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Revista
Faculdade Castelo Branco
científica
ISSN 2316-4255
TEMPO E MOVIMENTO: ANOTAÇÕES SOBRE A NARRATIVA EM LA JETÉE DE CHRIS MARKER
Marcelo Pereira de Paula Toffoli1
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo realizar uma análise das técnicas narrativas utilizadas por Chris Marker ao realizar La jetée, curta metragem lançado em 1962. Para realizar tal empreendimento, buscaremos analisar o recurso formal escolhido pelo cineasta, trabalhar quase totalmente a
partir de fotografias estáticas, e a relação que as fotografias estabelecem com
um tema recorrente na obra de Chris Marker: memória e recordação.
Palavras-chave: Cinema. Fotografia. Memória. Recordação.
ABSTRACT: This document aims to conduct an analysis of the narrative
techniques used by Chris Marker to perform La Jetée, a short film released
in 1962. To accomplish this undertaking, we will try to analyze the formal resource chosen by the filmmaker, who works almost entirely from still photographs, and the relationship established by the photographs with a recurring
theme in the work of Chris Marker: memory and remembrance.
Keywords: Cinema. Photography. Memory. Remembrance.
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Mestrando em Estudos Literários pela UFES.
Castelo Branco Científica - Ano I - Nº 01 - janeiro/junho de 2012 - www.castelobrancocientifica.com.br
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“Esta é a história de um homem marcado por uma imagem de sua infância”. Nesta frase inicial, em forma de epígrafe, há o eco que prenuncia focos
centrais abordados em La jetée: memória e recordação; temas substanciais
à obra do cineasta e artista polivalente2 Chris Marker. Paralelamente às produções em cinema e fotografia, Marker fundou a série francesa de livros de
viagem Petite Planète, da qual foi editor de 1954 a 1958, e já nestas obras
nota-se o modo peculiar de produzir, enxergar e apresentar o mundo característico de Marker, utilizando e conectando entre si fatos testemunhados
em tempos e lugares distantes do mundo, Por meio da interação de aspectos
diversos das linguagens audiovisuais.
Se Marker nos ensina hoje pudicamente a ver imagens, primeiro ensinou-nos a ver livros. Dos livros antes dele, lia-se o texto ou então
olhavam-se as imagens. Quando as primeiras obras da coleção Petite
Planète apareceram sob sua direção, apercebemo-nos que um novo estilo de livro tinha nascido. À obra ilustrada, ou álbum de fotografias comentadas, Petite Planète substitui-os por algo que não era nem um nem
outro. Um livro em que a imagem era inseparável do texto e vice-versa,
onde já não eram simplesmente complementares, mas intrinsecamente
ligados. (CHEVALLIER, 1963 apud GRÉLIER, 1986, p.13)
Christine Lupton em Chris Marker: Memories of the future menciona a diversa
atividade artística de Chris Marker. “Em uma carreira incrivelmente diversa, que
agora abrange mais de meio século, Marker abraçou a escrita, fotografia, cinema,
videografia, instalações em galerias, televisão e multimídia digital, a fim de sondar
as profundas raízes da memória cultural do século XX por meio do filtro de sua
própria e totalmente distinta sensibilidade, ao mesmo tempo erudita e engraçada,
sensível e incisiva.” (LUPTON, 2008, p. 7, tradução nossa)
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Unidos a esses pequenos livros de viagem, únicos e distintos em sua proposta, seu romance Le coeur net, publicado em 1949, e suas primeiras obras
cinematográficas suscitam uma reflexão em torno de uma maneira própria
de pensar a montagem – que para MARTIN (1990, p.30) é o fundamento da
arte cinematográfica – de modo fragmentário, a partir da utilização de imagens de diversos tipos e origens, tal qual um colecionador, trazendo à tona
relações e leituras inteiramente novas.
