentes queixas destes padres e dos próprios colonos acerca da “selvageria
dos
nativos” e
da
presença
cristã-nova
judaizante, até
motivações
e
determinações régias para a fiscalização da fé católica.
Assim, em 1591 a capitania da Bahia recebeu a Primeira Visitação, dando
efetivo início às investidas inquisitoriais na América portuguesa. Muitas pessoas
chegaram à mesa do Visitador para denunciar e confessar práticas consideradas
heréticas como sodomia, blasfêmia, solicitação, feitiçaria, e principalmente as
práticas judaizantes. Lembramos que o maior objetivo da Inquisição Ibérica foi a
perseguição das práticas criptojudaizantes. 8
7
SOUZA, Laura de Melo e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia. das Let ras, 1986. p.
73.
8
NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Perspectiva, 1999. SARAIVA, Antônio José.
Inquisição e Cristãos Novos. Lisboa: Estampa, 1985. BE THENCOURT, Francisco. Historia das
Inquisições: Portugal, Espanha e It ália. Séculos XV -XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
15
As heresias classificadas como crimes menores foram penitenciadas em
mesa do Visitador, como os casos de blasfêmia, perjúrio, sendo punidas com
abjurações, penitências espirituais, além do pagamento das custas do processo –
que sobrecaia todos os processados pela Inquisição, independente do tipo de
crime. Aos crimes considerados graves era dada a abertura de processos e os
culpados eram presos e encaminhados a Portugal para que lá fossem julgados e
sentenciados no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. Ação comum quando se
tratava de acusados de práticas judaizantes e casos extraordinários de bruxaria e
sodomia.
Entre os anos finais do século XVI e os anos iniciais do século XVII, assim
como na tradição medieval, foram especialmente as mulheres, muitas cristãsvelhas e algumas cristãs-novas, as principais acusadas de realizarem magia na
capitania da Bahia. Mulheres que vieram de Portugal acompanhando seus
maridos ou, já sentenciadas pela Inquisição, para purgar culpas, a exemplo dos
crimes de bruxaria e feitiçaria.
A troca de conhecimentos de magia, possivelmente, se deu por meio dos
contatos cotidianos ou esporádicos entre os habitantes na capitania, ocasionados
por meio de amizade, vizinhança ou pela prestação de serviços de magia. São
esses contatos sociais que apresentamos nesta dissertação. Sociabilidades
originadas entre feiticeiros e seus clientes ou usuários residentes na “cidade da
Bahia” e no Recôncavo baiano em fins do século XVI e i nício do século XVII que
foram pouco tratadas, ou não tratadas de forma sistemática pela historiografia
brasileira.
Deste modo, utilizamos como fonte de pesquisa os já publicados Livros de
Confissões e Denunciações das Primeira e Segunda Visitações ocorridas entre
1591-1593 e 1618-1620, respectivamente, bem como os processos inquisitoriais
movidos contra Violante Carneira e Maria Gonçalves, disponíveis no site do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. A partir da análise destes dois processos,
pensamos
poder
apontar
algumas
características
estabelecidas entre estas duas processadas.
das
relações
sociais
16
Violante Carneira e Maria Gonçalves são personagens quinhentistas que
moravam na mesma rua e foram escolhidas para serem tratadas nesta
dissertação devido à proximidade e vivência social ocasionada pelo exercício da
magia realizado por elas. Logo, esperamos contribuir com a produção
historiográfica referente à religiosidade popular brasílica tendo por base as
sociabilidades entre oficiantes e usuários de magia, moradores da capital da
América portuguesa e no Recôncavo baiano.
Comentário bibliográfico e notas teórico-metodológicas
A religiosidade vivida na América portuguesa merece atenção singular
graças à evidente diversidade cultural propiciada pelos diferentes grupos sociais
que vieram aí se estabelecer voluntária ou involuntariamente. As devoções
africanas, ameríndias e outras que também empregavam elementos naturais,
como a utilização de ervas ou ainda o uso de cânticos e orações distintas da
liturgia católica, eram classificadas e consideradas pela Inquisição como feitiçaria
ou bruxaria.
Magia e religião são conceitos que se unem e se afastam em determinadas
situações. O antropólogo Marcel Mauss nos mostra que a religião se utiliza da
magia para auxiliar a vivência religiosa. Para ele não existe religião sem magia,
pois a mágica – realizada por meio de ritos e encantamentos individual ou
coletivamente – é necessária para a prática da fé, embora nem sempre seja
realizada em função de uma determinada religião9.
Já o sociólogo Pierre Bourdieu aborda, dentre outras concepções de
religião e prática religiosa, assuntos ligados à magia. Bourdieu afirma que a magia
não está unida à religião, pois a religião é a institucionalização do sagrado,
estruturada, hierarquizada e, geralmente, condicionada ao domínio do Estado. Já
a magia é considerada uma espécie de antireligião caracterizada pela utilização
ou manipulação de elementos naturais ou da religião de maneira profana.
9
MAUSS, Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo:
Cosac & Naif, 2003. p. 81
17
Conceito que poderá ser aplicado ao nosso objeto de estudo já que na América
portuguesa todos os colonos deveriam praticar e auxiliar na propagação da fé
católica, religião oficial imposta pela monarquia. Assim tanto a magia como a
religião apresentam dogmas, ritos, mitos e sacrifícios, mas são distintas na
realização de suas práticas, mesmo que seus fins se assemelhem.
Uma vez que a religião, e em geral, todo sistema simbólico está
predisposta a cumprir uma função de associação e dissociação,
ou melhor, de distinção, um sistema de práticas e crenças está
fadado a surgir como magia ou como feitiçaria, no sentido de
religião inferior, todas as vezes que ocupar uma posição
dominada nas estruturas das relações de força simbólica, ou seja,
nos sistemas das relações entre os sistemas de práticas e de
crenças próprias a uma formação social determinada. Desta
maneira, costuma-se designar em geral como magia tanto uma
religião inferior e antiga, logo primitiva quanto uma religião inferior
e contemporânea, logo profana [...] 10
A sociedade do Antigo Regime tinha viva na mentalidade e no imaginário
reminiscências dos tempos medievais, tendo como base religiosa, social e política
os ideais defendidos pela doutrina católica, e que mesmo com o iniciar da
modernidade,
caracterizado
pelos
ideais
renascentistas,
continuavam
respeitantes a fé católica, seja pelo real sentimento religioso apostólico, seja por
medo da Inquisição.11
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira também esboça uma definição para o
conceito de magia que é facilmente aplicado para os casos da Renascença,
Apresentavam-na como uma antinomia da fé, a sã religiosidade,
da busca de Deus a vontade mórbida de desrespeitar a ordem
divina numa manifestação arquetípica do orgulho luciferiano – no
caso do mago -, ou da vontade da fraqueza de Eva – no caso da
feiticeira e da bruxa. Homens e mulheres de pouca fé,
naturalmente maus, ordenada por prazeres da carne imediato e
sem barreiras e a necessidade de extravasar o seu ódio contra o
gênero humano, adoravam servilmente a Satã e o cultuavam,
aviltando a ordem divina, por conseguinte a ordem social vigente.
É neste contexto que a bruxaria se destaca das diversas
10
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 43 -44.
LÖWY, Michael. Marx e Engles como sociólogos da religião. Lua Nova. Revista de cultura e
política, n. 43, 1998. p. 157-170.
11
18
participações do universo mágico, a terrível apostasia o crimen
exceptum maior de todas as perversidades.12
Nossa temática ganha fôlego para estudo, sobretudo a partir da Escola dos
Annales, quando a ciência histórica obteve novos contornos, com abrangência de
temáticas e métodos para o estudo, escrita e a narrativa histórica. Vindos das
gerações dos Annales, os estudos de Emmanuel Le Roy Ladurie, Robert Mandrou
e o herdeiro dos Annales, Carlo Ginzburg além de Julio Caro Baroja, foram
fundamentais para o estudo sobre a bruxaria e feitiçaria na Europa. Ressaltamos
também os historiadores brasileiros Laura de Melo e Souza, pioneira no estudo da
feitiçaria na América Portuguesa, o já citado Carlos Roberto Figueiredo Nogueira
com seus estudos sobre bruxaria européia, Daniela Buono Calainho, Luiz Mott,
Ronaldo Vainfas, dentre outros cujos trabalhos trataremos direta ou indiretamente
nas páginas seguintes, cujos trabalhos viabilizam nosso estudo referente à
relação social entre feiticeiras e seus clientes na Capitania da Bahia quinhentista.
A partir da obra de Mandrou Magistrados e feiticeiros na França do século
XVII
13
foi possível distinguir e conceituar as designações sobre as práticas e
praticantes de magia, seja em feitiçaria ou bruxaria. Apesar de Mandrou tratar
especialmente dos casos em que ocorreram na França e refletir sobre a forma de
proceder aos casos de bruxaria, seu trabalho é pertinente à nossa investigação,
pois nele reconhecemos e podemos comparar como modo de investigar e de
proceder desde o momento da prisão e mesmo a penitência aplicada aos hereges
se assemelhavam ao modo ibérico. Além disso, apresenta alguns tipos de
sortilégios, feitiçarias e possessões que são certamente acontecimentos e
práticas manifestadas em outras monarquias, assim como também na Capitania
da Bahia.
O estudo de Julio Caro Baroja, As Bruxas e seu Mundo é relevante para a
compreensão do que consistia a ideia de bruxaria desde seu aparecimento no
medievo – quando houve as associações diabólicas - até às luzes da
12
NOGUE IRA, Carlos Roberto F. Bruxaria e História. As práticas mágicas no Ocidente Cristão.
Bauru: EDUS C, 2004. p. 65
13
MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII . Uma análise da
psicologia histórica. São Paulo: Perspectiva, 1979.
19
modernidade europeia. Baroja elenca o pensamento de vários especialistas no
assunto apontando as possíveis diferenças entre as diversas formas de praticar
magia. Entretanto, ele detém seus “olhares” às questões ligadas à bruxaria,
porque essa “ [...] é essencialmente negativa, inimiga do bem público e sem freio
[...] ” 14, e despertou temor e necessidade de extirpação por boa parte das
monarquias cristãs.
O historiador italiano Carlo Ginzburg também estuda a feitiçaria e é um dos
seguidores do francês Le Roy Ladurie, embora utilize da microanálise para tratar
dos assuntos ligados à magia. Carlo Ginzburg trata do sabá e dos feitiços
realizados nas colheitas como no caso dos feiticeiros Azande, que foram
acusados de bruxaria por sua religiosidade ser confundida como atos malévolos e
supersticiosos, ainda que utilizassem a magia para fins curativos e para o
sucesso nas colheitas, pois, para a Igreja Católica, qualquer tipo de intervenção
sobrenatural que não tivesse envolvimento com o divino seria considerado como
diabólico.
Ginzburg também desconstrói a ideia de sabá sugerida durante muito
tempo pelos historiadores e antropólogos. Para ele o conceito dos encontros entre
bruxos era fantasioso mesmo para a época em que os fatos eram relatados.
Assim, o historiador – tal como nós – desconstrói o imaginário das reuniões
noturnas com bruxas voando em vassouras e untando seus corpos com sague de
crianças, além da copula com o diabo e seus auxiliares. 15
Portanto, é a partir da História cultural que assentamos nosso aporte
teórico, entendendo que esta é própria para lidar com assuntos relacionados à
religiosidade colonial, buscando no imaginário as especificidades que levaram as
pessoas a solicitarem e realizarem ações mágicas para sanarem seus problemas
percebendo suas relações sociais e interações.
14
15
BAROJA, Júlio Caro. As bruxas e seu mundo. Lisboa: Editora Veja, 1979. p 54
GINZB URG, Carlo. História noturna. Decifrando o sabá. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. p 48.
20
Os estudos de Francisco Bethencourt 16 e José Pedro Paiva17 são
igualmente fundamentais para a compreensão do aparecimento da bruxaria em
Portugal, bem como tratam de questões específicas sobre a difusão, os tipos e as
práticas mágicas lá realizadas, além das formas de repressão ocorridas no Reino.
Repressão que, no olhar de Paiva, não foi demasiadamente intensa mesmo na
metrópole, mas não menos importante que as demais heresias, já que todos
esses indivíduos tiveram a triste vivência de passarem pelos cárceres do Tribunal
de Santo Ofício.
Bethencourt se debruça sobre o estabelecimento e funcionamento da
Inquisição moderna na obra intitulada História das Inquisições: Itália, Espanha e
Portugal, e se refere à magia especificamente em Imaginário da magia, mas não
esgotará a nossa temática. Os estudos de Paiva têm maior especificidade aos
casos de bruxaria e feitiçaria, como as obras Bruxaria e superstição num país
sem caça às bruxas e Práticas mágicas na diocese de Coimbra que se tornaram
um referencial para o estudo sobre a magia realizada em Portugal.
No primeiro trabalho, Paiva – assim como Bethencourt em Imaginário da
magia - traz uma retrospectiva histórica dos pensadores que defendiam ou
contestavam a existência de seres mágicos, além de tratar das jurisdições
responsáveis de cuidar do crime. Seu estudo é importante para que entendamos
de que maneira a Inquisição direcionou suas garras aos bruxos, mesmo sem uma
fiscalização intensa sobre tal heresia. A segunda obra e não menos importante
aponta os tipos de práticas que com maior frequência foram realizadas em
Coimbra. Práticas que também encontramos difundidas na América portuguesa,
como a utilização de cartas de tocar, filtro de amor, adivinhações, rezas e
benzeduras, práticas registradas nos livros das Visitações.
A historiografia brasileira tem nos estudos de Laura de Mello e Souza,
Daniela Calainho e Ronaldo Vainfas a singularidade no tratar da religiosidade
16
BETHE NCOURT, Francisco O Imaginário da Magia: feiticeiros adivinhos e curandeiros em
Portugal no século XV I. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
17
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça as bruxas: 1600 – 1774. 2 ed.
Lisboa: Editorial Notícias, 2002.
21
popular – mágica – da colônia. Em O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Souza
apresenta o cotidiano da América portuguesa envolvida em práticas mágicas
classificando os usos e os tipos de magia realizados em toda a América
portuguesa. A historiadora constata que os habitantes do Brasil colonial recorriam
à magia tanto para tratar o bem, na cura ou amenização de problemas de saúde e
de espiritualidade; quanto no trato do maligno, promovendo a agitação de
tormentos espirituais, desequilíbrios da natureza ou mesmo a morte de um
inimigo. Entretanto não aponta as vivências em que os feiticeiros e seus clientes
ou usuários envolveram-se.
As análises de Ronaldo Vainfas também são pertinentes e indispensáveis
para nossa investigação, pois contribuem para o entendimento da formação da
religiosidade popular brasílica e das questões relacionadas a comportamento e
moralidades dos colonos. Citamos dentre outros trabalhos Heresia dos índios18,
obra que trata da religiosidade indígena, especialmente no que veio a ser
chamada de Santidade – prática religiosa cultuada pelos indígenas que, grosso
modo, consistia numa espécie sincrética da religiosidade cristã atrelada a crenças
consideradas ímpias do ameríndio.
Daniela Buono Calainho, apesar de não tratar especificamente da feitiçaria
americana traz uma importante obra sobre a prática de feitiçaria realizada por
africanos em Portugal, sob o título Metrópole das mandingas – práticas essas que
também são arroladas e relatadas por José Pedro Paiva e Francisco Bethencourt,
embora esses historiadores não tenham debruçado-se sistematicamente sobre as
especificidades das práticas, bem como as intervenções e interações dos
conhecimentos mágicos dos escravos e as relações com seus pares e seus
senhores -, e que, a partir de nossa investigação, podemos afirmar que as ações
mágicas realizadas em Portugal por escravos vindos da África também na Bahia
quinhentista foram amiúde difundidas e praticadas.
18
Além deste livro, lembramos que a obra intitulada Trópico dos pecados: moral, sexualidade e
Inquisição no Brasil são também de grande importância para nosso estudo, pois o autor trata de
questões relacionadas às moralidades, aos costumes e ao comportament o dos colonos a partir de
documentos inquisitoriais, apresent ando-nos um pouco do c otidiano da sociedade da América
portuguesa.
22
Por fim e mais uma vez ainda, no que tange à historiografia nacional
destacamos os trabalhos de Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, um dos maiores
estudiosos na temática sobre bruxaria, cujos trabalhos trazem significativas
análises sobre surgimento da magia no ocidente europeu até a prática da bruxaria
na contemporaneidade19.
Suas obras são importantíssimas para nossa pesquisa, pois apresenta a
mentalidade, o imaginário e a crença em bruxaria e feitiçaria pela sociedade
moderna, sendo, portanto base para nossa discussão de práticas mágicas na
América portuguesa. E mesmo não especificando seus estudos para o Brasil
colonial, principalmente no que diz respeito à capitania da Bahia, Nogueira
sintetiza e discute claramente acerca da realização de magia, os tipos de magia e
da distinção entre feitiçaria e bruxaria, não se esquecendo de expor a
perseguição pela Inquisição.
Utilizamos algumas das contribuições da micro-história para analisar dois
processos inquisitoriais contra duas mulheres acusadas de praticarem magia, as
vizinhas Violante Carneira e Maria Gonçalves Cajada. Tomamos por base o
ensaio de Carlo Ginzburg O Inquisidor como antropólogo para direcionar nossa
investigação nas fontes inquisitoriais. Ginzburg identifica as aproximações que o
Inquisidor tem com o antropólogo, defendendo que o Inquisidor, assim como o
antropólogo, observa e relata a vivência que lhe é apresentada. Esse trabalho de
observador é transferido para o historiador que necessitará de atenção para tratar
da documentação inquisitorial, sendo a leitura e compreensão da documentação
realizado por meio de uma leitura minuciosa nas chamadas entrelinhas e uma
análise meticulosa atrelada a outros documentos e registros teóricos, o que
proporciona o entendimento de suas particularidades. No entanto, ao contrário do
Inquisidor medieval, o moderno ibérico não se aterá em perguntar e ouvir do réu a
descrição minuciosa do crime cometido, mas tão-somente no arrolamento dos
cúmplices, considerando também como cúmplices os aqui denominados clientes
– as pessoas que solicitavam a magia.
19
NOGUE IRA, Carlos Roberto F. Bruxaria e História. As práticas mágicas no Ocident e Cristão.
Bauru: EDUS C, 2004.
23
Giovanni Levi expõe de forma sucinta considerações acerca dos objetos e
métodos de estudos micro-históricos, afirmando que para se conhecer as
especificidades de uma temática é necessário analisar pequenos recortes, pois
serão esses recortes que proporcionarão a compreensão de um todo.
[...] A micro-história é essencialmente uma prática historiográfica
em que suas referências teóricas são variadas e, em certo
sentido, ecléticas. [...] a micro-história não pode ser definida em
relação à micro dimensões de seu objeto de estudo. [...] Assim
como todo trabalho experimental, não tem um corpo de ortodoxias
estabelecido para dele se servir. A ampla diversidade de material
produzido demonstra claramente o quanto é limitada a variedade
de elementos comuns. Entretanto em minha opinião, esses
poucos elementos comuns, como ocorre na micro-história, são
cruciais. 20
E por isso salientamos a necessidade de se fazer uma retrospectiva nos
acontecimentos, uma contextualização, para que possamos compreender como e
porque os feiticeiros e as feiticeiras, os bruxos e as bruxas e os usuários de magia
tiveram suas vivências e contatos pouco ressaltados na historiografia nacional e
estrangeira. Para tanto, é necessário selecionar uma ou outra história contada
nos processos inquisitoriais para melhor explanar e refletir acerca dessas
relações. Levi parte do princípio de que o estudo das partes revelará condições
que provavelmente não seriam reveladas nos estudos de longa duração, sobre o
que também concordamos.
Notemos que ainda é extenso o caminho para recontarmos as vivências da
religiosidade popular. Relações que envolveram pessoas para realizarem atos
mágicos, seja por meio de uma tradição familiar ou pelo exercício de atividade
econômica, almejando sucesso afetivo, de saúde ou social; assim entendemos
que como Bethencourt:
A magia constitui, a meu ver, um revelador social e um
observatório privilegiado para a compreensão da sociedade do
Antigo Regime em seus níveis de profundidade. Nesse quadro, a
elucidação das práticas reais e dos discursos simbólicos que se
produzem a propósito desse fenômeno só tem sentido se nos
permitir uma aproximação dessa questão de fundo: como é que
20
LEVI, Giovanni. Sobre à micro-história. In: BURKE, Peter (org.) A escrita da história. São Paulo:
UNESP, 1992. p. 133-134.
24
uma sociedade utiliza determinados mitos para se exprimir e
representar.21
Como disse José Carlos Reis acerca da reconstrução das vivências
humanas, o que deixa espaço inteligível para novas discussões e métodos para o
estudo das relações sociais entre magos e usuários de magia aqui proposto, é
Conhecer a verdade de um tema histórico é reunir e juntar todas
as interpretações do passado e do presente sobre ele. A verdade
histórica é um poliedro de infinitos lados-posições, que jamais
poderá ser visto integralmente por olhos humanos 22,
Nossa dissertação está dividida em três capítulos , e nossa pesquisa
baseada nas informações constantes nos livros das confissões e denunciações
das duas Visitações à Bahia. No primeiro capítulo, Algumas considerações sobre
a Inquisição e a repressão à bruxaria: Da Europa medieval aos quinhentos da
América portuguesa, aprofundaremos as motivações que deram origens às
perseguições aos feiticeiros e bruxos na Europa. Apontando o estabelecimento da
Inquisição medieval e como procediam em relação ao crime de feitiçaria;
apresentaremos também a Inquisição Moderna ibérica, apontando as principais
distinções
entre
ambas,
ressaltando
a
Inquisição
portuguesa,
seu
estabelecimento e funcionamento dentro e fora do Reino e os acusados de
bruxaria, objetivando melhor compreender como foram tratados os casos de
bruxaria e feitiçaria na Capitania da Bahia no século XVI e início do XVII.
Ainda neste capítulo, apresentaremos a atuação da Inquisição no Brasil
colonial, sobretudo no que diz respeito à Capitania da Bahia durante o século XVI
- espaço de nossa investigação – apresentando as razões da presença dos
visitadores do Santo Oficio, os procedimentos das investidas inquisitoriais e o
encaminhamento dos processos contra os acusados de bruxaria e feitiçaria.
Esboçaremos também o perfil sociocultural dos acusados residentes na cidade de
Salvador e no Recôncavo Baiano, baseando-nos na fonte primordial já citada.
21
BETHENCOURT, Francisco. Imaginário da magia: feiticeiros adivinhos e curandeiros em
Portugal no século XV I. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p 45
22
REIS, José Carlos. História e verdade: posições. In: História e Teoria. Historicismo,
modernidade, temporalidade e verdade. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 175.
25
No capítulo segundo, A Magia, o oficiante e o usuário: Suas relações
sociais na Bahia colonial, tratamos dos contatos sociais entre oficiantes e
usuários de magia, sendo essas contatos classificados em dois tipos: a
vizinhança e amizade, por um lado, e o pagamento pelo serviço, por outro. Ainda
neste capítulo, tentaremos classificar os motivos que levaram ao uso de feitiçaria
ou bruxaria bem como o tipo de mágia empregado, seguindo os parâmetros
portugueses e às possíveis adaptações ocorridas para s ua prática na capital da
América portuguesa.
No último capítulo, o terceiro, Feitiçaria na capitania da Bahia: estudos de
casos, trataremos de dois casos de feitiçaria que deram origem aos processos
contra Violante Carneira e Maria Gonçalves Cajada, cristãs-velhas, residentes na
cidade de Salvador durante a Primeira Visitação. Por meio destes processos
apresentaremos suas vivências ocasionadas pela magia, apresentando seus
clientes, amigos e vizinhos que também fizeram uso ou foram vítimas de suas
práticas, além daqueles que pagaram para resolver problemas diversos.
Acreditamos que esses processos contribuíram para a reflexão das motivações,
dos modos e das relações engendradas pela magia em uma sociedade que se
encontrava em formação, mas que seguramente foram práticas e casos
recorrentes a outras sociedades de outros cantos da América portuguesa que por
motivos diversos ainda não foram desvelados pela História.
26
CAPÍTULO I. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A INQUISIÇÃO E A
REPRESSÃO À BRUXARIA: DA EUROPA MEDIEVAL À AMÉRICA
PORTUGUESA QUINHENTISTA
As práticas mágicas foram realizadas em todos os tempos da História para
a resolução de problemas físicos e espirituais. Especialistas classificam como
feitiçaria a prática mágica com fins considerados benéficos, e como bruxaria,
quando o objetivo é promover malefícios e está associada a entidades
sobrenaturais como o ente maléfico do catolicismo, o Diabo. Para a Igreja
católica, portanto, este era o tipo de magia que precisava ser erradicada pelas
Inquisições.
A crença em bruxaria na Europa Moderna esteve dividida em pelo menos
cinco correntes, como aponta Carlos Roberto Figueiredo Nogueira:
Que vão do catolicismo radical a incredulidade absoluta: 1º
virtualmente ninguém acreditava na bruxaria que foi uma
abominável fraude cometida pelos Inquisidores e teólogos a seu
serviço que provocaram o pânico para aumentar seu poder e
riqueza. 2º As crenças e práticas bruxescas como descritas nos
registros dos tribunais existiam e o culto ao Diabo era uma
realidade. 3º Encantamentos e rituais são práticas não só reais,
mas sobrenaturais testemunhos dos poderes das bruxas. 4º O
culto mágico explícito existiu, virtualmente intacto desde os
tempos imemoráveis. 5º Muita gente (inclusive juízes e teólogos),
iludida por uma atmosfera supersticiosa acreditava no que
pessoas perturbadas mentalmente diriam de si mesma.23
A oficialização do catolicismo em boa parte dos reinos ocidentais
impulsionou a busca e extermínio de outras religiões e religiosidades então
consideradas infiéis, supersticiosas e primitivas, como no caso das diferentes
formas de magia praticadas por diferentes povos. A bruxaria foi o tipo de magia
que mais sofreu perseguição, tendo como principal agravante a adoração e
submissão ao Diabo e a negação aos ensinamentos divinos e ao próprio Deus,
prática que ao mesmo tempo foi temida e desprezada pelas sociedades cristãs
23
NOGUE IRA, Carlos Robert o F. Bruxaria e História. As práticas mágicas no Ocident e Cristão.
