à sombra do libertador - Editora Expressão Popular

Transcrição

à sombra do libertador - Editora Expressão Popular
R ICHARD G OTT
À SOMBRA DO LIBERTADOR
Hugo Chávez Frias e a transformação da Venezuela
R ICHARD G OTT
À SOMBRA DO LIBERTADOR
Hugo Chávez Frias e a transformação da Venezuela
EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR
Copyright © 2004, by Editora Expressão Popular
Título original: A LA SOMBRA DEL LIBERTADOR - Hugo Chávez Frías y la
transformación de Venezuela
Tradução: Ana Corbisier
Revisão: Orlando Augusto Pinto e Geraldo Martins de Azevedo Filho
Projeto gráfico, capa e diagramação: ZAP Design
Foto da capa: Venpres
Impressão e acabamento: Cromosete
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil)
G685s
Gott, Richard
À sombra do libertador: Hugo Chávez Frías e a
transformação da Venezuela / Richard Gott ; tradução Ana
Corbisier. –-1.ed.-- São Paulo : Expressão
Popular, 2004.
304 p.
Título original: A la sombra del libertador: Hugo Chávez
Frías y la transformación de Venezuela.
Livro indexado em GeoDados-http://www.geodados.uem.br
1. Frías, Hugo Chávez – Político. 2. Venezuela –
Política. 3. Venezuela – Golpe militar. I. Título.
CDD 21.ed. 320.987
Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.
1ª edição: dezembro de 2004
EDITORA EXPRESSÃO POPULAR
Rua Abolição, 266 - Bela Vista
CEP 01319-010 – São Paulo-SP
Fone/Fax: (11) 3112-0941
Correio eletrônico: [email protected]
www.expressaopopular.com.br
Sumário
REPORTAGEM ENVIADA DE CARACAS ........................................................ 7
DEBAIXO DE CHUVA ....................................................................................... 21
PRIMEIRA PARTE
PREPARANDO-SE PARA O PODER
1. JOGO DE BEISEBOL EM HAVANA ............................................................ 49
2. AS PROMOÇÕES MILITARES DE HUGO CHÁVEZ ............................. 59
3. A REBELIÃO EM CARACAS, O CARACAZO ............................................ 71
4. O PACOTE ECONÔMICO QUE PÔS FIM À PRESIDÊNCIA
DE CARLOS ANDRÉS PÉREZ ..................................................................... 79
5. DOUGLAS BRAVO E O DEBATE ENTRE CIVIS E MILITARES .......... 89
6. A INTERVENÇÃO MILITAR DE CHÁVEZ ............................................... 97
7. O GOLPE DO VICE-ALMIRANTE HERNÁN GRÜBER ..................... 107
8. LUIS MIQUILENA E A FRENTE PATRIÓTICA DE 1989 .................... 115
9. TORRIJOS E VELASCO, TRADIÇÃO DA REBELIÃO MILITAR
NA AMÉRICA LATINA ................................................................................ 123
SEGUNDA PARTE
REVIVENDO O PASSADO
11. O LEGADO DE SIMÓN BOLÍVAR .......................................................... 135
12. ROBINSON CRUSOE E A FILOSOFIA DE SIMÓN
RODRÍGUEZ ............................................................................................... 149
12. EZEQUIEL ZAMORA CLAMA POR “HORROR
À OLIGARQUIA” ......................................................................................... 159
TERCEIRA PARTE
PREPARANDO A DERRUBADA DO ANTIGO REGIME
13. A PRISÃO DE YARE - À PROCURA DE ALIADOS POLÍTICOS ...... 169
14. CAUSA R, PÁTRIA PARA TODOS (PPT) E A POLÍTICA
EM GUAYANA ............................................................................................. 177
15. AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1998 ............................................... 189
QUARTA PARTE
CHÁVEZ NO PODER
16. A FORMAÇÃO DE UMA ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE .............. 199
17. MANUEL QUIJADA E A REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO ..... 207
18. ALÍ RODRÍGUEZ ARAQUE E A NOVA POLÍTICA
PARA O PETRÓLEO ................................................................................... 211
19. O PROGRAMA ECONÔMICO DO GOVERNO DE CHÁVEZ ....... 221
20. UM NOVO FUTURO AGRÍCOLA PARA A VENEZUELA ................ 229
21. JOSÉ VICENTE RANGEL E A POLÍTICA EXTERNA ......................... 243
22. A GUERRA CIVIL NA COLÔMBIA E O FUTURO
DO SONHO BOLIVARIANO ................................................................... 255
23. NOVOS DIREITOS PARA OS POVOS INDÍGENAS ........................... 265
24. TEODORO PETKOFF E A OPOSIÇÃO A CHÁVEZ ........................... 273
EPÍLOGO
OS MILITARES E A SOCIEDADE CIVIL ...................................................... 281
MAIO DE 2002
REPORTAGEM ENVIADA DE CARACAS
RICHARD GOTT
maravilhosa cidade de Caracas se espraia sob inumeráveis
colinas cujos cumes aparecem sobre as nuvens que se espalham no vale em períodos de chuva. Milhares de pessoas vivem em
ladeiras íngremes, nos barrios, um termo comumente traduzido
para o inglês como ,* pouco adequado à realidade, visto não serem simplesmente favelas. Embora sobras de madeira e zinco sejam muito usados, ali também existem casas de alvenaria. Sua
principal característica é a proximidade, com os barracos
empilhados uns sobre os outros, lutando pelo espaço.
Uma vasta massa de pessoas vai e vem, em constante movimento. Alguns são brancos, mas a grande maioria tem a pele
escura, sejam negros ou de origem indígena. A Venezuela situase geograficamente entre o Brasil e as ilhas do Caribe, e os filhos
de escravos e indígenas superam em número os descendentes dos
colonos europeus. As pessoas são alegres e dispostas, mas, em um
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Cabana, choça... urbana. (N. do E.)
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dos países mais ricos da América Latina, vivem em constante e
absoluta pobreza. Faltam educação e saúde. É assim. Muita gente
consegue sobreviver como camelô, lá embaixo, no vale.
O ar é claro e a paisagem, imponente, de tirar o fôlego. A
atmosfera é a de uma cidade de montanha da Europa medieval,
ainda que os serviços sejam mais modernos. A água e a energia
elétrica chegam a todo o país, mas o serviço de coleta de lixo é
precário e, com freqüência, os resíduos amontoam-se nos despenhadeiros das encostas e ao longo das estreitas calçadas que ligam esses imensos conglomerados urbanos.
São bairros não planejados, portanto, nem os ônibus, nem os
carros podem manobrar nesses morros. A insegurança é a principal preocupação: grades de metal e portas de segurança são os
objetos mais caros e mais importantes das construções.
Dos morros, os pobres vêem abaixo os bairros dos ricos. Uma
pequena minoria de venezuelanos brancos vive em grandes extensões urbanizadas, com empregados e piscinas, lojas e supermercados e vai para seus escritórios em automóveis com ar-condicionado, por avenidas sem fim. A imagem da África do Sul nos vem à
cabeça. Soweto contra os subúrbios brancos de Johannesburgo. O
apartheid não está legalizado na América Latina, mas existe,
mesmo assim. Os colonos brancos comandaram o continente desde
os tempos da conquista e, em países como a Venezuela, o fluxo
constante de imigrantes europeus, nos séculos 19 e 20, reforçaram
a elite branca e seu inerente racismo; um fenômeno que domina
hoje o cenário político do país.
Há três anos, depois de uma década de crise política e do
colapso dos velhos partidos políticos corruptos, o sistema democrático levou à Presidência um homem do povo. Com ancestrais
negros e indígenas, e a enfática retórica de um provinciano, Hugo
Chávez começou a organizar uma revolução. Um tenente-coro-
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nel carismático e popular identificou as semelhanças que havia
entre os soldados e o povo que era a sua origem. Com a sua
formação a partir de diversos idealistas do século 19, assim como
de revolucionários nacionalistas, incluindo Simón Bolívar, o libertador da Venezuela e de metade da América Latina, entregouse à tarefa de romper as barreiras entre a Força Armada e o restante da sociedade, utilizando soldados como ponta-de-lança de
seus projetos de desenvolvimento. O Plano Bolívar foi posto em
ação, utilizando quartéis como escolas, dividindo com o povo os
serviços de saúde reservados aos militares, tentando pôr para
funcionar, novamente, com ações mais dinâmicas, um setor
público moribundo.
O descontentamento com a revolução de Chávez por parte da
elite branca do país, de generais do Exército e de homens de
negócio conservadores, ficou evidente desde o começo. E foi
assim que, em abril, os contra-revolucionários deram um golpe
de Estado no mais puro estilo Pinochet. Aboliram a Constituição
e a Assembléia Nacional e enviaram batalhões armados para
perseguir, dar busca e assassinar famílias de destacados seguidores de Chávez. Mas o golpe foi tão violento que entrou em colapso
em apenas um par de dias, destruído unicamente pela aliança que
Chávez vinha construindo, com tanto empenho, entre os soldados e o povo.
Chávez é agora reconhecido como a figura mais causa interesse
da América Latina, desde o apogeu de Fidel Castro. Sua experiência política é o projeto latino-americano mais realista, desde a
Revolução Cubana. No continente, as pessoas observam com atenção o que se pode aprender com seu modelo, enquanto para o resto
do mundo é o primeiro chefe de Estado que se integra abertamente
ao movimento contra a globalização. Em seu discurso na cúpula
entre a Europa e a América Latina, em Madri, no mês de maio, e
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com uma linguagem antiglobalização, deplorou a falta de liderança
política e condenou aquele tipo de reunião como uma perda de
tempo: “Os líderes vão de cúpula em cúpula” – reclamou – “enquanto seus povos vão de abismo em abismo”.
O projeto de Chávez é mais político do que econômico, e se
deve tanto a seu estilo e retórica quanto a políticas concretas.
Seu objetivo político é minar as bases do poder das elites
entrincheiradas que nunca se preocuparam em implementar reformas econômicas moderadas para melhorar o nível de vida
dos setores populares.
Sua principal inovação interna, o Plano Bolívar, envolve mais
formalmente a Força Armada nos projetos de desenvolvimento,
especialmente em escolas e hospitais. Nas questões internacionais,
o propósito do governo foi aumentar a receita de seu maior gerador de divisas, Pdvsa, empresa petrolífera estatal, o que foi
obtido graças à renovação da Opep e à estabilização dos preços
do petróleo em níveis razoavelmente altos – uma importante
vitória de Chávez – assim como ao aumento dos impostos diretos e não dos indiretos, bloqueando o caminho das privatizações,
uma das grandes, e nem tão secretas, ambições dos empresários
de direita.
Em outras áreas, o modelo de Chávez continua apoiando a
economia mista. Tradicionalmente, o Estado venezuelano desempenhou um papel muito importante na economia, e essa realidade
foi incorporada à Constituição de Chávez. Grande parte do setor
privado beneficiou-se tradicionalmente de relações próximas e
solidamente estabelecidas com o Estado e o entusiasmo pela
privatização, notório nas elites comerciais de outros países da
América Latina, não se verificou na Venezuela, com exceção do
caso da empresa petrolífera. Ainda assim, nada permite supor que
a Venezuela seguirá o modelo estatal de Cuba. Chávez reiterou em
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várias ocasiões seu afeto por Castro e por Cuba, mas no plano
político, estritamente, e não no plano econômico.
As propostas atuais do governo Chávez no que se refere à
saúde, educação e segurança social não diferem das de outros
presidentes socialdemocratas do Chile e do Brasil. Chávez pretende injetar mais recursos em todas essas áreas e, diferentemente
da situação do Chile e do Brasil, a grande maioria acredita em sua
palavra. Essa é a sua força.
Para medir a força popular na Venezuela, percorri durante alguns dias os morros de Caracas e visitei pela primeira vez
um dos barrios mais organizados da cidade. Uma rua estreita
e sinuosa nos leva ao alto do morro, atravessando um território
desolado com barracos e carros velhos destroçados. Em certo
momento, chega-se a uma plataforma elevada, de onde se tem
uma vista panorâmica do vale. Meio milhão de pessoas vive
ali, algumas em casas de alvenaria, outras em grupos de casas parede-meia, outras em barracos. Em uma escola, onde
quinze professores enfrentam diariamente 1,5 mil crianças,
perguntei a um dos supervisores o que acontecera durante os
dias do golpe de abril.
“Temos aqui uma rádio comunitária” – disse-me – “e no
primeiro dia convocamos as pessoas a descer para o Palácio de
Miraflores. Alguns foram de ônibus, outros de caminhão, outros
caminhando.” No segundo dia, “a polícia fascista – as forças
repressivas do Estado – veio nos intimidar, mas logo se foram”.
Ao entardecer, as pessoas do lugar novamente desceram para a
cidade, para o quartel militar de Forte Tiúna. “A polícia fascista
ainda rondava, mas uma multidão de gente desceu. Algumas
mães ficaram no morro, para cuidar das crianças, enquanto outras
preparavam a comida.”
“Aqui não somos chavistas” – disse meu articulado informan-
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te. “Somos revolucionários. Devemos defender este governo, mas
somos mais libertários do que ele. Defendemos Chávez porque é
melhor do que qualquer outro presidente que já tivemos. Acreditamos que ele seja o resultado de nossa luta. O povo o reconhece
como um igual. Obviamente, ele é índio e negro e, talvez, também um pouco branco...”
“Muitos dos que foram resgatar o presidente nunca tinham
feito nada. Agora ficaram mais politizados e estão tentando se
organizar, mais do que nunca antes.” Em todos os morros apóiase a revolução. Num pequeno barraco de uma favela, do outro
lado da cidade, encontrei um encanador que expressou seu descontentamento com o governo. “Votei em Chávez” – disse-me –
“mas agora me arrependo. Sinto-me completamente frustrado.
Não vi nenhuma melhora. Além do mais, não me interessa que
haja conflito entre ricos e pobres porque, se isso acontece, como
conseguirei trabalho?”
Fazendo eco com o ponto de vista da oposição, argumenta
que não houve golpe de Estado em abril. “Foi um golpe do governo contra a sociedade civil. Os militares estavam protegendo
os civis. Houve um vazio de poder. Pode ser que eu me engane,
mas Chávez deveria ter renunciado. Este governo não deu os
resultados que se esperavam.”
Ao descer dos morros, fui ter com o “comandante”, como
costumam chamá-lo, em seu apartamento particular no segundo andar do Palácio de Miraflores. Chávez estava sentado, sozinho, com alguns papéis sobre uma discreta mesa da sala de jantar, voltada para um pátio ao ar livre. Um homem de quarenta e
tantos anos (quase cinqüenta), com calças folgadas e camisa
marrom de colarinho aberto; parecia relaxado e consideravelmente mais magro do que quando o vira em Paris, seis meses
antes. Sou um visitante privilegiado: eu o vi e entrevistei várias
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vezes, e escrevi sua biografia. Recebe-me como a um velho conhecido, com um abraço fraterno.
Apesar de ser um presidente acostumado a passear tranqüilamente no meio das multidões que solicitam sua atenção, atividade que ele próprio aprecia e considera politicamente compensatória, Chávez confinou-se no palácio desde o golpe de abril,
enquanto seus guarda-costas – homens de terno preto, aparentando violência, carregando sinistras maletas, que se convertem
em escudos antibalas – praticam novas táticas. Está sob séria
ameaça de magnicidio, palavra que os hispano-americanos usam
para descrever o assassinato de uma pessoa importante. “Assassinato” é uma palavra usada tão comumente nos barrios da
América Latina – pelo menos duas dezenas a cada semana, em
cidades como Caracas ou São Paulo – que se tornou sinônimo de
homicídio puro e simples.
O próprio Chávez está pouco otimista. “Qualquer coisa é
possível, Richard” – diz-me, quando lhe peço para relatar suas
ações no combate às diversas estratégias que a oposição deve ter.
“Estou certo de que ainda pensam no magnicidio e, aos mais
desesperados, esta deve parecer a única saída.” Há alguns anos,
Chávez foi advertido por Fidel Castro da seriedade da ameaça,
mas só agora começa a tomar precauções.
Outra possibilidade é o “golpe institucional”, que consiste em
uma solicitação que deve ser feita à Assembléia Nacional, para
assegurar sua renúncia. O assunto foi amplamente tratado na
imprensa, tendo sido utilizado no Equador, na década de 1990,
e na Venezuela, em 1993, quando um dos predecessores de
Chávez, Carlos Andrés Pérez, foi destituido do cargo, acusado de
corrupção.
“Bem, você viu a pressão feita pela imprensa e pela Assembléia Nacional” – diz Chávez – “mas acho que vai ser difícil para
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a oposição. Falei outro dia com um grupo de parlamentares revolucionários e, depois do que aconteceu durante o golpe, quando
muitos deles foram perseguidos e ameaçados em suas casas,
outros se juntaram a eles. “Antes eram 63, agora são 90”. Chávez,
por enquanto, conta com uma nítida maioria.
“Eles falam de um ‘chavismo light’, ou de um ‘chavismo sem
Chávez’, ainda que eu creia que isso é um mito; mas continuam insistindo em minha renúncia” – diz o presidente com um
sorriso.
Pergunto quais são as possibilidades de um golpe econômico, chamando sua atenção para a ameaça de Henry Kissinger, de
“fazer tremer a economia”, quando planejava a derrubada de
Allende.
“É bastante provável que tentem criar problemas econômicos”
– diz Chávez – “e fazer com que o país seja ‘ingovernável’, como
dizem eles, como ocorreu no Chile. Estou certo de que essa é uma
saída que estão tentando. Não podemos ignorar a possibilidade
de um segundo golpe.”
Em resposta a tal ameaça, Chávez busca contra-atacar:
“Estamos analisando detidamente todos esses cenários” – “e tentando recuperar a ofensiva para assim neutralizar a oposição”.
O projeto revolucionário em que Chávez se envolveu compreende, antes de mais nada, uma estreita aliança entre a Força
Armada e o povo. Perguntei-lhe se suas estratégias básicas haviam sido afetadas pelo golpe de abril, em que oficiais de patentes
intermediárias haviam claramente se envolvidos. Cerca de sessenta almirantes e generais passaram para a reserva.
Chávez alega que não houve nenhuma mudança de estratégia, mas admite que deverá haver uma revisão da velocidade e
do ritmo do desempenho militar nos projetos de desenvolvimento
do país. A estratégia, afinal, vem de trás para frente. Simón
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Bolívar criou uma aliança entre a armada e o povo no começo do
século 19, tornando possível a independência. Apesar de haver
um punhado de contra-revolucionários no grupo dos oficiais,
Chávez prefere destacar o extraordinário apoio do povo aos
militares que se mantiveram firmes, a favor da Constituição.
“Foi dada uma resposta rápida ao golpe, tanto por parte dos
militares quanto dos civis. Centenas de milhares de pessoas, em
todo o país, foram para as ruas, para resistir. E foram para onde?
Postaram-se diante dos quartéis, fazendo isso em função da relação que se consolidou entre oficiais e civis graças ao Plano Bolívar.
Por causa do contato estabelecido entre os militares e os setores
mais pobres da sociedade, o povo apoiou a Força Armada”.
Durante algumas semanas, os canais de televisão transmitiram, todos os dias, os dramáticos acontecimentos na Assembléia
Nacional, em que uma procissão de generais e almirantes, implicados no golpe, apresentou-se frente a uma subcomissão parlamentar. Não posso me lembrar de outro momento na América
Latina em que altos oficiais tenham sido obrigados a passar por
tão humilhante processo, apesar de os políticos mostrarem-se
extremamente comedidos durante os interrogatórios, enquanto
os generais mostravam-se arrogantemente indiferentes. Todos
estão agora nas listas da reserva, mas continuam pensando que
vão voltar.
Observei como um oficial de bom porte, aspecto singular e
cerca de cinqüenta anos de idade, cabelo quase raspado e uniforme cinzento coberto de condecorações e insígnias, explicava que,
durante o golpe, agiu à margem de suas obrigações para com a
nação e a Força Armada. Fez um discurso claramente oposicionista e denunciou a forma como os militares haviam sido arrastados para a política e a vergonha que isso significava para eles
e suas famílias. Recordou a maneira como as pessoas batiam nos
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copos quando um oficial entrava em um restaurante, não para
aclamá-lo e, sim, em sinal de desprezo. Isso tinha acontecido com
ele, segundo disse, com ele e com sua esposa.
Enquanto falava com Chávez, lembrei-me do caso do general Prats, comandante-em-chefe do presidente Salvador Allende,
do Chile, em agosto de 1973, cuja casa, situada em um confortável bairro de subúrbio, fora cercada por mulheres de classe
média que batiam em panelas. Foi obrigado a renunciar para dar
lugar ao general Pinochet. No ano seguinte, ele e sua esposa
foram assassinados por um carro-bomba. Não haverá perigo de
este modelo se repitir na Venezuela?
Chávez concordou em que “um número significativo de altos oficiais alcançou um nível de vida comparável ao da classe
média alta. Foram submetidos a esse tipo de pressões e ataques
nos lugares que freqüentam e inclusive entre seus próprios parentes, e isso certamente contribuiu para minar as bases da unidade e da força da liderança militar”. No entanto, assinalou que
“um grande número de altos oficiais não sucumbiu diante dessa
pressão social. Recusou-se a permitir que fossem neutralizados.
Pondo em risco suas vidas e suas carreiras militares, mantiveramse firmes nos momentos mais críticos, manifestando-se a favor
da Constituição”.
Diante do alerta de Chávez sobre a possibilidade de um novo
golpe, e buscando observadores independentes, decidi tomar um
avião para a terra do petróleo, Maracaibo, na parte ocidental do
país, para entrevistar um dos poucos proprietários de jornal na
Venezuela que se negaram a fazer parte da campanha da mídia
pela renúncia de Chávez. Esteban Piñeda Belloso é dono do jornal Panorama. Um rico e bem estabelecido herdeiro do jornal da
família, que tem a segunda maior circulação no país. É fácil saber
por que o Panorama teve tanto êxito. No dia do contragolpe,
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quando os jornais de Caracas saíram de circulação, perplexos
diante do fracasso do golpe que haviam promovido, o Panorama
continuou saindo, com nada menos do que quatro edições diferentes, as quais faziam uma crônica de cada nova etapa da volta de Chávez ao poder.
Piñeda é um dos mais destacados e bem-sucedidos empresários de Maracaibo. Contou-me como os proprietários de outros
meios de comunicação impressa tentaram arrastá-lo para a conspiração, visando derrubar o presidente. Negou-se a apoiá-los. De
fato, depois do golpe de abril, decidiu se retirar do Grupo da
Imprensa, a associação nacional de editores de jornais e revistas,
em sinal de protesto pelo entusiasmo que demonstraram durante o golpe de Estado.
Ainda que seu jornal, muito lido pela Força Armada, não faça
campanha a favor de Chávez, Piñeda afirma acreditar na disposição verdadeira do presidente de trabalhar pelos mais desfavorecidos, disposição esta que é compartilhada por 80% da população. É uma das poucas pessoas que conheci que se mantém otimista
com relação ao futuro. Pensa que os esforços da oposição para se
livrar de Chávez pela via constitucional estão destinados ao fracasso e acredita que um “golpe econômico” seria provavelmente
mais prejudicial para os empresários envolvidos do que para o
próprio Chávez. No caso dos militares, Piñeda garante que o que
menos lhes interessa é se ver novamente envolvidos em um golpe de Estado. Seu único desejo é voltar a suas tarefas habituais.
É certo que os setores políticos tradicionais rearticularam-se,
de certa forma, depois de sua contundente derrota nas várias
eleições posteriores a 1998, mas ainda carecem de apoio popular. Isso poderia ser atribuído ao inesperado poder de convocação que demonstraram ter sobre boa parte das classes média e alta
nas diferentes ocasiões em que foram chamadas para se manifes-
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tar contra o governo nas ruas de Caracas, mas ainda falta conferir qual é, verdadeiramente, sua força eleitoral. A oposição está
dividida em uma dúzia de partidos e de modo algum representa
uma verdadeira força eleitoral. Ainda não apareceu nenhum
verdadeiro líder de oposição e tampouco está sendo elaborado
qualquer plano para um governo de coalisão.
O golpe de abril trouxe a público um triste personagem do
mundo dos negócios, Pedro Carmona – mais conhecido agora
como “Pedro o Breve”. Um homem sem a mínima fibra de político em seu ser. Seu único plano de governo foi a dissolução da
Assembléia Nacional e da nova Constituição, que foi amplamente
debatida em uma assembléia eleita por votação popular e
ratificada posteriormente por um plebiscito. A intenção dos
golpistas era reintroduzir um programa de governo neoliberal,
que incluía a privatização das empresas do Estado, no estilo do
que foi feito em quase todos os demais países da América Latina. Estava prevista, além disso, a privatização da empresa petrolífera, assim como a retirada da Venezuela da Opep e o aumento
da produção de petróleo.
É como se a oposição acabasse por acreditar em sua própria
propaganda, pois as marchas de protesto contra o governo são
muito concorridas e as pesquisas de opinião do começo do ano
indicavam uma aparente queda no apoio popular a Chávez. A
euforia que tomou conta da classe média alta, dos radialistas,
apresentadores e colunistas dos meios de comunicação fez com
que acreditassem que bastava um pequeno empurrão para derrubar o presidente.
Na prática, a partir de minha própria experiência na América Latina, as pesquisas de opinião nunca serão verdadeiras, enquanto os pesquisadores não conseguirem chegar aos lugares
habitados pela grande maioria da população. A mesma coisa
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acontece com as marchas e protestos: não são uma referência
confiável. Podem ser muito concorridas, mas isso não significa
que esse sinal de descontentamento se transformaria depois em
votos a favor. Aqui os jornalistas e comentaristas esforçam-se por
tirar suas próprias conclusões, sempre desatualizadas, sobre o
estado da opinião pública.
Minha impressão pessoal é que o sólido apoio popular a
Chávez, baseado na classe social e na raça, permanece intacto.
Pela primeira vez na história da Venezuela, a grande maioria do
país, até agora oculta – negros, índios e mestiços – tem um presidente com o qual se identifica. As coisas podem não ter melhorado muito nesses três anos, talvez alguns setores estejam até
mais pobres, mas diante do evidente racismo demonstrado pela
classe dirigente tradicional, Chávez é o único presidente em que
podem acreditar e que vão defender.
DEBAIXO DE CHUVA
SÓ UM DEUS BRUTAL PODERIA
SE VINGAR NAS PESSOAS MAIS POBRES.
JOSÉ VICENTE RANGEL, DEZEMBRO DE 1999
s montanhas da Venezuela se elevam por quase toda a costa
do mar do Caribe, com manchas de argila vermelha por
baixo, matas de um verde forte por cima e cumes que se perdem
entre as nuvens. Da janela do avião, sempre imaginei ser esse o
lugar em que os indígenas se encontraram com Colombo quando este chegou a suas praias em 1498. Naquela época, como
agora, eram escarpadas e inóspitas, úmidas e cálidas – embora,
como se sabe, Colombo realmente tenha ancorado a uns quinhentos quilômetros a leste, na península de Paria, diante de Trinidad.
O avião costuma sobrevoar a costa antes de aterrissar, passando por Naiguatá, Macuto e La Guaira até chegar a Maiquetía e
Catia La Mar, um punhado de pequenos e sujos complexos turísticos, com edifícios altos e dispersos aqui e ali e um par de ruas
entre as montanhas e as praias poluídas. As companhias de aviação costumavam reservar os hotéis do lugar para os viajantes
que passam apenas uma noite, porque ficam mais perto de Caracas – embora alguns viajantes às vezes se queixem de roubo...
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Tive a oportunidade de saborear excelentes peixes em um restaurante na beira da estrada, ao ar livre, suspenso sobre a praia.
Quando o avião chega roncando em terra, aterrissa por sobre
uma minúscula saliência ao pé das montanhas, paralela à costa
e, às vezes, não é possível avistar as favelas penduradas nas
escarpas. Acostumado a vir para cá há trinta anos ou mais, surpreendi-me com a infinidade de barracos que, antes aglomerados entre as colinas e a costa, começavam a subir pelas encostas, até formar uma paisagem urbana quase vertical.
Em princípio, a temporada de chuvas termina no fim de novembro, de modo que, quando tormentas fortes, porém intermitentes,
caíram sobre essa zona costeira, em meados de dezembro de 1999,
ninguém se preocupou muito, acreditando ser a última chuvarada
da estação. As tormentas tropicais e os fenômenos meteorológicos
incontroláveis são comuns no Caribe, freqüentemente causando
importantes danos em certas regiões, mas raras vezes os desastres
regionais chegam a criar uma emergência nacional. Precisamente naquele dia, quarta-feira, 15 de dezembro de 1999, todos os olhares do país convergiam para as cabines eleitorais, onde ocorria o
plebiscito para aprovar ou não a nova Constituição.
Todo o mundo sabia que o “sim” seria majoritário, pois contava com o apoio do popular e carismático Hugo Chávez, o tenente-coronel da reserva eleito presidente no ano anterior. A
única dúvida era a participação, que parecia só poder ser prejudicada pelo mau tempo. O povo já fora convocado a votar cinco
vezes, desde novembro de 1998 e, até em um país que um dia foi
considerado (talvez facilmente demais) apegado às práticas democráticas, um plebiscito cujo resultado era previsível devia
parecer desnecessário. Além do mais, estava chovendo.
Ainda assim, o presidente Chávez convocou eleições e as
pessoas, felizmente, responderam a seu chamado. Em torno de
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71% dos inscritos votaram “sim” e 28%, “não”. Era um bom resultado para o presidente que, além disso, encerrava um ano de
ação intensa, dando a seu governo os instrumentos para dirigir
o país em uma nova direção.
Então o céu veio abaixo. Novas tormentas trouxeram chuvas
fortes que se somaram às águas acumuladas nas semanas anteriores, causando enchentes incontroláveis. Na madrugada de quinta-feira, 16 de dezembro, o monte Ávila, situado ao norte de Caracas, que domina os complexos turísticos costeiros próximos ao
aeroporto, explodiu de uma vez por todas. Em sua encosta norte,
as torrentes de barro e água formaram um maremoto em terra
firme. “Paredes de água de até sete metros de altura varreram seus
inclinados barrancos” – escreveu Phil Gunson para o jornal inglês
The Independent – “arrastando árvores inteiras e rochas do tamanho de um carro.” Ao longo de toda a faixa costeira, desde Macuto
até Catia La Mar, passando pelo aeroporto de Maiquetía, os morros desceram para o mar, trazendo consigo uma quantidade inestimável de pessoas e casas. Em Caracas, as inundações também
causaram morte e destruição em escala sem precedentes.
Milhares de pessoas morreram e dezenas de milhares perderam seus lares. O aeroporto permaneceu fechado durante semanas e o porto de comércio de La Guaira foi totalmente destruído.
“Dezenas de containers eram sacudidos como caixas de papelão
e agora jazem amontoados” – escreveu Gunson. “Alguns flutuavam no mar outros foram saqueados, assim como a maioria das
lojas.” Apesar da grande probabilidade de tempestades naquela
zona, as autoridades haviam permitido que a cidade se estendesse
perigosamente, sem contar com mecanismos de escoamento das
águas, o que agravou a catástrofe natural.
A avalanche de lodo foi descrita como a pior catástrofe natural do século na Venezuela. Um irreverente bispo católico in-
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sinuou que se tratava de um castigo de Deus para o governo; mas
foi repreendido pelo ministro de Relações Exteriores, José Vicente
Rangel, o qual afirmou que só um deus brutal poderia se vingar
nas pessoas mais pobres. Outros lembraram que a Igreja católica, antigamente favorável aos espanhóis, aproveitara-se do terremoto de 1812, nos tempos de Simón Bolívar, para denunciar os
atos dos primeiros líderes da independência.
A Assembléia Nacional, eleita para redigir uma nova constituição e em grande parte composta por seguidores de Chávez,
fortalecera-se com o resultado do plebiscito e, assim, outorgou
ao presidente poderes especiais. Retomando o uniforme de camuflagem e a boina vermelha que vestira oito anos antes para liderar uma rebelião militar contra o governo de então, este encarregou-se das operações de resgate. Ter um ex-militar na direção
do país parecia agora uma vantagem.
Os campos de futebol e os estádios foram transformados em
refúgios provisórios para as vítimas e os terrenos de diferentes
instalações do Exército encheram-se de barracas. Os soldados
providenciaram comida e começaram a construir casas para os
refugiados, em terrenos do Exército. Embora fosse possível conseguir lugar para os refugiados nos espaçosos terrenos do Caracas Country Clube, lugar de lazer da elite venezuelana, Chávez
evitou pôr em perigo a unidade nacional criada em função da
tragédia e não fez pedidos políticos a quem não os aceitaria de
boa vontade.
O número de vítimas mencionadas nos primeiros relatórios foi
alarmantemente elevado; mas, um mês depois da tragédia baixara
para de quinze a vinte mil mortos, além de cerca de cem mil
refugiados. As cifras eram inevitavelmente imprecisas porque,
como na maioria dos países do Terceiro Mundo, na Venezuela
nunca se realizou um censo adequado, nem existe um registro de
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terras apropriado, além de que era impossível contar as vítimas
arrastadas para o mar ou soterradas pela lama.
O que sabemos é que o governo agiu com rapidez e com muito
acerto. Quando os Estados Unidos enviaram dois navios, em
meados de janeiro, com soldados e equipamentos para remoção
de terra, os venezuelanos alegaram que duas ou três escavadeiras
não cairiam mal, mas que as várias centenas de soldados eram
demais. Ninguém disse o que muitos pensavam: como conceber
que um regime que se auto-intitula revolucionário permita que
soldados imperialistas realizem um exercício de desembarque em
praias situadas a apenas meia hora da capital?
O fato é que o terremoto político que estremecera a Venezuela
apenas um ano antes, seguramente causou um impacto mais
duradouro nesta parte do mundo do que a catástrofe de dezembro. Quando Hugo Chávez, um militar radical confesso, chegou
à Presidência, em fevereiro de 1999, obtivera uma maioria considerável e contava com o apoio de um atrofiado Partido Comunista da Venezuela (PCV) e de seis grupos de esquerda mais
importantes de matizes e trajetórias diversas. Um revolucionário
de esquerda pode parecer um conceito anacrônico para os princípios do século 21, mas é exatamente o que Chávez é: um soldado no estilo de Cromwell, que aspira a reconstruir seu país de
acordo com um modelo totalmente novo.
A vitória eleitoral de Chávez anunciava uma nova era na
história da América Latina. Ao entrar no Palácio de Miraflores
com a promessa de acabar com a corrupção arraigada durante
décadas passadas, esboçava um projeto alternativo para a
Venezuela – e para a América Latina – que rompia com as políticas econômicas neoliberais exportadas pelos Estados Unidos.
Garantiria seu novo regime convocando a eleição de uma Assembléia Nacional Constituinte, que acabaria com o velho Con-
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gresso e redigiria uma Constituição nova e mais moderna.
Buscaria associar os países vizinhos a uma nova interpretação
do 19o sonho bolivariano: a criação de uma América Latina independente e “original”, que unisse suas forças contra o mundo exterior.
Quanto à política interna, o governo de Chávez concentrar-seia em projetos agroindustriais e na produção de alimentos, assim
como no desenvolvimento endógeno do país, com que a esquerda nacionalista latino-americana sonhava há quase meio século.
Em vez de confiar nas forças do mercado e da globalização, o
Estado buscaria promover o desenvolvimento interno do país para
benefício da grande maioria de seu povo, utilizando seus próprios recursos e os mecanismos de planejamento que fossem necessários.
Em questão de um ano, Chávez e seu programa receberam um
apoio maciço em cinco eleições sucessivas. No processo, fechou
o Congresso e a Corte Suprema, aboliu a Constituição de 1961 e
presenciou o suicídio dos dois principais partidos políticos tradicionais. Ao mesmo tempo, fundou a V República, redesenhando
pela primeira vez o modelo institucional vigente desde 1830,
suscitou a redação de uma nova constituição, outorgou novos
direitos aos povos indígenas do país; reformulou o sistema judiciário e instaurou uma Assembléia Nacional de uma só câmara.
A nova redação da Constituição é menos importante do que
parece, embora entretenha os constitucionalistas. Os governos
latino-americanos regularmente procuram dar legitimidade a seus
regimes, convocando uma Assembléia Constituinte para que redija
uma nova constituição. Na Venezuela, a Constituição não mudara desde 1961, embora o assunto fosse debatido nos círculos políticos por mais de uma década. A versão de 1999 foi fruto de um
debate que durou três meses e, sem dúvida, terá defeitos em alguns
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aspectos, como resultado da precipitação. No entanto, quase todo
mundo ficou impressionado com a seriedade do trabalho realizado. Certos artigos dão peso à descentralização política e reforçam
os mecanismos de controle no âmbito local, embora o sentido geral
do texto aponte para um sistema mais presidencialista. Também
reforça a idéia de que Petróleos da Venezuela S. A (Pdvsa)., a companhia petrolífera nacional, deve permanecer em mãos do Estado,
o que indubitavelmente é um anseio partilhado pela maioria dos
venezuelanos.
Em boa medida, Chávez convenceu a Assembléia Nacional
Constituinte a mudar o nome do país, para chamá-lo de “República Bolivariana da Venezuela”, como uma homenagem ao mais
ilustre antepassado venezuelano e libertador da América Latina
e como demonstração de que sua política externa pretende se
transformar em modelo para o restante do continente. Também
começou a examinar diferentes formas de integração dos militares à sociedade civil.
A reorganização da superestrutura política do país foi vista
como um requisito prévio à reativação de uma economia que
ainda permanece no lamentável estado em que se encontrava
quando Chávez chegou ao poder. O desemprego ultrapassa os
20% e a inflação, os 30%, enquanto o investimento estrangeiro
está paralisado. O presidente Chávez pretende se afastar do que
costumava chamar de neoliberalismo selvagem, imposto pelo
Fundo Monetário Internacional.
Embora Chávez ainda não tenha sido capaz de encaminhar o
país nessa direção, uma luz brilha na penumbra econômica atual. Conseguiu (com alguma ajuda de seus parceiros da Opep)
aumentar o preço do barril de óleo cru em três etapas, levandoo de nove a 27 dólares. Conseqüentemente, ainda que com as
inundações de dezembro, mantém certa margem de manobra.
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Chávez deu também alguns sinais altissonantes para que as
pessoas saibam de que lado está. Durante seu primeiro ano de
governo, em outubro de 1999, foi à China, onde assegurou ao
presidente chinês, diante do maosoléu de Mao Tse-Tung, que a
Venezuela estava começando a se levantar, tal como a China se
levantara 50 anos antes, sob a liderança do Grande Timoneiro.
Em novembro, durante uma visita oficial a Cuba, jogou beisebol,
em Havana, contra uma equipe dirigida por Fidel Castro e explicou que os povos cubano e venezuelano dançavam no mesmo
compasso e se banhavam no “mesmo mar de felicidade”. Também
convidou estadistas do mundo, do porte de Sadam Hussein,
Muamar Kadhafi e Mohamed Khatami, para participar da conferência de países exportadores de petróleo, em Caracas, realizada no ano 2000, com o objetivo de traçar uma estratégia conjunta
para o futuro.
Esses êxitos podem parecer obra de um excêntrico, de um D.
Quixote que desafia os moinhos de vento do mundo. No entanto, Chávez é um verdadeiro revolucionário que busca traçar um
novo programa para a América Latina. Alguém que quer tornar
realidade o mundo multipolar, de que falam, freqüentemente, os
franceses e os chineses, e demonstrar que existe alternativa para
o consenso econômico que causou um impacto tão devastador na
parte mais pobre da população do Terceiro Mundo. Sua mensagem começa a ser ouvida em outros países da América Latina,
especialmente no Equador, onde uma junta cívico-militar radical tomou o poder durante cinco minutos em janeiro do ano 2000
para depois cair, sob a forte pressão dos Estados Unidos.
Chávez chegou a ser uma pedra no caminho dos imperialistas. Impediu os aviões estadunidenses de sobrevoar o espaço
aéreo venezuelano durante sua cansativa perseguição aos
narcotraficantes colombianos. Recentemente, a Força Aérea
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estadunidense teve de abandonar suas bases no que foi outrora
a zona do canal do Panamá, como resultado dos compromissos
assumidos no tratado assinado há mais de vinte anos com o
falecido general Omar Torrijos. Esse militar esquerdista, que era
o comandante da Guarda Nacional panamenha, sempre foi um
modelo para Chávez. Os militares estadunidenses tiveram de se
contentar com suas outras posições no Caribe, inclusive em
Curaçao, nas Antilhas Holandesas, uma ilha muito próxima das
costas venezuelanas.
A negativa venezuelana à solicitação de sobrevôo estadunidense causou grande irritação. Em um momento em que os Estados Unidos estavam a ponto de conceder à Colômbia 1,6 bilhões
de dólares como ajuda militar, a Venezuela dava sinais evidentes de que desaprovava a política estadunidense na região. No
contexto das negociações de paz que o governo colombiano
mantém com o exército guerrilheiro de Manuel Marulanda – o
veterano líder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia,
Farc – os estadunidenses apóiam o governo; Chávez, por sua vez,
acredita que o interesse da Venezuela é a consolidação do processo de paz na Colômbia e aposta nas negociações entre as duas
partes.
Nas últimas décadas de um século 20 de que poucos sentem
saudades, um comportamento tão “irresponsável” por parte de um
governo latino-americano – como na Guatemala, em Cuba, na
República Dominicana e no Panamá, para não falar da Nicarágua – teria merecido uma invasão militar estadunidense, um
esquadrão da morte, uma equipe de contra-insurgência, ou pelo
menos uma conspiração para desestabilizar a economia. No
entanto, até o momento nada no gênero aconteceu na Venezuela,
ainda que ignoremos que planos podem estar sendo tramados nos
meandros do poder, em Washington. Com o fim da guerra fria,
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tornou-se mais difícil para os estadunidenses chamar seus críticos latino-americanos de títeres de Moscou.
O presidente Chávez é um especialista em gestos surpreendentes e em retórica floreada, possuindo um grande senso dramático.
Em janeiro de 2000, quando o encontrei pela primeira vez, em La
Casona, a residência presidencial que suas tropas rebeldes tentaram
tomar em 1992, estava em pé no meio do jardim, dando-me as
costas, contemplando o pequeno bosque de bambu e de palmeiras
que limita a grama. Todo o mundo sabe que aparência tem porque
aparece na televisão quase todos os dias, pronunciando discursos
improvisados, recebendo visitas oficiais no Palácio de Miraflores, ou
atravessando, sorridente, um bairro inundado. As pessoas estão
familiarizadas com sua cara de pugilista, seus lábios generosos, seu
sorriso radiante e com esse tique de asmático, na boca, quase imperceptível, quando aspira ou procura uma palavra em meio ao fluxo
retórico. Sempre parece decidido, irradiando confiança e otimismo.
Mas só, no jardim, parecia mais vulnerável, como uma escultura
monocromática e ambígua, vestida de cinza, no meio de um painel
verde. Permaneceu absolutamente imóvel durante vários minutos,
como que juntando forças para enfrentar o novo dia ou houvesse esquecido a chegada de um estranho. Finalmente voltou-se e atravessou o gramado para cumprimentar-me.
Por um momento pensei em Yo el Supremo, o magnífico conto
do grande escritor paraguaio Augusto Roa Bastos, sobre José
Gaspar Rodríguez de Francia, o místico e robespierriano presidente do Paraguai do começo do século 19, que isolou seu país,
durante 30 anos, das correntes globalizadoras da época para
assentar as sólidas bases de seu desenvolvimento econômico.
Chávez também tem essa tendência messiânica.
A cálida umidade da manhã, as cores exuberantes do jardim
tropical, as colunas do portal de um edifício que é a réplica de
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uma casa de fazenda colonial do século 18, tudo conspirava para
criar a ilusão de uma distorção no tempo. Nossa longa conversa
– em boa parte dedicada a seu plano para reverter o deslocamento
das pessoas do campo para os bairros urbanos – parecia ter algo
de atemporal, pois se tratava de um assunto com o qual presidentes e vice-reis coloniais vêm lidando há séculos.
Eu sabia que a catástrofe de dezembro tornara evidente a
urgência com que devia ser executado o programa do presidente, uma vez que, além do mais, lhe dava a oportunidade de iniciar seu audacioso plano de deslocamento de centenas de milhares de pessoas das abarrotadas cidades do Norte da Venezuela
para novos centros econômicos, situados em zonas menos povoadas, do Sul e do Leste. Nessas zonas desertas pretendia-se desenvolver projetos agroindustriais integrados, capazes de captar
gente das favelas para começar uma nova vida no campo. Enquanto os primeiros relatórios indicavam que a maioria dos sobreviventes se apegava ferrenhamente a seus barracos destruídos,
outros indicadores sugeriam que havia gente entusiasmada com
a idéia de receber um pedaço de terra e um novo lar – além de
contar com a possibilidade de um novo começo. Eu estava ansioso por lhe perguntar onde estava a verdade.
Políticos e planejadores urbanos têm discutido durante anos
sobre o que fazer com os gigantescos conglomerados urbanos da
América Latina. As antigas capitais abrigam milhões de pessoas,
para as quais há poucas soluções habitacionais reais, pouca comida e quase nenhuma oportunidade de trabalho. Transferir as
pessoas das cidades para o campo é uma tarefa difícil, na
contracorrente da experiência histórica e do que hoje é considerado possível, já que poucos aspiram à vida de camponês.
Durante as entrevistas, Chávez oscila entre o conversador de
sobremesa e o catedrático universitário; por vezes, conta longas
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histórias e, às vezes, analisa problemas da atualidade. Lembreime de que José Vicente Rangel dissera-me que era um “chefe de
Estado muito diferente dos outros. Enquanto, habitualmente, estes
se expressam de forma lacônica e desatenta, Chávez faz exatamente o contrário: aceita o desafio em relação a qualquer assunto,
tem real prazer com o confronto, é extrovertido e excelente
comunicador e gosta da polêmica a ponto de provocá-la”. Então,
perguntei-me se seria um jornalista suficientemente provocador.
Rangel também me dissera que Chávez era um homem muito mais
intelectual do que as pessoas pensavam, dotado de uma grande
criatividade. “É um romântico pragmático, uma mescla de paixão e de cálculo.”
Hoje, Chávez está de ótimo humor e, para meu grande prazer, mergulha na história da Venezuela do século 20, para explicar
como a exploração do petróleo nos anos de 1920 provocou o
colapso da economia rural, acabando com “o modelo equilibrado e harmônico” da Venezuela de antigamente, quanto o cultivo do café, do açúcar e do cacau caminhava junto com o desenvolvimento industrial das cidades. “O governo simplesmente
abandonou o campo e, então, começou aquilo que os livros de
História chamam de êxodo rural”. Chávez assinala que “isso não
aconteceu porque os camponeses queiram sair do campo, mas
porque as zonas rurais foram abandonadas pelo governo”.
