A cabeça no fundo do entulho (capítulo)

Transcrição

A cabeça no fundo do entulho (capítulo)
ÁTILA
EM ROMA
A Cabeça no Fundo do Entulho
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“Dalla rete dell’ oro pendeno ragni riugnanti”.
SALVATORE QUASIMODO
O Hotel Bizâncio... Não sei se é o fim da civilização (que se anuncia), mas é de fato de-
sagradável quando cinzeiros malcheirosos espalham cinzas de cigarro sobre lençóis brancos, já
espalhei (era Fumante), sei como é soprar e bater com a mão, a mácula que hoje estou tentando
afastar da minha cama. Mas as arrumadeiras dos hotéis devem do mesmo modo lamentar-me como
a um bárbaro: um huno resfriado, espalhando lenços de papel e roupas nesse profanado altar da
ordem que é o apartamento de hotel intimidantemente preparado para o uso máximo, racional e
otimizado... e tudo em prol de um conforto que não se concilia com a confusão que promovo, a perna de uma calça pendendo sobre o monitor de TV ligado, minhas malas permanentes no descanso
onde foram depositadas logo ao chegar o invasor beócio que sou, e que apenas se dá ao trabalho
de abri-las - para ir tirando camisas, calças, cuecas meias (depois perdidas atrás da mesinha do
telefone) à medida que necessita dos itens cujo lugar devia ser no closet ou no armário.
0 Hotel Bizâncio recebe Átila.
Não é uma imagem: estou no hotel com esse nome e assinei o meu, ao chegar: Átila da Matta o que sobrecarrega o prenome histórico, mas estigmatizado, com um degrau a mais de barbárie
amazônica, o nome brasileiro de família como que a distinguir a mítica selvageria do rei huno (uma
das primeiras vítimas ilustres da contrapropaganda da Igreja) deste particular tipo de flagelo de
hotéis, Átila que chega do Brasil como um canibal recém-convertido, incapaz de saber diminuir a
potência do ar-condicionado, excessiva para um guarani das florestas de Carlos Gomes.
E estou em Roma.
E a terceira ou quarta vez que me hospedo nesse antigo centro do mundo cujas ruínas ainda nos
surpreendem, surgindo logo em seguida ao contorno de prédios comuns, ou mesmo abaixo deles,
em subsolos onde escavações de garagens foram topar com muros de termas e templos milenares indicados aos passantes: “ruínas de tal ou qual construção do imperador Fulano, ano x antes
de Cristo, descobertas em mil novecentos e qualquer coisa, quando das obras de fundações deste
edifício” etc.
Desde a primeira vez, em 1979, tive o peculiar sentimento de suspensão, de ansiosa percepção
(nada incomum, panônio) do moderno sobre o muito antigo à espreita, desarrumado, revolto, semidestruído em quase total confusão - mas não extinto, não inteiramente exorcizado, desaparecido ou afastado pelos sinos ou pelas buzinas. Não: pelo contrário, o pó e a fumaça dos combustíveis
queimados apenas se acrescentam aos insultos do tempo sobre uma parede queimada há dois mil
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anos - mas cuja face escura e gretada sempre tem um olho que resta para nos vigiar, de baixo, do
fundo do chão pisado por milhares de sapatos sobre escombros demasiados, por toda parte.
Por uma frágil analogia, sinto-me solidário com esse passado em desalinho e insultado - de todas as vezes quando, em Roma, na manhã acinzentando-se (à medida que o dia aumenta de calor
e o tráfego chega àquele grau romano de confusão e velocidade em mistura própria), saio da estufa fria de hotéis tranquilos, limpos,quase silenciosos, para afinidades com a desordem buliçosa
lá fora, e com o que permanece dormindo na cama desfeita dos séculos, a céu aberto, sob um sol
obsceno de intimidade.
Não está certo, penso - entrando num táxi disputado quase a tapa. E imagino, sempre, que a arrumadeira está entrando no meu quarto, naquele exato momento, talvez, com a mesma desenvoltura do movimento por entre templos derrubados, fóruns e casas em abandono, no estado de ruínas definitivas, imperdoadas. Sinto (honestamente)que deveria ter dormido ali, entre as colunas
e os gatos, num conforto discutível mas sem censura, entregue ao meu ambiente mais afim, onde
nem centenas de embalagens de sorvete largadas por sobre as lajes antigas do Fórum - apesar dos
avisos ineficientes - são capazes de desfigurar o que já está desfigurado, no sono em que a Roma
antiga dorme as vistas da cidade (que, se é Eterna, o é - mais que tudo - na confusão humana). E
nela me lanço, num táxi, em busca de um endereço na Via Aurélia, além do Vaticano, revendo as
ruas de marrons queimados, ocres sujos, lojas alegres, butiques sofisticadas, bares com esplanadas, padres e turistas que se despejam a caminho do profano e do sagrado - enquanto começo, na
verdade, um dia não de passeio mas de trabalho: venho comunicar, a uma certa Sandra - que me
aguarda,no tal endereço -, a existência de herança, muito especial (mas sob “algumas condições”),
no Brasil horizontal de ruinas guaranis, se muito.
Na verdade, o nome é Sandrine - Sandrine Matteotti -, que não gosta dele (ou do seu som afrancesado) e pede que a chamem de Sandra, disse logo, falando da Via Aurélia para São Paulo, pelo
telefone, fio internacional que trouxe a sua voz clara desde aquele endereço da longa via romana,
onde ficava o Colégio Pio Brasiliano (ainda fica?), quando aqui andei, per Ia prima volta, jovem demais para compreender uma cidade tão velha... e cuja apreensão nos cansa, quando começa um
dia em Roma (vem, então, a vontade de voltar para o país novo).
Sandrine: é muito bonito para um “nome de remédio”, come ela disse, humorada. Se for mesmo
tão simpática quanto pareceu, quase cantante no seu idioma “musical” (aqui jaz consignada a milésima ducentésima nona vez em que chamam de musical “a língua de Dante”), perguntarei: “E por
que você não gosta de um nome de som tão secreto - Sandrine - e prefere o tão comum Sandra?”
De três sócios num escritório de advocacia que não vai mal (porque todos se entendem, dizendo
o que pensam - o que ajuda), fiquei encarregado da signorina, desde aquela conversa à distância,
eu tentando não fazer feio, com meus restos macarrônicos da língua do Lácio (inculta e feia na
minha boca de Átila), e ela realmente falante, com um nervosismo aparente demais para indicar
alguma bem-nascida italiana.
“A Matteotti é sua”, disseram os dois colegas que me aturam, “só não vá comê-la sem que tenha
concordado em ser nossa primeira cliente internacional”, avisaram, com a sutileza que se aprecia
nos paulistas das pizzarias e das piadas de pizzaria. Depois, Celso e Ricardo são muito impressionados, sem motivo, com o que chamam “meus conhecimentos de arte”; citam Leonardo da Vinci,
que não me fascina tanto, Rafael - nome de nosso despachante - e Tintoretto (que eles acham que
“só poderia ser artista”), com esse nome não de paleta, mas de veneziano, filho de tintureiro... e
por aí vai: conversa de pizzaria, eu falo sobre pintores e putas, e Ricardo e Celso me olham como se
eu trouxesse o mistério de cidades marcianas em ruinas, na memória de elefante-pizzaiollo. Acho
graça e me divirto, informando que a minha maior admiração na pintura (claro que não é verdade) é o maneirista Cavalier D’Arpino, artista do século XV1, autor de Diana e Atteone – um quadro
magnífico (eu exagero), mostrando moças robustas em folguedos com musculosos caçadores, um
dos quais, Atteone, tenta trazer Diana para a margem de rio onde os namorados se entretêm não
só com o banho, sob as vistas de ninfas relutantes... Daí se vê que meus sócios não percebem onde
começa - e acaba – o jogo da falsa erudição em pintura, de forma que para eles continuo sendo um
entendido em arte, fluente em italiano.
Assim, estou aqui, encarregado da “Matteotti” e avisado de cativá-la, antes de mais nada, para o
nosso escritório - e só depois para folguedos de Atteone, eventualmente. Pretendo ser mais sutil
do que esse mortal, caçador punido pela Caçadora - com mais do que água fria na fervura dos seus
ardores -, e tento formar uma imagem de “Sandra”, não desvestida de Diana, mas de óculos escuros
imitados das griffes, uma revista saindo da bolsa (que não é de couro legitimo), atravessando as
ruas com pressa sem elegância, uma garota dessas rápidas no gatilho (pelas respostas fáceis, decididas ao telefone - a voz clara a acariciar as palavras “pronto!”... “herança”... “Davrani”), porque
na verdade vejo-a atravessando onde os cruzamentos principais são disciplinados pelos guardas
de branco que parecem caçadores-dentistas perdidos na África do tráfego: um deles pizzardone
postado no largo em frente ao “Bolo de Noiva” (o monumento a Vittorio Emanuele II, de apurado
mau gosto), um homem de gestos largos, um maestro de luvas, e nos para com quase a saudação
nazista, a fim de dar vez às moças e a turistas, poderoso como o Duce.
