O TEMPO NA ADAPTAÇÃO DE “A HORA DA ESTRELA”: DO
Transcrição
O TEMPO NA ADAPTAÇÃO DE “A HORA DA ESTRELA”: DO
O TEMPO NA ADAPTAÇÃO DE “A HORA DA ESTRELA”: DO ROMANCE AO PROGRAMA TELEVISIVO “CENA ABERTA”. Marilia Danielle Santos Cerqueira (UFBA) [email protected] Introdução Por intermédio de análise comparativa entre o romance A Hora da Estrela e a adaptação, do mesmo, para programa televisivo, pretende-se evidenciar a importância de compreender as características próprias de cada gênero, além de promover o contato entre linguagens diferenciadas. De modo especial, será privilegiada à inclusão da prática de traduzir textos, de uma linguagem para outra, no ambiente educacional. Com ênfase aos pressupostos teóricos voltados à Tradução Intersemiótica, valoriza-se a adaptação de obras literárias como modo de atribuir atualidade, realce e renovação ao texto de partida. Nesse sentido, observa-se que não há pureza nem sacralização da obra literária, pois as adaptações apresentam novas possibilidades para textos já consagrados pelo público leitor, além de promoverem rompimento com preconceitos relacionados à noção de “integridade” e “originalidade”. Observa-se, especificamente nesta proposta, o confronto entre dois textos que apresentam linguagens, propósitos, meio de divulgação e contexto socioculturais diferenciados. Em análise inicial, verifica-se que a linguagem literária e a linguagem televisiva apresentam características próprias. Desse modo, ao se produzir adaptações1, torna-se necessário preservar certos indícios que remetem a obra adaptada, no entanto é importante salientar que as alterações também são imprescindíveis, pois o novo texto precisa se adequar as especificações do gênero e ao contexto da enunciação. Assim, serão apresentados, nesta análise, os elementos que compõem cada texto, as peculiaridades, o formato, o contexto enunciativo, no intuito de evidenciar as divergências e semelhanças. A tradução de textos para linguagens diferenciadas revelam a presença de relações intertextuais, o envolvimento entre ficção e realidade, além de transgressões realizadas no processo de tradução de um signo para outro. Quando A 1 Cabe evidenciar que nesta análise os termos “tradução” e “adaptação” mantém relação de sinonímia, visto que se tratam de expressões que estão intrinsecamente ligadas, assim toda adaptação é a tradução de determinado texto para linguagem diferenciada. Hora da Estrela se transforma em tema para programa televisivo, se faz necessário ocorrer alterações em determinados aspectos da obra. Nessa perspectiva, a análise se restringirá as modificações ocorridas no que se refere às questões temporais. 1. A tradução no ambiente escolar: uma proposta A manifestação da linguagem está intrinsecamente relacionada às práticas sociais de comunicação e expressão de ideias. Com os avanços tecnológicos surgem novas formas de linguagem, o que origina a emergência de novos gêneros. Assim, o principal objetivo do sistema educacional, nos dias atuais, deve ser o de proporcionar aos estudantes o contato com diversos tipos de linguagens. O surgimento e desenvolvimento de tecnologias da informação e da comunicação permitem facilidades no acesso a modos de se comunicar e códigos novos. Assim, os Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação atestam, como um dos principais objetivos para o sistema educacional, a necessidade de oportunizar o contato com linguagens diversas, em sala de aula: [...] utilizar as diferentes linguagens [...] como meio para produzir, expressar e comunicar suas ideias, interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes situações e contextos de comunicação [...]