Como ilustração, ele usa um exemplo de sua própria experiência: “Foi algo que sempre senti, desde que eu era menino.
Nunca quis deixar a minha terra, mas fui obrigado: uma força
centrífuga levou-me para a cidade”. O objetivo de suas políticas,
afirma, é “fazer com essa força aja em sentido contrário”.
Quando terminou a 6a série no vilarejo de Sabaneta, viu-se
obrigado a partir. “Se eu quisesse continuar estudando, o que fiz,
teria de ir para Barinas, a capital do Estado.” Mas, no momento de
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dar continuidade aos seus estudos, em Barinas não havia universidade. “Todos os meus irmãos foram obrigados a ir para Mérida,
para cursar a universidade e eu, para Caracas, para cursar a Academia Militar. Aqueles que ficavam, paravam no tempo.”
As mesmas forças que prejudicavam a educação também
atuavam com relação à assistência médica. “Quem precisava de
atendimento médico tinha que ir a Barquisimeto ou a Caracas. Até
os esportistas tinham de fazer isso. Os camponeses tiveram de
migrar quando perderam suas terras para as grandes fazendas. O
êxodo foi em massa.”
Os militares estavam submetidos à mesma força centrífuga.
Quando estava no Exército, diz, “sempre havia problemas com os
rapazes que vinham das zonas rurais para fazer o serviço militar obrigatório. Eram levados para a cidade, para os quartéis de
Caracas e, obviamente, quando viam a cidade – nos dias de folga – e viam tudo o que a cidade oferecia, não queriam regressar
ao campo. E, mais, se regressassem, não teriam terra nem trabalho. Nada. Apenas um lar que, geralmente, era apenas um casebre. O serviço militar foi outro pólo de atração das pessoas em
direção às cidades”.
Chávez acrescenta que os venezuelanos deslocaram-se durante anos para a estreita faixa costeira da parte central do Norte do
país. “Hoje, 80% da população está concentrada ali”, diz. A única
coisa que deseja fazer, alega, é inverter a tendência. O objetivo
central de sua revolução “é ocupar o espaço geográfico do país
de forma mais harmoniosa e equilibrada”.
A tragédia de dezembro não tinha nada de novo, além de sua
amplitude. “Morrem cem pessoas por ano quando chegam as
chuvas, e agora foram quinze mil. Estamos alertando o povo
sobre isso há anos.” A região superpovoada do Norte, explica, não
apenas é uma “zona sísmica de características preocupantes”,
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mas, além disso, “ali se acumulou um enorme número de pessoas
– e de crianças – nos barracos” que cobrem os morros. “Em Caracas, deve ter havido milhares de vítimas nos últimos vinte ou
trinta anos e, ainda assim, nenhum governo pensou em fazer um
plano de desenvolvimento integral para o país.”
Essa é a idéia básica de Chávez, à qual dedicou muito tempo
e reflexão.
“Já tínhamos um projeto para o país, relacionado aos problemas sociais, políticos e economicos. Fora debatido na prisão, e até
antes da prisão. Nossa idéia básica era descentralizar o país e
dispersar as pessoas para reverter o fluxo migratório – e isso é o
que estamos tentando pôr em prática atualmente. A idéia consiste
em reforçar os ‘caminhos da migração inversa’ para que ajude a
justificar e a estimular a estratégia de descentralização. Obviamente, isso não é fácil. Não se pode chegar em um bairro e dizer
às pessoas que devem mudar-se para o Sul, e depois deixar que
elas resolvam os problemas, e sobrevivam como puderem. Não,
não, não, cabe ao Estado estabelecer esses ‘caminhos da migração inversa’, que, na realidade, são iguais aos que, no princípio,
motivaram a migração centralizadora.”
Entusiasmado com seu assunto predileto, pediu que nos trouxessem um mapa em que firmou decididamente sem lápis: “Vamos simplesmente reverter tudo. Haverá educação lá, haverá
atendimento médico lá, haverá esporte lá, haverá terra para ser
trabalhada lá”.
“Os governos anteriores” – disse-me – “fizeram esforços nesse
sentido. Quando eu era capitão do Exército, no Sul, na época do
presidente Jaime Lusinchi, implantou-se um assentamento no sul
do rio Arauca, próximo da fronteira com a Colômbia, que recebeu o nome de “Pueblo Bolívar”. Muitos de nós afirmamos que
nunca iria funcionar. Fundaram o vilarejo às margens do Arauca,
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em pleno verão, e levaram gente de todos os lugares. Quase que
o obrigaram a ir, foram pagos para viver lá. Mas era um lugar
artificial: não havia nenhum tipo de atividade econômica. Veja,
se aquilo era o assentamento, e se tudo em volta era latifúndio,
onde as pessoas iriam trabalhar? No inverno, as estradas ficam
inundadas; as pessoas não tinham gado, nem terras, nem acesso ao crédito... Uma escola foi construída, mas não havia professor. Pouco a pouco, as pessoas começaram a ir embora, em busca de uma vida decente em outro lugar.”
A solução proposta pelo governo do presidente Chávez, esperando que tenha mais êxito, consiste em criar centros integrados de desenvolvimento.
“O ‘Projeto País, Comunidades Agroindustriais Sustentáveis’
é um dos projetos que estamos executando atualmente. Começamos há um ano, mas a catástrofe de dezembro deu-nos a oportunidade de fazer algo mais ambicioso. Para ser honesto, no ano
passado, poucas pessoas queriam deixar as cidades. Então eu lhes
disse que tinham razão para duvidar, pois haviam sido traídas
muitas vezes no passado. Então, no primeiro ano, o governo
começou a trabalhar com algumas experiências-piloto em várias regiões do país, algumas muito próximas de Caracas. Precisávamos de terras onde pudéssemos construir casas e estabelecer
pequenas propriedades rurais – um sítio aqui, uma casa ali, uma
oficina ou uma microempresa mais adiante, um lugar para as
pessoas trabalharem, uma escola para as crianças, um hospital
com médicos e medicamentos. Queríamos um lugar onde pudéssemos reunir tudo isso e onde as pessoas pudessem criar raízes...”.
Então, veio a catástrofe de dezembro: “Agora, temos pelo
menos cem mil pessoas que a natureza obrigou que se mudassem.
Desta vez, sabem que não se trata de palavrório. Perceberam que,
na verdade, estavam correndo um grande risco. Viveram na pró-
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pria pele a experiência da morte, tiveram que enterrar seus parentes...”.
O governo acelerou os planos existentes, que Chávez descreve
durante nossa conversa: “Ontem, estivemos em Cumaná, entregando casas. Todas as praias da região estão poluídas, cheias de
lixo; estamos elaborando um plano para recuperá-las. Destinamos 10 milhões de dólares para limpar a costa. Essa região é
muito mais adequada do que a costa próxima a Caracas para
abrigar uma população numerosa. Há muito mais espaço entre a
montanha e o mar. É boa para a pesca, para o turismo e para a
agricultura”.
Um dos locais identificados é a vasta região da represa hidrelétrica de Guri, ao sul do Orenoco. Ali existem casas abandonadas pelos trabalhadores que construíram essa grande barragem
sobre o rio Caroni. “Fui falar com as vítimas das inundações,
acampadas no estádio de Caracas. Eram dez mil e eu lhes falei de
Guri. Tive de começar explicando onde fica. Dois deles – que
talvez estivessem bêbados – disseram imediatamente: ‘vou para
Guri’. Depois de duas semanas de campanha promocional, com
fotografias e vídeos, um grupo foi dar uma olhada. Disse-lhes que
fossem, que dessem uma olhada e que depois voltassem. Não
precisavam ficar se não quisessem”.
A visita foi um êxito. “Criamos ali uma comunidade de cerca de 2 mil pessoas. Eram tantas as pessoas que queriam ir que
tivemos de pisar no freio. Depois de ter vivido tragédias pessoais,
essa gente está pintando suas casas e remodelando os velhos
apartamentos que pertenceram aos trabalhadores que construíram a barragem. Trabalham lá e estão até fabricando seus próprios móveis com a madeira do lugar, pois essa região tem muitos recursos. As crianças agora estão estudando na escola
secundária que já existia. Como na maioria das escolas da região,
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havia salas de aula vazias.” Construíram-se oficinas e o governo está se encarregando de conseguir terras. “Em torno dessas
casas, há dez mil hectares propícios para a agricultura e para a
pesca, já que há um enorme reservatório, formado pela barragem.
Ali se pode fazer turismo de aventura, aliás, qualquer tipo de
turismo, pois há cascatas muito próximas e há também a Gran
Sabana. Há espaço em quantidade e é muito saudável.”
Todos são planos de emergência, mas se encaixam nos projetos maiores que Chávez tem para o país. Ele sabe como é importante que as coisas dêem certo, já que Caracas é um barril de
pólvora que ainda pode explodir a qualquer momento, se algo der
errado. A Venezuela viveu em meio a uma crise permanente:
modelo exemplar de certo tipo de democracia na América Latina durante três décadas e, graças a seus poços de petróleo, um dos
países mais ricos do continente, a distribuição desigual de suas
riquezas transformou-a em um dos países mais explosivos. O
intenso êxodo do campo para a cidade, na década de 1970, somado à estagnação econômica e ao desemprego dos anos de
1980, levaram à explosão social dos anos de 1990.
Quando fui pela primeira vez, à Venezuela, há muitos anos,
Caracas era uma pequena cidade, cercada de morros, em cujas
encostas havia barracos de aspecto relativamente amigável. À
noite, as luzes dos pobres brilhavam como velas. A riqueza e o
luxo do centro da cidade e a pobreza e a miséria dos barracos era
uma dramática visão de uma das mais célebres características da
América Latina: a desigualdade de renda e de oportunidades,
baseada em atitudes racistas muito arraigadas, mas nunca admitidas.
A classe média já não é tão numerosa como foi no passado
(um milhão de pessoas pagam conta de luz em Caracas) e aqueles que não foram sufocados pela crise econômica são pessoas
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informais e amistosas, que têm um nível de vida compatível com
os padrões internacionais. Almoçando em um sábado em uma
das cervejarias de El Rosal ou de Sabana Grande, qualquer um
poderia pensar que está em Barcelona, Turim ou Frankfurt.
Visitar o Centro Sambil, um novo centro comercial, é como estar
em qualquer cidade do Meio Oeste estadunidense. Mesmo no
momento mais profundo de uma crise econômica e política prolongada, esse grupo social continua vivendo extraordinariamente bem, importando sua alimentação e seus bens de consumo de todas as partes do mundo, principalmente dos Estados
Unidos, e preferindo o importado ao nacional. Um país que
antes exportava chocolate e agora importa tabletes da marca
Hershey.
Nos anos mais recentes, a situação mudou, e os perigos inerentes à vida urbana tornaram-se cada vez mais evidentes. Hoje
em dia, Caracas é uma metrópole espetacular, no estilo estadunidense. O visitante adentra uma selva urbana de grandes avenidas e de edifícios de concreto, de vias para pedestres e centros
comerciais. Uma selva de gigantescos arranha-céus de todos os
estilos arquitetônicos que reflete quase cinco décadas de desenvolvimento urbano desenfreado.
Alguns dos bairros pobres foram reurbanizados; outros, de
longe, agora têm o encanto aparente de um vilarejo italiano na
colina. No entanto, mais no alto e mais longe, nas encostas do Sul
e do Leste da cidade, barracos de madeira ou de alvenaria continuam surgindo, formando em novas áreas mais e mais subúrbios
miseráveis, representando uma ameaça permanente, e aparentemente impossível de erradicar, para a boa vida da parte baixa do
vale.
Houve uma época em que os barracos localizados nos morros podiam utilizar sua altura para lembrar aos ricos que existi-
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am, mas agora, com a construção de arranha-céus, a simbologia
foi invertida. Os grandes e altos edifícios em plena cidade podem
ostentar a riqueza da sociedade de consumo ante as pequenas
colinas da miséria, enquanto os pobres foram expulsos para ainda
mais longe do centro.
Como muitas outras grandes cidades da América Latina,
Caracas caracteriza-se pela total ausência de lei e de ordem. É
uma cidade em estado de sítio, onde cada centro comercial está
protegido por grades de ferro, cada rua residencial bloqueada por
uma guarita de vigilância e uma barreira, e cada edifício de
apartamentos protegido por guardas armados. Os ricos vivem
atrás de paredes altas e têm sua própria guarda particular; os
jovens pobres sobrevivem organizando seus próprios grupos
armados. A classe média, presa entre ambos, vive temendo, constantemente, por seus bens e por sua vida.
Há mais de uma década, em fevereiro de 1989, o pior de todos os pesadelos tornou-se realidade. Os pobres dos morros próximos desceram, saqueando indiscriminadamente a cidade, durante uma semana. Centenas de pessoas morreram durante o
período seguinte, de feroz repressão militar, como se fosse para
ninguém esquecer quão fragilizada estava a capacidade de tolerância mútua entre as classes. O acontecimento, que em seguida
foi denominado Caracazo, teve uma causa simples: o preço da
gasolina aumentou, o preço da passagem de ônibus aumentou e
o descontentamento acumulado transformou-se em rebelião
ativa. A polícia estava em greve naquele momento, reclamando
aumento de salário, e não estava preparada para conter os distúrbios urbanos. Quando a televisão começou a mostrar as pessoas saqueando em Caracas e a polícia imóvel, deixando que
aquilo ocorresse, os moradores de outras cidades interpretaram
o fato como um chamado para aderir ao saque. A partir de en-
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tão, e mais de uma década depois desses dias extraordinários e
aterradores, ninguém mais se sente “a salvo” em Caracas.
O ancien régime, assim como o da União Soviética em sua época, experimentava às cegas novos modelos, e a revolta urbana de
fevereiro de 1989 foi provocada em parte pelo processo de reformas.
Desde o final dos anos de 1950, a Venezuela possuía todas as características de um estado de partido único, não muito diferente dos
países comunistas da Europa do Leste. Sua peculiaridade, compartilhada com a vizinha Colômbia, era de haver partidos, em lugar de
um, com possibilidade de controlar o Estado, alternando-se no poder.
A Ação Democrática (AD), o maior e mais importante partido, predominava e exercia a hegemonia, mas, para salvar as aparências
“democráticas”, permitia-se que um partido democrata-cristão alternativo, o Copei (Comitê Pró-Eleições Independentes), ganhasse as
eleições de vez em quando. Os dois movimentos políticos consagraram esse acordo cínico no chamado Pacto de Punto Fijo, assinado
em 1958, com o que conseguiram excluir do poder os demais partidos, tanto de esquerda, quanto de direita.
A AD e o Copei eram, ambos, partidos de massas. As pessoas
se filiavam ao partido para conseguir trabalho e para mantê-lo.
Os líderes do partido, e os caciques dos sindicatos que lhes eram
subordinados, acostumaram-se cada vez mais às vantagens do
poder, principalmente tirando vantagens ilícitas das florescentes
empresas do Estado, criadas graças aos recursos do petróleo. A
corrupção, em escala quase inimaginável, converteu-se em mal
endêmico, que piorou com o passar dos anos, em particular nas
fileiras da AD, ainda que também no setor comercial e bancário.
A corrupção e o consumismo notório da elite política da
Venezuela tornaram-se famosos em todo o continente, provocando descontentamento nas camadas mais pobres da população e
um desejo insaciável de desfora.
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No auge dos anos de 1970, parecia que tudo ia bem. O presidente Carlos Andrés Pérez, da AD, um arquétipo de líder do
Terceiro Mundo com objetivo de pilhar o Estado, governou entre 1974 e 1979, aplicando o intervencionismo estatal que estava na moda naquela época. A Shell, a Exxon e outras companhias
petrolíferas estrangeiras foram nacionalizadas e o dinheiro do
Estado foi investido no desenvolvimento da indústria, para satisfação das esquerdas nacionalistas do mundo inteiro. O fluxo
de capitais alcançou tamanha magnitude que ainda hoje seus
frutos são perceptíveis, principalmente na região de Guayana:
indústria de mineração, fundições, indústrias de alumínio e siderurgia, complexos industrias e a gigantesca usina hidrelétrica de
Guri, sobre o rio Caroni, capaz de abastecer a Venezuela inteira
– e parte do Norte do Brasil.
Não obstante, com o passar dos anos, o setor estatal começou a entrar em decadência. Terminou sendo ineficiente e pouco competitivo, gigantesco e corrupto. Por falta de novos investimentos, as grandes empresas industriais começaram a
deteriorar-se. Os projetos iniciados eram rapidamente abandonados. Como no resto da América Latina, seguindo o conselho dos
banqueiros internacionais ávidos de lucros, o país acumulou uma
dívida externa imensa que fez recair sobre as gerações futuras o
custo de vida brutal de hoje. No transcorrer dos anos de 1980, o
país caiu na espiral do desastre econômico e político.
Finalmente, em 1989, um plano neoliberal de reestruturação
da economia foi posto em prática. De volta ao poder, com a
missão de reviver o ambiente dos velhos tempos de sua presidência anterior, o presidente Pérez mudou surpreendentemente de
tática. Sem aviso prévio, seu governo mergulhou a economia nas
águas turbulentas e perigosas do mercado livre, do liberalismo
econômico e da concorrência internacional.
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O novo programa econômico não tardou em solapar as bases
do sistema político e despertou a resistência das ruas e dos partidos dominantes. Os povos da América Latina, apesar da opulenta fachada das classes médias urbanas, estão muito mais próximos dos limites da pobreza do que seus semelhantes da Europa
do Leste. Os caciques dos partidos tradicionais, por razões óbvias, opunham-se firmemente a essa perestroiska em estilo
venezuelano. Além de que já era bastante difícil fazer com que
o país fosse mais competitivo, era preciso desmantelar uma imensa estrutura de benefícios adquiridos.
Em fevereiro de 1992, três anos depois do Caracazo, o tenente-coronel Chávez fez sua estrondosa aparição. Um oficial do
Exército de 38 anos prometia derrotar os políticos corruptos,
melhorar as condições de vida dos pobres e dar um novo rumo
ao país. Já naquela época comandava um regimento de páraquedistas em Maracay, a uma hora de Caracas por terra, estando bem localizado para desafiar o ancien régime, fomentando um
golpe de Estado.
Embora vitoriosa em outras partes do país, a tentativa de
tomar o palácio presidencial em Caracas fracassou. Chávez rendeu-se e apareceu na televisão para incitar seus cúmplices a depor
as armas. “Companheiros” – disse – “desafortunadamente, no
momento, os objetivos que havíamos fixado não foram alcançados na capital”, embora talvez, insinuou, tivessem melhor sorte
da próxima vez. Depois pediu que depusessem as armas.
A expressão “no momento” cativou a imaginação popular. Os
propósitos da rebelião não haviam sido alcançados, mas a maioria das pessoas recebeu essa mensagem com otimismo, como um
sinal de que Chávez voltaria à luta no futuro. “No momento”
converteu-se em seu lema pessoal e a boina vermelha de páraquedista transformou-se em seu logotipo. José Vicente Rangel
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tocou no assunto para afirmar que estava convencido de que
Chávez sempre seria um fervoroso defensor da liberdade de
imprensa.
Ele sabe que a palavra é muito mais poderosa do que as armas. Fracassou quando usou as armas, e triunfou quando teve
acesso aos meios de comunicação. Passou dez anos preparando
um golpe de Estado que fracassou; o único minuto de televisão
que lhe deram bastou para que conquistasse o país.
O efeito de sua intervenção, em um momento de desintegração nacional, da noite para o dia, converteu-o em um herói celebrado em poemas e canções. Em um país onde as seitas evangélicas cresceram exponencialmente durante os últimos vinte
anos, a ponto de chegar a desafiar o poder, e onde é grande a
influência da Igreja católica, o aparecimento do tenente-coronel
Chávez no cenário político foi acolhido como o regresso do
Messias.
Chávez passou dois anos na prisão, mas os boatos sobre o
projeto revolucionário em que estaria trabalhando com seus
colegas oficiais espalharam-se. Depois de ressuscitar três heróis
sul-americanos do século 19 – Simón Bolívar, Simón Rodríguez,
mestre revolucionário de Bolívar, e Ezequiel Zamora, líder dos
camponeses contra a oligarquia latifundiária durante a Guerra
Federal das décadas de 1840 e 1850 – Chávez começou a esboçar um nacionalismo revolucionário de caráter popular. Do país
que estivera profundamente mergulhado na cultura e na política estadunidenses, lançou um feroz contra-ataque contra o programa de globalização imposto ao mundo pelos Estados Unidos
depois do fim da guerra fria. Em pouco tempo, estava em primeiro
lugar nas pesquisas de opinião.
Chávez é um comunicador magistral. Fala todo domingo pela
manhã, em seu próprio programa de rádio, e todo o mundo co-
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nhece seu tom pedagógico. Fala e ouve como um professor que
decifra as perguntas implícitas e ao mesmo tempo as devolve ao
interrogador. Filho de dois professores, o mundo do ensino lhe
é familiar, e não é por acaso que Simón Rodríguez, que elaborou
um programa radical de educação destinado aos pobres, aos
índios e aos negros, converteu-se em um de seus heróis do passado. Não podemos superestimar o impacto que seus programas
têm nos maiores e mais pobres contingentes da população
venezuelana.
Na televisão, freqüentemente aparece falando para um público convidado, sentado diante dele. De repente, vira-se, como que
se dirigindo a outra câmara, e fala ao verdadeiro púbico, que está
lá fora, nas zonas rurais e nos bairros pobres. Suas apresentações
são sempre eletrizantes, pois fala como se estivesse em permanente comunhão com sua gente, o povo que entende o que ele
está tentando dizer e fazer.
A classe média abastada de Caracas e um grande número de
colunistas hostis queixam-se de sua linguagem simples e rústica, reclamando de seu tom monótono e provinciano. Não conseguem entender que ele fala com um povo com quem mantém
uma relação íntima, e que gosta do que faz, além de estar na
expectativa de que algo vai acontecer, de que algo será feito e de
que as coisas vão mudar. Transmite esse entusiasmo de uma
forma que a classe média é incapaz de entender porque seus
interesses são outros. Ao longo de seu primeiro ano de governo,
a velha e corrupta elite política e cultural, que emergiu graças aos
petrodólares, fugiu apavorada e horrorizada, como que hipnotizada por esse oficial messiânico com cujos interesses e preocupações não compartilhava.
Quem apóia Chávez é a fração empobrecida e politicamente
desarticulada da sociedade, nos bairros de Caracas e nas vastas
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regiões esquecidas do interior do país. Ele fala com essa gente
todos os dias, com palavras que ela entende, com a linguagem
vibrante e freqüentemente bíblica do pregador evangélico. Deus
e o diabo, o bem e o mal, a dor e o amor são algumas das combinações que costuma utilizar. Afinal, a grande massa do povo
está com Chávez, assim como esteve, em outros países da América Latina e em outros tempos, com Perón, com Velasco, Torrijos,
Allende e Fidel.
PRIMEIRA PARTE
PREPARANDO-SE PARA O PODER
NOVEMBRO DE 1999
1. JOGO DE BEISEBOL EM HAVANA
EM NOME DE CUBA E DA VENEZUELA, FAÇO UM CHAMADO À UNIDADE
DE NOSSOS DOIS POVOS, E DAS REVOLUÇÕES QUE AMBOS DIRIGIMOS.
BOLÍVAR E MARTÍ, UM PAÍS UNIDO!
HUGO CHÁVEZ A FIDEL CASTRO – HAVANA, NOVEMBRO DE 1999.
m uma noite quente de novembro de 1999, o comandante
Chávez, com 43 anos de idade, entra correndo no campo do
estádio latino-americano de Havana, seguido de sua equipe. A seu
lado está o comandante Fidel Castro, de 73 anos de idade, capitão da equipe cubana. Chávez, o lançador que abre pela
Venezuela, veste uniforme laranja, azul e vermelho vivo. A seu
lado está sua esposa Marisabel, uma formosa mulher loura com
um sorriso deslumbrante. Fidel veste um abrigo azul e usa uma
boina vermelha; acompanham-no seu vice-presidente, Carlos
Lage, e seu ministro de Relações Exteriores, Felipe Pérez Roque.
Ambos usam o uniforme cubano.
O evento da noite é uma partida amistosa, destinada a estreitar
os já estreitos laços que se estabeleceram entre os dois comandantes. Previamente ficou estabelecido que os jogadores seriam
veteranos de mais de quarenta anos, embora Fidel tenha avisado que preparava “uma pequena surpresa”. Para os milhares de
espectadores que foram ao estádio de Havana – e para os milhões
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de telespectadores da América Latina – tratava-se de um encontro
esportivo histórico entre dois gigantes da política. Fidel Castro é
o mais velho e famoso herói revolucionário latino-americano do
século 20. Hugo Chávez é visto como o jovem novo da quadra,
que tem tudo pela frente, um militar radical da reserva cuja retórica antiimperialista faz eco à de Fidel. Seus planos para a
Venezuela e para a América Latina são tão ambiciosos como o
foram em sua época os do líder cubano.
Por um acidente histórico, o beisebol, que é o esporte favorito dos dois presidentes e o esporte nacional de seus dois países,
é também o jogo preferido nos Estados Unidos, a grande potência imperial da região e o campeão do neoliberalismo contra o
qual os dois presidentes empregaram sua retórica. Os marines
estadunidenses ensinaram beisebol aos cubanos durante sua
longa ocupação da ilha, enquanto os estadunidenses que desenvolveram a indústria do petróleo no lago de Maracaibo e seus
arredores fizeram o mesmo com os venezuelanos.
Ironicamente, Che Guevara costumava afirmar que a revolução cubana jamais iria longe na América Latina se os cubanos não
aprendessem a jogar futebol, enquanto Henry Kissinger, de origem alemã, acreditava que o futuro da hegemonia estadunidense
no continente dependia da capacidade que teriam os Estados
Unidos para adaptar-se a esse jogo. O fato é que cubanos e
venezuelanos (assim como os nicaragüenses) são felizes praticando esse esporte, tão evidentemente imperialista, que é o beisebol
– o que, aliás, fazem muito bem.
O beisebolista Hugo Chávez, eleito presidente da Venezuela
em dezembro de 1998, logo apareceu como a figura mais interessante e significativa que tenha surgido na América Latina
desde que Fidel entrou na história, quarenta anos antes. Apesar
da diferença de idade, as carreiras dos dois homens têm muitas
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semelhanças. Enquanto Fidel entrou em Havana em 1959 à frente
de uma guerrilha subversiva, o outrora tenente-coronel Chávez
também chegou ao poder de uma maneira pouco usual. Seu golpe
de Estado fracassado, de fevereiro de 1992, contra o governo civil
de Carlos Andrés Pérez, projetou-o imediatamente no cenário
nacional. Assim como Fidel converteu-se em um herói nacional
em Cuba depois do fracasso do assalto ao quartel Moncada, em
Santiago de Cuba, em 26 de julho de 1953, o tenente-coronel
Chávez surgiu como salvador nacional depois de sua fracassada
tentativa de golpe. O assalto ao Moncada, vale lembrar, para
ilustrar o intervalo de gerações que separa os dois homens, ocorreu um ano antes do nascimento do Chávez. Fidel tomou o poder em Cuba em 1959, depois de um período de prisão, exílio e
de uma guerra de guerrilha de dois anos; seu predecessor,
Fulgencio Batista, fugiu do país, uma vez deposto. Chávez também passou um tempo no cárcere, dois anos na prisão de San
Franciso de Yare; mas trilhou um caminho menos espetacular,
embora não menos inteligente, para chegar ao cume. Tendo formado seu próprio movimento político – o Movimento V República (MVR) – assim que foi posto em liberdade, sua candidatura presidencial no ano de 1998 foi apoiada por oficiais
nacionalistas radicais e por um bom número de conhecidos jornalistas e intelectuais de esquerda, muitos dos quais tinham
apoiado o movimento venezuelano de guerrilha castrista nos
anos de 1960. O regime “democrático”, então existente na
Venezuela, era tão corrupto e tão detestado que Chávez construiu
sua avassaladora vitória eleitoral de dezembro de 1998 sobre as
cinzas de um ancien régime desmaiado e sem ânimo. Seu principal opositor civil nos anos de 1990, o ex-presidente Pérez,
culpado de corrupção, viu-se forçado a trocar a casa pela prisão,
ainda que não pelo exílio.
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A grande amizade entre Chávez e Fidel, forjada durante anos
e celebrada com uma visita de Estado a Havana e um jogo de
beisebol, proporcionou a Chávez credenciais revolucionárias
incomparáveis – que são apreciadas nos bairros da Venezuela, ali
onde vive a maioria da população. Mas tais credenciais não são
tão calorosamente aceitas pela minúscula e opulenta elite
venezuelana, cujos amigos cubanos vivem em Miami, não em
Havana, e que passam a vida em um permanente estado de alerta e preocupação por suas propriedades e contas bancárias.
Durante a maior parte da década, Chávez estimulou o sentimento nacionalista da população com uma dose de retórica revolucionária muito fora de moda, tanto na América Latina quanto
no resto do mundo. Tentou lutar contra a aceitação inconteste do
neoliberalismo e da globalização, fazendo reviver o nacionalismo radical, retomando as palavras e os atos dos heróis do século 19 do panteão venezuelano. Exaltou a figura de Simón Bolívar,
assim como Fidel utilizou o exemplo do patriota cubano José
Martí. Tanto Bolívar quanto Martí lutaram contra o império espanhol, durante o século 19; Fidel e Chávez reavivaram a memória daquelas lutas, no contexto da luta contra a intenção do
império estadunidense de dominar o mundo.
Chávez destacou esse assunto durante sua visita a Havana, no
momento da partida de beisebol. “Venezuela e Cuba estão navegando pelo mesmo mar” – disse, surpreendendo o público da
Universidade de Havana – “um mar de felicidade e de verdadeira justiça social e paz.” E, então, voltando-se para Fidel, a quem
chamou de irmão, tratou em detalhes de um de seus assuntos
prediletos: a indivisibilidade da revolução latino-americana.
“Aqui estamos, mais atentos do que nunca, Fidel e Hugo,
lutando com dignidade e coragem para defender os interesses de
nossos povos e para tornar realidade as idéias de Bolívar e de
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Martí. Em nome de Cuba e da Venezuela, faço um chamamento
à unidade de nossos dois povos e das revoluções que ambos
conduzimos. Bolívar e Martí, um país unido!”
Castro, que passou quarenta anos em busca de aliados no
continente latino-americano, estava mais do que satisfeito com
o discurso. No entanto, não tinha a mínima intenção de deixar
que essa incipiente amizade interferisse em seus planos para
ganhar a partida de beisebol. Já no estádio, no início da sexta
entrada, a “surpresa” prometida tornou-se realidade. Dois dos
reservas cubanos aproximaram-se, por acaso os dois mais famosos jovens profissionais do país, Orestes Kindelan e Luis Ulasia.
Estavam disfarçados com perucas e barbas postiças, que os faziam
parecer veteranos, embora todos já tivessem percebido... Chávez,
no entanto, pareceu ter mordido o anzol. Graças a essa tática
guerrilheira, Cuba ganhou a partida sem muita dificuldade: cinco corridas contra quatro.
A visita de Chávez a Cuba não se limitava ao âmbito
beisebolístico. Assuntos mais sérios estavam na ordem do dia. O
velho acordo de troca de açúcar por petróleo expirava em 1999
e os cubanos esperavam obter petróleo venezuelano a preços
preferenciais. Já existia um precedente – acertado no Pacto de San
José, Costa Rica – assinado anos antes e mediante o qual
Venezuela e México comprometiam-se a fornecer petróleo barato
aos onze países da América Central e do Caribe. Cuba aspirava
pertencer a esse seleto grupo.
Ao mesmo tempo, em outro lugar do país, Héctor Ciavaldini,
o então presidente da Pdvsa, a companhia petrolífera estatal,
avaliava o que se poderia fazer com a refinaria cubana de
Cienfuegos, construída pelos russos na década de 1960 e hoje em
ruínas. Os cubanos tinham esperança de que a Venezuela investisse 200 milhões de dólares na refinaria, mas no acordo final
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estipulou-se uma soma menor. A Pdsvsa e a Cupet, a empresa
petrolífera estatal cubana, criariam uma companhia mista para
operar a refinaria de Cienfuegos, que a Venezuela abasteceria com
70 mil barris diários.
Os jornalistas interrogaram Ciavaldini sobre o efeito que esse
acordo teria nos Estados Unidos. “Não fazemos perguntas quando
os Estados Unidos compram da China – respondeu. – Trinta por
cento dos artigos de consumo de massa que os Estados Unidos
importam vêm da China. Se eles mantêm esse tipo de relações,
não vejo porque haveríamos de nos abster de estabelecer relações
com quem nos interesse – China, Malásia ou Cuba.” Uma semana mais tarde, Alí Rodríguez Araque, então ministro de Energia
e Minas da Venezuela, visitava Sadam Hussein, em Bagdá.
Venezuela e Cuba mantiveram longas e turbulentas relações no
decorrer do último meio século. Assim, parece adequado começar
um livro sobre Hugo Chávez explicando a reconciliação entre os
dois países e seus respectivos governos. O fato é que o programa
radical que Hugo Chávez defende hoje tem suas raízes nos
conflituosos acontecimentos que ocorreram na América Latina nos
últimos cinqüenta anos. Ao longo desse período, os movimentos
revolucionários venezuelanos, inspirados e diretamente assessorados por Fidel e Che Guevara, tentaram divulgar a mensagem
revolucionária da revolução cubana, da ilha para o continente. Em
1959, mal conseguia sua vitória sobre Batista, Fidel visitou Caracas para agradecer aos venezuelanos seu apoio moral. Naquele
momento, era o homem mais popular do país e foi acolhido espontaneamente por milhares de pessoas que se dirigiram para a extensa
zona de El Silencio, no centro da cidade.
Em janeiro de 1958, um ano antes da vitória da guerrilha
fidelista, houve um levantamento popular em Caracas. Uma revolta em uma base militar de Maracay (que foi a base a partir da
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qual Chávez lançou seu golpe em 1992) fora seguida de distúrbios urbanos na capital e da constituição de uma Junta Patriótica de esquerda, que convocou, com êxito, uma greve geral. O
ditador venezuelano, Marcos Pérez Jiménez, foi forçado a demitir-se. Venezuela e Cuba pareciam avançar então, juntas, na
mesma direção.
Foi Rómulo Betancourt, o fundador da AD, que colheu os
frutos dessa rebelião. Era um político reformista, insensível e
hábil, que contava com o apoio estadunidense. Os estadunidenses
consideravam a Venezuela de Betancourt como um modelo para
a América Latina, em oposição a Cuba de Castro. Quando Fidel
foi a Caracas para agradecer ao povo venezuelano o apoio que
proporcionara a sua causa, foi recebido com intensa aclamação.
Mas, para Betancourt, de pé ao lado de Fidel, tratava-se apenas
de uma desordem. A Venezuela de Betancourt não tardou em se
transformar no baluarte da causa anticastrista na América. Os
serviços secretos foram entregues aos exilados cubanos de Miami.
Essa evolução desgostou muitos dos esquerdistas venezuelanos
que se opunham a Betancourt. Seguindo o exemplo da revolução
cubana, subiram as montanhas e organizaram uma luta insurrecional que se prolongou por toda a década. Alguns grupos guerrilheiros surgiram de cisões da AD, outros do PCV. Outros, ainda, trabalharam junto com grupos do interior da Força Armada – detalhe
muito importante, em relação ao que aconteceu depois. Ativistas
civis do PCV, entre outros, tomaram parte nos importantes levantamentos militares contra o governo da AD, em 1962, em Carúpano
e Puerto Cabello. As revoltas fracassaram, mas deixaram uma
lembrança permanente. Em uma declaração posterior ao levantamento de Carúpano, Guillermo García Ponce, um dos líderes comunistas, qualificou o programa político dos oficiais rebeldes de
“transcendente, nacionalista e patriótico”, estimulando-os a cha-
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mar “todos os venezuelanos para trabalhar pela reconstrução
democrática”. O PCV, afirmou Garcia Ponce, considerava que os
oficiais rebeldes “tinham prestado um grande favor à Venezuela”.
Quase quatro décadas mais tarde, em 1999, ele foi membro da
Assembléia Nacional Constituinte que apoiou Chávez.
Hugo Chávez não surgiu do nada. É o herdeiro da tradição
revolucionária da esquerda venezuelana. Muitos dos sobreviventes da insurreição guerrilheira, hoje todos com quase setenta anos,
ainda participam da política, junto com Chávez, ou na oposição.
Durante muito tempo, Chávez articulou-se com a esquerda
venezuelana, enquanto planejava seu golpe de Estado e, uma vez
no governo, rodeou-se de gente talentosa, pertencente à corrente
política radical dos anos de 1960.
Alí Rodríguez Araque, seu ministro de Energia e Minas, ponta
de lança do renascimento da Opep, combateu na guerrilha, no
Estado de Falcón, durante os anos de 1960, antes de participar
da Causa Radical, um importante partido de esquerda. Lino
Martínez, o ministro do Trabalho, também foi guerrilheiro. É
possível encontrar uma meia dúzia de ex-guerrilheiros chavistas
na Assembléia Nacional Constituinte.
Chávez apóia-se particularmente em dois civis, Luis Miquilena
e José Vicente Rangel. Ambos são seus amigos íntimos e seus
mais próximos conselheiros políticos. Ambos são referências
históricas na esquerda venezuelana, com cerca de 50 anos de
experiência, adquirida, por vezes, na prisão e no exílio. Rangel,
ministro de Ralações Exteriores,* de 70 anos de idade, foi três
vezes candidato presidencial da esquerda. Porta-voz e defensor
do governo, Rangel tem um grande poder de persuasão na política latino-americana. Miquilena, que foi presidente da Assem*
Desde então, Rangel tornou-se o primeiro civil venezuelano a ser ministro de Defesa.
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bléia Nacional Constituinte, foi líder do sindicato de condutores
de ônibus de Caracas, nos anos de 1940, e co-fundador de um
partido comunista antiestalinista, em 1946. Homem perspicaz,
com seus 83 anos, Miquilena foi o primeiro ministro do Interior
de Chávez. Ainda guarda resquícios da linha dura estalinista, que
foi útil no momento da constituição do movimento político cívico-militar – o MVR – que apoiou Chávez em sua campanha
eleitoral.
Ignacio Arcaya, ministro do Interior,* é afilhado de Miquilena
e filho de um ex-ministro de Relações Exteriores, que foi destituído em 1960 por ter se oposto a uma moção anticubana de
origem estadunidense em uma reunião da OEA. Jorge Giordani,
o ministro do Planejamento, foi no passado assessor econômico
de outro partido de esquerda, o Movimiento para o Socialismo,
que surgiu da rebelião guerrilheira.
Nem todos os revolucionários sobreviventes dos anos de 1960
apóiam Chávez. Pela direita, na oposição, há um grupo de exguerrilheiros encabeçado por Teodoro Petkoff, que foi líder comunista de grande importância e ministro influente no governo
anterior ao de Chávez. Petkoff também teve oportunidade de ser
candidato presidencial da esquerda e, em 1999, era o influente
editor de um jornal vespertino, El Mundo, de oposição a Chávez,
tendo sido despedido pelo dono do jornal em dezembro daquele
ano.* Entre os colunistas, havia alguns guerrilheiros que passaram do socialismo cubano para a socialdemocracia.
Entre os que se opõem a Chávez, pela esquerda, estão Douglas
Bravo, o líder da guerrilha em Falcón durante os anos de 1960
*
*
Arcaya foi nomeado embaixador na ONU.
Em março de 2000, Teodoro Petkoff lançou, junto com o falecido empresário Hans
Neuman, um novo vespertino, Tal Cual.
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e talvez o mais conhecido dos esquerdistas intransigentes do
passado. Bravo colaborou com o projeto revolucionário de
Chávez durante os anos de 1980, supondo que se tratava de uma
autêntica operação cívico-militar; mas afastou-se depois de 1992,
quando sentiu que os civis estavam sendo deixados de lado e que
o programa de Chávez não era suficientemente radical.
Em 1968, passei umas duas semanas em Caracas, esperando um
telefonema que me permitiria entrevistar Bravo na montanha. Como
costumava acontecer, o encontro nunca ocorreu; uns 30 anos mais
tarde, em novembro de 1999, consegui, enfim, localizá-lo e ele veio
me ver no apartamento de um amigo. Com quase 70 anos, Bravo
continua sendo um revolucionário entusiasta, embora não pertença ao campo de Chávez. Diz conhecê-lo muito bem, desde a época
em que o futuro presidente era um suboficial que conspirava contra o governo. “Chávez é um homem inteligente” – diz Bravo –
“audacioso, conversador, carismático. É um líder natural.”
Mas o velho guerrilheiro também tem algumas críticas.
“Chávez costuma fazer mudanças bruscas. Essas mudanças podem ser positivas ou negativas, levando-o a estabelecer, por
exemplo, acordos com uma força e os anulando quando os faz
com outra; isso é um perigo gravíssimo, não para o Chávez conspirador, mas para o Chávez presidente da Venezuela.”
Rangel, que é da mesma geração política de Bravo, é menos
crítico nesse aspecto. “Satanizar Chávez é um erro tão grande
como santificá-lo. Se ele não tivesse aparecido, seguramente
outro teria surgido. Felizmente, ficou demonstrado que esta é a
melhor forma de efetuar as mudanças, pela via pacífica e com
civis. Afinal, facilmente poderíamos ter tido um Pinochet.”
O debate, na esquerda venezuelana, sobre a tática revolucionária e sobre a aliança entre civis e militares prolongou-se
durante o chavismo: sem fim e sem solução definitiva.
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2. AS PROMOÇÕES MILITARES DE HUGO CHÁVEZ
O QUE ELES CHAMAM DE SISTEMA DEMOCRÁTICO NESSES ÚLTIMOS ANOS NÃO
SE DIFERENCIA, NA ESSÊNCIA, DO QUE CHAMAM, POR EXEMPLO, DA DITADURA
DE MARCOS PÉREZ JIMÉNEZ, O GOVERNO DO TRIÊNIO DE 1945 A 1948, OU O
GOVERNO DE ISAÍAS MEDINA, LÓPEZ CONTRERAS E ATÉ O GOVERNO DE JUAN
VICENTE GÓMEZ, PARA NOS DEFENDERMOS EM 1908. CREIO QUE, NO FUNDO, É
ESSENCIALMENTE A MESMA COISA, O MESMO ESQUEMA DE DOMINAÇÃO, COM
OUTRA CARA, SEJA UM GENERAL GÓMEZ OU UM DOUTOR RAFAEL CALDERA.
HUGO CHÁVEZ, ENTREVISTADO EM JUNHO DE 1995.
pequena e calorenta cidade de Barinas situa-se entre as
últimas colinas dos Andes e é a porta de entrada para as vastas planícies da bacia do Orenoco. Levei 8 horas para vir de
Caracas de ônibus, percorrendo a boa estrada que costeia os
morros e atravessa Maracay, Valencia e Acarigua. Aqui começa
o extenso território de los Llanos, uma planície pantanosa, terra
de criação de gado, ao sul da zona central do país, onde correm
inúmeros rios, dos Andes para o Orenoco. As planícies chegam
à fronteira com a Colômbia e a ultrapassam, aproximando-se dos
afluentes do rio Amazonas, no Brasil.
Barinas se espraia, a partir do concorrido terminal de ônibus,
com seus pequenos pontos comerciais. Instalo-me em um
hotelzinho da praça Zamora, que limita com o rio Santo Domingo. A praça tem o nome de Ezequiel Zamora, o líder revolucionário das forças federais da década de 1850, que obteve uma
grande vitória, em 1859, na batalha de Santa Inés. Zamora foi um
dos líderes que inspiraram o presidente Chávez. As planícies
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foram cenário de muitas das lutas fratricidas do século 19. Nessas latitudes, Simón Bolívar, outro dos heróis de Chávez, recrutou homens que participaram de sua corajosa e vitoriosa ofensiva contra as forças espanholas, na Colômbia, em 1819.
Esta é a América Latina provinciana que me agrada, a apenas oito horas de ônibus da capital, mas a anos-luz, se forem
utilizadas outras medidas. “Há muito pouco a ver ou a fazer neste
lugar” – diz o guia turístico, e é assim que deve ser. Encontrei um
restaurante ao ar livre, que serve frango na brasa, mandioca e a
cerveja regional de Maracaibo. As paredes estão cobertas com
murais utópicos, de cores avermelhadas, compostos de pássaros
exóticos emergindo da selva e voando sobre águas extensas. Da
velha vitrola saem canções da música regional.
No entanto, a modernidade não está de todo ausente. Atrás da
imensa estátua de Bolívar, na praça central, ergue-se uma gigantesca antena de telecomunicações, implantada atrás do relativamente humilde palácio do governador do Estado. Projetada para
dominar tudo o que pudesse ser visto de sua grande altura, a estátua parece um anão ao lado desse elemento essencial do mundo contemporâneo. Até o meu hotel, chamado adequadamente de
Hotel Internacional, recebe dezenas de canais de televisão, captados do ar, dos quais apenas quatro são venezuelanos. A defasagem
entre o respeito que se tem à figura histórica de Bolívar e a realidade do século 21 e seus artifícios tecnológicos, inimagináveis há
dois séculos, é uma das razões para que alguns dos venezuelanos
mais preparados tenham dúvidas quanto ao rumo pelo qual optou
o presidente Chávez. Invocar os pensamentos e as ambições de
Bolívar, hoje, pode parecer uma esquisitice arcaica.
Precisei vir a Barinas porque é o Estado de origem do presidente
Chávez. Seu pai, Hugo de los Reyes Chávez, foi eleito governador
em novembro de 1998, com apoio do movimento político de seu
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filho. Na realidade, o presidente nasceu em Sabaneta, um grande
vilarejo que está a alguns quilômetros, mas estudou em Barinas,
aqui permanecendo, já como membro do Exército, por alguns anos.
Parece o lugar apropriado para começar.
Chávez nasceu em 28 de julho de 1954. Seus pais, Hugo de
los Reyes Chávez e Elena Frías, foram, ambos, professores, embora também participassem da vida política. Seu pai esteve por
muito tempo envolvido com a política educacional do Estado e
foi membro, em algum momento, do partido social cristão, o
Copei. Parece que eles têm a política no sangue, porque, assim
como o pai de Chávez foi governador do Estado, seu irmão mais
velho, Adán Chávez, professor na Universidade dos Andes, em
Mérida, foi membro da Assembléia Constituinte de 1999, como
membro do movimento político de seu irmão. Esse tipo de vínculo familiar, quase tribal, é característico das altas esferas da
política na América Latina.