Há charretes encostadas aos carros, impaciência, calor - e luz: a cidade afinal desentorpecida,
prepara-se para o intervalo do almoço, acotovelando-se com os grupos de visitantes ociosos e
casais de peregrinos louros, preguiçosos nas fontes, demorando-se nos cafés em nome de um cappuccino, uma água mineral, uma Coca-Cola (cujo valor alguns garçons recebem com solenidade
irônica), enquanto a vida romana se desdobra entre os ministérios, as repartições, os organismos
da atividade pública coroada de velhice, com as muitas letras de siglas misteriosas que administram a mais feminina das capitais insultadas - como se fossem sinetes de cafetões de Capo Le Case.
Ela responde:
- Porque “Sandrine” é, como eu diria?, “especial” demais... minha mãe devia estar pensando no
século XV, em mulheres aparentadas com fadas e bruxas, quando me pespegou, sei lá, esse Sandrine literário demais... Não me sinto real quando me chamam pelo nome de batismo.
Isso estava sendo dito no apartamento, nada espaçoso, de um prédio modesto que me fazia pensar em sopas e em televisão sintonizada nos programas que sorteiam Fiats e cachorros de raça duvidosa (se você não está no centro propriamente dito, a Roma que o espera é essa dos subúrbios
com suas sorveterias e cafeterias, pequenos restaurantes e postos de gasolina, lojinhas indistintas
e pontos de ônibus sempre com dois ou três aposentados censurando, silenciosamente - ou nem
tanto -, os jovens que se beijam trocando chicletes com a língua).
Ela estava sentada num sofa protegido por uma espécie de toalha rendada, onde visitantes deviam se sentar enquanto os da casa poupam o pano e o móvel, as pequenas coisas mais “finas”, de
um ambiente barato, na vizinhança da gloria dos imperadores e dos papas. A manhã amadurecia,
nas transversais de ar residencial voltando às tarefas de mais um dia. Tudo isso acontece em toda
parte, mas naquela cidade, para mim, sempre aconteceria do seu modo.
Ah, Roma! Terei um sobressalto, sempre, diante do seu rosto comum como o nome Sandra, ainda mais que o prédio de Sandrine e muito próximo da Via S. Maria Mediatrice, 8, onde eu fiquei
hospedado, nos primeiros dias, em 1979, no Studentato Missionario do Istituto Suore del Preziosissimo Sangue.
Lá estavam as suas varandinhas sem personalidade, vistas desta janela de Sandra Matteotti também de persianas -, contra a qual vejo a moça sentada. Estava indeciso sobre lhe falar disso
ou não, temia entrar numa reminiscência sentimental demais para um advogado no seu primeiro
encontro profissional com uma cliente já quase garantida. Ali sentado, totalmente colhido pela
lembrança (de tal modo que aquela coisa das “sopas” só podia ter vindo das mesmas janelas que
eu avistava, as irmãs servindo seus pratos fumegantes), revia, com autocompaixão, a televisão no
hall, sintonizada de acordo com o gosto do Preziosissimo Sangue, os quartos de uma austeridade insossa, os silêncios sem vida dos corredores, os sorrisos trocados entre todos, automáticos e
compulsivos nos religiosos e leigos um pouco idiotas, rindo com as graças sem graça dos programas dominicais no mundo todo, nos fins de semana e nos feriados longos, quando o Istituto me
entristecia mais do que nunca, fora da vida, fora da Roma cuja velhice rugia nos calores empoeirados a partir do Fórum e da cilíndrica sombra monstruosa do Coliseu dos postais. Além disso, a Via
S. Maria Mediatrice era, fisicamente muito longe do bulício, do foco pré-80 de agitação colorida,
jovem, de toda a Europa e da antiga capital do mundo... - mas daquele jeito italiano, próprio, de
matizar rancores, ideias e contestações transformadas em teses discutidas com autoconsciência
irônica. E eu viera para coisas assim, e não para entristecer num ambiente Saint-Sulpice italiano,
entre padres e freiras que sorriam até para as persianas.
Não aguentei duas semanas. Havia horários de entrada, à noite, e a atmosfera pia, falsamente
suave, tomava cara a diária barata, recomendada com as sopas que, no fim, já me embrulhavam o
estômago tupi: mudei-me para a decadência pagã das ruazinhas do centro, das quais me coube ficar na Capo Le Case, uma das mais “simpáticas” (diria uma professora em férias), acima da Piazza
di Spagna. Ali, os fàntasmas de Keats, Shelley, Byron (e outras almas mais poluídas) me permitiam
respirar pelo menos a atmosfera verdadeiramente humana da Renascença, quando nãoda abafada
antiguidade, trazendo miasmas de cristãos devorados, sais aromáticos de senadores apreciadores
do espetáculo e perfumes de cardeais adolescentes e mulheres muito bonitas que conduziam a
sua mão para o vão das coxas entreabertas - na sala de cinema vizinho à casa onde Dante morou
um tempo -, soprando volutas de fumaça, enevoando a tela (mas o filme verdadeiramente se apaga
porque ela aperta as pernas e colhe nossa mão e leva um dedo quase inexperiente a se meter na
morna fenda entre pelos cujo nome, em literatura ou fora dela, não pode ser “sexo”, “genitália” - voz
contendo vulva & facio -, nada disso: tem que ter a explicitude quase infantil da palavra buceta, em
portugués-brasiliano, ou, como diz Céline: “No entanto escrever cus... de obsceno não tem nada. A
vulgaridade começa, minhas senhoras e meus senhores, nos sentimentos, toda a vulgaridade, toda
a obscenidade nos sentimentos”).
Portanto, eu compreendia aquilo de Sandra, em lugar da artificialidade do nome verdadeiro, e
cheguei a ter o Impeto maluco de propor algo na linha da analogia “obscena” - mas o que me vi dizendo foi esta besteira:
- Claro, Sandra é um nome bonito também.
E saí do encantamento.
A Roma em que eu estava era a de 1997, o presidente do Brasil acabava de ser recebido oficialmente no Vaticano, pela primeira vez, com todos aqueles guardas suíços nas fardas de gala desenhadas por Michelangelo, o papa com seus paramentos mais dourados e Fernando Henrique
Cardoso, nosso intelectual de casaca, contrito, rezando de joelhos ao lado da primeira-dama. Os
padres sorridentes, os diplomatas em transe, os marxistas putos, o próximo ano é de eleições e
tudo se passa na Roma imperial e, no entanto, mais pós-moderna possível - no cinismo ainda mais
velhaco do que no final dos anos setenta (ou do império de Calígula), quando aqui cheguei com o
deslumbramento próprio do bárbaro em Constantinopla.
- Gosta de Roma? - Era Sandra que perguntava.
Não respondi, fiquei olhando para a semelhança daquele rosto com uma Stefania Sandrelli que
fosse menos glamourosa, mais magra e mais baixa (restava pouco da Sandrelli, mas o que restava
me agradava).
- Gosta da cidade? Sandra repetia, e respondi qualquer besteira pressurosa (quando a frase sai
como se você tomasse um choque elétrico mastigando chocolate). Se houvesse crianças debaixo
da mesa coberta por uma toalha quase até o chão, elas teriam se cutucado e caído na gargalhada.
- ... e Roma é sempre Roma. - Era o final de frase feita que me escorria, agora, da boca lambuzada
de frases ocas, uma parte de mim se encolhendo, enojado desse remate tipo turístico-retardado. E
engoli o chocolate que Sandra de fato me oferecera (a mão pintada em tom talvez escuro demais
para unhas graúdas).
Ela me olhou, decepcionada. Devia ter soado muito pobre, ainda mais no meu italiano surgindo
da memória aos poucos, endurecido da falta de prática que, de minha parte, favorece uma conversação frouxa, formal, a Fernando II, o Crente Repentino.
- Se o senhor se demorar posso tentar lhe mostrar uma cidade mais...