. (Objetivos Gerais do Ensino Fundamental, PCN: língua portuguesa, 1997, p.5) Entende-se que se torna fundamental a compreensão dos mecanismos inerentes a cada linguagem. Assim, as práticas educacionais devem evidenciar o estudo de gêneros diversos, como blogs, programa de televisão e rádio, campanha publicitária, desenho animado, jogos eletrônicos. Ao obter a oportunidade de contato com textos que fazem parte do cotidiano, o educando constrói visão integrada, que permite a relação do conteúdo escolar com a realidade ao seu redor. Desse modo, o aprendizado adquire maior significância na vida social. E o estudante se transforma em sujeito do seu próprio conhecimento: Transformar alunos em sujeitos do conhecimento implica (de fato) descentrar vozes, colocando-as numa rota de muitas mãos que respeite as realidades de vida e cultura dos educandos. [...] fazer o aluno assumir a sua voz como instância de valor a ser confrontada a outras vozes [...] Desse modo, a sala de aula passaria a ser entendida como um lugar carregado de história e habitada por muitos atores que circulariam do palco à plateia [...]. (CITELLI, 2000, p. 98.) Nesse sentido, a variedade de gêneros inseridos na educação permite a descentralização de vozes; e a aprendizagem deixa de ser exclusividade do ambiente escolar para se tornar parte do cotidiano dos alunos, ao assistir filmes, programas televisivos, sites de busca e pesquisa na internet, dentre outros. Entende-se, assim, que é de fundamental importância que o estudo das novas linguagens seja inserido na sala de aula, pois a escola deve oferecer espaço de integração com o contexto social do indivíduo. Para este estudo, será evidenciado o confronto entre as linguagens: literária e televisiva. A linguagem literária recria a realidade, por intermédio do jogo com as palavras, e da produção de ritmos, sons, imagens, desse modo, o texto literário permite a construção de mundos imaginários. Por isso, entende-se que há intenção de proporcionar compreensão plural da realidade, por meio dos múltiplos sentidos produzidos. Percebe-se, assim, que além de comportar significados plurais, o signo linguístico na literatura sugere a desestabilização do sistema de regras da própria linguagem. O que a literatura produz na língua já aparece melhor: como diz Proust, ela traça aí precisamente uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria [...]. (DELEUZE, 1997, p.15) Ao poetizar a definição do código literário, Deleuze reforça a capacidade de autonomia e subversão às regras dessa espécie de linguagem. No texto literário, o escritor manifesta criatividade na produção do discurso. Há, assim, criação de figuras imagísticas, a manipulação das palavras e sentidos de modo extremamente subjetivo. A subjetividade da linguagem literária, muitas vezes, produz enunciados complexos, que escapam a interpretações pautadas na lógica. Nessa perspectiva, a apreensão dos sentidos produzidos também ocorre de modo subjetivo. No que se refere à linguagem televisiva, a autonomia se apresenta de modo limitado. Além da necessidade de obedecer às regras inerentes ao gênero, ainda é preciso respeitar a formatação do programa, a ideologia da emissora, e, de certa forma, os interesses dos patrocinadores. É importante salientar, ainda que: “A ficção televisual é resultante de um intenso trabalho de realização e produção [...] O roteiro [...] é filtrado pela leitura do diretor, do produtor, do diretor de fotografia, do elenco etc. etc. etc.” (Balogh, 2002, p. 89) O resultado final será um texto escrito coletivamente e que pode ser interferido, inclusive, pela opinião do telespectador. No entanto, mesmo apresentando diferenças, os programas de televisão reiteram recursos, características e estruturas dos gêneros literários. As sequências narrativas, espetáculos teatrais e poesias, de escritores consagrados, costumam figurar em seriados, telenovelas, minisséries. É o que ocorre com o clássico romance, A Hora da Estrela, de Clarice Lispector ao ser adaptado para o programa, Cena Aberta. No ambiente escolar, o trabalho com adaptações representa, além da relação e confronto entre linguagens diferenciadas, a criação de outras possibilidades para determinado texto. Trata-se de uma abrangência maior do sentido de leitura, como interpretação que assume postura crítica diante dos variados discursos que circulam no meio social, além de contribuir com o desenvolvimento da criatividade do educando. A tradução faz com que a obra literária se mantenha viva, se transforme e possa ser vista a partir de outra perspectiva. O exercício de traduzir textos pode ser entendido como: “algo extra, não essencial, acrescentado a algo que supostamente está completo.” (RODRIGUES, 2000, p. 208) Assim verifica-se que não existe texto pleno em si, pois haverá sempre lacunas a serem preenchidas, ou algo a ser modificado ou substituído. 