Assunto: Lição de casa – Heráclito de Éfeso

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Assunto: Lição de casa – Heráclito de Éfeso
Assunto: Lição de casa – Heráclito de Éfeso
Aluno(a):
Série:
Matéria:
3ª
Nº
Ensino:
Filosofia
Médio
Professor:
Data:
22 / 02 / 2013
Henrique Pacini
DE VOLTA AOS JONIOS: HERÁCLITO DE EFESO
A vida
Filho de Blóson, Heráclito nasceu em Éfeso, na Jônia, de família aristocrática (seu pai descendia
do fundador de Éfeso, o rei Andóclos, que descendia do rei de Atenas, Codros) que ainda conservava a
prerrogativa de usar os títulos régios dos fundadores da cidade (isto é, ser chamado de arconte, usar
manto púrpura e carregar um cetro). Consta que teria renunciado, em favor do irmão, ao direito de usar os
títulos políticos. Sua akmé é situada por ocasião da 69ª Olimpíada, portanto entre 504-503 e 501 a.C.
Desde 546 a.C., a Jônia havia sido submetida à invasão e ao domínio dos persas de Dario. Em 498 a.C.,
todas as cidades, com exceção de Éfeso, uniram- -se numa confederação contra os persas, mas foram
derrotadas e cruelmente castigadas. Alguns consideram que tais catástrofes políticas teriam afastado Heráclito da vida pública. Retirado e isolado, seu pensamento surge melancólico e pessimista, e seu estilo
difícil é irônico, altaneiro, distante.
Heráclito é um dos raros pré-socráticos de que possuímos fragmentos (ao todo, 132 ou 135), nos
quais alguns traços podem ser claramente percebidos: o desprezo pela plebe supersticiosa ("querem
purificar-se na lama", lemos num fragmento que critica as práticas religiosas populares); o sentimento
aristocrático ("um só é dez mil para mim, se é o melhor"); a crítica à tradição contida nos poemas de
Homero e Hesíodo ("o mestre da maioria dos homens, os homens pensam que ele sabia muitas coisas,
ele que não conhecia o dia e a noite"); a ironia contra a polymátheia* de Pitágoras, isto é, a erudição sobre
minúcias e detalhes de inúmeras coisas, sem alcançar a unidade e profundidade delas ("o fato de
aprender muitas coisas não instrui a inteligência: do contrário teria instruído Hesíodo e Pitágoras").
O pensamento de Heráclito
Considerado por muitos com o o mais importante dos pré-socráticos, durante os últimos vinte e
cinco séculos Heráclito não cessou de ser lido, citado, comentado e interpretado das mais variadas
maneiras. Com Parmênides de Eleia, pode ser visto como o fundador da filosofia: ambos colocaram os
problemas e as soluções, as questões e as respostas, as interrogações e os impasses que definiram, nos
séculos seguintes, a reflexão filosófica.
De suas críticas, Heráclito poupa a Sibila: "Com seus lábios delirantes diz coisas sem alegria, sem
ornatos e perfume". A Sibila não adula o ouvinte (fala sem alegria) nem o engana (não enfeita nem
perfuma as palavras). É também com respeito que Heráclito se refere ao oráculo de Delfos: "O senhor a
quem pertence o oráculo de Delfos não manifesta nem oculta seu pensamento, mas o faz ser visto por
sinais". Com esse fragmento, Heráclito nos dá a entender que conhecer é decifrar e interpretar signos e
que a verdade é a alétheia ou o que se desoculta por meio de sinais. Mas quem nos envia sinais? A
resposta encontra-se num outro fragmento, onde lemos: "E sábio escutar não a mim, mas ao Lógos que
por mim fala e confessar que tudo é um". Os sinais da verdade são enviados pelo Lógos, isto é, pelo
pensamento e pela palavra. Esse pensamento e essa palavra não são os nossos — não é a mim que se
deve ouvir, escreve Heráclito —, mas são uma razão e uma linguagem cósmicas ou universais, a presença do divino na natureza e em nós.
Heráclito foi alcunhado de "o fazedor de enigmas" e "o obscuro". Essas alcunhas provavelmente
vieram de sua concepção oracular do pensamento e da linguagem como fonte de sinais que "não
manifestam nem ocultam", mas se oferecem como algo a ser decifrado e interpretado.