A história recente está ainda à flor da pele nesta região e a
própria família Chávez representa a herança de algumas das tradições rebeldes do século 19. O bisavô do pai de Chávez era o
coronel Pedro Pérez Pérez, um chefe guerrilheiro da década de
1840. Ezequiel Zamora convenceu esse coronel Pérez Pérez a
unir-se a seu Exército do Povo Soberano e a lutar a seu lado
contra a oligarquia latifundiária. O filho do coronel Pérez, por sua
vez, foi outra figura legendária. Trata-se do general Pedro Pérez
Delgado, conhecido como Maisanta, que se rebelou contra a
ditadura de Juan Vicente Gómez. Casou-se com uma mulher do
povo, Claudina Infante, e juntos tiveram duas filhas. Uma delas,
Rosa, foi a avó de Hugo Chávez.
Maisanta organizou depois um movimento guerrilheiro contra Gómez, na planície, mas foi capturado e suas terras foram
confiscadas. Morreu na prisão, mas seu filho continuou sua luta.
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Chávez ouviu histórias de sua avó, de como os soldados chegaram a sua fazenda com facões para massacrar os camponeses e
queimar os estábulos e as casas. Também ouviu dizer, pois tal era
a inflexibilidade dos ódios políticos na região, que Maisanta era
um assassino que, por sorte, caíra no esquecimento. Só quando
se tornou adulto, Chávez compreendeu que seu bisavô fora um
guerreiro da liberdade.
A história local, assim como a sua própria, exerceu um impacto considerável sobre Hugo durante sua adolescência. A elas
haveria de voltar anos mais tarde, durante sua permanência em
Barinas e em outras partes da planície, como jovem oficial.
Maisanta e Ezequiel Zamora, arquétipos do soldado revolucionário, permaneceram até hoje, junto com Bolívar, como seus principais heróis.
Chávez alistou-se como soldado em 1971, aos 17 anos.
Freqüentemente, garante que foi seu entusiasmo pelo beisebol
que o convenceu a entrar no Exército. Tornou-se logo um dos
melhores jogadores do Exército, embora manifestasse mais interesse pela política do que pelo esporte. Ingressou na Academia
Militar da Venezuela, quando da presidência de Rafael Caldera,
o fundador do Copei, num momento em que alguns dos que
viriam a ser os pilares de seu governo abandonavam a luta guerrilheira nas montanhas. De fato, Caldera abriria caminho para a
pacificação do país, pondo fim à insurreição revolucionária dos
anos de 1960.
O pensamento político do jovem Chávez foi influenciado por
seu precoce interesse pela História e iluminado pela experiência
particular de sua família, ainda que bem depressa se familiarizasse
com os assuntos contemporâneos. Em 1974, sendo cadete, foi ao
Peru, com uma dúzia de jovens soldados. Viajaram com a intenção de participar da comemoração internacional dos 150 anos da
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batalha de Ayacucho, que ocorrera no campo andino situado na
periferia da antiga cidade colonial. Com essa batalha de 1824, os
exércitos de Bolívar e Sucre selaram a independência do Peru do
domínio espanhol. Em anos mais recentes, desde 1968, o Peru era
o cenário de uma experiência radical de governo, conduzida pelas
Forças Armadas. O general Juan Velasco Alvarado, um oficial
progressista, tomara o poder em Lima, lançando um ambicioso
programa de reformas, com apoio de revolucionários no seio das
Forças Armadas e dos partidos de esquerda peruanos. Esse foi o
primeiro contato de Chávez com um regime militar progressista. Para ele, o Peru era um país onde o nome de Bolívar continuava sendo honrado.
Chávez e seus companheiros receberam do presidente
Alvarado um folheto, com uma seleção de discursos, intitulado
A Revolução Nacional Peruana. O presidente Chávez ainda se
lembra da visita, do folheto, do apoio entusiasta que os cadetes
peruanos davam a seu presidente. A experiência peruana deixou
marcas duradouras em seu pensamento político.
Em 1975, um ano depois de sua viagem a Lima e Ayacucho,
Chávez formou-se na Academia com o grau de subtenente e
recebeu sua espada de comando das mãos do presidente Carlos
Andrés Pérez, durante um desfile anual de 5 de julho, aniversário da independência da Venezuela. O presidente Pérez foi o
homem que ele tentou derrubar, 16 anos mais tarde, em fevereiro de 1992.
Chávez passou os dois anos seguintes em Barinas, em um
batalhão de contra-insurgência que estava ali desde o início da
guerrilha, em 1960. Em 1976, o batalhão foi enviado a Cumaná,
com o objetivo de ajudar a esmagar um recente foco guerrilheiro organizado por um grupo pertencente à Bandeira Vermelha,
um dos grupos ultra-esquerdistas que haviam permanecido fiéis
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à velha estratégia da guerrilha dos anos de 1960. Tendo chegado a esse ponto, segundo ele próprio relata, Chávez começou a
sentir certa simpatia pelas guerrilhas que, supostamente, devia
combater. Também tomou consciência, diz ele, de como a
corrupção generalizada do mundo político estava penetrando na
Força Armada. Certos oficiais desperdiçavam o orçamento, roubando equipamentos para seu próprio uso.
Em 1977, com 23 anos de idade e dois anos de experiência
como tenente, Chávez decidiu formar seu próprio grupo armado,
o Exército de Libertação do Povo da Venezuela (Elpv). Reuniu
alguns amigos e juntos sonharam com a revolução.
“Com que objetivo?” – perguntou-lhe, anos mais tarde,
Gabriel García Márquez. – “Muito simples” – respondeu-lhe
Chávez. – “Fizemos isso para nos preparar para o caso de algo
acontecer.” Era, sem dúvida, o entusiasmo de um jovem de 23
anos; e como ele mesmo lembra, “naquele tempo não tínhamos
a menor idéia do que íamos fazer”. Mas era um indicador importante para o futuro.
Pouco tempo depois, conheceu outro jovem oficial com atitudes radicais semelhantes, de quem se tornou rapidamente
amigo: Jesús Urdaneta Hernández. Chávez falou-lhe da formação de seu grupo e comentou como estava decepcionado com sua
experiência no Exército, que não era o que esperara. “Não vou
continuar no Exército, assim, toda a minha vida” – afirmou
Chávez.
Chávez sugeriu a Urdaneta que talvez devessem tentar algo
diferente. “Por que não criamos um movimento dentro do Exército?” – disse. – “Não vamos nos unir à guerrilha, isso acabou e,
de toda a forma, nossas idéias não combinam com as deles”.
O que tinha em mente, como revelou a Urdaneta, era totalmente diferente, “um movimento dentro da Força Armada”. O
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tenente-coronel Urdaneta foi, durante muitos anos, um fiel aliado de Chávez, desempenhando um papel central no aparelho de
Estado, como chefe da polícia secreta, a Direção de Serviços de
Inteligência e Prevenção (Disip). Urdaneta renunciou, em janeiro de 2000, depois de revelações sobre a implicação da Disip na
execução de saqueadores durante as catastróficas inundações de
dezembro de 1999.
Chávez foi transferido, em 1978, para um batalhão de tanques
em Maracay e, dois anos mais tarde, dado o seu interesse pelo
beisebol, foi enviado de volta à Academia, em Caracas, como
chefe instrutor esportivo. Ali permaneceu durante cinco anos, que
o influenciaram muito, de 1980 a 1985, durante os quais dividiu
seu tempo entre o esporte e a cultura, convertendo-se em
orientador de história e política. É difícil subestimar o impacto
que esse inteligente e carismático orientador teve sobre seus
alunos, na Academia.
Durante esse período, as ambições políticas de Chávez fortaleceram-se até chegar à firme convicção de que sua geração de
oficiais seria, em algum momento, chamada a governar o país.
No princípio dos anos de 1980, os anos gloriosos da “Venezuela
Saudita”, haviam terminado. Esses anos da década de 1970,
durante os quais os venezuelanos chegaram a pensar que logo
viveriam em um país ocidental, rico e desenvolvido, foram finalmente substituídos pela áspera realidade da desvalorização e do
endividamento, que levaram a uma espiral de pobreza cada vez
pior. Os líderes civis começaram a parecer, cada vez mais, incompetentes e vulneráveis. O governo de Carlos Andrés Pérez, durante
os anos de 1970, vivera o imenso crescimento da renda do petróleo, em seguida ao auge petrolífero de 1973 e aos empréstimos
em petrodólares que ela permitia; seus sucessores nos anos de
1980 nunca tiveram nada tão substancioso em seu poder.
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Finalmente, em 1982, Chávez começou a preparar, seriamente, uma conspiração. Com outros dois oficiais, que também eram
orientadores na Academia Militar, criou uma célula política dentro do Exército, chamando-a de Movimento Bolivariano Revolucionário-200 (MBR-200). O MBR-200 foi acrescentado para
marcar as celebrações em curso durante o ano todo, para comemorar o bicentenário do nascimento de Simón Bolívar, em 24 de
julho de 1783. Os outros dois oficiais eram Felipe Acosta Carles
e o velho amigo de Chávez, Jesús Urdaneta Hernández. Enquanto
Urdaneta sobreviveu, para desempenhar um papel importante no
governo de Chávez, em 1999, Acosta faleceu durante o Caracazo
de 1989.
Em 17 de dezembro de 1982, os oficiais revolucionários fizeram um juramento sob o Samán de Güere, perto de Maracay,
repetindo as palavras da promessa que Simón Bolívar fizera em
Roma, em 1805, jurando dedicar sua vida à libertação da
Venezuela do jugo espanhol: “Juro, diante do Senhor, juro pelo
Deus de meus pais, que não darei descanso a meu braço nem
repouso a minha alma, até ver rompidas as cadeias que nos
oprimem...”.
O MBR-200 começou mais como círculo de estudos políticos
do que como uma conspiração subversiva, mas assim que os jovens oficiais examinaram a História e os problemas contemporâneos de seu país, começaram a trabalhar com a hipótese de alguma forma de golpe de Estado. Sabiam que deviam derrubar o
sistema político existente, acreditando que a versão venezuelana
da “democracia” era uma impostura. Entrevistado por Agustín
Blanco Muñoz, em junho de 1999, Chávez explicou suas reservas:
“O que eles chamam de sistema democrático, nesses últimos anos, não
é diferente, na substância, do que chamam, por exemplo, de ditadura
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de Marcos Pérez Jiménez, o governo do triênio de 1945 a 1948, ou do
governo de Isaías Medina, López Contreras e até do governo de Juan
Vicente Gómez, para parar em 1908. Creio que, no fundo, é essencialmente a mesma coisa, o mesmo esquema de dominação com outra cara,
seja um general Gómez ou um doutor Rafael Caldera. Mas, por trás
dessa figura, desse caudilho, com boné ou sem boné, a cavalo, de
Cadillac ou Mercedes-Benz, por trás dessa pessoa, desse senhor, desse
presidente, está o mesmo esquema que domina a economia, a política, a mesma negação dos direitos humanos, do direito dos povos a
protagonizar seu destino.”
Chávez e seus amigos, de sua posição na Academia Militar,
estavam bem situados para recrutar outros jovens oficiais descontentes, que se uniriam à causa. Em março de 1985, uniu-se a eles
Francisco Arias Cárdenas, um ex-seminarista que voltava de um
curso de pós-graduação na Colômbia. Arias Cárdenas é originário de Táchira e estava destinado a desempenhar um papel importante na tentativa de golpe de fevereiro de 1992. Tinha muitos amigos na esquerda civil, o que o levaria, na década de 1990,
a se aproximar da Causa R, um pequeno partido radical. Com o
apoio desse partido, seria eleito governador do Estado de Zulia,
em 1995. É freqüentemente considerado o intelectual mais destacado no movimento de Chávez, embora não tenha nem sua
autoridade, nem seu carisma.*
De acordo com o preceito de Chávez, os membros do MBR200 buscaram o apoio histórico de sua doutrina no pensamento
de três figuras relevantes e conhecidas, ainda que superficialmen-
*
No princípio do ano 2000, Arias Cárdenas rompeu com Chávez e, depois, foi candidato, sem êxito, à presidência da República. A partir de então, Arias fundou um partido de oposição, denominado La Unión.
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te, por todos os venezuelanos, desde a escola primária. Ezequiel
Zamora, o líder das Planoícies, com quem Chávez se familiarizara
desde a infância; Simón Bolívar, o Libertador; e Simón Rodríguez,
lembrado freqüentemente como o mestre de Bolívar, apesar de ser
um homem cuja carreira foi infinitamente mais interessante do
que esse simples fato deixa supor.
Desde o princípio, os conspiradores deram a seu programa um
tom esquerdista. Rapidamente passaram a usar a linguagem da
esquerda civil, que alguns aprenderam estudando na Universidade Central da Venezuela, em Caracas. Durante os anos de 1980,
a Força Armada venezuelana distinguiu-se por enviar seus jovens
para estudar ciências sociais nas universidades, junto com os
civis. Convivendo com a sociedade civil, muitos desses jovens
oficiais puderam entrar em contato com os sobreviventes dos
movimentos guerrilheiros dos anos de 1960.
À medida que os oficiais revolucionários foram escalando a
hierarquia militar, começaram a considerar que, em algum momento, poderiam estar capacitados para fomentar o golpe revolucionário. O ano de 1992 parecia ser o mais apropriado e próximo, já que naquele momento receberiam comando de tropas.
Enquanto isso, foram sendo conhecidos como organização
Macate, abreviatura de majores, capitães e tenentes, e depois
como Comacate, quando comandantes aderiram a suas fileiras.
Manter a existência de tal organização em segredo era tarefa difícil e, de fato, chegou aos ouvidos da Direção de Inteligência Militar (DIM). A DIM teve conhecimento de que eram ministradas palestras de conteúdo radical na Academia Militar, mas não
sabia que tipo de conspiração estava se preparando, ou quão
extensa poderia ser. Tinha consciência de que se tratava de alguns
dos jovens oficiais mais competentes, populares e promissores
com que contava a Força Armada: assim, impor-lhes medidas
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disciplinares ou expulsá-los implicaria em graves perdas para
suas fileiras.
Hugo Chávez era claramente identificado como um perigoso subversivo e, assim, foi transferido para longe de Caracas. Em
1986, foi afastado da posição influente que tinha na Academia
Militar, sendo transferido para Elorza, no Estado de Apure, um
lugar afastado, próximo à fronteira com a Colômbia.
Fui a Elorza em um pequeno ônibus, cujo trajeto durou doze
horas. O pavimento dessa estrada apavorante desintegrou-se há
muito tempo. Elorza está quase exatamente ao sul de Barinas, e
a estrada atravessa dois dos principais afluentes do rio Orinoco:
o Apure e o Arauca. Uma ponte sobre o Apure liga a cidade de
Nutrias a Bruzual; o presidente Chávez prevê que algum dia esses
remotos vilarejos irão se transformar no coração de um grande
projeto de desenvolvimento para os llanos.
Elorza está ainda mais ao sul; do outro lado do rio Arauca,
depois de atravessar outra ponte. Um hotel, a rua principal e uma
base militar na periferia: essa é a Venezuela rural. Os donos das
lojas são sírios, os dos restaurantes colombianos, enquanto os
grupos indígenas cuivas e iaruros vivem nos arredores do vilarejo.
Sentei-me em um restaurante que servia carne e mandioca e pusme a conversar com o dono, que casualmente era um refugiado
da violência que, alguns quilômetros adiante, golpeia a Colômbia. Veio até aqui de Tolima e pareceu-lhe que a Venezuela era
um lugar relativamente pacífico, em comparação com os horrores da Colômbia.
Aqui, Chávez é lembrado com grande afeto pelas pessoas, por
ter dado realce no mapa ao nome do vilarejo. Além de comandar uma das divisões da base situada na rua, um pouco mais
abaixo, Chávez aproveitou aqueles anos para colocar em prática algumas das idéias que hoje integram seu programa político
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e social para o país. Ao estimular o uso de esquemas experimentais de cooperação entre civis e militares, o tenente radical de
Elorza rapidamente transformou-se em uma figura tremendamente popular em todo o Apure. Além de proporcionar ajuda
militar para o desenvolvimento social e econômico da região,
ampliou o quadro de suas atividades. Em pouco tempo, integrouse à vida da comunidade, organizando celebrações históricas e
promovendo a recopilação de arquivos da história oral.
Alguém deve ter esquecido ou extraviado seu expediente, pois
em 1988, no final da presidência de Jaime Lusinchi, da AD,
Chávez foi levado de volta a Caracas, ao Palácio de Miraflores.
Foi designado assistente do Conselho Nacional de Segurança e
Defesa. Por fim, caminhava em sentido ascendente. Naquele ano,
foi enviado à América Central, quando a guerra dos “contra” na
Nicarágua e a campanha de contra-insurgência na Guatemala
chegavam ao auge.
Em Elorza, Chávez permanecera isolado de seus companheiros revolucionários do Exército. Uma vez em Caracas, estava
melhor situado para continuar planejando a conspiração de seu
MBR-200. O momento não era prematuro, já que, no ano seguinte, em fevereiro de 1989, a cidade de Caracas seria cenário de uma
explosiva e inesperada rebelião espontânea. Chávez sempre esperara que alguém se “levantaria”, mas, quando isso aconteceu,
os conspiradores ainda não estavam preparados.
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FEVEREIRO DE 1989 – I
3. A REBELIÃO EM CARACAS, O CARACAZO
REUNI ENTÃO TODO O PESSOAL MILITAR QUE ME ACOMPANHAVA E LHES DISSE:
LEVANTEM A MÃO OS QUE PERTENCEM AO COUNTRY CLUB! OBSERVEI O
OLHAR DE ASSOMBRO DOS PRESENTES, QUE PERMANECERAM IMÓVEIS E EM
SILÊNCIO. REPETI: LEVANTEM AS MÃOS OS QUE SÃO DE ALTO PRADO,
LAGUNITA COUNTRY CLUB, ALTAMIRA! NINGUÉM LEVANTOU A MÃO. DISSE,
ENTÃO: ISSO QUER DIZER QUE, AQUI, TODOS PERTENCEMOS ÀS FAVELAS OU
BAIRROS HUMILDES COMO ESTE; AS PESSOAS QUE VIVEM AQUI SÃO COMO
NÓS, NOSSOS IRMÃOS DO POVO. QUERO DIZER COM ISSO QUE NINGUÉM
DISPARA CONTRA O POVO SEM AUTORIZAÇÃO, AQUI SOMENTE SE DISPARA
QUANDO NOS ATAQUEM COM ARMAS DE GROSSO CALIBRE.
MAJOR FRANCISCO ARIAS CÁRDENAS, FEVEREIRO DE 1989.
uarenas é uma cidade satélite, sem alma, situada a 30 quilômetros a leste de Caracas, onde residem milhares dos trabalhadores do setor de serviços da capital. Os primeiros sintomas
de desordem apareceram na madrugada de segunda-feira, 27 de
fevereiro de 1989. As pessoas que se dirigiam à cidade descobriam
que as tarifas das passagens tinham dobrado de preço em relação à véspera e começavam a protestar, espontaneamente. Em
seguida, os distúrbios esquentaram em Petare, pouco depois, e,
no meio da manhã, haviam se estendido, influenciados pela televisão, para as principais cidades do país. Maracay, Valencia,
Barquisimeto, Ciudad Guayana e Mérida.
As pessoas viravam e queimavam os ônibus, mas isso era
apenas a fase inicial da revolta. Em questão de horas, a rebelião
se generalizara, com saques por toda a parte, destruição de lojas
e supermercados. Bandos de jovens dos subúrbios invadiam,
enfurecidos, a zona comercial do centro de Caracas, dirigindose para as zonas residenciais burguesas, situadas nas encostas do
G
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monte Ávila, perto do coração da cidade. Distúrbios e saques
continuaram sem freio algum durante a noite e o dia seguinte,
transformando-se em uma rebelião prolongada e poderosa – o
Caracazo, como foi chamado depois – que logo seria seguido de
dias de brutal repressão militar.
O major Chávez estava na cama, naquela quarta-feira pela
manhã, com uma doença contagiosa. De fato, o médico do Palácio de Miraflores ordenara que fosse para casa, a fim de evitar
o contágio de todo o gabinete presidencial. Ao longo dos anos de
preparação da conspiração, os jovens oficiais haviam discutido
a possibilidade, se houvesse uma mobilização popular, de
aproveitá-la para seus próprios fins. Mas, quando isso aconteceu,
não estavam preparados e alguns foram obrigados a participar da
repressão.
O impacto dessa revolta urbana, tanto na população quanto
nos soldados envolvidos, teria um efeito devastador no acontecer político da década seguinte. A história contemporânea da
Venezuela começa realmente com esse acontecimento fundamental, já que convenceu os oficiais bolivarianos de que deviam
acelerar seus planos.
O ano de 1989 também foi importante para o resto do mundo. A queda do muro de Berlim no outono e o conseqüente colapso dos governos pró-soviéticos da Europa do Leste foram
rapidamente percebidos como presságios do fim de toda uma era
comunista. Da mesma maneira, o Caracazo marcou o início do fim
do ancien régime venezuelano. As pessoas tinham ido para a rua
exatamente 30 anos antes, em janeiro de 1958, e aberto o caminho, sob a direção da Junta Patriótica, para a derrubada da ditadura do general Marcos Pérez Jiménez. Agora, faziam a mesma coisa, quase acidentalmente, para mostrar seu desejo de se
livrar de um governo corrupto e burocrático com fachada demo-
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crática. Mas enquanto o levantamento de 1958 fora organizado,
politicamente orientado e com objetivos específicos, o Caracazo
de 1989 era anárquico, caótico e não tinha liderança.
Foi um acontecimento tão espontâneo que tomou totalmente de surpresa os organismos de inteligência do governo. Todos
os esforços da polícia secreta, a Disip, estiveram dirigidos para a
infiltração em grupos políticos de ultra-esquerda, apesar de que,
no final dos anos de 1980, a maioria desses grupos havia desaparecido, não tendo desempenhado nenhum papel no desencadear do Caracazo. A Disip não tinha se dado ao trabalho de
monitorar a possibilidade de que se desencadeasse uma rebelião
autônoma nos barracos das áreas suburbanas da cidade. Já a DIM
estava melhor informada em todos os aspectos. Sabia que algo
estava acontecendo e advertira o governo de que segunda-feira
poderia ser um dia difícil. Apesar disso, é provável que essas
advertências não tenham chegado ao Palácio de Miraflores ou que
tenham sido simplesmente ignoradas.
“Houve distúrbios na cidade de Guarenas no primeiro dia” –
diz Heinz Sonntag, professor de sociologia no Cento de Estudos
de Desenvolvimento em Caracas, autor de um estudo sobre o
Caracazo, “e a polícia não interveio.” Também não o fez no dia
seguinte. A Guarda Nacional recebeu ordens para agir, mas recusou-se a entrar nos barracos. Então, o governo apelou aos
militares.”
Os soldados entraram, portanto, nas favelas e cercaram os
conjuntos de casas “de interesse social” (ironicamente, foram
construídos no governo Pérez Jiménez, na década de 1950).
Dispararam em tudo o que se movia. “O número oficial de mortos foi 372, mas é provável que sejam mais de 2 mil, apenas em
Caracas.” Milhares de pessoas ficaram feridas. Sonntag acredita
que “a repressão era uma espécie de ‘advertência’ aos pobres, para
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que não reincidissem”. O que, diz ele, funcionou durante muito
tempo. “As pessoas cresceram no meio do medo.” Esse acontecimento encheu de sombras boa parte dos anos de 1990, criando
um ambiente de desesperança e de apatia política que apenas
começou a se dissipar com a eleição de Chávez, em 1998.
O presidente Carlos Andrés Pérez assumira o cargo no princípio do mês de fevereiro. Era seu segundo mandato e tinha
experiência – fora presidente durante os anos de 1970 – mas não
estava preparado para essa explosão popular. Durante uma reunião de seu Conselho de Ministros, ao meio-dia de terça-feira, 28
de fevereiro, decretou o estado de emergência, um procedimento constitucional que implicava na suspensão das liberdades civis.
O Exército impôs o toque de recolher durante a noite.
A causa imediata da rebelião foi o aumento do preço da
gasolina, como parte do novo pacote econômico neoliberal que
Pérez anunciara dias antes, em 16 de fevereiro. Fora previsto que
o preço da gasolina aumentaria 100% no domingo, 26 de fevereiro; mas, precisamente para evitar os distúrbios que ocorreram,
o governo anunciara um aumento escalonado dos preços do
transporte público. Os proprietários de ônibus estavam autorizados a aumentar suas tarifas em 30% no primeiro dia útil depois
do aumento do preço da gasolina, ou seja, na fatídica segundafeira; um aumento adicional de 30% lhes seria permitido três meses mais tarde.
Evidentemente, muitos dos proprietários de ônibus repassaram o aumento da gasolina a seus usuários desde o primeiro dia,
com o objetivo de cobrir seus próprios custos. Essa foi a causa da
inevitável erupção do ódio entre os usuários mais pobres, acostumados a não ter dinheiro no final do mês. Uma carga particularmente pesada caiu nos ombros dos estudantes, de quem retiraram o tradicional benefício da meia passagem. Em questão de
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dias, os apavorados habitantes da cidade tinham voltado a uma
vida aparentemente normal. Os bairros mais pobres curavam seus
feridos, sentindo-se terrivelmente prejudicados pelo governo,
enquanto centenas de cadáveres eram enterrados em valas comuns. As zonas mais ricas reforçaram suas grades de aço e seus
sistemas de segurança, congratulando-se por ter tido sorte.
No entanto, em longo prazo, foi na Força Armada, encarregada da repressão, que o impacto do Caracazo teve mais conseqüências. Enquanto os soldados envolvidos na execução de seus
concidadãos sentiam remorso e vergonha pelos atos que tinham
sido forçados a cometer, o grupo, politicamente orientado, de
oficiais ligados a Chávez e ao MBR-200 lamentava-se ao ver que
o momento e a oportunidade, que, de certa forma, haviam estado esperando, haviam passado a seu lado sem que fossem capazes de entrar em ação. Seus contatos com os grupos civis, inclusive os partidos de esquerda e alguns dos sobreviventes da
guerrilha dos anos de 1960, não lhes tinham sido de nenhuma
utilidade para prever o que estava a ponto de acontecer.
Muitos dos principais conspiradores militares estavam em Caracas durante o Caracazo, embora cada qual tenha tido um destino diferente. Chávez estava fora de serviço, na cama, mas dois de
seus companheiros mais próximos, Francisco Arias Cárdenas e
Felipe Acosta Carles, tinham sido enviados às favelas, para participar da repressão. Durante um incidente inexplicável, Acosta
recebeu uma bala mortal. Há quem acredite, inclusive Chávez, que
a Disip sabia de sua participação na conspiração militar, o que torna
plausível que tenham sido eles os responsáveis por sua morte, e não
os saqueadores. As mesmas pessoas pensam que Chávez teve sorte de ter permanecido em sua casa, durante aquela semana.
Arias Cárdenas tomou parte na repressão à rebelião. Mais
tarde, em uma entrevista a Ángela Zago, deu a conhecer sua
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imensa frustração pelo fato do movimento revolucionário em que
estava envolvido não estar pronto para “levantar-se, junto com
o povo, em uma rebelião cívico-militar”. Sentiu que o Exército
estava do lado errado da guerra, e teve que fazer esforços sobrehumanos para tentar garantir que suas tropas não disparassem
na multidão. O que viu aterrorizou:
“Quando cheguei ao lugar que seria meu centro de operações, verifiquei que o oficial que me antecedera, de forma desumana e irresponsável, disparava contra os conjuntos de casas. Reuni testemunhos sobre
os desmandos cometidos pela polícia política, a Disip.
Reuni então todo o pessoal militar que me acompanhava e lhes disse:
levantem a mão os que pertencem ao Country Club! Observei o olhar de
assombro dos presentes, que permaneceram imóveis e em silêncio. Repeti: levantem as mãos os que são de Alto Prado, Lagunita Country Club,
Altamira! Ninguém levantou a mão. Disse, então: isso quer dizer que,
aqui, todos pertencemos às favelas ou bairros humildes como este; as
pessoas que vivem aqui são como nós, nossos irmãos do povo. Quero
dizer com isso que ninguém dispara contra o povo sem autorização, aqui
somente se dispara quando nos ataquem com armas de grosso calibre”.
Semanas depois, Chávez voltou a seu trabalho, no Palácio de
Miraflores. Na entrada, os guardas do palácio, ainda que não
fizessem parte da conspiração, pediram-lhe que se detivesse, pois
tinham ouvido certos boatos. “Ouça, major” – perguntou um deles
– “é verdade essa história do MBR-200? Gostaríamos de saber
mais sobre o assunto; não estamos dispostos a continuar matando
gente.” Esses soldados pertenciam à guarda presidencial, lembra
Chávez, eram de confiança do governo. Estava claro que a conspiração ganhava espaços e que o momento da ação definitiva não
podia esperar mais.
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Mas, agora, as autoridades seguiam sua pista. No fim do ano,
em 6 de dezembro de 1989, dia das eleições para o governo dos
Estados, Chávez e outros majores foram convocados para se
apresentarem diante do Estado-Maior do Exército. Eram acusados de conspirar contra o governo e de preparar o assassinato do
presidente e de oficiais de alto escalão para o dia de Natal. A
informação era falsa e, como ninguém pôde prová-la com precisão, as autoridades não puderam tomar medidas disciplinares.
Chávez obteve uma licença para se inscrever na Universidade
Simón Bolívar, em Caracas, e começou a preparar um mestrado
em ciências políticas. Qualquer tentativa de golpe de Estado tinha de ser adiada.
Ano e meio mais tarde, em agosto de 1991, depois de ter
seguido um curso preparatório, Chávez foi encarregado de um
batalhão de páara-quedistas, em Maracay, cidade próxima de
Caracas. Enfim, com tropas sob suas ordens, encontrava-se em
posição favorável para empreender a ação para a qual se preparara durante tanto tempo.
FEVEREIRO DE 1989 – II
4. O PACOTE ECONÔMICO QUE PÔS FIM À
PRESIDÊNCIA DE CARLOS ANDRÉS PÉREZ
AS PESSOAS EXPRESSAM SUA ANGÚSTIA MANIFESTANDO-SE E PROTESTANDO,
MAS TEMOS QUE ENTENDER QUE ERAM INEVITÁVEIS. NÃO HAVIA OUTRA
SAÍDA.
PRESIDENTE CARLOS ANDRÉS PÉREZ, 1990.
m uma tarde de 1990, um ano depois do Caracazo, fui visitar o presidente Carlos Andrés Pérez, no modesto edifício
branco do século 19: o Palácio de Miraflores. Pérez gostava de se
encontrar com jornalistas estrangeiros, com os quais era sempre
muito cordial. Perguntei-lhe como alguém tão identificado com
uma forma específica de desenvolvimento econômico conduzido pelo Estado, na década de 1970, podia ter dado uma guinada
nos anos de 1990, tornando suas as doutrinas de um Fundo
Monetário Internacional a que se opusera durante tanto tempo
e, em particular, sabendo que os cortes drásticos que a instituição impusera em 1989 haviam levado diretamente ao Caracazo.
Pérez admitiu que o Caracazo fora uma comoção desagradável e concordou que sua nova política acarretara sérios problemas.
Também reconheceu que produzira um aumento no custo de vida:
E
“As decisões que tomei foram extremamente difíceis e, no geral, ainda são impopulares. As pessoas estão ressentidas pela severidade das
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medidas que tomamos. As pessoas expressam sua angústia manifestando-se e protestando, mas temos de entender que eram inevitáveis. Não
havia outra saída... Os tempos mudaram bastante, nos últimos quinze
anos. A economia tornou-se mais globalizada e mais organizada e as
relações econômicas têm de ser concebidas de outra maneira. Com a
globalização da economia, nossa gente entenderá melhor a necessidade
dos investimentos estrangeiros”.
A Venezuela necessitava desesperadamente de tais investimentos, afirmava o presidente, posto que a renda do petróleo já
não era suficiente para impulsionar a economia. Chegou-se até
a considerar que o refino do petróleo, um setor tradicionalmente reservado exclusivamente aos investimentos estatais, precisava
da “participação do capital estrangeiro”.
Pérez mostrava-se igualmente pessimista sobre o próprio
futuro do papel do Estado. “Aprendemos a lição” – garantiu –
“sobre a tendência das instituições estatais a degenerar.” Seu
governo previa a abolição de “todos aqueles elementos em que
pudesse existir corrupção”, apesar de que não fez nenhum comentário sobre seu próprio papel no assunto. Com uma taxa de
câmbio flutuante para o bolívar e a abolição das autorizações para
operações comerciais no estrangeiro, pensava que a corrupção
simplesmente desapareceria. “O melhor para nós” – afirmou, com
o entusiasmo de um convertido – “seria reduzir o papel do Estado a sua expressão mínima.”
Ao longo dos anos de 1990, boa parte da retórica do comandante Chávez arremeteu contra o “neoliberalismo” e contra os
programas de reformas impostos na América Latina pelo governo de Washington, que Pérez aceitara com tanto entusiasmo. Em
boa parte, tais programas haviam sido possíveis graças ao controle dos estadunidenses sobre instituições como o FMI e o Banco
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Mundial, mas, também, porque um bom número de economistas
e políticos latino-americanos fora doutrinado com êxito acerca
das novas teorias econômicas estadunidenses.
Embora Chávez se oponha, em geral, a tais programas – fala
sempre em neoliberalismo “selvagem” – seus argumentos retomam
inevitavelmente a funesta experiência da Venezuela depois de
1989. Seu alvo principal sempre foi a guinada política de Pérez, que
levou ao Caracazo e, depois, em 1993, à queda do próprio Pérez.
A causa imediata da rebelião foi, como dissemos no capítulo
anterior, o aumento do preço da gasolina e, conseqüentemente,
o das passagens de ônibus, o que levou os passageiros caraquenhos a se rebelarem da única maneira que sabiam se rebelar. Mas
o aumento de preços em si fazia parte de uma mudança maior de
política econômica que rapidamente ficou conhecida como “a
grande guinada”.
As políticas neoliberais postas em prática na América Latina
(e em outras partes do mundo) durante os anos de 1990 são
conhecidas e corretamente definidas como Consenso de Washington, um programa de dez pontos, formulado e codificado no
início por John Williamson, que fora assessor do FMI na década
de 1970. Esse programa, que Washington considerava adequado,
fora projetado especialmente para os países com maior endividamento externo; endividamento a que os bancos internacionais os
haviam levado, durante as décadas de 1970 e 1980. Seu objetivo era reformar os mecanismos internos de regulamentação econômica dos países endividados da América Latina (e de outras
partes do mundo) de forma tal que estivessem em condições de
pagar as dívidas que haviam contraído, em geral com bancos
estadunidenses.
A Venezuela acumulara uma grande dívida, contraída imprudentemente, a juros altíssimos, por sucessivos governos corrup-
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tos e incompetentes, o que a transformava em alvo privilegiado
das reformas do Consenso de Washington. É óbvio que era necessário realizar certas reformas, se se pretendia manter o fluxo
de investimentos estrangeiros. Mas acompanhava essas reformas
específicas o outro lado da moeda: levava em consideração as
exigências dos bancos estrangeiros, mas deixava passar as necessidades dos habitantes mais pobres dos países devedores. Na
prática, claro, as reformas incluíam aspectos muito mais amplos
do que a simples solvência para com um punhado de bancos
internacionais.
John Williamson, o artesão do Consenso de Washington, explicou suas propostas em uma conferência sobre o assunto, realizada em 1994. Afirmava ter identificado “dez áreas sobre as quais
políticos e acadêmicos de Washington poderiam, razoavelmente,
chegar a um consenso relativo às características das reformas
econômicas que os países devedores deveriam pôr em prática”.
Posto nos termos suaves dos economistas imperiais, seu programa podia parecer bastante inofensivo. Mas, na prática, as
exigências feitas aos países devedores constituíam uma nova
forma de colonialismo. Os benefícios que o programa neoliberal
garantiam às companhias multinacionais estadunidenses iam
muito além da simples política de cobrança da dívida.
As 10 áreas do Consenso de Washington definidas por
Williamson exigiam que os governos que o assinassem levassem
a cabo as seguintes reformas:
1. Garantia de disciplina fiscal e redução do deficit fiscal.
2. Redução dos gastos públicos, em particular no setor militar e na
administração pública.
3. Reforma fiscal e criação de um sistema com base tributária ampla
e arrecadação eficaz.
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4. Liberalização do sistema financeiro e fixação das taxas de juros pelo
mercado.
5. Taxas de câmbio competitivas, para possibilitar um crescimento
baseado nas exportações.
6. Liberalização do comércio, junto com a eliminação das autorizações
de importação e a redução dos impostos que incidem sobre elas.
7. Promoção de investimentos estrangeiros diretos.
8. Privatização das empresas estatais para que sejam geridas com eficácia e aumentem seu rendimento.
9. Desregulamentação da economia.
10. Proteção da propriedade privada.
Este foi o programa de reformas econômicas que o governo
de Pérez considerou conveniente adotar em fevereiro de 1989. O
presidente, que, em matéria de ideologia, orienta-se por uma
página em branco, aderiu ao modelo do momento sem o menor
escrúpulo. Depois de ter se cercado de um batalhão de jovens
economistas formados nos Estados Unidos, seguidores da Escola de Chicago, Pérez anunciou seu inovador pacote econômico,
duas semanas depois de ter assumido o poder.
Os termos do Consenso de Washington eram o pão e o vinho
das duas principais figuras do governo, no que se refere a reformas econômicas. Moisés Naím, ministro do Desenvolvimento, e
Miguel Rodríguez, ministro do Planejamento, eram meninosprodígio egressos do MIT e da Yale. Haviam saído do mesmo
molde que o checo Václav Klaus e o polonês Leszek Balcerowicz,
os economistas que traçaram o caminho do livre mercado na
Europa do Leste, durante a década de 1990.
Todos esses homens haviam bebido até a saciedade da fonte
do neoliberalismo e compartilhavam certa familiaridade com o
mundo dos think tanks acadêmicos, os salões de conferência
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universitários e as instituições financeiras internacionais. Eram
as tropas de elite do novo fundamentalismo econômico. Mas, ao
mesmo tempo, tinham seu calcanhar de Aquiles. Careciam completamente de conhecimento ou de compreensão do mundo
político de seu próprio país. Quanto à política econômica, consideravam-se auto-suficientes e diziam saber o que fazer; os
políticos, segundo eles, deviam ocupar-se de seus assuntos.
Durante os últimos meses da presidência de Lusinchi, que foi
de 1984 a 1989, todo o mundo em Caracas sabia que uma crise
econômica se aproximava, o que ficou confirmado em janeiro de
1989. A última decisão tomada por Lusinchi foi suspender o
pagamento da dívida externa. Depois de vinte anos de desperdício
e de corrupção sem precedentes, as reservas internacionais estavam a ponto de se esgotar. Uma vez tomada a decisão, cada qual
especulava sobre a política que implementaria o governo de
Pérez, ao começar seus trabalhos em fevereiro. Lembravam-se de
Pérez como o homem que estava no cargo durante os tempos
gloriosos da “Venezuela Saudita”, nos anos de 1970, quando
parecia que o país não podia ser mais rico. As pessoas haviam
votado nele para que voltasse ao palácio presidencial, em grande parte porque acreditavam que usaria sua improvável magia
pela segunda vez.
Pérez manteve o país na expectativa. Como presidente eleito, passou semanas visitando países da Opep – a Arábia Saudita,
o Kwait e a Argélia – o que fazia supor que talvez pretendesse
reativar o papel da Venezuela na política petrolífera internacional. Quando finalmente regressou a Caracas, já tinha tudo organizado. Para surpresa de todos, decidira aderir à política da revolução neoliberal em voga, que naquele momento ainda não se
transformara na nova ortodoxia dos anos de 1990. Pérez provavelmente não via outro caminho a seguir.
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Era preciso rever drasticamente o papel e o tamanho do velho Estado venezuelano, que dominara durante meio século a
vida política e econômica do país. As empresas estatais seriam
privatizadas. O governo já não procuraria gerar emprego e crescimento econômico sozinho, mas, sim, pela “a expansão acelerada do setor privado”. Também liberalizaria os preços e as taxas
de juro e eliminaria as taxas de juro variável.
Miguel Rodríguez, o ministro do Planejamento, era o artífice desse programa de mudanças estruturais. Alguns anos mais
tarde, quando já se afastara do cargo, falaria com orgulho do que
fizera. Satisfizera as exigências do Consenso de Washington até
a última vírgula, a ponto de executar um programa totalmente
oposto a tudo aquilo em que a maioria dos venezuelanos acreditava e que mais lhe importava:
“O programa fora concebido como algo integral. Incluía uma reforma
completa do sistema comercial, a eliminação de todas as restrições
comerciais e uma redução das taxas de importação a níveis baixos; a
eliminação de todos os controles sobre o câmbio e a adoção de um
câmbio flutuante que levasse a uma taxa de câmbio compatível com
o desenvolvimento das exportações não tradicionais; a liberalização
dos preços; a reestruturação do setor público graças à descentralização
e à privatização das empresas paraestatais; uma reforma fiscal global,
uma nova política para fixar os custos do setor público em níveis competitivos; a reestruturação do setor financeiro pela liberalização, maior
competitividade e fortalecimento do índice de regulamentação; a
modernização das leis trabalhistas, incluindo a criação de fundos de
pensão e a reestruturação do sistema de seguridade social; a eliminação das restrições ao investimento estrangeiro; a reestruturação da
dívida externa, uma revisão da política de financiamento externo e uma
nova política social para eliminar o sistema generalizado de subsídi-
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os maciços (muitos dos quais beneficiavam os ricos), substituindo-o por
subsídios específicos para os segmentos mais pobres da população”.
Essa foi a nova estratégia econômica adotada na Venezuela
em fevereiro de 1989. Para coroá-la, o presidente Pérez anunciou,
com satisfação e alívio, que sua equipe econômica obtivera em
Washington alguma coisa em troca: um empréstimo do Fundo
Monetário Internacional de 4,5 bilhões de dólares, a se efetivar
em 3 anos. Em um passado mais feliz, quando pretendia ser um
líder do Terceiro Mundo, nos anos de 1970, Pérez denunciava os
economistas do FMI como “genocidas mercenários, pagos pelo
totalitarismo econômico”. Agora, tinha de ir de joelhos, mendigar dinheiro a uma instituição que antes descrevera como uma
bomba econômica, “assassina de gente”.
O Caracazo serviu para frear seus ambiciosos planos. Durante
o primeiro ano, nenhuma das empresas estatais foi privatizada.
Pérez assinou um decreto para permitir as privatizações, em
agosto de 1989, mas o Congresso não conseguiu chegar a um
acordo sobre a definição das empresas básicas e estratégicas que
deviam permanecer no setor público. Muitos parlamentares dedicavam-se a ganhar tempo. No entanto, o tempo perdido não foi
aproveitado por Pérez para preparar o país para as mudanças que
viriam. Em 1990, fossem quais fossem os obstáculos temporários do processo, era evidente que a Venezuela participava totalmente da revolução global do pensamento econômico. A receita era a mesma em Praga ou em Varsóvia, embora as condições
locais fossem totalmente diferentes.
Quando entrevistei Miguel Rodríguez naquele ano, achei um
ministro em mangas de camisa, sob o retrato oficial de Bolívar,
falando em dois telefones ao mesmo tempo. Os jovens economistas talvez não tenham experiência política, mas Rodríguez obvi-
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amente estava gostando do exercício do poder, de sua superioridade intelectual e de sua capacidade de não temer o ridículo.
Pensava que era uma pena que o país tivesse se acostumado com
gasolina e energia elétrica baratas, “vendidas ao consumidor
muito abaixo do preço de custo”. Seu programa de ajustes, disse, “conseguiria preços eficientes no setor público em um período muito curto”. Acreditava – com o elegante desdém dos
tecnocratas – que havia chegado o momento de ser forte. Quando murmurei algo sobre o Caracazo, descartou-o de um golpe:
“Não é o povo na rua que se queixa do aumento do preço da
gasolina, são os políticos e dois ou três agitadores nas universidades e nas escolas. O povo entende essas coisas”.
Sua principal preocupação era a lentidão com que o governo negociava seu programa no Congresso. A demora tirava a
iniciativa do governo, afirmava, deixando que a oposição se
rearticulasse e que se instalasse a inércia. Sabia que Naim e ele
não eram muito populares entre os dirigentes da AD, e que a falta
de apoio político para seu programa, por parte do partido do
governo, representava um freio para o ímpeto das reformas econômicas. Os “jovens turcos” queriam agir rápido; os “caciques”
pediam prudência.
Em longo prazo, sua falta de prudência política criou as condições para um golpe de Estado e precipitou a queda de seu presidente. A crise política desencadeada por seu programa econômico teve
duas conseqüências que ninguém, nem remotamente, previra.
Estimulado pelo horror do Caracazo, o tenente-coronel
Chávez intensificou os esforços para preparar seu MBR-200 para
a ação. Em fevereiro de 1992, tentou fazer o que os “caciques” da
AD conseguiram no ano seguinte: derrubar o presidente.
Chávez não teve êxito, mas, no ano seguinte, antes que o
período de Pérez chegasse ao fim, os “caciques” da AD decidiram
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desfazer-se dele e lançá-lo aos leões. Em 1993, o Congresso
destituiu Pérez por corrupção, decretando sua prisão domiciliar.
Em fevereiro de 1996, quando ainda estava detido, fui de
novo falar com ele. Perdera o aparato oficial, mas, de sua propriedade em Los Guayabitos, nos arredores de Caracas, ainda dava
a impressão de que esperava o chamado de um povo que ansiava por seu regresso.
“A Venezuela está passando por uma crise estrutural muito
grave” – disse, do lado oposto de sua enorme escrivaninha. “Um
dos motivos da crise é que os partidos estão em crise – há algum
tempo. No Copei, o aparelho do partido está nas mãos de um
homem – Rafael Caldera – que não deixará que ninguém, a não
ser ele mesmo, seja candidato à Presidência.”
Pérez mostrava-se igualmente crítico em relação a seu próprio partido, a AD, “um partido que infelizmente foi corroído pelo
clientelismo e pelo aparelhismo. Fui excluído, mas continuo
contando com o apoio dos que votam nele. É por isso que me
mantém recluso neste lugar: para manter-me isolado de minha
base política. Isso representa uma limitação muito grave para
minha ação, já que não posso intervir diretamente nos acontecimentos”.
Pérez tinha razão em dizer que a Venezuela estava em crise.
O que era incapaz de reconhecer, era que tinha uma boa parte de
responsabilidade no que sucedera. O povo não clamava por seu
regresso, ao contrário, pedia sua cabeça e, em fevereiro de 1992,
quase a perdeu…
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5. DOUGLAS BRAVO E O DEBATE ENTRE CIVIS E
MILITARES
CHÁVEZ NÃO QUER A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL ATUANDO COMO
FORÇA CONCRETA. QUER QUE A SOCIEDADE CIVIL O APLAUDA, NÃO QUE
PARTICIPE...