Bauru, EDUS C, 2004.
p. 75.
27
onde algum tipo de Inquisição estava presente (lembrando aqui as perseguições
às “bruxas” pelos puritanos anglo-saxões, pois:
[...] O caráter essencial da bruxaria, não é o dano que ela causa
as outras pessoas, mas seu caráter herético, culto ao Demônio,
que a transforma o maior dos pecados, pois, renunciando a Deus
e adorando ao Diabo, ameaça toda a cristandade, que se vê
ameaçada da impossibilidade de condução da obra do redentor e
tenta purificar-se, purgando os pecados através do fogo tendo
lesado ou não a outras pessoas, a bruxa merece morrer por sua
traição para com Deus24 .
.
A submissão ao Diabo, necessária à realização de bruxarias, era a feita por
meio do pacto demoníaco, momento em que o indivíduo aceitava servir ao Diabo
em troca de poderes extraordinários. Francisco Bethencourt afirma que este
ocorria,
[...] na maior parte das vezes, em dar um pedaço da carne do
corpo ou em dar sangue da parte de um membro (a mão esquerda
ou o pé esquerdo), sangue esse que era chupado pelo diabo ou
aproveitado por ele, para redigir um termo escrito do concerto
[...]25.
Entretanto, “[...] o pacto com o demônio tem, geralmente, um quadro
limitado, comprometendo-se o demônio a cumprir os desejos de sua nova criatura
desde que esta lhe entregue o corpo e alma [...]”
26
.
A feitura de encantamentos, especialmente os ligados à fertilidade e à
colheita realizados, sobretudo, por mulheres despertaram no imaginário coletivo a
ideia que elas, as mulheres, estavam mais próximas das relações sobrenaturais,
pois eram vistas como misteriosas e ambiciosas e facilmente atraídas pelo Diabo.
Desta forma, estariam mais vulneráveis à sedução demoníaca. Estudos como o
de Júlio Caro Baroja apontam que da antiguidade à modernidade foram as elas as
principais responsáveis pela transmissão e realização de magia seja para o bem
e, principalmente, para o mal.
24
25
BAROJA, Júlio Caro. As bruxas e seu mundo. Lisboa: Editora Vega. 1979
BETHE NCOURT, Francisco O Imaginário da Magia: feiticeiros adivinhos e curandeiros em
Portugal no século XV I. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 188.
26
Idem, p. 192
28
As mulheres que ganharam o imaginário coletivo na condição de bruxas
correspondiam ao estereótipo de mulhers sozinhas – sejam viúvas ou idosas –
residentes em locais ermos na companhia de cães, gatos e/ou ratos. Fruto deste
imaginário é também a forma como elas se agremiavam para reforçar e celebrar a
atividade mágica: os sábas. Encontros ainda muito discutidos por historiadores e
antropólogos quanto à sua visibilidade.
Alguns estudos como o de Trevor-Hoper descrevem o sabá dentro da
credulidade do imaginário medieval como sendo reuniões noturnas ocorridas
geralmente à meia-noite das sextas-feiras ou sábados quando há lua cheia,
ocasião em que todas as bruxas, portanto já pactuadas com o Diabo, na
companhia de outros demônios, encontram-se para celebrar seus feitos maléficos
por meio de danças, cânticos e orgias sexuais. A presença de bruxos também era
frequente, ainda que no imaginário coletivo fossem as mulheres tivessem um
lugar especial e intenso. Trevor-Roper apresenta um retrato do que seriam esses
encontros:
[...] Com ela haviam muitos demônios, seus amantes, com que se
haviam ligado pelo pacto infernal; e acima de tudo, dominando-os
a todos estava o imperioso mestre-de-cerimônia, o deus de sua
adoração, o próprio Diabo, que às vezes aparecia como um
homem grande, negro, de barba, mas frequentemente como um
bode fedorento ocasionalmente como um grande sapo os
presentes reconheciam seu senhor. Todos se uniam para adorar o
Diabo e dançavam ao em torno dele ao som de música macabra
feita com curiosos instrumentos – crânios de cavalo, troncos de
carvalho, ossos humanos, etc. – Depois o beijavam como
homenagem, sob a cauda se era um bode, nos lábios se fosse um
sapo. Depois disso diante de sua palavra de comando, lançavamse em orgias sexuais promiscuas ou se dedicavam a um festim de
iguarias segundo a imaginação nacional. Na Alemanha estas
eram nabos fatiadas, parodia do Sagrado; na Savoia. Crianças
assadas ou cozidas; na Espanha, cadáveres exumados,
preferencialmente de parentes; na Alsácia, cozidos de morcegos;
na Inglaterra, mas delicadamente, rosbife e cerveja. Mas essas
belas distinções de dietas faziam pouca diferença, o alimento,
todos concordavam, era frio e sem gosto, e, o ingrediente
necessário, o sal, por alguma razão demonológica misteriosa
nunca era admitido. 27
27
TREVOR-ROPER, Hugh. A crise do século XVII. Religião, a reforma e a mudança social. Rio
de Janeiro: Topbooks, 2003. p. 151.
29
Acresente-se que se acreditava-se que para participar de um sabá era
especificamente imprescindível o preparo do corpo para as viagens noturnas. Em
geral, tanto os populares quanto os estudiosos da época diziam que as bruxas
untavam seus corpos com unguentos feitos de sangue de crianças ou de animai s,
além de metamofosearem-se para não serem descobertas por eventuais
testemunhas.
Na figura seguinte reproduzimos a tela El Aquelarre do pintor espanhol
Francisco Goya y Lucientes, produzida entre 1797-179828, que traduz a crença e
o imaginário do que seriam esses encontros entre bruxos/as e demônios. Apesar
de ser uma representação iconográfica de final do século XVIII espanhol –
quando a “caça às bruxas” já havia arrefecido na Península Ibérica, não deixa de
participar dos imaginários tanto medievais como renascentistas e mesmo
iluministas quando se trata do sabá, pois a base descritiva pela qual foi possível
representa-lo na pintura setecentista certamente origina-se nos depoimentos à
Inquisição medieval dados pelos acusados de bruxaria e do imaginário popular
bastante difundido oralmente pela Europa.
Em História Noturna, Ginsburg
desconstrói a ideia de sabá com bruxas
voando
untando
pelos
ares
corpos
e
em
vassouras,
unindo-se
com
demônios e outros bruxos em relações
sexuais. Assim como Trevor-Hopper,
Ginzburg lembra que a bruxaria durante
a
modernidade
equivocadamente
teve
seu
sabá
confundido com o
Shabat judaico.
O Shabat não é uma festa e sim
o dia de descanso que ocorre, segundo
28
Imagem copiada do site: http://memoriescharlotte.blogs pot.com.br/2010/05/papel -picadogoya.html
30
o calendário lunar, entre os pôres do sol da sexta-feira e do sábado, quando
então os judeus pios não trabalham, recolhem-se para orar e estudar a Torá em
casa ou nas sinagogas, com o objetivo de lembrar-se da Criação divina, do fim da
escravidão no Egito, cumprindo assim o quarto Mandamento da Lei de Deus, em
sua versão original judaica, que manda santificar o dia de sábado. No catolicismo,
o sábado foi substituído pelo domingo e transferido para o terceiro mandamento.
As pessoas muitas vezes confundiam a bruxaria com o judaísmo não
apenas pela proximidade fonética entre sabá e Shabat como pela associação do
judeu ao Diabo, em razão de sua fé não cristã e da acusação de deicídio que
pairava sobre este povo. Além disso, acreditava-se que tanto o judaísmo como a
bruxaria era um conhecimento transmitido hereditariamente, logo:
[...] A bruxa e o judeu representavam a não conformidade social.
De início ambos são perseguidos esporadicamente, sem a
apresentação de muitas razões, pois a bruxa não é condenada
pelas antigas leis da Igreja, e o judeu, na condição de incrédulo,
está fora dela. Então são concebidas bases legais para perseguir
a ambos: a primeira, por uma redefinição de termos, o último, pelo
batismo forçado, torna-se sucessíveis de uma acusação de
heresia. Por fim, quando essa acusação não é mais adequada,
não é mais usada. A bruxa como veremos é perseguida
simplesmente por ‘ser uma bruxa’ ; o judeu, por ser um judeu’, por
razões não de crença mais de sangue, por defeito de limpeza de
sangue. [...] 29
Portanto, e para a época de nossa investigação, era tido como real a
crença em tais acontecimentos sabáticos e comportamentais dos oficiantes de
magia, afirmando também que as bruxas passavam seus conhecimentos mágicos
para seus filhos e estes dariam seguimento a práticas de malefícios. Deste modo,
a bruxaria passava a fazer parte do rol de práticas que precisavam de controle,
posto que fosse uma possível candidata a contaminar a comunidade cristã,
tornando a justiça secular, eclesiástica e principalmente inquisitorial responsável
pela perseguição de suas práticas e praticantes.
29
TREVOR-ROPER, Hugh. A crise do século XVII. Religião, a reforma e a mudança social. Rio
de Janeiro: TOPBOOKS, 2003 p 171-172.
31
*
* *
Fundada durante o papado de Inocêncio III, a Inquisição medieval teve
seus tribunais organizados em 1229 pelo Papa Gregório IX como resultado de
algumas das determinações do Concílio de Toulouse, momento em que também
foi confiado aos dominicanos a responsabilidade de legislar e condenar os
hereges, sendo estes os primeiros Inquisidores gerais.
Seu principal objetivo foi dar cabo das heresias realizadas por grupos
cristãos acusados de contestar a doutrina católica, sendo os cátaros ou
albigenses e os valdenses, os mais perseguidos. Em suma, esses grupos eram
pregadores da caridade, da pobreza, da castidade e objetivavam trazer o
sentimento primitivo da igreja de Cristo e do cristianismo presente no Antigo
Testamento que, segundo eles, o catolicismo havia perdido ao longo dos séculos.
Toda a população tinha o dever de zelar, fiscalizar e propagar a boa fé
católica. Durante o IV Concilio de Latrão, em 1215, já estavam decretadas
algumas medidas punitivas contra os senhores feudais que não controlassem os
desviantes - especialmente os casos de bruxaria - em suas terras, sendo-lhes
designadas penalidades, como correr o risco de perder suas posses, caso não
conseguissem conter as heresias. Assim alguns dos senhores tomaram medidas
cabais para o controle e a não disseminação herética30.
Cabia aos bispos a função de Inquisidor, tendo nos notários, médicos e
carcereiros os servidores necessários para o funcionamento desta Inquisição. As
diligências eram itinerantes, realizadas de região em região, quando os
Inquisidores inquiriam, julgavam e sentenciavam os suspeitos de heresia.
Lembramos que a Inquisição, como instituição da Igreja católica tinha jurisdição, é
óbvio, dentre os cristãos, sejam nascidos de famílias cristãs ou os conversos.
Todos tinham que ser, ao menos teoricamente, c ristãos e teriam que denunciar e
confessar suas culpas a fim de encontrarem a salvação de suas almas.
30
MA X, Frédéric. Prisioneiros da Inquisição. Porto Alegre: LP&M, 1991, p 17 .
32
O encaminhamento da causa no Tribunal do Santo Ofício seguia alguns
passos. Após o relato da testemunha acusatória era dado início a busca de
evidências sobre a inculpação. Achadas as provas, seja pela própria confissão ou
provas de outra natureza, o acusado era levado ao cárcere onde deveria
confessar suas culpas, e, se por acaso sua confissão não fosse considerada
satisfatória às expectativas do Inquisidor, o réu seria submetido aos tormentos
(tortura) para que, por meio do sofrimento físico, fossem confessadas e
esclarecidas suas supostas heresias e delatados possíveis cúmplices.
Comprovada a prática de bruxaria, o indivíduo era levado ao cárcere, onde
era feita sua primeira confissão, seguido de tortura, caso
necessário.
Historiadores como Hugh Trevor-Hoper e Laura de Mello e Souza afirmam que a
evolução dos métodos e materiais de tortura foi favorecida pela perseguição aos
bruxos/as – que piorava muito com a chegada dos tempos modernos. Além disso,
naquele período a tortura era imprescindível para confissão completa das
heresias. Entretanto, Hopper afirma que os excessos de tortura podiam distorcer
os depoimentos dos confessores, vistos que esses queriam o mais breve possível
livrar-se dos tormentos, confessando muitas vezes situações que nunca
ocorreram.
Após a sessão dos tormentos, era concedido ao acusado outro momento
para retomar sua confissão. Posteriormente a essa nova confissão em geral, o
processo era concluso e a sentença proferida. As penalidades variavam de
acordo com o delito, podendo ser castigados com simples penitências espirituais,
abjurações, até penas mais graves, como açoites, degredos e finalmente com a
morte da fogueira, direcionado aos crimes mais graves. Esses penitentes eram
relaxados à justiça secular, ou seja, o réu era entregue a justiça civil para que
fosse executada a sentença de morte, já que a Igreja não podia condenar à morte
e muito menos executar penas nas quais houvesse sangramento.
O procedimento de anotação das denúncias de práticas de magia era o
mesmo designado para qualquer outro tipo de crime de heresia. Lembramos que
seguida da deleção do testemunhante, os funcionários inquisitoriais saíam à
procura de indícios que comprovassem as associações ou pactos demoníacos.
33
Podiam ser consideradas provas físicas, como os sinais, verrugas no corpo do
acusado, e deficiências físicas, avaliadas como marcas que o Diabo fazia para
distinguir seus servos dos fiéis a Deus; além das provas materiais, comprovados
com a guarda de velas pretas, bonecos de cera espetados por agulhas, pós
“estranhos”, ervas, caldeirões, dentre outros objetos de igual natureza e que
pudessem ser associados a fins de preparação de encantamentos.
Já no final do medievo circulavam manuais que auxiliaram os Inquisidores
e seus funcionários sobre o modo de proceder nos casos de bruxaria. O primeiro
manual de Inquisidores e um dos documentos mais significativos para cuidar
destes casos foi produzido pelo Inquisidor dominicano Bernardo Gui no ano de
1331 sob o título Manual dos Inquisidores31. Apesar do servir a este objetivo, sua
intenção original era auxiliar na extirpação herética disseminada pelos cátaros, no
Sudoeste da França.
Mais tarde, Nicholas Eymeric, também pertencente à ordem dos
dominicanos, publicou o Directorium Inquisitorium no qual a bruxaria foi
caracterizada principalmente por haver adoração ao diabo entre seus praticantes
e classificou os bruxos/as em três tipos: os que idolatravam o diabo, os q ue
serviam aos sucessores do tal deus e os que evocavam auxílio demoníaco para
suas práticas. Vejamos a citação a seguir para melhor descrevê-los.
[...] 1º Aqueles que prestam ao demônio um culto idolátrico,
oferecendo lhe sacrifícios, prostrando-se diante dele, cantando
cânticos, queimando velas e incensos em seu louvo, etc. 2º
Aqueles que se limita a prestar lhes um culto de dulia ou
hiperdulia, misturando-se as suas ladainhas os nomes dos santos
e dos demônios e suplicando a estes últimos que sejam seus
intercessores diante de Deus, etc. 3º Aqueles que os invocam
com a ajuda de figuras mágicas, colocando uma criança no
interior de dum círculo, servindo-se de uma espada de um
espelho, etc”32
O papa Inocêncio VIII publicou, em 1480, a bula Summis Desinderantes
Affecibus assegurando que a bruxaria era uma prática que deveria ser extirpada e
31
32
BAROJA, Júlio Caro. As bruxas e seu mundo. Lisboa: Editora Vega, 1979. p 129 .
Idem, p 130.
34
autorizando os dominicanos a acionarem medidas cabíveis ao extermínio dessa
heresia.
A produção de um dos mais importantes manuais de auxílio ao trato dos
casos de bruxaria e que se tornou uma referência para melhor exercício da
atividade inquisitorial sobre estes assuntos, foi consequência do relatório de
estudo minucioso sobre bruxaria. Sob o título de Malleus Mallefecarium, cuja
autoria é atribuída aos Inquisidores Heinrich Kraemer e James Sprenger, editado
pela primeira vez em 1486, este manual foi considerado a primeira enciclopédia
impressa sobre bruxaria e demonologia. E, até onde sabemos é o mais completo
manual para tratar destes casos, sendo reeditado por diversas vezes, até hoje 33.
Após séculos de resguardo cultural, social e religioso era preciso que as
sociedades europeias buscassem respostas às necessidades dos novos tempos.
O surgimento do protestantismo e as contestações da fé católica são
características desse momento histórico. A Igreja sabia que estava perdendo seus
fiéis e precisava adotar medidas eficazes para fazer retornar os seus devotos à fé
católica.
A Inquisição moderna criou novos contornos em relação às práticas
heréticas incluindo um novo rol de heresias e crimes contra a moral e os
costumes. Foram incorporadas além das heresias já tratadas pela Inquisição
medieval, aqueles comportamentos contrários à doutrina católica como sodomia,
blasfêmia, solicitação e práticas supersticiosas, por exemplo; e as heresias contra
a fé, como a prática de judaísmo, luteranismo, maometismo, os quais eram
considerados crimes mais gravem, sobretudo o judaísmo.
Península Ibérica a Inquisição inovou nos seus procedimentos. Uma das
suas características peculiares foi o alargamento do segredo. O preso não tinha
ideia de quem o acusou, de onde o “crime” ocorreu, nem quando. Sabia apenas
vagamente do que estava sendo acusado. A manutenção do segredo era
importante para o bom funcionamento desta Inquisição. Tanto o confessor quanto
33
A obra foi editada pela primeira vez em 1487, e no correr dos séculos teve aproximadamente 14 reedições .
No Brasil fo ram ed itadas duas vezes este Manual a qual optamos por utilizar a edição da Editora Rosa dos
tempos que levou o titulo de Martelo das Feiticeiras.
35
o delator e o réu, além dos próprios funcionários e agentes que tivessem contato
com a causa jurídica, precisavam jurar ter segredo de tudo que se passava na
mesa inquisitorial. Não era permitido dizer à sociedade como se procediam as
confissões e delações.
O réu também não podia saber quem o denunciou, nem por qual real
motivo estava sendo preso. Os Inquisidores achavam que assim poderiam
conseguir uma confissão verdadeira das culpas, já que desta forma o réu era
obrigado a confessar suas culpas “verdadeiras” e principalmente denunciar outras
pessoas, possíveis cúmplices, facilitando o trabalho inquisitorial.
Contudo, acreditamos que nem sempre o segredo era guardado, sendo
revelado e mesmo comentado entre vizinhos e familiares daqueles que iam aos
tribunais da fé, seja para denunciarem e confessarem as práticas heréticas, seja
os depoimentos daqueles que conseguiam resistir ao cárcere retornando a viver
na sociedade.
Esta Inquisição estava organizada em Tribunais de Santo Ofício, com um
quadro de funcionários e agentes que auxiliavam e faziam funcionar as ações da
instituição. Havia cargos que só puderam ser ocupados por eclesiásticos, estes
reservados aos Inquisidores, sejam eles gerais ou locais, comissários, notários,
alcaides, dentre outros; ainda havia os cargos de agente ou familiar do Santo
Ofício que estavam reservados aos homens leigos – que não pertenciam à alçada
religiosa – considerados idôneos, de boa moral e costume. Mas, qualquer que
fosse a atribuição no sistema inquisitorial, todos deveriam ter “sangue puro”.
Isto é, para ser um agente ou funcionário da Inquisição o candidato não
poderia ter nenhuma ancestralidade, nenhuma “gota de sangue” considerada
impuro, ou seja, nem judeu, nem mouro, nem cigano pelo menos até sexta ou
sétima geração. Nos casos referentes à América portuguesa, nem indígenas nem
negros, nem seus descendentes podiam pertencer aos quadros de funcionários e
agentes da Inquisição.
Outra importante e fundamental característica da Inquisição moderna para
as monarquias Ibéricas foi a busca pelos judaizantes. Aliás, motivo principal para
36
a criação e estabelecimento da Inquisição nestas monarquias. Pois se pretendia
controlar a disseminação da fé judaica. 34
Ambas as Inquisições – medieval e moderna – tiveram a mesma forma de
encontrar seus réus, sendo realizada por meio da delação, onde as pessoas
queixavam-se das ações de seus vizinhos, amigos, inimigos e parentes e
auxiliavam a busca pelos desviantes da fé católica. Mesmo que nem sempre
realizando com um legítimo sentimento católico, pois a Inquisição causava temor
à população obrigando a todos a delatar suas culpas e denunciar culpados. E
aqueles que
não comparecessem aos chamados da
instituição seriam
considerados hereges.
Assim também aconteceu na América portuguesa onde a Inquisição se fez
presente utilizando do medo, pois a população temente da infâmia, do confisco de
bens e da morte na fogueira foi denunciar seus parentes e amigos. Mas vejamos
as principais características das Inquisições medieval e moderna para tratar dos
casos de feitiçaria e bruxaria, para chegarmos até a perseguição sofrida aos
feiticeiros da cidade Salvador nos primeiros séculos de colonização. 35
1. A repressão contra os bruxos na inquisição
A bula Cum ad nihil magis assegurou a fundação da Inquisição em Portugal
no ano de 1536 durante o papado de Paulo III, resultado do pedido feito pelo
então regente João III a Roma, solicitando a concessão de uma liberação para o
funcionamento da Inquisição no território lusitano. Esta bula fez referência ao
combate dos judaizantes cristãos-novos, além dos casos de luteranismo,
islamismo, das proposições heréticas e da realização de magia, e,
[...] foi introduzido exclusivamente para fiscalizar e punir os
descendentes de judeus que haviam sido convertidos à força ao
catolicismo, e sob suspeita de praticar a religião judaica. Foi
gradativa a ampliação de seus objetivos até abarcar diversos tipos
de comportamento e crenças Às heresias em matéria de fé
34
BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição. In: CENTE NO, Yuete Kace. P ortugal: Mitos
Revisitados. Lisboa: Salamandra, 1993. p 101-138.
35
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no B rasil. Rio de
Janeiro: Nova Front eira, 1997. p. 289
37
juntaram-se feitiçarias, bruxarias, sodomia, bigamia, blasfêmias,
proposições, desacatos e problemas diversos de sexualidade. 36
E como os Inquisidores ibéricos procediam nos casos de bruxaria?
Lembramos que a prática de magia ilícita foi em Portugal durante algum tempo
considerada um pecado público julgado e penitenciado tanto pela justiça
eclesiástica quanto pela justiça secular. Mas, com a fundação do Santo Ofício
passou a fazer parte do rol de heresias a serem extirpadas. Todavia, a bruxari a
não foi classificada como um crime grave, logo não podia seus seguidores ser
relaxados à justiça secular, ou seja, não era permitida a queima e morte na
fogueira aos inculpados, sendo suas práticas penitenciadas com o degredo para
África ou Brasil, por exemplo, além das abjurações, açoites e penitências
espirituais.
A “brandura” no trato dos acusados de feitiçaria é inicialmente comprovada
pelo número de penitenciados e pelo tipo de sentença aplicada aos seus
culpados. Raros foram os bruxos que sofreram açoites públicos e muito menos
aqueles que foram relaxados à justiça secular. Além disso, pouco são os casos
em que feiticeiros passaram pela sala dos tormentos. O que nos leva a crer que o
português não estava muito preocupado com este tipo de herege, mas que não os
deixou passar despercebidos pela sociedade 37.
Os processos de bruxaria também se iniciavam por meio da denúncia e
posteriormente seguiam com a confissão da culpa, no entanto diferente do que
aconteceu na Inquisição medieval, na moderna bastava que qualquer pessoa
chegasse à Mesa do Inquisidor para denunciar uma culpa ou mesmo o
aparecimento de uma carta anônima para ficar provado à heresia realizada por
determinado indivíduo.
Após a acusação, o réu era chamado e este sem saber por que foi intimado
a comparecer na mesa do Inquisidor tinha que confessar sua culpa. E, se a
36
NOVINSKY, Anita. O tribunal da Inquisição em Portugal. Revista da Universidade de São
Paulo, São Paulo, p. 91-99, 10 jun. 1987. p. 92.
37
BETHENCOURT, Francisco. Imaginário da Magia. Feiticeiros, adivinhos e curandeiros em
Portugal no século XV I. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 285.
38
confissão não satisfizesse o Inquisidor, o acusado permaneceria no cárcere até
quando confessasse toda a sua culpa e denunciasse seus cúmplices e todas as
pessoas que poderiam praticar algum tipo de heresia. Se permanecesse preso, o
acusado seria encaminhado à sala dos tormentos para que lá confessasse suas
culpas por meio das torturas. Em Portugal, como já é sabido, não houve muitos
casos de bruxaria que sofreram torturas, sobretudo no que diz respeito às práticas
relatadas no Tribunal de Lisboa.
Constatado o crime, o réu era exposto nos autos-de-fé, momento em que
eram proferidas as sentenças aos penitenciados. Os autos podiam ser públicos
ou privados. Público era uma grande celebração precedida de procissão, missa e
divulgação
das
culpas
e
sentenças,
composta
por
abjuração
pública,
reconciliação e, principalmente, a morte na fogueira, deixando claro a toda a
população que a Inquisição tinha o poder de salvar e castigar os infiéis. E privado,
era realizado na mesa do Inquisidor – ou Visitador durante as Visitações à
América portuguesa – direcionado para os crimes de menor gravidade. Como na
maioria dos casos de bruxaria, aqui também era lida a sentença e deferida as
penitências aplicadas às culpas.
Já é conhecido que em Portugal a preocupação com os bruxos e feiticeiros
não foi demasiada, mas, como estamos apresentando, ela ocorreu, vale a pena
discorrer um pouco sobre o que pensam os historiadores especialistas no tema.
José Pedro Paiva, por exemplo, afirma que os lusitanos pouco se preocuparam
em desenvolver tratados demonológicos por não darem tanta importância às suas
práticas, porém foram especialmente os teólogos jesuítas e alguns canonistas
lusos os responsáveis em tratar dos assuntos ligados às bruxarias no Reino
português.