2. A obra e a adaptação A obra literária, A Hora da Estrela, se configura diante da perspectiva do narrador-personagem que apresenta conflitos existências ao perceber, em meio à movimentação de transeuntes em avenida do Rio de Janeiro, uma nordestina, denominada Macabéa, que, por se caracterizar como imperceptível, o faz refletir a condição do “ser” como indivíduo. A invisibilidade social, sofrida por Macabéa, produz em Rodrigo S. M. certo incômodo; ou mesmo espécie de identificação, que promove, em momentos da narrativa, a fusão entre narrador, personagem e escritora. A personagem busca identificar-se como ser social, reconhecendo-se através da profissão de datilógrafa: E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com a obediência o papel de ser [...] (LISPECTOR, 1999, p.36) Macabéa descobre-se por meio do papel que representa na sociedade e na vida, mesmo não se identificando, em essência, com as respostas obtidas diante dos questionamentos internos sobre quem ela se constitui, enquanto “ser”. Assim, entrecruzam-se duas histórias: a vida sofrida da nordestina que se alimenta apenas com “Coca-cola” e cachorro-quente; e os conflitos do narrador, ao descrever as dificuldades do ofício de escritor e do processo de criação literária. Macabéa apresenta-se na obra como personagem reflexiva, que se perde em meio às introspecções profundas, por isso não é compreendida por aqueles que a conhecem. No início da trama, a jovem namora Olímpico, homem ambicioso, que decide abandoná-la, e inicia relacionamento com Glória, colega de trabalho de Macabéa. Após queixar-se de dores constantes, durante o expediente, a nordestina é aconselhada por Glória a procurar uma cartomante. O momento final do romance, que sugere o prenúncio da busca por conhecimento do significado do “ser” e da existência, pode ser compreendido como o único clímax da narrativa. A cartomante prevê futuro próspero para a personagem protagonista. Previsão esta que se apresenta de modo contrário, pois ao atravessar a rua, Macabéa morre atropelada. No programa televisivo Cena Aberta preserva-se a história contada por Clarice Lispector, no entanto a alteração ocorre no modo de narração, que acrescenta características inerentes ao gênero. O programa foi exibido por meio da emissora Rede Globo, em 18 de novembro de 2003, sob a direção de Guel Arraes, Jorge Furtado e Regina Casé, e apresentou, no episódio de estreia, uma adaptação da obra A Hora da Estrela. Cena Aberta foi dividido em quatro episódios, os quais eram exibidos às 22h, sempre às terças-feiras. Em cada episódio, homenageava-se uma obra literária: A Hora da Estrela, O Negro Bonifácio, de Simões Lopes Neto, As três palavras divinas, de Leon Tolstoi, e Folhetim baseado na Ópera de sabão, de Marcos Rey 2, em parceria estabelecida entre a Rede Globo e a Casa de Cinema de Porto Alegre. O objetivo do programa era traduzir os textos, enfatizando o envolvimento entre ficção e realidade. Desse modo, em cada episódio, havia o desafio de encontrar, entre pessoas da vida “real”, tipos humanos capazes de representar às personagens protagonistas de cada obra. 2 As adaptações das obras literárias foram exibidas respectivamente nessa ordem, e produzidas por mesmo grupo de roteiristas. Nesse sentido, é possível constatar que a produção do programa realiza, ao longo do episódio, exercício metatextual 3, pois há o diálogo entre a obra literária e o