Mas o que seria esse “mais” (que tentaria me mostrar) ficou calado num gesto da mão levada
ao colar de coral, significando nada, ou talvez desânimo de quem não quisesse dizer o equivalente
à “pitoresca” etc. O momento era o de esvaziamento das prévias conversas desimportantes, que
antecipam assuntos aos quais se vai chegar depois de idiotices e chocolates. Cabia a mim tomar a
iniciativa de encaminhar o assunto principal, ela já sabendo, por alto, da existência de uma herança, no Brasil, motivo da minha viagem e presença ali na sala onde se via um Garibaldi mal pintado
parecendo um “saloio” português desempregado, flores artificiais e uma velhinha - uma tia qualquer coisa - alheia, olhando para o vazio sem respostas.
- Bem, eh, eu gostaria de ir ao assunto da herança... se não se importa.
- Claro que não. O senhor veio do Brasil para isso. Fique inteiramente à vontade.
(Soava como se dissesse: para que ficar dando voltas, dizendo besteiras sobre Roma?)
- Grazie.
(Quando eu chegava na Itália, um dos problemas era ficar dizendo esse “grazie” primitivo, a toda
hora, como se fosse um subpersonagem de Vittorio Gassman que ficasse dizendo adeus - “sayonara!” - no Japao, o tempo todo: deveria ser uma palavra proibida lá, desde o melodrama com Marion
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Brando de farda.)
- Você sabe que seu Padrinho (Marlon Brando de novo?)... era um homem muito rico, não?
Ela fez que sim com a cabeça.
Mas não, ela não podia saber; nem ele próprio sabia, de certa maneira - quanto mais Sandrine
Sandrella, sentada no sofá com a blusa amarela, as pernas sem meias sob a barra de uma saia que
não cobriria um bolo de chocolate inteiro. (Esse era outro dos efeitos de Roma sobre a minha imaginação primária: inspirava-me imagens de comida, associações no âmbito da gula, continuamente,
de um modo como não lenbro que outra cidade o faça. E, para citar uma sensação realmente física,
não psicológica, despertava-me também uma sede anormal, uma espécie de vontade primordial
de dessendentar-me que, já agora, me levava a pedir água a Sandra-Sandrine, cuja gentileza pôs
em ação imediata as pernas que eu seria cretino se comparasse com as mais elegantes e sólidas
colunas - mas comparo: afinal, estou em Roma.)
Voltou com a água e uma limonada muito gelada, em garrafa porejada de frio como os refrigerantes nos anúncios.
- Obras de arte?
Sandra Matteotti estava mais do que surpresa.
- Sim, obras de arte. Muito valiosas, de mestres italianos e outros.
- Mas... O que me coube são só obras de arte?
- Sim, porém... - Levantei-me, para olhar de novo as janelas do Istituto. Estavam precisando de
pintura. - São muitíssimo valiosas. Ali na minha pasta está a lista, temos fotos e também expertises.
- Como?
- Expertises. Laudos... avaliações (palavra adequada!) sobre as obras, que são de mestres italianos
(repeti - mas isso lhe dizia, realmente, alguma coisa?). Portanto, valem muito dinheiro - e do ponto
de vista artístico...
- Quanto valem?
- Veja, isso não é assim, vale tanto , e pronto, é isso, e alguém paga.
- Vê? O senhor já está evitando falar em cifras.
- Não. De modo algum. Apenas queria dizer que se faz uma estimativa inicial. - Olhei-a diretamente. - São obras cujo valor de mercado pode chegar a mais de... digamos, três milhões de dólares.
Na verdade, poderia chegar a seis ou oito (havia trabalhos de pintores toscanos tardios, e pelo
menos um Correggio notável, além de outros quadros que talvez ultrapassassem, cada um, o valor
de quinhentos mil dólares facilmente), mas eu preparava Sandra para a parte ruim da notícia - e
isso requeria lidar com estimativas por baixo, no primeiro momento.
Ela não parecia mais animada:
- Quer dizer que não há dinheiro, propriamente?
- Para você, não. Há outros herdeiros, como sabe, e há dinheiro em aplicações, imóveis e bens,
porque seu padrinho saiu investindo em quase tudo. Talvez nem ele fizesse ideia da fortuna que
tudo representa, somado. Os quadros estavam guardados numa fazenda, trancados. E o que Davrani deixou, para você, pela grande amizade com seu pai, foi essa coleção de obras europeias, a
maior parte italianas.
- Davrani, ele era... grego, não?
Eu permanecia na janela:
- Era... meio grego, meio albanês e meio italiano.
(Tive vontade de acrescentar, com franqueza: talvez uma espécie de escroque internacional do
velho tipo bem-sucedido, sem crença e sem pátria, sem fé senão a última: na beleza das obras de
arte?)
- Meu pai não o mencionava muito.
- Mas eram amigos. Seu pai o ajudou a formar a coleção orientou e creio mesmo que encontrou
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a major parte das obras para Davrani...
Eram?
Davrani (ou Davranos) fizera como muitos: usara aquele perito, de poucas posses - mas muitas
relações no meio intelectual e no círculo da Igreja -, para se assessorar do seu conhecimento e bom
“faro” para desencavar obras de arte de alto valor, depreciadas nos anos da guerra, como quem
chupa um osso magro e depois o enterra. Agora, a herança vinha, tardia e um tanto caprichosa demais para recompensar - na pessoa da filha - o expert que se deixara usar (conscientemente - era
o mais provável).
- Mas... seu padrinho - olhei mais do que nunca as janelas do Istituto de sopas fumegantes - deixou a coleção sob certas condições.
Ela alertou-se:
- Condições? Quais?
Voltei para sentar perto da minha pasta, no sofá. Peguei-a, abri os fechos dourados e retirei o
papel com as condições expressas numa letra hesitante, no original, mas que ali estavam, para que
as lesse, em tradução cuidadosa, que eu fizera - e mandara revisar - exclusivamente para aquele
momento:
- “A fllha de Matteotti, Celestine” (aqui foi cometido um engano, obviamente, porque você é filha
única, e já demos entrada numa ação declaratória com o fim de obter a sentença que lhe dará o
título hábil, de SANDRINE Matteotti, no lugar de “Celestine”), “a filha de Matteotti” - recomecei -,
“aqui designada como herdeira universal da coleção de arte, não poderá, sob qualquer pretexto, a
nenhum título e nem para satisfazer qualquer tipo de necessidade que tenha ou venha a ter, alienar, vender, permutar ou doar quaisquer das obras...”
Ela tomou um choque, ficou mesmo pálida, próxima da velhinha estática e indiferente:
- Quer dizer que eu não posso vender?! Nada?
Balancei a cabeça:
- Não.
Levantou-se, as mãos - de unhas muito vermelhas - entrelaçadas
- Mas pra que, então... Eu não quero obras de arte! Eu não gosto de arte, eu não entendo. Pra que
alguém iria querer obras de arte valiosas se não para vender... - Deu uma curta volta, angustiada;
- Oh, isso não é verdade, eu não acredito, desculpe mas um adogado italiano não poderia...
- Senhorita, acalme-se. - Levantei-me, também dei uns passos, mas para trazê-la pelos ombros, a
maciez da pele debaixo da blusa amarela chegando à ponta dos meus dedos, - Tudo isso, toda essa
questão do testamento é sempre muito complicada, mas acaba se encontrando uma so1ução...
Sente-se.
- E o senhor, então, tomou um avião no Brasil e veio até aqui só pra me dizer que eu não posso
fazer nem uma lira com a venda nem de meio quadro dessa maravilhosa coleção de... inutilidades?!
- Acalme-se, Sandra.
(Devia definir o tratamento: se “senhorita” ou Sandra. Oscilar entre um e outro denotava insegurança.)
- Eu não posso ficar calma! O senhor não sabe do que está falando. Não está perdendo três milhões de dólares.
- Por favor, me ouça. A senhorita não está perdendo ou deixando de perder nada, por enquanto.
Gostaria de falar melhor o italiano para entrar naqueles detalhes:
- Veja, nada é tão simples quanto, a princípio, parece. - Respirei, professoral. – Sandra Matteotti,
a senhorita, você... é herdeira, indiscutível, de uma coleção de obras de arte valiosíssima, através de
testamento particular, que até poderá ser contestado, embargado (como dizemos) porque há outros herdeiros... e interesses de terceiros, em suma. Mas, por ora, não há com o que se preocupar:
nem sequer com esta condição... ou agravamento, como chamamos. Preste atenção.
Ela prestava. Meu italiano é que não:
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- Nosso escritório tem sua procuração, e, de posse dos documentos que você enviou, entramos
com uma ação ordinária, declaratória (claro que eu queria impressioná-la). Isso eu já lhe expliquei
por telefone.