DOUGLAS BRAVO, ENTREVISTADO EM 1999.
estrada que liga Barinas a Mérida tem uma das melhores
vistas panorâmicas da América Latina; vai ondulando desde
o calor das planícies do Orinoco até a límpida atmosfera dos vales
andinos, ziguezagueando entre bosques e cascatas. Encontrei um
por puesto* no terminal de ônibus de Barinas e esperei que ficasse
cheio. O por puesto é um táxi ou micro-ônibus que não sai enquanto não está cheio. Pouco depois da partida, o motor do
microônibus entregou sua alma e nada do que fez o motorista
conseguiu trazê-lo de volta à vida. Descemos todos e esperamos
cerca de uma hora até que outro microônibus chegasse para nos
ajudar, pelo meio das nuvens e sobre as montanhas, até Mérida.
Mérida é uma cidade andina, que se estende por um amplo
vale, rodeado de montanhas verdejantes. Já não resta quase nada
da velha estrutura colonial; no entanto, preserva o encanto de
uma pequena cidade universitária, com suas ruas abarrotadas de
jovens estudantes pela manhã, ao meio dia e à noite. É o coração intelectual da Venezuela, um oásis de paz e de tranqüilida-
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de depois do pesadelo urbano de Caracas. As pessoas vão para
Mérida em férias, para carregar as baterias. Os professores da
Universidade dos Andes costumam se fixar na cidade, pois consideram Caracas uma babilônia.
Mérida sempre foi um centro esquerdista e, depois do colapso dos movimentos guerrilheiros dos anos de 1960, muitos exguerrilheiros vieram morar na cidade e em seus arredores. Enquanto alguns dos sobreviventes da guerrilha se agruparam
durante os anos de 1970 no Movimento para o Socialismo (MAS),
outros se uniram ao Partido da Revolução Venezuelana (PRV),
uma organização fundada por Douglas Bravo, o líder da guerrilha no Estado de Falcón, que rompera com o PCV em 1966. O PRV
era uma organização política e um de seus membros em Mérida,
Adán Chávez, é irmão mais velho do comandante e também
professor na Faculdade de Ciências. No princípio da década de
1980, Adán Chávez achou conveniente organizar um encontro
entre Bravo, seu amigo revolucionário, e Chávez, seu irmão revolucionário.
Douglas Bravo lembra-se do encontro, que deve ter ocorrido
em 1982 ou 1983: “O movimento que discutia naquele momento com Chávez era o PRV”. Bravo afirma ter falado com Chávez
e com “todos os oficiais” que estavam participando “da estrutura revolucionária que estávamos preparando”. Seu objetivo era
construir um “movimento cívico-militar que se preparasse, em
longo prazo, para uma insurreição revolucionária”.
Em uma entrevista recente com Alberto Garrido, Bravo descreveu em detalhes o que estava sendo considerado. “O PRV não
propunha um levantamento imediato. Tínhamos clareza disso,
tanto os militares quanto nós…” Ambas as partes concordaram
que, a menos que houvesse um acontecimento político importante
no país – “uma tensão das massas” – não se podia fazer grande
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coisa, até que os conspiradores tivessem patentes suficientes para
comandar tropas.
O Caracazo de fevereiro de 1989 acabou sendo esse acontecimento de massas que estavam esperando, embora nem os civis nem os militares estivessem preparados.
Durante a crise política e econômica dos anos de 1980, grupos civis e militares foram se formando, estabelecendo contatos
eventuais. Um amplo espectro de civis hostis ao sistema político
corrupto e inadequado existente na Venezuela dedicou-se a estabelecer contatos com oficiais subversivos da Força Armada.
Naquele tempo, o MBR-200 era, sem dúvida, o único grupo
com consciência política, estruturado no seio da Força Armada.
Havia uma célula subversiva na Marinha, sobre a qual pouco
chegou ao conhecimento do público, e que não tinha conexões
com o grupo liderado pelo vice-almirante Hernán Grüber, que
organizou o segundo golpe de 1992. Havia também um grupo na
Força Aérea, organizado pelo tenente William Izarra, um oficial
revolucionário de linha trotsquista, formado em Harvard.
No começo dos anos de 1980, enquanto Chávez organizava
seu movimento bolivariano no Exército, Izarra formara uma
célula revolucionária na Força Aérea, chamada Aliança Revolucionária de Militares Ativos (Arma). Assim como Chávez, participou de reuniões com políticos civis, entre eles Teodoro Petkoff,
do MAS, e José Vicente Rangel. Ambos haviam sido candidatos
presidenciais de uma esquerda mais ou menos unida, mas nada
concreto resultou de suas reuniões com Izarra.
Izarra se uniria a Chávez depois do golpe de 1992, sendo
encarregado das relações internacionais do partido político deste
último, o MVR. Em novembro de 1998, foi eleito senador. Depois
de desacordos com Luis Miquilena, em dezembro de 1998, separou-se de Chávez, renunciou a seu posto no Senado, em maio de
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1999, e fundou seu próprio partido, o Movimento Democracia
Direta.
Tudo indica que Chávez sempre esteve convencido da necessidade de incorporar civis ao projeto. Fora influenciado nos anos
de 1970 pela revolução militar no Peru e concluíra, a partir de sua
própria trajetória, que a derrota do governo do general Velasco
Alvorado fora fruto da falta de participação civil e de apoio
popular. Tanto Chávez quanto o vice-almirante Grüber consideravam o apoio dos civis necessário para que suas “intervenções
militares” tivessem êxito e, assim, desde o princípio, deviam
incorporar grupos políticos civis bem escolhidos.
Chávez não limitara suas discussões com os civis ao grupo de
Douglas Bravo. No começo, também estabelecera contatos com
os líderes políticos da Causa R, uma organização esquerdista com
atividades em Caracas e no Estado de Bolívar. Conversou com seu
fundador, Alfredo Maneiro, pouco antes de seu falecimento, em
novembro de 1982. Maneiro era outro dos revolucionários
carismáticos, revelados pela luta guerrilheira dos anos de 1960.
Os militantes da Causa R, entre outros, estavam prontos para
se envolver em uma rebelião militar e Chávez tinha sua idéia de
como utilizá-los. As organizações criadas pelo governo esquerdista militar de Omar Torrijos, no Panamá, intrigavam-no.
Torrijos, e depois Manuel Noriega, havia organizado uma espécie de grupo paramilitar civil, conhecido como o Batalhão da
Dignidade, com capacidade para dar apoio aos militares.
Chávez observara esse batalhão durante seu treinamento no
Panamá, ficando impressionado com sua aparente capacidade
para agir como unidade irregular, bloqueando estradas e realizando outras tarefas junto com forças insurgentes de perfil mais
clássico. Aproximou-se dos líderes da Causa R com este objetivo:
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“Durante anos, sugerimos a esse pessoal que formasse ‘batalhões da
dignidade’ com civis dos bairros pobres, dirigidos por verdadeiros líderes comunitários. Fornecemos-lhes matéria sobre diferentes armas
e ministramos cursos de manipulação de armas, embora não pudemos
fornecer-lhes armas, por razões óbvias. Estávamos sob vigilância permanente”.
Esses contatos embrionários entre Chávez e a Causa R não
deram muitos resultados e, aparentemente, deixaram-no com
dúvidas sobre sua capacidade de agir. Chávez temia que alguns
dos grupos esquerdistas apostassem numa aliança tática com os
militares, com o simples objetivo de chegar ao poder, enquanto
os outros se sentiam profundamente incomodados com a idéia de
se apoiar em militares para fomentar a revolução.
Qualquer discussão entre civis de esquerda e oficiais potencialmente revolucionários punha na mesa temas que geravam
discórdia. A questão do papel que os civis desempenhariam no
desenvolvimento do golpe militar era menos importante que a de
saber que tipo de participação teriam no eventual governo resultante. A discussão não era apenas acadêmica. Muitos dos militantes de esquerda na Venezuela sentiram-se historicamente traídos pelo que acontecera depois do levantamento cívico-militar
organizado pela Junta Patriótica, em 1958. Na época, as pessoas tinham se sentido profundamente decepcionadas. Depois,
muitos deles tomaram parte na guerrilha dos anos de 1960 para
tentar recuperar o que pensavam que lhes fora roubado.
Depois do Caracazo, Douglas Bravo reatou o contato com
Chávez, embora Bravo garanta que Chávez logo começara a desligar-se dos “elementos revolucionários” com os quais estava em
contato. Depois de vários desentendimentos, o último encontro
entre os dois homens ocorreu em outubro de 1991, quatro meses
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antes do golpe que Chávez daria em fevereiro de 1992. Tentaram
aplainar suas diferenças, segundo o relato de Bravo:
“Fomos conversar sobre os planos da insurreição... Dizíamos que, primeiro, devia haver uma ação civil, como a greve geral da Junta Patriótica de 23 de janeiro. Depois viria a ação militar. Isso, para que a
sociedade civil tivesse uma participação ativa no movimento revolucionário. Mas era precisamente o que Chávez não desejava. De maneira
alguma. Não queria. De maneira alguma. Chávez não deseja a participação da sociedade civil agindo de maneira concreta. Deseja que a
sociedade civil o aplauda, mas não que participe, o que é outra coisa”.
Bravo conta a história, razoavelmente prejudicial, de um
incidente que ocorreu naquele tempo:
“Reúnem-se 20 ou 25 guerrilheiros, e Chávez traz um plano de ação
para um golpe militar. Mas o plano não tem nada a ver com o que leu
o companheiro de seu vilarejo e que havíamos discutido com ele em
relação a uma greve geral e à participação ativa do povo para gerar uma
ação de massas... De tal maneira que, quando anunciou esse plano,
apenas uma pessoa presente à reunião lhe disse: ‘José Maria – que era
seu nome na clandestinidade – vejo que aparecem todas as unidades
mobilizando-se. De Maracaibo, de Valencia, de Carora, de Barquisimeto,
de Yaracuy, de Maracay, de Caracas. Mas nós, os civis, onde estamos,
nesse plano?’ E Chávez, categoricamente: os civis atrapalham; depois
que estivermos no poder vamos chamá-los”.
Bravo garante que não se tratava apenas de uma tática de
Chávez, mas, sim, de uma concepção política.
Depois de romper relações com Bravo, Chávez continuou
realizando reuniões com outros velhos revolucionários do PRV,
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especialmente com Kleber Ramírez, um ex-guerrilheiro que se
tornara assessor do tenente-coronel Arias Cárdenas. Os dois
homens haviam se formado em um seminário católico e tinham
muito em comum. Ramírez estava implicado na preparação do
golpe de fevereiro de 1992, mas foi acusado, provavelmente sem
razão, de trair involuntariamente o plano anterior para dar o
golpe em dezembro de 1991.
Um problema associado à estratégia de permitir a participação
civil em um golpe militar, problema que Chávez não havia percebido em etapas anteriores, o de que os revolucionários civis raramente possuírem a disciplina rigorosa que caracteriza as conspirações militares. Quanto maior a implicação de civis nos planos do
MBR-200, maior o perigo de serem descobertos. Com o tempo,
Chávez desiludiu-se com muitos dos velhos esquerdistas, e estes
com aquele. Depois, refletiu sobre os efeitos negativos que a estratégia dos anos de 1960 tivera sobre o acontecer político do país:
“Um dos efeitos negativos da guerrilha na Venezuela foi o isolamento de
líderes políticos que de outra forma teriam contribuído para o desenvolvimento de outra mentalidade e de outra atitude no país. Muitos deles
permaneceram nas montanhas, no meio dos camponeses, nos bairros
pobres e no conjunto da sociedade. Dada tal situação histórica, tínhamos
de nos dedicar a transformar a consciência coletiva por meio da ação.
Tínhamos de preencher o vazio, convocando uma nova liderança...”
Essa análise, com sua acurada descrição de boa parte da esquerda venezuelana, diferenciava-se muito pouco da análise de
Alfredo Maneiro e da Causa R. Embora Chávez delegasse pouco à liderança da velha guerrilha, no que se refere à ação e ao
apoio, não há dúvida de que ela exerceu influência sobre seu
pensamento.
4 DE FEVEREIRO DE 1992
6. A INTERVENÇÃO MILITAR DE CHÁVEZ
COMPANHEIROS: INFELIZMENTE, NO MOMENTO, OS OBJETIVOS A QUE NOS
PROPUSEMOS NÃO PUDERAM SER ATINGIDOS NA CAPITAL... OS QUE ESTÁVAMOS EM CARACAS NÃO PUDEMOS TOMAR O PODER.
TENENTE-CORONEL HUGO CHÁVEZ, 4 DE FEVEREIRO DE 1992.
a madrugada da terça-feira, 4 de fevereiro de 1992, 5 unidades do Exército, dirigidas pelo tenente-coronel Hugo
Chávez, deslocaram-se por terra até Caracas. Naquele momento,
Chávez comandava um batalhão de pára-quedistas aquartelado
em Maracay, cerca de oitenta quilômetros da capital. O objetivo
principal dos insurrectos era deter o presidente Carlos Andrés
Pérez e prender todo o Alto Comando da Força Armada. Depois
seria dada ordem a todos os comandantes de guarnições do país
para obedecer as orientações do novo governo.
Uma unidade atacou o Ministério da Defesa, outra avançou
para La Carlota, aeroporto militar situado dentro da cidade, enquanto uma terceira se dirigiu para o Palácio de Miraflores.
Chávez, por seu lado, dirigiu-se de carro para o Museu Histórico
Militar, nas imediações do palácio, local previsto instalar os
equipamentos de telecomunicações. Dali deveria dirigir a operação de envergadura nacional que foi desencadeada.
O presidente Pérez estava no exterior, mas os conspiradores
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souberam, por contatos dentro do palácio, que ele voltaria naquele dia, e que chegaria ao aeroporto de Maiquetía, próximo ao
porto de La Guaira. “A idéia era deter Pérez no aeroporto” –
explicou Chávez, algum tempo depois, a Agustín Blanco Muñoz
– “e levá-lo pela rodovia ao Museu Histórico; nossos rapazes
haviam organizado uma operação-comando no aeroporto com o
propósito de capturá-lo, mas não puderam entrar, pois estava sob
vigilância desde o meio dia.”
Na realidade, a conspiração fora traída desde o dia anterior,
embora as autoridades não estivessem a par dos detalhes da rebelião, nem de suas dimensões. O general Fernando Ochoa
Antich, ministro da Defesa, sabia que algo estava se tramando e
fora, em pessoa, reunir-se com o presidente Pérez em Maiquetía,
organizando uma pequena força, composta de guardas nacionais
e marinheiros.
“A segunda opção” – prossegue Chávez – “consistia em esperar no túnel da rodovia e bloqueá-lo com um carro incendiado,
mas havia guardas demais e nossas forças eram insuficientes.
Depois, nosso plano consistia em levá-lo para sua residência em
La Casona, que sofrera um violento ataque, enfrentado pelas
forças da Disip. Pérez chegou a La Casona, mas minutos antes de
se fazer o cerco, conseguiu sair e foi para o Palácio de Miraflores,
que foi atacado pelos nossos tanques, mas ele escapou por uma
porta sem vigilância.”
Hugo Chávez e os principais conspiradores do MBR-200 estavam certos que o ano de 1992 fosse propício para dar o golpe
de Estado. Chávez foi posto à frente do batalhão de páraquedistas em Maracay em agosto de 1991; Jesús Urdaneta
Hernández e Joel Acosta Chirinos receberam seus regimentos uma
semana antes. Francisco Arias Cárdenas, que trabalhava nos
serviços de inteligência e mantivera um certo distanciamento no
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que se refere à conspiração, já havia recebido um batalhão de
artilharia em Maracaibo, no ano anterior.
Chávez percebeu que as autoridades estavam a par de algumas de suas atividades, embora não de sua extensão. Em dezembro de 1989, ele e outros militares foram levados a um tribunal
militar formado por generais que suspeitavam que eles estavam
preparando um golpe; é bem verdade que nada ficou comprovado. No entanto, Chávez estava consciente de que era preciso agir
com cautela. No princípio, seu plano era fomentar um golpe em
dezembro de 1991, mas, pelo visto, o plano foi denunciado, talvez por seus parceiros civis.
Em fevereiro de 1992, a estratégia combinada consistia em
avançar em direção a Caracas para capturar o presidente e o Alto
Comando Militar. Se os conspiradores não conseguissem deter o
presidente, seu movimento insurrecional teria nascido morto.
Chávez sabia que cerca de 10% da Força Armada o apoiava sem
reservas. Mas, caso o presidente Pérez não fosse capturado nas
primeiras horas e permanecesse em liberdade para dar ordens aos
40 comandantes de batalhão que se supunha lhe seriam fiéis, o
governo venceria, irremediavelmente. Chávez relata os fatos da
seguinte maneira:
“Estivemos em alerta desde quinta-feira, dia 30. Reunimo-nos com a
equipe da Força Aérea, Visconti, Reyes Reyes, e lembro-me de que no
domingo, 2 de fevereiro, quase à meia noite, telefonaram-me de
Miraflores, gente nossa, e disseram-me em código a data e a hora da
chegada de Pérez. Naquele momento, começamos a informar e a agilizar
a operação. Na segunda-feira amanhecemos mobilizando as pessoas”.
Chávez despediu-se de sua esposa e de seus filhos, deixando
com ela um cheque e dinheiro que retirara de sua conta bancá-
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ria em Maracay. À tarde da segunda-feira, 3 de fevereiro, os
conspiradores controlavam os quartéis de Maracay e de Maracaibo, assim como os de várias outras cidades, primeiro passo para
avançar em direção a Caracas.
Mas uma troca de mensagens telefônicas em código, com
outras bases militares, revelou que nem tudo ia bem:
“Veja, não posso.”
“A festa é hoje, mande-me o uísque.”
“Não, não podemos mandar o uísque, não conseguimos o dinheiro.”
“Bom, tudo bem, não me mande nada.”
Os conspiradores ignoravam que naquele momento já haviam
sido traídos. Horas antes, na segunda-feira, ao meio dia, um
capitão da Academia Militar da Venezuela, designado por Chávez
para deter seus oficiais superiores, decidiu confessar ao diretor o
que estava sendo tramado. O Alto Comando Militar sabia, pois,
que enfrentava uma tentativa de golpe, embora não soubesse de
onde viria. Tinha apenas 24 horas para investigar e para retomar
o controle do país.
Às 8 horas da noite, a coluna de soldados de Chávez, a bordo de uma frota de ônibus alugados, começou a deslocar-se de
Maracay para Caracas. O próprio Chávez chegou a seu posto no
Museu Histórico Militar à uma da manhã. Esperava poder dirigir as operações do interior do museu, mas teve uma desagradável
surpresa. Suas tropas foram recebidas com tiros de metralhadora. Pela primeira vez, viu-se obrigado a reconhecer que seus
planos tinham sido traídos. Graças a sua hábil retórica, conseguiu
entrar no museu, depois de persuadir o coronel de guarda de que
seus homens eram um reforço para o lugar. Mas, ao entrar, percebeu que o material de comunicações que esperava utilizar não
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fora entregue. Sem contato com as unidades rebeldes no resto do
país, estava sozinho e isolado.
Em outro lugar da capital, um grupo de soldados atacara
o palácio presidencial, mas não conseguiu entrar. A situação
dos conspiradores tornara-se crítica e se deteriorava. Os reforços foram bloqueados na periferia de Caracas; os generais da
Força Aérea decidiram que era arriscado demais deixar seus
aviões levantarem vôo, e um grupo civil, que teoricamente deveria assumir o controle da televisão e das rádios, fracassou
em sua tentativa. Os conspiradores enfrentavam um desastre.
Depois do golpe, o papel dos civis provocou acirrada polêmica entre os conspiradores militares. Aparentemente, em Valencia os civis que apoiavam o golpe chegaram ao quartel e receberam armas e veículos, com os quais ajudaram a tomar a
cidade. Em Caracas e em Maracaibo isso não aconteceu. Segundo Chávez,
“Os civis nunca chegaram. Nas imediações de Miraflores, eu mantinha
um caminhão cheio de armas, destinadas aos civis. Embora seja verdade que nós não chegamos a controlar os meios de comunicação e que,
portanto, não podíamos pedir apoio popular, também é verdade que
havia gente que sabia que a operação seria naquela noite, gente que
conhecia a contra-senha ‘Páez-Patria’, para pedir armas. Mas nunca
chegaram. A culpa não é só nossa. Há gente que sabia da operação com
antecedência e que simplesmente não veio”.
Na madrugada de 4 de fevereiro, o presidente Pérez apareceu
na televisão. Anunciou a um país atemorizado que uma rebelião
militar ocorrera em Maracay, mas que estava sendo reprimida. Ao
ver a matéria na televisão, Chávez compreendeu que seu golpe
fracassara. Às 9 horas da manhã, decidiu render-se.
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A essa altura, algo bem mais extraordinário aconteceu. Para
evitar maior derramamento de sangue, Chávez pediu que lhe
permitissem falar pela televisão, com o objetivo de pedir aos
oficiais que haviam tomado quartéis e cidades em outras partes
do país que se rendessem pacificamente. Oficiais como Francisco Arias Cárdenas, em Maracaibo, ainda controlavam suas regiões, mas, já que a conspiração falhara em Caracas, não havia
nenhuma possibilidade de êxito em nível nacional.
O aparecimento de Chávez na televisão durou apenas um minuto.
Sua conseqüência inesperada foi a de que passara a ser, de um oficial totalmente desconhecido, uma figura nacional. Um minuto no
ar, em um momento de estrondosa derrota pessoal, transformou-o
em uma espécie de salvador da pátria em potencial.
Sua mensagem televisiva era destinada, sobretudo, ao regimento de páara-quedistas de Aragua e à brigada de tanques de
Valencia. As duas forças haviam se apoderado de suas respectivas cidades e não davam a impressão de querer render-se. Chávez
percebeu que, se não o fizessem, haveria derramamento de sangue. Falou confiante e sem anotações.
“Antes de mais nada, quero dizer ‘bom dia’ a todo o povo da Venezuela,
mas esta mensagem bolivariana é dirigida, especialmente, aos valentes soldados do regimento de pára-quedistas de Aragua e ao regimento de tanques de Valencia.
Companheiros: infelizmente, no momento, os objetivos a que nos
propusemos não puderam ser atingidos na capital... os que estávamos
em Caracas não pudemos tomar o poder. Aí onde vocês estão, trabalharam bem, mas agora é tempo de refletir; novas possibilidades surgirão e o país terá a oportunidade de avançar definitivamente para um
futuro melhor.
Assim, pois, ouçam o que tenho para dizer: ouçam o comandante
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Chávez, que lhes envia esta mensagem, e, por favor, pensem bem.
Baixem as armas, pois é certo que os objetivos que nos havíamos proposto em nível nacional não estão a nosso alcance.
Companheiros, ouçam esta mensagem de solidariedade. Agradeço sua
lealdade, sua coragem e sua generosidade desinteressada; diante do país
e diante de vocês mesmos, assumo pessoalmente a responsabilidade por
este levante militar. Obrigado.”
Duas curtas frases desta mensagem televisionada causaram
especial impacto. Nunca ninguém, na Venezuela, ouvira um
político pedir desculpas por alguma coisa. Apesar dos erros políticos e econômicos dos últimos anos – desvalorização da moeda, colapso do sistema bancário, processos por corrupção, decadência econômica – nenhum daqueles que detinham o poder
jamais havia se desculpado, ou sequer aceito parte da responsabilidade. E, agora, havia um oficial que dizia assumir a responsabilidade por algo que fracassara. Era algo completamente novo.
A outra expressão que cativou a imaginação popular foi “no
momento”, já que foi interpretada de forma otimista pela maioria, como um sinal de que Chávez voltaria à luta, posteriormente. Seu projeto revolucionário de derrubar o governo se frustrara, mas reviveria. O próprio Chávez afirma que as palavras que
pronunciou saíram no momento; não tinha nenhum motivo especial para dizer “no momento”. Nos anos seguintes, essa frase
se converteria em sua marca de fábrica, na promessa implícita de
que voltaria.
Depois do golpe, com as lideranças da conspiração atrás das
grades, os políticos do antigo regime voltaram a um país que sofrera mudanças dramáticas: a instituição monolítica da Força
Armada estava agora profundamente dividida, e a grande maioria das pessoas se alinhava decididamente com o autor do golpe.
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Os políticos tinham de ajustar seu discurso à nova realidade.
Durante uma sessão extraordinária do Congresso, convocada
imediatamente depois do golpe, o ex-presidente Rafael Caldera
pronunciou um imponente discurso que esteve a ponto de garantir-lhe apoio. Sem dúvida, assim foi interpretado pelas pessoas
que o reelegeram presidente 2 anos mais tarde, em dezembro de
1993, e que o consideravam a única figura política importante
que entendera o sentimento do povo.
O discurso de Caldera culpou o Presidente Pérez e suas políticas neoliberais pelas dificuldades que vivia a Força Armada.
Disse muitas verdades.
“Devemos reconhecer, magoa-nos profundamente, mas é verdade: não
sentimos na classe popular, no conjunto de venezuelanos não políticos, e até nos militantes de partidos políticos, esse fervor, essa reação
entusiasta, imediata, decidida, abnegada, disposta a tudo diante da
ameaça contra a ordem constitucional. E isso nos obriga a aprofundar
a análise da situação e de suas causas.
Nestes momentos, devemos dar uma resposta ao povo e tenho a convicção de que não será a repetição dos mesmos discursos que há trinta anos são pronunciados cada vez que há algum levante a que assistimos pela televisão, o que responde à inquietação, ao sentimento, à
preocupação popular. O país espera outra mensagem. Gostaria de dizer desta tribuna, com toda a responsabilidade, ao senhor presidente
da República, que cabe a ele, principalmente, embora também a todos,
a tarefa de enfrentar imediatamente as profundas reformas que o país
reclama. É difícil pedir ao povo que se sacrifique pela liberdade e pela
democracia, quando ele não acredita que a liberdade e a democracia
sejam capazes de lhe dar o que comer e de impedir o exorbitante aumento do custo de vida, quando não se foi capaz de pôr fim definitivamente ao terrível mal da corrupção, que aos olhos de todos está
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corroendo diariamente as instituições. Esta situação não pode ser escondida. O golpe militar é censurável e condenável, sem dúvida, mas
seria ingênuo pensar que se trata tão-somente de uma aventura de uns
quantos ambiciosos que, por sua conta, se lançaram a ela precipitadamente, não se dando conta daquilo em que estavam se metendo. Há um
contexto, há uma questão de fundo, há uma grave situação no país e,
se essa situação não for enfrentada, o destino nos reserva muitas e
gravíssimas preocupações.”
Caldera não foi o único a pronunciar um discurso que foi
interpretado como uma mensagem codificada de apoio ao golpe. Seu discurso foi seguido pelo de Aristóbulo Istúriz, um exdirigente do sindicato de professores e deputado pela Causa R.
Assim como Caldera, Istúriz recebeu a recompensa do eleitorado por suas opiniões, visto que foi eleito prefeito de Caracas (e,
depois, vice-presidente, apoiando Chávez, da Assembléia Constituinte de 1999). Quatorze soldados morreram durante o golpe,
50 militares e cerca de 80 civis ficaram feridos no tiroteio. Mais
de mil soldados foram presos.
Durante vários meses travou-se um intenso debate sobre o
papel desempenhado pelo ministro da Defesa, Fernando Ochoa
Antich. Chávez o conhecia há muitos anos e houve rumores de
que estaria vinculado ao golpe. Isso nunca ficou provado, mas se
acreditava que reagira lentamente diante de oficiais cujos planos
conspiratórios conhecia. No incestuoso mundo da elite política
venezuelana, sabia-se que seu irmão, Enrique Ochoa Antich,
pertencia à esquerda. Enrique era um membro destacado, e futuro secretário-geral do MAS, o partido de esquerda que poria
todo o seu peso na campanha eleitoral de Chávez, em 1998.
Homem decente, embora fanfarrão, Fernando Ochoa Antich seria transferido do Ministério da Defesa para o Ministério das
Relações Exteriores e, depois, confinado como embaixador no
México. Mas, em fevereiro de 1992, tinha a responsabilidade de
investigar o estado da Força Armada. Por que ocorrera um golpe que quase tivera êxito? Que medidas era preciso tomar para
evitar que ocorresse de novo?
27 DE NOVEMBRO DE 1992
7. O GOLPE DO VICE-ALMIRANTE HERNÁN GRÜBER
COMO É POSSÍVEL QUE A UNIÃO SOVIÉTICA TENHA DESTITUÍDO O MINISTRO DA
DEFESA E OUTROS ALTOS OFICIAIS, QUANDO UM JOVEM PILOTO ALEMÃO
ATERRISSOU SEU AVIÃO NA PRAÇA VERMELHA, ENQUANTO NA VENEZUELA O
COMANDANTE DO EXÉRCITO PERMANECE EM SEU CARGO DEPOIS QUE A
METADE DE SUAS TROPAS PARTICIPOU DE UMA REBELIÃO, E TODO O MUNDO
FAZ DE CONTA QUE NÃO ACONTECEU NADA?
VICE-ALMIRANTE HERNÁN GRÜBER, MARÇO DE 1992.
om o tenente-coronel Chávez atrás das grades, depois de sua
“intervenção militar”, de fevereiro de 1992, a segunda tentativa de golpe, meses depois, no mesmo ano, parecia quase o
prolongamento do primeiro, apesar de ter sido muito mais violenta.
No dia 27 de novembro de 1992, fazia-se um esforço suplementar para capturar o presidente Pérez, com o Palácio de Miraflores
bombardeado por via aérea; Caracas e Maracay foram cenários de
intensos combates, em que mais de 170 pessoas morreram.
O organizador e chefe do golpe foi o vice-almirante da Marinha, Hernán Grüber Odremán, com a ajuda de Francisco
Visconti Osório, da Força Aérea, um membro da conspiração
bolivariana cujos planos haviam fracassado em fevereiro. Os dois
oficiais iriam se envolver na política durante o governo de
Chávez, em 1999; Grüber, como governador do Distrito Federal,
e Visconti, como membro da Assembléia Constituinte.
O vice-almirante Grüber não era um rebelde nato. Nascido em
Upata, em 17 de fevereiro de 1940, é descendente de uma famí-
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lia de imigrantes alemães de velha data, proprietária de terras no
Estado de Bolívar, que outrora pertenceram às missões do Caroni.
Alistou-se na Marinha em 1958, enquanto seu irmão Roberto
fazia o mesmo no Exército, chegando a general. Grüber participou da eliminação das guerrilhas nos Estados de Lara e
Anzoátegui, nos anos de 1960, ocupando depois posições de
comando na área de fronteira, especificamente em Puerto Páez,
na fronteira com a Colômbia.
Depois do golpe de Chávez, houve muitas discussões no governo e na Força Armada, sobre o que poderia suceder no futuro. Quem estava por trás da conspiração? Até que ponto havia se
espalhado? Que medidas seria preciso adotar para deter a desagregação?
Em meados de março de 1992, cerca de seis semanas depois do
golpe, o general Ochoa, ministro da Defesa, convocou o vice-almirante Grüber para uma conversa particular. Esteve também
presente outro oficial de alta patente na Marinha, o vice-almirante
Luis Enrique Cabrera Aguirre. O assunto em pauta era a onda de
descontentamento que afetava a Força Armada. Em particular, um
dos motivos do descontentamento era a forma como os oficiais
eram promovidos às patentes superiores, com apadrinhamento
político, sem levar em conta os procedimentos estabelecidos.
A versão da reunião, descrita por Grüber, destinava-se explicitamente a expressar sua simpatia pela causa, mas, ainda assim,
presta contas, friamente, de até que ponto chegava o descontentamento na Força Armada, e da forma extrovertida como os
oficiais superiores estavam dispostos a manifestar suas preocupações a seus indecisos patrões políticos.
O general Ochoa manifestou diante dos dois almirantes sua
preocupação pela situação da Força Armada. Em sua opinião, a
situação “ainda era bastante delicada”. Ouvira dizer “que havia muito
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descontentamento entre os jovens oficiais de nível médio” e queria
conhecer a opinião dos dois almirantes com relação ao assunto.
“Veja” – respondeu Cabrera – “deve entender que os oficiais
superiores perderam a credibilidade e a confiança. Assim, sem
mais nem menos. Os subalternos já não acreditam em seus generais nem em seus coronéis.”
“– Como pode estar tão certo? – perguntou Ochoa.
– Coloca todos no mesmo saco?
– O que se pode esperar – respondeu Cabrera – de generais e de coronéis
que foram promovidos por serem apadrinhados por algum senador?
– E, então, o que se há de fazer? – perguntou Ochoa, dirigindo o olhar
para Grüber.
– Quer que lhe diga? – respondeu energicamente Grüber (é óbvio que
se tratava de seu próprio e colorido relato). – Deveria ser pedida a
renúncia de todo o Alto Comando. Eles deveriam ter baixa imediatamente, sendo substituídos por oficiais com verdadeira aptidão militar.
– Mas isso nos levaria ao caos – objetou Ochoa.
– Veja – prosseguiu Grüber – o caos será pior se continuar a crescer o
descontentamento dos militares. Como é possível que a União Soviética tenha destituído o ministro da Defesa e outros altos oficiais, quando
um jovem piloto alemão aterrissou seu avião na Praça Vermelha, enquanto na Venezuela o comandante do Exército permanece em seu
cargo depois que a metade de suas tropas participou de uma rebelião,
e todo o mundo faz de conta que não aconteceu nada?”
Era uma boa pergunta, mas o general Ochoa não tomou providências. Não podia nem varrer o Alto Comando, nem disciplinar os jovens oficiais que claramente preparavam outro golpe.
Como um coelho cego pelas luzes, o governo inteiro estava paralisado, incapaz de agir.
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Ochoa conseguiu encaminhar um estudo acadêmico sobre a
situação na Força Armada. Queria ter uma idéia clara das dimensões da dissidência. Tão importante tarefa foi confiada ao vicealmirante Cabrera e uma equipe de pesquisadores universitários
foi colocada a sua disposição. Entrevistaram um grande número de importantes políticos e generais, tanto na reserva quanto
na ativa, como também enviaram questionários a cinco mil
homens nos principais quartéis do país: Aragua, Táchira, Zulia,
Monagas e Caracas.
Seu relatório, assinado por Cabrera, ficou pronto em meados
de julho. Revelava a existência de cinco queixas mais importantes sobre as condições da Força Armada e o estado geral do país,
assim como fazia um certo número de recomendações. Algumas
das queixas relacionavam-se às condições de trabalho: o inadequado atendimento à saúde na Força Armada; a ineficácia da
seguridade social; e a pouca compreensão do sistema de promoções e do provimento de compensações em decorrência da falta de
promoções. Outras queixas indicavam um descontentamento mais
geral (e, por conseguinte, menos remediável): a falta de liderança
e a cultura da corrupção, tanto no mundo político quanto no
militar, que havia se infiltrado no país até os mais altos níveis.
O chefe da equipe de generais, general Ivan Jiménez Sánchez,
recebeu e analisou o relatório. Até prometeu criar uma comissão
que cuidaria da implementação de suas recomendações. Inevitavelmente, talvez devido ao estado de desordem política no país,
o relatório foi engavetado.
Em agosto de 1992, não tendo garantias de que as reformas
que incitavam ao golpe seriam postas em práticas, e sabendo que
se fazia caso omisso do relatório de julho, a facção do vice-almirante Grüber começou a preparar um novo golpe de Estado.
Acompanhavam-no na conspiração Cabrera, da Marinha,
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Visconti, da Força Aérea, e vários contatos civis, principalmente da Causa R. A facção de Grüber também teve o apoio dos
membros sobreviventes do MBR-200, de Chávez, dirigido por este
de sua cela na prisão de Yare. Autodenominaram-se Movimento 5 de Julho, em homenagem à luta pela independência.
Ao que parece, perdeu-se mais tempo planejando o que aconteceria depois do eventual êxito da insurreição, do que pensando em como conseguir que esta fosse mais eficaz do que a anterior. O plano político inicial era formar um conselho de Estado,
composto por civis e militares, com um presidente civil, que
duraria um ano, reorganizando o país. O modelo era a Junta
Patriótica de 1958, embora também conhecessem as conseqüências do golpe de Rómulo Betancourt contra o general Isaías
Medina Angarita, em 18 de outubro de 1945, quando uma Junta Revolucionária de governo instalou-se no Palácio de
Miraflores.
Seus planos estiveram sujeitos a numerosos atrasos e, com o
passar das semanas, vários rebeldes-chave pareciam perder o
entusiasmo. As eleições para prefeitos e governadores seriam
realizadas em dezembro, e os rebeldes tinham consciência de que
seus atos seriam mal interpretados se o golpe ocorresse durante
ou depois delas. Decidiram que deveriam agir com rapidez: em
novembro. O vice-almirante Grüber, cujo pseudônimo era “Júlio
César”, descreve, em suas memórias, como foi tomada a decisão
de “atravessar o Rubicão”.
Em 25 de novembro, ele deu os toques finais na preparação,
gravando um vídeo do discurso que planejava transmitir à nação no dia do golpe. Ensaiou diante das câmaras e os técnicos
mostraram-se satisfeitos com o resultado.
Dois dias depois, na manhã de 27 de novembro, chegou a seu
quartel-general para presidir o que pensava que seria um golpe bem
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organizado. Mas, como sucedera anteriormente com o golpe de
Chávez, houve erros e omissões graves, já que alguns participantes importantes não cumpriram os compromissos assumidos. O pior
de tudo foi a falha dos equipamentos de telecomunicações. Assim
como Chávez anteriormente, Grüber não dispôs de meios para se
comunicar com seus oficiais em outras partes do país. Ele também
estava fadado ao isolamento.
Houve uma diferença. Desta vez, os conspiradores conseguiram tomar um canal de televisão, e Grüber depositou suas esperanças em um levante civil. Se seu vídeo, que pedia apoio a seu
programa de reconstrução nacional, chegasse a ser divulgado nas
telas da televisão em todo o país, ele esperava, ansiosamente, que
as massas se levantariam, apoiando sua rebelião.
O desastre tornou a ocorrer, e ninguém parece saber como
aconteceu. Em lugar das comedidas palavras gravadas do vicealmirante, anunciando um golpe de Estado e fazendo um chamado ao povo, uma série de imagens de conflitos passou pelas telas de televisão. Apareceram homens mascarados, somando-se
logo a uma onda de saques que fazia pensar no Caracazo; ocasionalmente, ouvia-se a retórica incendiada do recluso tenentecoronel Chávez.
Parece que houve uma troca de vídeos, ou talvez o operador
tenha introduzido a fita errada na máquina. Depois, ninguém
assumiu a responsabilidade por esse erro. A nação inteira, diante de suas telas, enquanto se preparava para ir trabalhar, não sabia
se devia rir ou chorar. O certo é que não havia a mínima intenção de sair para as ruas, apoiando uma revolução organizada com
tanta incompetência.
Horas depois, na mesma manhã, tal como já fizera em fevereiro, o presidente Pérez apareceu nas telas para anunciar que
estava tudo bem; ao meio dia o vice-almirante rendeu-se. Nesse
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preciso instante, um avião militar rompeu a barreira do som ao
sobrevoar Caracas, provocando um estrondo. O vídeo de Grüber,
que nunca foi ao ar, falava desse sobrevôo como o sinal para que
o povo fosse para as ruas. Naquele momento, ninguém se mexeu.
Visconti, lucidamente, embarcou seus conspiradores da Força
Aérea em um avião de carga Hércules e atravessou a Colômbia,
buscando asilo no Peru. Nas prisões de Yare e San Carlos, um
novo grupo de conspiradores militares uniu-se a Chávez atrás das
grades.
8. LUIS MIQUILENA E A FRENTE PATRIÓTICA
DE 1989
UMA FRENTE PATRIÓTICA NÃO SE INVENTA; NÃO SE PODE REUNIR
CEM PERSONALIDADES EMINENTES E DIZER: “SOMOS UMA FRENTE”.
NÃO ACREDITO NISSO.
HUGO CHÁVEZ, ENTREVISTADO EM AGOSTO DE 1995.
tenente-coronel Chávez e o vice-almirante Grüber não
agiram isoladamente. Os planejadores das duas tentativas
de golpe de Estado de 1992 haviam previsto uma mudança revolucionária de governo, realizada pelos militares, aliados a
grupos civis. Haviam se voltado principalmente para as forças da
esquerda venezuelana, que possuíam uma longa tradição de
estímulo e participação em subversões militares. A maioria das
tentativas de golpe no último meio século, especialmente em 1945
(contra Medina Angarita), em 1958 (contra Pérez Jiménez) e em
1962 (contra Rómulo Betancourt), contou com a participação de
civis.
Em função do Caracazo de 1989, um grupo de ativistas civis,
desejosos de aproveitar a explosão popular, tentou retomar essa
tradição. Assim, chegaram a formar uma nova Frente Patriótica,
um instrumento político que floresce episodicamente na história
venezuelana quando gente de boa vontade de todo o espectro
político une-se, nos momentos críticos, para tentar mudar o curso
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dos acontecimentos. Uma Frente Patriótica desempenhou um
papel importante na queda de Pérez Jiménez em 1958 e, em um
passado mais remoto, em 1850, uma Frente similar foi criada, nos
tempos de Ezequiel Zamora.
A elite venezuelana gosta de falar de seu país como de uma
“democracia”, ainda que isso seja algo relativamente novo. A
Venezuela não esteve alheia aos governos militares – foi governada por ditadores militares durante a primeira metade do século
20 e também durante boa parte do século 19. Com uma história
como essa, é pouco surpreendente que os políticos procurem
envolver os militares em seus planos; a esquerda não é uma
exceção. “Os venezuelanos estão tão acostumados a fazer do
Exército o árbitro de suas lutas políticas”, escreveu Rafael Caldera
em 1979, “que em qualquer momento os grupos mais variados,
com os objetivos mais diversos, tentam envolver o Exército em
novas aventuras, para mudar nossa realidade política”
Durante a II Guerra Mundial, o governo do general Isaías
Medina Angarita contou com o apoio do PCV e o golpe de Estado que derrubou esse governo, em 1945, foi organizado por
políticos civis da AD, inclusive Rómulo Betancourt, e, em menor
medida, Carlos Andrés Pérez. Depois, em 1958, o governo militar foi derrubado pela Frente Patriótica do momento, a Junta
Patriótica, um grupo de esquerda que conspirou junto com setores
do Exército. Naquela época, a esquerda proporcionou um caloroso apoio à candidatura a presidente do almirante Wolfgang
Larrazabal. Finalmente, em 1962, durante a campanha guerrilheira contra o regime de Betancourt, os civis esquerdistas estiveram
intimamente vinculados a duas importantes revoltas militares, em
Carúpano e Puerto Cabello.
A nova Frente Patriótica que se formou depois do Caracazo,
em 1989, era presidida por Luis Miquilena, o líder do sindicato
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de motoristas de ônibus de Caracas na década de 1940, e um dos
grandes sobreviventes da esquerda venezuelana. Depois, seria o
principal assessor político do tenente-coronel Chávez e, mais
tarde, com mais de 80 anos, o presidente da Assembléia Constituinte de 1999.
Quem participou da Frente compartilhava o interesse pela
criação de uma aliança política entre civis e militares. Grande
parte do debate interno que se travou na Venezuela desde o
advento do governo Chávez girou em torno do legado da relação entre civis e militares. Quando o criticam quanto ao fato de
que seu governo tem suas origens em um golpe militar fracassado, ainda que tenha sido eleito presidente anos mais tarde, Chávez
lembra que o governo progressista do general Medina Angarita,
por quem sente certo afeto, foi derrubado por um golpe organizado por Betancourt e pelo partido AD, um grupo político pelo
qual sempre manifestou seu desprezo. Betancourt é lembrado com
entusiasmo por seus partidários, como “o pai da democracia”,
ainda que seu caminho para o poder tenha passado por um golpe militar.
Luis Miquilena é um testemunho vivo dos debates daquela
época. “Havia um certo processo de desenvolvimento político na
Venezuela” – lembra – “que começou a substituição da ditadura
de Juan Vicente Gómez pelo general Eleazar Lopez Contreras; este
e Medina Angarita, que abriu as portas da democracia, obtiveram avanços consideráveis.”
O general Medina Angarita governou a Venezuela durante os
anos do auge provocado pela II Guerra Mundial, quando os aliados faziam o impossível para garantir o fornecimento do petróleo venezuelano. Obteve importantes concessões das empresas
petrolíferas estrangeiras e contou com o apoio do PCV. Parte da
esquerda ainda se lembra de forma positiva do resultado de seu
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governo. No entanto, suas políticas progressistas nunca tiveram,
em outros aspectos, o apoio dos funcionários das empresas de
petróleo, visto que as atividades sindicais eram cerceadas, para
que, em tempos de guerra, as greves não interferissem na produção. A AD, ao defender os direitos dos trabalhadores, transformou-se rapidamente na força política dominante nos campos de
petróleo. Rómulo Betancourt, fundador da AD, e alguns militares deram um golpe, em outubro de 1945, pois temiam que os
comunistas se aliassem ao sucessor designado de Medina
Angarita.
Miquilena, que descreve a si mesmo como “um lutador social que tomou parte na luta sindical”, adotou uma atitude benevolente com relação a Medina Angarita, ainda que, diferentemente dos comunistas ortodoxos, não apoiasse ativamente esse
governo. Mas quando esse governo foi ameaçado, no entanto, ele
combateu o levante militar: “Desempenhei meu papel, em apoio
a Medina, contra o levante da AD, para impedir que essa ação
militar triunfasse”.
Medina Angarita foi derrubado. Porém, como diz Miquilena,
o golpe acabou se transformando em uma faca de dois gumes
para seus organizadores. Betancourt e a AD (assim como seu
presidente, Rómulo Gallegos) sabotaram os trabalhos do governo golpista por um curto período de três anos, de 1945 a 1948,
mas seu governo foi, por sua vez, derrubado em 1948 por Pérez
Jiménez, que governaria por toda uma década.* “A AD viu-se
obrigada a arcar com as conseqüências desastrosas de uma ditadura que durou dez anos e que acabou com todas as liberdades
civis”.
*
Qualquer particular que se dispõe a transportar passageiros em seu próprio veículo
mediante pagamento da passagem, como complemento de renda. Meio de transporte muito comum em pequenas cidades e entre cidades venezuelanas.