Le Coeur net utiliza a construção de cenas paralelas, bruscas transições e justaposições de edição cinematográfica. Esse interesse na
transposição de convenções e técnicas de mídias continuaria a engajar Marker, levando-o, entre outros projetos, ao lançamento de um
de seus livros futuros, o álbum de fotos e textos Coréennes (1959),
em forma de curta-metragem e a composição de vários filmes,
o mais conhecido dos quais é La Jetée, usando fotografias fixas.
(LUPTON, 2008, p. 14, tradução nossa)
Chris Marker iniciou sua carreira cinematográfica nos anos 50 sendo que,
nas últimas cinco décadas, assinou vários roteiros, direção e outras colaborações em de dezenas de documentários. Em sua maioria, tais trabalhos,
preservaram abordagens de temáticas notadamente políticas, frequentemente demarcados sob o rótulo de cinema experimental.
Para esse pensador de imagens e palavras, o cinema surge como uma oportunidade de libertar o fluxo interior da vida e da memória de seus estados padronizados pela escrita por meio de uma série de inovações formais. La jetée, por
exemplo, tem como característica mais notável o fato de ter sido composto em
sua maioria por imagens fotográficas estáticas, técnica que permitiu a criação
de um filme que rompe justamente sua regra mais fundamental: a projeção de
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imagens a uma velocidade que reproduz a impressão de movimento natural.
Nessa obra, a exploração dos elementos básicos constituintes do cinema ─ a
imagem, o som e a temporalidade ─ se dá por uma simplicidade de meios, erigindo uma severa reflexão sobre o cinema enquanto imagem em movimento.
No entanto, a escolha formal de elaborar a narrativa quase em sua totalidade
a partir de imagens imóveis não age de forma imperativa como um distanciamento das demais obras cinematográficas, pois:
Se, muitas vezes, insistiu-se na restituição cinematográfica do movimento para sublinhar seu realismo, em geral, demora-se menos no
fato de que a imagem em movimento é uma imagem em perpétua
transformação, que mostra a passagem de um estado da coisa representada para um outro estado, o movimento exige o tempo. O
representado no cinema é um representado em devir. Qualquer objeto, qualquer paisagem, por mais estáticos que sejam, encontram-se,
pelo simples fato de serem filmados, inscritos na duração e oferecidos à transformação. (AUMONT, 2004, p. 90-91)
Para Raymond Bellour, “[...] não é o movimento que define o cinema de forma
mais profunda, mas o tempo” (BELLOUR, 1997 p.92). Isso pode ser perfeitamente vislumbrado na obra de Marker devido a sua exímia habilidade de trabalhar o tempo – elemento essencial da linguagem cinematográfica – demonstrando que sua evocação não depende apenas do movimento das imagens.
O uso de técnicas cinematográficas que desafiam as formas tradicionais da
representação fílmica, em La jetée, permite ao espectador tecer uma reflexão
sobre a fluidez que mesmo imagens estáticas são capazes de atingir quando
submetidas ao transcorrer do tempo.
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Deleuze, em sua obra A imagem movimento, ressalta a presença e importância
da foto instantânea no cinema, que, tradicionalmente, se estabelece por meio
de fotogramas, ou seja, por meio de cortes imóveis, a uma velocidade de vinte
e quatro imagens por segundo, refletindo sobre o instante mesmo no cinema.
[...] na verdade as condições determinantes do cinema são as seguintes: não apenas a foto, mas a foto instantânea (a fotografia posada
pertence a uma outra linhagem); a eqüidistância dos instantâneos;
a transferência dessa eqüidistância para um suporte que constitui
o “filme” (Edison e Dickson perfuram a película); um mecanismo
que puxa as imagens (as garras de Lumière). É neste sentido que o
cinema é o sistema que reproduz o movimento em função do instante qualquer, isto é, em função de momentos eqüidistantes, escolhidos de modo a dar a impressão de continuidade. (DELEUZE,
1985, p.12)
Não só o instante é um corte imóvel do movimento, mas o movimento é um
corte móvel da duração (DELEUZE, 1985, p. 17). O cinema, longe de ser
realidade, é uma sequência de fotogramas cuja relação interna proporciona
um movimento potencial e fantástico, passível de ser apresentado, a despeito
de sua localização temporal – presente, passado ou futuro – no instante da
narrativa. Esse pressuposto é o cerne que abre a possibilidade de a montagem
permitir ao cinema uma sofisticada manipulação do tempo. Em La Jetée, o elaborado trabalho de montagem propiciou à duração, marcada por cortes e fades,
estruturar a forma cinematográfica a partir de um instante, ao invés da temporalidade representada pela imagem em movimento do cinema. A edição, nesse
caso específico, torna-se o meio de acesso à temporalidade própria do filme.