Mais uma vez levantei-me, ator em busca da moldura da janela:
- Essa ação visa a provar que “Celestine” é Sandrine, ou seja, que você é você. Muito bem. Isso
é – e será - relativamente fácil, acredito. Se não houver nenhum interesse contrariado, de outros
herdeiros (era importante o jargão, demonstrar conhecimento não por vaidade, mas para cativá-la - a palavra dos meus sócios), tudo prossegue normalmente e você entra na posse dessa herança
que tem um ônus, um gravame, para usar o termo jurídico correto. Isto é, uma condição que diz:
“Sandrine não pode vender nada do que herdou”...
- E aí, senhor advogado? - Ela recuperara um autodomínio irônico.
- Espere. Se você me ouvir com calma, entenderá como tudo se passa.
Retomei a cópia do testamento para ler, de novo sentado:
- Diz aqui: “não poderá, sob qualquer pretexto, a nenhum título e nem para satisfazer qualquer
tipo de necessidade que tenha venha a ter, alienar, vender, permutar ou doar quaisquer das obras.
..” - fiz uma pausa – “exceto com a finalidade exclusiva de adquirir outras obras de arte também de
importância reconhecida para a evolução das artes plásticas.”
- Repita - pediu ela.
Eu repeti.
- E o que significa?
Sandra, Sandrine, Que pena. Você é bonita, mas... pense – de vez em quando, pelo menos.
- Significa, Sandra, que nosso escritório tem uma saída para o impasse, a forma de contornar...
Enfim, podemos encontrar o caminho que você deseja, a venda, administrar isso para você.
- Pode o quê?
- Administrar seus interesses, resolver o impedimento da alienação, da venda paulatina...
- De que jeito?
(Eis como você pode ter chegado no começo da madrugada no aeroporto de Roma, com medo
de perder a última conexão do metrô – antes, levava só até Óstia -, para pegar um táxi que o deixa
na porta dourada do Hotel Bizâncio, onde você preenche dados, ensonado, e rabisca sua assinatura ruim num cartão de entrada sob as vistas de um recepcionista de plantão que também abre a
boca. Atendidas as formalidades, você sobe um elevador panorâmico sobre os telhados obscurecidos, as cúpulas borradas e as colinas invisíveis em demanda de um apartamento de certo luxo no
qual logo se espalha com o à-vontade dos Átilas, dorme e acorda bem-disposto para rever a cidade
e conhecer uma cliente na sua manjada Via Aurélia, onde agora se encontra, prestes a lhe dar a luz,
a lâmpada no caminho de acesso a, talvez, seis, oito milhões de dólares - com inteligência, cuidado,
conhecimento e habilidade.)
- De que jeito? Do jeito certo. Terei o máximo prazer em lhe explicar, mas diga-me: assim como
o nosso escritório atendia aos interesses do senhor Davrani, você... se sentirá confiante conosco,
não?
Ela era rápida como toda italiana da periferia de Roma, esperta e já calejada. Cruzou as pernas,
fez um ar de autêntica Stefânia Sandrelli prestes a seduzir o saudoso Mastroianni (é nada menos
quem me sinto, ou quase, com três sentimentos que se vão confundindo nessa manhã: confiança
no sucesso da estratégia que montei para o assunto, atração pela moça plena de vulgaridade atraente—que, em alguns anos, parecerá refinada, sob as bênçãos do conforto - e verdadeira emoção,
acreditem, ao lembrar-me de Marcello, de repente, ali naquela rua, como se, pela janela, pudesse
avistá-lo com a espécie de hesitação, eterna coma a cidade, em ser por inteiro íntegro ou completamente desonesto, ou qualquer outra qualidade moral abraçada com decisão que não combinava
com seus melhores personagens e com, talvez, o próprio homem incapaz de deixar de fumar e dei-
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xar de pensar em deixar de fumar, mastroionnicamente)...
- Átila... Posso Ihe chamar assim?
- Claro. (Sandra... eu devia ter aveludado, em resposta. Mas, decididamente, não gostava do nome.
Preferia Sandrine, mais longo remédio doce.)
- Os senhores, você... tem a minha total confiança. Já mandei a procuração e assinarei outras, se
necessário, declarando que seu escritório me representa...
- Grazie.
- Mas diga: como pretende fazer para vender os malditos quadros?
Ri, ri daquela franqueza citadina, vivida:
- Vou dizer. E você não se arrependerá de nos ter honrado com a sua confiança. - Eu estava falando com um sorriso ainda espraiado no rosto, enquanto mal percebia, agora, as antigas janelas do
Istituto Suore del Preziosissimo Sangue lá longe. – Veja há essa ressalva na condição imposta pelo
testamento, que você acabou de ouvir: “exceto com a finalidade exclusiva de adquirir outras obras
de arte também de importância reconhecida para a evolução das artes plásticas.” Percebe?
- Não.
- Eu explico você pode vender as obras que herdou da coleção Davrani, contanto que seja para
adquirir outras “de importância reconhecida para a evolução das artes plásticas”...
- Já ouvi. E daí? Eu só posso vender para adquirir outras. Dá no mesmo.
- Não. Não “dá no mesmo”.
- Você tem alguma mágica para dar em outra coisa?
- Temos. Temos uma mágica simples e eficiente: vender, veja bem, vender sem pressa, sem alardes, discretamente, todo o acervo das obras que você herdou (desde que assim o deseje), e ir comprando outras, “de reconhecida importância”...
- Então? Dá no mesmo, mesmo...
- “...para a evolução das artes plásticas”, diz Davranos. Não menciona que sejam obras do mesmo
período, ou dos mesmos artistas - e nem sequer europeias ou italianas. Não. Isso abre um vasto
campo, percebe? Livre para um sem-número de interpretações do que é “importante para a evolução das artes plásticas”. Eu diria, Sandrine, que podemos comprar obras contemporâneas, por
exemplo, de menor preço, de muito menor preço...
- Picasso?
- Não. - Sorri. - Que Picasso! É muito caro. Há artistas bons e baratos, cujas obras sairiam por
menos de um terço do valor de algumas das obras-primas que serão suas...
- E... a diferença?
- A diferença é meramente um problema de avaliações, recibos e outros detalhes contábeis que
nosso escritório poderá administrar inteiramente no interesse da cliente Sandrine Matteotti.
- A dez por cento?
Foi a primeira vez em que ela realmente me irritou:
- A vinte, a trinta... Não se trata de pechinchar uma sandália na Via Condotti, Sandra. Envolve
três, talvez cinco milhões de dólares.
- E realmente se pode fazer isso? Sem problemas?
- Bem, os problemas, se surgirem, nós também administraremos.
Eu já tenho um estudo prévio nas mãos. De especialistas, peritos...
- O senhor pensa em tudo, então?
- Em quase tudo. Mas não em ser chamado de “senhor”...
- Scuci.
Pensei nas sopas fumegantes do Istituto Suore etc. Tive saudade, em vez do recuo dos últimos
dias (em 1979) e da lembrança, quase desagradável, depois. Mas havia, bem melhor, uma maravilhosa sopa de mariscos no Ristorariti Sabatini, que poderia ser a entrada de um prato de massa
(com frutos do mar, especialidade da casa) saboreado com algum Frascati que fosse anterior a 90...
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Fernando Monteiro
Olhei-a com meu melhor olhar de Marcello - ainda assim a alguns anos-luz do original, velado para
sempre:
- Mas pensei, sobretudo, que poderíamos almoçar juntos. Se não tiver outro compromisso.
Ela foi radiosa de franqueza, mais uma vez:
- Nenhum. Fico aqui com a tia (eu havia esquecido da veha senhora mais imóvel do que a cinzenta “Mae de Whistler”), mas tem aqui no prédio umas amigas, uma ou outra fica com ela, quando eu
preciso sair.
- E ela não dá muito trabalho, parece.
- Não, nenhum. Ela está assim... mas era muito ativa. Foi restauradora. Trabalhou junto com meu
pai, quase sempre; era uma “especialista” em arte (não é assim que se diz?), como ele.
- Ah. Interessante.
Ela se voltou para a anciã quase na mesma posição desde quando eu havia entrado;
Tia. Tia! “Sandy” vai sair, certo? Vai demorar...
Nenhum sinal de aquiescência ou contrariedade. Na verdade, a velhinha continuava olhando
para a vazio pleno talvez das pinturas que havia contemplado e estudado com afinco, num outro
século quase, numa outra vida – parecia.