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Para se entender a História recente, entender esses caminhos
obscuros do passado são quase indispensáveis. A trajetória de
Luis Miquilena, político com uma longa história de dissidência,
é particularmente esclarecedora, visto ser o homem que ajudou
a reviver a tradição de nacionalismo socialista que constitui o
núcleo do projeto de Hugo Chávez. Em 1944, quando ainda era
um líder sindicalista, Miquilena fez parte de um grupo comunista
antiestalinista, conhecido como os Machamiques, em um momento em que o PCV ortodoxo somava forças com Medina
Angarita. Isso ocorreu no final da II Guerra Mundial, seguindo
instruções dos comunistas estadunidenses liderados por Earl
Browder (e, por extensão, de Joseph Stalin, aliado dos Estados
Unidos). Moscou não queria ações que pudessem inquietar seu
aliado ocidental.
Miquilena e os irmãos Machado, Gustavo e Eduardo, ambos comunistas, opunham-se a essa posição (daí o nome de
Machamiques). Pensavam que a política devia ser decidida na
Venezuela, não em Moscou – e menos ainda nos Estados Unidos.
Em 1946, Miquilena ajudou a fundar um novo partido comunista
antiestalinista, chamado Partido Comunista Venezuelano Unitário.
No princípio, esse partido foi conhecido como “os Negros” porque,
na distribuição de cores eleitorais (fundamental para uma população em boa parte analfabeta), o PCV tinha a cor vermelha.
O principal organizador dos “negros”, criador e pioneiro do
nacionalismo socialista na Venezuela, foi Salvador de la Plaza,
um desconhecido professor de História da Universidade Central
da Venezuela, que morreu nos anos de 1970, com 74 anos de
idade. Essa figura esquecida, conhecida por seus estudantes como
o “padre vermelho”, é um dos autores intelectuais do projeto de
Hugo Chávez. É, pois, impossível compreender as raízes históricas do êxito de Chávez sem fazer referência ao poderoso comu-
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nismo antiestalinista de Miquilena e de la Plaza, que influenciaria amplos setores da esquerda, a partir dos anos de 1940.
Miquilena representa o mais importante porta-voz dessa tradição, compartilhada por outros membros da Frente Patriótica de
1989.
Além de Miquilena, o núcleo principal da Frente era formado por Douglas Bravo, o líder guerrilheiro dos anos de 1960;
Manuel Quijada, um advogado envolvido nas rebeliões militares
de 1962; Lino Martíinez, outro ex-guerrilheiro, que seria, depois,
ministro de Chávez; e o tenente-coronel William Izarra, marxista
revolucionário que se retirara recentemente da Força Aérea.
A Frente publicou uma série de panfletos chamados “Três
décadas de frustração”, que causaram certo impacto na imprensa. Entre suas propostas mais concretas, estava a convocação de
uma Assembléia Constituinte, que redigiria uma nova Constituição, recomendação que viria a ser um dos elementos essenciais
do programa político de Chávez. No entanto, os membros da
Frente provinham de diversos horizontes e estavam muito divididos politicamente para que ela durasse até o final do ano.
Chávez logo a qualificou de “natimorta”. “Uma Frente Patriótica
não pode ser inventada; não é possível reunir cem personalidades eminentes e dizer: ‘Somos uma Frente’. Não acredito nisso”.
Ainda assim, a Frente de 1989 foi um fato importante para os
anos seguintes, já que vários de seus membros se tornariam elementos fundamentais do governo de Chávez, em 1999. Pedro
Duno, professor de Filosofia na Universidade Central da
Venezuela, e desde sempre uma figura influente na esquerda, foi
um dos esquerdistas civis envolvidos. Duno, que pertencia a uma
família de militares, manteve seus contatos com os militares
durante anos. Faleceu em novembro de 1998, logo após ter sido
eleito senador pelo Estado de Miranda, na bancada dos aliados
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de Chávez. Quando escrevia em Últimas Notícias, em 23 de junho de 1991, dois anos depois do Caracazo, preparava o terreno
intelectual para um novo golpe:
“A Venezuela é um país em estado de colapso avançado, cujas características de corrupção e pilhagem, incompetência, irresponsabilidade
e cinismo definem o sombrio panorama do presente. Nesta situação de
abandono sugere-se que a Força Armada intervenha. Já que é impossível utilizar a força do argumento racional, ou da lei, dos direitos, ou
da Constituição, porque o Estado e o governo não dão garantias, torna-se justificável usar o argumento racional da força, a razão última”.
Apenas seis meses mais tarde, em 4 de fevereiro de 1992, o
tenente-coronel Chávez tomou-o ao pé da letra.
9. TORRIJOS E VELASCO, TRADIÇÃO DA REBELIÃO
MILITAR NA AMÉRICA LATINA
UMA GERAÇÃO DE JOVENS OFICIAIS... DECIDIU NÃO APENAS ORGANIZAR UM
GOLPE DE ESTADO, MAS TAMBÉM VARRER TODO O SISTEMA DE “DEMOCRACIA” APARENTE DO PAÍS. AS PESSOAS TINHAM SE ACOSTUMADO A MISTURAR A
POLÍTICA COM SUA ATIVIDADE ECONÔMICA, USANDO LIBERDADE DEMOCRÁTICA DA MESMA FORMA COMO AS MULHERES USAM SEUS COSMÉTICOS.
GENERAL OMAR TORRIJOS, AGOSTO DE 1975.
á mais de um quarto de século, em 1974, fui visitar o general
Omar Torrijos, o militar que governava o Panamá. Fui até
sua residência de praia, na costa do Pacífico, e passamos o dia inteiro conversando. Éramos apenas 4: o chefe do serviço secreto,
o reitor da universidade, Torrijos e eu. O general passou a maior
parte do dia deitado em sua rede, à sombra, em um pátio com
vista para o mar, às vezes conversador, às vezes taciturno. A
maior parte do tempo falamos dos camponeses e da Reforma
Agrária, e do que acontecera nas áreas rurais da China e do Chile,
do Vietnã, Peru e Cuba. Torrijos era um grande admirador de
Fidel, mas dizia que não estava de acordo com tudo o que se
estava fazendo lá. “Deviam ter deixado aos camponeses um
pedacinho de terra que pudessem chamar de sua”.
Como Graham Greene haveria de constatar, era difícil não
ficar cativado por essa figura encantadora, a antítese completa
do oficial latino-americano com óculos escuros. Torrijos tomou
o poder em 1968 e governaria o Panamá durante 13 anos, até sua
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morte em um acidente aéreo, em 1981. Tinha um programa radical de reformas, relacionadas principalmente com a zona do
Canal, pedaço do território panamenho que os estadunidenses
expropriaram em 1903. Na seqüência, a zona foi administrada
diretamente pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos,
depois pelo Pentágono, sendo utilizada para construir um canal
interoceânico e inumeráveis bases militares. Mas o programa de
Torrijos ia além da temática nacionalista do canal. Rebelou-se
contra a corrupção da elite política e implantou uma Reforma
Agrária em benefício dos camponeses.
A história da América Latina, nas décadas de 1970 e 1980, foi
tão marcada pelas ditaduras militares de direita que é fácil esquecer a existência de outra tradição, já que, em várias oportunidades, tanto no século 19, quanto no século 20, oficiais radicais
ergueram a bandeira dos interesses do povo, dispostos a lutar em
seu nome contra os latifundiários locais ou os
capitalistas estrangeiros: Manuel Izidro Belzú, na Bolívia,
Ezequiel Zamora, na Venezuela; Luiz Carlos Prestes, no Brasil;
Marmaduke Grove, no Chile. A lista é longa e fascinante.
Quando membros da velha elite política da Venezuela reúnem-se para debater o fenômeno Chávez, gostam de analisar
exemplos de países onde o domínio militar foi imposto à sociedade civil por oficiais nacionalistas de esquerda – tanto na
América Latina quanto em outros lugares. Seus exemplos estrangeiros preferidos são Kemal Ataturk, na Turquia, e Gamal
Abdul Nasser, no Egito, com referências ocasionais a Charles de
Gaulle, na França. Mais perto de casa, os “suspeitos habituais”
considerados são Omar Torrijos, no Panamá, Juan Velasco
Alvarado, no Peru, e Juan Domingo Perón, na Argentina. Sempre se diz que o tenente-coronel Chávez vai tomar um desses
caminhos.
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Embora a democracia, em detrimento do domínio militar,
tenha se transformado na prática dominante na América Latina,
durante os anos de 1990, nem sempre foi assim. Existem poucos
períodos na História do continente durante os quais os militares
não tenham desempenhado o papel principal, ainda que a maioria tenha sua origem na direita, e não na esquerda.
As elites governantes do continente sempre mantiveram
posições ambíguas em relação a suas Forças Armadas. Por um
lado, os militares são lembrados como baluartes essenciais e
históricos contra os indígenas rebeldes, cujas terras foram
confiscadas por colonos através dos séculos. Nesse contexto, o
soldado faz, às vezes, de salvador da pátria, a quem os descendentes dos colonos, supõe-se, devem manifestar sua eterna gratidão. Visto que os descendentes dos povos indígenas povoam
agora imensas e explosivas periferias [de grandes cidades] do
continente, e continuam sendo uma ameaça semelhante, embora diferente, para os herdeiros da classe colonial, a gratidão em
relação às Forças Armadas está na ordem do dia.
Do outro lado, embora os militares sejam úteis ou até indispensáveis para as elites governantes, também são considerados
como pertencentes a uma classe social inferior, pela qual se tem
pouca consideração. Os oficiais são, freqüentemente, alvo de
piadas sem fim. Os excessos cometidos pelas ditaduras militares
dos anos de 1970 e 1980 mancharam o nome de todos os militares, e as elites de hoje, tanto as tradicionais quanto as que
saíram recentemente das universidades, tendem a considerar os
militares como um mal necessário, que é melhor serem mantidos
reclusos em seus quartéis. Essa visão foi reforçada pelo governo
dos Estados Unidos, na década de 90, em total contradição com
suas políticas anteriores, que favoreciam ditaduras rígidas em
relação a regimes civis irrelevantes.
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Os estadunidenses temiam que os governos democráticos fossem dominados por nacionalistas, esquerdistas ou socialdemocratas pouco preocupados com os interesses econômicos ou estratégicos dos Estados Unidos. Ao longo dos anos de 1970, e durante
os anos de 1980, os Estados Unidos viam com benevolência grande
parte da América Latina cair sob o domínio militar, favorecendo
o processo. O modelo surgido no Brasil, em 1964, foi seguido pelo
Chile, em setembro de 1973, quando o general Augusto Pinochet
derrubou o governo eleito de Salvador Allende. A tradição perpetuou-se na Bolívia e no Uruguai, nos anos de 1970, e chegou ao
auge, em março de 1976, com o golpe do general Jorge Videla, na
Argentina, que derrubou o governo de María Estela Martínez, viúva
de Perón.
Embora esses governos tenham se distinguido por seu flagrante desrespeito aos direitos humanos, os generais gozaram do
apoio irrestrito do governo de Washington. Sua firme posição de
apoio aos interesses econômicos tradicionais dos Estados Unidos
e sua obtusa posição anticomunista, durante a guerra fria, prevaleceram sobre qualquer dúvida acerca da repressão interna. O
tipo de governo centralizado e de mão dura proposto pelos militares, que proibia que os trabalhadores se associassem a sindicatos, era muito apreciado pelo capital estrangeiro.*
Na década de 1990, no entanto, com o desenvolvimento de
uma nova forma de economia neoliberal, que prescinde de governos militares fortes, e com o fim da urgência estratégica imposta pela guerra fria, Washington começou a favorecer a democracia. Os característicos óculos escuros dos ditadores militares
saíram de moda.
Ainda assim, existia uma tradição alternativa, e o tenentecoronel Chávez sempre mostrou interesse pela experiência do
general Torrijos, no Panamá, e do general Velasco, no Peru.
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Conhecera o filho de Torrijos, quando este participou de um treinamento militar na Venezuela, e lera material político sobre as
transformações no Panamá que o visitante trouxera consigo.
Hoje, Chávez faz eco à velha retórica do panamenho.
Em uma entrevista de agosto de 1975, Torrijos procurou justificar seu golpe de Estado, argumentando que a Guarda Nacional panamenha, dirigida por ele, fora transformada em “peões da
oligarquia”.
“Nossa missão era manter o status quo, fosse como fosse, com
aparato militar permanente, ou com um golpe de Estado. Eu era
obrigado a participar de atos de repressivos, a tal ponto que me
enojei de tanta repressão. Como resultado direto, a Guarda Nacional decidiu se rebelar e descolonizar o país. Sobretudo, queríamos resolver o problema do canal, o que para os panamenhos
era como uma religião.”
Tal como viria a acontecer na Venezuela, os oficiais panamenhos rebelaram-se contra o que consideravam a incompetência
e a corrupção dos governantes civis.
“Fomos as sentinelas da oligarquia, até que os erros dos
políticos tornaram-se tão graves que já não havia possibilidade
de retificação. Uma geração de jovens oficiais, egressos da Escola
Militar do Panamá, decidiu não apenas organizar um golpe de
Estado, mas também varrer todo o sistema de “democracia” aparente no país. As pessoas haviam se acostumado a misturar política com sua atividade econômica, fazendo uso da liberdade
democrática indiscriminadamente”.
Torrijos conseguiu arrancar um novo tratado sobre o canal ao
governo estadunidense de Jimmy Carter, em 1979, e o canal foi
devolvido aos panamenhos 20 anos mais tarde, em dezembro de
1999. Mas Torrijos não viveu tempo suficiente para presenciar
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esse acontecimento maior: morreu em um acidente aéreo, em
agosto de 1981. Seu sucessor, Manuel Noriega, tratou os assuntos com menos tino diplomático e sofreu a humilhação da invasão estadunidense de 1989 – Operação Justa Causa – durante a
qual mais de mil panamenhos foram mortos. Foi capturado,
acusado de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, e ainda está
cumprindo pena de prisão perpétua em uma cadeia dos Estados
Unidos.
A experiência dos militares peruanos sob o governo do general Velasco, entre 1968 e 1976, também exerceu influência na
formação política do tenente-coronel Chávez, que visitou o Peru
quando era um jovem cadete, em 1974, em um momento em que
o Governo Revolucionário das Forças Armadas, de Velasco, já
estava em franca decadência. Assegura que foi influenciado pelo
exemplo peruano, embora a experiência tenha muito pouco em
comum com o projeto implementado por ele na Venezuela –
ainda que alguns de seus ensinamentos possam ser úteis.
Como na Venezuela e no Panamá, um grupo de inteligentes
oficiais peruanos, descontentes com a corrupção e o estado geral do país, havia debatido a possibilidade de uma intervenção
militar. Alguns deles tinham sido influenciados por sua experiência na França, durante a guerra da Argélia. Assim como na
Venezuela, esses oficiais desconfiavam profundamente do principal partido político do país – Apra, no Peru, AD, na Venezuela
– em parte devido a sua posição francamente antinacionalista e
pro-estadunidense. Da mesma forma, e como na Venezuela, os
oficiais peruanos tinham a experiência da guerra contra a guerrilha e tinham mais consciência do que os políticos civis das
abjetas condições de vida da população rural.
Quando tomaram o poder, em 1968, os militares peruanos
anunciaram sua intenção de construir uma nova ordem que não
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seria “nem capitalista, nem comunista”. Sua principal preocupação naquele momento era a corrupção do regime civil de
Fernando Belaunde Terry, a desvalorização da moeda, e uma
cláusula de um contrato assinado pelo governo com uma companhia petrolífera, a Standard Oil, contrária ao interesse nacional. A inflação, baixa para os padrões latino-americanos, mas alta
para o Peru, estava em cerca de 19%.
O afã reformista do general Velasco Alvarado era, em parte,
decorrente de sua experiência no extermínio dos movimentos
guerrilheiros peruanos durante os anos de 1960. Seu conhecimento de primeira mão do sofrimento da população rural dos Andes,
que as guerrilhas de Hugo Blanco e Luis de la Puente Uceda
haviam tentado levantar, levou-o a retomar boa parte do programa da guerrilha. Velasco Alvarado era um oficial muito inteligente, influenciado pelo exemplo do general de Gaulle, na França,
onde servira como adido militar nos anos que se seguiram imediatamente à guerra da Argélia.
Velasco Alvarado nacionalizou as empresas petrolíferas estrangeiras, expropriou as fazendas de cana e levou adiante uma
ampla Reforma Agrária; fez do quíchua, língua dos Andes, um
idioma oficial do país. Também expropriou os jornais conservadores e promoveu a participação dos trabalhadores na administração das indústrias do Estado. Para pesar de Washington, reatou relações diplomáticas com Cuba e desenvolveu um crescente
comércio bilateral com a União Soviética.
Retrospectivamente, como nota Richard Webb, o presidente
do Banco Central peruano no regime posterior, o programa econômico de Velasco Alvarado não foi tão radical como parecia.
O regime militar implementou profundas reformas sociais,
institucionais e econômicas, muitas das quais aplaudidas pelo
Consenso de Washington naquele momento. Na realidade, grande
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parte da agenda de reformas, particularmente a Reforma Agrária, a reforma da educação e o reforço dos mecanismos de planejamento pareciam tirados diretamente dos livros da velha
Aliança para o Progresso e das recomendações-padrão do Banco Mundial naquela época.
O governo de Velasco Alvarado padeceu de dois erros fundamentais: depois de um período inicial de entusiasmo, careceu de
apoio popular, e tentou levar a cabo uma revolução com dinheiro
emprestado. Os dois erros, desde o princípio, foram a causa de sua
queda. O governo, que incluía civis, era quase totalmente formado
por oficiais, jamais tendo conseguido atingir outros setores além
dos beneficiários imediatos das reformas de Velasco.
A falta de dinheiro era ainda mais grave. Em 1976, o Peru
esgotou suas reservas internacionais e teve de pedir empréstimo
a um consórcio de bancos estadunidenses. As condições impostas eram impressionantes: congelamento de salários, desvalorização e cortes orçamentários no setor público, abolição do direito
de greve, exclusão do governo de membros radicais destacados,
fim da proibição de contratos petrolíferos com empresas estrangeiras e venda de empresas do Estado ao setor privado.
De maneira pouco surpreendente, o regime de Velasco
Alvarado começou a enfrentar sérios problemas. Depois de sua
morte, em 1977, houve graves distúrbios e uma longa greve da
polícia. Ao perceber a magnitude da hostilidade pública, seu
sucessor conservador, o general Francisco Morales Bermúdez,
resolveu abandonar todo o projeto e devolver o poder aos civis.
Depois das eleições de 1980, Belaunde Terry, o político tão bruscamente deposto em 1968, foi reeleito presidente, e não tardou
em apagar a lembrança da revolução militar.
Os governos militares do Peru e do Panamá foram freqüentemente ridicularizados por jornalistas e politicólogos. Velasco
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Alvarado e Torrijos irromperam com grandes esperanças de
redimir as condições dos pobres, enfrentando os potentados locais da América. Ambos eram líderes sérios e inteligentes, possuidores de um imenso carisma. Suas mortes foram lamentadas
como catástrofes nacionais. Não podem ser culpados por sua
ambição, embora tenham sido incapazes de sustentar os programas revolucionários iniciados.
O tenente-coronel Chávez segue seus passos, mas com uma
agenda diferente e aprendendo com seus erros. É um presidente
eleito, não um ditador militar. Sabe que uma revolução não pode
ter êxito com dinheiro emprestado e sabe que as Forças Armadas não podem governar sozinhas. Necessitam do apoio da grande maioria do povo.
SEGUNDA PARTE
REVIVENDO O PASSADO
11. O LEGADO DE SIMÓN BOLÍVAR
NADA DO QUE FOI FEITO ANTES PARECE COM O QUE V. FEZ E, PARA QUE
ALGUÉM POSSA IMITÁ-LO, SERÁ PRECISO QUE HAJA UM MUNDO POR LIBERTAR.
V. FUNDOU TRÊS REPÚBLICAS, E O IMENSO DESENVOLVIMENTO A QUE ESTÃO
FADADAS ELEVARÁ SUA GRANDEZA ATÉ ONDE NINGUÉM CHEGOU. SUA FAMA
CRESCERÁ, ASSIM COMO AUMENTA O TEMPO COM O TRANSCORRER DOS
SÉCULOS E ASSIM COMO CRESCE A SOMBRA QUANDO O SOL DECLINA.
JOSÉ DOMINGO CHOQUEHUANCA A BOLÍVAR, 1825
onde quer que se vá, na Venezuela e, aliás, em boa parte da
América Latina, pode-se encontrar uma efígie de Simón
Bolívar, libertador do país (e de grande parte do continente) do
domínio espanhol. Pode ser uma estátua na praça principal, um
retrato em um gabinete ministerial, ou um grafite numa parede.
Nunca se pode escapar de todo desse semblante nobre, da curva
ligeiramente arrogante de seu sorriso e, se o artista foi honesto,
do tom moreno da pele, indicando um zambo, um mestiço.
A história tradicional venezuelana sempre pôs ênfase nas
origens aristocráticas de Bolívar, esquecendo sua herança negra.
No entanto, Bolívar lutou pelos direitos da imensa comunidade
de escravos na Venezuela. Durante a luta pela independência, em
1816, solicitou do presidente Alexandre Pétion, governante negro da república sem escravos, do Haiti, que lhe fornecesse armas e munições. Pétion aceitou, desde que Bolívar prometesse
libertar os escravos na Venezuela. Bolívar já o fizera em suas
propriedades, mas não lograra estimular a reacionária classe
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proprietária de escravos do período posterior à independência: a
libertação dos escravos não ocorreu até 1854.
O culto secular a Bolívar sobreviveu intacto por gerações, na
Venezuela. Sucessivos presidentes e generais – o corrupto, o
preguiçoso e o patriota – todos prestaram uma obediente homenagem ao Libertador. No final do século 20, Hugo Chávez demonstrou não ser exceção. Enalteceu ideologicamente o exemplo e os pensamentos de Bolívar, rebatizando o país na nova
Constituição de 1999, como República Bolivariana da Venezuela.
Não se trata, entretanto, tal como Chávez se orgulha regularmente de enfatizar, de um exercício de descuidado nacionalismo.
Seu propósito não é simplesmente o de venerar uma
figura a quem a maioria de seus predecessores não fez mais
do que dedicar elogios, sem resgatar o caráter histórico e as proezas do Libertador dos exageros do mito e da fábula.
Chávez não foi o único. Tarefa similar foi assumida por diferentes escritores nos últimos anos. O general em seu labirinto,
romance sobre os últimos meses de Bolívar, escrito em 1989 pelo
colombiano Gabriel Garcia Márquez, Prêmio Nobel de Literatura, constituiu um esforço de fama internacional. Trata-se de um
relato, em ficção, do último ano de vida do Libertador, em 1830,
quando já estava fora do poder e a luta de toda a sua vida parecia desmoronar à sua volta. O romance deu dimensão humana à
convencional estátua de bronze.
Outro livro influente nos círculos intelectuais da Venezuela
e da Colômbia foi O culto a Bolívar, do historiador venezuelano
Germán Carrera Damas. Essa obra constituiu também um golpe
na desmistificação da carreira de Bolívar, embora não tenha sido
bem recebida, como assinalou Chávez, pela alta oficialidade da
Academia Militar da Venezuela. O próprio Chávez aderiu a essa
revisão da história, introduzindo, em suas aulas na Academia, o
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debate sobre o papel de Bolívar, num esforço por recuperar algumas das características do Libertador que poderiam ter valor
político no presente. Seu objetivo era se inspirar nas tradições
históricas da nação, para traçar um modelo para o futuro.
O exemplo de Bolívar foi particularmente útil para Chávez em
sua avaliação do papel que a Venezuela poderia desempenhar nos
assuntos do resto do continente. A maioria dos políticos latinoamericanos reconhece sobejamente que seus Estados nacionais
são frágeis demais para atuarem isoladamente. O fato de que essa
visão tenha tomado conta do continente por várias décadas foi
o que impulsionou a integração econômica. Bolívar enfrentou
problema similar, o que o levou à conclusão de que era necessário promover uma cruzada em todo o continente contra o domínio do império espanhol, unindo a América Latina contra os
poderes estrangeiros.
Chávez procura, agora, fazer algo semelhante. Seu propósito é reacender o sonho bolivariano, buscando a unificação política da América Latina em novas bases: a integração interna de
cada país. Para tanto, planeja um grande congresso dos Estados
bolivarianos, libertados por Bolívar, como uma réplica do congresso organizado pelo Libertador no Panamá, em 1826. “Um
projeto válido para o século 21”. Chávez acredita, com paixão, que
é preciso “reunir, em uma conferência, os países da América
Latina fragmentada”.
Bolívar não é a única figura significativa que Chávez ressuscitou do passado. Em 1980, em discussões com jovens oficiais,
seus mais próximos amigos militares, começou a resgatar o pensamento e os escritos de outros protagonistas da história
venezuelana do século 19, especialmente Simón Rodríguez e
Ezequiel Zamora. Incluiu-os no panteão de seu embrionário
movimento revolucionário. No processo, participou pessoalmente
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do debate histórico sobre o século 19, que se desenrolava na
esquerda venezuelana desde os anos de 1960.
A visão original da esquerda marxista na Venezuela, como em
qualquer lugar, era de extrema hostilidade em relação a Bolívar.
Partindo dos escritos do próprio Marx, a maioria dos escritores
marxistas via o Libertador como uma figura típica burguesa, cuja
ação servira tão-somente aos interesses das potências imperiais
emergentes da época. Bolívar, segundo essa leitura, assegurara a
independência da Espanha com ajuda inglesa. Entregara, então,
o continente à exploração do capitalismo inglês. Durante anos,
esse retrato caricatural de Bolívar, como aliado do imperialismo,
impediu efetivamente a esquerda de examinar suas características mais positivas. Para qualquer militante ou simpatizante da
esquerda, era impossível vê-lo como um modelo revolucionário
para o século 20.
No decorrer dos anos de 1960, essa visão começou a mudar
na Venezuela. O movimento guerrilheiro dera a suas unidades
militares os nomes de heróis do passado: José Leonardo Chirinos,
líder de uma revolta de escravos no século 18 em Coro, e Ezequiel
Zamora, líder camponês das planícies, no século 19. Posteriormente, quando alguns membros das guerrilhas se afastaram da
ortodoxia do PCV, começaram a reexaminar o que haviam aprendido do passado para criar uma ideologia de esquerda com uma
dose maior de nacionalismo, tal como faria Chávez em anos
posteriores.
Naquele grupo estava Douglas Bravo, comandante da linha
de frente guerrilheira “José Leonardo Chirinos” no Estado de
Falcón. Bravo avalia que sua expulsão do PCV, em junho de 1965,
deveu-se, em parte, a seus argumentos em favor dos heróis do
século 19: Bolívar, Simón Rodriguez e Ezequiel Zamora, entre
outros. Suas idéias eram opostas à ortodoxia soviética.
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Bravo organizou um novo partido político em abril de 1966,
o PRV, inspirando-se nessas figuras do passado. Lembra que a
“cabeça filosófica” do partido, Pedro Duno, publicou, em 1969,
um documento intitulado “Marxismo-leninismo-bolivarianismo”.
Duno objetivava “nacionalizar” a ideologia da esquerda latinoamericana. Ao mesmo tempo em que revivia a figura do Libertador, exercia atração sobre o partido de Bravo a idéia-chave de
Simón Rodríguez: a “América (Latina) não deve servilmente
imitar e sim buscar ser original”.
Quando Chávez começou a organizar sua conspiração militar, nos anos de 1980 e fez seus primeiros contatos com a esquerda revolucionária, descobriu que falavam a mesma língua. A
ressurreição de Bolívar como importante e necessário precursor
de qualquer revolução radical foi aceita pelos esquerdistas com
quem manteve contato.
Apesar de Bolívar ser amplamente reconhecido como uma das
grandes figuras do século 19, fora da América Latina pouca gente
se lembra de algo além de algum detalhe folclórico sobre sua vida
e sua obra. Provavelmente seja mais famoso devido à triste reflexão que fez, no final da vida: “lavrei no mar...”. Não obstante,
já que a figura de Bolívar é um componente significativo do
projeto político de Hugo Chávez, recorrente em seus discursos,
torna-se necessário incluir aqui um relato sumário de sua vida e
de suas façanhas.
Bolívar nasceu em 24 de julho de 1783, em Caracas e morreu na Colômbia, antes de completar 50 anos, em 17 de dezembro de 1830. Como principal condutor da rebelião latino-americana contra o império espanhol, lutou pela libertação da
Venezuela e da Colômbia e também do Equador, do Peru e do Alto
Peru (Bolívia); suas campanhas desenrolaram-se durante um
período de dez anos. Lutou de norte a sul e de leste a oeste da
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Venezuela e da Colômbia, empreendendo, então, uma inspirada
marcha que o levou para os Andes do Equador e do Peru. Nunca, desde as batalhas das primeiras gerações de conquistadores,
no século 16, houve um único comando cobrindo tanto território com resultados de tanto alcance.
Bolívar tinha também dotes intelectuais. Leitor voraz de clássicos e da literatura emancipadora da França pré-revolucionária,
manteve uma volumosa correspondência que revela um homem
de agudo engenho e observação. Muitas de suas “cartas abertas”
e discursos permanecem como modelos do pensamento político
avançado da época.
Ao mesmo tempo, foi um homem de visão rigorosa e intransigente, freqüentemente cruel e imprevisível em suas ações.
Cometeu muitos erros táticos e estratégicos e seu propósito global esteve muitas vezes à beira do colapso. Acreditava firmemente
que era responsável por um continente anárquico que se beneficiaria de uma liderança forte. Arrogante e até certo ponto insuportável, nunca duvidou que fosse o líder de que se necessitava.
Os pais de Bolívar morreram quando ele era muito jovem,
tendo vivido durante um tempo em casa de seu professor, Simón
Rodríguez, outra figura de destaque no panteão de Chávez.
Bolívar viajou, ainda jovem, para a Europa, primeiro para a
Espanha, entre 1798 e 1801, e daí para a França e a Itália, entre
1804 e 1807. Estimulado pela atmosfera revolucionária da época, devorou os trabalhos de Voltaire e de Rousseau e, quando
voltou para a Venezuela, em 1807, dedicou-se pessoalmente a seu
embrionário e clandestino movimento de independência.
Uma insurreição ocorrida em Caracas, em 19 de abril de 1810,
forçou a renúncia do último capitão-geral espanhol, Vicente
Emparan. Uma junta revolucionária assumiu o poder na cidade,
e enviou Bolívar para a Inglaterra, para assegurar o apoio britâ-
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nico ao novo regime. Chegando em Londres em julho, durante as
guerras napoleônicas, Bolívar fracassou em fazer o governo britânico se interessar pela sorte de seu país, embora tivesse êxito
em convencer o exilado Francisco de Miranda a voltar com ele
para Caracas, com o objetivo de assumir o comando das forças
revolucionárias. Miranda combatera nas fileiras da Revolução
Francesa, tendo tentado organizar uma rebelião contra a Espanha,
em 1806.
Em seu retorno a Caracas, Bolívar recebeu o comando da
estratégica e importante cidade de Puerto Cabello. A independência da Venezuela foi formalmente declarada em 5 de julho de
1811, depois que um congresso se reuniu em Caracas, em março, para esboçar uma constituição para a nova República.
Dez anos de luta se aproximavam, pois os espanhóis não
aceitaram essa rebelião republicana de Caracas e ainda controlavam outras partes do país e do continente. Seu contra-ataque
não demorou, pressagiado, em março de 1812, por um terremoto que destruiu grande parte da cidade. A Igreja católica, sempre
hostil ao regime republicano e sempre leal a Madri, depressa
capitalizou politicamente o desastre, tal como faria um destacado padre, depois das terríveis inundações em Caracas e no Estado de Vargas, em dezembro de 1999.
As forças republicanas eram débeis, mal armadas e divididas.
Logo passaram à defensiva: os espanhóis retomaram Puerto
Cabello, aproveitando-se de um descuido de Bolívar, enquanto
Miranda, em Caracas, tentava negociar a paz com o comandante espanhol. Miranda foi denunciado como traidor e os republicanos entregaram-no aos espanhóis. Acorrentado, foi levado para
a Espanha, onde morreu, em uma prisão da cidade de Cádiz.
Enquanto isso, Bolívar escapou pelo mar da Venezuela até o
porto de Cartagena, em Nova Granada (atual Colômbia), então sob
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controle de rebeldes republicanos. Ali publicou a primeira de suas
grandes declarações políticas, o “Manifesto de Cartagena”,
conclamando à eliminação do poder espanhol na Venezuela,
como prelúdio à unificação continental, e instando a que fosse
substituído por um sólido governo centralizado:
“ele (o governo) deve se mostrar terrível e se armar de uma firmeza igual
aos perigos, sem se ater a leis nem a constituições, enquanto não se
restabelecer a felicidade e a paz. (...) Sinto que, enquanto não centralizarmos nossos governos americanos, os inimigos obterão as mais
completas vantagens; seremos incontestavelmente envolvidos nos
horrores dos conflitos civis e conquistados indignamente por esse
punhado de bandidos que infesta nosso território”.
Os republicanos, em Cartagena, tomaram Bolívar ao pé da
letra e o escolheram como comandante de uma força expedicionária para garantir a libertação da Venezuela. Depois de uma
campanha de três meses, Bolívar venceu o exército espanhol em
várias batalhas e retomou Caracas em 6 de agosto de 1813. Convocado pelo Congresso, recebeu o título de Libertador.
A vitória foi temporária e as forças republicanas não puderam manter Caracas por muito tempo. Os espanhóis tinham no
coronel José Tomás Boves um inteligente e impiedoso comandante, com habilidade para mobilizar indígenas e camponeses das
planícies venezuelanas como força de combate capazes de competir com as de Bolívar. Boves tomou Caracas um ano depois, em
julho de 1814, aplicando com rigor castigos exemplares e encerrando um capítulo da história da independência da república
venezuelana.
Bolívar escapou novamente para Cartagena e, em dezembro,
tomou Bogotá. Mas a chegada de novas tropas da Espanha trouxe
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novas derrotas; em maio de 1815, viu-se obrigado a se retirar para
a Jamaica, onde escreveu sua famosa “Carta da Jamaica”: um
plano visionário para o futuro da América Latina que alcançava
o continente, desde a Argentina e o Chile, até o México:
“Somos um pequeno gênero humano, possuímos um mundo à parte,
cercado por amplos mares; novo em quase todas as artes e ciências,
ainda que de certo modo velho nos usos da sociedade civil. (...) não
somos índios, nem europeus, mas uma espécie intermediária, entre os
legítimos proprietários do país e os usurpadores espanhóis”.
Bolívar tentou voltar a Cartagena, mas, como esta cidade
havia caído novamente em mãos espanholas, seu navio tomou o
rumo da independente república negra do Haiti. Chegou a Porto
Príncipe em 1º de janeiro de 1816, sendo bem recebido pelo presidente Pétion, que concordou em lhe fornecer armas e munições
e, além disso, permitiu-lhe recrutar marinheiros para sua frota
invasora.
Lançar um ataque à Venezuela a partir do Haiti era uma
operação arriscada que podia terminar em desastre. A frota de
Bolívar capturou a ilha de Margarita, mas foi repelida a partir da
terra firme em julho de 1816, em Carúpano e Ocumare. Refugiouse no Haiti, para preparar uma segunda expedição, e, no fim do
ano, retornou ao continente por Barcelona.
A guerra contra os espanhóis entrava, então, em uma nova fase.
Em abril de 1817, navegou pela costa até o delta do Orinoco.
Avançou rio acima, estabelecendo seu quartel general em
Angostura (atual Ciudad Bolívar) em julho do mesmo ano. Ali
manteve contato com líderes republicanos dos llanos, principalmente com José Antonio Paez e Francisco de Paula Santander, este
último oriundo da Colômbia. As forças de Bolívar combateram,
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então, nos llanos, durante um longo período de dois anos, até que
finalmente ficou pronto para lançar um ataque à Colômbia.
Em 1819, as forças de Bolívar escalaram a passagem da
montanha, a partir da planície, dentro do que ainda era parte do
vice-reino espanhol de Nova Granada. Os oficiais realistas nunca imaginaram um ataque republicano por essa rota. Desprevenidos, foram derrotados na batalha de Boyacá, em 7 de agosto do
mesmo ano. Três dias depois, Bolívar entrou em Bogotá, enquanto
o vice-rei espanhol escapava por mar para Cartagena. A Colômbia estava em mãos republicanas.
Deixando o general Santander encarregado de Bogotá, como
vice-presidente de Nova Granada, Bolívar subiu de novo as encostas andinas, dirigindo rio abaixo desde o Apure até o Orinoco.
Em dezembro de 1819, chegou a sua antiga base em Angostura,
convocando o Congresso para informá-lo de seus triunfos.
A união de Nova Granada e Venezuela em um grande Estado foi o voto unânime dos povos e governos dessas repúblicas.
A sorte da guerra possibilitou esse enlace tão desejado por todos
os colombianos: “de fato estamos juntos”.
O Equador seria logo incorporado, para completar o quadro.
O Congresso de Angostura designou Bolívar como presidente e
ditador militar do novo Estado, que passaria a se chamar República da Grande Colômbia. Essa república foi pensada como uma
federação que incluía todas as províncias espanholas da
Venezuela, Nova Granada (Colômbia) e Quito (Equador).
Durante vários meses, houve trégua; mas, em junho de 1821,
os homens de Bolívar avançaram para o norte, partindo do
Orinoco, derrotando o exército espanhol, na batalha de Carabobo.
O caminho para Caracas estava livre e Bolívar fez sua entrada
triunfal. Agora, a libertação da Venezuela estava completa. Realizou-se um novo congresso, na fronteira, em Cúcuta, a fim de
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esboçar a constituição para a nova república e eleger formalmente
Bolívar como seu presidente, em setembro de 1821.
Dessa forma, Bolívar transformava-se no governante da república formada por Venezuela e Colômbia, com a missão de ser
o libertador da América Latina. Como tinha ambições maiores,
não ficou muito tempo em Caracas. Naquele ano enviou um de
seus melhores oficiais, o general Antonio José de Sucre, para o
sul, a fim de ajudar na libertação do Equador. Sucre fora para o
porto de Guayaquil, no Pacífico, e solicitava reforços.
Deixando novamente Santander responsável por Bogotá,
Bolívar marchou para o sul em dezembro de 1821, ao longo da
rota montanhosa para Quito, capital do Equador. Sua campanha
militar contra as forças da Espanha não estava ainda terminada.
Enquanto Bolívar avançava, vindo do norte, Sucre penetrava em
terra firme vindo do oeste, das costas de Guayaquil. As tropas de
Sucre derrotaram o exército espanhol na batalha de Pichincha,
em 24 de maio de 1822, tendo Quito caído no dia seguinte.
Bolívar chegou 3 semanas depois, saindo rumo a Guayaquil.
Os três territórios da Grande Colômbia foram assim libertados do jugo espanhol. A Argentina e o Chile também estavam
livres, graças ao triunfo das forças revolucionárias lideradas pelo
general José de San Martin. Apenas o Peru permanecia sob o
domínio espanhol.
San Martin marchou para Lima partindo do sul e proclamou
a independência dos peruanos, mas os soldados espanhóis ainda controlavam as cidades dos Andes. San Martin, então, transferiu-se para Guayaquil, buscando o auxílio de Bolívar para o que
devia ser o ataque final às tropas espanholas. Os dois generais
reuniram-se ali, em 26 de julho de 1822. San Martin, evidentemente, precisava de auxílio não apenas para vencer os espanhóis,
mas também para retomar o controle de suas próprias forças
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argentinas, estacionadas em Lima. Bolívar mostrava claramente
resistência em apoiá-lo, e San Martin voltou para Lima sem receber a ajuda que esperava. Renunciou a todos os seus cargos e
exilou-se na Europa.
Um ano depois, em setembro de 1823, Bolívar voltou a Lima
para preparar a derrota final do exército espanhol nos Andes.
Reunindo uma nova força expedicionária, derrotou os espanhóis
na batalha de Junin, em 1824. A campanha final terminou em 8
de dezembro do mesmo ano, quando o vice-rei espanhol rendeuse a Sucre na batalha de Ayacucho.
Sucre perseguiu o que restava do exército espanhol para o sul,
nos Andes, internando-se no Alto Peru, que foi finalmente libertado em abril de 1825 e ao qual deu-se o nome de Bolívia, em
homenagem ao Libertador. A América espanhola estava finalmente livre.*
Bolívar deslocou-se para as montanhas de Potosí, na Bolívia,
fazendo uma pausa para ser homenageado por José Domingo
Choquehuanca, prefeito de um vilarejo na fronteira:
“Nada do que foi feito antes parece com o que V. fez e, para que alguém
possa imitá-lo, será preciso que haja um mundo por libertar. V. fundou
3 repúblicas, e o imenso desenvolvimento a que estão fadadas elevará sua grandeza até onde ninguém chegou. Sua fama crescerá, assim
como aumenta o tempo com o transcorrer dos séculos e assim como
cresce a sombra quando o Sol declina”.
Gerhard Masur, biógrafo de Bolívar, pensa que esse discurso
deve ser apócrifo, mas, já que é uma lenda incrustada na histó*
A América do Sul, porque a América Central e o Caribe continuavam colônias espanholas. (N. da T.)
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ria da Venezuela, além de ser uma das citações favoritas de Hugo
Chávez, merece ser incluído neste relato.
Bolívar permaneceu os meses restantes de 1825 na Bolívia,
regressando a Lima no final desse ano; foi eleito presidente do
Peru em agosto de 1826. Seu vasto império era agora demasiadamente extenso para ser controlado por um general, assim como
também eram insolúveis os problemas políticos existentes em
cada Estado. O sonho de Bolívar, de dar uma lição à Europa, ficava pendente: “Vamos mostrar à Europa que a América tem
homens capazes de se igualar com a glória dos heróis do Velho
Mundo”, disse ao general Sucre quando lhe ordenou que se encarregasse da Bolívia. No entanto, houve discórdia no Peru, seguida de uma guerra entre a Colômbia e a Venezuela. Seus dois
generais, Páez e Santander brigaram e o ambicioso projeto de
uma Grande Colômbia unida evaporou-se em 1828. A união dos
dois países fez-se em pedaços e, em 1829, os peruanos invadiram
o Equador, em uma tentativa de retomar Guayaquil.
Bolívar tentou pela última vez assegurar a união política da
América Latina em um congresso de países de língua espanhola, realizado no Panamá, em 1826. Houve muitas ausências, e
apenas o Peru, a Grande Colômbia, representantes do México e
da América Central participaram. A união política entrou na
agenda, e os Estados presentes acertaram um plano para uma
força conjunta de mar e terra, mas todos os esquemas permaneceram em embrião. Tudo o que restou do Congresso do Panamá
foi a visão do que deveria ser um dia. Bolívar morreu de tuberculose, em 17 de dezembro de 1830, em Santa Marta, Colômbia.
“A América é ingovernável”, disse no fim. “Quem serviu à revolução lavrou no mar”.
Hugo Chávez não compartilha o pessimismo de Bolívar. “As
contradições em seu pensamento não são determinantes” – dis-
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se. “O que podemos observar, no período histórico entre 1810 e
1830, é o esboço de um projeto nacional para a América hispânica.” Tal projeto foi empreendido novamente, em determinado
momento, de forma destacada, por Ezequiel Zamora, um quarto
de século depois da morte de Bolívar. Chávez pretende retomálo, agora no contexto da agenda continental.
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12. ROBINSON CRUSOE E A FILOSOFIA DE SIMÓN
RODRÍGUEZ
OH! MEU MESTRE. OH! MEU AMIGO. OH! MEU ROBINSON, VOCÊ NA COLÔMBIA! VOCÊ EM BOGOTÁ E NINGUÉM ME DISSE NADA!
BOLÍVAR A SIMÓN RODRÍGUEZ, EM 1824.
ugo Chávez refere-se freqüentemente ao “sistema robinsoniano” e pensei, no começo, que fazia referência ao falecido Joan Robinson, o reconhecido economista de Cambridge,
certamente familiar para os intelectuais estadunidenses das décadas de 1960 e 1970. Depois, inevitavelmente, pensei no herói da ficção de Daniel Defoe, Robinson Crusoe, oriundo de York,
que viveu por “Oito e Vinte Anos, solitário, em uma ilha
desabitada nas costas da América, perto da foz do Grande Rio
OROONOQUE”.
Isso estava mais perto da realidade. O pensamento político e
econômico de Hugo Chávez deriva, certamente, em parte, por um
trilha tortuosa entre a história de Robinson Crusoe e o impacto
que ela produziu em Simón Rodríguez, um jovem professor em
1790. Rodríguez foi inicialmente professor e, depois, amigo íntimo de Simón Bolívar. As posições filosóficas de ambos, que se
influenciaram mutuamente, estão incluídas no coração do projeto de Chávez para a Venezuela e para a América Latina.
H
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Rodríguez impregnou-se tanto do caráter de Robinson Crusoe que
mudou seu nome para Samuel Robinson.
A vida e a obra de Simón Rodríguez são quase desconhecidas fora da América Latina, e seus escritos nunca foram traduzidos para o inglês. Não obstante, exerceu influência nos vários países em que viveu e trabalhou, como Venezuela, Colômbia,
Chile, Bolívia, Peru e Equador. Foi professor primário e de filosofia, com idéias nada ortodoxas sobre educação e comércio.
Estava, além disso, apaixonadamente convencido da necessidade de integrar os povos indígenas da América Latina e os escravos negros vindos de fora às sociedades dos futuros Estados
independentes. Duzentos anos depois, suas palavras e idéias têm
um tom contemporâneo, quando ressuscitadas por Hugo
Chávez.
O relato de Daniel Defoe sobre as aventuras de Robinson
Crusoe, livro publicado originalmente em Londres, em 1719, e
traduzido para o francês e o holandês no ano seguinte, está
baseado em uma história da vida real de Alexander Selkirk,
abandonado na ilha de Juan Fernández, no Pacífico. Defoe simplesmente trocou a ilha para um lugar no Atlântico, próximo ao
rio Orinoco. É possível que o livro esteja disponível às margens
do próprio Orinoco, na Venezuela, embora seja mais provável que
os latino-americanos tenham tido acesso, primeiro, à versão
alemã do relato, escrita por Joachim Heinrich Campe. Robinson
der Jüngere, de Campe, foi publicado originalmente em Hamburgo, em 1769, tendo sido um dos mais famosos livros alemães de
todos os tempos. Foi escrito sob a influência do livro de Rousseau,
Emílio ou da educação, de 1762, que indicava Robinson Crusoe
como um livro excepcional para crianças, na medida em que lhes
ensinava a aprender como Robinson o fizera: fazendo.
Seja qual for a versão disponível em Caracas, foi lida por
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Simón Rodriguez, o professor titular das escolas primárias da
cidade. Entre seus jovens alunos estava Simón Bolívar, um órfão
– que, em algum momento, foi seu hóspede – filho de uma rica
família de fazendeiros.