processo de adaptação. É possível perceber que, ao mesmo tempo, em que o programa exibe cenas adaptadas do romance, também mostra os bastidores das gravações, os ensaios e discussões a respeito de temas suscitados por intermédio da obra. O objetivo central do episódio é selecionar uma jovem, de mesma aparência física e origem social da protagonista de A Hora da Estrela, a fim de se encenar alguns trechos da história. Desse modo, além da participação das atrizes amadoras, há a presença de atores profissionais, como Wagner Moura (representando o papel de Olímpico), Ana Paula Bouzas (como Macabéa) e Regina Casé (nos papéis de Glória e da cartomante, Madame Carlota). Esses atores contracenam nos flashs de trechos do romance que surgem ao longo do programa, como uma espécie de modelo para que as jovens, que representarão o papel de Macabéa, se pautem. Durante os cinco blocos, em que se divide o episódio, há ainda, entrevistas com as candidatas à Macabéa, e exibição de trechos de uma entrevista com a escritora Clarice Lispector (concedida ao jornalista Junio Lerner em 1977, gravada e exibida para o Programa Panorama, TV Cultura, São Paulo); além de ensaios e “passagem de texto”. 3. “A Hora da Estrela” traduzida para a televisão Na tradução da obra escrita por Clarice Lispector, Cena Aberta (FURTADO, 2004, 1 DVD, 127 min.) cria novas possibilidades para o texto literário. Ao assistir o episódio, o telespectador pode distinguir, claramente, entre o que é ficção: isto é, os momentos de leitura de trechos do romance e algumas cenas adaptadas da obra; e a realidade: na observação dos bastidores das gravações, dos ensaios, na delimitação de onde se inicia a participação de dublês e nas entrevistas realizadas no decorrer do episódio. Segundo Ana Maria Balogh, em O discurso ficcional na TV (2002, p.37): [...] essa convivência com o real já existia na literatura e no cinema, nas biografias romanceadas e nos docudramas, entre outros; é, no entanto, na TV, 3 A metatextualidade, segundo Gerard Genette (apud STAM, 2004), é uma das formas de transtextualidade, que sugere a existência de relação crítica entre textos, nela é possível perceber que determinado texto é citado por outro, no intuito de apresentar comentário e, até mesmo, fazer interferências. Tal relação pode ser implícita ou explícita, em particular, no programa Cena Aberta, a relação é totalmente explícita. que as formas de convivência do real com o ficcional adquirem aspectos mais ambíguos, interferindo de forma mais clara nos modos de expressão ficcional, sobretudo no formato novela. Nesse sentido, o programa Cena Aberta segue esse mesmo formato, pois de maneira explícita evidencia a aproximação com o real. Se compararmos ao romance, só existe a possibilidade da verossimilhança, trata-se de história que poderia ser verdadeira, pois os fatos ocorrem na imaginação do autor, que recria a realidade. Além de unir ficção e vida real, observa-se, nessa adaptação televisiva, a convivência entre os mais variados gêneros textuais. É possível identificar o formato de novela, de curta metragem, micro-série, documentário, peça teatral e reportagem. Esta característica, de entrelaçamento de gêneros, pode ser entendida pelo fato de, como salienta Balogh (2002, p. 94), os textos televisuais da atualidade serem produzidos por meio de uma “bricolagem” de gêneros e subgêneros, de materiais de arquivo, imagens estáticas e em movimento. Assim, a “bricolagem” está relacionada ao conceito de intertextualidade. A ênfase às relações intertextuais inicia-se por intermédio da idéia de dialogismo, criada por Mikhail Bahktin, no entanto, é através de Julia Kristeva que o termo se impõe e se torna princípio indissociável nas concepções teóricas relacionadas aos estudos de Tradução Intersemiótica. Com efeito, o sentido do termo intertextualidade é ampliado por Gerárd Genette, em Palimpsesto, que acrescenta o conceito de transtextualidade. Reconhece-se, nesse sentido, que todo texto dialoga com