O Lógos diz que "tudo é um". Como, então, compreender a multiplicidade e diversidade de todas
as coisas? O Lógos também ensina que "a guerra é o rei e o pai de todas as coisas". Como, então,
compreender que elas formam e são a unidade? Mas, que é o Lógos? É a physis ou o "fogo primordial"
que arde eternamente. Que significa identificar physis e lógos? Significa afirmar que o mundo é um cosmo
ou uma ordem racional porque seu princípio — sua arkhé e sua physis — é a própria razão — o lógos.
Para facilitar a exposição do difícil pensamento de Heráclito, vamos selecionar alguns de seus
fragmentos e agrupá-los em cinco temas interligados: o mundo como fluxo ou vir a ser permanente e
eterno; a ordem e justiça do mundo pela guerra dos contrários; a unidade da multiplicidade; o fogo
primordial como physis; e a afirmação de que o conhecimento verdadeiro é inteiramente intelectual, não
podendo fundar-se nos dados oferecidos pela experiência sensorial ou pela empeiría*.
O mundo como devir eterno. "Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos."
Esse fragmento, possivelmente um dos mais conhecidos e citados, costuma ser assim traduzido: "Não
podemos entrar duas vezes no mesmo rio: suas águas não são nunca as mesmas e nós não somos
nunca os mesmos". Nesse fragmento expressa-se a ideia mestra de Heráclito, a saber, que o mundo é
mudança contínua e incessante de todas as coisas e que a permanência é ilusão. Referindo-se a
Heráclito, Platão escreveu que para esse filósofo "tudo flui", tudo passa, tudo se move sem cessar. O
úmido seca, o seco umedece, o quente esfria, o frio esquenta, a vida morre, a morte renasce, o dia
anoitece, a noite amanhece, a vigília adormece, o sono desperta, a criança envelhece, o velho se
infantiliza. O mundo é um perpétuo nascer e morrer, envelhecer e rejuvenescer. Tudo muda, nada
permanece idêntico a si mesmo. O movimento é, portanto, a realidade verdadeira.
Um exemplo, atribuído ao próprio Heráclito, pode ajudar-nos a compreender o fluxo universal como
transformação sob a aparência da permanência Quando uma vela está acesa, temos a impressão de que
a chama é estável e idêntica a si mesma e que o que muda é a quantidade de cera da vela, que vai sendo
consumida pela chama. Na verdade, porém, a chama é um processo de transformação: nela, a cera da
vela se torna fogo e nela o fogo se torna fumaça. Assim não só a vela se transforma como també m a
própria chama que a consome, pois é consumida pela fumaça.
A luta dos contrários. O fluxo perpétuo do mundo não é caótico nem arbitrário, mas segue uma lei
que Heráclito apresenta num de seus mais celebrados fragmentos: 'A guerra (pólemos) é o pai e o rei de
todas as coisas". E ainda num outro: "E necessário saber que a guerra é a comunidade; a justiça é
discórdia; e tudo acontece conforme a discórdia e a necessidade". Contra a tradição dos poemas de
Homero e contra a posição de Anaximandro, nas quais a discórdia e a guerra são injustiça enquanto a
concórdia e a paz são justiça, Heráclito afirma que "a guerra é a comunidade", isto é, a guerra é o que põe
as coisas juntas para formar um mundo em comum, e, portanto, a luta dos contrários é harmonia e justiça.
Como as cordas da lira, tendidas ao máximo pelo arco, produzem os mais perfeitos acordes e as mais
perfeitas melodias, assim também a harmonia do mundo nasce da tensão entre os opostos. Lemos num
fragmento: "O que se opõe a si mesmo está em acordo consigo mesmo; harmonia e tensões contrárias
como as do arco e da lira". Enganam-se, pois, os que supõem que a realidade é tranquila e inerte. Ela é
inquieta e móvel, tensa, concordante porque discordante, e da guerra nasce a ordem ou o cosmo,
equilíbrio dinâmico de forças contrárias que coexistem e se sucedem sem cessar. A unidade do mundo é
sua multiplicidade. Tudo é um porque o um é tudo ou todas as coisas.