Paiva afirma que os canonistas portugueses não fizeram uso dos trabalhos
de Jean Bodin e Nider (demonólogos que defendiam a ideia da real existência da
bruxaria e do pacto demoníaco) por eles – os portugueses – não acreditarem que
39
a bruxaria carecia de tamanha salvação, pois talvez a crença nas artes mágicas,
pelo menos em Portugal, era percebida como atos supersticiosos38.
Outro problema que talvez dificultasse a interlocução e não a disseminação
dos estudos demonológicos em Portugal no início da modernidade foi
provavelmente a dificuldade de acesso aos tratados e obras especializadas, pois
a censura aplicada mesmo para as obras que circulavam dentro das igrejas. Além
dos tratados escritos por Martin Del Rio, os portugueses também tiveram contato
com o Malleus Mallefecarium, já citado.
Apenas os elementos básicos da bruxaria eram conhecidos pelos
estudiosos de Portugal, tanto pelos teólogos como pelos juristas e médicos,
sendo eles: o pacto demoníaco, as metamorfoses, os sabás, a prática de
malefícios que podiam causar a morte de pessoas ou em animais e estragos nas
colheitas.
Assim, José Pedro Paiva e Francisco Bethencourt defendem a ideia que o
crime de bruxaria foi considerado menor e de ordem pública por não ter o poder
de corromper a população e que as práticas de magia também não teriam força
para serem disseminadas na sociedade portuguesa. Crença assegurada pelo
ceticismo dos intelectuais sobre a existência da bruxaria. Além disso, o português
católico apostólico não dava espaço para que o mal fosse disseminado, sendo
ele, graças a sua fé.
2. A Inquisição na América portuguesa: apresentando a capitania da
Bahia
Mesmo sendo desacreditado pela maioria dos estudiosos em demonologia
e bruxaria, o medo do desconhecido assombrava aqueles que se entregavam às
aventuras no ultramar. O cristão que veio para o Novo Mundo trouxe um
imaginário estereotipado. Eram indivíduos que temiam as forças da natureza, mas
38
PAIVA, Jos é Pedro. B ruxaria e superstição num país sem caça as bruxas: 1600 – 1774. 2a.
Ed., Lisboa: Editorial Not ícias. 2002. p 26
40
que se lançaram no mar das grandes navegações muitas vezes com o intuito de
obter credibilidade e prestígio social. Ao mesmo tempo em que outros vieram
fugidos do Reino, como os criptojudeus, os degredados e penitentes da
Inquisição, aventureiros e comerciantes ,
se o principal motivo da vinda para a Colônia era o ganho, trazia o
português para cá, no âmago de sua personalidade, os traços
culturais do seu mundo cristão com suas inquietações e
preconceitos. Mundo católico ortodoxo, com suas intolerâncias.
Mundo barroco com seus contrastes, seus exageros, suas
hesitações. Mundo que se modernizava, abalando com as criticas,
os valores tradicionais de autoridade, hierarquia, religião,
reformando-as. Mundo em que se esboçavam modificações das
estruturas e nas atitudes nas faces da vida.39
O imaginário cristão via na diversidade cultural o paganismo, a infidelidade
e o “selvageníssimo”. Os católicos tinham em suas mentes que apenas eles
estavam aptos a propagar e zelar pela fé cristã. A sociedade que começava a se
formar nas terras do Brasil era constituída por grupos sociais e culturais bastante
distintos: o cristão-velho, o cristão-novo, o ameríndio e o africano, além dos
ciganos e estrangeiros residentes ou passantes nas terras brasílicas.
O Padroado régio permitiu maior intervenção da Coroa na vida religiosa
dos metropolitanos e dos colonos, sendo reforçadas com a institucionalização da
Inquisição, que também foi caracterizada pela relação estreita entre Estado e
Santo Ofício durante quase todo o tempo de seu funcionamento quando o Estado
português interviu nas ações dos Inquisidores.
Tanto a Coroa como a Igreja e a Inquisição utilizavam-se da fé católica
para controlar as moralidades, a ética e o comportamento religioso dos colonos e
mesmo dos nativos, sendo a única religião permitida a ser vivida o catolicismo.
Não poderia haver na sociedade lusitana e luso-americana nenhum outro tipo de
religião que não a católica, e, se houvesse desviante da fé – os hereges e
apóstatas – seriam julgados e penitenciados pelos Tribunais do Santo Ofício.
39
SIQUE IRA, Sonia A. A Inquisição Portuguesa e a sociedade colonial. Rio de Janeiro: Ática,
1978. p. 22.
41
Lembramos que a partir do Regimento dado a Tomé de Sousa enquanto
primeiro governador-geral da América portuguesa, no qual era tratada a fundação
da cidade do Salvador, foram dados os primeiros passos não apenas para a
construção da fortaleza e “cidade da Bahia”, que se tornava a sede da
administração colonial, mas dera também autorização para propagação do
catolicismo não só pelos membros da Companhia de Jesus, mas a todos os
colonos, cabendo a eles o dever de facilitar e zelar pela difusão do catolicismo.
Foi incentivada uma espécie de espírito cruzadista, como diria Sérgio
Buarque de Holanda, no qual os portugueses se imbuíram sinceramente de seu
papel missionário40, posicionamento também comentado por Laura de Mello e
Souza sobre os católicos lusitanos quando citou em uma de suas obras o
posicionamento do padre Antônio Vieira um século e meio após a descoberta da
nova terra, defendendo a ideia que: “Os outros homens, por instituição divina têm
só obrigação de ser católico, o português tem obrigação de ser católico e de ser
apostólico. Os outros cristãos tem obrigação de crer e mais de a propagar’ diz
Vieira [...]” 41.
Ao mesmo tempo em que a necessidade de evangelização e catequese
dos indígenas era incentivada pelos missionários jesuítas, os colonos, de maneira
geral, acreditavam que os nativos não passavam de selvagens disponíveis a
serem escravizados considerando-os:
Para feito de analise, pode-se dizer que, num primeiro nível, o
europeu, vê no ameríndio, outra humanidade [...] Gandavo, fala
demoradamente sobre a ‘multidão de bárbaro gentio que semeou
a natureza por toda a terra o Brasil’ enfatizando seus caracteres
negativos: ameaçam a segurança dos colonos, combatem com
armas na mão [...] não pronunciam o F, o L e o R e, por
conseguinte não tem Fé, Lei ou Rei, ‘Vivem bestialmente sem ter
conta, nem peso nem medida’ [...] 42
Enfim, a diversidade cultural e principalmente religiosa era evidente. O
crescimento das enfermidades trazidas pelos colonos levou à morte e desespero
40
HOLA NDA, S ergio B uarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e
colonização do Brasil, São Paulo, Editora Brasiliense, 6ª edição, 2ª reimpressão, 2002.
41
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986. p 31.
42
Idem, p 56.
42
de milhares de índios. As práticas domésticas, as religiosidades, os modos
comportamentais sociais e culturais vividos entre os diversos grupos étnicos que
compuseram a América portuguesa era cada vez mais evidente e começava a
chamar a atenção de uma parte da sociedade cristã-velha dando-lhe os motivos
para avançá-lo das garras inquisitoriais.
A Bahia por ser a sede administrativa do governo colonial foi a primeira
capitania a receber Visitadores do Santo Ofício. E foram muitas as motivações
que os trouxeram à Bahia, desde as solicitudes de alguns bons cristãos, os
reclames dos jesuítas que insistiam em relatar os maus comportamentos e
hábitos dos degredados, da incivilidade dos nativos e da presença de cristãosnovos judaizantes, ou ainda como disse Fernando Gil Portela:
[...] as razões para o envio da visitação ao Nordeste brasílico
como para a atuação inquisitorial lusa até o século XVIII estiveram
presentes elementos comuns, como a perseguição sistemática
aos conversos, o ânimo de expandir o catolicismo e a investigação
da fé [...] mas há ainda outra explicação, que prefere ressaltar o
Santo Ofício – e ai o mecanismo da visita – como instrumento da
política colonial 43
Como já foi dito, o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa foi o responsável por
cuidar dos casos de heresia e apostasia que surgiram na América portuguesa,
pois não houve estabelecimento de um tribunal nas terras do Brasil. Quatro foi o
número de Visitações que a colônia brasílica recebeu, além de uma Inquirição
ocorrida na Bahia em 1646. A primeira Visitação foi realizada entre 1591 a 1595 e
envolveu as capitanias da Bahia, de Pernambuco e de Itamaracá, sob a
responsabilidade do Visitador Heitor Furtado de Mendonça. A segunda, entre
1618 a 1620, conduzida pelo Visitador Marcos Teixeira. A terceira, entre 1626 e
1627, realizada pelo Visitador D. Luís Pires da Veiga às capitanias do Sul e ao
Rio de Janeiro, teve seus documentos perdidos em um naufrágio 44; e, a quarta e
43
VIEIRA, Fernando Gil P ortela Análise historiográfica da primeira visitação do Sant o Ofício da
Inquisição ao Brasil (1591-5) Revista " História, imagem e narrativas", n. 2, ano 1, abril/2006, p.52.
Disponível
em:<
http://www.historiaimagem.com.br/edicao2abril
2006/visitacaosantooficio.pdf>
44
GORE NS TEIN, Lina. A terceira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (século XV II). In:
VAINFAS, Ronaldo; FE ITLE R, Bruno; LAGE, Lana (orgs.). A Inquisiç ão em xeque: temas,
controvérsias, estudos de casos. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006.
43
última nas capitanias o Grão-Pará e Maranhão entre 1763 a 1769, realizada pelo
Visitador Geraldo José Abranches.
Os Visitadores ao chegarem estabeleciam-se no Colégio da Companhia de
Jesus, na atual praça soteropolitana denominada já Terreiro de Jesus. De lá
publicavam os Éditos de Fé – uma lista composta por todas as culpas que
precisavam ser confessadas e denunciadas a fim de extirpá-las. Após essa
publicação era concedido um tempo de graça, que consistia no prazo de trinta
dias para que toda a sociedade fosse confessar seus desvios para assim terem
suas penas abrandadas e seus bens não confiscados.
Os crimes menores, como blasfêmias e mesmo de bruxaria, foram
sentenciados em mesa do Visitador, sendo atribuídas penitências espirituais e
abjuração. Com o findar do tempo de graça, as confissões e denunciações
continuavam e a composição e envio de processos a Portugal também.
Trataremos, porém, dos casos que envolveram as práticas mágicas
ocorridas na capitania da Bahia, especialmente na cidade de Salvador e em seu
entorno. Já é de nosso conhecimento que a feitiçaria foi retirada do rol dos crimes
considerados graves e que na maioria dos casos os penitenciados foram
condenados a degredo para o Brasil, além das penitências espirituais e do
ordinário pagamento das custas do processo. Por não ser uma heresia
considerada grave, não receberam condenação à morte.
A falta de notícias de pessoas queridas deixadas na metrópole, a escassez
de alimentos pertencentes à cultura alimentar ibérica, a quase que inexistência de
médicos e cirurgiões-barbeiros para tratarem dos enfermos, os encontros com os
nativos que se agravavam pelo temor de serem atacados ou devorados pelos
indígenas, além dos problemas cotidianos de vizinhança, levaram muitas vezes
os colonos a recorrerem à magia para solucionar estas situações proporcionando
às bruxas portuguesas terreno promissor para a perpetuação de suas feitiçarias.
Ao aportarem na América portuguesa as feiticeiras e bruxas trocaram seus
conhecimentos mágicos com nativos e escravos vindos da África. Assim as
associações e interlocuções entre conhecimentos de ervas e rituais confluíram
44
entre todas as culturas mágicas daqueles que aí residiram, dando lugar, mais
tarde, à cultura religiosa popular e mágica brasílica, como diria Laura de Mello e
Souza.
Assim vejamos como as Visitações ocorreram na cidade da Bahia e no
Recôncavo baiano e de que maneira os praticantes mágicos e seus usuários
foram confessar e denunciar suas práticas.
2.1.
As Visitações e feitiçaria na Bahia
2.1.1. A Primeira Visitação
O visitador do Santo Ofício de Lisboa Heitor Furtado de Mendonça chegou
ao Colégio dos Jesuítas em 1591 e junto com o notário Manuel Francisco iniciam
a primeira Visitação à capitania da Bahia, compreendendo esta a cidade do
Salvador e a região do Recôncavo. Foi afixado o Édito de fé e em seguida
estabelecido o tempo de graça concedido tanto para a cidade de Salvador, em
1591, quanto para o Recôncavo, em 1593. Dezenas de pessoas chegaram à
mesa do visitador para confessar suas culpas, pedir perdão ou denunciar seus
vizinhos, amigos e parentes por praticarem alguma das heresias arroladas. Estes
testemunhos ficaram registrados nos Livros das Confissões e Denunciações da
Primeira Visitação.
Além das culpas já citadas também foram penitenciadas as gentilidades e
superstições heréticas, crimes considerados leves geralmente punidos com
penitências espirituais e abjuração. “Gentilidades” foram a designação atribuída
às práticas religiosas indígenas classificadas pela Igreja e pela Inquisição como
atos supersticiosas e de feitiçaria que também estavam passíveis de penitência.
Não podemos confundir gentilidades com a Santidade de Jaguaribe, seita
ameríndia de caráter sincrético que ocorreu na região de Jaguaribe entre 1570 a
1590, caracterizada pelo culto a divindades cristãs associadas a elementos e
rituais indígenas. Encontramo-la também no Sertão e no Recôncavo baiano nas
proximidades da região do Matoim. Em Matoim, vestígios desta religiosidade é
45
presente nas denúncias registradas no processo inquisitorial contra o mameluco
Manuel Branco durante a Primeira Visitação a Bahia. Desvio da fé católica que o
levaram a ser processado pelo Tribunal do Santo Ofício como feiticeiro aos 24
anos de idade. 45
No entanto, as feitiçarias realizadas na Bahia colonial confessadas e
denunciadas ao visitador Heitor Furtado de Mendonça foram -na também em
território metropolitano por mulheres e homens cristãos -velhos que usaram
orações e evocações aos santos, bem como de elementos da natureza para
obtenção de sucesso pessoal ou do grupo a que pertenciam – como identificados
nas investigações dos historiadores Francisco Bethencourt e José Pedro Paiva,
os quais concluíram que em Portugal moderno a magia era também resultado da
confluência
cultural entre
brancos
e
negros
escravos, embora
fossem
principalmente as mulheres lusitanas as que com maior frequência aprenderam a
realizar magia com seus cativos africanos para a resolução de problemas,
sobretudo os ligados à saúde do corpo e da alma.
Assim, muitas pessoas usaram de artes mágicas. Vejamos aquelas que
confessaram e denunciaram suas práticas durante a Primeira Visitação
observando não apenas os motivos que as levaram a praticar a magia, mas sua
condição socioeconômica na emergente sociedade baiana colonial.
Nesta Visitação, três mulheres confessaram usar da magia. Duas delas
eram cristãs-velhas e a outra não sabia se era cristã-velha ou cristã-nova. Todas
declararam que recorreram à magia por estarem sofrendo. Em suas confissões
relataram que deveriam fazer feitiços tendo como motivação a prosperidade
afetiva, seja para a conquista de amores, “amansar” maridos, isto é, para que os
seus maridos as quisessem bem e fossem mais carinhosos com elas; o que deixa
provável que as mulheres de maneira geral não tinham boa vida matrimonial,
reflexo de uma sociedade patriarcal.
45
46
IANTT-IL Processo nº 11072.
PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: c ondição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil
colônia. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1993..
46
46
Paula de Siqueira, ainda quando morava em Portugal, já realizava magias.
Esta cristã-velha veio para a Bahia para acompanhar seu marido, Antônio de
Farias, ocupante do cargo de contador da Fazenda del’rei. Foi processada por
duas vezes no tribunal do Santo Ofício de Lisboa sob a acusação de sodomia e
leitura de livros proibidos 47 e foi também à mesa do Visitador para confessar
culpas do uso de magia objetivando resolver problemas amorosos, entretanto
parece que a acusada queria direcionar suas culpas para o uso de feitiçaria, pois
as penalidades para tal heresia não eram tão graves quanto a dos crimes de
sodomia e leitura de livros proibido.
Na confissão, Paula afirmou que quando chegou à Bahia continuou a fazer
uso de feitiços e sortilégios devido à necessidade de melhorar seu casamento.
Pediu perdão à autoridade inquisitorial, arrependeu-se por ter recorrido a forças
sobrenaturais, afirmou que nunca fez pacto demoníaco para alcançar suas
benesses, nem tão pouco pagou para a prática da feitiçaria. Assegurou que
adquiriu conhecimentos mágicos trocando informações e experiências com
amigas.48
Outra cristã-velha que confessou fazer uso de feitiços foi Guiomar de
Oliveira49, esposa do sapateiro Francisco Fernandes. Em 1591 foi à mesa do
visitador confessar suas culpas e denunciar a feiticeira Antônia Fernandes
igualmente conhecida como a Nóbrega, que dizia ser feiticeira diabólica. Guiomar
recorreu à magia para também resolver problemas de ordem amorosa fazendo
com que seu marido a amasse mais. Para isso foi instruída a dizer durante o ato
sexual, à boca de seu esposo, palavras sagradas usadas na consagração da
hóstia na missa como hoct est enim corpus meum, cujo significado é “este é o
meu corpo”. Mas a confessante não se deteve aí.
Agregou-se a esta comum motivação entre as mulheres da colônia uma
negociação de feitiço destinado a resolver a quitação de uma dívida, o que torna
bastante provável que o casal estivesse passando por necessidades financeiras.
47
IA NTT-IL Processo n^s 3306 e 3307.
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p 104 -114.
49
Idem, p 132-140.
48
47
Guiomar pediu à Nóbrega para fazer um feitiço na intenção do esquecimento de
uma dívida de aluguel por parte do proprietário da casa em que ela a confessante
morava com seu marido. Segundo sua confissão, o resultado da feitiçaria foi
positivo, mas pediu perdão e jurou que não mais utilizaria da magia para resolver
seus problemas. Ela não foi processada pela Inquisição.
A última confidente que encontramos no Livro das Confissões da Primeira
Visitação foi Catarina Froes50. Personagem sobre quem quase nada sabemos por
não revelar sua origem étnico-religiosa (seria cristã-nova temente a um processo
por criptojudaísmo e não feitiçaria?), não dizer se era ou não casada, nem como
conseguia dinheiro para viver e pagar os negócios de magia. Catarina confessou
o contato que teve com Maria Gonçalves Cajada, feiticeira diabólica assim
considerada por ter pacto com o diabo e com ele falar, também conhecida como
Arde-lhe-o-rabo. Contou que a pedido de suas duas filhas, pelo menos duas
vezes negociou feitiços contra seus genros.
Seu primeiro objetivo com a feitiçaria era a morte de seu genro Gaspar
Martins. Não levou adiante o feitiço, pois a bruxa “Arde-lhe-o-rabo” pediu mais
dinheiro; depois voltou a solicitar outro feitiço a fim de que seu outro genro
Antônio Dias quisesse bem sua mulher, ou seja, a sua filha, pois, segundo
Catarina ele a maltratava; esta negociação foi adiante e teve bom resultado. No
entanto, a confessante pediu perdão e prometeu não mais fazer uso de magia,
aliás, como Guiomar de Oliveira. Será que elas mantiveram esta promessa?
Questão que jamais poderemos responder.
Durante a Primeira Visitação chegaram à mesa do visitador cerca de 31
pessoas para delatar práticas e praticantes de magia, sendo denunciados cerca
de quinze
praticantes de
feitiçaria e quatro
deles
foram
notadamente
denominados como feiticeiros: Maria Gonçalves, Antonia Fernandes, Isabel
Rodrigues ou Roiz, D. Mercia Pereira
Certamente a mais conhecida das bruxas da capitania da Bahia em fins do
século XVI foi Maria Gonçalves Cajada – já citada e conhecida como Arde-lhe-o-
50
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras,. p 120-121
48
rabo. Ela foi descrita nos livros das Confissões e Denunciações a Bahia como
uma mulher vagabunda, que nunca casou, que dormia e tratava com o Diabo,
tendo mesmo a posse de um demônio familiar para auxiliá-la na prática de magia.
Contudo, em seu processo desenvolvido quando já estava presa nos cárceres do
Tribunal de Lisboa, ela disse ser casada com o marinheiro Gaspar Pinto, natural
de Estremoz, cristã-velha moradora em Aveiro e que foi para a Bahia na condição
de degredada pelo crime de feitiçaria, entretanto não encontramos o processo
referente ao degredo para o Brasil. .
Maria Gonçalves Cajada era consultada e negociava com muitos
moradores da cidade de Salvador e do Recôncavo. Maria da Costa, cristã-velha,
natural de Braga e residente em Salvador, casada com o mercador de loja Álvaro
Sanches, denunciou-a por ser feiticeira diabólica corroborando o fato de que a
mãe da denunciante tinha certeza que “Arde-lhe-o-rabo” podia fazer algo para seu
irmão obter o perdão de um crime cometido, sobre o qual nada foi dito.
Outra denunciante de Maria Cajada foi a cristã-velha Isabel Monteiro
Sardinha 51, sua inimiga, esposa do lavrador Estevão Gomes de Centeio. Disse
que a Cajada veio para a Bahia degredada por feitiçaria. A esposa do marinheiro
Gaspar Roiz, a cristã-velha Catarina Fernandes outra delatora de Arde-lhe-o-rabo,
sua vizinha, chegou à Bahia também degredada, mas por assassinato de um
homem. Por meio de um Domingos Gonçalves, Catarina descobriu que Maria
Cajada negociava feitiçaria com várias pessoas e pediu para que Isabel
Rodrigues lhe desse um recado suspeito, denunciando -lhe assim por feitiçaria
diabólica.
A lisbonense Catharina Quaresma 52, quem também não sabia se era cristãvelha ou cristã-nova, solteira, foi convocada para comparecer à Mesa do
Visitador. Lá, foi perguntada se sabia alguma coisa sobre a “Arde-lhe-o-rabo”, ao
51
Preferimos atualizar a grafia dos textos e dos nomes próprios para facilitar a leitura da
dissertação. Assim, todas as citações de processos se farão com a at ualização gráfica. Primeira
Visitação do Santo Ofício às part es do Brasil pelo licenciado Heit or Furtado de Mendonç a.
Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado. p 287.
52
Primeira Visitação do Santo Ofício às part es do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 255.
49
que respondeu que ouvia dizer ser ela tida por feiticeira diabólica, embora
acreditasse ser calúnia da vizinhança, pois conviveram durante alguns meses
quando Cajada esteve hospedada em casa de sua mãe.
Casada com um almotacel cristão-novo, Antônio Roiz Villa Real, Violante
Carneira53 processada pela Inquisição pelo crime de feitiçaria, também denunciou
Maria Gonçalves Cajada dizendo que em 1588 esta foi à sua casa e confessou
ser feiticeira diabólica, mostrando-lhe uma chaga em um de seus pés da qual,
segundo a feiticeira, todo dia tirava um pedaço de carne do pé para dar ao Diabo,
e que se ela – a bruxa – quisesse faria o que queria com auxílio dos diabos. A
cristã-velha Isabel Antoniane 54 delatou Maria Cajada afirmando que dois meses
antes da chegada do Visitador Heitor Furtado abrigou-a em sua casa e Cajada lhe
disse que portava um vidro onde trazia um demônio familiar.
Outra feiticeira bastante denunciada durante a Primeira Visitação foi
Antônia Fernandes 55, conhecida também como “A Nóbrega”, de quem já falamos,
mulher que dizia ser cristã-velha, viúva do ex-dispenseiro das Armadas de Lisboa,
que não sabemos ao certo seu nome, e foi moradora em Lisboa onde teve uma
taverna em que sua própria filha trabalhava. A Nóbrega veio para a Bahia
degredada por alcovitar e aqui se abrigou em muitas casas nas quais ajudavam
as mulheres com ensinamentos mágicos para que elas resolvessem seus
problemas, sobretudo os ligados ao casamento.
Antônia Fernandes ou “a Nóbrega” foi denunciada por várias pessoas.
Dentre eles está o lavrador cristão velho, João Ribeiro 56, casado com Luiza
Pereira e morador na Freguesia de Paripe. Ribeiro denunciou-a por ser feiticeira
e ter-lhe oferecido seus serviços mágicos para promover a benquerença e que,
segundo a própria Nóbrega, sua filha também tinha o ofício de feiticeira.
53
Primeira Visitação do Santo Ofício às part es do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 425.
54
Isabel Antoniane era natural do Porto, solteira e foi degredada para a Bahia acusada
sodomia: Primeira Visitação do Santo Ofício às part es do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado,1925, p 431.
55
Não encontramos seu processo em busca no ac ervo online do Arquivo Nacional da Torre
Tombo.
56
Primeira Visitação do Sant o Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 423.
de
de
de
do
de
50
Foi Guiomar de Oliveira – já citada – quem certamente mais utilizou dos
préstimos de Antônia Fernandes. A feiticeira chegou a oferecer a Guiomar um
demônio familiar para auxiliá-la nas práticas. Além de estar disposta a ensinar-lhe
seus conhecimentos mágicos por gratidão ao abrigo que dela havia recebido. Mas
que Guiomar afirma não os ter aceitado e por esta oferta expulsou a “Nóbrega” de
sua casa, vendo-se obrigada a denunciá-la na ocasião da Visitação.
Guiomar afirmou que a filha de Antônia era feiticeira diabólica em Portugal
e que ela também tinha um demônio familiar de nome Baul. A “Nóbrega”
guardava-o em um vidro e quando necessitava de sua ajuda chamava-o e ele
saia do vaso em figura de homem. Todavia, para possuí-lo e mantê-lo vivo
deveria cuidar bem da “coisa” que estava dentro do vidro dando-lhe alimentos
como cebola. Não existe registro de confissão de Antônia Fernandes durante a
Primeira Visitação à Bahia, pois segundo seus denunciantes ela soube da
chegada do Santo Ofício e fugira da cidade.
A “Boca Torta”, alcunha de Isabel Rodrigues 57 foi também uma das
mulheres mais solicitadas quando se tratava de assuntos mágicos. Casada com
Cristóvão de Bairros, veio degredada do Reino por feitiçaria, e dizia ela mesma
que era feiticeira diabólica tendo o poder de fazer o que quisesse com o auxílio do
diabo.