Rodríguez nasceu em Caracas, em 1769, e sua primeira escola
primária rapidamente entrou em conflito com os pais das crianças. Ele escrevera e publicara um longo relatório, em que sugeria que sua escola não devia ser exclusivamente para filhos de
brancos ricos, mas também para filhos de negros e pardos. Esse
interesse pelas classes baixas acompanhou-o durante toda a sua
vida, causando-lhe infinitos problemas e penúrias. Adiantara-se
uns 100 anos a sua época. Tempos depois, quando trabalhava na
Bolívia, em 1820, continuava insistindo em que as crianças indígenas deviam desfrutar de educação gratuita nas escolas públicas que ele estava implantando. As autoridades rapidamente
encontraram pretextos para fechá-las.
Destituído pelo Cabildo (Conselho Municipal) de Caracas,
Rodríguez uniu-se aos primeiros movimentos pela independência de 1797, organizados por Manuel Gual e José Maria España.
Quando essa revolta prematura foi esmagada, Rodríguez foi
obrigado a se exilar. Navegou pelo Caribe até a Jamaica, ali
chegando cerca de dois anos depois que o governo colonial britânico esmagara a grande rebelião cimarrona.* Na Jamaica aprendeu inglês. Imaginava seu novo lar como a “ilha de Robinson
Crusoe” e, ansioso para se livrar de seus antepassados espanhóis,
mudou seu nome para “Samuel Robinson”. Manteve esse pseudônimo por um quarto de século, durante o tempo em que esteve fora do continente.
*
Os cimarrões eram povos indígenas que povoavam o Caribe antes dos colonizadores espanhóis. (N.da T.)
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Partiu da Jamaica para os Estados Unidos e dali, para a Europa. “Fiquei na Europa por mais de vinte anos” – escreveu anos
depois, quando relatava suas peregrinações. – “Trabalhei em um
laboratório de química industrial, onde aprendi algumas coisas;
participei de encontros secretos de caráter socialista... Estudei um
pouco de literatura, aprendi idiomas e dirigi uma escola de primeiras letras, em um vilarejo da Rússia.”
Samuel Robinson poderia ter sido uma interessante, mas
esquecida “nota de pé de página” da história latino-americana,
se seu caminho não tivesse cruzado pela segunda vez o de Simón
Bolívar. Os dois homens, mestre e aluno, encontraram-se novamente na Paris de Napoleão, em 1804, e percorreram juntos a
Itália. Graças a essa amizade com Robinson, Bolívar conheceu
Alexandre Humboldt, o cientista alemão que explorou o Orinoco
e, como orientador, também lhe indicou leituras esclarecedoras.
Anos depois, enquanto combatia no Peru, Bolívar escreveu sobre seus sentimentos em relação a “seu Robinson”:
“Amo esse homem com loucura. Foi meu mestre, meu companheiro de
viagem, e é um gênio, um portento de graça e talento para quem os sabe
descobrir e apreciar (...) Com ele, eu poderia escrever as memórias de
minha vida. É um professor que ensina divertindo, e é um escriba que
transmite preceitos a quem lhe dita. Ele é tudo para mim. Quando o
conheci valia o infinito. É preciso que tenha mudado muito para que
eu me engane”.
Estando em Roma, em agosto de 1805, esses livres pensadores venezuelanos subiram as ladeiras do “monte Sacro”, um promontório elevado sobre o rio Aniene, a nordeste de Roma, lugar
em que uma fábrica engarrafadora ainda fornece água santa, de
uma antiga nascente. Ali, Bolívar fez o juramento romântico de
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dedicar sua vida à luta pela independência da América Latina.
Tempos depois de sua morte, Rodríguez lembrou-se do teor do
juramento e escreveu-o, sem dúvida com algum embelezamento.
Esse texto permanece profundamente arraigado na psique
venezuelana, aprendido desde a escola primária, fixado na memória dos soldados que prestam o serviço militar. Quando Hugo
Chávez começou a organizar sua própria conspiração, lá pelos
anos de 1980, foram as palavras de Bolívar, recordadas por Simón
Rodríguez, que utilizou:
“Juro diante de ti, e juro diante do Deus de meus pais que não darei
descanso a meu braço, nem repouso a minha alma, enquanto não
romper as cadeias que nos oprimem...”.
Bolívar voltou à América do Sul um ano depois, em 1806, para
enfrentar os desafios da luta pela independência. Samuel Robinson
permaneceu lá, ainda intrigado pela Europa de Napoleão. Dedicouse a realizar várias viagens, visitando e vivendo na Itália e na
Alemanha, na Prússia, Polônia e Rússia. Em algum lugar, durante
suas viagens, deve ter-se integrado “às sociedades secretas de
natureza socialista”, sobre as quais escreveu.
Em 1823, abandonou sua escola na Rússia, transferindo-se
para Londres. Ali, em uma casa em Grafton Street, que algum dia
pertencera a Francisco de Miranda, conheceu um outro latinoamericano exilado: Andrés Bello, o filósofo venezuelano. Bello,
que também era educador, estimulou-o a voltar ao país, agora que
a independência da América Latina estava quase garantida.
Samuel Robinson, na época com 54 anos, zarpou de volta pelo
Atlântico, chegando às terras da Colômbia, no porto de
Cartagena, quando retomou seu nome de Samuel Rodríguez.
Viajando para Bogotá, teve notícias de Bolívar, que estava na
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frente da conquista do Peru: “Oh! meu mestre. Oh! meu amigo.
Oh! meu Robinson, você na Colômbia! Você em Bogotá e ninguém me disse nada!” Bolívar instou-o a se apressar para que se
encontrassem em Lima. Os dois velhos amigos reuniram-se nessa cidade, em 1824, pouco depois da batalha de Ayacucho, que
selou o destino do império espanhol na América Latina.
Não sabemos com exatidão o que discutiram, mas temos uma
idéia bastante precisa de como as idéias de Simón Rodriguez se
desenvolveram nos anos seguintes de seu regresso à América
Latina, vindo da Europa. Sua experiência européia convencerao de que a América Latina devia tentar fazer as coisas de modo
diferente. Em um de seus primeiros livros, publicado em 1828,
escreveu sobre a necessidade de se diferenciar, o que veio a ser
uma das chaves do pensamento de Hugo Chávez:
“A América espanhola é original. Originais devem ser suas instituições
e seu governo, e originais seus meios de fundar uns e outros. Ou inventamos, ou erramos.”
Em abril de 1825, Rodríguez uniu-se a Bolívar em uma expedição pelos Andes, na recém-denominada Bolívia. De Lima,
atravessaram por Arequipa, Cuzco, Tinta, Lampa, Puno e Zepita
e, então, uma vez na Bolívia, viajaram para La Paz, Oruro, Potosí
e Chuquisaca (chamada Sucre, depois da vitória de Ayacucho).
Bolívar decidiu que o país ao qual fora dado seu nome era um
lugar que poderia se beneficiar do talento de Rodríguez. Assim,
designou-o “diretor do Ensino Público, Ciências Físicas, Matemáticas e Artes, e diretor-geral de Minas, Agricultura e Caminhos
Públicos da República Boliviana”. Os dois amigos separaram-se
então, Bolívar voltando para o Peru, enquanto Rodríguez permanecia na Bolívia. Rodríguez pôs-se a trabalhar imediatamente em
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Chuquisaca, na formação de uma escola técnica para crianças do
lugar, tanto indígenas quanto brancos. Anos depois, esboçou os
planos extraordinariamente idealistas que tentara implantar na
Bolívia:
“Meu grande projeto na época consistia em pôr em prática um plano
bem elaborado, que se baseava em colonizar a América com seus próprios habitantes, para evitar o que temo que aconteça um dia, isto é,
que a invasão repentina de imigrantes europeus, mais inteligentes do
que o nosso povo atual, venha novamente submetê-lo e a tiranizá-lo
de um modo mais cruel do que o antigo sistema espanhol. Eu queria
reabilitar a raça indígena e evitar sua completa extinção.”
Tragicamente para a Bolívia, os cidadãos conservadores de
Chuquisaca repudiaram os engenhosos esquemas de Rodríguez.
Só de má vontade haviam aceito submeter-se à ordem republicana. Rapidamente, alguns dos piores temores de Rodríguez tornaram-se realidade. A antiga classe latifundiária permaneceu
intacta, e promoveu a vinda de novos imigrantes europeus. Esses tomaram parte na matança e na destruição da população
indígena, particularmente durante o auge da borracha, no final
do século 19. O projeto revolucionário de Rodríguez poderia ter
mudado a história posterior da Bolívia, mas não foi o que aconteceu.
Ainda na Venezuela, as autoridades estimularam a imigração
branca da Europa, em grande escala, muito antes que os brancos
já estabelecidos tivessem chegado a acordos com a população
nativa. Mais de um milhão de imigrantes europeus chegaram à
Venezuela depois do fim da II Guerra Mundial, em 1945.
Rodríguez estabeleceu sua escola em Chuquisaca e partiu para
Cochabamba, onde desejava implantar outra escola, com os mes-
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mos conceitos. Sua paixão pela educação dos indígenas tinha
profundas raízes em sua avaliação, quase única na época, do papel que desempenhava a classe baixa no desenvolvimento do
país. Escreveu, em 1830, sobre a dívida que nunca poderia ser
paga:
“Os eruditos da América nunca revelaram o fato de que devem seu
conhecimento aos indígenas e aos negros; mas, se esses sábios tivessem sido obrigados a arar, semear, colher e aeirar, assim como preparar tudo o que comem, vestem, usam e manipulam durante suas vidas
desprezíveis, seguramente não saberiam tanto...
Deveriam ter trabalhado nos campos e seriam tão rústicos quanto seus
escravos; deveriam ter trabalhado com eles nas minas, nos campos,
atrás dos bois, e nas estradas, atrás das mulas; nas extrações de pedra
e nas centenas de pequenas fábricas, onde se produzem ponchos,
mantas, vestidos, sapatos e panelas para cozinhar”.
Rodríguez sabia da hostilidade dos brancos; enfrentara-a
trinta anos antes, em sua escola de Caracas, por volta de 1790.
Agora, essa hostilidade iria afetá-lo novamente. Quando regressou a Chuquisaca, vindo de Cochabamba, viu que sua escola
fora fechada, por ordem do presidente da Bolívia, marechal
Antonio José de Sucre y Alcalá, o mais destacado dos oficiais
de Bolívar.
Sucre queixava-se de que Rodríguez era um organizador
imprevisível que falhara ao manter sua escola sem orçamento. É
possível que isso seja verdade, mas a verdadeira causa do fechamento era a posição racista das autoridades de Chuquisaca e dos
pais brancos que não queriam que seus filhos se educassem com
os indígenas. Posteriormente, Rodríguez explicou o que
aconteceua na escola:
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“Um advogado chamado Calvo destruiu meu estabelecimento em
Chuquisaca, dizendo que eu havia esgotado os recursos, para manter
prostitutas e ladrões, em vez de dedicar meu esforço para educar gente decente.
As prostitutas e os ladrões eram os filhos dos verdadeiros donos do país,
ou seja, os indiozinhos e as indiazinhas que perambulam pelas ruas e
que são, de fato, consideravelmente mais decentes do que os filhos e
as filhas do senhor Calvo”.
Deprimido com a recepção que recebera, Rodríguez renunciou
a todos os seus cargos na Bolívia, retirando-se para o Peru, talvez em busca de Bolívar. Os dois homens nunca mais se encontraram e há quem suspeite de que as cartas escritas por Rodríguez
a Bolívar nunca chegaram ao Libertador. Por vários anos, para
manter a si e à indiazinha boliviana com quem se casara, tocou
uma fábrica de velas que havia fundado no Equador.
Em 1834, talvez convocado por Andrés Bello, partiu do Equador para o Chile. Viveu e trabalhou por muitos anos em
Concepción e, depois, em Valparaíso. Ali fundou escolas técnicas, onde ensinava seus alunos a ler e a escrever, assim como a
fabricar tijolos, telhas e velas. Aprender fazendo. É freqüentemente lembrado por provocar escândalo com seu método de
ensinar anatomia. Como não havia cadáveres disponíveis, aparecia nu na sala de aula. Depois de dez anos no Chile, voltou ao
Equador em 1843, para viver no vilarejo de Lacatunga. Ali, em
1847, refletia sobre o trabalho e o comércio:
“A divisão do trabalho na produção de bens serve apenas para
embrutecer a mão-de-obra. Se para produzir tesouras para unhas,
baratas e de qualidade, temos de reduzir os trabalhadores a máquinas,
é preferível cortar as nossas unhas com os dentes”.
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Rodríguez morreu em 1852. No ano anterior a sua morte,
escreveu sobre como estava convencido das vantagens de uma
revolução agrária:
“Se os (latino-) americanos quiserem que a revolução política, que o
peso dos eventos gerou e cuja sobrevivência foi possível graças à força das circunstâncias, proporcione benefícios verdadeiros, devem tentar
uma genuína revolução econômica, começando pelas áreas rurais: dali,
a revolução chegará às fábricas. Dessa forma, teremos progressos diários, que nunca serão alcançados se se começar pelas cidades”.
Rodríguez pensava ainda que:
“Os americanos devem vencer sua resistência em se unir para alcançar objetivos e seu temor a pedir conselhos antes de avançar. Aquele
que nada faz, nunca erra; no entanto, é preferível errar do que ir para
a cama dormir”.
Não é difícil entender como um revolucionário como Hugo
Chávez, ansioso por reviver um discurso nacionalista na era da
globalização, tenha querido ressuscitar a vida e os escritos deste
homem extraordinário. Simón Bolívar, outro de seus heróis, tinha
uma grande dívida para com esse velho amigo, a quem chamava
de Samuel Robinson. Hoje, essa dívida é também nossa.
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12. EZEQUIEL ZAMORA CLAMA POR “HORROR À
OLIGARQUIA”
DEZ VACAS LEITEIRAS DEVEM SER TRANSFERIDAS PELOS FAZENDEIROS
PARA TERRENOS PÚBLICOS, PARA FORNECIMENTO DE LEITE GRATUITO
ÀS FAMÍLIAS POBRES.
PLANO DE EZEQUIEL ZAMORA PARA OS CAMPONESES, 1859.
terceira figura exemplar resgatada por Hugo Chávez da
turbulenta história da Venezuela do século 19 é a de
Ezequiel Zamora, líder das forças federalistas durante a guerra
civil, entre 1840 e 1850. Zamora é um provinciano radical, um
comerciante que se transformou em soldado e estrategista. Tinha
um programa de Reforma Agrária, de grande alcance, em benefício do campesinato, uma apaixonada hostilidade à oligarquia
latifundiária, um projeto para combinar soldados e civis na luta
e um desejo de realizar o sonho bolivariano de unir suas tropas
com forças similares do outro lado da fronteira com a Colômbia.
Os objetivos desse revolucionário do século 19 casam-se perfeitamente com o programa pessoal de Chávez.
Zamora foi, algumas vezes, reivindicado pela esquerda, na
Venezuela, como um socialista precoce. Há evidências sugerindo
que esse soldado carismático, esse “General do Povo Soberano”,
que originalmente foi um comerciante provinciano, chegou a ter
amplo conhecimento da transformação da ordem das coisas na
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Europa de seu tempo, por meio de seu cunhado Juan Gasper, um
imigrante da Alsácia. Era certamente familiar, para Zamora, o lema
“liberdade, igualdade, fraternidade” que ele usava de vez em quando, pois estava bem informado sobre os acontecimentos europeus
de 1848. Socialista ou não, era sem dúvida um progressista liberal e um homem de opinião avançada para seu tempo e lugar.
Tal como Douglas Bravo e os movimentos guerrilheiros dos
anos de 1960 batizaram uma de suas linhas de frente guerrilheiras
em homenagem a Zamora, Chávez sentiu profunda atração por
seu programa radical, comentando-o durante suas aulas na Academia Militar da Venezuela nos anos de 1980. Desde sua infância, esteve familiarizado com o relato da campanha final que o
soldado revolucionário empreendeu em 1859 em todo o território de seu Estado natal, Barinas.
Pouca coisa escrita resta das idéias de Zamora, mas as tradições orais, recolhidas pessoalmente por Chávez quando esteve
acantonado em Elorza, nos llanos, mantêm viva a crença ancestral de que era um homem solidário com os pobres do campo. Sua
convocação aos camponeses insurgentes baseava-se em 3 lemas,
comumente utilizados por Chávez:
“Terra e homens livres.”
“Eleições populares.”
“Horror à oligarquia.”
Durante muitos anos após sua morte, depois da vitória de seus
oponentes conservadores, o nome de Zamora foi menosprezado.
A oligarquia local, segundo Chávez, nunca perdoou a Zamora as
ações que realizou contra seus interesses, quando saqueou o
vilarejo de Barinas. Ordenou que o edifício que continha os arquivos com os títulos de propriedade das terras fosse queimado
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até os alicerces. Em uma ação que lembrava a Revolução Francesa, exigiu que as terras tomadas pelos camponeses ficassem a
salvo de futuras represálias legais por parte dos fazendeiros.
Rómulo Gallegos, escritor e efêmero presidente da Venezuela
pela AD, turvou as águas republicanas quando o comparou a José
Tomás Boves (1782-1814), o intransigente chefe dos homens dos
llanos, os vaqueiros do Orinoco que lutaram junto com os monarquistas espanhóis contra Bolívar, em 1814, e arrebataram
Caracas das mãos republicanas. Em seu romance Pobre Negro,
publicado em 1937, Gallegos descreve como foi a recepção a
Zamora: “É Boves de volta, disse o velho, e que agora se faz
chamar Ezequiel Zamora. Como Boves, ele sabe como fazer com
que as pessoas o siguam...”.
A força de Boves residia em sua capacidade de mobilizar as
classes oprimidas, os escravos e os indígenas contra os republicanos. “Desde o começo de sua campanha” – escreveu José Ambrosio
Llamozas em 1815 – “ele manifestou a natureza da estratégia que
adotaria e de que nunca se afastou: baseava-se na destruição de
todos os brancos, enquanto resgatava, preservava e enaltecia as
pessoas de cor... As casas e bens de todos aqueles que eram assassinados ou exilados eram transferidos para os mestiços que, além
disso, receberiam o título de propriedade das terras.”
Isso sim é que era horror à oligarquia! Quando Boves tomou
a Caracas republicana, em julho de 1814, arrasou-a, forçando
Bolívar a fugir para o exílio na Jamaica. Boves não sobreviveu
muito tempo, pois foi morto no decorrer daquele mesmo ano.
Zamora era um chefe popular e certamente proclamou o
“horror à oligarquia”, embora não haja evidências de que tenha
implementado o tipo de campanha racista intransigente que
punham em prática os vaqueiros das planícies. No entanto, chegou à posteridade um legado contraditório. O Estado de Barinas,
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que algum dia foi conhecido como Estado de Zamora, foi
rebatizado posteriormente por políticos latifundiários locais, que
não apreciavam ver Zamora comemorado dessa forma. A estátua de Zamora na Praça Zamora, de Barinas, foi derrubada e
lançada no rio Santo Domingo, que corre por um de seus lados.
Tudo isso é parte da história familiar de Chávez. Ele lembra que,
em 1960, com seis anos, costumava ouvir os relatos que lhe fazia
sua avó, Rosa Chávez, em sua casa em Sabaneta. Ela, por sua vez,
recuperava as narrativas feitas, nos anos de 1920, por seu avô, um
homem que acompanhou Zamora em sua marcha por Barinas, em
1859. Ali, em Santa Inés, Zamora conseguiu sua maior vitória. Nos
arredores de Sabaneta, ele cruzou o rio Boconó em uma passagem
rasa, no mesmo lugar em que o jovem Chávez costumava ir, com
seu pai, pescar e nadar. Às vezes, Chávez ia com seus companheiros de escola até o próprio campo da batalha de Santa Inés, sempre com a esperança de encontrar na areia velhas baionetas.
A batalha de Santa Ines foi a “obra-prima” de Zamora, escreve Malcom Deas, um historiador de Oxford, “um elaborado método
de emboscadas entrincheiradas”. Deas afirma que “a reputação de
Zamora como reformador igualitário deve-se a seu extraordinário
dom para com o ser humano, um dom de relacionamento com
todas as classes sociais, assim como seu prestígio militar provém
inteiramente de sua destreza no campo de batalha”. Portanto, não
há dúvida de que Chávez tem razão quando reivindica Zamora
como um idealista radical que pôs as necessidades dos camponeses no coração de seu programa para transformar a economia rural
do país. Entre suas propostas específicas que sobreviveram, está um
plano de quatro pontos para os camponeses:
1. Devem ser destinadas ao uso comunitário cinco léguas ao redor de
cada vilarejo ou casario, em toda a sua circunferência;
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2. A abolição do sistema de cálculo da renda sobre terras agrícolas.
3. Os salários dos trabalhadores deverão corresponder a seu trabalho.
4. Dez vacas leiteiras devem ser transferidas pelos fazendeiros para
terrenos públicos, para fornecimento de leite gratuito às famílias pobres.
Fossem quais fossem as propostas específicas de seu programa, Zamora permaneceu na lenda popular como um dos
mais ousados caudilhos do século 19 Não foi um sedento de
sangue como Boves, mas teve uma capacidade similar para
mobilizar as massas para a ação como, certamente, é o caso
de Chávez.
Zamora nasceu em Cúa, Estado de Miranda, em fevereiro de
1817. Seu pai morreu na Guerra da Independência e sua família
mudou-se para Caracas quando ele era bem jovem. Depois, voltou
aos llanos, ganhando a vida, por alguns anos, como negociante de
gado. Posteriormente, abriu um armazém em Villa de Cura.
Apoiou a causa liberal na época de Antonio Leocadio Guzmán
(1801-1884), fundador do partido liberal e poderoso opositor da
oligarquia de fazendeiros reunidos em torno da figura de José
Antonio Páez (1790-1873), o grande e idoso conservador que
lutou ao lado de Bolívar. Depois de eleições tipicamente fraudulentas em sua cidade natal, em 1846, Zamora lançou um ataque
contra as forças dos fazendeiros, unindo-se a um dos grandes
chefes nativo dos llanos, “o índio” José Rangel.
Zamora e Rangel organizaram os camponeses e escravos locais,
em uma força de ataque que se chamou Exército do Povo Soberano, mas foram derrotados em 1847, na batalha de Laguna de
Pedra. Zamora e Rangel foram capturados e condenados à morte.
Rangel foi morto a machadadas; quanto a Zamora, suspenderam
sua execução, comutando sua pena para dez anos de prisão. Fu-
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giu para Maracay quando era transportado para a cadeia de Maracaibo; conseguiu trabalho como diarista em uma fazenda, até que
lhe foi concedida uma anistia, no ano seguinte.
Alistou-se então no Exército Liberal, de José Tadeo Monagas
(1785-1868), continuando sua luta contra os fazendeiros. Em
1849, suas tropas levaram a Caracas, acorrentado, o chefe
oligarca José Antonio Páez; em 1851, transformou-se em comandante militar em Coro. Em 1854, quando os escravos foram enfim libertados, Zamora opôs-se, inutilmente, a que seus antigos
senhores recebessem indenização.
A derrota dos fazendeiros foi apenas temporária, visto que em
breve voltaram, liderados pelo presidente Julián Castro. Zamora e
outros chefes liberais foram enviados para o exílio pelo Caribe; mas,
em outubro de 1858, um grupo de exilados organizou uma Junta
Patriótica para planejar uma rebelião. Seriam dirigidos pelo general
Juan Crisóstomo Falcón, cuja irmã casara-se com Zamora.
Zamora voltou ao continente, efetuando um ataque vitorioso a Acoro, em fevereiro de 1859. Começou então uma campanha para o oeste, que só terminou com sua morte, 10 meses
depois, na batalha de San Carlos. Seu grande êxito de Santa Inés,
em dezembro de 1859, obrigou à retirada das forças governamentais, conduzidas por Pedro Ramos, para Mérida, deixando Coro,
Barinas e Portuguesa em mãos das forças federalistas.
Chávez recorre freqüentemente à batalha de Santa Inés em
seus discursos, tendo ficado surpreso quando descobriu, durante uma visita a Havana, que o onisciente Fidel Castro sabia tudo
a respeito. Quando conclamava os cidadãos a votar “sim” durante
a campanha prévia ao plebiscito, realizado em 15 de dezembro
de 1999, para ratificar a nova Constituição, Chávez pronunciou
um discurso que prefigurava a batalha por vir, comparando sua
postura à de Zamora.
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Na batalha de Santa Inés, Zamora fez com que suas tropas simulassem uma retirada, o que permitiu aos partidários do “não” avançarem e tomarem Barinas sem disparar um tiro. Zamora, partidário
do “sim”, havia preparado uma emboscada e lançou seu contraataque, dando-lhes um golpe terrível e perseguindo-os até Mérida.
A intenção de Chávez era repetir o êxito de Zamora no plebiscito.
Chávez também reivindica Zamora como o elo da corrente
que liga o projeto de Bolívar ao programa que ele ambiciona
realizar. O Zamora de Chávez seguiu as pegadas de Bolívar em
busca do ideal de uma América Latina unida por meio de uma
aliança integral com a Colômbia:
“Encontra-se, em Zamora, o mesmo pensamento geopolítico bolivariano quanto à unidade da América Latina; ele tentou unir suas forças
às que lutaram pela Federação em território colombiano do outro lado
do rio Apure. Em 19 de maio de 1859, em uma proclamação ao povo
de Barinas e Apure, ele descreveu “a nova era da Federação colombiana que se abre, e que era o desejo póstumo de nosso Libertador, o
grande Bolívar”.
Chávez invocou outra característica de Zamora. Em um retrato de Zamora por José Ignacio Chaquet, depois da batalha de
Santa Inés, o herói guerreiro está representado de perfil, usando
2 chapéus, um em cima do outro. Um é um chapéu comum e o
outro é um quepe militar. Em várias oportunidades, Chávez imitou essa postura. Para Zamora, o objetivo era destacar a unidade entre o povo e as Forças Armadas, em seus esforços para “fazer a Revolução”. Em seu propósito de reestruturar as relações
entre a sociedade civil e a Força Armada, o comandante Chávez
procura manter essa tradição.
A lenda de Zamora sobrevive hoje nas estrofes de uma canção militar da época da guerra federal. Letra e música são de
Domingo Castro, um músico do Exército:
“O céu encoberto anuncia tempestade
E o Sol detrás das nuvens perde sua claridade
Oligarcas, tremei, viva a Liberdade!
As tropas de Zamora, ao toque do clarim,
Derrotam as brigadas do godo malandrim*
Oligarcas, tremei, viva a Liberdade!”
Em uma narração recente da grande batalha de Zamora em
Santa Inées, Román Martínez Galindo se queixa de que as novas
gerações de crianças venezuelanas estão muito influenciadas pela
televisão – particularmente a dos Estados Unidos. Martínez lamenta o fato de que “estão mais familiarizados com a conquista
do Oeste, com a anexação do Texas, ou com a guerra civil
estadunidense entre o Norte e o Sul, do que com as guerras
federalistas da Venezuela”. A história de Zamora, sugere, é “um
episódio de tanta importância em nossa história, escrita por
nossos antepassados próximos, que é necessário conhecê-la se
realmente quisermos saber quem somos”.
Martínez Galindo tem a esperança de que algum dia os
talentosos cineastas da Venezuela decidam nos resgatar do
colonialismo dos filmes de vaqueiros, dos marines, dos boinasverdes... e que possamos ver o General do Povo Soberano no
cinema, tocando clarim à frente de suas tropas, enquanto entoam “Oligarcas, tremei!”
*
Godo: termo que se usava para se referir aos espanhóis durante as guerras de independência. Malandrin: bandido, malfeitor, criminoso, larápio. (N. do E.)
TERCEIRA PARTE
PREPARANDO A DERRUBADA DO ANTIGO REGIME
1992 – 1994
13. A PRISÃO DE YARE
À PROCURA DE ALIADOS POLÍTICOS
(OS) PROJETOS ORIGINAIS (DO MAS ERAM) DE JUSTIÇA SOCIAL, DE EQÜIDADE,
LIBERDADE, DEMOCRACIA, REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA. ESSAS FORAM AS
BANDEIRAS DE QUE OUVI FALAR, QUANDO EU ERA JOVEM, NO ENSINO MÉDIO,
LÁ EM BARINAS...
HUGO CHÁVEZ, ENTREVISTADO EM JUNHO DE 1998.
or sua participação na organização da tentativa de golpe de
fevereiro de 1992, o tenente-coronel Chávez recebeu uma
longa pena de prisão. Na prática, ficou encarcerado apenas 2
anos, de fevereiro de 1992 a março de 1994. Detido primeiro em
San Carlos,* foi transferido, posteriormente, para San Francisco
de Yare. Recebeu tratamento adequado na prisão e procurou, de
alguma maneira, comportar-se como um oficial destacado. Permitiram-lhe ser entrevistado pela rádio e receber numerosas visitas, algumas das quais passaram a desempenhar um papel
importante em sua formação política e, posteriormente, em seu
governo. Teve também tempo para ler e pensar, assim como para
considerar mais profundamente as bases nacionalistas de sua
filosofia política.
Enquanto Chávez esteve preso, uma série de acontecimentos
dramáticos ocorreu no cenário nacional. O presidente Carlos
P
*
Antiga prisão militar, localizada em Caracas. (N. da T.)
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Andrés Pérez, que sobrevivera a 2 tentativas de golpe militar em
1992, foi finalmente destituído do poder em junho de 1993, por
aquilo que foi, de fato, um golpe do Congresso. Perdera o apoio
da velha guarda da AD, seu próprio partido. Alinhados contra ele
no Congresso, acusaram-no de corrupção e, junto com dois de
seus ministros, forçaram-no a renunciar à Presidência. Foi substituído, para completar o período, por Ramón J. Velásquez, um
conhecido historiador.
Quando as novas eleições presidenciais foram convocadas, em
dezembro de 1993, o tenente-coronel Chávez conclamou seus
seguidores a se absterem, o que muitos deles fizeram. O resultado da votação foi pouco alentador para os partidos tradicionais.
Quando Pérez foi eleito, em dezembro de 1988, 25% dos eleitores se abstiveram. Em dezembro de 1993, a abstenção chegou a
40%, uma porcentagem de eleitores consideravelmente maior do
que os míseros 30% que votaram para eleger o eventual vitorioso: Rafael Caldera.
A força política dos velhos partidos estava desmoronando. A
crise econômica, o Caracazo, as duas tentativas de golpe de Estado e suas próprias divergências internas estavam aplainando o
caminho para a catástrofe. Pela primeira vez na política
venezuelana, os quatro principais candidatos receberam uma
parcela semelhante de votos: Claudio Fermín, pela AD, recebeu
23,60%; Oswaldo Álvarez Paz, do Copei, obteve 22,73%; Andrés
Velásquez, da Causa R, recebeu 21,95%. Apenas Caldera, com
30%, obteve uma estreita vantagem e todos reconheceram que
conseguira a vitória graças a seu famoso discurso no Congresso,
em fevereiro de 1992, no qual virtualmente legitimara o golpe de
Chávez. Devido a sua habilidade política inata, ou simplesmente por sorte, Caldera deu seqüência a sua campanha como independente, formando um grupo chamado Convergência, que se
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aliou ao MAS. Sendo o fundador do Copei, ele os abandonou,
assim como estes o abandonaram.
Embora Caldera fosse o vencedor por estreita margem, não
teve nada parecido com maioria no Congresso. Seu governo ficou amarrado desde o começo, vendo-se obrigado a pedir apoio
a Luis Alfaro Ucero, o chefe da AD.
Os politicólogos começaram a falar, pela primeira vez, da
natureza messiânica da cultura política venezuelana. Caldera era
visto como o mago do momento, como já o fora Pérez, em 1988.
Caldera era o homem que, novamente, poderia reunificar o país,
apesar de ter tudo contra. Posteriormente, nos mesmos anos de
1990, a situação política tornou-se tão desesperadora, que candidatos milagrosos apareceram de todos os lados. Um deles era
Irene Sáez, uma ex-rainha de beleza, que se tornou prefeita de
Chacao. Outro seria o tenente-coronel Hugo Chávez
Novas forças começaram a emergir no país. Um pormenor
importante nas eleições de 1993 foi a grande votação da Causa
R, o partido radical de trabalhadores do Estado de Bolívar, que
já tivera alguma influência sobre Chávez. Transformou-se na
terceira maior força, depois dos dois partidos principais. Estes,
juntos, receberam menos votos do que os dois menores e de mais
recente formação: a Convergência, de Rafael Caldera (aliado ao
MAS), e a Causa R.
Os dois partidos de esquerda eram agora atores principais da
cena nacional. O MAS decidiu participar com Caldera, enquanto a Causa R decidiu esperar algum tempo. Na seqüência, e depois de sérias divisões, ambos apoiariam Chávez.
O MAS é uma pequena organização política, mas com grande influência intelectual, que seguiu a maioria dos altos e baixos
dos movimentos socialistas semelhantes da Europa, oscilando
entre o eurocomunismo e a socialdemocracia. Uma porção con-
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siderável da esquerda intelectual na Venezuela entrou e saiu do
MAS durante seus 30 anos de existência e suas acirradas lutas
internas forneceram grande parte da matéria-prima para o debate
político na Venezuela.
Fundado no início dos anos de 1970 por antigos membros do
PCV, muitos dos quais haviam lutado nos movimentos guerrilheiros dos anos de 1970, seu porta-voz mais claro e várias vezes
candidato à Presidência da República era Teodoro Petkoff. Desencantado da luta guerrilheira, e desiludido com a invasão soviética na Tchecoslováquia, em 1968, a trajetória política de Petkoff
foi de um lento deslocamento para a direita, embora suas ações
sempre tenham sido guiadas por um forte senso moral quanto ao
que é correto fazer em determinado momento. Durante a crise dos
anos de 1990, entregou-se à tarefa de levar o MAS a apoiar o
governo minoritário de Rafael Caldera. O próprio Petkoff desempenhou um papel destacado naquele governo como ministro do
Planejamento, implementando um conjunto de reformas
neoliberais. Foi incorporado ao governo por outro conhecido excomunista e fundador do MAS, Pompeyo Márquez, que veio a ser
o ministro de Fronteiras do governo Caldera.
Reconhecendo sua dívida política para com o tenente-coronel Chávez, que lhe dera a margem sobre os outros candidatos,
o presidente Caldera deu instruções, no início de seu mandato,
para que fossem libertados os envolvidos nos 2 golpes militares
de 1992. Chávez saiu da prisão em um domingo de Ramos, 27 de
março de 1994.
Durante seu cativeiro, Chávez, assim como Caldera, estivera
em busca de aliados políticos. Renovara seus contatos com um
considerável número de figuras civis que conhecera antes do
golpe. Luis Miquilena foi um visitante assíduo, como outros
membros da Frente Patriótica formada em 1989. Falou com gente
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do MAS e da Causa R, mas parece ter estabelecido um limite
diante do Bandeira Vermelha, um pequeno grupo que ainda pregava a luta armada e que se proclamava herdeiro das guerrilhas
dos anos de 1960. Chávez nunca teve muito tempo para a ultraesquerda.
“Setores como esses parece que se auto-atribuíram a missão purista de
se proclamarem os únicos revolucionários do planeta, ou deste território. E aqueles que não sigam seus dogmas, aqueles que não aceitem
suas propostas, não são revolucionários. Deixe-me dizer-lhe que nunca,
jamais conversei mais de 5 minutos com algum dirigente do Bandeira
Vermelha.”
Embora Teodoro Petkoff estivesse trabalhando com Caldera,
outra figura proeminente do MAS, Jorge Giordani, fora um visitante assíduo da prisão de Yare. Economista do desenvolvimento,
preparado na Universidade de Sussex, e professor da Universidade Central de Caracas e do Cendes, Giordani era o grande guru do
MAS em matéria econômica. Recusara-se a apoiar o governo de
Caldera e iria se transformar em um dos principais conselheiros
econômicos de Chávez. Muitas das idéias econômicas, semifomuladas, de Chávez provêm de sua articulação com Giordani, que,
em 1999, foi designado ministro do Desenvolvimento, encarregado
de Cordiplan.
O MAS não era sinônimo de Petkoff em nenhum aspecto e,
quando a possibilidade de uma presidência de Chávez apareceu
no horizonte, por volta de 1998, Giordani e uma maioria do MAS
optaram por apoiá-lo. Petkoff era ainda ministro de governo de
Caldera e não desejava mudar de linha. Não concordava com a
proposta política de Chávez em quase nenhum de seus aspectos.
Mas o resto de seu partido aderiu a Chávez.
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Ao perguntar-lhe porque o MAS apoiara sua campanha presidencial, Chávez observou que a direção apresentara muita resistência, mas que se submetera à pressão das bases partidárias.
Entrevistado por Agustín Blanco Muñoz em 24 de junho de 1998,
disse que os membros de base apoiavam-no há bastante tempo:
“Quando saímos de Yare, nessas viagens pelo país, o pessoal do MAS
sempre estava presente, procurando conversar. Acho que a maior parte
das bases do MAS, esse corpo estruturado que há no país, sempre esteve e está conosco e nunca concordou com a incorporação do MAS
ao governo (de Caldera) e, menos ainda, com as decisões posteriores,
tomadas por parte da cúpula... Creio que foram capazes de estimular,
de pressionar a direção para que tomasse uma decisão que, penso,
aponta para a busca de suas raízes, de seus projetos originais de justiça social, de eqüidade, liberdade, democracia, de revolução democrática. Essas foram as bandeiras de que ouvi falar, quando eu era jovem,
no ensino médio, lá em Barinas, quando nasceu o MAS. Quase no
mesmo ano em que entrei para o Exército, em 1971.”
Durante aqueles anos, Chávez conheceu outro fascinante
ativista político, um historiador argentino chamado Norberto
Ceresole. Como, apesar de ter raízes na esquerda, Ceresole foi
adotando posições mais próximas à direita, seus primeiros contatos com Chávez são citados muitas vezes como indícios da
natureza reacionária de suas opiniões.
Ceresole afirma que, nos anos de 1970, foi membro dos
Montoneros, o grupo guerrilheiro peronista que esteve em primeiro plano durante o governo de Perón e, depois, durante o de sua
viúva, Isabelita. Mais tarde, pronunciou-se a favor do golpe
militar do general Jorge Videla contra a presidência de Isabelita
Perón em 1976, afirmando que as organizações de direitos hu-
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manos que criticavam os excessos da “guerra suja” na Argentina faziam parte de um “complô judeu” contra a nação. Ceresole
é também autor de muitos livros. Um deles, A conquista do império americano, publicado pela editora Al-Andalus, em Madri,
em 1998, denuncia energicamente a máfia financeira judia que
se esconde por trás do capitalismo americano.
No início, Ceresole foi útil a Chávez devido ao seu permanente
interesse histórico por governos militares “progressistas”. Como
peronista radical, Ceresole tecia considerações sobre Nasser e
Ataturk; também escreveu livros para apoiar o general peruano
Velasco Alvarado e o general panamenho Torrijos. Suas numerosas conexões com os governos árabes foram extraordinariamente úteis. No entanto, uma amizade prolongada com esse
argentino controvertido poderia ter se tornado embaraçosa;
quando Chávez assumiu a Presidência, desapareceu oportunamente do país, voltando a Buenos Aires.
14. CAUSA R, PÁTRIA PARA TODOS (PPT)
E A POLÍTICA EM GUAYANA
A CAUSA R REPUDIAVA A ESTRATÉGIA DE MEGAPROJETOS, ORIENTADOS PARA
A INDÚSTRIA DE EXPORTAÇÃO DE MATÉRIA-PRIMA... CONCENTRANDO-SE EM
INDÚSTRIAS MANUFATUREIRAS DE MÉDIO PORTE, CAPAZES DE TRANSFORMAR
MATÉRIA-PRIMA NO PRÓPRIO ESTADO DE BOLÍVAR.
MARGARITA LÓPEZ MAYA
iudad Bolívar, antes Angostura, assim chamada devido ao
estreitamento do rio, é um vilarejo colonial assentado rio
acima, na margem Sul do Orinoco. Uma calçada arborizada
margeia o rio, com balaustradas que impedem os transeuntes de
cair, sendo vítimas dos jacarés, que outrora caracterizaram essa
via aquática estratégica. Walter Raleigh esteve em Angostura,
assim como o cientista alemão Alexandre Humboldt, recuperando-se durante semanas de um surto de febre.
Simón Bolívar também utilizou Angostura como base política, anos antes que fosse rebatizado em sua honra. Esteve ali
primeiro em 1816, antes de seu espetacular avanço pelas montanhas andinas, em direção à Colômbia. Depois, em 1819, o
Congresso, que convocara entre as populações libertadas próximas ao Orinoco e às costas caribenhas, designou-o presidente e
comandante militar do novo Estado da Grande Colômbia.
“Feliz o cidadão” – disse Bolívar na abertura do Congresso de
Angostura – “que, sob o escudo das armas a seu mando, convo-
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cou a soberania nacional para que exerça sua vontade absoluta!”
O presidente Chávez utilizou as mesmas palavras quando instou
a Assembléia Nacional a preparar uma nova Constituição, 180
anos depois, em 1999.
Angostura, ou Ciudad Bolívar, como se chama agora, foi em
determinado momento um importante centro de comércio de
que hoje só resta a glória de uma história esquecida. Mantém
sua importância como capital do Estado de Bolívar e passagem
para as planícies do baixo Orinoco e para a região oriental da
Guiana. Ultrapassada a cidade, uma rodovia conduz a Ciudad
Guayana, o centro do maior complexo industrial jamais planejado na Venezuela, um lugar onde o espírito heróico e pioneiro faz pensar nos dias gloriosos da União Soviética. Esse é o
coração energético da Venezuela, um lugar onde o Estado assumiu a responsabilidade de desenvolver a indústria pesada e
a geração de energia, elementos indispensáveis de uma economia moderna.
Pode-se chegar a pensar que, se a Venezuela tem grande
quantidade de petróleo, teria sido suficiente instalar usinas de
geração movidas a combustível. Mas não é assim; governos
ambiciosos, tempos atrás, tomaram a decisão de vender petróleo no mercado externo e obter energia hidrelétrica própria para
sua indústria nacional. A região de Guayana abriga o segundo
maior complexo hidrelétrico do mundo, situado em Guri, sobre
o rio Caroní. Só é superado pela represa de Itaipu, sobre o rio
Paraná, na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Aqui estão
também as escavações de uma imensa montanha de minério de
ferro em Cerro Bolívar, além da enorme usina operada pela
Siderúrgica do Orinoco – Sidor – e além de uma embrionária
indústria de alumínio. Todas elas foram instaladas e operadas
com recursos do Estado.
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Atender e manejar essas gigantescas empresas exigiu uma
vasta força de trabalho, atraída para a região de todos os cantos
do país. Não é de surpreender, portanto, que a região tenha se
tornado famosa por sua radicalização política. Um poderoso
movimento de trabalhadores desenvolveu-se durante cerca de 30
anos, independentemente dos sindicatos, controlados pelos governos da época. Hoje, esse movimento constitui um sólido apoio
do presidente Chávez.
Ciudad Guayana é o berço da Causa Radical (Causa R), uma
organização política única na Venezuela. Fundada no princípio
dos anos de 1970, a Causa R, ou Causa Radical, foi o núcleo
original de PPT, um partido criado em 1997 e que hoje faz parte
do Pólo Patriótico, a coalizão governamental de Chávez. O PPT
proporcionou ao governo vários de seus principais ministros,
assim como muitas de suas lúcidas idéias.
A Causa R foi fundada nos anos de 1970 por Alfredo Maneiro, um lutador das guerrilhas do PCV na década anterior. O grupo
de Maneiro, assim como o do MAS, de Teodoro Petkoff, formouse a partir das cisões que afetaram o velho PCV, em 1970, no final
das lutas guerrilheiras. Maneiro, nascido em 1939, foi membro do
Comitê Central do PCV e comandante guerrilheiro do frente oriental. Quando o PCV implodiu, no final dos anos de 1960, Maneiro
identificou-se com a posição chinesa, na disputa sino-soviética,
atitude radicalmente diferente da de dissidentes como Petkoff, que
se aproximou da socialdemocracia de tipo europeu. Pablo Medina
foi um dos discípulos de Maneiro quando se dedicava à luta sindical. Foi membro da Assembléia Constituinte de 1999 e um dos
mais proeminentes assessores civis de Hugo Chávez.
O grupo de Maneiro participou da formação do MAS, em janeiro de 1971, mas rapidamente mudou de direção. Maneiro adotou uma posição muito crítica em relação ao velho PCV dos anos
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de 1960, e não apenas por questões de doutrina. Começou a questionar a pertinência dos partidos políticos em geral, até chegar a
formular uma posição ideológica hostil a esse tipo de organização.
Em uma coleção de artigos, Notas Negativas, publicada em 1971,
esboçou a posição política de um novo grupo de esquerda nacionalista que chamou de Venezuela 83, precursor do Causa R.
O número 83 refere-se ao ano de 1983. Naquela data, para a
qual faltavam dez anos, as companhias petrolíferas estrangeiras
que operavam na Venezuela devolveriam suas concessões ao
Estado venezuelano em virtude do tratado assinado em 1944. A
opinião nacionalista venezuelana esperava ansiosamente a chegada desse acontecimento (na prática, Carlos Andrés Pérez, mais
populista e demagogo do que nunca, conseguiu adiantar a data
para 1976, ano em que as companhias petrolíferas foram finalmente nacionalizadas).
O objetivo político de Maneiro era particularmente original,
pois consistia em canalizar os movimentos de protesto sem criar uma estrutura política partidária. A historiadora Margarita
López Maya descreveu seu projeto da seguinte maneira:
“Maneiro dizia que era necessário dar tanto um quadro político à
extraordinária capacidade de mobilização espontânea das massas,
quanto participar das infinitas e variadas formas de movimentos populares; mas isso devia ser feito com a firme convicção de que as
massas sozinhas deviam decidir sobre sua própria orientação política.
Em lugar de começar com uma estrutura política dada, era importante crer na capacidade dos movimentos populares de gerar novas lideranças em suas próprias fileiras”.
Uma vez formulada essa interessante e inovadora filosofia
política, Maneiro e seu grupo decidiram se concentrar em três
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áreas particulares de mobilização popular, onde deveria eventualmente emergir a necessária liderança de vanguarda. Uma delas
era o movimento estudantil, criado na Universidade Central da
Venezuela, uma efervescente organização política sediada nos
magníficos edifícios modernistas de Carlos Raul Villanueva. Com
profundas raízes, que chegam às gerações de 1918, 1928 e 1958,
assim como à de 1968, a UCV esteve, durante muitos anos, associada à esquerda. Uma segunda área de protestos populares era
a zona Oeste de Caracas, no subúrbio de Catia, com meio milhão
de habitantes de várias raças e considerável tradição de lutas
populares.