A unidade da multiplicidade. A multiplicidade móvel e a luta dos contrários não é uma dispersão
sem fundo. O vulgo e o senso comum são incapazes de compreender o sentido de "tudo é um" porque
acreditam que cada oposto poderia existir sem o seu oposto e olham as coisas como uma multiplicidade
de seres separados uns dos outros. Em outras palavras, não percebem que a multiplicidade é unidade e a
unidade, multiplicidade, pois cada contrário nasce do seu contrário e faz nascer o seu contrário, isto é, são
inseparáveis. A noite traz dentro de si o dia e este traz dentro de si a noite; o frio traz dentro de si o quente
e o quente traz dentro de si o frio; a necessidade traz dentro de si o acaso e o acaso traz dentro de si a
necessidade; a saúde traz dentro de si a doença e a doença traz dentro de si a saúde; a beleza traz
dentro de si a feiura e a feiura traz dentro de si a beleza; a vida traz dentro de si a morte e a morte traz
dentro de si a vida O um é múltiplo e o múltiplo é um. Essa afirmação nuclear do pensamento de Heráclito
não deve ser entendida como a entendemos nos outros pré-socráticos. De fato, para estes, há uma
unidade primordial (a physis) que, mantendo-se em sua unidade eterna, dá origem à multiplicidade das
coisas por meio de movimentos de separação e diferenciação. Ou seja, a unidade primordial não se
confunde com a multiplicidade nascida dela. Não é o que pensa e diz Heráclito. Para ele, a unidade
primordial é múltipla, o um existe múltiplo, é múltiplo. "Tudo é um" significa que a multiplicidade tensa,
contraditória ou em luta é a unidade e a comunidade de todas as coisas.
O fogo primordial como physis. Como se dá a unidade do múltiplo e a multiplicidade do um? Pela physis.
Lemos num fragmento:
Este mundo, o mesmo e comum para todos, nenhum dos deuses e nenhum homem o fez; mas era,
é e será uni fogo sempre vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a medida (Clemente de
Alexandria, Tapeçarias).
O fogo de que fala Heráclito não é o quente, ou o fogo percebido por nossos sentidos, pois o calor
já é uma qualidade determinada que, juntamente com o frio, o seco e o úmido, se move no mundo. O fogo
primordial, que ninguém — nem deuses nem homens — fez é a origem sempre viva e eterna de todas as
coisas.
Physis e lógos, o fogo primordial é uma força em movimento, uma ação em que faz de si mesmo
todas as coisas e todas elas são ele mesmo. Ele é como a chama da vela, mas uma chama eterna,
acendendo-se e apagando-se sem cessar.
Ora, o fragmento acima citado diz que o fogo sempre vivo se acende e se apaga conforme a
medida". Que pretende Heráclito significar com isso?
A palavra "medida" possui em grego (e também no latim) dois sentidos. O verbo “medir” significa
mensurar, isto é, atribuir uma certa quantidade a alguma coisa; mas também significa moderar, isto é,
impor um limite a alguma coisa e a moderação é um ato justo ou de justiça. Quando Heráclito identifica
physis e lógos, e declara que o fogo age "conforme a medida", toma "medida" e "medir" nos dois sentidos,
ou seja, o fogo primordial se distribui quantitativamente em todas as coisas em quantidades perfeitamente
determinadas e o fogo primordial delimita todas as coisas para que nelas não haja excesso nem falta. A
physis é lógos porque mede e modera as coisas, lhes dá um ser determinado e conforme à necessidade
de cada uma delas, ele as faz racionais, proporcionais umas às outras, harmoniosas em suas oposições.
O devir, esse acender- -se e apagar-se contínuo do fogo primordial, assegura a permanência — a medida
de cada coisa — e a lei de sua mudança — passar de uma medida a outra medida. A cada medida que se
apaga, uma outra se acende, eternamente. Quando a água se evapora, uma medida de úmido se apaga e
uma medida de quente se acende; quando a água evaporada se condensa em nuvens, uma medida de
quente se apaga e uma medida de úmido se acende. E assim sempre e com todas as coisas.
Heráclito fala nas medidas como "exalações do fogo" e as distingue em medidas ou exalações
claras e obscuras. O quente é a mais perfeita expressão das primeiras; o úmido, a mais completa
expressão das segundas. São claras ou do "fogo ardente": o sol, a luz, o calor, a vida, a saúde, a beleza,
o conhecimento. São obscuras ou do "fogo apagado": a noite, a treva, o frio, a morte, a doença, a feiura, a
ignorância. E há a guerra entre as medidas, guerra que é ordem e justiça do mundo.