Maria de Gois 58, cristã-velha, natural da Bahia e residente em Itaparica,
casada com o lavrador Estevão Gomes Varella, denunciou a Boca-Torta por ser
de fama pública ela dizer que em Lisboa fazia feitiçarias e se dizia pactuada com
o Diabo. Disse também que em 1581 viu a feiticeira à noite no caminho da Villa
Velha fazendo feitiçaria em companhia de outras duas mulheres e depois disso
viu-as em figura de pata.
Isabel Antoniane, já citada, também denunciou a “Boca Torta”, pois ela
havia emprestado um dinheiro a um amigo seu de nome Francisco Roiz, que
57
Não encontramos seu processo em busca no ac ervo online do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo.
58
Primeira Visitação do Sant o Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 412.
51
queria um feitiço para conseguir contrair matrimônio e depois descobriu que o
dinheiro era para pagar o serviço da bruxa, razão que a levou a denuncia-la à
Mesa do Visitador.
Mércia Pereira também foi outra acusada de feitiçaria e muito conhecida
por aqueles que recorriam à magia, pois foi bastante denunciada, e diziam ser
cristã-velha, casada com Francisco de Araújo e moradora em Salvador. Custodia
de Farias59, outra cristã-velha casada com Pero d’Aguiar d’Altero, disse que
Mércia estava em companhia da feiticeira Isabel Rodrigues em uma noite no
caminho da Villa Velha fazendo feitiçaria e estava em figura de pata, porém ela
denunciante não vivenciou o fato, pois ela ouviu dizer de uma amiga por nome
Beatriz de Sampaio o acontecido. Aqui a figura da pata reincide no imaginário
colonial.
Assim também disse Maria de Góis – já citada – e Isabel de Pandales60,
moradora no Monte Calvário, casada com Duarte de Gois Mendonça. Isabel disse
que segundo o cura da Villa Velha viu em 1581 no caminho da Rua de São
Sebastião ou de Água de meninos a Mércia e outras mulheres que não conseguiu
identificar em figura de pata fazendo feitiçarias.
Obviamente
que
não
foram
apenas
essas
quatro
mulheres
as
encarregadas de realizar e transmitir os conhecimentos e práticas de magia na
cidade da Bahia e seu entorno. No entanto, foram elas as que com maior
frequência foram denunciadas. Porém, existem alguns casos que não há registro
nos Livros das Confissões e Denunciações, por não terem ido à Mesa do
Visitador ou por ter-se perdido ao longo do tempo, mas que geraram processos
inquisitoriais pelo Tribunal de Lisboa como o caso do mameluco Manuel Branco 61,
de 24 anos de idade, solteiro, natural da Bahia e residente na região do
Matozinhos, que dizia viver de sua indústria de místico na região do Recôncavo
baiano. Manuel foi penitenciado por praticar feitiçaria, mas não constam registros
59
Primeira Visitação do Sant o Of ício às partes do Brasil pelo licenciado H eitor Furtado de
Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 479.
60
Idem, p 539.
61
IANTT-IL Processo nº 11072
52
seus nos livros da Primeira Visitação. Porém, ao analisarmos seu processo não
identificamos nenhuma prática de feitiçaria e sim ter participado da seita
Santidade, ocorrida nas terras de Francisco Cabral de Atayde em Jaguaribe,
Recôncavo baiano.
Relacionamos os denunciantes e seus denunciados chamando a atenção
para a localidade onde residiram e a qual grupo étnico pertenciam chegamos à
conclusão que a maioria dos acusados de feitiçaria residia na cidade de Salvador,
pelo menos foi o que nos mostrou os livros de confissão e denunciação da Bahia
durante a Primeira Visitação. Assim também concluímos que foram, sobretudo as
mulheres cristãs-velhas as que mais usaram da magia. Em apêndice,
organizamos uma lista contendo estes denunciantes e denunciados:
Quadro 1 - Dos acusados de praticarem ou solicitarem serviços de magia
XV
Mulheres em
Mulheres no
Homens no
Homens em
Salvador
Recôncavo
Recôncavo
Salvador
oito
quatro
dois
cinco
XN
um
Mameluco
dois
Cigano
um
dois
Negro
Não sabia
dois
dois
dois
E apesar de não tratarmos especificamente da segunda Visitação
apresentaremos alguns casos que achamos pertinentes e indispensáveis para
compor nossa dissertação, já que foi segundo momento de maior fiscalização da
Inquisição na presença de um visitador do Santo Oficio, porém lembramos que
houve ainda outro momento de maior fiscalização inquisitorial conhecido com A
Grande Inquirição que ocorreu em 1642 e que destinou suas garras apenas para
os casos de criptojudaismo e, por conseguinte, não trataremos aqui.
53
A Segunda Visitação foi realizada por D. Marcos Teixeira, entre 1618 e
1620. Atendendo ao protocolo inquisitorial, foram afixados os Éditos de fé,
seguido do estabelecimento do tempo de graça, que assim como na primeira
Visitação levou confessores e denunciantes à mesa para apontar as culpas que
fossem tocantes ao Santo Ofício.
As culpas de feitiçaria também aqui foram arroladas. Seis pessoas
confessaram o uso de magia, a maioria realizada por homens que afirmaram
fazer seu uso principalmente para adivinhar onde estavam objetos ou pessoas
perdidas e curar doenças. Assim, os homens passaram a solicitar com maior
frequência os préstimos mágicos, mas não apenas como usuários e clientes.
Eles, neste momento, também eram os feiticeiros, sobretudo os escravos
africanos que por meio da adivinhação resolviam problemas dos moradores em
Salvador e em seu entorno.
Quatro pessoas foram acusadas a usar feitiçaria durante a Segunda
Visitação. Pero de Moura 62, cristão-velho, morador em Salvador, foi acusado de
praticar feitiçaria. Ele recorreu ao feiticeiro Francisco Cucana, negro natural de
Pirajá, e morador em São Thomé para que este o ensinasse um feitiço para
ajudar a curar seu irmão Paulo Correa que estava doente.
O barbeiro Francisco Nogueira 63, morador na Rua Direta do Colégio dos
Jesuítas era cristão velho, também foi acusado de feitiçaria. E para encontrar dois
de seus escravos que haviam fugido solicitou uma adivinhação de outro negro
que era dos padres do Mosteiro da Sé, realizado por meio de água; logo foi
sabido onde os negros que haviam fugido estavam.
Francisco Nogueira também denunciou um negro torto de um olho de
André de Freitas, capitão do campo, que morava em Salvador e que era de
conhecimento público que o negro fazia adivinhação por meio de feitiçaria. Assim
62
FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUE IRA, Sônia (orgs.). Segunda Visitação do Santo Ofício
às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confissões e
Ratificaç ões da Bahia, 1618-1620, Anais do Museu Paulista, v. XVII, 1963.
63
Idem, p 453
54
como também denunciou outro negro dos padres do Mosteiro de São Francisco
pelo mesmo motivo.
Acusado de realizar feitiços foi Antônio da Costa 64, que residia na Rua de
São Bento. E para saber que tipo de doença sua filha estava recorreu à magia,
solicitando a Ana Coelho que fizesse uma adivinhação para saber como tratar a
menina. Além de ter pedido à mesma feiticeira para que ela encontrasse pares de
meias que ele havia perdido, para curar um negro e para ter notícias do Reino.
E Maria de Penhosa 65, que também era moradora na Rua de São Bento e
era cristã-velha. Fez feitiço com D. Maria e Barbara Gudinha que por meio de
adivinhação fosse descoberto quem furtou seus pertences. Ainda usou feitiços
para que um homem a quisesse bem.
Aproximadamente seis pessoas chegaram à mesa do visitador para
denunciar praticantes de magia. Sendo Anna Coelho e dois negros vindos da
Guiné os feiticeiros que mais se destacaram na documentação dos livros da
Segunda Visitação.
Apesar de ser um padre, Balthesar Pitta de Cascongoncellos 66 foi
denunciado por prometer realizar uma feitiçaria, levando João Gonçalves , cristãovelho, solteiro e morador em Salvador à mesa do visitador: e disse o denunciante
que viu o padre ameaçar um cão dizendo que se o animal sujasse a rua ele, o
padre, iria lançar um feitiço no animal, mas que o pároco tinha hábito de beber,
sugerindo que seu vizinho só falava certas coisas quando estava embebedado.
Sebastião Barreto67, cristão-velho, lavrador de cana, e morador do
Recôncavo denunciou dois negros vindos da Guiné que era de conhecimento de
todos que faziam atos supersticiosos à noite com sacrifícios de animais e
64
FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUE IRA, Sônia (Org.). Segunda Visitação do Sant o Ofício às
partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações
da Bahia, 1618-1620, Anais do Mus eu Paulista, v. XV II, 1963, p 448.
65
GARCIA, Rodolfo (org.). Livro das denunciações que se fizeram na Visitação do S anto Ofício à
cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos do estado do Brasil no ano de 1618. Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 49, 1927. p 456.
66
Idem, p 197-198.
67
Idem, p 179.
55
untavam seus corpos com sangue e por isso achou suspeito e diabólico e foi à
mesa do visitador denunciar. A seguir quadros étnicos dos que confessaram e
denunciaram uso de magia na cidade de Salvador e no recôncavo:
Diferente do que aconteceu no final do século XVI, a documentação da
Segunda Visitação nos mostrou a maior parte das denúncias e dos acusados de
praticar feitiçaria residente no Recôncavo Baiano. Observamos também que
foram especialmente os homens negros escravos aque les que utilizaram da
magia com maior frequência, seja para uso pessoal ou em benefício da
comunidade em que vivia, seja para auxiliarem nas mazelas de seus senhores.
Em apêndice, apresentamos uma lista contendo alguns dos denunciantes e
denunciados.
Quadro 2 Dos acusados de praticarem ou solicitarem serviços de magia
Mulheres em
Mulheres no
Homens no
Homens em
Salvador
Recôncavo
Recôncavo
Salvador
XV
1
-
2
2
XN
-
-
Mameluco
-
-
Cigano
-
1
Negro
-
-
2
-
Não sabia
-
-
-
-
-
-
Assim chegaram à mesa inquisitorial entre os fins do século XVI e início do
século XVII nove pessoas que confessaram fazerem uso da magia para sanarem
problemas, seja de ordem afetiva, social e/ou econômica. Foram cerca de
quarenta pessoas que denunciaram práticas e feiticeiros. E apesar de não haver
mais Visitações direcionadas à Bahia durante todo o tempo de funcionamento da
Inquisição portuguesa surgiram culpados de práticas heréticas de feitiçaria e de
outras culpas até o término da Inquisição.
56
CAPÍTULO II. A MAGIA, O OFICIANTE E O USUÁRIO: SUAS RELAÇÕES
SOCIAIS NA BAHIA
Viver nas terras do Brasil não deveria ser tarefa muito fácil, sobretudo para
os colonos que estranharam as novas condições de vida na América portuguesa.
Os conquistadores se queixavam da “selvageria” dos nativos, da dificuldade para
encontrar alimentos que agradassem o paladar português, do assolamento de
doenças tropicais, além de esparsa atuação da Inquisição ocorrida antes da
Primeira Visitação, sob os auspícios de bispos, os quais vez por outra mandavam
cartas à Coroa queixando-se dos maus comportamentos dos colonos, e da
necessidade de fiscalização dos recém-evangelizados indígenas.
Ao final do século XVI, a América portuguesa também passou a ser vista
como uma espécie de purgatório, pois quando cometidos crimes tanto na esfera
da justiça secular – culpas de adultério, assassinatos e causadores de perturbar a
ordem pública – ou os culpados de heresia pelos tribunais de Santo Ofício, caso
dos acusados em bruxaria e feitiçaria, por exemplo. Todos esses penitentes
poderiam vir cumprir/purgar suas sentenças no Novo Mundo 68.
Deste modo e além da presença desses degredados, dos colonos
insatisfeitos com a presença dos nativos e dos novos hábitos de vida na América
portuguesa levaram alguns dos residentes da capitania da Bahia a procurarem
auxílio mágico como subsídio para sanar seus problemas cotidianos. Desta forma,
a feitiçaria para fins de cura de doenças espirituais e físicas, bem como as
feitiçarias direcionadas para melhoramento ou ruína dos assuntos ligados à
afetividade foram as práticas que com maior frequência se realizaram na cidade
de Salvador e em seu entorno e que assim como em Portugal, foram também as
mulheres as que com maior frequência utilizaram.
Os contatos sociais ocorridos entre feiticeiros e usuários de magia - ou
clientes – poderiam acontecer a partir da convivência nas ruas da cidade, por
68
Mas, não apenas na América portuguesa eram despachados esses “criminosos”; esses
sentenciados também podiam cumprir suas penitências nas colônias da África ou ir para as galés.
57
meio da vizinhança ou por meio de negociações de serviços de magia que
podiam ou não ter na vizinhança alicerce, sendo este tipo de relação a maioria
dos casos de contato entre oficiante e usuário de magia, afirmando a ideia de
Émile Durkheim, ao dizer que:
O mágico tem uma clientela, não uma igreja, e seus clientes
podem perfeitamente não manter entre si nenhum relacionamento,
ao ponto de se ignorarem um ao outro, mesmo as relações que se
estabelecem com o mágico, são, em geral, acidentais e
passageiras, são em tudo semelhantes à de um doente com seu
médico69
No entanto, mostraremos que mesmo sendo as negociações financeiras o
tipo de contato mais conhecido do universo mágico envolvendo feiticeiros e
usuários (e neste caso clientes) de magia, nesta dissertação apresentamos outras
maneiras de sociabilidade entre esses indivíduos, principalmente no que tange às
relações de vizinhança e amizade que foram frequentes e que muito contribuíram
para a convivência na cidade da Bahia e no Recôncavo em fins do XVI e início do
XVII.
1. Os tipos de contatos sociais e a magia na Bahia
Em fins dos quinhentos, a cidade de Salvador estava constituída por duas
praças: a do Terreiro de Jesus e a praça da casa dos governadores, além de três
ruas que ligavam a Igreja da Sé e o Terreiro e o mosteiro de São Bento. Na praça
principal estavam a Casa do Governo ou Casa de Camará e Cadeia, a alfândega
e as igrejas de Nossa Senhora d’Ajuda e a Sé. No início dos seiscentos, a cidade
passou a ser dividida em cidade alta, que compreendia as ruas do Mosteiro de
São Bento, a Palma, o Desterro, a Saúde e Santo Antônio além do Carmo e em
cidade baixa composta pelo bairro da praia e rua direta da Ribeira das Naus e das
casas comerciais.70
69
DÜRKHE IM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália.
São Paulo, Martins Font es, 1996. p. 28.
70
AZEVEDO, Thales. Povoamento da cidade de Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal, 1949.
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. 11 ed. Bahia: Edufba, 2008.
58
O crescimento da cidade era contínuo, os desbravamentos do recôncavo e
do sertão da Bahia foram realizados pelos colonos que se apropriavam de terras
para a construção de seus engenhos de açúcar e criação de gado, aumentando
suas posses e para isso muitas comunidades indígenas foram expulsas
violentamente 71. E, em fins dos quinhentos o Recôncavos da Bahia era divido
pelas áreas de Passé, Matoim e São Francisco do Conde.
A população da capitania da Bahia era bastante diversificada e crescente,
como já é de conhecimento de todos, e por ser a sede do governo administrativo,
militar e religioso – já que a igreja da Sé estava localizada dentro da cidade –
Salvador tinha um cotidiano eminentemente urbano, se comparado às regiões do
recôncavo e do sertão. Os colonos que residiam na “cidade da Bahia” exerciam
profissões de ofício como mercadores, sapateiros, barbeiros, alfaiates, costureiras
e cargos públicos, como juízes, vereadores, alcaides, meirinhos, dentre outras
atividades.
A sociedade da Bahia que neste momento estava em formação era
diversificada em termos étnicos, culturais e religiosos – mesmo sendo proibidas
as religiosidades não católicas, como o judaísmo, o luteranismo, e as feitiçarias
realizadas por europeus, africanos ou indígenas -, mas, que até a chegada dos
visitadores, os colonos viviam em certa harmonia, principalmente entre eles,
prova disso são os casamentos entre cristãos-velhos e cristãos-novos.
As relações entre colonos e nativos foram desde o início do processo
colonizatório complicado, pois os europeus enxergavam os ameríndios como
seres selvagens que precisavam ser submetidos a um processo de civilização,
que apenas o cristão português poderia executar tal tarefa vista por muitos
colonos como divina.
Os colonos e suas relações com os africanos talvez seja a menos
complexa de ser entendida, ao menos nesse primeiro século de colonização, já
que os africanos que chegavam ao Brasil vinham na condição de cativos.
Entretanto, e como veremos adiante em alguns casos, esses escravos foram
71
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. 11 ed. Bahia: Edufba, 2008.
59
chamados por seus senhores ou por outros senhores para que fossem resolver
seus problemas de saúde, ou para que fossem dizer onde tal coisa ou pessoa
perdida se encontrava.
Os africanos e mesmo os indígenas realizavam atividades domésticas, já
que não havia fazendas e engenhos de açúcar dentro da cidade. Além dos
eclesiásticos - geralmente vindos de Portugal para a prática missionária - que
também visitavam as regiões mais recônditas da capitania, mesmo que realizadas
de tempos em tempos.
A feitiçaria foi uma prática comumente realizada por alguns indivíduos
pertencentes a todos os grupos sociais que compunham a Bahia durante todo o
período da colonização. De acordo com nossas pesquisas nos Livros das
Confissões e Denunciações, as primeiras feiticeiras do Brasil não eram nascidas
nesta terra, elas vieram de Portugal já degredadas pela Inquisição sob o crime de
feitiçaria e cumpriam suas penitências na América e ao chegarem ao território
luso-americano continuavam realizando suas práticas
E é com esse cenário de crescimento demográfico e extensão de domínio
territorial que em 09 de junho de 1591 chegou à cidade de Salvador o licenciado e
visitador do Santo Ofício Heitor Furtado de Mendonça em companhia do então
governador da capitania da Bahia D. Francisco de Sousa para dar início aos
trabalhos inquisitoriais, publicando os éditos de fé e sendo concedido em 28 de
julho o tempo da graça, momento em que era dado um prazo de 30 dias para a
população confessar suas culpas de livre e espontânea vontade na mesa do
visitador, este tempo tinha o objetivo de levar as pessoas a confessarem suas
heresias e em retribuição a sua boa vontade em delatar e confessá-las não
seriam atribuídas penitencias severas, nem tão pouco o confisco de bens.
Muitas foram as denúncias e confissões de culpas q ue chegaram à mesa
do visitador por crimes já relatados em capítulo anterior. Também foram diversos
os motivos que levaram as pessoas a irem delatar tais culpas, seja por estarem
em desacordo com a doutrina católica e por isso estavam temerosas em serem
denunciadas por inimigos, vizinhos, parentes ou rivais, seja para se livrar de
possíveis acusações.
60
A partir da leitura e análise dos livros das confissões e denunciações
referentes às Visitações do Santo Ofício que se fizeram na Bahia, observamos
que os residentes da cidade de Salvador de maneira geral se conheciam, mesmo
que de ouvir falar e conviviam cotidianamente, já que o tamanho geográfico era
relativamente pequeno. Quase todos os contatos sociais entre feiticeiros e
clientes ou usuários de magia eram fruto de vizinhança.
De maneira geral, as casas de populares eram feitas de barro cobertas
com palhas e por meio de suas frestas tudo podia ser visto ou ouvido pela
vizinhança. A proximidade entre uma casa e outra era também um dos fatores
que facilitaram a curiosidade alheia, assim a privacidade era praticamente
inexistente. Tornando a vida na colônia ainda mais difícil, pois nem dentro de suas
próprias casas as famílias tinham como realizar suas particularidades. O que não
quer dizer que não praticavam suas intimidades 72.
Por meio da bisbilhotice que se descobriam os segredos a serem
desvendados na mesa inquisitorial. A existência de objetos proibidos como os
livros censurados, a forma como se varria a casa, a higiene do corpo, os modos
alimentares, tudo era constantemente fiscalizado pelos próprios vizinhos de uma
determinada rua. E como em qualquer sociedade tudo era comentado na rua ou
viela onde residiam.
O burburinho foi uma constante na sociedade da Bahia colonial. As
pessoas sempre se remetiam a fatos que muitas vezes não conheciam, só
sabiam por que ouviram falar, relatado por pessoa considerada idônea ou não. O
fato é que qualquer que fosse o assunto as pessoas comentavam, opinavam e,
caso fosse necessário, denunciavam quando se sentiam ameaçados ou quando
queriam se vingar de inimigos, principalmente quando a suspeita poderia se
transferir para o delator. Isto é, era melhor que o indivíduo denunciasse alguém
por qualquer que fosse a prática herética, mesmo que aparentemente banal do
que ser o próximo a ser denunciado.
72
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Nova Front eira, 1997.
61
Portanto, foi especialmente por meio dos falatórios que dezenas de
pessoas foram acusadas, sentenciadas e penitenciadas pelos tribunais da Santa
Inquisição, que se baseava na delação e na confissão espontânea ou imputada
aos cristãos. E são esses contatos, sobretudo as relações ocasionadas pela
vizinhança, que trataremos neste capítulo.
Classificamos em dois os tipos de relações sociais em que estiveram
envolvidos praticantes e usuários da magia na Bahia colonial, sendo elas:
As relações de vizinhança
Que podiam ter base na amizade – mesmo que posteriormente se
transformasse
em
inimizade
e
antipatia
–
caracterizada
pela
sociabilidade entre os residentes de uma mesma rua, na qual os
feiticeiros ensinavam encantamentos para aqueles que consideravam
amigos tornando-os algumas vezes aprendizes de magia, sem qualquer
tipo de remuneração.
As negociações financeiras
Na qual o serviço de magia era comercializado em troca de dinheiro,
mantimentos e objetos de uso pessoal. Que podiam ou não ser
realizados entre vizinhos, podendo o contato entre ambos ser cessado
após a conclusão do serviço, geralmente este tipo de serviço era
caracterizado pela feitura de feitiços diabólicos.
Advertimos que os murmurinhos não estavam restritos ao meio urbano. No
Recôncavo também se falava da vida alheia e não era restrito aos rumores
oriundos dentro das fazendas, ao contrário, muito se sabia do que se passava na
cidade, pois havia pessoas que migravam para estas regiões seja por conta de
prestações de serviços, da venda de mercadorias, seja na tentativa de fugir dos
olhos inquisitoriais. Os residentes do Recôncavo sempre que necessário se
comunicavam com a capital e vice-versa.
62
As relações de vizinhança
Catarina Fernandes 73, cristã-velha, moradora na freguesia da Sé Monte
Calvário, denunciou e disse que era vizinha de Maria Gonçalves, também
conhecida como Arde-lhe-o-rabo e a pedido de outra vizinha, Domingas
Gonçalves, auxiliou na negociação de feitiços para outros vizinhos: Domingas
Fernandes e João Rolin. Não trataremos aqui da negociação, deixando para
apresentar no próximo item já que se tratou também de uma relação financeira.
Outro contato comum aos vizinhos eram os envolvimentos amorosos e
sexuais. São relatados casos em que os homens dizem que mulheres tidas ou
não por serem feiticeiras falavam palavras sagradas na boca do amante durante o
ato sexual. Em geral era a expressão hoct est enim corpus meun, que traduzida
para o português queria dizer este é o meu corpo.
Como na denúncia de Gaspar de Góes74, que disse ser cristão velho,
procurador do número e afirmou que há mais ou menos quinze anos, quando ele
ainda era solteiro teve “conversação desonesta” com Margarida Carneira, disse
ter ouvido a mulher falar as palavras e que seu sogro há pouco tempo também
passou pela mesma situação com a Margarida, Gaspar também relata que a
denunciada disse que tinha cartas de tocar e que se precisasse ela usaria para
que ele a quisesse bem 75.
Além do caso de Paula de Sequeira 76, cristã-velha, que foi processada por
sodomia e por leitura de livro proibido, mas que foi ao visitador também relatar
suas culpas relacionadas à magia, caso já tratado no capitulo I. Salientamos que
Paula tinha muitas amigas e vizinhas que frequentavam cotidianamente sua casa.
E disse que Isabel Rodrigues lhe ensinou as palavras de consagração da hóstia –
já ditas – para que seu marido a amasse mais e que a Boca-torta também lhe deu
uma carta de tocar, mas que não fez uso e a deu para Mércia Dias.
73
Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p. 298-300.
74
Idem, p 311-312
75
Idem p 311
76
Sodomia era a designação atribuída ao ato sexual anal seja entre pessoas do mesmo sexo ou
não e era condenado pela Igreja.
63
Paula foi uma mulher muito conhecida na cidade de Salvador por ter se
envolvido afetivamente e sexualmente com algumas mulheres, especialmente
com a também processada pela Inquisição Felipa de Souza, ao que parece elas
tiveram um relacionamento que atualmente podemos chamar de homoafetismo,
ou seja, elas tiveram um romance homossexual, o que para a época era
considerado crime de sodomia. Mas em nossa dissertação não daremos enfoque
a este outro processo de Paula, já que estamos tratando das relações sociais que
ela teve por conta do uso de magia. Mas será que a denunciante recorreu à
magia para despistar seus envolvimentos homossexuais? É uma questão que
nunca iremos elucidar, mas tudo indica que seja bastante provável.
No Recôncavo, citamos a denúncia feita por Joan Brás, cristão-velho,
carpinteiro e morador em Barra do Jaguaribe, que foi à mesa do visitador e
denunciou Lázaro Aranha, mameluco e morador em Camponengo em Parabasu,
o qual, segundo Antônio da Costa, também mameluco, vizinho do Joan, disse que
Lázaro usava de feitiçaria para ter sorte no jogo e também foi denunciado pelo
mesmo motivo por um seu amigo chamado João da Vila, cristão-velho morador
em Salvador. Segundo ele, Lázaro “disse que se entregava aos diabos em
agastamento de jogos” e outras ocasiões que não deixou claro na denunciação 77.
Neste caso, não há uma relação entre feiticeiro e cliente, mas um indício que
denotamos como sendo uso de magia.