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O termo photo-roman3, com o qual nos deparamos logo na primeira imagem da película, escolhido pelo diretor para identificar este “filme de ficção científica feito com imagens fixas, à exceção de um único movimento”
(MARKER apud GRÉLIER, 1986, p.100), é suficiente para evocar o uso
de estratégias narrativas complexas. A intenção paradoxal de Chris Marker
é incutir a sugestão de que o filme a ser exibido será um photo-roman, ou
seja consistirá em uma sequência de fotografias estáticas associadas a textos
verbais. Essa escolha estética de Marker em La jetée reforça a temática trabalhada no filme - memória e recordação -, uma vez que o uso de fotografias
na composição do curta amplia a reflexão sobre estes temas.
Também podemos evocar as análises que Roland Barthes realiza sobre a
fotografia, sobre a qual relata não ser “uma reconstituição, um fragmento,
como a arte prodigaliza, mas o real em estado passado: a um só tempo o
passado e o real. [...] a fotografia é toda evidência” (BARTHES, 1984, p.
124). Para o filósofo, fotografias funcionam como documentos dos efeitos
do tempo e dos traços de envelhecimento, testemunhas impiedosas da passagem da vida em direção à morte. Há sempre um espanto e um escândalo que
dura e se renova incansavelmente toda vez que se olha uma foto, como se
a fotografia não falasse daquilo que não é mais, mas apenas, e com certeza,
daquilo que foi. Um claro exemplo disso é a fotografia do fuzilamento de
Alexander Gardner, um prisioneiro condenado à morte, sobre a qual Barthes
diz que “ele está morto e vai morrer”, enfatizando o instante eternizado pelo
disparo do obturador da câmera. Corrobora com essa assertiva o fotógrafo
francês Henri Cartier-Bresson ao expor que
O termo se refere às fotonovelas. Novelas em quadros que utilizam, no lugar de
ilustrações, fotografias de forma a contar sequencialmente uma história.
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De todos os meios de expressão, a fotografia é o único que fixa para
sempre o instante preciso e transitório. Nós, fotógrafos, lidamos
com coisas que estão continuamente desaparecendo e, uma vez desaparecidas, não há nenhum esforço sobre a terra que possa fazê-las
voltar. (CARTIER-BRESSON, 1971, p.21).
Dada a particularidade narrativa do curta em questão, realizado sob a decisão
estilística de relatar a ação por meio de imagens fixas, escolher como cerne
de estudo as fotografias parece óbvio, já que o filme não conta com planos,
salvo em uma única e importante exceção, nem com sequências passíveis de
identificação nos padrões da teoria cinematográfica. Por outro lado, cabe a
ressalva de que se o plano é considerado a porção do filme compreendida entre dois cortes, e a sequência unidade narrativa espaço temporal resultante da
combinação de planos (AUMONT, 1995), torna-se possível a argumentação
de que há existência destas duas unidades em La jetée.
O aproveitamento do apelo documental proporcionado pelas fotografias em
preto e branco, posicionadas lado a lado pela extrema habilidade de montagem de Marker, valorizam a duração das cenas observadas em La Jetée.