Porque a medida é a moderação dos contrários, a guerra das medidas ou dos opostos não é
violência e tirania, opulência de uns ao preço da indigência de outros. A natureza, sempre justa e
moderadora, nunca leva ao excesso ou à carência; nela, os contrários em luta se compensam uns aos
outros. Ou, como diz Heráclito, o fogo primordial nunca excede suas medidas e é isto sua justiça (dike).
Num fragmento, lemos: "Fogo: fartura e indigência". E, num outro: "Para as almas, morrer é úmido; para o
úmido, morrer é seco; do seco, porém, forma-se o úmido e do úmido, a alma". E em mais um: "O fogo vive
a morte da terra, o ar vive a morte do fogo; a água vive a morte do ar; e a terra, a da agua porque
"imortais, mortais; mortais, imortais; a vida destes é morte daqueles e a vida daqueles é morte destes".
O conhecimento verdadeiro. Num fragmento de Heráclito é dito que o mais sábio dos homens, se
comparado ao deus, é apenas um símio. Porém, num outro fragmento é dito que o mais belo símio é feio,
se comparado ao homem. Heráclito mantém, portanto, a ideia de que a sabedoria e a verdade plenas
pertencem à divindade (ao lógos) e que o homem pode apenas amá-las e procurá-las. Eis por que afirma
que é sábio escutar "não a mim, mas ao lógos que por mim fala". E pelo mesmo motivo, o Obscuro critica
o vulgo ou o senso comum, incapaz de ir além do que a experiência sensorial lhe oferece e de
compreender que tudo é um, tudo é múltiplo, tudo flui e que a permanência é mudança.
Um fragmento recolhido por Plutarco diz: "Procurei-me a mim mesmo". Que seria essa procura?
Um fragmento recolhido por Numênio pode sugerir uma resposta: "O homem, como uma criança, ouve o
divino, tal como a criança ouve o homem". Procurar-se é ouvir o lógos que ama esconder-se na harmonia
invisível. Que ensina o lógos? Não apenas que a guerra é o rei e pai de todas as coisas, que tudo flui sem
cessar e que a justiça é a luta e o combate de todas as coisas segundo a medida, mas também, conforme
um fragmento mencionado por Plutarco, que há "um mundo único e comum", conhecido pelos que estão
despertos (os sábios) e ignorado pelos que, "adormecidos, se revolvem no próprio leito". Procurar-se a si
mesmo — ou conhecer — é colocar-se em consonância com o Lógos porque:
Não encontrarás limites da alma, percorrendo todo o caminho, tão profundo lógos ela tem
(Diógenes de Laércio, Vidas Ir doutrinas dos filósofos ilustres, ix, 7).
Quatro fragmentos nos auxiliam a melhor captar a crítica heraclitiana ao senso comum ou ao vulgo:
Muitos não percebem tais coisas, todos os que as encontram nem quando ensinados conhecem,
mas a si próprios lhes parece que as conhecem e percebem (Clemente de Alexandria, Tapeçarias).
Más testemunhas para os homens são os olhos e os ouvidos, se eles tiverem a alma bárbara
(Sexto Empírico, Contra os materna ticos).
A natureza ama esconder-se (Temístio, Oração).
A harmonia invisível é superior à visível (Hipólito, Refutação das Heresias).
Conhecer é decifrar e interpretar a natureza que ama ocultar-se. O conhecimento é um movimento
espiritual da alma que sabe usar os olhos e os ouvidos quando aprendeu a "pensar a si mesma". A alma,
mistura de água, ar e fogo, úmida, fria ou quente, será tanto mais racional quanto mais nela prevalecerem
as medidas de fogo sobre as de água e ar. Pela respiração, a alma absorve o fogo e por isso, quando o
ritmo da respiração baixa, sua capacidade de conhecimento também baixa: sono, sonho. Também baixa
quando a medida de água suplanta a de fogo: embriaguez, doença. O senso comum se parece com o
sono e com a embriaguez, com a alma "bárbara" que não sabe ver, ouvir, falar nem pensar.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Vol.1. Dos Pré-socráticos a Aristóteles. 2ª ed.
revisada e ampliada. São Paulo: Cia das Letras, 2002. pp. 79-86