Os indígenas e africanos também tinham seus feiticeiros, mas não os
nomeavam de tal modo, eram, portanto, chamados de pajés e curandeiros,
pessoas respeitadas pelas comunidades a qual pertenciam, mas que nas vistas
dos cristãos, estes encantados também foram considerados e acusados de
difundir a heresia. Relação muitas vezes conflituosa, como na denunciação de
Balthesar Pireira, senhor de engenho, que vendeu um escravo seu chamado de
André ao também senhor de engenho Antônio Vaz que residia na região do
77
Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado d e
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p. 355 .
64
Matoim após ter visto o escravo fazer feitiçaria, por meio de adivinhação usando
uma tigela.
78
Maria de Oliveira, cristã-velha e moradora da Freguesia de Paripe nas
proximidades do Rio Matoim, também denunciou um escravo vindo da Guiné
chamado Matheus que pertencia ao seu vizinho Balthesar Pereira, como tratado
no parágrafo anterior. O negro denunciado por Maria já pertencia a Antônio Vaz e
ele lhe disse que o cativo “fazia feitiçaria diabólica” e “adivinha cousas feitas e
com certas palavras faz andar e mover uma tigela de barro branca [...]” 79
A crença de que os conhecimentos mágicos eram passados de mãe para
filha ou de pai para filho era ainda uma crença viva no imaginário colonial, havia
aqueles que realmente acreditavam que podiam transmitir os conhecimentos da
magia por meio da hereditariedade. Como no relato de Joan Ribeiro e Guiomar de
Oliveira que denunciaram Antônia Fernandes.
João Ribeiro, cristão-velho e morador na freguesia de Paripe, denunciou
Antônia Fernandes, dizendo que estando Joan em casa com a Nóbrega, ela lhe
comentou que sua filha Joana na ocasião residia em Portugal era feiticeira
diabólica assim como ela, e que tinha um demônio familiar, e se ela Antônia
também quisesse também o teria e isto lhe disse acerca de um ano “a propósito
de umas cousas ao modo de pinhões que lhe mostrou dizendo que os tinha para
dá-los a hum homem para aquele homem os dar a uma mulher para que aquela
mulher o quisesse bem” 80 seduzindo-o.
As relações de parentesco também são relatadas.
Assim como na
denunciação de Custodia de Farias, cristã-velha e moradora em Salvador, que
denunciou a amiga de sua filha Maria Coreia, por nome de Ilhena da Fonseca,
que disse que “sua mãe fazia uma mesinha para os homens serem bem casados
com
78
suas
mulheres.’ 81
Refletimos
que
esses
conhecimentos
mágicos
Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 295-296
79
Idem, p 548.
80
Idem, p 423.
81
Idem, p 479.
65
popularizavam-se e as próprias mães incentivaram suas filhas a realizarem
encantamentos para terem sorte nas relações afetivas.
Paula de Sequeira, também relata uma vivência mágica que teve com mãe
e filha, ambas feiticeiras. Disse que em 1584, quando tinha cerca de 30 ou 32
anos aprendeu com Maria Rangel a usar a pedra d’ara, para que seu marido a
quisesse bem e que a mais ou menos um ano praticou orações de devoção para
Santo Erasmo com a filha de Maria, a Maria Rangel, objetivando ter melhoria em
sua vida conjugal.
82
Assim, percebemos e identificamos que foram as sociabilidades que
envolveram feiticeiros e clientes nas relações de vizinhança a maneira mais
frequente de encontro e uso mágico. Foram homens, mas, sobretudo mulheres
vizinhas, amigas ou não, as que com maior intensidade recorreram aos préstimos
da magia para resolverem seus problemas cotidianos, familiares e sociais.
A hospedagem de pessoas em casa por meio de solidariedade também
existia na colônia, não podemos julgá-las se de fato eram atos de solidariedade
porque não cabe ao historiador faze r tal posicionamento, o fato é que ocorriam e
em algumas vezes esses atos criavam vínculos de amizade, mas que por motivos
variados sempre acabavam com a denúncia de atos heréticos por parte do
proprietário – e vice-versa - à mesa inquisitorial sobre os comportamentos dos
hóspedes.
Maria Gonçalves, também foi denunciada por Isabel Monteiro Sardinha,
cristã-velha que inicialmente a abrigou em sua casa, quando veio degredada de
Portugal, mas que após a descoberta que Maria era feiticeira diabólica tornou-se
inimiga indo denunciar - lá ao visitador. Isabel afirmou que viu Maria “dizer certas
palavras de rosto ao mestre da dita galé em que vinha e tanto que ela a disse
logo o dito mestre respondeu o que ela queria que consentisse agasalhar se ela
82
Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 110.
66
naquela câmara com ela denunciante e que dantes o dito mestre não quis
consentir” 83
Nesta denúncia é interessante observar que também há uma relação de
vizinhança entre a denunciante e outras mulheres que sabiam sobre as feitiçarias
de Maria. Isabel relata que suas vizinhas Domingas Fernandes e Margarida
Fernandes disseram que Maria falou que “assim como o bispo tem mitra e
pregava na cadeira ela também tinha e pregava com os diabos [...].” 84
Não foi em todas as denúncias sobre Maria Gonçalves que as testemunhas
afirmavam que ela era feiticeira diabólica, a mais conhecida nas ruas da cidade
de Salvador e mesmo em algumas regiões do Recôncavo da Bahia, pois
Catharina Quaresma, que não sabia se era cristã-velha ou cristã-nova, foi
chamada à mesa para denunciar sobre Maria disse que não sabia por que tinha
sido convocada a denunciar, mas que lembra que há um ano sua mãe Guiomar
Lopes e sua avó Beatriz Lopes também hospedaram em sua casa Maria.
Catarina disse que nunca a viu fazer nada de mal, ela afirma que sabia das
acusações da população sobre o comportamento da feiticeira e que todos
comentavam sobre as feitiçarias de Maria, mas para Catarina não havia pacto
demoníaco, logo ela não poderia ser uma bruxa ou feiticeira diabólica. Disse
também que assim como todas as pessoas que denunciaram durante a Primeira
Visitação não sabia onde estava Maria.85
Por motivo de saúde D. Lianor Soares, cristã-velha que morava em
Salvador, e que foi denunciada por Lucia de Melo, também cristã-velha e
provavelmente sua vizinha, disse que Gaspar Leitão, cônego da Sé disse que há
dois ou três meses viu D. Lianor dar a uma sua irmã quebranto Lucia que era
amiga e comadre da denunciada não acreditou no que ouviu de Gaspar e foi
83
Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de
Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 287.
84
Idem, p 288.
85
Idem, p 289.
67
perguntar à mãe do cônego que confirmou a história dizendo que é “verdade e de
fama pública” 86
Isabel D’avila, mameluca que morava em São Francisco, denunciou Branca
Lopes, cristã-nova, por ter visto em 1570, Branca fazer uma feitiçaria para curar
sua filha – de Branca – em que viu “tomar um cesto de barro com uma pequena
de água dentro e uma coroa de estopa em cima do cesto que lhe não chagava a
água que estava no meio do cesto e com sua mão tinha no ar sobre a dita doente
dormindo e com o dedo da outra mão molhava em uma tigela de azeite e lançava
as gotinhas do dito azeite dentro da agua do dito cesto.”
87
A seguir quadro referente aos denunciantes de feitiçaria que tiveram como
base a amizade e vizinhança para saber ou tratar de feitiços durante a Primeira
Visitação
Quadro 3 – Das relações de vizinhança denunciadas ou confessadas
Vizinhos
Denunciante
Feiticeiro
Prática
Catharina Fernandes
Maria Gonçalves
Viu negociações de feitiços
Gaspar Góes
Margarida Carneira
Paula de Siqueira
Isabel Rodrigues
Vitima de encantamento de
benquerença (palavras
sagradas)
Encantamento palavras
sagradas, cartas de tocar
Paula de Siqueira
Maria Rangel
Baltheesar Pireira
Um escravo seu
Maria Oliveira
M escravo de Balthesar
Pireira
Antônio Fernandes
A mãe de Ilhena da
Fonseca (amiga de sua
filha)
Lazaro Aranha
João Ribeiro
Custodia de Farias
Antônio da Costa (denunciado
por João Brás)
86
Isabel Monteira
Maria Gonçalves Cajada
Domingas Fernandes
Margarida Fernandes
Catarina Quaresma
Maria Gonçalves Cajada
Maria
Maria Gonçalves
A ensinou a usar a pedra de
ara
Viu fazer feitiçaria para
adivinhar
Soube que fazia feitiços para
adivinhar
Viu fazer feitiçaria
Disse que era feiticeira
Feitiços para ganhar jogos
Viu Maria encant ar dois
homens
Viu fazer feitiçarias
Viu fazer feitiçaria
Não acreditava que Maria era
feiticeira
Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de
Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 343.
87
Idem, p 553.
68
Gaspar Leitão (denunciado por
Lucia de Mela)
Isabel D’avila
D. Lianor Soares
Branca Lopes
Disse que a viu dando feitiços
para curar
Viu fazer feitiçarias
As relações financeiras
As negociações financeiras foi o tipo de sociabilidade mais frequente aos
casos de feitiçaria, pois muitas eram as pessoas que recorriam aos préstimos
mágicos para sanarem problemas de difícil solução e para que fossem de
maneira rápida e eficiente por vezes era necessário desembolsar quantias em
dinheiro, comidas e objetos pessoais e domésticos.
Como vimos no início do capítulo se fazia magia para tudo e quanto mais
complicada a resolução do problema mais caro era o valor a ser pago à feiticeira.
Porém, frequentemente os clientes voltavam atrás e diziam que não dariam
prosseguimento aos feitiços, já que se arrependiam ou achavam que a feiticeira
estava demorando em entregar os feitiços, exigindo a devolução do dinheiro pago
sempre que se sentiam lesados pela praticante. Vejamos os casos a seguir:
Como na denúncia feita por Catarina Fernandes 88, cristã-velha, moradora
na freguesia da Sé Monte Calvário, que disse que era vizinha de Maria Gonçalves
– a Arde-lhe-o-rabo, tida como feiticeira, provavelmente a mais conhecida da
cidade -, e a pedido de outra vizinha, Domingas Gonçalves, falou com a feiticeira
para adiantar o serviço, pois Domingas já tinha pagado o combinado. E
conversando com outro vizinho Joan Rolin, francês, Catarina soube que este
também negociou com a feiticeira e que também estava descontente com os
préstimos mágicos de Maria. E disse que “[...] sabe estas cousas porque foi
vizinha sua e moradora das portas a dentro com Domingas Gonçalves.” 89
O que desperta a nossa atenção nesta denúncia é o fato de que a
denunciante Catarina tinha certa camaradagem com a feiticeira, prova disso é a
disponibilidade da maneira como tratou de informar a feiticeira sobre as queixas
88
Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 298-300.
89
Idem, 1925, p300.
69
de seus clientes e o relato de ter participado de uma conversa na presença de
Domingas, de Joan e da Maria sobre umas feitiçarias que haviam pedido e tinha
como base uns papéis que estavam escritos nomes de inimigos a serem
castigados:
[...] perante ela denunciante disse a dita Maria Gonçalves a dita
Domingas Gonçalves que não podia acabar sua devoção por que
perdeu aquilo que lhe acho o dito francês e a dita Domingas
Gonçalves lhe disse que lhe daria mais dinheiro e mais azeite
para fazer outro. 90
Catarina presenciou também uma discussão com Maria e com outro
vizinho Pedro Guodinho, que era meirinho do campo e que
[...] pelejando uma vez a dita Maria Gonçalves com Pedro
Guodinho [...] ela disse Pero Guodinho porque pelejas comigo já
vos fiz pagar a tença da vara, deste-me três tostões fez três
papelinhos, um para o bispo, outro para Cristóvão de Bairros, e
outro para o ouvidor geral e a isto foi ela denunciante presente. 91
Além de Guiomar de Oliveira, cristã-velha, que morava em Salvador
confessou ao visitador ter apelado à magia para que fosse perdoada de uma
dívida e de Catarina Froes, ambos os casos mencionados em capitulo anterior.
Por ser considerada feiticeira diabólica e por ter fama de que era poderosa
e tudo que fazia dava certo, Arde-lhe-o-rabo induzia as pessoas a praticarem
magia. Como na denúncia de Maria da Costa, cristã-velha, que estava com
problemas familiares e lhe foi dito pela feiticeira que “se lhe desse certa cousa ela
faria com que seus filhos irmãos dela denunciante que anda homiziados por uma
morte fossem perdoados”92
Isabel Antoniane, cristã-velha, moradora em Salvador denunciou Isabel
Roiz ou Rodrigues como sendo feiticeira e disse que ela denunciante emprestou
dinheiro a Francisco Roiz para ele pagar à feiticeira, pois tinha negociado com ela
um feitiço de benquerença. Isabel diz que no momento do empréstimo não sabia
para que fim eram e como ele Francisco era seu amigo não viu problemas em
90
Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 299.
91
Idem, p 298.
92
Idem, p 398.
70
emprestar, situação ocorrida em 1585. Também denunciou Maria Gonçalves,
dizendo que era de fama pública que a bruxa fez “arribar uma nau que ia para
Portugal por dois cruzados” 93
Existem outros casos em que pessoas relatam as relações financeiras
entre feiticeiros e clientes que não se encontravam na cidade de Salvador no
momento da Visitação ou que presenciaram tal caso quando residiam em outra
localidade, como na denúncia feita por Catarina Vasqueiro, que disse que morava
em Pernambuco, tinha 33 anos, era casada com Gaspar Pires, que também
estava ausente e ela a denunciante era criada de Santiago Galliza – há quem
ainda não encontramos – mas que também, ela Catarina tinha casa de vender.
Denunciou que uma mulher conhecida como a Borges, natural de Portugal
e moradora em Pernambuco é feiticeira diabólica, e que em 1590 “um carpinteiro
[...] deu a dita Borges dinheiro e outras coisas por o desligar e que ela o levou a
meia noite a porta da Vila de Olinda e o atou de pés e mãos e o picou com uma
agulha nas pernas para lhe tirar sangue para dar aos diabos e chamava por
eles” 94, a denunciante diz que viu o homem pendurado e com mosquitos ao seu
redor. Aqui nesta denúncia não diz o motivo que levou o homem a buscar a
feiticeira, mas fica clara a remuneração para a realização de uma prática de
magia já que houve um ritual que parecia ser arriscado à vida do cliente e da
feiticeira.
Deste modo, concluímos, mas não a exaustão, que as relações financeiras
foram frequentes quando se tratavam dos casos de feitiçaria – especialmente de
feitiçaria diabólica – na capitania da Bahia e em seu entorno. E, portanto, para
além das relações de amizade e vizinhança muitas pessoas negociaram usar da
feitiçaria. E como vimos havia acima de todas as dificuldades encontradas,
sobretudo pelos colonos na vida nos trópicos, percebemos uma relação de
amizade e interesse em “ajudar” o próximo.
93
Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 433
94
Idem, p 527.
71
Abaixo quadro referente aos denunciantes de feitiçaria que tiveram como
base a negociação para saber ou tratar de feitiços durante a Primeira Visitação.
Quadro 4 – Das negociações denunciadas ou confessadas
Negociações
Denunciante
Domingas
Fernandes
João Rolin
Pero Gudinho
Catharina Froes
Feiticeiro
Maria Gonçalves
Prática
Comprou feitiços
Custo
--
//
//
//
-Três tostões
--
Guiomar de
Oliveira
Antônia Fernandes
Isabel Antoniane
Isabel Rodrigues
Francisco Roiz
Isabel Rodrigues
//
//
Comprou feitiço
para matar um
homem e para
melhorar o
casamento de sua
filha
Comprou feitiço
para ser perdoada
de uma divida
Emprestou
dinheiro a
Francisco Roiz
para ele pagar os
feitiços
Comprou feitiços
de benquerença
--
Cinco tostões
Cinco tostões
2. A magia: seus tipos e motivações
A magia era solicitada sempre que este necessitasse solucionar um
problema de difícil ou impossível solução. Como nos casos de doenças sem
diagnósticos precisos, nos problemas financeiros e principalmente para os casos
relacionados aos assuntos afetivos. Assim, colonos, indígenas e africanos
constantemente recorreram às artes mágicas na tentativa de amenizar ou
solucionar seus dilemas cotidianos privados, haja vista que
Para a maioria esmagadora dos habitantes da colônia, as doenças
as forças e as armadilhas da natureza apresentavam-se como
indomáveis. A fé mostrava por isso mesmo, contornos
tradicionais, arcaicos, onde a demanda de bens materiais e de
vantagens concretas assumia grande importância, como se fosse
uma espécie de contrato [...]95
95
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de S anta Cruz. São Paulo: Cia. das Letras, 1986,
p.109.
72
Consideramos como tipos de magia encontrados na América portuguesa,
tomado por base as classificações apontadas nos estudos de Laura de Melo e
Souza, Daniela Buono Calainho, dentre outros estudiosos especialistas na
religiosidade popular Brasílica e a partir de nossas analises dos Livros das
Confissões e Denunciações que se fizeram na Bahia durante as Primeira e
Segunda Visitações, identificamos os seguintes tipos de magia: as adivinhações,
as benzeduras, o curandeirismo, a pajelança, a feitiçaria e a bruxaria. 96
As adivinhações eram formas de prever acontecimentos futuros ou
descobrir coisas ou pessoas perdidas, saber de notícias futuras. Na Bahia as
adivinhações eram precedidas de rezas e evocações de nomes de santos, bem
como se utilizavam de materiais como, por exemplo, água, tigela, pedra, tesoura e
velas para auxiliar nos rituais de adivinhação.
Segundo os relatos contidos nos Livros das Visitações à Bahia durante os
séculos XVI e XVII. Foram os homens africanos os principais adivinhadores da
cidade de Salvador e do Recôncavo . A exemplo, citamos algumas denúncias e
confissões casos em que senhores de engenho utilizavam das artes de
adivinhação de seus cativos para saber de roubos de dinheiro ou pertences e
mesmo para encontrar e saber onde estavam seus escravos desaparecidos, mas
quando o acusado desses acontecimentos era familiar do senhor dificilmente ele
acreditava, desta maneira duvidava do cativo e iam denunciá-los
97
.
Outra maneira de adivinhar era facilitada pelos sonhos, pois se acreditava
eram representações importantíssimas para a vida dos colonos, uma vez que se
acreditava que estes poderiam prever acontecimentos futuros. De maneira geral,
a adivinhação não foi tão censurada e proibida aos olhos inquisitoriais. O que
chamava a atenção dos Inquisidores era a maneira como se recorria e sabia
96
Denominações atribuídas aos tipos de prática s mágicas identificadas por quase todos os
estudiosos que trat am sobre religiosidade popular em Portugal e na América portuguesa. Citamos
Laura de Melo e Souz a, José Pedro Paiva, Francisco Bethencourt, Daniela B uono Calainho, Luiz
Mott, dentre outros.
97
CALDAS, Glícia. A magia do feitiço: apropriaç ões africanas no Brasil Colônia. Revista
Eletrônica Acolhendo a Alfabetização nos Países de Língua Portuguesa [on line] 2007, I
(setembrofevereiro)
Disponível
em:
<http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=87910111> p 105.
73
dessas coisas futuras, pois se fosse comprovado a intervenção ou evocação
demoníaca era necessário cessar a prática.
Assim como a adivinhação, as benzeduras realizadas na capitania da
Bahia não foram demasiadamente fiscalizadas e reprimidas pelo Santo Ofício. Por
quê? Talvez por não causarem tantos malefícios, já que na maioria das vezes
citavam e solicitavam auxílio de santos católicos, ritual que não parecia ter
intervenção
ou
associação
diabólica.
As
benzeduras
eram
utilizadas
principalmente para curar as enfermidades do corpo e do espírito.
Além das adivinhações e benzeduras, havia ainda o curandeirismo,
sobretudo realizado pelos grupos africanos, em que tanto homens e mulheres
ambos mensageiros de conhecimentos mágicos (principalmente os homens) para
tratar de enfermos que sofriam de doenças físicas e espirituais, além disso, eram
eles os curandeiros que estavam incumbidos de serem os guardiões e
transmissores das tradições e costumes sociais e religiosos das comunidades
africanas.
Estes curandeiros por serem detentores dos saberes sobrenaturais e
mágicos eram bem vistos dentro da comunidade escrava colonial em que viviam,
pois se acreditava que eles eram inspirados por deuses e podiam equilibrar a vida
dos negros. Para os africanos tudo que poderia provocar o desequilíbrio social era
oculto, mágico e sobrenatural e por isso recorriam à magia para entrarem em
harmonia com a natureza.
Praticado entre os indígenas, a pajelança é termo que usamos para a
magia realizada e difundida pelos pajés, sobretudo, homens que tinham a função
de intervir na cura dos humanos e dos animais, sendo eles os responsáveis pela
manutenção da saúde das comunidades.
Citamos como exemplo o caso de Antônio Botelho, que confessando disse
que estando ele e Domingos Ferreira, que estava doente dos pés, mandou
chamar um índio feiticeiro que chupou seus pés e no dia seguinte do ritual os pés
74
dele já estavam melhores. Antônio afirmou que no dia do acontecido eles estavam
no sertão 98.
Os pajés, homens conhecedores de ervas que realizavam os rituais de
cura, tanto espirituais quanto físicas eram muito procurados, não apenas pelas
comunidades indígenas, mas também por aqueles que sofriam enfermidades
corporais e já não sabiam a quem recorrer, esses poderiam oferecer os remédios
certos para a cura, quando as sangrias e as purgas dos cirurgiões-barbeiros já
não funcionavam. E mesmo sendo a cura o objetivo mágico de maior evidência
entre os ameríndios não significa dizer que também não realizavam outros tipos
de magia com outras finalidades.
A feitiçaria era a prática de magia realizada seja para o bem ou para o mal,
realizada principalmente pelas mulheres cristãs-velhas. Não havia pacto ou
associação diabólica e seus praticantes e seguidores poderiam fazer seus usos
de maneira individual ou coletiva. Além da feitiçaria curativa e amorosa, foram
também praticadas magia que objetivavam equilibrar o relacionamento entre
senhores de engenho e seus escravos, posto que os cativos se queixavam dos
maus tratos sofridos pelos seus senhores e buscavam no auxílio sobrenatural
forças para amenizarem seu sofrimento.
Também usada, sobretudo pelas mulheres, a bruxaria ou feitiçaria diabólica
– no caso da Bahia – era a prática de magia em que seus adeptos precisavam ter
um pacto e união com os demônios para a realização de seus feitos. Segundo
alguns depoimentos de bruxas e bruxos, na Europa e mesmo na América
portuguesa, os oficiantes tinham obrigações e compromissos junto ao demônio,
eram os chamados sabás ou simplesmente encontros de bruxas. Não só para
causar o bem que os colonos, cativos e nativos recorriam à magia. Muitos
problemas relacionados a dívidas financeiras, morte de cônjuges ou mesmo
objetivando causar doenças de difícil identificação em familiares e inimigos
também foram fruto das práticas mágicas.
98
Primeira Visitação do S anto Ofício às partes do B rasil pelo licenciado Heit or Furt ado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 536.
75
Já discutimos o sabá em capítulo anterior, mas não relatamos os
depoimentos das metamorfoses ocorridas na Bahia. E para ir aos sabás, muitas
vezes era necessária uma preparação. Assim recorriam-se as metamorfoses para
facilitar a chegada dos bruxos e bruxas aos seus encontros noturnos com o diabo.
Foi, principalmente nos séculos iniciais da colonização, na qual a crença em
bruxas pactuadas com o demônio “Ora animal, ora homem, trazia quase sempre
em si alguma coisa que revelava sua natureza infernal [...]” 99 e, possibilitava a
esses seres mágicos disfarçarem-se para burlar as fiscalizações e poderem
realizar seus feitiços sem serem percebidos, porém, alguns animais denunciavam
a presença demoníaca pois: “A imperfeição física do demo, não só era o espelho
de sua imperfeição interna, espiritual, como também servia de contraponto a
perfeição divina [...] 100.
Chama a atenção na documentação produzida pelas visitações
inquisitoriais às terras brasílicas um variado rol de acusações
contra mulheres acusadas de práticas de feitiçaria, não só
repetindo costumes mágicos herdados da tradição medieval
ibérica, mas ainda, o reflexo da mistura destes hábitos com as
influências recebidas pelas tradições ameríndia e africana [...]. 101
Assim como na Alemanha, França, Inglaterra e na Itália, além de
evidentemente em Portugal e Espanha – estes com menos intensidade –
testemunhas relatam a existência de metamorfoses. Diziam que viam as bruxas
especialmente em formas de aves. Mas não apenas as bruxas podiam se
transformar em animais para irem aos seus cultos, já que existem relatos das
próprias bruxas que diziam que mesmo o Diabo se metamorfoseava em animais,
em geral na figura de bodes negros.
Aqui se faz necessário um comentário sobre as metamorfoses que foram
denunciadas aos visitadores quando se estabeleceram no antigo Colégio da
Companhia de Jesus durante a primeira visitação do Santo Ofício em 1591. Na
99
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e s uperstição num país sem caça as bruxas: 1600 – 1774. 2. ed.,
Lisboa: Editorial Notícias, 2002. p. 248.
100
Idem, p 249.
101
ASSIS, Ângelo Adriano Farias. Feiticeiras da colônia. Magia e práticas de feitiçaria na América
Portuguesa na document ação do Santo Ofício da Inquisição. Anais do II Encontro Int ernacional de
Historia Colonial. Revista de Humanidades, UFRN. V9 nº 24, 2008. Caico, RN: Disponível em:
http://www.cerescaico.ufrn. br/mneme/anais/st_trab_ pdf/pdf_st3/nagelo_assis _st3.pdf.
76
ocasião chegaram à mesa do visitador cerca de quatro pessoas acusando
algumas mulheres que foram vistas andando pela rua à noite em figura de patas,
como no caso de Violante Ferreira e Mércia Pereira.
Ambas cristãs-velhas foram denunciadas por Custodia de Farias, que ouviu
dizer por Beatriz de Sampaio sobre as duas mulheres sendo vistas como patas.
Custodia diz não acreditar no relato de Beatriz, haja vista que tanto Violante
quanto Mércia eram amigas dela denunciante, mas que achou necessário relatar
o acontecido ao visitador por acreditar que o Santo Ofício precisava saber 102.