O ritmo imposto pela edição e as variações de câmera são bem similares
aos encontrados em “filmes tradicionais” do cinema, o que equivale dizer
que no curta empregam-se parâmetros narrativos tradicionais. Há uma vasta
exploração de campo e contracampo, a exibição sequencial de duas ou mais
fotografias por vezes descrevem elementos distintos de uma mesma cena,
em alguns casos simulando a mobilidade dos personagens por meio de cortes
bruscos e sequencias mais rápidas. Um exemplo desse fato pode ser encontrado na cena em que se realiza a primeira experiência de viagem no tempo.
O sofrimento da cobaia é extremamente detalhado. Desde a injeção inicial
efetuada pelos cientistas, introduzindo nas veias o líquido que o permitirá reCastelo Branco Científica - Ano I - Nº 01 - janeiro/junho de 2012 - www.castelobrancocientifica.com.br
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alizar a viagem pelo tempo, até os resultados, a cena é representada sob cerca
de 30 perspectivas diferentes, enquanto ouvem-se sussurros em alemão ao
fundo discorrendo em tempo natural. Em concomitância com as imagens,
que embora apareçam imóveis na tela são dotadas de uma mobilidade digna de uma obra cinematográfica, a trilha e os efeitos sonoros dispostos em
tempo real conferem fluidez à narrativa. O tempo, assim, existe mais como
fluxo da consciência garantido pela relação entre fotografias, trilha sonora
e narração. A escrita, transposta para comentários falados por um narrador
em off, é o índice central da subjetividade na obra de Marker, compondo as
cenas, guiando o espectador por seu museu, dotando as imagens de significados que, justapostos, tecem a história que surge através do diálogo intenso
com o fluxo de imagens.
La Jetée conta a história de um homem marcado por uma imagem da infância, na iminência da Terceira Guerra Mundial. Em Paris, no aeroporto
de Orly, onde ia passear com frequência na companhia de seus pais, esse
homem vê o rosto de uma mulher e um assassinato. É essa a imagem que o
obseda. Após a destruição de Paris, os sobreviventes, “aqueles que se julgavam vencedores”, se refugiam no subsolo da cidade e realizam experiências
de viagem no tempo com prisioneiros. É esta a única esperança para a humanidade, ir ao futuro para conseguir meios de recomeçar. Após muitas falhas
nos experimentos, resultando em “morte para alguns, loucura para outros”,
o protagonista do filme, aparece então como a última esperança, justamente
por ser marcado tão intensamente por essa imagem da infância. A experiência resulta em êxito, ele é enviado ao passado e encontra-se com a mulher de
suas lembranças. Novas experiências são realizadas, desta vez tendo como
alvo o futuro. O sucesso das expedições esgota a utilidade da cobaia, que
é assassinada em uma viagem ao passado, momento em que descobre ser
aquela imagem que o persegue a imagem de sua morte. O problema é que
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durante as expedições nunca estamos certos se os cientistas que utilizam o
personagem como cobaia o projetam para um passado real, ou se ele próprio
fabrica ou adapta suas próprias lembranças. Nesse caso, mais do que uma
viagem no tempo estaríamos diante de uma viagem na própria memória.
Esse é o fato que faz de La jetée uma meditação sobre as ansiedades e o
pavor de um futuro apocalíptico e, sobretudo, um filme sobre recordações,
registros da memória em um mundo destruído que conferem às suas imagens
imóveis uma força assustadora e abrem espaço a uma reflexão sobre o tempo
que está sempre em movimento.
REFERÊNCIAS:
AUMONT, Jacques. [et. al.]. A estética do filme. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Papirus, 1995.
BELLOUR, Raymond. Entre-Imagens. Campinas: Papirus, 1997.
DELEUZE, Giles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
GRÉLIER, Robert. O bestiário de Chris Marker. Lisboa: Livros do Horizonte, 1986
LUPTON,Catherine. Chris Marker: Memórias do futuro. London: Reaktion
Books, 2008.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 1990.
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CARTIER-BRESSON, Henri. “O momento decisivo”. In: Fotografia e Jornalismo. Bacellar, Mário Clark (org.). São Paulo: Escola de Comunicações e
Artes (USP), 1971, pp. 19-26.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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