outros textos, de forma explícita ou implícita, e rompe com a ideia de “originalidade” e “fidelidade” 4 da obra literária. Genette (apud STAM, 2004, p.65) apresenta diferentes tipos de transtextualidades, dentre os quais se podem destacar a intertextualidade, a paratextualidade, a metatextualidade e a hipertextualidade. No programa Cena Aberta percebe-se a produção de um trabalho metatextual: “Metatextuality”, Genette’s third type of transtextuality, consists of the critical relation between one text and another, whether the commented text is explicity cited or only silently evoked. In this sense, The Other Francisco can be seen as a metatextual critique of Suárez y Romero novel. (GENETTE apud STAM, 2004, p.65) 4 As idéias de “originalidade” e “fidelidade” relacionam-se com a crença de que a obra literária, ou “texto-fonte” devem preservar uma chamada autenticidade, que os estudos pós-estruturalistas e pós-modernos combatem de forma contundente. Segundo estudiosos, como Jacques Derrida, não existe originalidade, pois a “fonte” não é única, mas caracteriza-se como heterogênea e não há um sentido próprio que possibilite uma tradução idêntica ao texto anterior. Do mesmo modo, a adaptação feita pelo programa estabelece relação crítica com a obra de Clarice Lispector, pois intervém no texto de partida, discute temas e promove alterações. Nas entrevistas e depoimentos das jovens que participam da seleção, no intuito de atuar no papel de Macabéa, percebe-se a evidência de concepção de literatura como representação da realidade, pois as nordestinas reais se identificam com a personagem de ficção. Pode-se verificar, como exemplo, o momento em que as jovens comentam, em depoimentos, sobre preconceitos e dificuldades que enfrentaram, quando saíram do nordeste e vieram para o Rio de Janeiro. Ou ainda, ao serem questionadas se haviam vivido situação parecida com a que Macabéa vivenciou, em descobrir que o namorado Olímpico a traiu com a amiga e colega de trabalho: Glória. Assim, observa-se que as mulheres, nordestinas reais, que estão lutando para sobreviverem dignamente em uma grande metrópole, se veem representadas por meio da personagem ficcional. Esta análise é também reforçada pela noção de suplemento apontada por Derrida, em Gramatologia, pois é possível verificar que toda tradução estabelece uma relação de suplementaridade com o texto de partida. A tradução acrescenta, substituindo, preenchendo espaços vazios. Para Derrida (apud RODRIGUES, 2000), a tradução demonstra “rastros” do texto de partida, no entanto, é impossível repeti-lo em sua totalidade, além disso, nenhum texto é pleno em si: A tradução não pode oferecer os mesmos valores que o original, pois cada signo se relaciona com outros signos de modos diferentes em cada língua e em cada texto de cada língua. Não pode, também, vir a se acrescentar a um original pleno e sem erro, completando-o, porque, como expus, o suposto texto original não escapa à “diferencia”, ou seja, não é algo completo em si mesmo: está sujeito ao movimento de protensão e retensão. (p.208) A ideia de suplemento está interligada, segundo Derrida, principalmente ao ato de leitura, no momento da interpretação, que atualiza, acrescenta, modifica e transforma o texto. Quanto à tradução, entende-se que, a mesma, substitui, preenchendo espaços vazios. O que difere da noção de complemento, pois não se trata de algo imprescindível para completar o sentido do texto, mas uma possibilidade a mais, acrescentada ao texto. Ao serem analisadas as transformações feitas na obra literária, traduzida para o programa de TV, percebem-se: seleções, atualizações, suplementos, extrapolações, dentre outras mudanças. Todas essas modificações são necessárias, pois a tradução mantém relação com o tempo, o espaço, a cultura e a língua, as quais diferem do contexto ao qual pertencia o texto de partida. 