Mércia também foi denunciada por Isabel de Sandales, que disse que segundo o
Cura da Villa Velha a denunciada foi vista no caminho de Sam Sebastian ou em
Água de Meninos à noite em forma de pata em companhia de outra mulher que
não soube dizer quem era, isso aconteceu em 1581 103
A partir de nossas investigações e análises posteriores dos livros da
Primeira e Segunda Visitações a Bahia encontramos e classificamos em sete
classes principais as motivações pra se recorrer à magia, sendo elas: afetividade;
saúde e corpo; subtraídos e desaparecidos; perdão e justiça; assuntos ligados à
sorte; dívidas; e, contrafeitiços e feitiçarias. Cada uma dessas classes está
subdividida de acordo com suas ocorrências, constituindo estes os achaques
cruciais que levaram os residentes da cidade de Salvador e seu entorno a
recorrem o uso de práticas mágicas.
102
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furt ado de
Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, p 479.
103
Idem, p. 540.
77
Quadro 5. Das motivações
Motivações para uso de magia
Afetividade
Saúde / corpo
Subtraídos e desaparecidos
Perdões / justiça
Assuntos ligados à sorte
Arrumar casamento
Benquerença
Morte de marido
Amansar marido
Provocar intrigas
Curar doenças
Quebranto
Ajudar no parto
Encontrar pessoas desaparecidas
Achar objetos furtados
Obter notícias de pessoas distantes
Descobrir acusados de furto
Livrar-se do Santo Ofício
Ser perdoado
Obter sorte em jogos
Dívidas
Troca de favores
Livrar-se do pagamento de débitos financeiros
Aluguel de casas
Contrafeitiço e feitiçarias
Embruxar ou enfeitiçar criança / fazer feitiço
A seguir apresentamos com que frequência essas práticas foram denunciadas as
Visitações à Bahia:
QUA DRO 6. PRIME IRA VISITAÇÃO
Motivações para uso de magia
Afetividade
Saúde / corpo
Subtraídos e desaparecidos
Perdões / justiça
Assuntos ligados à sorte
Arrumar casamento 2x
Benquerença 5x
Morte de marido 1x
Amansar marido 7x
Provocar intrigas
Curar doenças 4x
Quebranto 1x
Ajudar no parto 1x
Encontrar pessoa desaparecidas 2x
Achar objetos furtados 4x
Obter notícias de pessoas distantes 2x
Descobrir acusados de furto 3x
Livrar-se do Santo Ofício 2x
Ser perdoado 2x
Obter sorte em jogos 3x
Dívidas
Troca de favores 2x
Livrar-se do pagamento de débitos financeiros 2x
Aluguel de casas 1x
Contrafeitiço e feitiçarias
Embruxar ou enfeitiçar criança 2x
Fazer feitiço 9x
Dizer que era feiticeiro 7x
78
QUADRO 7. A SEGUNDA VISITAÇÃO
Motivações para uso de magia
Afeti vidade
Saúde / corpo
Subtraídos e desaparecidos
Perdões / justiça
Assuntos ligados à sorte
Arrumar casamento 3x
Benquerença 3x
Morte de marido 0x
Amansar marido 2x
Provocar intrigas 2x
Curar doenças 6x
Quebranto 2x
Ajudar no parto 0x
Encontrar pessoas desaparecidas 2x
Achar objetos furtados 2x
Obter notícias de pessoas distantes 1x
Descobrir acusados de furto 2x
Livrar-se do Santo Ofício 0x
Ser perdoado 1x
Obter sorte em jogos 0x
Dívidas
Troca de favores 1x
Livrar-se do pagamento de débitos financeiros 0x
Aluguel de casas 0x
Contrafeitiço e feitiçarias
Embruxar ou enfeitiçar criança 6x
Fazer feitiço 2x
D
Dizer que era feiticeiro 5x
Descrevendo as motivações para a prática de magia
Afetividade
Entre os colonos, geralmente, a magia era realizada para fins amorosos,
podendo apresentar como principais finalidades o “amansamento de maridos”,
para que os homens fossem mais apaixonados e carinhosos com suas esposas;
encantamentos para arrumar casamento; promover a doença e mesmo
falecimento de um dos cônjuges e a separação de casais.
Guiomar de Oliveira, que recorreu à feitiçaria para amansar seu marido, a
foi ensinada por Antônia Fernandes d’alcunha, a Nóbrega, mulher “que falava
com os diabos e lhe mandava fazer o que queria” 104 a realizar um feitiço. A
feiticeira “[...] lhe deu [...] pós não sabe de que, e outros pós de ossos de finado,
104
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p . 138 .
79
os quais pós ela confessante deu a beber em vinho ao dito seu marido [...] 105 de
outra vez fala que deu a beber também em vinho a “semente do homem”, seu
marido após terem tido ‘ajuntamento carnal” e assim a confessante disse ter feito.
Assim também recorreu Paula de Sequeira, que objetivando “a mansar seu
marido” e para que esse lhe tivesse mais afeto seguiu os ensinamentos de Isabel
Rodrigues, mas conhecida com Boca-Torta:
[.] disse que haverá oito a dez anos pouco mais ou menos que,
nesta cidade, /Isabel Rodrigues, a Boca-Torta d’alcunha, nela
moradora, lhe ensinou as ditas palavras da consagração desta
maneira, hoc est enim, dizendo-lhe que as dissesse na boca
dormindo a seu marido que lhe queria bem, (e) ela confessante
usou as ditas palavras, dizendo algumas vezes da dita maneira ao
dito seu marido.106
Anos depois faz uso de outro ritual mágico, tendo o amansamento de seu
marido sempre como maior objetivo. Nesse momento teve contato com Maria
Vilela que relatava que fez o uso da pedra d’ara que conseguiu com o auxílio dos
diabos para amansar seu marido, Paula ao observar tal relato pede um pedaço da
pedra para realizar tal feitiço: ‘[...] pediu uma pequena para dar ao dito seu
marido, a qual lhe deu, e ela confessante a deu moída em pó em um copo de
vinho ao dito seu marido Antônio de Faria uma vez.” 107 Apesar da confissão de
tais práticas, Paula respondeu ao crime de leitura de livro proibido, tendo sofrido
penas espirituais. Aliás a pedra d’ara foi também muito utilizada no reino
português.
Outro depoimento que podemos apresentar é o da confessante Catarina
Frões que usou de bruxedos para trazer a morte de um de seus genros e solicita
o feitiço a Arde-lhe-o-rabo, mas não relata o tipo de feitiço realizado. E em outro
momento torna a procurar a Arde-lhe-o-rabo e dessa vez faz uso de seus serviços
a pedidos de outra filha sua, que
[...] entendendo também e pretendendo que os tais feitiços se
haviam de fazer com intervir o diabo e arte sua, e para isto lhe deu
um botão e um retalho da capa do dito seu genro a dita Maria
105
106
107
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p 135
Idem, p 110.
Idem, p 112.
80
Gonçalves lhe deu uns pós dizendo que os lançasse debaixo dos
pés do dito seu genro [...] 108
No entanto, afirma depois não ter continuado com o feitiço descartando os
pós. Existem muitas outras práticas, que são confessadas e denunciadas durante
a Primeira Visita, mas que serão tratados em outros trabalhos.
Na Segunda Visita podemos citar o caso de Maria Barbosa109. Feiticeira
que era natural de Évora e que após um degredo para Angola passa em
Pernambuco, Rio de Janeiro e nos anos iniciais do século XVII veio para a Bahia,
sendo muito requisitada e mal vista, sobretudo pelas mulheres na colônia, pois a
associavam como prostituta e destruidora de lares.
Seus maiores feitiços direcionavam-se para “prender os corações e olhares
de seus amantes”, retorna a Lisboa e lá sai em auto-de-fé com uma vela acesa na
mão abjurando de leve, não mais voltando à Bahia. Mas que devido à má
conservação do documento, alguns fólios estão impossíveis de serem lidos não
conseguimos analisar seu processo, sendo este disponível no acervo on-line do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Arranjos de casamento, conquista de amores e os feitiços para uma
pessoa querer bem – as chamadas feitiçarias de benquerenças - a outra, também
se encontram nessa classe de motivações. Como na denúncia de João Ribeiro
contra a Nóbrega, onde ele denunciante relata que a mulher ‘[...] lhe disse a
propósito de umas cousas ao modo de pinhões que lhe mostrou dizendo lhe que
os tinha para os dar a hum homem pera aquele homem os desse a uma mulher
para que aquela mulher lhe quisesse bem.” 110
Os feitiços ligados aos assuntos de afetividade também foram bastante
realizados em Portugal. Os estudos de José Pedro Paiva mostram que as
feitiçarias eróticas foram uma das práticas de magia mais realizadas no reino
108
. VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p 120121.
109
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São P aulo: Companhia das
Letras, 1986, p 333-334.
110
Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925. p 423-424
81
português, sobretudo pelas mulheres que fizeram o uso das cartas de tocar, de
pós feitos com materiais diversos e da evocação de palavras sacras durante o ato
sexual com seus amados, todos os feitiços objetivando o mesmo fim: ter o amor
de seu amante.
Saúde e corpo
Caracterizada pela feitura de feitiços para cura de enfermidades físicas, a
descrença na ciência médica e a dificuldade em encontra -los, levou colonos a
buscarem auxilio no trato das doenças com os feiticeiros locais. Na capi tania da
Bahia não havia boticas e cirurgiões-barbeiros para realizarem atendimentos e
comercializarem
medicamentos,
tornando
assim
o
ofício
do
feiticeiro
indispensável.
Assim citamos a confissão de Antônio da Costa, que confessando disse
que “[...] adoecendo lhe uma menina sua filha, e suspeitando que de peçonha ou
feitiços, mandara chamar dois negros por duas vezes, hum deles de Jorge
Ferreira Cristão-velho viúvo morador nesta cidade e do outro não estava
lembrado cujo era, tendo os por feiticeiros e lhe pedira para que lhe adivinhassem
que doença tinha a dita filha E o negro do dito Jorge Ferreira lhe dissera que lhe
avião dado peçonha e lhe fizera umas mezinhas com umas ervas para efeito de
adivinhar” 111.
Subtraídos e desaparecidos
Para encontrar objetos furtados, saber de culpados de furtos ou encontrar
pessoas desaparecidas ou fugidas, como nas Confissões da Segunda Visitação
em que Francisco Nogueira recorre a um negro para que esse adivinhasse onde
estava dois de seus escravos que havia sumido”[...] q uando o caso acontece lá
nas ditas duas vezes, que deitar da primeira água, digo vinho em uma tigela, e da
111
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 447.
82
segunda vez água, e falar um pouco só, e logo lhe adivinhara [...]” 112. O
confessor:
[...] entendia que por obra do diabo adivinhara, e que era isso
proibido pela santa Madre Igreja, e que ele Confitente não fizera
pacto algum com o diabo, nem sabia se o dito negro o tinha feito
nem que cousa isso era, e cria no que crê a Santa Madre igreja
[...] 113
Maria de Penhosa, motivada em descobrir os autores dos furtos que teve
em sua casa, procurou Anna Coelho, que por meio de adivinhação apontou os
culpados.
[...] haveria dois meses pouco mais ou menos que nesta cidade
em sua casa fizera umas sorte com um livro das oras de Nossa
Senhora e com uma chave por lhe pedir Barbara gudinha mulher
solteira sua vizinha para descobrir um furto, e uma dona Maria
mulher de Manoel Cardoso do Amaral para se descobrirem dois
furtos de modo que fez as ditas sortes uma vez. [...] tomara hum
livro das Horas de Nossa senhora e metera a no meio das folhas
uma chave e fechando o dito livro, de modo que ficava a maior
parte da chave fora, ajudando hum menino que seria de oito anos
a ter mão na dita chave e dizendo ela confitente: Eu te esconjuro
da parte de Deus e da Virgem Maria pela virtude dessa horas que
me diga quem tomou tal cousa, e nomeando as pessoas em que
havia suspeita e estavam presentes, davam o dito livro uma volta
ao tempo em ela Confitente nomeava a pessoa que tinha feito o
furto [...] 114
Nessa mesma classificação estão as motivações para a realização de
feitiços para também saber de coisas e acontecimentos do futuro que não
encontramos casos relevantes.
112
GARCIA, Rodolfo (Org.). Livro das denunciações que s e fizeram na Visitação do Sant o Ofício
à cidade de S alvador da Bahia de Todos os Sant os do estado do Brasil no ano de 1618. Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v.49, 1927, p 452.
113
Idem p. 453
114
FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUE IRA, Sônia (Org.). Segunda Visitação do Santo Ofício às
partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações
da Bahia, 1618-1620. Anais do Mus eu Paulista, v. XV II, 1963. p. 450.
83
Assuntos ligados à sorte
Contendo os motivos para a procura de magia para fazer arribar naus, para
ajudar a ganhar jogos de cartas; causar má sorte aos inimigos rogando-lhes
pragas, como o caso de Paula de Sequeira que durante a Primeira Visitação
confessa que em momento de inimizade por uma mulher chamada de Custódia
de Farias, dissera em que a mulher estava doente por conta de suas ações.
Beatriz Coreia, mulata, fora denunciada por Maria Batista durante a
Primeira Visitação: disse que era de fama pública que a mulata era tida como
feiticeira, “com arte do diabo e que tinha uma cobra dentro em uma botija e que
fizera arribar uma duas vezes o navio em que ia degrada” 115. Assim como Beatriz
Maria Gonçalves também foi acusada de arribar uma nau, que denunciada por
Isabel Antoniane, cristã-velha, disse que Maria falava com os diabos e que por
dois cruzados fez arribar uma nau que ia para Portugal. 116
Salvador da Maia também foi à mesa do Santo Ofício confessar que em
momentos de desespero quando estava perdendo nos jogos chamava pelo diabo
para que ele o ajudasse a ganhar os tais jogos. E em uma denúncia João Rolin
que era conhecido de Salvador da Maia diz que viu o nome do conhecido escrito
em uma folha de papel, e que não só este nome estava escrito, na lista tinha os
nomes de pessoas que deviam a feiticeira Maria Gonçalves Cajada. Fato que
talvez comprove o uso de feitiçaria por Salvador.
Perdões e justiça
Perdões e solução de causas na justiça também podiam ser sanados ou
amenizados com o uso de magia, como no caso de Maria da Costa, que tendo
seus irmãos problemas com a família do indivíduo que matara, queria ela que a
família perdoasse seu irmão, diz que sua mãe falou que a bruxa Maria Gonçalves
115
GARCIA, Rodolfo (Org.). Livro das denunciações que se fizeram na Visitação do Sant o Ofício
à cidade de S alvador da Bahia de Todos os Sant os do estado do Brasil no ano de 1618. Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v.49, 1927 p, 413.
116
Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p 432 -433.
84
falou que se desse “certa cousa ela faria com que seus filhos irmãos dela
denunciante que anda homiziados por uma morte fossem perdoados pela
parte” 117.
Esta feiticeira também dizia que podia se livrar do Santo Ofício, e a prova
disso era que ela desapareceu pouco antes da chegada do visitador, mas que
como veremos num estudo aprofundado de seu caso em nosso próximo capítulo,
não foi bem isso que ocorreu, uma vez que Maria Gonçalves estava na cidade e
foi processada e penitenciada pelo Santo Ofício aqui na Bahia.
Dívidas
Nesta classe estão os feitiços feitos para quitação ou tolerância de dívidas
financeiras, como o caso de Guiomar d’Oliveira que confessa suas culpas na
Primeira Visitação informando que fez um feitiço para que João D’Aguiar
proprietário da casa em que morava com o seu marido tolerasse uma dívida de
aluguel.
A feiticeira pediu três avelãs ou pinhões e que tirasse o miolo e dentro
colocasse pêlos de todo o corpo - da confessante –, unhas dos pés e das mãos,
além de raspaduras das solas dos pés e uma unha pequena do dedo do pé da
bruxa; após o preparo do feitiço pede que a mulher engula os pinhões e após a
evacuação, prepare e transforme em pó e dê ao dito proprietário misturado em
uma tigela com caldo de galinha. Assim o fez e segundo ela deu certo. 118
Não encontramos outros casos de pessoas que dissessem que buscaram a
magia para solucionarem problemas financeiros, entretanto achamos de grande
valia mencioná-lo devido à riqueza de detalhes da confissão.
117
Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 192 p. 394-396.
118
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p 136.
85
Contra feitiços e feitiçarias
Por fim, na classe contrafeitiços e feitiçarias, estão as práticas motivadas
para livramento de feitiços, com feitura de rituais e porções para salvar os
enfeitiçados e também práticas que não são “visíveis” as suas reais motivações,
mas que são relatadas, além do registro de uma pessoa denunciar a outra por ser
bruxo ou feiticeiro.
Antônia de Barros, denunciada por Pero de Campo, disse que viu a
denunciada atrás da porta ou de “uma caixa meã afogada dos diabos que a
afogavam.” 119 Disse também que ouviu falar que Antônia era feiticeira,
acontecimentos que não deixam claras suas motivações, mas são indícios de
realização mágica.
Foram essas as principais motivações que levaram dezenas de pessoas a
utilizarem de artifícios mágicos para melhorarem suas condições de vida, práticas
que certamente foram utilizadas por muitos outros indivíduos que não foram
denunciar ou confessar suas culpas por medo da ação do Santo Ofício, ou por
inimizade, relações que serão tratadas a seguir.
O fato é que podemos afirmar que as práticas mágicas foram realizadas
por vários indivíduos na colônia, independentemente do grupo social que
pertenciam, se branco, índio ou negro, pois como dito em uma confissão realizada
na Segunda Visitação a Bahia quando se tratava de cura de doenças, por
exemplo, todos os indivíduos recorriam à magia por “remediar a necessidade [...]
fizera antão pouco escrúpulo disso, pelo pouco que nesta terra e costuma fazer
das semelhantes cousas”
120
quando tratava com um negro para auxiliar na cura
de um irmão, já que nas terras do Brasil não tinha outros modos de melhorar o
viver a não ser com o uso de magia.
119
Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado. 1925, p 170.
120
FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUE IRA, Sônia (Org.). Segunda Visitação do Santo Ofício às
partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações
da Bahia, 1618-1620, Anais do Mus eu Paulista, v. XVII, 1963, p 454.
86
Essas foram algumas das vivências ocorridas entre feiticeiros, clientes e
usuários de magia que residiram na cidade de Salvador e no Recôncavo da Bahia
em fins do século XVI, mas que certamente continuaram suas práticas ao longo
do processo de colonização. Foram cerca de 25 casos que envolveram pessoas
no uso mágico, desses 25 quinze estavam ligados às relações de vizinhança, oito
às relações financeiras e duas originárias de parentescos ou agregados
familiares, o restante não fica clara o tipo de convivência.
87
CAPÍTULO III: FEITIÇARIA MA CAPITANIA DA BAHIA: ESTUDOS DE CASOS
No capítulo anterior, apresentamos os tipos de vivência e convivência em
que estiveram envolvidos feiticeiros, clientes e usuários de magia na cidade de
Salvador e no seu entorno em fins dos quinhentos e início dos seiscentos.
Relações estas que foram ocasionadas pela troca de conhecimentos mágicos
entre vizinhos, tendo por base a confiança e solidariedade ou por meio de
remuneração em troca da produção e realização de feitiços, podendo ocorrer
dentro da vizinhança ou fora dela.
Possivelmente, alguns dos contatos relatados pelos confessores e
denunciantes não correram como afirmados por estes, posto que era comum aos
depoentes forjar situações na tentativa de despistar das vistas dos inquisidores
sobre outros cúmplices e heresias consideradas mais graves como as práticas
judaizantes por exemplo. Entretanto , o que fica evidente é que os préstimos
mágicos foram bastante utilizados nesta época em que o oculto e o sobrenatural
eram alentos para resolver problemas pessoais físicos e espirituais.
Para que possamos melhor compreender a dinâmica dessas relações
sociais escolhemos tratar de dois estudos de casos que deram origem aos
processos inquisitoriais das vizinhas Violante Carneira e Maria Gonçalves Cajada.
Obviamente não foram apenas estes os casos de feiticeiros que resultaram em
processos inquisitoriais, mas devido à quantidade de denunciações feitas contra
elas disponíveis nos livros das Visitações e Denunciações que se fizeram a Bahia
durante 1591 e 1593 e da disponibilidade do acervo online do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo encontramos seus processos, o que nos possibilitou a
apreciação e análise das práticas de magia e das relações sociais a que foram
envolvidos estas acusadas de feitiçaria.
Deste modo, utilizaremos a microhistória para tratar destes casos, pois
acreditamos que é a melhor opção para discuti-los. Assim tornará mais sucinta a
compreensão das experiências de vida ocasionadas pelo uso da magia,
entendendo que por meio desses processos possamos responder algumas das
88
querelas acerca do vivido da religiosidade popular que se formava na sociedade
da Bahia.
Os processos de Violante Carneira e Maria Gonçalves Cajada são apenas
exemplos das práticas e casos recorrentes a outras sociedades de outros cantos
da América portuguesa que por motivos diversos foram silenciados pela História.
Apresentaremos seus contatos sociais, refletindo também acerca das motivações
que as levaram a praticar ou negociar atos mágicos para si ou para outras
pessoas.
Lembramos que a sociedade Baiana quinhentista era heterodoxa,
composta por residentes pertencentes a grupos étnicos e socioculturais diversos
cristãos-velhos e cristãos-novos, indígenas e africanos escravizados. Entretanto
foram sobretudo as mulheres cristãs-velhas as principais acusadas de feitiçaria.
Desta forma escolhemos tratar dos casos de Violante Carneira e Maria
Gonçalves Cajada. A primeira aprendeu com a segunda a fazer encantamentos
com intuito de prosperar afetivamente, usando individualmente os sortilégios que
aprenderá. Já a segunda viveu um verdadeiro ofício de feiticeira diabólica, pois
negociava feitiços e dizia tratar com o Diabo.
1. Violante Carneira
Nossa primeira acusada de feitiçaria chama-se Violante Carneira 121 cristãvelha, natural e moradora na cidade de Salvador, que na época da abertura de
seu processo estava com aproximadamente 35 anos de idade. Violante era filha
de um funcionário da Governança chamado Pedro Rodrigues Carvalho e de
Margarida Carneiro de Magalhães, tinha uma irmã chamada Luisa de Magalhães
que morava na Barra de Jaguaripe, não conheceu seus avôs nem paternos nem
maternos, mas disse que conheceu seus tios Bastiam de Carvalho, irmão de seu
pai e Rui Gonçalves e Fernão de Magalhães, irmãos de sua mãe.
121
IANTT-IL Processo nº 12925.
89
Quando foi processada Violante estava viúva do cristão-novo Antônio Roiz
Villa Reall acerca de dezoito anos, mas não fala qual o motivo da morte de seu
cônjuge. Violante apenas disse que seus sogros (Tristam Roiz Villa Reall, não fica
claro o nome de sua sogra) foram penitenciados pela Inquisição por
criptojudaismo e que morreram no cárcere.
Violante ficou viúva ainda muito jovem, o que possibilitou se relacionar com
outros homens no correr dos anos. E foram essas pessoas que a denunciaram
como feiticeira, pois, segundo eles, a ré dizia certas palavras em suas bocas
durante o ato sexual. A principal acusação atribuída a Violante Carneira foi a
evocação das palavras hoc est enim corpus meun. Palavras sagradas usadas no
momento de consagração da hóstia na missa, mas quando usadas de maneira
herética – como Violante e outras mulheres as usavam – tinha o objetivo de fazer
o homem amado a querê-la bem, ou seja, para aquele determinado homem
apaixonar-se e afeiçoar-se por quem as revocou.
Encontramos apenas uma denúncia no livro das Denunciações perpetrada
na Bahia durante a Primeira Visitação conta a Violante feita pelo cristão-novo
Bernaldo Pimentel da Lima 122, um de seus amantes, que chegou à mesa do
Visitador para denunciá-la acusando-a de ter dito tais palavras em latim em sua
boca durante o ato sexual. Posteriormente Bernaldo torna a depor contra Violante
em seu processo.
Em 27 de agosto de 1591 tornou a ir à mesa do Visitador para denunciar
Violante Carneira e tornou a dizer que há quinze anos – em 1575 – teve
“conversação desonesta” com a ré quando ele ainda era solteiro e que durante o
ato sexual a ré disse as palavras Hoc est enim corpus meun em sua boca.
Bernaldo diz que perguntou a ela para que serviam ditas palavras e “ela lhe disse
que sabia as palavras da Sacra para fazer a um homem querer bem a uma
mulher”
122
123
.
Filho de Agostinho e de dona Beatriz Botellha, ambos falecidos, era natural de Lisboa, mas
residia em seu engenho no Matoim, tinha idade aproximada há 40 anos e estava casado com
Custodia de Farias
123
IANTT-IL Processo nº 12925. Fólio. 06.
90
Mesmo assim ele ainda teve outros encontros com Violante, afirmando que
ela “lhes disse duas vezes e em diversos tempos e por ele lhe parecer isso mal
lho estranhou e ela festejou muito com isso mostrando que já o tinha preso por
lhe ter dito as ditas palavras pera lhe querer bem.” 124
No final de sua denúncia Bernaldo afirma que Violante tinha consciência de
tudo que fazia e dizia. Ainda nesta denúncia, ele diz certa vez Violante pediu para
que ele lhe conseguisse um pedaço de pedra de ara, mas ele afirma que não a
entregou, uma vez que ele desconhecia a finalidade que a ré faria com a pedra.
Esta pedra era utilizada para o preparo de feitiços designados ao
encantamento de amores deixando os amantes perdidamente apaixonados pela
mulher que os preparou ou para que esses amantes ficassem “lerdos” e
obedientes aos gostos e caprichos de suas amadas, fazendo com que eles
fizessem tudo que elas desejavam. Outros diziam que a pedra poderia ser usada
como veneno que após cozido, triturado e misturado a caldos de galinha poderia
causar a morte ou doença de maridos.
E porque a ré pediu a pedra para ele? Sabemos que a pedra era
encontrada nos altares das igrejas, será que Violante apenas se envolveu com ele
para conseguir um pedaço desta pedra, já que ele tinha uma igreja em seu
engenho, sendo portanto mais fácil a sua aquisição? Ou Violante almejava
contrair um novo matrimonio com o senhor de engenho? Essas são algumas das
questões que nunca conseguiremos dirimir.