A Cabeça no Fundo do Entulho
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Um carro esporte, alugado, estacionado em frente ao prédio de Sandrine, seria ideal,
mas a verdade é que eu me confundiria, naquele trânsito desconhecido e louco, se alugasse um
Porsche para circular por Roma com uma pasta de advogado traindo, no banco ao lado, a postiça
esportividade com que, aliás, não estava vestido. Hesitara sobre o que usar, desarrumando a mala
completamente, e afinal escolhera uma roupa muito sóbria, que agora eu lamentava (sem poder,
como Sandrine, ir me trocar).
Depois de esperar pela toalete - e devo confessar que a preferia mais simples, conforme me recebera -) descemos para caçar um táxi, com a disputa acirrada do centro agora substituída pela
espera paciente, na periferia.
Afinal apareceu um, todo decorado por dentro, com flâmulas e berloques, santos e fotos do próprio motorista como atleta de boxe.
Dei a direção da Piazza Santa Maria in Trastevere e seguimos de novo um tanto formais, eu com
a pasta que me fazia igual aos outros romanos envolvidos com burocracia e negócios (sentindo
que isso também pesava como um lastro de chatice). Num carro esporte, óculos escuros, poderia
estar mais de acordo com o momento, e com a Roma ainda recente, dos filmes e dos paparazzi —
o que não deixaria de ser ridículo, por seu lado. Ao meu, Sandra - Sandrine - tinha no entanto uma
vulgaridade envolvente que combinava com tais clichês (e creio mesmo que fosse satisfeita desse
tipo de charme de massa que já identificou a cidade). Na década de sessenta, estaria perfeita num
Alfa-Romeo vermelho, acenando “Marcello!” - imagem que me retraiu um pouco, fazendo-me tentar obter algum reflexo, interno, dos vidros fechados do meu lado (a poluição, em Roma, aumenta
os calores), para entrever o par que formávamos, num fume de Dino Risi? De Mario Monicelli? De
Damiano Damiani? (Gostava, hoje, mais dos cineastas italianos em menos evidência do que das celebridades - Antonioni, Visconti, Scola - que cultuávamos nos cineclubes, enquanto aos outros, os
“menores”, assistíamos nos cinemas compartilhados com propagandistas de laboratório, policiais
entrando de graça, espectadores e espectadoras comuns no escuro, humanidade coincidente com
a modéstia, compreensiva, dos filmes dos não-mestres.)
Sandrine. Ela possuía - eu sentia, buscava ver no perfil contra o fundo agitado das vias romanas - uma pele resistente de nadadora, uma falta de inocência de quem já empurrara com o cotovelo a concorrente, na piscina. Podia ser muito simpática, até mesmo encantadora, mas subsistia
uma ausência qualquer de curiosidade real, de sentimento imediato: tivera um pai que amava as
obras de arte, como conhecedor perito (junto com a irmã - era a novidade), e nela, no entanto, não
subsistira nenhum interesse pela paixão de Matteotti, da tia, e talvez de todo um lado da família.
Podia dizer; “aqui morou Keats” - o que eu estaria cansado de saber, pois eu próprio vivera perto
-, mas o poeta da urna grega seria sempre, para ela, apenas um figurão estrangeiro das letras, um
inglês desmaiado que tinha dinheiro e talento, mas não uma pessoa real, misteriosa, irrepetível ...
não porque fosse Keats – mas porque todos somos irrepetíveis e sonhamos um sonho nosso, exclusivo, com diferentes graus de grandeza e aspiração matizada, comum ou incomum. Vê? Isso era
como uma frase surpreendida num diálogo de um filme italiano, esquecido, dos anos sessenta:
Nino Manfredi fala, sai da comédia, de repente, para falar de livros, de obras de arte, daquilo que
retira a vida da ninharia e que é, para as Sandrines, apenas um poema retido na memória porque
foi exigido num trabalho de escola - sobre Leopardi, Foscolo? -, assunto encerrado e apagado, mais
tarde, porque Leopardi e Foscolo, além de mortos, para ela não haviam retirado nenhum material
precioso de si mesmos, ouro invisível e raro cuja aparição de alguma forma alterara a realidade. A
realidade? Só havia aquela acesa nas vitrines, para as Sandrines (não por acaso, rimava), magníficas de vitalidade - e mais do que nunca rápidas, no tomar cinzentas a árvore da teoria e as estrelas
vagas de Recanati...
Sandra, ao meu lado – “Sandy” que talvez despertasse alguma chispa no olho vicioso de Byron,
passando em frente ao Caffé Greco há século e meio -, possuía essa beleza indiferente sobre si própria (mas friamente interessada nos seus melhores efeitos), que punia os corações mais delicados
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Fernando Monteiro
em contato com o seu “mistério”, para fazer uso do conceito dezenovesco, duvidoso, mas cuja seta
atinge o alvo no centro, como um daqueles cupidos da Villa Malfitano: o tipo de beleza capaz de
agir, sem muito esforço, sobre meu ser ligeiro - aquele que se acionara ao descer do avião, dormira
sozinho na cidade de atmosfera imediatamente sensual e acordara para tratar de interesses no valor de alguns milhões de dólares. Insinuava-me para aquela cliente (já), “jovem e apetitosa”... com
igual vulgaridade de um Átila visitante, animado e móvel no táxi e no restaurante onde (ainda) permanecíamos trocando impressões superficiais, reminiscências falseadas, observações sobre Roma
de novo, apreciações superficiais sobre a comida - que estava uma droga, o restaurante mudara de
dono -, no meio de prazeres que (para mim) não estavam sendo, surpreendentemente, prazerosos... ao me sentir recuar mais, e encolher a empáfia da segurança profissional com que concluíra
a conversação sobre a herança, na sala do apartamento, vendo-e-não-vendo uma velha senhora
mal iluminada pela janela que permitia avistar a rua do Istituto, o “senhor advogado” apresentando soluções legais para a venda de uma coleção de arte valiosa, enquanto Roma ia penetrando de
novo na minha pele, pelo seu meio de impregnar (de cansaço, beleza e de cadência) inclusive as
pessoas - Átilas inclusos -, fazendo subir dos bosques obscuros, vistos de relance, uma tristeza infinita e algo como uma certeza da finitude de tudo que contemplamos, a caminho de Trastevere ou
bordejando qualquer Lungotevere (existia, aliás, o lungo Matteotti), ou passando ao largo da Villa
Borghese, e subindo e descendo por ruas que parecem, de repente, cansadas de nós, de nossos assuntos, de nossos egoísmos latentes e cultivados - tudo isso assomando numa onda de comoção
que o vinho (de sabor mantido, meno male) favorecia com delicadeza e a “música ambiente” atrapalhava (mas não o bastante). Fiz minha mão pousar sobre aquela mão - um pouco major do que
eu preferia nas mulheres -, era inevitável que isso acontecesse (ela não retirara a sua) e eu sentia
o calor do interesse sexual desperto no meio de alguma tristeza, sabia que ia me arrepender mas
prosseguia num estreitar de intimidade pelo qual seria julgado do pior (ou melhor) modo por colegas, não me importava, não havia cálculo na minha insinuação, juro, agora não havia - mas a tristeza romana, e também a sua alegria um tanto fúnebre (sempre), impelindo-me para não ficar só,
procurar um corpo, uma cabeça sem certeza da beleza, ignorante dela (mas bela, ou quase bela),
enquanto um cantor italiano que eu detestava gemia seus amores desfeitos, de enfiada, na fita do
som previamente gravada. Sandrine não se mostrava tímida nem atirada, mas certamente avaliava
o fato de haver alguma intimidade tão cedo, e o quanto isso poderia ser prejudicial aos seus interesses de criança que nascera numa cidade muito velha, “Roma dos Césares e das catacumbas” (e
de virgens mortas por leões indiferentes à iguaria ... ) e de pintores e artistas cujas visões secretas pendiam das paredes de palácios transformados em museus, museus e museus - como se as
pessoas se comovessem frequentemente, fossem sensíveis ao passado que era só um ornamento
necessário, um orgulho de apontar séculos e voltar para casa a fim de ver donas de casa tirando
peças de roupas na televisão, quando os maridos erravam as respostas...
Ora, meu caro, o turista é a criatura mais dura que já existiu, mostram-lhe coisas, em excesso,
entre o café da manhã, o almoço e o jantar - que muitos não apreciam, de puro cansaço, pensando
nas suas casas, num cão que o vizinho ficou de alimentar, na mordida do imposto de renda e no fracasso da viagem muito tardia, a alto preço, na sucessão de visitas a lugares que impõem silêncio,
na alegria dos casais que não trocarão fotografias na volta (nem se oferecerão, mutuamente, o recíproco jantar prometido em uníssono) porque a viagem foi para fora e não para dentro, a viagem
se desviou de Mantegna mas mostrou Rafael Sanzio amplamente - com sua maestria sem ascese (e
a bunda grande dos lassos).