4. O tempo: da linguagem literária à televisiva No que se refere aos aspectos temporais no romance, é possível perceber que Clarice Lispector produz uma história contada por um narrador-personagem, Rodrigo S.M., que relata, ao mesmo tempo, os acontecimentos que giram em torno da personagem Macabéa e o próprio trabalho de composição literária. A transmissão da história, na perspectiva de Rodrigo S.M., se constitui em esforço sobre-humano, por esse motivo parte considerável do romance é dedicada a apresentar questionamentos e inquietações do suposto escritor. O tempo, desse modo, não é linear, pois se divide entre a temporalidade do narrador-personagem, e da história de Macabéa. A narrativa de Lispector é, essencialmente, instável no que diz respeito ao fluxo temporal, pois segue o ritmo da consciência do narrador e das personagens, assim o tempo caracteriza-se como oscilante: “o presente transformado já em futuro, por sua vez, se torna passado, num fluir incessante.” (SÁ, 1978, p.100) A temporalidade da narrativa não segue, dessa forma, uma lógica linear, e sim a lógica da consciência: Por debaixo da duração homogênea, símbolo extensivo da autêntica duração, uma psicologia atenta distingue uma duração cujos momentos heterogêneos se penetram; por debaixo da multiplicidade numérica dos estados conscientes, uma multiplicidade qualitativa; por debaixo do eu em estado bem definido, um eu em que a sucessão implica fusão e organização. (BERGSON, 1988, p.96) Segundo Bergson, a sucessão do tempo da consciência sugere simultaneidade, observase, assim, que a temporalidade, pautada na representação das sensações íntimas de tempo vivido, produz a verdadeira duração, caracterizada com múltipla e heterogênea. A percepção temporal evidenciada na escritura de Clarice Lispector caracteriza-se por ser imensurável e isenta de precisão. Observa-se, nas fortes digressões vivenciadas por meio da literatura, a tentativa de capturar os instantes e representar o fluxo temporal por intermédio da linguagem. E para alcançar tal investida, a autora constrói a narrativa unindo e confundindo passado, presente e futuro: Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. (LISPECTOR, 1999, p.79) Com a perspectiva de futuro próspero, diante da possibilidade de mudança na vida, cria-se a impressão de que a personagem, por meio de pensamentos, já vislumbra, no presente, acontecimentos futuros. A respeito da representação temporal no texto de ficção, Gérard Genette (1995, p.31), aponta que o tempo ficcional constitui-se em sequência duas vezes temporal, pois representa o tempo da “coisa-contada” e o tempo da narrativa. Assim, esta dualidade permite distorções na representação do tempo: como por exemplo, muitos anos de vida de um personagem sintetizados em cinco linhas de um romance, em um ato de uma peça teatral, ou em alguns planos de uma montagem de cinema. Por isso, toda representação temporal na ficção parte de uma falsa noção de tempo. A articulação das instâncias temporais dependerá da habilidade do escritor em utilizar os recursos retóricos mais eficientes na produção de efeitos pretendidos. Alterações da ordem cronológica, maior ou menor, velocidade do andamento, bem como as figuras de duração, constituem também um rol de expedientes retóricos, avalizadores da natureza fictícia do texto. (NUNES, 2002, p.75) Tanto o tempo cronológico quanto o psicológico são partes do tempo do discurso, que é conduzido pela linguagem, por meio das técnicas de escrita do autor. O fluxo do tempo em A Hora da Estrela é repleto de variações, saltos para frente e para trás, passado e futuro se alternam em aparente desordem, profundos espaços vazios e fragmentações. Ao mesmo tempo em que, Macabéa reflete sobre o passado e vivencia os momentos da infância sofrida em Alagoas, maltratada pela tia que constantemente dava-lhe cascudos no alto da cabeça, também se imaginava feliz ao lado de Olímpico. A fim de representar sensações contraditórias, a escritora produz o tempo oscilante, no qual se entrelaçam a temporalidade da história contada, e o fluxo das reflexões do