Além de denunciar Violante, Bernaldo aproveita para apontar culpas de
diversas outras pessoas residentes no Recôncavo. Denúncias que estavam
ligadas aos crimes de bigamia e de criptojudaismo. No geral Violante Carneira
não fazia uso de magia para promover o mal nem tão pouco o bem das pessoas,
também não comercializou e segundo ela também não ensinou as palavras para
nenhuma outra pessoa, pois apesar de ser acusada de feitiçaria, a ré apenas
evocava as palavras para “prender” afetivamente seus amantes a ela.
124
IANTT-IL Processo nº 12925, Fólio. 06 e 07.
91
Identificamos que o único tipo de contato que o denunciante e ré tiveram não
passou do envolvimento amoroso.
Outro denunciante foi o cristão-velho e capitão da Ilha de Itaparica, Cosmo
Gusmão125, que e no instante da Visitação passava pela cidade de Salvador. Em
sua denúncia disse que a seis ou sete anos atrás teve amizade desonesta com
Violante Carneira e “uma vez estando com ele no ato venéreo ela chegando a sua
boca a dele denunciante lhe disse nela as palavras da consagração com que na
missa se consagra a hóstia, e isto uma vez soo”
126
Cosmo diz que não sabia o
que significavam as palavras por que não entendia nem sabia ler ou falar em
latim, mas relata que perguntou a Violante o que queriam dizer as tais palavras e
ela disse que era para ele a querer bem.
Nesta denúncia também não fica clara que outros tipos de contatos
estiveram envolvidos a ré e o Cosmo, também neste caso, o denunciante era o
objeto a ser enfeitiçado, desta forma não houve participação de cúmplices já que
a acusada queria encantar o homem desejado. Parece que eles não tiveram
outro tipo de vivência senão a delatada pelo Cosmo, haja vista que ele
frequentava a cidade de Salvador esporadicamente.
A última denúncia que encontramos no processo de Violante Carneira foi a
do cristão-velho e mestre de escola de esgrima Simão de Mello 127, eu em sua
confissão disse que havia um ano que ele teve amizade desonesta com Violante
e que a ré evocou as palavras da consagração, e isso
[...] lhe aconteceu algumas vezes estando no próprio ato carnal
que a dita Violante Carneira chegou a sua boca a dele
denunciante e nela lhe dizia mando umas palavras às quais ele
per então não entendia e depois de alguns dias per diferentes
vezes lhe fez ditas as ditas palavras na boca nos ditos atos
carnais.128
125
Filho de Francisco Alures – pai que não conheceu – e de Isabel Leal, nat ural de Povoas, que
tinha 50 anos, e era casado com Geronima de Bairros da Silveira.
126
IANTT-IL Processo nº 12925. Fólio. 08.
127
Filho de Simão de Mello, homem preto forro, mas não sabia qual teria sido seu dono, e de
Isabel Ferreira, mulher branca, ambos falecidos, de idade de 33 ou 34 anos, natural de Lisboa e
também morador na cidade de Salvador, solteiro.
128
IANTT-IL Processo nº 12925. Fólio 09.
92
Assim como com os outros denunciantes a ré aparentemente não manteve
outro tipo de contato, senão os confessados por Simão, entretanto o denunciante
mesmo após saber da prática mágica a que estava sendo alvo de enfeitiçamento
continuou seu romance com Violante, parecendo não se importar com a evocação
das palavras ditas em sua boca e que foi denunciá-la ao Visitador após ter
tomado conhecimento que o comportamento da antiga amante era errado.
A evocação dessas palavras era uma prática bastante comum a algumas
mulheres que residiram na capitania da Bahia, prática que vieram do Reino e que
ao chegaram a América portuguesa foram socializadas entre colonas e escravas
africanas.
E em três de janeiro de 1592 o Visitador mandou chamar a ré e lhe pediu
que não saísse da cidade sem sua autorização. Dez dias depois Heitor torna a
chamá-la na condição de presa e, como de costume aos processos da Inquisição,
a ré foi perguntada por que motivo ela estava sendo presa. Violante disse não
saber, sendo admoestada, ao tempo em que pedia perdão e misericórdia no trato
do seu caso.
Em seguida, o Visitador perguntou a ela se sabia as palavras da
consagração da hóstia, palavras que todos os denunciantes afirmaram terem
ouvido a ré dizer durante a relação sexual, e ela respondeu que sim, repetindo-as
na mesa. Afirmou, porém, que nunca as disse durante o ato sexual propriamente
dito e que as aprendeu com Maria Gonçalves Cajada sem que houvesse
necessidade de qualquer tipo de remuneração, situação que sugerimos haver
certa amizade entre elas.
O visitador ainda perguntou se a ré tinha dito as palavras a alguém.
Inicialmente Violante negou, dizendo que apenas as disse defronte ao rosto do
cônego Bertolomeu de Vascogoncellos, que aparentemente tivera sido seu último
amante, já que ela dizia estar grávida do cônego de sete ou oito meses. Heitor
insistia para que ela fizesse confissão inteira de suas culpas, e ela acaba
confessando que as disse a outras pessoas.
93
Violante afirma que primeiramente as disse a Bernaldo Pimentel “[...] indo
ele a sua casa dela estando ambos juntos, mas não no passo da carne e lhas
disse pera o rosto e isto per algumas duas vezes.”
129
Confessou que não sabia
quanto tempo tinha que as disse também a Álvaro Lobo Pereira e que no tempo
de sua confissão – de Violante – estava morando nas “capitanias de baixo desta
costa” e dizendo que “[...] também ela lhe disse no rosto estando juntas as ditas
palavras na boca mas não estavam no próprio ato carnal e a este as disse uma
vez soo.”
130
A ré continuamente afirmava que “[...] sua intenção foi sempre pera
lhe querem bem”, afirmando que não tinha a intenção de causar dano ao amante.
O Visitador pergunta por que motivo ela não veio à mesa confessar suas
culpas no tempo da graça, já que ela compareceu à mesa por duas vezes para
denunciar outros culpados – dentre eles a Maria Gonçalves –, Violante respondeu
que “[...] nunca lhe lembraram das ditas culpas pera se acusar nela nesta mesa e
que de tal maneira lhes esqueciam inda agora nesta mesa.”
131
Mas que após o
visitador ter dito que esta era uma prática grave ela pediu perdão e misericórdia,
ao tempo que prometia nunca mais usar dessas palavras nem de qualquer outra
heresia.
Questionada ainda mais pelo Visitador, Violante é perguntada se obteve
efeito esperado após a evocação das sagradas palavras na boca de seus
amantes e Violante respondeu que “não viu nunca o dito efeito como esperava” e
que só acreditou na força desses feitiços porque as ouviu de Maria com tanta
convicção que parecia que eram eficazes e por que sabia que Maria era feiticeira.
No mesmo dia ela retorna à mesa para falar de sua genealogia e pedir que
os autos sejam conclusos já que não se lembrava de mais culpas. E pôr não ter
mais o que confessar foi perguntada pela doutrina cristã “[...] benzeu-se, e disse o
padre nosso, e a ave Maria, bem, e não soube dizer o credo bem, e não soube
129
IANTT-IL Processo nº 12925, Fólio. 10
Idem, Fólio. 10
131
Idem, Fólio.11
130
94
dizer os mandamentos nem pecados mortais nem os mandamentos da igreja [...]”
132
. Depoimento que finalizava seu processo.
A conclusão de seu processo se deu em 29 de janeiro de 1592 e Violante
foi sentenciada, por ser “[...] useira e costumeira a fazer uma certa superstição,
indigna de aqui se nomear, em suas sexualidades fazendo os próprios atos torpes
e desonestos e estando neles [...]”
133
penitenciada com degredo de quatro anos
para fora da Capitania da Bahia, penitencias espirituais e o pagamento das custas
do processo.
[...] que vá ao ato publico em corpo onde estará com uma vela
acesa na mão em pé enquanto se celebrar o oficio divino da missa
e ouvir sua sentença e há degradam quatro anos pera fora desta
capitania da Bahia de Todos os Santos e cumprira mas as
penitencias espirituais seguintes confessasse-a nas quatro festas
deste ano, Natal, Páscoa, Espirito Santo, Nossa Senhora de
Agosto e comungar neles de conselho de seu confessor e em
cada um dos ditos dias que comungar rezara uma vez o rosário de
Nossa Senhora e a aprendera a doutrina que não sabe que nem o
credo sabe bem dizer e pague as custas.134
Encarcerada em 22 de janeiro de 1593, ou seja, um ano após a conclusão
de seu processo. Entretanto, no dia 23 deste mesmo ano foi adicionado nos autos
de seu processo um alvará de fiança para que Violante fosse libertada. Sua
sentença foi publicada em 24 de janeiro de 1593, solta dois dias depois. A ré
ainda solicitou que seu degredo fosse feito na Ilha de Itaparica, pois ela:
[...] é mulher muito pobre e tem muitos filhos e uma criança de
peito e é muito doente e enferma e indo pera fora desta capitania
corre sua vida perigo é muito risco por descontinuo ser visitada
por físicos remédios necessários de purgar e outras mezinhas de
que a vera falta indo-se fora dela pelas nem haver nem o remédio
tão propicio como nesta cidade [...] 135
Além da alegação de ser pobre, de ter muitos filhos e de estar muito doente
dependente dos remédios e mezinhas que apenas na Bahia encontrava m,
Violante também declarou que não conseguiria se sustentar nem aos filhos se
132
IANTT-IL Processo nº 12925, Fólios, 26 e 27.
Idem, Fólio. 30
134
Idem, Fólio 31-32
135
Idem, Fólio 45.
133
95
fosse mandada para fora da capitania da Bahia e também “porque esta muito
arrependia de suas culpas pede a vossa mercê pelas cinco chagas de Jesus
Cristo nosso senhor a misericórdia com ela e lhe perdoe o mais tempo”
136
e
assim seu degredo foi comutado, sendo cumprido na Ilha de Itaparica, onde ela já
estava morando há oito meses, esta comutação se deu em 25 de janeiro de 1594,
em Olinda na mesa do Visitador.
Assim sendo, sua apelação foi atendida e Violante Carneia saiu em Autode-fé privado na mesa do Visitador com vela acesa na mão em 29 de janeiro de
1592, penitenciada com degredo para fora da Capitania da Bahia, penitências
espirituais e o pagamento das custas do processo, tendo sua sentença publicada
em 24 de janeiro de 1593 na Igreja da Sé na cidade de Salvador.
Não encontramos mais vestígios de Violante Carneira. A publicação da
comutação de sua fiança e mudança de local de degredo se deu em Pernambuco,
já que o Visitador se encontrava lá quando o pedido foi feito e por isso teria
despachado em Olinda.
Como vimos, a ré não era feiticeira de ofício, mas praticou por diversas
vezes um encantamento utilizado por feiticeiras e por isso foi penitenciada pelo
Santo Tribunal. Suas práticas de magia nada passaram de atos supersticiosos, já
que não envolviam outros materiais e preceitos para a sua realização. Também
aqui não existiu relação em que foram envolvidas feiticeiros e usuário ou cliente
de magia, mas Violante apresentou-nos a
feiticeira que a ensinou o
encantamento, que também foi processada pela Inquisição lusa: a Maria
Gonçalves Cajada. .
Lembramos que os feitiços e encantamentos ligados à afetividade
especialmente os de benquerença também foram uma constante em Portugal e
que na América portuguesa não foi diferente, pois a maioria das feitiçarias e
bruxarias realizadas na Bahia teve como maior objetivo assegurar sucesso ou
infortúnio nos assuntos ligados ao casamento e aos romances tendo, sobretudo,
136
IANTT-IL Processo nº 12925, Fólio. 47
96
as mulheres a ansiedade de fazer com que seus maridos e amigos a quisessem
bem.
A seguir apresentamos quadros que sintetizam a condição social dos
denunciantes, os tipos de relações que tiveram com a ré e a prática que
denunciaram.
Quadro 8 Denunciantes e a relação que tinham com a ré Violante Carneira
Denunciante
Etnia
Relação social
XV
Vizinho
Cosmo Garção
XV
Amante
Simão de Mello
XV
Amante
Bernaldo
Lima
Pimentel
da
Quadro 9. Práticas denunciadas
Denunciante
Prática
denunciou
que
Testemunha s
Bernaldo
Pimentel da Lima
Enfeitiçamento
palavras sagradas
O denunciante
objeto
enfeitiçamento
foi
de
Cosmo Garção
Enfeitiçamento
palavras sagradas
O denunciante
objeto
enfeitiçamento
foi
de
Simão de Mello
Efeitiçamento
palavras sagradas
O denunciante
objeto
enfeitiçamento
foi
de
2. Maria Gonçalves Cajada
Nossa outra acusada de feitiçaria foi Maria Gonçalves Cajada 137, que
seguramente foi a feiticeira diabólica mais conhecida da cidade de Salvador.
Muitas foram as denúncias que chegaram à mesa de Heitor Furtado de Mendonça
sobre esta cristã velha, natural e moradora em Aveiro em Portugal, mas que veio
137
IANTT-IL Processo nº 10748
97
para a Bahia degredada, filha do mestre piloto de naus Pedro Gonçalves Cajado e
de Margarida Pires, ambos falecidos. Conheceu um tio que também era piloto de
naus e irmão de seu pai, que morava em Aveiro. Não encontramos o processo
que a penitenciou com o degredo.
Maria não sabia a idade que tinha, mas em algumas denúncias é retratada
como uma mulher de aproximadamente 40 anos de idade. E apesar dos
denunciantes dizerem que ela era uma mulher sem marido, em seu processo ela
disse ser casada com Gaspar Pinto, homem do mar que estava em Portugal.
Maria veio de Aveiro para o Brasil na condição de degredada para Pernambuco,
por atear fogo em várias casas quando ainda morava no Reino, porém quando
estava em Pernambuco torna a ser degredada em 1580 vindo em uma galé para
a Bahia sob a acusação de feitiçaria.
Sua principal inculpação foi fazer uso de feitiçaria para diversos propósitos,
negociou e ensinou feitiços que iam da evocação de frases objetivando o querer
bem – como no caso de Violante Carneira, apresentado acima – a feitiços que
podiam levar a morte de parentes e inimigos. E por suas práticas Maria ficou
conhecida como feiticeira diabólica e também chamada de arde-lhe-o-rabo que
“tratava e falava com os diabos.”
As denúncias presentes nos Livros das Denunciações e Confissões que
foram feitas na Bahia totalizam cerca de oito acusações, das quais ficou explicita
que em cinco casos a ré envolveu-se com o denunciante por meio da vizinhança,
passando conhecimentos mágicos baseada na solidariedade, outras duas
baseadas na negociação e uma que não podemos classificar, pois não é
evidenciada.
A cristã-velha, Maria da Costa 138 foi em 21 de agosto de 1591 denunciar a
Arde-lhe-o-rabo por ser feiticeira dizendo que havia oito meses que sua mãe –
dela denunciante – tinha dito que a feiticeira ofereceu serviços de magia para
solucionar os problemas judiciais de seu irmão, pois ele estava sendo acusado de
138
Filha de João Canes da Costa e Antônia Roiz, natural de Braga e residente em Salvador, era
casada com cristão-novo e mercador de loja Álvaro Sanc hes
98
matar um homem, então Maria diz que tinha o poder de livrá-lo sendo perdoado
pela família da vitima139.
A também cristã-velha Margarida Carneira 140 foi à mesa do visitador em 22
de agosto e relatou que há cinco anos ouviu dizer que a ré “tinha conta com o
diabo e com ele dormia e tratava” 141 Quase todos os que denunciaram relatou que
Maria tinha auxílio ou convivia com seres demoníacos.
Catharina Quaresma 142 que não sabia se era cristã-velha ou cristã-nova
dizia, mas sabia ser, e diferentemente dos demais delatores Catharina foi
convocada a comparecer na mesa do Santo Ofício em 27 de novembro de 1591
para falar sobre Maria Gonçalves, entretanto a denunciante diz que apesar da
sociedade afirmar que a ré era feiticeira diabólica ela não acreditava, pois nunca
viu nada que pudesse incriminá-la. Disse também que a mãe dela – de Catharina
– abrigou Maria em sua casa durante alguns meses, mas que também nunca
presenciou nenhum tipo de comportamento ou prática suspeita.
A testemunha disse mas, que sua avô Beatriz Lopes também conhecia a ré
e que um dia viu uma espécie de chaga no pé da ré, que segundo o povo ela – a
feiticeira – todo dia tirava um pedaço da ferida e dizia dar para o diabo. Entretanto
a denunciante parece não acreditar nos burburinhos que rondavam a cidade
acerca do ofício mágico da ré, seja porque ela não acreditava na interferência
mágica diabólica sobre as ações humanas – o que não cremos ser esse o caso –
ou por ela ser amiga de Maria e talvez tentasse diminuir suas culpas, pois é a
única pessoa que surge na documentação negando as feitiçarias da ré 143.
139
Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do Brasil pelo licenciado Heit or Furtado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Ed. Prado, 1925, p 395.
140
Filha de Simão Carneiro Soares e Catarina de Magalhães de Meneses, era natural de Cabo de
Gué e residia em S alvador, de 55 anos de idade, e casada pela segunda vez com o alfaiate
Manuel Fernandes Leitão
141
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Ed. Prado, 1925, 424.
142
Filha do juiz Diogo Gonçalo Lasso e de Guiomar Lopes, natural de Lisboa e também residia em
Salvador
143
Primeira Visitação do Santo Of ício às partes do B rasil pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Denunciações da Bahia 1591-1593. São Paulo: Ed. Prado, 1925, p 554-555
99
E assim como Catharina Quaresma, Maria da Costa, Margarida Carneira
outras pessoas denunciaram as práticas da Arde-lhe-o-rabo, vejamos a seguir
seu processo, tendo como principais depoentes Isabel Monteja, Caterina
Fernandes, Tareja Roiz, Violante Carneira, Isabel Antônia e Catharina Froes,
todas também depuseram nos livros das Denunciações que se fizeram na Bahia e
tornaram a ser chamadas no correr de seu processo. Esbocemos os relatos e
analisemos os tipos de contatos sociais que tiveram envolvidos com a ré.
Composto por sete denúncias o processo de Maria Gonçalves Cajada teve
inicio em 1591. O que primeiro chama a atenção é para a informação contida no
primeiro folio de seu processo em que diz: "parece que tudo são embustes e
enganos as culpas desta ré os quais constam de sua confissão extra judicial sem
as testemunhas lhe haverem visto coisa alguma por onde parece que o
conhecimento desta causa pertence mais ao ordinário que à Inquisição" 144 o que
talvez explique a benevolência na penitência da ré. Mas será que não teve outros
motivos? Vejamos as minúcias de seu caso.
A espiritaleira Isabel Monteira Sardinha 145 foi no dia sete de agosto de 1591
à mesa do visitador Heitor Furtado de Mendonça fazer denúncia e disse ser
inimiga capital de Maria. Segundo sua delação, Isabel nunca usou, nem precisou
dos serviços da feiticeira, mas conviveu com ela no tempo em que vieram de
Pernambuco para a Bahia, na mesma embarcação.
Isabel afirma que viu Maria enfeitiçar o mestre da galé em que vinham para
que ele consentisse Maria se abrigar na mesma câmara, ou seja, no mesmo
quarto que a Isabel. Inicialmente o capitão não permitia porque sabia que Isabel
era uma mulher honrada e casada e não poderia ficar no mesmo lugar que Maria,
já que esta era afamada como feiticeira e estava sendo degredada. No entanto
após a ré olhar para o capitão ele acaba consentindo. Provando o enfeitiçamento.
144
IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio. 01
Cristã-velha, de mais ou menos 50 anos de idade, era cas ada com Estevão Gomes Centeio,
natural de Port ugal, mas estava em Pernambuco quando veio para a Bahia na mesma galé de
Maria em 1580.
145
100
A denunciante ouviu dizer de Domingas Fernandes, viúva e vendedora,
mulher que veio do Aveiro e sua filha Margarida Fernandes, costureira, ambas
residentes em Salvador, disse que Maria blasfemava contando que assim como o
padre ela – Maria – também pregava não de um púlpito, mas de uma cadeira,
além de ter mitra e fazer “boas audiências’. Isabel diz que também conhecia esta
fama de Maria desde quando ainda moravam em Pernambuco.
Domingas confessou a Isabel que Maria a usava para enga nar as pessoas
e “[...] indo ela por essas roças pedir esmolas ia com ela Maria Gonçalves
sobredita e dizia à gente que ela dita Domingas Fernandes era santa e que
tocando nela, ou tocando ela tinha virtude” 146 o que provava que a ré enganava a
todos, mas não deixemos de ‘culpar” Domingas, uma vez que ao que parece ela
era cúmplice de Maria, mas não foi processada, nem sofreu penalidades do Santo
Ofício.
Ao final de seu relato Isabel aponta outras quatro mulheres dizendo que
elas sabiam das feitiçarias de Maria e são elas: Antônia Paz, mulher que não tem
marido e também conhecida como a Branca, a mulher do porteiro da alfândega,
uma que chamam de Peixe frito e uma castelhana chamada de morena, mas não
encontramos vestígios dessas mulheres citadas.
Em nove de agosto de 1592 a cristã -velha Catherina Fernandes 147 era
vizinha da ré e auxiliou algumas vezes nas negociações de feitiçaria, além de ter
presenciado a várias brigas entre os clientes e a feiticeira. A denunciante diz que
não sabia onde Maria estava vivendo, mas achava que ela estava morando na
casa de um alfaiate fidalgo na ilha de Itaparica e que sabia das coisas de Maria
porque foi sua vizinha “de portas adentro”, o que seria inevitável não presenciar
os fatos relatos abaixo.
E denunciando disse que há quatro meses Domingas Gonçalves, também
sua vizinha, lhe pediu que desse um recado à feiticeira: “que se ela não havia de
146
IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio. 06
Filha do almocreve P edro Fernandes e Maria Lopes, era nat ural da Villa de Estremoz, tinha 30
anos, residia no Monte Calvário, na freguesia da S é em Salvador, era casada com um mameluco
de nome Gaspar Roiz que era marinheiro e veio para a Bahia degredada por cinco anos por ter
matado um homem.
147
101
fazer aquilo, que a não enganasse e lhe tornasse o que lhe tinha dado” 148 e ao
dar o recado Maria respondeu que merecia receber muito mais do que Domingas
tinha dado por que:
[...] eu ponho-me a meia noite no meu quintal com a cabeça no ar
com a porta aberta para o mar, e enterro e desenterro umas
botijas e estou nua de cinta para cima e com os cabelos e falo
com os diabos, e os chamo, e estou com eles em muito perigo. 149
De outra vez, Catherina viu João Rolim, francês, também morador em
Monte Calvário, portanto vizinho seu e de Maria, trazendo nas mãos uns
papeizinhos embrulhados um a um de diferentes maneiras junto com pós que não
sabia o que era e entre eles um pedaço de solimão cru que parecia ser de onça,
além de um pedaço de papel com quinze nomes de pessoas escritos. A
denunciante diz que só conseguiu ver o nome de Salvador da Maia e Maria de
Granada. Catherina presenciou todos esses detalhes, pois segundo ela o francês
estava discutindo com Maria chamando-a de feiticeira. Maria também teria dito a
Catherina que os nomes que estavam escritos neste papel eram de pessoas que
deviam algum dinheiro ou objetos por ela, a ré ter feito feitiços.
Após a confusão, João entregou tudo que segurava nas mãos para o
também seu vizinho, o carpinteiro Gonçalo Fernandes para que este mostrasse
ao bispo as feitiçarias de Maria. E enquanto João dizia que aqueles papeis eram
feitiços, Maria pedia que os entregasse a ela e que em troca ela lhe daria
dinheiro. No ensejo Maria dizia que se ele não entregasse os tais papeis, ela não
poderia entregá-los a Domingas.
Porém Domingas dizia a Maria que se ela não conseguisse os papeis de
volta ela – Domingas – lhe daria mais dinheiro para que tornasse a fazer os tais
feitiços. E assim o fez, entretanto Maria torna a perdê-los, sendo posteriormente
encontrados pelo irmão de Domingas, quando este foi lançar sob a cabeça de um
homem pós para que casasse com outra irmã de Domingas que ainda era
solteira.
148
149
IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio. 08
Ibidem.
102
Parece que as brigas e discussões eram muito frequentes entre a feiticeira
Maria Gonçalves e seus clientes, prova disso foi o outro relato de Catherina, que
segundo ela viu seu vizinho Pedro Gudinho, que era meirinho do campo cobrar a
produção de três papeizinhos em troca de três tostões, ele havia negociado com a
feiticeira para que ela fizesse os tais papeis para Cristovão de Bairros, um para o
bispo e o outro para o ouvidor geral, ele pagou pelo serviço, mas Maria não os
entregou e por isso ele foi cobrá-la.
Outra mulher que chegou à mesa do visitador foi a meia cristã-velha
Catarina Froes150 e confessou negociar a feitura de sortilégios para seus genros a
mando de suas filhas. Um feitiço foi feito para que um deles morresse e o outro
para que ele quisesse bem a sua mulher – filha da denunciante – este caso já foi
relatado no segundo capítulo.
Não ficou comprovado se a feiticeira e sua cliente eram vizinhas,
entendemos que a relação que houve entre elas foi financeira, entretanto o que
nos chama a atenção é o fato dela solicitar os feitiços por duas vezes, sendo que
da primeira vez ela diz não ter concluído o feitiço, pois estava achando que a
feiticeira queria “roubá-la”, o fato é que mesmo após ter pedido o cancelamento
do primeiro serviço um ano depois torna a negociar outro e desta vez conclui.
A cristã-velha Tareja Roiz151 foi em 21 de agosto de 1592 denunciar Maria
e denunciou Maria por ela lhe oferecer serviços de magia. Parece que a feiticeira
também era sua vizinha e queria conquistar novos clientes. Tareja disse que
Maria lhe ofereceu uma mesinha para enfeitiçar quem a tocasse, assim a
denunciante faria o que quisesse com o encantado. Ao mesmo tempo em que
ofereceu o tal feitiço mostrou ossos que trazia metidos na cabeça dizendo que
eram de enforcados e que ela falava com os Diabos. Na ocasião Tareja denuncia
outra pessoa por blasfemar, arrenegando a Deus e a Nossa Senhora, mas que
não trataremos neste trabalho.