A viagem é um cansaço, uma volta antecipada, uma sucessão de fotografias onde os fóruns todos misturam suas pedras, suas colunas partidas, e é difícil reconhecer mais do que o Coliseu dos
filmes, a vasta praça vaticana, o enclave de cinquenta e cinco mil metros quadrados do Palácio
Apostólico cuja empáfia é uma inspiração para os tolos como eu - minha empáfia é amadora - e a
de quase todos os outros que apenas acabam de chegar, em aviões incessantes ou em trens que
A Cabeça no Fundo do Entulho
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fazem a volta da cidade mas sempre são capazes de nos emocionar (ainda), se você chega por terra no meio da paisagem férrea de cinzentos e negros fuliginosos quando, avançando pela visão da
Roma dos fundos, chegamos à estação Termini - e estamos de volta.
- Átila. Átila...
- Ah. Desculpe.
- Você estava longe. No Brasil?
Ela dizia “Brasile” - eu me sentia vindo de algum país improvável, que Fellini houvesse pintado
em cartolina ou no pano de um cenário. (Fellini ganhara uma esquisita aura de vulgaridade - também - com a adoção do felliniano a torto e a direito, e isso era um mistério mais que cinematográfico.)
Ela acariciava a minha mão. Eu não me dei ao trabalho de responder se estava, ou não, no país
de papelão pintado, Brasile, o asilo de pratos de cabeça para baixo tão sujos quanto os nossos, na
mesa (porque demoravam em retirá-los?). Eu havia comido pouco mas não precisava ficar contemplando mariscos desaparecidos da bala de Nápoles para virem a ser esnobados no meu prato
de brasiliano. Olhei daquilo para Sandrine, talvez mal influenciado: agora não estava tão bonita, o
rosto suara um pouco - e o suor trouxera um brilho que quase desmentia a sua juventude (a data
de nascimento eu conhecia do manuseio dos documentos): poderia ser uma romana morta emergindo na bala, entre detritos que poluíam sua perfeita vulgaridade. Ela pareceu perceber essa impressão: tomou de um pequeno lenço para secar o excesso de brilho, enquanto preparava a pergunta:
- Eu pensei... fiquei curiosa sobre Os quadros. Eles virão para a Itália?
Voltar àquele assunto era o que eu menos desejaria, no momento - entretido pela visão de estranhos peixes mortos entre estátuas boiando (apesar de pesadas). Uma dor de cabeça, fina de
estilete, vinha do fundo lodoso do sono de aviões e hotéis - o relógio se demorando ao longo da
madrugada em que se acorda às três da manhã e às quatro -, e no entanto retomei ao meu jeito
profissional (um descanso dos peixes, dos aviões e das estatuas suadas): comecei a explicar que
estávamos apenas no início do início, enquanto pensava: sabe, Sandrine, esse assunto me trará de
volta, muitas outras vezes, a Roma, e me levará a Londres, a Nova York - e talvez a Tóquio e a muitos lugares onde os grandes fazem o grande Mercado: da arte, do ouro , da droga, do petróleo. Eu
não estava dizendo isso, mas pensando: você não se mudará daquele apartamento nem tão cedo,
sua vida vai continuar a mesma, por alguns anos...
Naquela cabecinha calculista, os quadros de mestres maneiristas, de pintores de Ferrara que tinham se dedicado ao problema da luz (especial, na sua cidade)... eram, todos, a trama auspiciosa
de um linho que fornecia apenas percentual de papel para a fabricação de dólares, de dinheiro - e
não a arte que ela não apreciaria, imóvel (como a tia?)... Não, arte não interessava à menina quase
rica num futuro nem tão distante - se tudo desse certo e os caminhos fossem percorridos com a
habilidade e a sutileza necessárias.
Por isso, quase menina rica, não pretenda saber se os quadros viriam ou não viriam; a coisa é
mais complicada e mais simples do que isso, e você, tendo alguma péssima ideia disfarçada (do
tipo colocá-los, talvez sob a inspeção de algum ex-namoradinho que trabalhou um ano na Biblioteca
Vaticana... a fim de lhe assegurar, a ela, Sandra, que os advogados brasileiros estão fazendo avaliações honestas das preciosidades da herança).. apenas se precipita, comete um pequeno erro,
aumenta meu desprazer em ver um bom restaurante perder a forma, e por um momento deixa de
ser a menina esperta que agora decididamente me aperta a mão enquanto eu explico que oh, as
quadros virão, sim (distraidamente - como se mente a saída de um mal restaurante, elogiando um
maître indiferente aos falsos elogios - ao pedir a conta),
Que é alta.
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Fernando Monteiro
O fauno de mármore e outros romances do século UX; filmes da década de 50 (A prin-
cesa e o plebeu – com só o pescoço fino de Audrey à altura da velha aristocracia)... ou A fonte dos
desejos femininos de passear com Rossano Brazzi sob o céu de postal barato, mais para Nápoles do
que para Roma, e relatos de viagem, de séculos atrás e deste - que viu soldados libertarem a mais
aberta das cidades -, tudo passa uma ideia que achata a sua luz, reduz Roma a uma estampa, e já
agora a toma mais um pano de boca do que um cenário capaz de se libertar do cliché das escadarias e das casas tipo A primavera romana de Mrs. Stone (“Roma tem três mil anos” - Warren Beatty
apregoa o tempo todo, com seu incrível sotaque de terceira num filme de segunda) etc.
Concorda?, eu estaria perguntando a Sandrine, se Sandrine fosse uma doutora de Bologna (que
gostaria de ser Sandrine), o assunto dando voltas na bela cabeça (que não seria bela, mas douta) a
trabalhar com o “folclore” urbano da mais fascinante das cidades falseadas até à caricatura.
Isso não foi o produto apenas de uma (idealizada) visão de segunda, seja do cinema ou da literatura - mas terá se formado antes, de cima, desde a copa da Árvore de Ouro além das sete colinas,
por sobre onde as ruínas emergiam do lixo e jardins fanados, arredores de bosques e cemitérios
etruscos, evanescentes no escuro, tudo levava os viajantes, os eruditos e os artistas a pensarem na
brevidade da vida (em contraste com a permanência de Roma):
Goethe, Turner e todos os melancólicos modernos - não só de Germânia e de Albion atraídas pela
sombra - que vinham chorar uma pátria de dentro, uma gloria finita, uma atração da tristeza e da
morte nuns ombros de musa capazes de suportar o peso do mundo extramuros, saldo do seu ventre pela vulva de sumos em levedura, Emília romagna de maduras uvas...
Começara assim - entre mármores esquecidos e Sons de carroça do outro lado do muro, arrastando vinhas e cabeças escuras, de faunos no limo.
Agora, rompidos nossos liames com as culturas (e as atitudes) que compreendiam finuras assim - os melancólicos, todos, eram civilizadíssimos -, o nosso século levanta seu olhar opaco, sua
morte nos olhos, sobre os mortos nas campas, para diluir a última sombra sobre a oculta face que
Roma esconde no coração antigo, habitado por paisanos de motos, polícia a cavalo e padres a pé e
toda a gente romagna em desfile como nativos do Circo... embora saibamos que uma antiga dona
das civilizações antigas não geraria apenas descendentes acenando para Polaroids, com boinas de
partigiani arrependidos de terem libertado a cidade para a democracia cristã e os vendedores de
legumes e carros, os filhos dos números apostando em placas frias de últimos modelos, com a ajuda de jovens rebentos da matronal Roma - guias alegres e pobres, de camisa esporte, oferecendo
serviços e cômica pronúncia de inglês para lordes e ianques, conforme o cliché mais óbvio fez posar uma multidão para as câmeras, nos anos cinquenta, após a guerra e o Piano Marshall abrindo
a Satura dos vícios às virtudes impuras dos americanos.
Foi um erro?
Foi uma comédia deles, um libreto de bufa ópera de erros de visão do outro: um ato de incultura,
de alguma imbecil inocência que perdura - quando principalmente o cinema repintou a falsa imagem, coloriu a gravura e retocou o gosto antigo do drama de costumes alterados pelo gosto plebeu
por oleogravuras e generalizações estúpidas. (Assim, prosperou, Senhora, essa grosseria sobre
herdeiros vossos - de uma Roma sem orgulho, matriarca dona da gente sem vontade que deixava
as colunas onde as colunas partidas tinham caído.)