narrador. Assim, as questões temporais na obra clariciana espelham vivência interior. Entende-se, nesse sentido, que há transcendência à concreticidade das coisas, pois a narrativa tende a descrever estados psicológicos e a evidenciar a subjetividade da percepção temporal humana. Entende-se que ao produzir a obra A Hora da Estrela, Clarice Lispector manipula estratégias discursivas a fim de representar a temporalidade, de modo a expressar o sentimento de duração, pautado em realidade interior. O programa Cena aberta, a fim de adequar a representação do tempo de A Hora da Estrela ao formato de uma micro-série, realiza modificações com relação ao texto de partida, até porque se tratam de diferentes gêneros textuais. Quanto às alterações que ocorreram na adaptação da obra literária para o programa televisivo, no que diz respeito à representação do tempo, observa-se uma transgressão na sequência dos fatos. Em Cena Aberta, a narrativa se inicia pelo fim, modificando assim a ordem dos acontecimentos expressos no romance. Na abertura do episódio, há a representação, feita pelos atores profissionais, da cena em que Macabéa entra na casa da cartomante Madame Carlota, a fim de obter informações sobre o futuro. Após citar os acontecimentos negativos do passado e presente da protagonista de A Hora da Estrela, a cartomante transmite que o destino de Macabéa se transformará e será constituído de sucesso em todos os âmbitos da vida da personagem: financeiro, afetivo e profissional. No entanto, ao contrário do que foi previsto, a personagem é atropelada e morre, ao sair da casa da cartomante. Neste momento há uma interrupção da cena, e a apresentadora Regina Casé, desfeita do seu papel de Madame Carlota, demonstra que tudo o que foi encenado era apenas uma representação e sugere que, na adaptação produzida pelo programa, ocorra alteração do fluxo temporal da narrativa. Assim, a história começa a partir do final, com o intuito de produzir uma versão em que Macabéa tenha a possibilidade de representar um final feliz. Há, desse modo, essa transgressão que altera o fluxo temporal do texto de partida. Como já fora apresentado, a primeira alteração diz respeito à ordem dos acontecimentos, pois o programa Cena Aberta promove fluxo temporal repleto de movimentos anacrônicos e, assim, constitui-se em temporalidade entrecortada. Se compararmos o discurso audiovisual com o literário, no que diz respeito à temporalidade, percebe-se que o audiovisual possui recursos mais restritos: A literatura, por servir-se da língua, traz nos tempos verbais nuanças temporais muito precisas. O cinema só dispõe das três temporalidades básicas: presente, passado e futuro. [...] Há o consenso de que o fluxo das imagens ocorre sempre no presente no cinema. (BALOGH, 2002, p. 74) No cinema, mesmo os movimentos das imagens de volta ao passado e adiantamento de fatos do futuro, flashback ou flashforward, constituem ações vistas como se ocorressem no tempo presente. Em Cena Aberta, podemos identificar várias temporalidades, pois a apresentação da história adaptada não é contínua, é entrecortada por interrupções, sendo possível identificar no mínimo três temporalidades: a da história adaptada, a qual surge como flashs ao longo do programa; a dos ensaios que também não são contínuos, inclusive volta-se várias vezes uma mesma cena, que é dramatizada por cada uma das candidatas à Macabéa; e a das entrevistas que irrompe em meio à exibição de alguma cena, como relato de vida: “A descontinuidade, a interrupção, a fragmentação são características da linguagem televisual, a tal ponto que estão previstas nos próprios roteiros ficcionais.” (BALOGH, 2002, p.95) Inclusive, é necessário considerar que os tradicionais intervalos, para comerciais de publicidade, referentes aos patrocinadores do programa, também colaboram a descontinuidade. Considerações Finais Segundo a classificação feita por Balogh (2002), é possível enquadrar o programa Cena Aberta no formato de série literária, em