150
Filha do cristão-velho Simão Roiz Froes, e da c ristã-nova Mércia Roiz, natural de Lisboa, Na
época da denuncia ela tinha aproximadamente 50 anos de idade e estava casado com escrivão e
meirinho, dentre outros ofícios Francisco de Morais.
151
Filha dos falecidos ciganos João Coelho e Violant e Fernandes, tinha 50 anos , era natural de
Lisboa, morava em Salvador, veio do Reino para a Bahia por vontade própria e estava casada
com Álvaro da Ribeira.
103
Margarida Carneira152, cristã-velha, foi em 22 de agosto de 1591 à mesa da
Santa Inquisição denunciar Maria por saber que há cinco anos ela já tinha fama
de feiticeira que tratava e falava com os diabos.
No mesmo dia Violante Carneira foi também à mesa do Santo Ofício
denunciar Maria, dizendo que não sabia onde a feiticeira morava, mas que ouviu
dizer que estava na ilha de Itaparica na casa de Diogo Gonçalves. Violante, assim
como a maioria dos denunciantes, também disse que Maria trava e falava com os
diabos e que um dia ela foi a sua casa e lá chegando Maria:
[...] lhe mostrou uma chaga em um pé todo inchado e lhe disse
que em certos dias da semana os diabos lhe tiravam daquela
chaga um pedaço de chaga um pedaço de carne e que quando
ela chamava o diabo se lhes não dava muita ocupação lhe tiravam
então dali da dita chaga carne e lhe disse mais que ela ia ao pego
do mar de mergulho tirar. [25] tirar certas coisas para fazer feitiços
e com feitiços fazia sabia o que queria [...] 153
Na denúncia Violante parece não conhecer direito a feiticeira chamando-a
de vagabunda, - mas como vimos em seu processo citado anteriormente – parece
que ela usou os ensinamentos da feiticeira para conquistar seus amantes já que
“Ella denunciante tinha por certo que era verdade e também lhe dizia que se Ella
denunciante quisesse que perante Ella faria tudo o que dizia’ 154
Em 24 de agosto do mesmo ano a cristã-velha Isabel Antônia155 também foi
à mesa denunciar e sabendo das feitiçarias de Maria foi à mesa denunciar
dizendo que há seis meses abrigou-a em sua casa, mas após ter descoberto que
Maria era feiticeira diabólica a expulsou.
Isabel conta que a feiticeira “mostrou um vidro com um pouco de azeite
dizendo lhe que ia ao campo e que dentro em um signo Sámão tendo o dito azeite
na boca falava com os demônios e lhe de mais que por Deus e cruzados que lhe
deram fazer arribar pelo poder do diabo o navio que ia desta Bahia para
152
Filha de Simão Carneiro Soares e de Caterina de Magalhães de Meneses, de 50 anos, casada
pela segunda vez com Manuel Fernandes Leit ão, também cristão -velho, alfaiat e que estava em
Pernambuco.
153
IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio 24 -25
154
Idem, Fólio 25
155
Natural do Porto que veio degredada do Reino para a Bahia por sodomia. Era filha do ferreiro
Antônio Pires e de Margarida Anes, tinha 33 anos e era solteira.
104
Portugal” 156 na tentativa de mostrar a denunciante que era uma mulher poderosa,
em outro momento Isabel relata que
Uma noite indo ela denunciante dormia fora de casa a deixou à
dita Maria Gonçalves em sua casa e quando tornou de madrugada
não achou a porta fechada por dentro quando a dita Maria
Gonçalves se saiu dizendo que ia buscar ela denunciante, (e
assim o declarou neste mesa sendo perguntada a dita menina que
poderá ser de idade de sete anos) entrando dentro em casa achou
no meio dela uma tripeça virada com os pés para cima com umas
candeias desceram lhes portas apagadas, e nunca mais depois
disto tornou a ver a dita Maria Gonçalves 157
Sobre essa noite a denunciante disse que Maria sumiu e roubou tudo o que
pode de sua casa e nunca mais a tinha visto, embora ouvisse dizer que ela estava
morando na casa de João Nogueira na Ilha dos Frades, próxima à Ilha de
Itaparica e que Alonso Caldeirão foi testemunha do acontecido.
Isabel Antônia denunciou também outra mulher que diziam ser feiticeira a
Isabel Roiz, a também conhecida como a Boca Torta, dizendo que Francisco Roiz
casado com uma mameluca, filho de Antônio da Costa, morador do Recôncavo
em Tassuapina, mas que também residia na Rua de São Francisco, na cidade de
Salvador pegou emprestado uma carta de tocar por cinco tostões, objetivando
conquistar uma mulher quando esta tocasse a carta, mas que isso aconteceu a
sete anos quando ele ainda era solteiro e isto lhe passou em sua casa.
O que nos leva a crer que mesmo sem acreditar em feitiçaria Isabel no
passado foi cúmplice de uma negociação de magia, que mesmo não sendo com
Maria – nossa principal personagem – é importante mencionar para que
possamos entender a dinâmica das relações sociais entre feiticeiros e clientes.
Desta maneira sete foram as denunciantes que comporam o processo de
Maria Gonçalves Cajada, quase todas chegaram à mesa do visitador dizendo que
a fama de ser feiticeira diabólica era pública. Quatro disseram ser vizinhas da ré.
Uma disse ser inimiga, outra morou com ela por um tempo e duas não ficou clara,
mas sugere-se que eram apenas conhecidas. O fato é que todas elas a
156
IANTT-IL Processo nº 10748, Fólio 28
IANTT-IL Processo nº 10748, Fólio. 29
157
105
conheciam e que em algum momento acreditaram nos poderes mágicos da
feiticeira recorrendo ou não a ela para sanarem seus problemas cotidianos.
Após ouvir as testemunhas o Visitador manda chamá-la em 26 de agosto
de 1592, que na ocasião se encontrava em Salvador para que a ré soubesse que
estava sendo proíbida de sair da cidade sem autorização do Visitador e como
estava doente não causaria maiores perigos. A ré também confessa suas culpas
dizendo que enganava as pessoas e que tudo que fazia era mentira que só fazia
aquelas coisas para conseguir dinheiro, comida e objetos diversos:
[..] e logo por ela foi dito com muitas lagrimas que era verdade que
perto da esta Bahia ela tinha usado de muitos enganos
enganando a muitas pessoas homens e mulheres que lhe pediam
feitiços e ela lhes dava uns pós de fígados de galinha forrados e
de outras coisas que não eram feitiços, e que ela que os obrava
com os diabos, e que ela que falava com os demônios e tratava
com eles porém tudo isto eram falsidades que ela ré dizia para
enganar as ditas pessoas, e lhes convencer, e tomar tudo assim
em dinheiro com outras coisas que lhe davam e ela lhe pedia
dando-lhes as ditas coisas com nome de feitiços [...]158
Maria afirmava que os motivos que levaram as pessoas a solicitarem seus
serviços era principalmente conquista de amores e para obter sorte em jogos,
mas confessa que “dava em nome de feitiços não eram feitiços não danosas,
nunca fizeram mal a ninguém nem obravam o que pretendiam que em seu interior
de seu coração e entendimento”
159
além disso, afirma que “ nunca teve isso
contra nossa Santa fé e que nunca na verdade falou com diabos nem tal
pretendeu” 160 afirmando a todo tempo que seu intuito era enganar as pessoas.
Em setembro do mesmo ano a ré torna a ser chamada à mesa do visitador
para que fizesse confissão inteira, dessa vez ela é questionada acerca dos
acontecimentos relatados pelas denunciantes, Heitor pergunta a ela do que eram
feitos os tais pós que a feiticeira dizia usar em suas práticas e ela diz que “os pós
158
IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio 39-40
Idem, Fólio 41.
160
Idem. Fólio. 42.
159
106
que ela dava a muitas pessoa eram de fígados de galinha a gados os quais dava
dizendo lhe que eram feitiços” 161 Disse também que algumas vezes
Tomava alguns sapos ou ratos que achavam mortos no monturo e
os torrava e dava os pós deles as mulheres a quem ela enganava
mas estes tais pós dizia ela que não os dessem a comer mas
somente dizia que os lançassem no chão por onde havia de
passar, ou os lançassem nas botas ou nos sapatos que havia de
calçar o marido ou do amigo ou a pessoa cuja afeição
pretendiam 162
Diz também que enganava seus clientes quando dizia “que se punha de
noite no seu quintal com a porta aberta para o mar com a cabeça no ar enfezando
e desenterrando botijas estando nua da cintura para cima com os cabelos
soltos” 163 o que provaria o perigo que ela corria quando tratava e falava com os
diabos.
Assim ela diz que os ossos que trazia metidos na cabeça dizendo serem de
enforcados nada mais eram do que “um osso de dente de cavalo marinho que lhe
trazia consigo para suas enfermidades e que deles dava pequeninos a muitas
pessoas enganando-as dizendo que eram ossos de enforcados”. 164 Ainda nesta
confissão Maria diz que os nomes que estavam escritos na folha de papel em
posse do francês João Rolim eram nomes de mercadores e pessoas abastadas
da cidade que lhe indicavam para outros possíveis clientes, afim de que novas
pessoas contratassem seus serviços.
Maria também citou alguns dos indivíduos que negociou feitiços com ela
dizendo que uma cativa mulata que foi de dona Mércia deu pós para serem
usados em sua conquista amorosa, para que seu amigo a quisesse bem e como
pagamento a feiticeira recebeu cinco tostões, uma galinha e uma toalha de linho.
Por um tostão e uma toalha Maria Peneda “mulher mundana” recebeu de
Maria pequenos pedaços de ossos dizendo serem de enforcados objetivando
também a conquista de um amor. Assim também fez Marta Villela que colocou os
161
IANTT-IL Processo nº 10748, Fólio 44-45.
Idem, Fólio. 53-54.
163
Idem, Fólio 45.
164
Idem, Fólio. 46
162
107
pós em sua casa e passou em seu marido para que esse a quisesse bem,
adquirindo o feitiço por três tostões.
Já a mulher de Simão Barbosa matou um galo a mando da feiticeira e com
os fígados do animal fez a cliente torrar ao mesmo tempo em que dizia “certas
palavras”, que não lembrava no momento da confissão e depois a cliente daria ao
seu marido os fígados do galo torrados, mas não diz a finalidade deste feitiço.
Disse também que as filhas da taberneira deram três ou quatro cruzados para ela
desenterrar umas botijas de feitiços.
Maria Gonçalves torna a ser chamada para confessar suas culpas na mesa
em 18 de janeiro de 1593 e perguntada pela doutrina cristã disse o credo, o padre
nosso e a Ave Maria, mas não soube dizer os mandamentos e por isso foi
mandada aprender a doutrina cristã. E no dia dezoito de janeiro o Visitador
mandou chamar Tareja Roiz, Catherina Fernandes, Violante Carneira, Isabel
Antônia e Catharina Froes para ratificarem suas denúncias e por não terem nada
novo a declarar confirmaram seus relatos.
Quadro 10. Pessoas que negociaram feitiços com Maria
Nome
Prática
Remuneração
Relação
social
Domingas
Gonçalves
Joan Rolin
Pero Gudinho
Catherina
Fernandes
Catherina Froes
Maria de Peneda
Maria Vilela
Mulher de Simão
Barbosa
Feitiços
Dinheiro
Vizinha
Feitiços
Feitiços
Feitiços de benquerença
Dinheiro
Três tostões
Não evidência
Vizinho
Vizinho
Vizinha
Feitiços para causar a morte
de um homem e feitiços de
benquerença
Feitiços de benquerença
Dinheiro
Não evidência
Um tostão, uma
toalha
Três tostões
Três ou quatro
cruzados
Não evidência
Feitiços de benquerença
Feitiços de benquerença
Não evidência
Não evidência
108
Um dia após essas ratificações foi dada a conclusão de seu processo. E
por Maria ter dito que tudo eram enganos o Visitador concluiu que as culpas de
Maria não eram demasiadamente graves já que ela as fez para conseguir dinheiro
e coisas de comer, mas que ela seria penitenciada por enganar outras pessoas
atribuindo a ela degredo de volta para o reino onde teria que viver com seu
marido, penitências espirituais e o pagamento de custas do processo e livrá -la
dos açoites por ela estar doente. Sendo entregue aos cais em 23 de janeiro.
[...] mandão que Maria Gonçalves em penitência vá ao ato publico
em corpo com uma vela acesa na mão e com uma carocha
infamada na cabeça onde estará em pé enquanto se celebrar o
oficio na missa e ouvir ler sua sentença e por contar que é mulher
doente e enferma a excussão dos açoites que merecia e mandão
que logo seja embarcada para o Reino para onde esta seu marido
a fazer vida com ele e lhe não dão mais que cumpra as
penitencias espirituais seguintes que jejue cinco sextas-feiras a
pão e água e reze em cada uma delas o rosário de Nossa
Senhora e se confesse muitas vezes e receba o santíssimo
sacramento de conselho de seu confessor e aprenda a doutrina
cristã que não soube dizer e pague as custas”165
Maria revelou ter enganado principalmente mulheres, embora não
lembrasse seus nomes, nem tampouco informa o tipo de relação estabelecido
com suas clientes. Seja qual foi a proximidade ou convivência que teve com
essas pessoas fica evidente que ela usava da feitiçaria para sobreviver, pois a
remuneração para realizar os feitiços quase sempre ocorreu.
Abaixo seguem os quadros onde arrolamos os grupos sociais que
pertenciam os denunciantes, os tipos de conatos que tiveram com a ré, bem como
a prática denunciada ou confessada:
Quadro 11. Denunciantes e a relação que tinham com a ré
Denunciante
Isabel Monteja
Caterina Fernandes
Tareja Roiz
Margarida Carneira
Violante Carneira
Isabel Antônia
Catharina Froes
165
Etnia
XV
XV
XV - Cigana
XV
XV
XV
½ XV
IANTT-IL Processo nº 10748 Fólio. 81 - 82
Relação social
Inimiga
Vizinha
Conhecida
---Vizinha
Morou com a ré, hospedando-a.
Cliente
109
Quadro 12. Práticas denunciadas
Denunciante
Prática
denunciou
Isabel Monteja
Fazer feitiçarias, Domingas
enfeitiçar
dois Fernandes,
homens.
vendedora
que
também
veio
do
Aveiro.
Não fica clara mas
entende-se
que
Maria enfeitiçou o
mestre e o capitão
da galé para que
ele
consentisse
abrigar ela, Maria
na mesma câmara
que Isabel
Margarida
Carneira
Ouviu dizer que --Maria era feiticeira
diabólica
Viu Maria fazer Maria Gonçalves
feitiçaria
Alonso Caldeirão
----
Isabel Antônia
que Testemunhas
OBS
Denunciou
outra
feiticeira:
Isabel
Roiz, a Boca Torta
Quadro 13. Práticas confessadas
Confessou
Prática
confessou
Caterina
Fernandes
Feitiço para querer
bem
Tareja Roiz
Oferecimento de Maria Gonçalves
feitiços
para
querer bem
Feitiços
para Maria Gonçalves
querer
bem:
palavras
de
consagração
Feitiços
para
matar um homem
e
outro
para
querer bem
Violante Carneira
Catherina Froes
que Testemunhas
Domingas Gonçalves
João Rolim
Pedro Gudinho
OBS
Ela não solicitou
feitiços
apenas
presenciou
negociações
Não aceitou os
serviços
da
feiticeira
Foi
processada
pela Inquisição por
feitiçaria
Negociou os feitiços
com Maria
Maria Gonçalves Cajada foi sentenciada em 1593 na Sé de Salvador em
auto-de-fé público, portando uma vela acesa na mão e uma carocha infame na
cabeça. Sua condenação o degredo para Portugal onde deveria voltar para viver
com seu marido, além de receber penitências espirituais, instrução na fé católica
110
e o corrente pagamento das custas do processo, resultado do despacho feito por
Heitor Furtado de Mendonça em 24 de janeiro de 1593. 166
Arde-lhe-o-rabo foi uma das mulheres mais procuradas pelos colonos
quando o assunto era a realização de feitiços e encantamentos. Pessoas que
pertenceram desde as famílias menos abastadas até os homens e mulheres
donos de engenhos de açúcar e possuidores de cargos públicos que residiam na
cidade de Salvador e em seu entorno.
A leitura e análise dos processos de Violante Carneira e Maria Gonçalves
nos revelou que por meio da solidariedade vivido na vizinhança as pessoas
trocavam informações acerca dos conhecimentos mágicos, seja na troca de
receitas de encantamentos, seja na indicação de serviços de feitiçaria ou bruxaria.
Violante aprendeu com Maria um encantamento para que ela fosse amada
por seus amantes, encantamento que foi denunciado pelos homens que se
relacionavam com ela e por isso foi penitenciada. Maria ensinava e negociava
seus feitiços a muitos colonos da cidade e em seu entorno e por ser considerada
feiticeira também sofreu penitências do Santo Ofício, mesmo dizendo que tudo
que fazia era para enganar as pessoas, não tendo pacto nem associação
diabólica, pois respeitava e era cristã.
O fato é que as evidências encontradas até o presente momento – tanto
nos livros das visitações como nos dois casos aqui apresentados – já comprovam
que as relações e vivência e mesmo convivência pautadas no uso da feitiçaria foi
uma constante na sociedade baiana quinhentista.
166
Segue folio referent e às c ustas do processo e o despacho da sentença de Maria Gonçalves
Cajada em apêndice.
111
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As práticas de magia foram realizadas em todos os tempos da História,
essas muitas vezes foram a solução de problemas ligados à natureza, ao corpo e
a espiritualidade humana. Ao longo do tempo, a magia foi exaltada pelos que a
praticavam, pois viam em suas ações possibilidade de sucesso coletivo ou
individual, ao tempo em que eram vigiados e castigados por aqueles que a
temiam ou viam em seus feitos possibilidade de desordem social e mal estar
público.
Para a Modernidade Ibérica a magia foi demonizada e classificada de
maneira geral em feitiçaria e bruxaria, práticas que foram fiscalizadas e puni das
por meio da justiça secular e, principalmente, pela Inquisição que os viam como
hereges infiéis que pactuados ou auxiliados pelos demônios estavam sendo
acusados de intervir nas ações de Deus.
Em Portugal, a magia foi classificada como algo supersticioso, que não
causaria grandes males a sociedade, nem abalaria a fé católica dos cristãos.
Talvez por isso que os acusados de feitiçaria e bruxaria tanto do Reino como em
suas colônias não sofreram cruéis sentenças, nem forarm relaxados à justiça
secular para que fossem queimados vivos ou mortos nas fogueiras.
O que não quis dizer que não houve perseguição e punição, ao contrário, a
perseguição sempre existiu dentro e fora da metrópole e como vimos no correr
desta dissertação os domínios ultramarinos lusitanos também foram fiscalizados
pelo Tribunal da fé. Assim a América portuguesa abrigou dentre outros hereges
ou acusados de feitiçaria.
As práticas de magia foram uma das religiosidades mais realizadas no
Brasil colonial. A capitania da Bahia, que recebeu por duas vezes Visitadores do
Santo Ofício entre os fins do século XVI e XVII, foi uma das regiões em que os
feiticeiros muitas vezes viveram já penitenciados pela Inquisição, mas ao
chegarem continuaram no “erro” do uso de suas práticas.
Pois, como já
exaustivamente exposto os colonos não conheciam outros caminhos para
112
alcançarem sucesso nos diversos setores de suas vidas, tendo nas práticas de
magia alicerce para curar doenças, conquistar amores, saber de noticias de
parentes e amigos, dentre outras motivações.
Foi, sobretudo as mulheres, cristãs-velhas de idade entre 35 e 50 anos as
que realizaram magia, principalmente para amansar seus maridos e fazê-los a
quererem-na bem nos anos finais dos quinhentos. Assim também foram os
homens os que mais recorrem à magia para tratar de doenças e saber onde
estavam objetos ou pessoas desaparecidas. A maioria dos casos de feitiçaria
esteve baseada na solidariedade e amizade entre vizinhos, mas muitos foram os
casos de negociações entre o feiticeiro e o usuário, que neste caso torna-se
cliente, especialmente no trato da magia considerada maligna: a conhecida
feitiçaria diabólica.
Desta maneira, esperamos que os resultados de nossa investigação
possam ter contribuído para traçar de maneira mais específica os perfis sociais de
alguns feiticeiros e daqueles que negociavam ou se beneficiavam da magia por
meio da troca de conhecimento e da negociação.
Está cada vez mais evidente que os contatos sociais em que estavam
envolvidos feiticeiros e usuários de magia não eram apenas uma relação
financeira baseada na comercialização de serviços mágicos, na qual os clientes
solicitavam o tipo de magia a ser realizado e após a entrega ou feitura dos feitiços
cessava-se a relação, ao contrário, os feiticeiros e seus clientes poderiam ser
vizinhos e como vimos não era apenas essa a forma de sociabilidade desses
indivíduos, sendo a partir da analise documental comprovadas, tornando clara a
convivência entre esses indivíduos tendo suas bases nas relações de amizade e
vizinhança com a troca de conhecimentos mágicos também sem fins lucrativos.
Consideramos que este trabalho não está concluso, pois acreditamos que
ainda existem outros documentos como as cartas disponíveis nos manuscritos
dos Cadernos do Promotor que podem auxiliar na análise dos tipos de relações
sociais estabelecidas entre estes indivíduos. Assim não se esgotam as pesquisas
referentes à magia e suas relações na cidade de Salvador e do Recôncavo
113
Baiano no primeiro século de colonização, ficando espaço aberto a novos
pesquisadores para também contribuírem neste enfoque.
114
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120
APÊNDICE
121
LISTA DE DENUNCIANTES E DENUNCIADOS. PRIMEIRA VISITAÇÃO
DENUNCIANE
DENUNCIOU
Nome
Morada
Grupo social
Nome
Morada
Antonio Botelho
Tapoan
XV
-
Balthesar
Pereira
Bernaldo
Pime ntel
Catarina
Fernandes
Salvador
-
Um
feiticeiro
gentio
André Bucal
Matoin
XV
Violante Caneira
Salvador
Salvaor
XV
Salvador
Salvador
Catarina
Vasqueiro
Custodia
Farias
Pernambuco
XV
Maria Gonçalves
Domingas
Gonçalves
Joan Rolin
A Borges
Matoin
XV
Paula de Siqueira
D. Mercia
Mercia Pereira
Ilhena
da
Fonseca
Violante Carneira
Margarida
Carneira
Margarida
Carneira
Denunciou
Salvador
Salvador
Salvador
XV
XV
XV
-
-
-
-
Gaspar
Gonçalves
Pero de Mendoça
Pernambuco
-
-
-
Francisco Roiz
Isabel Roiz
Maria Gonçalves
Ana Roiz
Salvador
Salvador
-
XV
-
D. Lianor Soares
Uma feiticeira
Maria Gonçalves
Catarima Roiz
Mija vinagre
Isabel Roiz
Ana Franco
Beatriz Corea
D. Margarida da
Salvador
Salvador
Matoin
XV
XV
Mamel
uca
de
Diogo Martins
Jaguaribe
XV
Gaspar de Gois
Salvador
XV
Gaspar Manuel
-
XV
Gonçalo
da
Mota
Isabel Antoniane
Salvador
XV
Salvador
XV
Joana de Sá Matoin
Betanqur
Lucia de Melo
Salvador
XV
Maria da Costa
Salvador
XV
Maria da Mota
Pauloa
de
Almeida
Salvador
XV
Denunciante
XV
Salvador
Pernambuco
Grupo
social
Escrav
o
XV
XV
Francê
s
-
XV
122
Costa
Denunciou
Denunciante
Francisco Roiz
Pe. Balthesar de
Miranda
Pero de Cãopo
Salvador
Salvador
XV
Salvador
XV
Isabel
de
Sandales
Joan Ribeiro
Salvador
XV
Freguesia
Paripe
Salvador
de XV
Margarida
Carneiro
Violante
Carneira
Catarina
Quaresma
Tareja Roiz
Isabel Monteiro
Sardinha
Maria Bautista
Isabel d’Villa
-
Joan Ribeiro
Uma bruxa nos
Ilheos
Antonia
de
Bairros
Capitania
Ilheus
Salvador
D. Mercia
Salvador
XV
Salvador
XV
XV
Antonia
Fernandes
Maria Gonçalves
Salvador
XV
Salvador
XV
Maria Gonçalves
Salvador
XV
Salvador
XV
Salvador
Salvador
Não sabe XV Maria Gonçalves
ou XN?
XV
Maria Gonçalves
XV
Maria Gonçalves
Salvador
Salvador
XV
XV
Branca Lopes
Mulata
Mamel
uco
Perabasu
Matoin
XN
Negro
Perabasu
Mamel
u
Salvador
Salvador
João da Villa
Salvador
Maria
de Matoin – paripe
Oliveira
João Bras
Jaguaribe
Legenda
XV – Cristão velho
de
Beatriz Corea
Mameluco
XV
XV
XV
XN – Cristão Novo
Lazaro Aranha
Negro que veio
da Guiné
Lazaro Aranha
XV
123
LISTA DE DENUNCIANTES E DENUNCIADOS. SEGUNDA VISITAÇÃO
Denunciante
Denunciou
Nome
Morada
Sebastião
Barreto
João Gonçalves
Enseada
Jacaranga
Salvador
Manuel
Gonçalves
Manuel
de
Penhosa
Pero de Moura
Salvador
XV
Salvador
XV
Salvador
XV
Domingos
Franco
Salvador
XV
Legenda
XV – Cristão velho
Grupo
social
de XV
XV
XN – Cristão Novo
Nome
Negro que veio
da Guiné
PE.
Balthasar
Pitta
de
Vascogoncelos
Negro que veio
da Guiné
Barbara Gudinha
Morada
Grupo
social
XV
Francisco Cucana Piraja
– Negro
Recôncavo
Simão Nunes de
Mattos
124
ALVARÁ LIBERANDO VIOLANTE CARNEIRA A CUMPRIR DEGREDO EM
ITAPARICA, DESPACHO DADO EM OLINDA.
125
SENTENÇA DE MARIA GONÇALVES CAJADA
126
CUSTAS DO PROCESSO DE MARIA GONÇALVES CAJADA
127