Roma. (Mamma, como Pasolini a chama.)
Algumas canções na engomada voz de Dean Martin – On an Evening in Rome, innamorata, From
the Bottom of My Heart (Dammi, Dammi, Dammi) —deleitam-se nessa risonha falsidade: evocam
Roma, a Itália, vistas do fundo de cercas de algum bairro americano, talhadas como o leite nas geladeiras das casas brancas: Roma é um aroma de ar quente e capôs esporte vermelhos como tomates da Califomia.
Roma? Roma é americana. Não existe a mamma mais do que a nonna da canção filmada, o pôr-do-sol de refletores com crianças de mãos sujas sendo acarinhadas numa praça enamorada de
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Rome romântica...
E ela era - e ainda o é, na sombra -, mas o seu romantismo não é o dessas Falsidades baratas, e
nem aquele das caras falsidades veneráveis do American style romano por sobre as aquarelas finas
da tarde: John Keats, no sobrado rosa, esperando, pálido, que chegue Shelley para lhe mostrar uma
carta de George Gordon, lorde vicioso, lançado em chamas incestuosas para defender, em armas, a
causa da Liberdade (irmã da morte em Missolonghi).
Pobre Byron! Só Roma – a velha donna - compreendeu que ele fosse, tivesse que ir: Childe Harold
aprendera a ser cittadino de urbi et urbi por sob a capa romana de ontem.
Roma parece Roma e é... mas também é outra cidade: ei-la ali, num seu pedaço lateral, quando
saímos para a Piazza com a fonte, a igreja palladiana, a torre por trás, recebendo o sol de verdade
acima do relógio sob os estreitos recortes de janelas ogivais sujas de fumaça... mas não é justamente por aí que a visão se corrompe daquele sentimento, infantil, de “estar” em Roma? E como se dentro das canções-postais, daquelas fotos e daquelas fontes: alguma de Trastevere - gótico disfarçado - ou logo em face do cartão-postal dos anos cinquenta, os jorros de Trevi esplendorosa, fontana
desmesurada de gigantes vertendo água para todos os lados. Ela sempre me inquieta e aborrece,
incongruente no aperto onde a puseram, rica de excesso (inclusive de moedas miúdas que recebe
das turistas de costas, atirando-as para o mármore entre as múltiplas águas) e da lembrança dos
lenços de pescoço que os atores italianos eram obrigados a usar, pelos diretores americanos, para
parecerem mais italianos em face das câmeras apertadas entre Cenários reais e falsos..
Roma leva a exageros: da bolsa, da fonte das canções e das palavras.
Roma, a real, a Roma que se esconde, a buona Roma de ontem que se disfarça de Cidade Eterna, Roma de Hoje e de Ontem, Roma de Coma - é uma moça, uma fanciulla di straordinaria bellezza ottimamente conservata e di época molto antica, orecchie minuscule, fronte bassa, sopraccigli
neri, infinite occhi dc forma singolare sotto le cui palpebre si scorgerva ancora la cornea... conforme
Bartolome Fonte escreve, al suo amico, Francesco Sassetti, sobre a múmia de adolescente romana, perfeita, descoberta em abril de 1845 na Via Appia nei presi di Roma - que se disfarça de velha
quase morta, de freira careca e de puttana lupina, levando a caminhos que exigem, de pronto, se
desviar dos cromos, dos lenços, das miniporcarias vendidas em quiosques a reboque de bancas e
lojinhas atulhadas das lembranças mais Feias do mundo, pequeninas reduções de Roma à escala
de nosso interesse conduzido ror ingenuidade ignorante. Pelas suas mãos pintadas de vermelho
das unhas Sandrine - que não é puta de Satura nem santa do Vaticano - você pode ser conduzido
ao sarcófago da menina desaparecida (o papa Inocêncio VIII ordenou dar fim ao corpo, milagrosamente conservado, e a bela patrícia da Via Appia, milagre jogado fora, foi para fossa ignorada,
com seu peito doce que, dizem, respirava)... ou pode ser tangido para as camas-ataúdes de hotéis
de luxo ou de suore, vendo o corpo maduro de Madonna na televisão ligada, ou Placido Domingo,
Carreras e outros cantando juntos (sempre juntos mas nem sempre afinados) o varejo da opera, a
preço de oportunidade. Venham, todos, ser “cultos” numa tarde, informados num átimo, no meio
das combalidas formas da alta cultura postas no Mercado: saturem-se!
E as pessoas saem certas, entretanto, de que pagaram o ingresso e estiveram em Roma, viram as
fontes suspirosas, viram o papa, as pontes, os paparazzi, os poentes sobre o rio, as putas dos Corsos, as pernas das travestis perfeitas de calombos, os poetas cujas mansardas se tomaram museus
e os museus que inspiraram poetas de volta a lugares de fato sem as fontes e os papas das pontes
de calombos pungentes pondo putas de pernas perfeitas dentro do rio de esgoto: volte para casa,
fanciulla! Retome à tumba, quando se apagarem os flashes...
Estamos em Roma. E a doutora tem sono.
Do restaurante decepcionante, saímos para o centro “turístico” - entrecortando bobagens com
algum silêncio bem-vindo, de Trastevere até perto do Palazzo Barberini.
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Fernando Monteiro
Rodávamos num táxi, na vaga direção do palácio, por um momento de mãos dadas (a mão é uma
fala, uma palavra do tato): a mão da moça - e não da herdeira - morna na palma da mão do homem
ao lado (e não do advogado) com a terrível pasta de couro no chão do carro. (Basta de pasta: não
haveria de interpô-la, acentuá-la, mala pesada forçada a deixar claro que éramos cliente e causídico carregando a bolsa de cabedal legitimo, esfolado de algum animal cuja pasta, bosta grossa,
talvez ainda não houvesse secado. Mas não sou do Partido Verde: em São Paulo, confesso, minha
pasta - outra - era amiga posta no colo, gasta nos bancos dos táxis, próxima e não-casta.)
Qual era a idéia? Era simples: eu queria visitar qualquer acervo já conhecido, alguma galeria-museu - Pamphili, Colonna - não porque fosse idiota de me lançar em visitas artístico-culturais
de imediato, a rever coisas já vistas (e não só uma vez) logo ao chegar após conhecer alguém... na
primeira saída, como se Roma fosse fechar para balanço (as vezes, dá quase a impressão disso, fechada para os restauros, os inventários) etc.
Mas não sou esse gênero de idiota. A ideia era outra, e com vistas a ser útil e agradável: visitar
(“que tal se fôssemos ... ?”) uma coleção pictórica de qualidade - soava bem, combinava com uma
tarde livre -, um bom conjunto de mestres, uma amostra que seria vista em benefício da cliente, da
romana ao lado do patrono, bocejando (quando o patrono não estivesse olhando).
No Barberini, nas gallerie famosas, seriam obras, é verdade, bem mais importantes do que as de
Davrani (sem dúvida), mas, enfim, da mesma época - e do mesmo espírito ou do mesmo talento
imortal em explicar Florenças e Romas a um mundo obtuso, de gosto simplório por sintetizações
grosseiras que culminavam, na nossa época, com a “viagem sem sair de casa”: a visita virtual de
Uffizi, da Sistina lavada - mão fantasma largando a mão da realidade...
Sandrine segurava na minha (na outra, eu tinha a maldita pasta), quando saltamos para conter
bocejos injustos diante de quadros maravilhosos. Indiferença ou não, ambos estávamos induzidos
ao sono pelo almoço - ao menos com bom vinho, como eu pensava.
Seria?