episódio único, pois foi exibido semanalmente, durante quatro terças-feiras, mas A Hora da Estrela foi exibida em apenas um episódio. Quanto às características da adaptação, no que se refere à temporalidade, observa-se que houve certas atualizações, já que no romance a personagem principal utilizava uma máquina datilográfica no trabalho, a qual, na tradução, é substituída por computadores. E ainda, alterações que se referem ao ambiente e vestuário, pois o romance e a adaptação foram produzidos em épocas diferentes. No que se refere à narração e fala de personagens, não houve modificações, se compararmos ao texto de partida. O que pode ser constatado pelo fato da apresentadora do programa narrar, a história adaptada, por meio de leitura da obra. Verifica-se que a adaptação de A Hora da Estrela para o programa Cena Aberta, no final, acrescenta um dado novo, um suplemento: a possibilidade de um final feliz para a protagonista. Estratégia que pode ser adequada ao ambiente escolar, em que se torna fundamental a leitura de textos com o objetivo de compreensão da realidade ou com ênfase a produção textual que oportuniza a expressão da visão de mundo do educando. Além disso, a criação de outras possibilidades para determinado texto desenvolve a criatividade e o pensamento crítico. No momento final do programa Cena Aberta, após a gravação do atropelamento, apresentam-se novamente os bastidores, assim, os atores que interpretam as personagens principais, conversam e entende-se que poderá haver um reinício do namoro entre os dois. O interessante é que os atores ainda estão incorporando seus respectivos papéis, Macabéa e Olímpico. Tal aspecto expressa o entrelaçamento entre ficção e realidade, a ponto de ser impossível distinguir-se onde se inicia uma, e onde se encerra a outra. Assim, a hipótese de final feliz caracteriza-se como acréscimo possível à obra de Clarice Lispector. A cena e a obra permanecem abertas, a espera de outros começos ou finais; de novas ideias; Macabéa talvez case, ou viaje, ou realize o sonho de ser atriz de cinema, a Marilyn Monroe tupiniquim. Quem sabe Olímpico seja perdoado; ou, como vingança, ele tenha uma vida de tristeza e sofrimento; tudo pode acontecer no mundo da ficção; tudo se torna possível para a imaginação criadora. REFERÊNCIAS AMORIM, Lauro Maia. Tradução e adaptação: encruzilhadas da textualidade em ‘Alice no país das maravilhas’, de Lewis Carrol, e ‘Kim’, de Rudyard Kiplilng. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. BALOGH, Ana Maria. O Discurso Ficcional na TV: Sedução e sonho em doses homeopáticas. São Paulo: Edusp, 2002. BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Tradução de J. S. Gama, Lisboa: Edições 70, 1988. CENA Aberta: a magia de contar uma história. Direção: Jorge Furtado. Roteiro: Guel Arraes e Regina Casé. Brasil: Globo Marcas, Estúdio: Somlivre, 2004. 1 DVD (127 min.), Dolby Digital 2.0 Stereo, Gênero: Documentário. CITELLI, Adilson. Comunicação e educação: a linguagem em movimento. São Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 2000. DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart, São Paulo: Editora34, 1997, p.11-16. GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Lisboa: Vega, 1995. LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2. ed., São Paulo: Ática, 2002. PARÂMETROS Curriculares Nacionais: língua portuguesa / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/ SEF, 1997, 144p. PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. RODRIGUES, Cristina Carneiro. Ambivalência e conflito. In: _____. Tradução e diferença. São Paulo: Editora UNESP, 2000. SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector, Petrópolis: Vozes, 1978. SAMOYAULT, Tiphanie. A intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrine, São Paulo: Aderaldo Rothschild, 2008. STAM, Robert; RAENGO, Alessandra. Beyond Fidelity: The Dialogics of Adaptation. In: A companion to literature and film. Oxford: Blackwell, 2004.