A atividade política nessas 2 frentes, a UCV e Catia, teve êxito,
inicialmente, mas logo revelou-se politicamente estéril. A Causa R concentrou seus esforços na terceira área escolhida por
Maneiro, o movimento operário de Ciudad Guayana, associado
à indústria siderúrgica estatal, Sidor. Depois de uma longa greve, os trabalhadores da Sidor haviam se politizado, adotando
posições críticas em relação aos sindicatos oficiais, controlados
pela AD. Ali, a filosofia de Maneiro foi posta à prova e deu resultados satisfatórios.
As grandes obras públicas em Ciudad Guayana, a Sidor e os
grandes reservatórios no rio Caroní eram fruto de decisões tomadas durante os anos de 1950, sob a ditadura militar de Marcos
Pérez Jiménez. Pérez Jiménez, uma figura que todos prefeririam
esquecer, vive exilado na Espanha.* No Palácio de Miraflores, em
Caracas, uma fileira de retratos presidenciais vai desde Rómulo
Gallegos (deposto em 1948) até Rómulo Betancourt (que tomou
o poder em 1958). Pérez Jiménez, que governou entre esses 10
*
A edição inglesa deste livro foi publicada antes da morte de Marcos Pérez Jiménez,
em 20 de setembro de 2001, aos 86 anos. (N. da T.)
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anos, tornou-se um personagem desconhecido, tirado da História. No entanto, tomou muitas decisões fundamentais, que afetariam a economia venezuelana por 50 anos, decisões de tal
monta e implicações que, até os anos de 1990, nenhum dos presidentes posteriores teve a coragem ou a oportunidade de
reconsiderá-las.
Luis Miquilena, o conselheiro político mais destacado de
Chávez, tem uma atitude interessante, ambivalente, em relação à
ditadura de Pérez Jiménez. Apesar de vítima da repressão da época, Miquilena agora é capaz de reconhecer os êxitos do ditador:
“O ditador tinha uma idéia das potencialidades do país bastante mais
elaborada do que a dos que integravam a AD naquela época. Pérez
Jiménez estabeleceu as bases de nosso desenvolvimento e posso dizêlo com a autoridade de alguém que esteve preso 7 anos durante o seu
mandato.
Naquela época, desenvolveu-se a indústria siderúrgica e foram
construídas as principais estradas do país. Certamente, ele tinha um
plano e um conceito do que o país podia ser, o que nunca tiveram seus
sucessores”.
Essas idéias, diz Miquilena, eram importantes, e só foram
retomadas “quando Chávez propôs fundar um novo país pela via
democrática”.
O caminho da Venezuela para o desenvolvimento industrial
sob os preceitos do governo de Pérez Jiménez deveria ter sido
retilíneo. Com ferro, bauxita e eletricidade baratos e transporte
econômico pelo Orinoco (além da proximidade de um vasto
mercado, como os Estados Unidos), a rota para frente parecia
simples e atraente. No entanto, quanto ao econômico, as empresas
estatais de Ciudad Guayana transformaram-se em dor de cabe-
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ça sem fim para os sucessivos governos e, tal como na União
Soviética, as desvantagens do capitalismo de Estado tornaramse cada vez mais evidentes.
A poderosa Corporação Venezuela de Guayana (CVG), corrupta
e burocrática, tornou-se um estado dentro do Estado. O desenvolvimento industrial fora financiado pela renda do petróleo e quando
os preços desse produto despencaram, nos anos de 1980, a ruína
econômica da região de Guayana tornou-se muito evidente.
Aparentemente, tudo continuava igual. Grandes rodovias cruzavam o território, a vasta produção siderúrgica da Sidor mantinha-se, a faraônica represa de Guri funcionava a plena capacidade. No entanto, bastava rever os livros para constatar o tamanho
da ruína. O dinheiro dos lucros do petróleo era mal empregado
pelos partidos políticos no poder, em conivência com sindicatos
(que eram extensões dos partidos políticos), o que permitia grandes superfaturamentos. Grandes dívidas foram contraídas, sem que
se pensasse em como seriam pagas. A Sidor empregava 6 mil trabalhadores, mais do que era economicamente justificável. A usina hidrelétrica da represa de Guri não podia sobreviver se não
cobrasse a eletricidade que produzia. Outras fábricas necessitavam
de investimentos consideráveis e havia pouca disponibilidade por
parte do Estado. Era necessário dinheiro proveniente dos investidores estrangeiros, o que, por sua vez, exigia melhoramentos em
eficiência e competitividade, uma mudança da água para o vinho,
para o paternalista Estado venezuelano.
Subitamente, os trabalhadores da região começaram a ouvir os
porta-vozes da Causa R. Pablo Medina, outro partidário das guerrilhas dos anos de 1960, fora enviado à Sidor para se infiltrar como
trabalhador, em 1972. O clima parecia propício à atividade política. A nova Ciudad Guayana transformara-se em um imã para os
trabalhadores não organizados, que migravam de todo o país, e o
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crescimento potencial de uma organização sindical criativa rapidamente tornou-se evidente. Medina trabalhava no turno da noite na siderúrgica; durante o dia, produzia um jornal, El Matancero,
muito crítico em relação ao sindicato dominante, ligado à AD.
Ao descrever essas atividades iniciais, Margarita López Maya
relata como o jornal de Medina se concentrou em áreas da luta
política que anteriormente ficaram desassistidas:
“El Matancero combatia a corrupção do sindicalismo tradicional e reclamava o direito dos trabalhadores de participar democraticamente das
decisões sindicais que lhes diziam respeito, algo nunca visto até então
na região. Igualmente, exigia a participação nas decisões relativas à
segurança nos locais de trabalho, aspectos nunca antes considerados pelos
dirigentes sindicais”.
Andrés Velásquez foi um dos primeiros militantes da Causa R.
Esse habilidoso eletricista, que foi depois candidato presidencial da
esquerda, culminava com as esperanças de Maneiro de que uma
nova liderança emergisse das lutas específicas. Em 1977, depois de
5 anos de atividade política continuada, outra incorporação: Tello
Benítez foi eleito para o sindicato dos trabalhadores siderúrgicos,
Sutiss, Sindicato Único dos Trabalhadores da Indústria Siderúrgica e Similares.
Depois de uma década de trabalho político, os ativistas associados a El Matancero abriram uma brecha momentânea. Nas eleições sindicais de 1979, a chapa de El Matancero, encabeçada por
Velásquez, assumiu o controle do Sutiss. Foi uma vitória de Pirro.*
*
Pirro II, rei de Épiro, região da Grécia antiga, na batalha de Heracléia, em 280 a.C.,
apesar de vitorioso, sua vitória causou tantos danos ao seu exército que pode ser considerada uma derrota. Esse tipo de êxito com sabor de derrota deu origem à expressão “vitória de Pirro”.
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Dois anos depois, em 1981, o Sutiss sofreu intervenção por parte
de sua federação, a Fetrametal, uma organização sob o controle da
AD. Velásquez e Benítez foram despedidos da siderúrgica. A Causa R estava agora e pouco tempo depois, perdeu seu fundador:
Alfredo Maneiro morreu em novembro de 1982, com apenas 45
anos de idade.
Passaram-se alguns anos antes que o Sutiss fosse capaz de
recuperar sua independência: a chapa de El Matancero ganhou
novamente em 1988. o movimento estava novamente em ascensão e a Causa R, pela primeira vez, tinha presença nacional. Nas
eleições para o Congresso, em 1988, três candidatos da Causa R
foram eleitos deputados. No ano seguinte, o ano do Caracazo,
Andrés Velásquez foi eleito governador do Estado de Bolívar, em
dezembro de 1989. Três anos depois, em dezembro de 1992,
voltou a vencer, enquanto outro ativista da Causa R, Aristóbulo
Istúriz, uma figura destacada do sindicato dos professores que
apoiou o golpe de Chávez, foi eleito prefeito de Caracas. Finalmente, nas eleições presidenciais de dezembro de 1993, Velásquez
obteve 22% dos votos em todo o país. Era um triunfo extraordinário.
O programa de Velásquez de 1990 fornece algumas indicações
quanto às ambições nacionais da Causa R naquele momento; tem
também algo das idéias que foram posteriormente incorporadas
ao governo de Hugo Chávez.
Segundo Margarita López Maya, o programa de Velásquez
tinha quatro linhas mestras: a prática democrática devia ser
entendida não apenas enquanto eleições, mas também nas ações
do próprio governo; a corrupção devia ser exterminada pela raiz;
era preciso garantir a competência e a transparência na prestação dos serviços, especialmente os da saúde, educação e
seguridade social.
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A quarta premissa, que se referia especificamente ao desenvolvimento da região de Guayana, era perfilar critérios muito
diferentes dos concebidos até então pelo Estado venezuelano:
“A Causa R repudiava a estratégia de megaprojetos, orientados para a
indústria de exportação de matéria-prima (ferro, alumínio, bauxita) e em
seu lugar era favorável às atividades águas abaixo do Orinoco, concentrando-se em indústrias manufatureiras de médio porte, capazes de transformar matéria-prima no próprio Estado de Bolívar”.
Não haveria mais megaprojetos que o Estado não pudesse financiar e, sim, um número maior de empresas de porte médio que
pudessem ser sustentadas no local. Tal foi a herança intelectual que
a Causa R passou ao governo de Hugo Chávez. Alguns escritores
sugeriram que a Causa R, com sua ênfase nos trabalhadores e no
sindicalismo, tem algumas semelhanças com o Partido dos Trabalhadores, de Lula, no Brasil. Na prática, o paralelo é mais satisfatório
com os partidos verdes da Europa, particularmente na Alemanha. A
Causa R não é, de modo algum, um partido da esquerda tradicional.
Pouco tempo depois do golpe de Chávez, de 1992, a Causa R
realizou um de seus mais notáveis recrutamentos: o tenentecoronel Francisco Arias Cárdenas, companheiro de Chávez no
MBR-200, o oficial que controlou Maracaibo durante a tentativa de golpe. Cardenas é natural do Estado de Táchira e, nas eleições de 1996, foi escolhido candidato da Causa R para o governo do Estado de Zulia.
Esse foi, provavelmente, o ponto mais alto a que chegou a
organização de Maneiro. Posteriormente, a Causa R foi varrida
pela onda do fenômeno Chávez. Como todos os movimentos
políticos na Venezuela, teve de enfrentar decisões inesperadas:
apoiar Chávez para a Presidência ou repudiá-lo?
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Em fevereiro de 1997, a Causa R dividiu-se em dois grupos
diferentes: uma pequena fração permaneceu com o nome Causa
R, enquanto uma nova organização, de maior envergadura, começou a se chamar PPT.
A divisão criou um conflito entre Andrés Velásquez e Pablo
Medina. Velásquez permaneceu na Causa R, apoiado por Ana
Brumlick, a viúva de Maneiro. Pablo Medina, apoiado por
Aristóbulo Istúriz, Alí Rodríguez Araque e Alberto Muller Rojas,
formam o PPT, somando seus esforços à campanha presidencial
de Chávez.
O PPT tornou-se um componente importante do Pólo Patriótico, aliança criada para apoiar a candidatura presidencial de
Chávez em 1998. Pelo menos 4 de seus membros desempenharam
um papel importante no governo de Chávez. Um deles é o tenente-coronel Arias Cárdenas, governador de Zulia. Outro é Ali
Rodríguez Araque, ex-comandante guerrilheiro dos anos de 1960,
que foi nomeado ministro de Energia e Minas em 1999, sendo
agora o homem por trás das novas dinâmicas da política da Opep.
Aristóbulo Istúriz é o vice-presidente da Assembléia Constituinte.
Pablo Medina é o secretário-geral do PPT, enquanto Alberto Muller
Rojas é o embaixador da Venezuela em Santiago do Chile.
15. AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1998
NA LUTA PELO PODER NA VENEZUELA” – DISSE CHÁVEZ AOS DELEGADOS EM
ABRIL DE 1997 – “CONTRAPÕEM-SE DOIS PÓLOS: O ‘PÓLO PATRIÓTICO’,
LIDERADO PELO MBR-200, E O ‘PÓLO DA DESTRUIÇÃO NACIONAL’, LIDERADO
PELOS VELHOS PARTIDOS POLÍTICOS.
o sair da prisão, em março de 1994, o tenente-coronel Chávez
começou a pensar em seu futuro político. Inicialmente, continuava opondo-se à participação em eleições. O velho sistema era
corrupto demais e hostil demais para com os recém-chegados. Em
primeiro lugar, concentrou-se em tornar públicos os dois pontos
principais de sua agenda política: a necessidade de dissolver o
Congresso e a necessidade de convocar uma Assembléia Constituinte para redigir uma nova Constituição.
O repúdio de Chávez ao sistema político vigente era tão profundo que se opôs à candidatura de seu amigo e companheiro,
Francisco Arias Cárdenas, a governador do Estado de Zulia, em
1995. Arias não teve o apoio do MBR-200, como era esperado,
mas, sim, o da Causa R.
No princípio de 1997, Chávez começou a mudar de opinião.
O apoio popular aumentava e suas conversas com a Causa R e
com o MAS prosseguiam. Com vistas nas eleições presidenciais
de 1998, dispunha de apenas dois anos para transformar esse
A
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apoio em uma organização capaz de conduzir uma campanha
eleitoral – e ganhá-la. Por volta de julho de 1998, seis meses antes
das eleições, alcançava 45% nas pesquisas de intenção de voto.
Inicialmente, começou a reconstruir seu MBR-200, como
organização política propriamente dita, com apoio civil e militar. Anunciou, em janeiro de 1997, que seu movimento chegaria ao poder “antes do ano 2000” e, em abril, declarou formalmente sua intenção de optar pela presidência.
O MBR-200 organizou seu primeiro Congresso naquele mês
e os delegados decidiram que deviam apresentar candidatos a
todos os cargos contemplados nas eleições que se realizariam em
dezembro de 1998. Ao mesmo tempo, haveria eleições para a
Presidência e para o Congresso, para governadores de Estado e
prefeitos. “Na luta pelo poder na Venezuela” – disse Chávez aos
delegados em abril de 1997 – contrapõem-se dois pólos: o ‘Pólo
Patriótico’, liderado pelo MBR-200, e o ‘pólo da destruição nacional’, liderado pelos velhos partidos políticos.”
Por várias razões, o MBR-200 – que incluía tanto oficiais na
ativa quanto na reserva – parecia um instrumento pouco apropriado para preparar uma campanha eleitoral civil. Havia oposição dentro do MBR-200 sobre a estratégia eleitoral. Alguns
membros afirmavam que essa oposição levaria a uma eventual
dissolução do programa radical, tal como sucedera com movimentos progressistas como o MAS e a Causa R.
Por seu lado, Chávez afirmava que não se devia perder a
oportunidade de fazer campanha quando tantos cargos eletivos
estavam em jogo. Mas, em vista dessa oposição interna, decidiu
deixar o MBR-200 como estava e criar um novo agrupamento
político que pudesse ser organizado como força eleitoral. Em
julho, batizou sua nova organização com o nome de Movimento V República (MVR). A Venezuela precisava criar uma nova
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república, afirmou, e o novo movimento fora projetado para
manifestar a ruptura total com o passado.
A Venezuela tivera quatro repúblicas, desde a declaração de
independência, em 1811. Duas foram formadas durante a Guerra de Independência: a Confederação de Estados da Venezuela,
em 1811, e a Segunda República, em 1813; a Terceira República
foi criada nos tempos da formação da Grande Colômbia, em 1819.
A Quarta República, fundada em Valencia, em 1830, por um
general de Simón Bolívar, José Antonio Páez, seria a mais duradoura. Construída, disse Chávez, por “uma classe de oligarcas e
de banqueiros, sobre os restos de Bolívar e de Sucre”, a Quarta
República venezuelana sempre foi dominada por conservadores
opostos aos ideais de Bolívar.
Desde já, Chávez aspirava a fundar a Quinta República, o
primeiro novo começo em 140 anos. Seu movimento, disse, tinha “caráter nacional e popular”. Tentaria retomar os ideais do
passado e seria fundado com base nas idéias de Bolívar.
Sua missão era assegurar o bem-estar da comunidade nacional, satisfazer as aspirações individuais e coletivas do povo da
Venezuela, e garantir a situação de muita prosperidade para a
pátria.
Embora seja tentador imaginar que Chávez poderia estar tentando estabelecer um paralelo com as mudanças implementadas
na França pelo general de Gaulle, depois do colapso da Quarta
República francesa, em 1958, é possível que, para muitos
venezuelanos, a idéia de “Quinta República” tenha alguma relação com a noção milenarista de “Quinta Monarquia”. O fato é que,
nos últimos anos do século 20, as livrarias de Caracas estavam
repletas de material new age, e havia literatura que chegava a
sugerir que os venezuelanos eram uma nação de eleitos, especialmente escolhidos para realizar os desígnios de Deus.
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Os “Homens da Quinta Monarquia”, politicamente ativos na
Grã-Bretanha durante o século 17, acreditavam que as quatro
monarquias, da Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma, seriam seguidas pela dos santos. A utopia projetada dos santos se caracterizaria pela abolição do dízimo, a reforma das leis, a humilhação
dos ricos e a exaltação dos pobres. A noção milenarista de Chávez
acerca de um novo começo, depois dos males e da corrupção do
passado, deve ter acertado em cheio nos milhares de eleitores
familiarizados com a linguagem dos pregadores protestantes e
dos adventistas do sétimo dia.
Os movimentos milenaristas são relativamente comuns no
Terceiro Mundo e a campanha de Chávez seguramente chamou a
atenção da imensa subclasse que, na Venezuela, como no resto da
América Latina, adotou a igreja protestante evangélica em todas
as suas diversas variantes com um fervor inusitado, em quantidades
cada vez mais numerosas. Vários cartazes da campanha de Chávez
tinham retratos religiosos do comandante, que era impossível distinguir dos “santinhos” milenaristas distribuídos pelas seitas evangélicas. Dado que Chávez fala com a retórica de um pastor evangélico, invocando a dor, o amor e a redenção, a natureza
milenarista de seu apelo ao povo não deve ser subestimada.
No início, o MVR era pequeno. Cerca de 60% de seus primeiros membros eram militares que haviam participado do MBR-200,
enquanto 40% era de civis sem ideologia definida.
No começo de 1998, o ano eleitoral, o partido das massas
populares começou a deslanchar. Outros partidos deram apoio
formal à campanha de Chávez. O primeiro, em março, foi o PPT,
a cisão da Causa R. Em maio, foi acompanhado pelo MAS. Os dois
grupos dividiam-se no processo. O MAS perdeu dois de seus líderes históricos: Teodoro Petkoff e Pompeyo Márquez. O PPT
perdeu seu líder na Guayana: Andrés Velásquez.
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A nova aliança chavista, chamada Pólo Patriótico, fixou efetivamente um marco na história do MAS e da Causa R, os dois
partidos de esquerda resultantes de cisões do PCV no início dos
anos de 1970 que lentamente construíram sua força como movimentos independentes. A partir de então, suas idéias sobreviveriam e prosperariam para preencher o vazio ideológico do MVR
de Chávez, que tinha pouco a propor, além de seu nacionalismo
mal definido e de seu entusiasmo milenarista. Mas, ao mesmo
tempo, tanto o MAS quanto a Causa R assinavam a sentença de
morte de suas organizações enquanto organizações independentes. Com Chávez, solidamente instalado na cadeira presidencial,
seduzindo mais da metade do país para que o acompanhasse em
uma viagem para um destino obviamente positivo, ainda que
incerto, a necessidade de organizações políticas separadas já não
parecia evidente. Sua contribuição capital foi impregnar o MVR
com suas formas particulares e diversas de ideologia de esquerda, nas quais Chávez se inspirou, em grande parte, para redigir
seu plano de desenvolvimento alternativo, publicado em 1995 e
chamado Agenda Alternativa Bolivariana.
Em junho de 1998, o Pólo Patriótico começou a discutir os
temas cruciais de uma aliança política. Como assegurar aos
membros de cada um dos componentes da aliança a eleição para
o Congresso ou para os governos dos Estados, em eleições previstas para novembro? Pressionados pela necessidade de união,
superaram suas lealdades partidárias individuais e concordaram
em que o Pólo Patriótico apoiaria apenas um candidato em cada
Estado.
À medida que o apoio a Chávez tornou-se mais firme e unitário durante o ano eleitoral, a impopularidade dos velhos partidos
políticos tornou-se cada vez mais evidente. Os caciques da AD e do
Copei começaram então a ter dúvidas sobre o lançamento de um
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candidato de suas próprias fileiras. Chávez parecia ter uma vantagem imensa como independente, vindo do nada, e o Copei decidiu
procurar um independente popular com possibilidades de vencêlo. O candidato óbvio era a ex-rainha da beleza Irene Sáez, a vitoriosa e inovadora prefeita da rica zona caraquenha de Chacao. Seis
meses antes das eleições, as pesquisas atribuíam a Irene 22% dos
votos. Carecendo de candidato próprio, o Copei decidiu apoiá-la.
O tiro saiu pela culatra. Poucos meses depois, seus números
tinham baixado 2%. Ela, pessoalmente, era bastante popular. Sua
queda deveu-se à equivocada aliança com o Copei. Ainda sem
perceber o quanto era impopular, o Copei subitamente abandonou a rainha da beleza, transferindo seu apoio, algumas semanas apenas antes das eleições, a Henrique Salas Römer, o candidato do último agrupamento conservador restante, Projeto
Venezuela. Até aquele momento, Salas Romer tinha uma taxa de
aprovação superior a 40%, o que o aproximava do primeiro lugar ocupado por Chávez.
A mudança de candidato no meio da campanha, longe de
melhorar as perspectivas da figura escolhida, simplesmente reduzia suas possibilidades de vitória. Receber a benção oficial do
Copei era como receber uma maldição contra a qual não havia
apelação possível.
Se o Copei se comportou pessimamente com Irene Sáez, a
perfídia da AD foi ainda mais chocante. Inicialmente, tinha candidato próprio, Luis Alfaro Ucero, um veterano do partido, com
grande experiência política. Mas, em novembro de 1998, a um
mês das eleições, os caciques do partido começaram a se preocupar. A taxa de aprovação de Alfaro nas pesquisas estava em
torno de 6%.
A direção do partido decidiu abandonar o navio. Expulsaram
Alfaro do partido a que havia dedicado sua vida inteira e subi-
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• 195
ram, junto com o Copei, no bote salva-vidas constituído pelo
infeliz Salas Römer. Com esse par de lastros a bordo – os dois
partidos mais impopulares e desacreditados do país – Salas Romer
teve a sorte de chegar em segundo lugar, no dia 6 de dezembro,
com 39% dos votos. Irene Sáez chegou em terceiro lugar, com 4%,
e Alfaro Ucero em quarto. Chávez arrasou, com 56% dos votos.
O voto pessoal em Chávez e no MVR que fundara foi tão
amplo que sufocou completamente os partidos que formavam o
Pólo Patriótico. Talvez tenham lhe servido de estribo e talvez
ainda lhe dêem idéias, assim como o contorno de um programa
político. Mas, essencialmente, já não eram necessários. Chávez
podia continuar sozinho.
Este obteve 3.673.685 votos nas eleições de dezembro, ou seja,
56,2%. De acordo com os números de cada um dos componentes da aliança eleitoral, os votos distribuíram-se da seguinte
maneira:
Movimento V República
2.625.839
Movimento para o Socialismo
588.643
Pátria para Todos
142.859
Partido Comunista da Venezuela
81.979
Outros partidos
234.365
40,17%
9%
2,19%
1,25%
3,59%
Chávez tornara-se a personalidade dominante na Venezuela,
que fazia e desfazia políticos e partidos políticos. No espaço de
quatro anos, fora da cadeia para as portas do palácio presidencial. O velho sistema político jazia em ruínas a seu redor. Uma era
totalmente nova estava por começar.
QUARTA PARTE
CHÁVEZ NO PODER
16. A FORMAÇÃO DE UMA
ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE
NOSSAS LEIS ATUAIS SÃO RELÍQUIAS DESASTROSAS DE CADA REGIME DESPÓTICO, ANTIGO OU MODERNO, QUE EXISTIU; ESTEJAMOS CERTOS DE QUE ESTE
EDIFÍCIO MONSTRUOSO ENTRE EM COLAPSO E DESMORONE, PARA QUE
POSSAMOS CONSTRUIR UM TEMPLO À JUSTIÇA, LONGE DESTAS RUÍNAS, E DITAR
UM NOVO CÓDIGO LEGAL VENEZUELANO, SOB A INFLUÊNCIA DE SUA SAGRADA
INSPIRAÇÃO.
BOLÍVAR, NO CONGRESSO DE ANGOSTURA DE 1819.
m uma cerimônia formal em Caracas, no dia 2 de fevereiro
de 1999, quase sete anos depois da tentativa malograda de
golpe militar, Hugo Chávez assumiu a faixa presidencial, na presença de numerosos presidentes latino-americanos. Os objetivos
imediatos de seu governo eram claros. Seria redigida uma nova
constituição e a Força Armada seria integrada à vida econômica e social do país, por meio de um programa batizado de Plano
Bolívar 2000. Mas suas outras ambições ainda precisavam de
explicação.
Em seu primeiro discurso como presidente, anunciou que
assinaria imediatamente um decreto para um plebiscito nacional:
o povo deveria decidir se haveria eleições para convocar uma
assembléia nacional constituinte, que redigisse uma nova constituição. Como para escapar da crença generalizada de que era um
ditador militar em potencial, o presidente Chávez estava ansioso, desde o princípio, por submeter cada um de seus atos à vontade do povo. Naquele ano, seriam realizadas um número de
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eleições sem precedente. Os assessores de campanha de Chávez
tiveram êxito em cada uma delas.
Em novembro de 1998, houve eleições para o Congresso. Em
dezembro de 1998, houve eleições presidenciais, nas quais Chávez
obteve 56,2% dos votos. Em abril de 1999, o plebiscito foi organizado, para determinar se seria convocada uma assembléia
nacional constituinte. Os partidários do “sim” obtiveram 88% dos
votos. Em julho de 1999, foram realizadas as eleições para esta
Assembléia. Os partidários de Chávez, apresentando-se como
independentes, receberam 119 dos 131 lugares e 91% dos votos.
Finalmente, em dezembro de 1999, um segundo plebiscito ratificou a nova Constituição, redigida pela Assembléia. O “sim” teve
71% dos votos e o “não”, 28%. Se os venezuelanos algum dia
sentiram-se privados de práticas democráticas, agora tinham-nas
em abundância. Novas eleições para implementar as decisões da
Assembléia foram previstas para o ano 2000.
A necessidade de redigir uma nova constituição e de eleger
uma assembléia constiuinte para executar essa tarefa fazia parte integrante do pensamento de Chávez desde os anos de 1980.
Ele e seus partidários entenderam claramente que esse trabalho
não podia ser deixado nas mãos do velho Congresso. Uma ruptura franca com o passado era necessária. Enquanto a proposta
parecia uma novidade, a possibilidade de rever a Constituição de
1961 vinha sendo considerada há muito tempo. A crise do sistema político fermentara durante anos e os sucessivos governos
haviam feito esforços para empreendê-la, considerando a possibilidade de mudanças constitucionais. A Comissão Presidencial
para a Reforma do Estado (Copre) fora formada em dezembro de
1984, durante o governo de Jaime Lusinchi, da AD.
A Copre percebeu o repúdio do povo em relação à AD e ao
Copei e recomendou que se fizesse uma série de reformas: nova
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concepção para o financiamento eleitoral, desenvolvimento da
democracia interna nos partidos, revisão do sistema eleitoral e
um projeto de descentralização política. Lusinchi não fez nada,
mas Carlos Andrés Pérez reduziu as propostas a pó, quando
voltou ao poder em 1989. O sistema eleitoral de chapas fechadas, que permitira aos dois principais partidos manter um controle estrito de quem seria eleito, foi substituído por um acerto
mais aberto, em função do qual os eleitores sabiam em quem
estavam votando. Os governadores dos Estado e os prefeitos
passaram a ser eleitos por um sistema de voto único direto e
secreto em um só turno.
Essa mudança permitiu, em âmbito local, que os partidos
minoritários conseguissem várias vitórias. Nas eleições para
governadores de Estado, em 1989, a Causa R venceu no Estado
de Bolívar e o MAS ganhou no Estado de Aragua. Os dois partidos ganharam várias cadeiras no Congresso. Em 1992, a Causa R ganhou para a prefeitura de Caracas e, nas eleições presidenciais de 1993, outros partidos avançaram significativamente. Mas
ainda que louváveis, as reformas não haviam conseguido resolver os problemas maiores causados pelo desencanto político
generalizado no país, que se evidenciava nos altos índices de
abstenção.
Em meio à atmosfera de crise gerada pelo Caracazo, fez-se
uma tentativa, em junho de 1989, de reformar o Estado, reformando a própria Constituição. A Frente Patriótica, de orientação
esquerdista, organizada por Luis Miquilena, entre outros, fora
uma das primeiras a solicitar a convocação de uma assembléia
constituinte: havia a necessidade de se redigir uma nova Constituição para estabelecer uma nova República. O Congresso retomou a idéia e montou a Comissão Especial Bicameral para a
Revisão da Constituição, presidida pelo ex-presidente Rafael
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Caldera. Embora a proposta viesse da esquerda, a comissão era
dominada, inevitavelmente, por membros dos velhos partidos, AD
e Copei, que tinham maioria no Congresso.
O objetivo inicial da comissão era elaborar rapidamente várias emendas à Constituição de 1961, mas as reuniões prolongaram-se indefinidamente. Então, em função da tentativa de golpe de Chávez, em fevereiro de 1992, quando de novo se tomava
consciência da profundidade da crise política, as discussões aceleraram-se repentinamente. O tema de uma nova constituição e,
em alguns casos, a convocação de uma assembléia constituinte
propriamente dita para que a elaborasse, estavam no primeiro
plano do cenário político. Com o objetivo de cortar pela raiz essas
demandas extremas, a comissão publicou um rascunho de projeto de reforma por volta do final de março, apresentando-o ao
Congresso para que fosse discutido.
O debate do rascunho estendeu-se por vários meses, mas foi
tratado com tanta indiferenca e houve tão pouco consenso que
foi abandonado em agosto. Dois anos mais tarde, durante sua
própria campanha eleitoral, no final de 1993, Caldera tentou
reviver a idéia, mas não chegou a lugar nenhum. Somente Chávez
parecia estar em condições de colcoar o projeto de uma nova
constituição no centro de seu programa político.
Durante o primeiro ano de sua presidência, os fatos se sucederam de forma surpreendente. Em abril de 1999, realizou-se o
primeiro plebiscito e, em 25 de julho do mesmo ano, realizaramse as eleições para a nova Assembléia Constituinte, que foram um
êxito para aqueles que desfrutavam do apoio de Chávez. Finalmente, em 3 de agosto, a recém-eleita Assembléia Nacional
Constituinte reuniu-se pela primeira vez no salão redondo do
Senado, com Miquilena como presidente e Aristóbulo Istúriz
como vice-presidente.
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• 203
Em 5 de agosto de 1999, os membros da nova assembléia
ouviram um discurso do presidente Chávez, incitando-os a produzir uma constituição no mais breve prazo possível. Para
ampará-los em seu trabalho, entregou-lhes seu próprio projeto.
Depois, lembrou-lhes as palavras de Bolívar ao primeiro congresso venezuelano, convocado em Angostura, em 1819:
“Nossas leis atuais são relíquias desastrosas de cada regime despótico,
antigo ou moderno, que existiu; estejamos certos de que este edifício
monstruoso entre em colapso e desmorone, para que possamos construir um templo à justiça, longe destas ruínas, e ditar um novo código
legal venezuelano, sob a influência de sua sagrada inspiração”.
As sessões plenárias da Assembléia começaram na manhã
seguinte, com os experimentados oradores da oposição ocupando
a maior parte do tempo: Alberto Franceschi, um velho trotkista
demagogo; Jorge Olavaría, um confuso, porém brilhante jornalista e editor que oscilara por todo o espectro político durante
décadas, sendo tanto pré-candidato presidencial pela Causa R
quanto embaixador em Londres; Allan Brewer Carías, o decano
dos constitucionalistas venezuelanos, que um dia pusera um pé
em Cambridge, com a reputação de ter introduzido máquinas
eleitorais, caras e pouco confiáveis, na Venezuela; e Claudio
Fermín, conhecido em todos os lugares como “o Negro”, o único político sério dos 4, que fora candidato presidencial derrotado da AD nas eleições de 1993. A grande maioria da Assembléia
observava, silenciosa e aturdida.
Logo ficou decidido que as sessões plenárias seriam abandonadas, formando-se 21 comissões especializadas, com o objetivo de definir e debater os diferentes artigos da nova Constituição. Então, foi programada que a Assembléia se reuniria em
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plenária, dois meses mais tarde. Uma comissão, presidida por
Hermann Escarrá, foi incumbida das propostas e petições provenientes de fora. Um tema permanecia pendente: a natureza das
relações entre a Assembléia Constituinte, eleita em julho de 1999,
e o velho Congresso, com seu Senado e sua Câmara de Deputados, eleito no mês de novembro do ano anterior.
A Assembléia Constituinte passou a ser considerada, pela
maioria dos juristas, como a autoridade suprema do país, à qual
todas as demais instituições estavam subordinadas. O presidente
Chávez e Luis Miquilena, como presidente da Assembléia, apostavam em um período de coexistência pacífica entre o antigo e o
novo, até a ratificação, por plebiscito, da nova Constituição.
Mas, em meados de agosto de 1999, aflorou uma discussão
sobre o futuro do Poder Judiciário. Chávez decretou emergência
judiciária em 25 de agosto e uma comissão de nove membros
recebeu poderes para destituir a Corte Suprema. Dos 15 membros
da Corte Suprema, 8 apoiaram o decreto de emergência, mas sua
presidenta, Cecilia Sosa, opôs-se categoricamente, demitindo-se
no ato. Declarou que a Corte agora estava morta e que o sistema
democrático do país estava em perigo.
A velha elite política, com a representação que ainda possuía
no Congresso, fabricou um confronto entre o Congresso e a
Assembléia. Convocaram uma reunião do Congresso para 27 de
agosto do mesmo ano, em sessão de emergência, para considerar a demissão de Cecília Sosa. Sua decisão foi considerada como
uma provocação pelo presidente Chávez e pela Assembléia Constituinte, mas quando a Guarda Nacional tentou impedir que os
congressistas penetrassem na sede do Parlamento, situada no
centro de Caracas, e que também era utilizada pela Assembléia,
desencadearam-se violentos protestos de rua, com agressões dos
partidários dos dois lados.
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Uma vez acalmados os ânimos, houve um empate e, depois
de discussões presididas pela hierarquia eclesiástica, a Assembléia
Constituinte autorizou o Congresso a se reunir em 9 de setembro.
Os membros do Congresso, que se opunham ao governo de
Chávez, e eram maioria, concordaram em não votar leis que
interferissem no trabalho da Assembléia.
Durante esse período, o presidente Chávez decidiu usar seu
tempo para uma viagem pelo mundo, em busca de apoio político e econômico na Ásia, visitando o Japão, a Malásia e a República Popular da China, regressando por Madri e Paris.
De volta a Caracas, encontrou a Assembléia Constituinte a
ponto de aprovar vários artigos com os quais não concordava,
visto que alguns deles lhe causariam dificuldades políticas importantes. Dois artigos em particular, um relativo à liberdade de
imprensa e outro relativo ao direito à vida (mas que, aparentemente, dava sinal verde ao aborto), certamente atrairiam para sua
pessoa a ira da imprensa internacional e da Igreja católica – uma
aliança pouco comum mas poderosa. Além disso, a Assembléia
havia repudiado seu projeto de mudar o nome oficial do país para
República Bolivariana da Venezuela, uma mudança de nome que
podia parecer inocente à primeira vista, mas que dissimulava seus
ambiciosos planos para o futuro da América Latina.
Cecilia Romero, uma observadora, num texto escrito no final
de setembro de 1999, mostrou como “o escrutínio internacional”
começava a desempenhar “um papel importante no processo de
transição”. Romero analisava como a “oposição sitiada” utilizava seus “vínculos internacionais e a mídia” para denunciar o que
considerava “o desmantelamento de 41 anos de sistema democrático”.
Chávez negava-se a aceitar essa chantagem e enfrentou firmemente os diversos grupos internacionais que demonstravam
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descontentamento com o que estava acontecendo. Ele estava em
uma posição difícil, já que se dera conta de que algumas cláusulas
do novo projeto constitucional podiam ferir interesses de certos
grupos; por outro lado, não queria intervir de maneira demasiadamente explícita nos assuntos da Assembléia “soberana”. A
crise passou, as cláusulas foram suavizadas e Chávez conseguiu
até que fosse retomado seu desejo de chamar o país de República Bolivariana da Venezuela.
O rascunho do projeto constitucional ficou pronto em meados do mês de outubro. Em determinado momento, chegou a ter
mais de mil artigos, que foram muito reduzidos até chegar, primeiro a 450 e, finalmente, a 396. Os membros da Assembléia
foram informados de que disporiam de apenas um mês para se
reunirem em sessão plenária e rever a redação. Trabalhando dia
e noite, todos os dias, terminaram os trabalhos em 12 de novembro de 1999. O documento foi submetido a plebiscito em 15 de
dezembro daquele mesmo ano.
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17. MANUEL QUIJADA E A REFORMA DO PODER
JUDICIÁRIO
REVENDO OS ARQUIVOS... A COMISSÃO DESCOBRIU QUE 4 MIL QUEIXAS
HAVIAM SIDO FORMULADAS CONTRA JUÍZES E FISCAIS, NOS ÚLTIMOS 10 ANOS.
corrupção do Poder Judiciário encontra-se no coração da
crise do velho Estado venezuelano. Supunha-se que a eleição de Hugo Chávez iria solucionar tal situação e que seu governo
iniciaria a reforma. Uma comissão de emergência judiciária foi
formada durante o mês de agosto de 1999, no seio da nova
Assembléia Constituinte, para redigir as cláusulas legais da nova
Constituição, examinar o estado das disposições vigentes e avaliar o trabalho, tanto dos juízes quanto dos membros da Corte
Suprema.
A nova comissão era presidida por Manuel Quijada, advogado
e partidário de Chávez, que havia participado na Frente Patriótica de 1989, criada por Luis Miquilena, Douglas Bravo e outros
personagens, depois do Caracazo. Partidário desde sempre da
aliança entre civis e militares, Quijada é um veterano das tentativas de golpe militar de 1962.
Em setembro, a comissão presidida por Quijada revelou que,
pelo menos, a metade dos 1.200 juizes do país eram culpados de
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corrupção ou de incompetência e deviam ser afastados. Revendo os arquivos do Conselho da Magistratura, órgão responsável
por investigar as queixas formuladas contra o Poder Judiciário,
a comissão descobriu que 4 mil queixas haviam sido formuladas
contra juízes e fiscais, nos últimos 10 anos.
A corrupção e a incompetência do Poder Judiciário são conhecidas há anos, e muitas das queixas contra o órgão se referem à impossibilidade de se abrirem processos contra políticos
corruptos e banqueiros. Um dos membros da comissão de Quijada,
Carlos Tablante, denunciou o “Poder Judiciário na Venezuela”
como “um refúgio da ilegalidade, da vagabundagem e da
corrupção”, lembrando que, apesar do clamor popular, alguns
juízes corruptos haviam abandonado os processos contra as duas
dúzias de banqueiros acusados do escândalo bancário que, em
1994, “quase levou o sistema financeiro à bancarrota”.
Mas, o que tornava a situação mais grave e mais explosiva era
que a maior parte da população carcerária – cerca de 23 mil
pessoas – nunca fora processada. O presidente Chávez promulgou um novo código penal, por decreto de 1º de julho de 1999,
tal como fora autorizado a proceder durante a espera da redação
final da nova Constituição. Seu decreto destinava-se a modernizar o sistema judiciário e beneficiar os prisioneiros com presunção de inocência e garantia de um processo diligente. Sua publicação levou os presos a pensarem que algo aconteceria muito em
breve.
No final de setembro, explodiram distúrbios em várias prisões
do país, com a morte de alguns presos. Em uma prisão na periferia de Caracas, a Guarda Nacional entrou com tanques, para
restabelecer a ordem. O calamitoso contexto, mesmo para os
padrões latino-americanos, das prisões venezuelanas era bem
conhecido há anos, assim como as infames condições de vida que,
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com freqüência, haviam provocado distúrbios de grande magnitude. Mais de 500 presos foram mortos em 1998. Esperava-se que
o presidente Chávez tratasse esse assunto com maior presteza. A
reforma judiciária estava entre as primeiras de sua lista de prioridades e, agora, a reforma das prisões deveria sair do papel.
Durante a primeira semana de outubro de 1999, a Assembléia
Constiuinte declarou uma emergência penitenciária que veio a ser
um exemplo impressionante de governo em ação. Durante seu
programa radiofônico de domingo pela manhã, em outubro de
1999, Chávez anunciou que uma equipe de juízes e fiscais, acompanhados de defensores dos direitos humanos e de sacerdotes,
visitara quatro das mais perigosas prisões do país, tentando acelerar os processos. Informou que o governo queria acelerar os
processos dos presos que estavam esperando sentença, assim
como acelerar a implementação do novo Código Penal. Pensava
que muita gente podia ser solta imediatamente, devido ao tempo já cumprido, enquanto os funcionários das prisões esperavam
liberar 6 mil celas para presos que seriam julgados até o final do
ano. Um sistema de liberdade condicional, durante o dia, foi posto
em prática para permitir que os presos trabalhassem fora da
prisão.
Chávez também esperava poder iniciar a separação dos presos em função da gravidade dos crimes cometidos. Em muitas
prisões, gente acusada de furto convivia com suspeitos de assassinato. Também disse, em seu programa de rádio e televisão, que
a Guarda Nacional passara o fim de semana procurando armas
nas prisões e admitiu que freqüentemente os carcereiros confiscavam armas para vendê-las novamente aos presos.
A crise das prisões concentrou de novo a atenção sobre a
reforma do Poder Judiciário. Na Venezuela, os juízes eram nomeados pela maioria política no Congresso. Até os membros da Corte
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Suprema eram escolhidos pelo partido no poder. Enquanto uma
quarta parte da Corte ocupava postos vitalícios, o resto não tinha
autonomia e era removível a qualquer tempo. Eram ainda mais
vulneráveis se tomavam medidas contra políticos ou seus sócios nos negócios, ou contra dirigentes de poderosos grupos comerciais. As queixas de corrupção contra o presidente Jaime Lusinchi
haviam sido paralisadas pela Corte Suprema de Justiça durante
anos. As recomendações de qualquer magistrado relator sobre a
conveniência de se abrir um processo eram simplesmente ignoradas. Embora um membro da Corte Suprema tenha renunciado
em 1992, em sinal de protesto, e um grupo de intelectuais tenha
convidado o resto da Corte a fazer o mesmo, nunca aconteceu
nada e o caso Lusinchi saiu de cena.
A comissão de Quijada, encarregada das cláusulas legais para
a nova Constituição, sugeriu que fossem elaborados novos procedimentos de seleção e de treinamento para os juízes e mecanismos de supervisão de suas atividades, a exemplo do que ocorre
nos Estados Unidos. Foi também sugerido que os candidatos à
Corte Suprema fossem submetidos a uma audiência pública e a
uma investigação sobre sua história de vida. Enquanto alguns
críticos contrários pensavam que tais reformas levariam anos para
se tornarem efetivas, a maioria das pessoas concorda que todos
os avanços alcançados sob o governo de Chávez nessa área foram auspiciosos.
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18. ALÍ RODRÍGUEZ ARAQUE E A NOVA POLÍTICA
PARA O PETRÓLEO
O AUMENTO DO PREÇO DO PETRÓLEO NÃO FOI CONSEQÜÊNCIA DE UMA
GUERRA OU DA LUA CHEIA. NÃO. É O RESULTADO DE UMA ESTRATÉGIA
ACERTADA, DE UMA MUDANÇA DE 180 GRAUS COM RELAÇÃO À POLÍTICA DE
GOVERNOS ANTERIORES E DA PDVSA... AGORA, O MUNDO SABE QUE HÁ UM
GOVERNO SÉRIO NA VENEZUELA...
PRESIDENTE CHÁVEZ, MAIO DE 1999.
futuro da Venezuela depende de como o governo do presidente Chávez irá reorganizar a exploração e a comercialização do petróleo, indústria que transformou o país, nos últimos 80 anos. Tal reorganização transcende um simples interesse
nacional, porque a Venezuela fornece a maior parte das importações de petróleo dos Estados Unidos.
Grande parte do petróleo provém do lago de Maracaibo: um
grande reservatório de água, entre os Andes e o mar do Caribe que
se transformou em uma das maravilhas do mundo. Lugar
estranhamente romântico, o lago representa a herança dos dias
audaciosos do capitalismo pioneiro, quando a natureza era domesticada e explorada com tecnologias rudimentares e graças à
ingenuidade e à força bruta do operário. Hoje, constitui uma
catástrofe ecológica sem solução. A forma do lago – de uma
lágrima – é familiar a qualquer pessoa que tenha estudado um
mapa da América do Sul. Cheio de torres de perfuração em forma de árvores de Natal, um bosque de estruturas metálicas de
O
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quatro patas que emergem da superfície da água, evoca a lembrança dos primeiros filmes cujo cenário era a indústria do petróleo, ou, talvez, as fotos em sépia das velhas enciclopédias.
A realidade vai muito além da lembrança folclórica, e também traz surpresas. O lago de Maracaibo não é um lugar apropriado para os pedalinhos turísticos. Experimentados mestres
conduzem lanchas de alumínio reluzentes, com orgulho e destreza, pelas águas cinzentas desse vasto mar interior. É um ambiente de trabalho sério, repleto de homens capacitados que sabem
o que fazem: mergulhadores, engenheiros, especialistas em construção de plataformas petrolíferas.
As instalações petrolíferas, milhares delas, são todas iguais,
porém diferentes: uma pequena plataforma sobre quatro pilares,
repletos de tubulações, apenas acessíveis por meio de uma escada;
uma estrutura com braços que se movem para cima e para baixo
sem cessar, como as comportas da Camarga, pintadas por Van
Gogh; um gigantesco barco, coberto com mastros de ferro apoiados em 6 imensos barris, uma estrutura de concreto com torneiras e tanques e um emaranhado conjunto de tubos. No centro do
lago, ergue-se uma grande plataforma, semelhante às do mar do
Norte, como um gigante rodeado de anões: apoiada em 3 pilares, extrai petróleo de uma profundidade de 6,5 mil metros.