Não importava agora. A corrida (e a procura por uma galeria aberta e não chiusa per restauri)
puseram as coisas na boa ordem... igual à deles, que lá estavam todos - ou aqueles, daquele lugar
(porque noutro, seriam outros, claro) - ao longo de mais de quinhentos anos eis os irmãos Pollaiolo, de Florença, e o corpo humano em movimento de um modo como não aparecera, ainda, na pintura. Mas eles nada tinham feito, quase, em comparaçao com este aluno de Lippi, Sandro Botticelli
- ninguém menos que ele, o melancólico magistralmente indeciso entre a alegria do paganismo e
a tristeza cristã, crepuscular... e que vem logo seguido desse Ghirlandaio de técnica perfeita e também perfeita ausência de imaginação, ao contrário do que vamos ver agora, no estupendo Piero
di Cosimo, com sua fantasia estranha, de um panteísmo declarado, um tanto fora do espírito da
Florença do seu tempo (Sandrine, estou falando deste!)... Agora nos aproximamos de alguém mais
conhecido, mais popular e também mais fácil: Rafael Sanzio, o artista completo da Alta Renascença, o mais perfeito e exigente, cuja pintura é tão boa que nem sempre transparece o sobre-humano
esforço que exigiu do mestre (so nos afrescos das Stanze, Sandrine, ele trabalhou sete anos!)... de
quem, aliás, infelizmente se perdeu um grande quadro Retrato de um jovem -, levado para a Alemanha pelos nazistas e até hoje desaparecido, o que é uma pena: nada, de um artista tão perfeito
(e por isso talvez frio, sem a tormenta de Michelangelo), deveria desaparecer de um mundo tão
imperfeito,.. Ele era um úmbrio, como aquele outro gênio, o austero Piero Della Francesca, que trabalhava pautado pelo cálculo matemático da beleza, o espírito oposto, por exemplo, aos Pollaiolo
que já vimos (Pero, pelo contrário, é um anti-romântico, Sandrine, por natureza... O que é isso Bem,
quer dizer que ele não procurava os contrastes emocionais, e por isso as suas cores parecem pálidas
e frias, mas a verdade é que buscava a forma pura, era um asceta da arte)... E agora já vemos um dos
últimos pintores de espírito medieval de Siena, Stefano di Giovanni Sassetta: está aqui um tanto
deslocado (ou fomos nós que entramos numa sala mais próxima do espirito de Giotto - um planeta
completo na história da arte, embora aqui nada tenham dele, mas só da sua órbita de humanismo
A Cabeça no Fundo do Entulho
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cósmico), as salas não ajudam a compreender o que se passa, findo o gosto “bizantino”, e isso confunde os tempos - embora arte só artificialmente se divida por escolas e épocas. (Pelo que se divide? Sei lá. Talvez pelo mistério profundo de cada artista, uma frase gasta, que você deve ter ouvido,
mas... nem sempre quer dizer o que ela diz: significa mais, Sandrine, significa... mas não sou um crítico. Hein? Não, não pense mais - é ú que alguns amigos também imaginam, mas eu só conheço alguma
coisa de leis, porque, afinal, leis são leis e são simples, às vezes.) Mudemos de assunto, mudemos de
sala, e vamos encontrar, mais adiante, os ferrareses... La estão, são inconfundíveis: Cosimo Tura,
quase grotesco, parecendo pintar a decadência (que ainda não podia estar vendo): não gostava
das almofadas macias dos florentinos elegantes e suaves, protesta contra os amolecimentos... Ele
é vivo - e duro, metálico mesmo - e influenciou esses dois quase “expressionistas” avant-la-lettre,
Francesco del Cossa e Ercole Roberti. São bons também, mas não à altura da maestria de Cosinio...
Nesta sala, a coisa muda, e não podemos senão parar diante de um pintor de Pádua, um artista que
aprendeu a sua profissão numa Academia de um pintor medíocre (a escola de Squarcione), mas o
aluno!, um legítimo talento novo chamado Andrea Mantegria, Fascinado pelo poder e pela majestade do passado romano pré-cristão - de um modo que ainda pode nos ensinar a olhar aí para fora,
os restos de uma certeza romana, de um orgulho que não era só de Legiões...
Roma: julgamos saber do seu império, pensamos penetrar nas suas salas, tocar o pão duro de
pedra sobre uma mesa herculana velha de dois mil anos... e mesmo sobre a Villa dos Mistérios temos “explicações”, julgamos decifrar o que representa uma cabra que um sátiro alimenta na mão,
ao lado da deusa do vento e de um tocador de flauta alheio a cena... mas, o que sabemos?
E há tanto para ver! Quero dizer, aqui, mil e quinhentos anos depois - o que não nos torna mais
próximos de “quadros de parede” (não mais a casa inteira de afrescos, e paredes vermelhas de espelhos de dentro). Ha todos os Bellinis de Veneza, uma família completa, eles estão ali, com suas
“figuras no espaço” - e há Ticiano ainda, Lorenzo Lotto, e há Tintoretto, Veronese, Verrocchio - mestre de Leonardo - e Correggio, que é o único, de todos, que está representado na coleção Davrani, o
que não significa que ela seja desimportante... mas é que a Itália teve tantos artistas, uma multidão
tão inacreditável de pintores e escultores de altíssimo talento, que há grupos e subgrupos, mestres
maiores e mestres menores vindos de suas cidades para pintar para as casas nobres e os papas e
os príncipes da Igreja... Entre os últimos, por fim chegamos a alguns que se encontram na coleção
que será sua, Sandrine: Pietro da Cortona, Strozzi - um imitador de Caravaggio de certa importância, como Giovanni Guercino - e Bemini e Rosa...
Mas como Mussolini em Florença, acompanhando quatro horas de visita de Hitler à Galeria Uffizi (numa romaria de ex-pintor sem talento ao templo dos maiores talentos do mundo), ela parece
dizer, ja quase tão sem pernas quanto o Duce atrás do Fúhrer; “Tutti questi quadri...”
E o seu desânimo, igual ao do conterrâneo, tem a agravante do sono que Lhe nubla a visão das
obras-primas (também começando a me cansar, confesso: arte em excesso e má comida dão uma
forma peculiar de dor de cabeça que se insinua pelas têmporas para atingir o ânimo, o ponto de
vista e a paciência).
- Quer vir descansar um pouco?
A pergunta ela talvez não esperasse, apesar de minha perna forçando uma proximidade quente
- para dar lugar à pasta preta (mais que folgada?)... — no banco bege de outro táxi, em princípio
nos conduzindo de volta para a Via Aurélia.
Ela diz que sim com a cabeça, simplesmente - não recusa, não aceita com fingida inocência, no
olha para mim com malícia nem está indiferente: é uma romana. E eu, um imperador do Oriente:
- Hotel Bizâncio - Ordeno ao motorista, vassalo não só do trânsito.
Sandrine olha para fora, pela janela. A corrente do trafego nos arrasta por entre a poluição e a
branca cinza do calor, do pó que mais tarde será lavado do rosto, deixando estrias escuras nos algodões embebidos em loções de limpeza da cútis - dizem (os fabricantes) que “total e aveludante”.
Mas isso será depois. Por ora, todas as milhares de invisíveis partículas de poeira e fuligem, sujeira
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Fernando Monteiro
e fumaça nos incorporam à grande multidão que os fabricantes da poluição garantem ir se contaminando aos poucos, sujando-se sem sentir exceto o suor que torna oleoso o rosto e deixa as mãos
ásperas enquanto os sapatos brilhantes, pela manhã, tornam-se foscos de uma opacidade rápida,
deselegante.
Roma é igual a todas as outras e todas as outras só iguais a sua loucura fluindo das mentes que
encontram a grande mente da urbe, deusa antiga de termas modernizadas, de villas aquecidas em
sutis gradações de acordo com a necessidade, dispensados os escravos aquecendo água para lavar
patrícios ex-escravos endinheirados e sonolentos no vapor dos banhos ou, a parte, mulheres ricas,
alvas e orgulhosas de seus sais trazidos pelas servas misturando líquidos de embelezamento quase iguais aos nossos.
Sandrine pensava nisso? Certamente, não. No que ela pensava? Nos quadros, na coleção (a sua),
nas obras que acabávamos de percorrer como Hitler nos Uffizi, inspecionando-as? Talvez.
Ou pensava no rumo que as coisas estavam tomando?
Pensava em mim, julgava-me? Avaliava os prós e os contras?
Pensava na fumaça, na pouca velocidade do carro?
Queria que ele se retardasse ainda mais?
Olhava pela janela - não olhava para mim - mas recuada, a cabeça pousada no encosto, contemplando de longe coisas que passavam como um filme projetado atrás e dos lados, nas sequências
trucadas do tempo em que não se filmava diretamente nos carros e um halo contornava os passageiros contra a paisagem.
Amei-a, nesse momento, como se ama o ser reservado de algumas mulheres (quando faz suas
cabeças recuarem o olhar para dentro).
Ali, era sombra. Podia não ser a alta sombra de uma torre levantada na Mongólia por Alexandre,
mas seria uma dessas pequenas torres romanas dos arredores, semelhante àquela debaixo da qual
haviam encontrado a adolescente morta ha mais de mil anos, a fanciulla ainda fresca e doce, a testa
encimada por um diadema de ouro do qual nenhum verme repugnante pendia (como no verso de
Quasimodo que, volta e meia, flutuava - rascante como um som de Pã - na memória).
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Recife, 2015

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