A extração do petróleo de sob o lago perpetuou-se por quase um século e, agora, constitui uma banalidade, graças à
tecnologia pesada que permite extraí-lo do fundo do mar. O que
torna o lago de Maracaibo um lugar especial é que sua superfície está muito acima da terra que o cerca. Foi extraído tanto
petróleo da bacia de Maracaibo, desde os anos de 1920, que o
terreno ao redor afundou pouco a pouco no imenso buraco que
foi sendo cavado. Os campos que rodeiam o lago afundam um
pouco mais a cada ano.
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• 213
Já teria ocorrido um desastre se essa área não houvesse sido
explorada, no início, pela Royal Dutch Shell. Os holandeses são
especialistas em terras baixas e estão familiarizados com a construção de diques. Há anos, com muita ingenuidade, os engenheiros holandeses construíram um muro ao redor do lago, permitindo que casas e instalações fossem construídas do outro lado da
barreira. O terreno, no entorno, está agora a 5 metros sob o nível do mar e continua baixando a um ritmo de 15 a 20 centímetros anuais. Teria baixado mais e mais rapidamente se os engenheiros não tivessem injetado água para encher os buracos
deixados pela extração do petróleo.
Essa impressão de que algo é extraído permanentemente, a
realidade física da redução, é uma das razões pelas quais todos
os venezuelanos são tão apegados a sua companhia petrolífera
estatal. Durante décadas, seu patrimônio histórico foi sugado
pelas grandes companhias petrolíferas estadunidenses e européias, principalmente Shell, Mobil e Exxon. Gerações de historiadores e políticos nacionalistas consideraram essa época um escândalo e a convicção de que o país estava sendo roubado permanece
fortemente arraigada no imaginário coletivo.
Dois acontecimentos, ocorridos nos anos de 1943 e 1976, são
comemorados como grandes momentos históricos durante os
quais o país levantou-se contra as companhias petrolíferas. Em
1943, o governo do general Isaías Medina Angarita aproveitou
a penúria da guerra para obrigar as companhias a se submeterem
ao regime tributário venezuelano; conseguiu ainda limitar a
duração de suas concessões em 40 anos. Em 1976, apenas 30 anos
depois, o presidente Carlos Andrés Pérez chegou a um acordo com
as principais 14 companhias estrangeiras, que previa sua progressiva retirada do país. Em 1º de janeiro daquele ano, a Pdvsa reclamou e obteve seus bens, que incluíam 11 mil poços de petró-
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leo, 11 refinarias e 14 navios petroleiros. O pacote também continha oleodutos, instalações portuárias e inúmeros edifícios de
escritórios.
Inicialmente, as 3 grandes companhias nacionalizadas continuaram mantendo seu status individual: a Royal Dutch Shell
transformou-se em Maraven; a Creole Petroleum Company, da
Exxon, em Lagoven; e a Mobil Oil em Llanoven. Maraven e
Lagoven mantiveram suas identidades corporativas intactas: uma
com sua desenvoltura de tipo europeu; a outra, com seu
autoritarismo estadunidense. Na essência, eram competidoras. O
complexo de antigos edifícios holandeses no acampamento da
Maraven, situado em Lagunillas, às margens do lago, permaneceu intacto e, apesar das palmeiras, continuou parecendo um
vilarejo holandês de antigamente, com suas varandas e telhados
inclinados. No agitado coração de um centro dotado da
tecnologia do final do século 20, quase podia se esperar que
alguém passasse pela rua de tamancos.*
Como as demais companhias no resto do mundo, as empresas recentemente nacionalizadas passaram muito tempo procurando novas fontes de petróleo. Desencadeou-se então uma onda
de pânico, diante da possibilidade de que o petróleo estivesse
esgotado; mas logo o óleo voltou a brotar por todos os lados. No
lago de Maracaibo passaram simplesmente a perfurar mais embaixo. Talvez fosse mais difícil de extrair, mas havia petróleo em
abundância. Vastas reservas haviam sido localizadas mais ao sul,
no Estado de Barinas, nas encostas dos Andes.
Com o passar dos anos, a companhia estatal não esteve isenta
das pressões da globalização e da privatização. Começou com o
*
Tamancos muito leves, de cor muito clara e desenho característico, são calçados tradicionais dos holandeses. (N. da T.)
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• 215
governo do presidente Pérez, em 1989, e continuou com a chamada “abertura” (para o setor privado) do governo de Rafael
Caldera. As companhias estrangeiras foram autorizadas a participar de empresas mistas junto com a companhia estatal. A Shell
e a BP reabriram, com orgulho, seus postos de gasolina na capital, para mostrar que estavam de volta ao negócio. Pdvsa havia
previsto um plano de investimentos para 1991 de 65 milhões de
dólares, sendo que um terço do capital deveria provir da iniciativa privada.
Em 1997, toda a gerência da Pdvsa foi reorganizada, sendo
que suas filiais, Maraven e Lagoven, sobrevivências do passado,
foram finalmente eliminadas A companhia estatal estava agora
dividida de outra forma, com a criação de 3 novas divisões: uma,
para exploração e produção; outra, para comercialização e fabricação; a terceira, para serviços. O corpo gerencial e os empregados mal começavam a se acostumar com essas mudanças radicais quando chegou um novo governo, em 1999. Uma das
primeiras mudanças realizadas foi a criação de uma quarta divisão, para monitorar a indústria do gás.
O novo responsável, como ministro de Energia e Minas, era
Alí Rodríguez Araque, um ex-comandante guerrilheiro sessentão
que fora o especialista em petróleo da Causa R e do PPT. Nascido em Mérida, em 1937, estudou direito e economia na Universidade Central da Venezuela, em Caracas, e na Universidade dos
Andes, em Mérida. Lutou nas montanhas do Estado de Falcón na
década de 1960, junto com Douglas Bravo, mas, depois da derrota da guerrilha e de uma breve passagem pelo PRV, separouse de Bravo. Uniu-se às fileiras da Causa R, de Alfredo Maneiro,
trabalhando como advogado trabalhista em Ciudad Guayana.
Em 1983 foi eleito para o Congresso pelo Estado de Bolívar,
na lista da Causa R, e, em novembro de 1988, foi eleito senador
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pelo PPT. Durante o governo de Caldera, de 1994 a 1997, ocupou
uma posição influente no Congresso, como presidente da Comissão de Energia e Minas. Esteve estreitamente vinculado ao
monitoramento dos contratos fechados durante a abertura da
indústria aos investimentos estrangeiros. Quando o PPT se somou
à aliança eleitoral de Chávez, tornou-se seu principal assessor
para assuntos relativos ao petróleo.
A primeira tarefa de Rodríguez Araque no governo foi restabelecer a primazia de seu ministério sobre a companhia estatal.
A Pdvsa fora administrada durante anos como uma empresa
corporativista, um estado dentro do Estado, um vasto conglomerado que distribuía favores e sinecuras. Com uma rápida mudança
de pessoas, inclusive a substituição do primeiro presidente, a
quem Chávez nomeara, os objetivos iniciais de Rodríguez Araque
foram alcançados.
A segunda tarefa consistia em modificar de forma radical a
política da Venezuela em relação à Opep. A Venezuela adquirira
uma má reputação entre os membros da Opep durante a década de
1990, quando a política de abertura estava em vigor, pois era vista como um país-membro que ignorava todas as decisões da instituição. Os sucessivos governos da Venezuela haviam tentado um
jogo isolado. Quase todos haviam abandonado a Opep, ignorando as quotas decididas e buscando elevar a produção, atraindo
companhias estrangeiras para explorar novos campos de petróleo.
Desde o princípio, o governo de Chávez tinha uma estratégia
diferente e muito bem definida. Rodríguez Araque ordenou uma
mudança de direção, insistindo na redução dos investimentos da
Pdvsa. Estava decidido a colaborar com a Opep e a trabalhar em prol
de um preço estável para o petróleo. Viajou para os países da organização, procurando também garantir a cooperação dos países produtores da América Latina. O México, que não é membro da Opep
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• 217
e compete com a Venezuela no lucrativo mercado dos Estados
Unidos, decidiu frear os aumentos de produção que havia previsto.
Finalmente, depois de uma reunião da Opep em março de
1999, a Venezuela reduziu suas exportações em 4%, situando-as
em 2,72 milhões de barris diários, anunciando que havia a previsão de novos cortes, tanto na produção quanto na exploração.
Em maio, ao mesmo tempo em que celebrava seus primeiros cem
dias no governo, o presidente Chávez explicava com orgulho:
“O aumento do preço do petróleo não foi conseqüência de uma guerra ou da lua cheia. Não. É o resultado de uma estratégia acertada, de
uma mudança de 180 graus em relação à política de governos anteriores e da Pdvsa. Em primeiro lugar, decidimos respeitar os cortes de
produção acertados com a Opep e com o México. Em segundo lugar,
decidimos fazer cortes mais drásticos. Agora, o mundo sabe que há um
governo sério na Venezuela e uma nova liderança na Pdvsa...”.
Posteriormente, em setembro do mesmo ano de 1999, Robert
Corzine, correspondente do Financial Times, acrescentou que os
meses anteriores haviam sido “um dos períodos de mais êxito na
história das tentativas da Opep por controlar os preços do petróleo”. Não apenas seus países-membro haviam acatado os cortes
de produção, evitando a prática anterior de violação das cotas,
como países não membros da Opep, como a Grã-Bretanha e a
Noruega, haviam sido capazes de reduzir a produção.
No final do ano, a Venezuela considerou que os preços haviam alcançado um nível suficientemente elevado. Rodríguez
Araque afirmou que, agora, a Opep devia fixar uma faixa de
preços em que o petróleo devia se manter graças ao corte ou ao
aumento da produção. Chávez propôs que se realizasse uma
cúpula de presidentes de países da Opep, em Caracas, durante o
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ano de 2000, convidando, entre outros, Sadam Hussein, do
Iraque, Muamar Kadhafi, da Líbia, e o presidente do Irã.
As outras inovações importantes introduzidas pelo governo
de Chávez foram as modificações no Fundo de Estabilização
Macroeconômica, criado pelo governo anterior. Esse era um
fundo especial, projetado para respaldar a renda do governo em
caso de uma queda drástica nos preços do petróleo. A idéia era
compensar a volatilidade dos preços internacionais. Se o preço
do barril superasse os 14 dólares, o superavit deveria ser depositado no fundo. Rodríguez Araque decidiu baixar o limite para
9 dólares por barril. Era uma cifra conservadora, embora não
estivesse fora dos baixos preços do petróleo nos anos mais recentes. O óleo cru venezuelano era negociado a 16,6 dólares o barril em 1997, tendo caído para 10,75 dólares em 1998.
Na realidade, o preço chegou muito abaixo dos 9 dólares
durante o ano de 1999, o que consumiu altas somas do fundo de
estabilização. De 11,95 dólares em março de 1999, ou seja, antes da cúpula da Opep, o preço ultrapassou os 20 dólares, poucos meses depois.
O novo relacionamento com a Opep e o aumento dos preços do
petróleo, que foi bem aceito pelo resto do mundo, foi um dos grandes êxitos do primeiro ano do governo de Chávez. No entanto, ficava pendente a delicada questão da companhia estatal de petróleo.
Numerosas personalidades influentes, alheias ao governo,
sustentavam enfaticamente que os cidadãos deviam ter direito a
uma parte da riqueza petrolífera do país. Alberto Quirós Corradi,
outrora presidente da Maraven, defendia, em artigos na imprensa,
que os cidadãos venezuelanos deviam ter o direito de comprar
ações da companhia estatal de petróleo, o que as disposições da
nova Constituição não permitiam. O Estado conservaria as rendas da empresa petroleira.
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Quirós pronunciou-se a favor de que fosse permitido que a
companhia vendesse 10% de suas ações, para determinar seu real
valor. Também argumentou que, se fossem distribuídos convenientemente, os recursos financeiros da empresa poderiam contribuir para estabelecer as bases de um sistema privado de fundos
de pensão.
Tais propostas pareciam perigosas aos setores nacionalistas
da Força Armada e do governo de Chávez. Mas o próprio
Rodríguez Araque não carecia de idéias revolucionárias. Em uma
entrevista com Maria Cristina Iglesias, em maio de 1998, qnando
ainda era o encarregado da política para o petróleo do PPT no
Congresso, delineou, em grandes traços, uma estratégia para
envolver os investidores individuais venezuelanos na compra de
ações da empresa estatal de petróleo:
“A idéia é que, durante um período exploratório, o que implica em certa
dose de risco, o investimentro seja proveniente, exclusivamente, da
Pdvsa e do capital internacional. Uma vez que os campos petrolíferos
adequados tenham sido identificados, serão realizados alguns ajustes
nos investimentos internacionais, permitindo-lhes participar com até
49%. A Pdvsa também teria uma participação percentual”.
Dessa forma, o caminho estaria aberto para que os poupadores
e investidores venezuelanos adquirissem parte do capital das
companhias e consórcios criados para produzir petróleo. Nada
disso, obviamente, reduziria a legítima remuneração que
corresponde aos investidores estrangeiros. Sem dúvida, um programa como esse contaria com o sólido apoio do capital internacional.
Em 1999, nada disso havia ocorrido ainda, mas o mundo
percebia que estava gravado na pedra.
19. O PROGRAMA ECONÔMICO DO
GOVERNO DE CHÁVEZ
NOSSO PROGRAMA NÃO ESTÁ NEM A FAVOR DO ESTADO, NEM A FAVOR DO
NEOLIBERALISMO. ESTAMOS EXPLORANDO UM CAMINHO DO MEIO, EM QUE A
MÃO INVISÍVEL DO MERCADO UNA-SE À MÃO VISÍVEL DO ESTADO: TANTO
ESTADO QUANTO SEJA NECESSÁRIO, TANTO MERCADO QUANTO SEJA POSSÍVEL.
PRESIDENTE CHÁVEZ, 2 DE FEVEREIRO DE 1999.
T
alvez a Venezuela receba vultosos recursos oriundos do petróleo; mas estes são rapidamente absorvidos por uma
pequeníssima parcela da população. A grande maioria no país
continua pobre e faminta. Enquanto os 10% mais ricos de uma
população de 23 milhões de habitantes recebem a metade da
renda nacional, 40%, de acordo com estimativas de 1995, vivem
em estado de pobreza crítica; cerca de 80% da população ganha
salário mínimo ou menos ainda, segundo cifras de 1996. Como
se não bastasse, a situação continua piorando. O poder aquisitivo real caiu 35%, entre 1989 e 1995.
O presidente Chávez e seu governo conhecem muito bem
essas estatísticas. Constantemente diz aos estrangeiros que visitam o país como é difícil explicar como um país tão rico pode,
ao mesmo tempo, ser tão pobre. Também está consciente de que
não tem uma varinha de condão. Utiliza grande parte de seu
tempo para dizer aos pobres, com sua retórica cristã, que sejam
pacientes; e aos ricos, que demonstrem algum senso de solida-
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riedade em relação aqueles com quem são obrigados a dividir o
país.
No entanto, ainda que de forma dissimulada e não claramente formulada, pode-se discernir, em grandes traços, a lógica de uma
política econômica. Apesar de toda a sua retórica contra o
neoliberalismo, Chávez necessita desesperadamente de investimentos estrangeiros. Tem de manter um rumo difícil, para não dizer
quase impossível, que consiste em dizer a um povo nacionalista o
que quer ouvir, ao mesmo tempo em que emite um tipo apropriado de declarações tranqüilizadoras para não afugentar os investidores estrangeiros. Segundo Fausto Masó, um jornalista habitualmente bem informado, Castro garantiu a Chávez que “sua
principal preocupação era conseguir até o último dólar estadunidense para Cuba, já que a única forma revolucionária de alcançar o desenvolvimento, hoje, consiste em abrir o país inteiro aos
investimentos estrangeiros”.
O que é bom para a Cuba revolucionária seria necessariamente
bom para a Venezuela e Chávez seguiu a recomendação. O embaixador estadunidense em Caracas, John Maisto,* passou a maior
parte de seu tempo tentando convencer o presidente Chávez a
assinar o tratado de promoção e proteção dos investimentos
estrangeiros que todos os outros países latino-americanos foram
obrigados a assinar. Maisto esforçou-se para que o acordo fosse
assinado antes da primeira sessão da Assembléia Constituinte,
sabendo que esta assembléia nacionalista iria opor-se aos termos
do mencionado acordo. Na verdade estava batendo em uma porta
aberta. O governo de Chávez aceitou tranqüilamente assinar o
tratado em outubro, enquanto Chávez garante que isso aconteceu quando ele se encontrava no exterior. “Agora, passa o tem*
Desde então o senhor Maisto foi substituído pela senhora Donna Hrinack. (N. da T.)
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po pronunciando discursos para garantir a estabilidade e os investimentos” – disse-me um desiludido economista de esquerda.
No entanto, durante seu primeiro ano de governo, seus aliados
de esquerda não fizeram objeções a sua estratégia. Muitos deles
estavam ocupados com outro projeto, visto que debatiam na Assembléia Constituinte os parâmetros da futura política econômica sem ver o que se fazia naquele preciso momento. Seja como for,
um dos elementos importantes de seu programa foi a promoção dos
investimentos nacionais. Esse ponto sempre fizera parte da política econômica da Causa R e do PPT: uma tentativa de unir os
pequenos empresários independentes contra os grandes barões do
Estado e seus amigos comerciantes e banqueiros.
No princípio, a opinião do mundo econômico no exterior
estava dividida sobre o fenômeno Chávez. “Vislumbra-se uma
recessão muito profunda no próximo ano se os preços do petróleo não se recuperarem” – disse um porta-voz pessimista da
Merill Lynch, em Nova York, uma ou duas semanas depois das
eleições de dezembro de 1998. Acrescentou, sinistramente que
Chávez “teria de ser o super-homem para tirar a economia do
buraco”. Outros observadores também estavam pessimistas.
“Pensamos, simplesmente, que o risco é grande demais neste
momento” – disse um analista do Deutsche Bank em Nova
York.
O pessimismo mostrou-se sem fundamento. Os preços do
petróleo recuperaram-se. Por sua parte, os investidores venezuelanos foram menos alarmistas. De fato, a maioria sabia que
as coisas teriam sido certamente piores se Chávez tivesse sido
derrotado. A Bolsa de Caracas fechou em alta depois das eleições,
já que esses investidores, que haviam se retirado diante da expectativa de um resultado inesperado, voltaram, trazendo seus capitais. “Quando se observam os fluxos” – disse com entusiasmo
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um representante da Merill Lynch – “não há dúvida de que se
trata dos investidores locais trazendo seu dinheiro de volta”.
Apesar de toda a sua retórica, Chávez no poder demonstrou
ser um dirigente pragmático. Essencialmente, acredita que a
combinação de gente honesta com um governo honesto dará um
bom governo. É alguém francamente hostil à corrupção, coisa que
o país não possuía no passado, e decididamente oposto à filosofia do neoliberalismo selvagem que os Estados Unidos impõem
ao mundo. No entanto, é difícil para ele descrever com precisão
o que está tentando pôr em seu lugar. Seu primeiro discurso
presidencial, de 2 de fevereiro de 1999, deu poucos detalhes sobre
o que viria:
“Nosso programa não está nem a favor do Estado, nem a favor do
neoliberalismo. Estamos explorando um caminho do meio, em que a
mão invisível do mercado una-se à mão visível do Estado: tanto Estado quanto seja necessário, tanto mercado quanto seja possível”.
A frase é admirável, mas, como diretriz para um ministro
encarregado da política econômica, apenas pode ser interpretada de uma forma: mantenha o rumo atual.
“Ele é muito radical em outros itens” – disse-me um economista universitário – “mas na esfera econômica é um conservador. É muito afirmativo e firme quanto à política externa, mas não
há nada nem remotamente similar no âmbito econômico. Concentra-se em seus ataques aos políticos corruptos, mas nunca
menciona os banqueiros, sendo que eles foram tão maus quanto
os demais.”
Ainda que Chávez não demonstre muito interesse pela economia, seus aliados políticos do MAS e do PPT elaboraram com
o tempo algo semelhante a um programa econômico, embora
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• 225
fosse mais preciso defini-lo como uma atitude. No decorrer de
1999, pouca publicidade foi dada às decisões e às ações do governo em matéria econômica, apesar de que o debate econômico na Assembléia Constituinte suscitou várias manchetes na
imprensa. Os partidários de Chávez na Assembléia Constituinte,
tanto os civis de esquerda quanto os militares na reserva, estavam decididos a conseguir que o Estado continuasse desempenhando um papel importante na economia. Essa era a opinião
majoritária na Assembléia e, com certeza, também no país.
No entanto, esse grupo dominante tinha ambições muito
diversas. Muitos, no MAS, sentiam saudades dos anos em que o
Estado desempenhava um papel-chave no desenvolvimento,
enquanto que os do PPT, que nisso refletiam os valores gerais da
Causa R, aspiravam a um Estado menor, que oferecesse menos
oportunidades de corrupção, e expressavam sua preocupação com
as pequenas empresas e a poluição do meio ambiente.
Apesar de tais diferenças, quase todos, na Assembléia, concordavam em erradicar os fundamentos neoliberais, cujas receitas
não desempenharam nenhum papel na formulação final da nova
Constituição. Mas a vitória foi mais aparente que real. Enquanto apenas uns poucos estavam a favor da venda da Pdvsa a interesses privados, quase todos concordavam em que seria razoável fazer acordos com as companhias petrolíferas estrangeiras. Na
prática, ocorreu que boa parte das políticas econômicas
implementadas durante os anos de 1990 – que haviam aberto a
indústria do petróleo aos investimentos estrangeiros e começado o processo para privatizá-la – seria mantida. Essa aparência
de continuidade foi reforçada com a permanência de Maritza
Izaguirre, que vinha do governo de Caldera, como ministra da
Economia. Renunciou em junho de 1999, sendo substituída pelo
deputado José Rojas, que também trabalhara na administração
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de Caldera. “A pobre Maritza na verdade não sabia o que estava
acontecendo” – disseram-me – “e José Rojas agora está percebendo a mesma coisa, apesar de ser um partidário do MVR.”
A mudança que deixou os ministros nervosos foi a chegada
dos militares aos altos cargos da administração pública. “Os
militares estão por toda a parte” – explicou-me um importante
conselheiro econômico. – “Às vezes, até parece que há um projeto secreto sobre o qual nada se sabe. Na realidade, há um partido militar. Em alguns ministérios há casos de dualidade de
poder.” Os altos oficiais militares de fato foram colocados nos
principais ministérios, incluindo a Pdvsa. “Muitos vêm da classe baixa” – confiou-me o famoso economista universitário – “e
dizem a você: ‘meu pai era operário’. No entanto, estudaram na
universidade e seu preparo intelectual é bastante bom; quando
eu dava aulas em minha universidade, havia três oficiais em uma
classe de 20 pessoas. Mas sua mentalidade é muito diferente e
certamente, são autoritários. Alguns são de esquerda, mas conheci
alguns oficiais pinochetistas.”
A maioria dos oficiais que participou do governo está em
cargos de segundo escalão. Eles o observam e esperam, mantendo
seus olhos bem abertos. Mas há uma figura destacada e plenamente ativa, que não tem absolutamente nada de pinochetista.
O tenente-coronel William Fariñas é o presidente do Fundo Único
Social (FUS), uma criação recente e potencialmente poderosa, que
reúne os antigos órgãos governamentais responsáveis pela saúde e pela política social.
O FUS e o Banco do Povo fazem parte de uma série de novas
organizações concebidas para implementar as políticas sociais
que buscam melhorar a saúde e o bem-estar da maioria pobre da
população. O impacto político desse tipo de instituições fez-se
sentir em anos passados: Eva Perón dirigiu o Ministério do Bem-
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Estar Social na Argentina dos anos de 1940, que funcionou como
sua base de sustentação na tentativa de melhorar a condição dos
pobres. O governo de Velasco Alvarado no Peru, dos anos de 1970,
contava com uma instituição parecida, criada pelos militares: o
Sistema Nacional de Apoio à Mobilização Social (Sinamos), sistema que parecia muito bom na teoria, mas foi um retumbante
fracasso na prática.
O tenente-coronel Fariñas, assim como outros altos oficiais
no governo de Chávez, passou pela universidade. Era professor
de Planejamento Estratégico e Política Social na Universidade
Central da Venezuela, em Caracas. É também doutor em treinamento organizacional. Oficial da reserva da Força Aérea, tem
vários heróis: Bolívar, claro, o Sagrado Coração de Jesus, a Virgem Maria Auxiliadora, o Arcanjo Miguel... e o Che Guevara.
O Che é a única figura que representa a entrega e o altruísmo e a dedicação total à causa do povo – em todas as partes do
mundo. É um ícone para todos os revolucionários, assim como
para mim... sempre foi, desde que eu era estudante e comecei a
ter convicções revolucionárias. O espírito revolucionário que
anima os militares e outros cidadãos comprometidos nesse processo alimentou-se do pensamento e dos ideais do Che, assim
como dos acontecimentos do maio francês...
Esse revolucionário dos anos de 1960 está encarregado de
uma organização que conta com um enorme potencial político
e com um grande orçamento. O orçamento provém em parte do
orçamento ordinário das instituições que absorveu e, em parte,
do Fundo de Estabilização Macroeconômica (FEM), que canaliza os recursos do petróleo para projetos governamentais. Assim,
o FUS recebe 40% do orçamento do FEM.
O FEM ajudará a construir escolas e hospitais, até igrejas, mas
seu projeto mais recente e ambicioso é o Plano Bolívar 2000, uma
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das idéias mais originais de Chávez. Os detalhes foram apresentados em 27 de fevereiro de 1999, semanas antes de seu lançamento. A idéia consiste em mobilizar a capacidade restante da
Força Armada para estabelecer um vínculo com as comunidades
e para reativar cada vez mais a decrépita infra-estrutura social
venezuelana. Os soldados colocarão seus quartéis, seus campos
esportivos e seus refeitórios à disposição das comunidades. Os
próprios soldados, por sua vez, irão às comunidades, para construir estradas e escolas.
O Plano Bolívar foi esboçado para ser implementado em três
etapas. A primeira, chamada Pró-País, envolverá as Forças Armadas na prestação de serviços sociais. A segunda, Pró-Pátria,
levará os militares a ajudar as comunidades, na busca de soluções para seus problemas. A terceira, Pró-Nação, encaminhará o
país para a auto-suficiência econômica e o desenvolvimento
sustentável.
Na etapa Pró-País, o país foi dividido em 25 zonas de atuação, sendo que cerca de 40 mil soldados e voluntários começaram a trabalhar na reconstrução de estradas, centros médicos e
escolas, junto com as autoridades locais. O presidente Chávez
anunciou aos repórteres que “hospitais móveis de campanha”
seriam enviados aos vilarejos e bairros mais afastados “como para
uma zona de guerra”. Em dezembro de 1999, depois das terríveis
inundações no Estado litorâneo de Vargas, a metáfora da zona de
guerra tornou-se infelizmente adequada.
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20. UM NOVO FUTURO AGRÍCOLA PARA A
VENEZUELA
SE O ARROZ FOSSE O PRATO NACIONAL, ‘MUDARÍAMOS A MENTALIDADE DOS
VENEZUELANOS, QUE COMERIAM MANGAS EM LUGAR DE MAÇÃS, PANQUECAS
EM VEZ DE HAMBÚRGUERES E ARROZ EM VEZ DE MASSA’.
FEDERICO CHAPELLÍN, EL UNIVERSAL, 2 DE NOVEMBRO DE 1999.
V
iajei de limusine para as arenosas margens do Orinoco. Minha intenção não era fazer nada no gênero. O carro estava
estacionado fora do terminal de ônibus de Caracas, considerado
um dos lugares mais perigosos da cidade, onde é preciso manter
todos os sentidos bem alerta – e a mão firme na carteira – e não
pude resistir.
Meu destino inicial era Cabruta, um vilarejo perdido, situado
na confluência dos dois grandes rios do país, o Orinoco e o Apure. Mas os ônibus só fazem a viagem de noite. Os llanos, as vastas
planícies venezuelanas que propiciam pastagem a milhões de
cabeças de gado, são insuportavelmente quentes durante o dia e
é por isso que os motoristas que conhecem o trajeto organizam suas
viagens quando está mais fresco. Mas eu não queria dormir em um
ônibus durante oito horas; eu queria ver as vastas planícies.
Uma oferta de Gabriel, um obeso e jovial motorista com o
cabelo preto e comprido que caracteriza os indígenas, parecia ser
a solução. Orgulhoso proprietário de um carro estacionado à beira
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da calçada, disse que me levaria em minha longa viagem ao
Orinoco por 50 dólares. Só havia um pequeno inconveniente:
nunca fora para lá e talvez, se soubesse um pouco mais sobre o
estado da estrada, tivesse pensado duas vezes.
A limusine era um velho Ford em vários tons de branco,
bastante batido e muito riscado, mas sem dúvida muito cômodo,
e objeto de interesse pouco comum no campo venezuelano. Os
soldados que guarnecem as pequenas guaritas ao longo da estrada paravam-nos para uma rápida e distraída vistoria – para logo
entabular uma longa discussão acerca dos mais sofisticados
detalhes dos ajustes do motor. Gabriel é um entusiasta partidário de Chávez, e ouve gravações de cantores de música floclórica,
como Alí Primera ou Cristóbal Jiménez, que exaltam as virtudes
do presidente.
Um pouco mais tarde, foi preciso atender a algo mais importante. Cada viagem por terra na América Latina implica, em algum momento, em uma parada involuntária para consertar um
pneu furado. Ônibus, caminhão, caminhonete ou carro – todos
os motoristas usam seus pneus até mais do que o cansaço. Só
quando estão vazios e explodem é que seus donos decidem que
é necessário trocá-los. A explosão ocorreu em um trecho estreito e congestionado da estrada, e Gabriel empurrou o carro ferido para um trecho de terra dura. É meio dia, faz mais de 40º C e
não há vestígio de uma sombra. Gabriel deve pesar, pelo menos,
120 quilos. Ainda assim, pula de um lado para o outro com a
vivacidade de um homem mais jovem e mais magro e, em menos de 20 minutos estamos, rodando outra vez.
O verdadeiro problema agora é o estado da estrada. Essa
estrada asfaltada foi construída nos tempos em que a Venezuela
tinha mais dinheiro do que bom senso, enormes recursos provenientes do petróleo e um governo apaixonado por infra-estrutura.
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Mas a superfície lisa do início desapareceu há muito tempo e não
há dinheiro para consertá-la. O custo da viagem agora é coberto pelo motorista, que se vê obrigado a pagar os consertos de seu
pobre carro, sacudido e maltratado pelos buracos. Para Gabriel
e sua limusine, os problemas são mais dramáticos. É possível que
as rodas dianteiras evitem os buracos, mas não as traseiras.
Quando isso acontece, o chassi raspa no chão. Milagrosamente,
conseguimos sobreviver.
Oito horas mais tarde, apenas dez minutos antes que o violento sol alaranjado desaparecesse por trás da ondulada superfície do Orinoco, entramos majestosamente no caótico vilarejo de
Cabruta, admirados por todos.
Cabruta foi fundada pelos jesuítas, na confluência do
Orienoco e do Apure, e fazia parte de uma meia dúzia de missões
construídas nessa região no início do século 18. Quando Alexandre Humboldt, o cientista e viajante alemão, chegou para explorar
o local, por volta de 1800, os jesuítas já se haviam ido há muito
tempo, mas os restos dos antigos assentamentos eram ainda visíveis, e um punhado de famílias indígenas sobrevivia às margens
do Orinoco, em Cabruta, La Encaramada, Urbana, Cachichana,
San Borja e El Raudal.
Cabruta é hoje o centro do “eixo Orinoco-Apure”, um dos
projetos de Chávez para desenvolver e povoar a parte central do
Sul da Venezuela. Abaixo de Cabruta situa-se uma elevação
rochosa de onde se pode ver o Orinoco se estender para o sul, em
direção ao Brasil, e para leste, em direção ao Atlântico. O rio
Apure, que se une ao Orinoco nesse ponto estratégico, desce da
Colômbia e dos Andes indo para oeste. Nessas terras, hoje virgens,
o presidente Chávez espera desenvolver a agricultura, de maneira
que as pessoas que vivem atualmente nas periferias das grandes
cidades, se mudem para o campo. Quer criar novos centros eco-
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nômicos nas regiões pouco povoadas do Sul e do Leste deste país
para que possam acolher os migrantes das abarrotadas cidades
do Norte da Venezuela.
Trata-se de uma zona de pecuária, desabitada, mas que também poderia ser aproveitada para a produção industrial de arroz
e de palmito, 2 produtos para os quais Chávez considera que a
Venezuela apresenta vantagens comparativas.
“Veja, aqui está o eixo Orinoco-Apure” – exclamou, quando
juntos mergulhamos no mapa que há em sua residência de La
Casona, em janeiro do ano 2000. Sua excitação era contagiante.
“A terra foi virtualmente abandonada; não teremos de construir
novos vilarejos aqui, mas simplesmente reforçar os assentamentos que já existem.”
Chávez também estava interessado em outra área, justo ao
norte do eixo Orinoco-Apure. Ali haveria um eixo norte-sul, de
Guasdualito, perto da fronteira com a Colômbia, até o lago de
Maracaibo. Chávez mostrava-me no mapa o assentamento de La
Fría, um projeto de assentamento que já existia, mas que foi
abandonado, onde poderiam ser reassentados os sobreviventes
das inundações de dezembro que ficaram sem casa. Nas encostas dos Andes, próximo à fronteira colombiana, esse seria um
outro projeto piloto para os ambiciosos planos de longo prazo que
tinha em mente.
“Esse lugar encontra-se no Estado de Táchira, ao norte do
eixo Orinoco-Apure, ao norte de San Cristóbal. Aqui há uma
cidade de cerca de 10 mil habitantes. É uma região maravilhosamente rica, ao pé da montanha, bem ao sul do lago de Maracaibo. Houve uma época em que trabalhei ali, em uma unidade militar que fazia a patrulha.”
De novo aproximou-se do mapa: “Veja, aqui está a fronteira
com a Colômbia, aqui está o aeroporto internacional e aqui há
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uma zona industrial abandonada. Aqui está a terra, aqui há algumas casas e aqui construiremos escola, oficina, estrada”.
Tudo isso fora construído há 10 anos, em tempos de Carlos
Andrés Pérez. “Foram gastos milhões e milhões de bolívares, e
depois o próprio Pérez abandonou o projeto. Começaram a construir uma rodovia para San Cristóbal, a capital, mas pararam,
porque nunca construíram os túneis nas montanhas. A estrada
ainda está ali, mas sem os túneis.”
Chávez disse-me que programara visitar La Fría na semana
seguinte: “Porque não vem conosco?” – disse de repente e eu
expliquei, desculpando-me, que tinha uma passagem de volta a
Londres dentro de três dias. “Pois bem, poderíamos ir depois de
amanhã, quarta-feira. Tínhamos planejado ir para outro lugar, em
Zulia, mas isso pode esperar.”
Convocou um funcionário, que estava sentado à vista, mas não
podia ouvir: “Chame o general Cruz Weffer” – disse e em trinta
segundos estava em comunicação com o chefe do Estado-Maior.
“Creio que vamos a La Fríia nesta quarta-feira. Como? Quantas
famílias? Em que pé está?” Fez uma pausa para ouvir uma resposta
gaguejada: “Pois lhes diga que se apressem. Que vamos de qualquer maneira; não importa se não está tudo pronto”.
Eu estava tendo uma demonstração pessoal das características do presidente Chávez, que seus colaboradores mais próximos
acham angustiante: sua preocupação militar com os detalhes e
sua capacidade de tomar decisões rápidas e de exigir ação imediata. Para a maioria das coisas que quer que sejam feitas, hoje
já é tarde demais.
Então, quarta-feira de madrugada, quando o Sol mal saía de
trás das colinas que rodeiam a cidade, esperei por ele no salão de
oficiais do pequeno aeroporto de La Carlota, no centro de Caracas, a sede da Força Aérea venezuelana, enquanto um agente dos
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serviços secretos passava o tempo revistando debaixo do sofá,
para ver se havia bombas. Quando Chávez chegou, vestindo seu
uniforme camuflado de campanha e sua boina vermelha, embarcamos no avião presidencial e decolamos para a fronteira colombiana, a uma hora de vôo. A metade do governo foi também.
Aterrissamos em um aeroporto deserto, onde a grama crescia
entre as placas da pista de concreto. Uma banda militar saudou o
presidente e, depois das formalidades militares de rigor, subimos
em quatro grandes helicópteros, para voar para uma área militar
próxima, em Guarimito. Do ar, o assentamento parecia lamentavelmente isolado, um grupinho de tetos de zinco rodeados por uma
savana que se perdia de vista. O território colombiano, impossível
de distinguir, encontra-se a alguns quilômetros dali.
Uma vez em terra, as coisas pareciam um pouco mais animadoras Aterrissamos em um trecho de estrada dura, junto a um
pântano, onde um grupo de operários trabalhava para consertar as poucas casinhas de telhado de zinco que havíamos visto
de cima. A maioria deles usava botas amarelas de borracha, mas
um oficial critica três rapazes, por usarem sandálias. Eles alegam que suas botas estavam molhadas. Trata-se de um campo
militar e os militares destinam a terra e as casas para o
reassentamento as vítimas das inundações; mas o oficial está
evidentemente preocupado com a impressão que seus trabalhadores vão causar ao presidente.
A partir do momento em que Chávez desce de seu helicóptero, uma multidão saída de lugar nenhum vai para cima dele.
Pouco a pouco, se consegue abrir caminho até chegar a um grande trailer, transformado em oficina. Esse é o componente civil de
sua operação cívico-militar, dirigido pelo instituto governamental
de treinamento. Contém mesas de carpintaria e serras elétricas.
Chávez indaga ao supervisor, um civil nervoso, cobrindo-o de
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perguntas: “Há quanto tempo está aqui? Quando vai começar
tudo? Quando chegam os professores?”
“Os professores estão sendo selecionados” – diz o supervisor
como se desculpando – “mas ainda não chegou nenhum.”
“Sim” – diz Chávez – “isso já sabemos. As pessoas se comprometem e depois desaparecem. Um mês depois é preciso recomeçar tudo. Deve ter muito cuidado com quem escolhe.”
Continua pressionando o infeliz supervisor: “Vocês têm de ser
mais produtivos. Por que não instalam umas barracas, constroem
outro edifício e trazem mais gente?” Descobre que o supervisor
perde tempo, indo e vindo todos os dias da cidade – que fica a
apenas 5 minutos de helicóptero, mas a uma hora por terra. “Você
não pode fazer isso o tempo todo” – diz – “vai ficar exausto.
Porque não experimenta ficar aqui, em uma barraca? Não se
esqueça da importância deste trabalho. Não estamos treinando as
pessoas para que se vão. Queremos que fiquem. Estamos colonizando o país com nossa própria gente. Quantas vezes fomos
malsucedidos no passado? Não podemos fracassar desta vez.” O
supervisor, em seu impecável terno escuro de representante do
Estado, inclina a cabeça em sinal de aprovação, mas parece consternado.
Enquanto espero por Chávez, que é cercado por outra multidão, dirijo-me a Jorge Giordani, o ministro do Planejamento. Esse
homem grisalho, que aparenta mais idade do que tem, está por
trás do plano para o desenvolvimento interno. Economista radical
e professor universitário, com estudos no Instituto de Estudos
para o Desenvolvimento, da Universidade de Sussex, nos tempos
do desaparecido Dudley Seers, foi o guru econômico do MAS.
Giordani trabalhou com seus estudantes na formulação de um
plano para revitalizar as áreas rurais, e conta-me que costumava visitar Chávez na cadeia. Os dois homens se davam bem, tendo
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Giordani se tornado o orientador econômico de Chávez quando
de sua tese de graduação. Como ministro do Planejamento, trouxe
consigo uma equipe de universitários radicais para pôr em campo
os projetos do presidente. Seu ministério, o Cordiplan, tem a
responsabilidade de projetar a revolução agrícola prometida.
Dirigimo-nos para uma sala de reuniões onde Chávez interroga agora o oficial principal. Descobre que parte da terra foi
ocupada por invasores, que derrubaram árvores e venderam a
madeira. “Quero saber, imediatamente, quem vendeu essas terras. Aquele que for surpreendido derrubando árvores será preso.
Isso é totalmente ilegal. Quero saber quem possui terras em 50
quilômetros de raio. Sei que há muita gente que possui terras por
aqui, mas que, na realidade, vive em Miami ou em Londres.
Devemos expropriá-las. A nova Constituição permite, embora,
obviamente, tenhamos de pagar por elas”.
Começou então a fazer perguntas sobre o que a terra poderia produzir. “O que se cultiva nesta região? O que cultivavam os
indígenas? A produção de leite é na verdade a melhor opção, ou
seria melhor produzir vegetais?” As pessoas começam a expor seu
ponto de vista, e todos asseguram que a terra é boa para a pecuária. Chávez anuncia, com severidade, que vai voltar para ver o
que estão fazendo e avisa que poderá vir sem avisar.
Caminhamos de volta para as casas que já foram reformadas
e estão a ponto de serem entregues a seus novos proprietários.
Foram construídas em círculo, em torno da praça, e cada uma tem
um pedaço de terra na parte traseira. Alguns toldos provisórios
foram instalados, mas Chávez fica fora, no meio, em pleno sol do
meio-dia, por mais de uma hora. A maioria das 24 famílias que
receberão casas vem da zona litorânea da tragédia de dezembro;
alguns vêm de Naiguatá, embora outros sejam de uma zona próxima, onde ocorreu uma tragédia semelhante. Um desses homens
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diz-me que suas plantações de milho e de mandioca foram devastadas pelas águas. “Não temos dinheiro nem capital. Precisamos de ajuda” – diz. Quando peço que ponha seu nome em meu
caderno, ele se desculpa por não saber escrever.
As famílias chegam uma a uma e Chávez fala com cada uma
delas. Freqüentemente, trata-se de um homem e de uma mulher,
jovens, com 2 ou 3 filhos pequenos, embora às vezes seja um
casal mais velho e mais preocupado. Toda a família em conjunto se adianta e ele lhe estende o título de posse, faz perguntas
sobre sua experiência e sua competência e dá alguns conselhos
e advertências. Eles se retiram sorridentes. As casas não são um
presente para os colonos, já que morarão nelas sem pagar aluguel
durante um ano apenas. Depois, terão de pagar regularmente uma
cota à cooperativa, que é, formalmente, a proprietária.
Uma vez terminadas as formalidades, Chávez faz um discurso curto, ao mesmo tempo em que anuncia que seu secretário já
avisou que estão com 3 horas de atraso. “Não tem importância,
façamos as coisas como devem ser feitas.” Tem consciência de que
é importante dar alento a quem toma posse das novas casas,
assim como respeitar certas formalidades.
“Foram muito corajosos em vir para cá” – diz a eles – “e em
fundar um novo vilarejo. Não é fácil para ninguém se mudar da
costa para os llanos. Mas não pensem em mais nada: começamos há apenas duas semanas, mas, em poucos meses, haverá mil
casas aqui.”
Lembra a eles que Guarimito é o nome dos indígenas que
viviam nesse lugar. “Conheço esta região, são das melhores terras da Venezuela. Estive aqui várias vezes, patrulhando a fronteira.” Diz para não se preocuparem com o isolamento. “Construiremos uma estrada-de-ferro que passará muito perto daqui, desde
o rio Apure até o lago de Maracaibo.”
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Acrescenta uma última advertência. “Por favor, não ponham
meu nome em suas estradas ou casas. Não quero ser lembrado
com algo como a rodovia Raúl Leoni” – diz, evocando a extravagância de um presidente anterior.
Foi uma experiência reconfortante: os novos colonos orgulhosos, as crianças agitando a bandeira amarela, azul e vermelha da Venezuela, e todo o mundo à beira das lágrimas. Chávez
desempenha seu papel paternal reconfortando as pessoas, conversando, fazendo perguntas, procurando respostas e difundindo um sentimento de otimismo e de boa vontade.
Uma multidão de ministros e de curiosos dirige-se para o helicóptero e decolamos para visitar outro projeto abandonado do
ancien régime, uma imensa zona industrial abandonada que, segundo dizem, é a maior da América Latina. Chávez mergulha de
novo na multidão que o espera, para saber o que desejam. Viveram aqui muitos anos e só desejam uma coisa: trabalho. Depois,
subimos em um ônibus e damos lentamente uma volta pelo local abandonado.
Chávez dirige uma reunião improvisada com seus ministros,
enquanto o responsável pelo lugar explica o que acontecia antes
a cada oficina e a cada galpão abandonado. Discutem sobre o que
deverá ser recuperado, que os investidores poderão ser motivados
a se transferir para lá se receberem suficientes incentivos fiscais.
O Estado pode entrar com educação e assistência médica, mas não
se trata de repetir o fracasso das empresas do Estado da década de
1970. O investidor privado terá de ser estimulado a levar adiante
os grandes e pequenos projetos necessários para corrigir as falhas
do passado. O ministro da Indústria diz-me que, se os militares
ajudassem, limpando o terreno, seria possível montar 50 empresas pequenas, talvez com 20 empregados cada uma, durante o
primeiro ano. Chávez quer que tudo seja feito mais depressa.
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Ao regressarmos à base militar de La Fría, bastante atrasados
para o almoço, Chávez se reuniu, por uma hora, com seu gabinete, para discutir aquilo que cada um aprendeu e quais decisões
deveriam ser tomadas no futuro. A reunião teve continuidade
durante a viagem de volta assim como se prolongou no terminal
de passageiros do aeroporto de La Carlota, quando fui para casa.
Chávez continua falando sem dar sinais de cansaço e, na volta
a La Casona, ainda fez outras reuniões noite adentro. Seus ministros, assim como eu, estamos completamente exaustos.
O reassentamento das vítimas das inundações em La Fría é
apenas um elemento de uma longa série de experiências feitas
pelos governos da América Latina, através dos anos, para tentar
inverter o fluxo do êxodo rural que asfixia as cidades. Houve mais
fracassos do que êxitos. No início dos anos de 1970, o governo
radical militar do Peru legalizou as invasões nas cidades novas
que cercavam Lima, mas essa estratégia apenas atraiu novos
imigrantes dos Andes rurais para a cidade litorânea, servindo
apenas para aumentar ainda mais os barrios. Chávez procurou ser
um pouco mais original, transferindo o excesso de população
urbana para os novos projetos agroindustriais de desenvolvimento distantes das delícias da cidade. Essa estratégia é muito diferente da de Pol Pot, no Camboja, já que não há ameaças de repressão. A escala é modesta e a escala de tempo é o longo prazo.
Chávez disse-me que pensava em 20 anos. Pode-se imaginar que
consiga persuadir alguns milhares de pioneiros a aceitar o desafio, mas é mais provável que seus projetos diminuam a taxa de
migração rural para as cidades, isto é, que a invertam. Se conseguir apenas isso, o esforço já terá valido a pena.
Nenhum presidente, desde Marcos Pérez Jiménez, no princípio dos anos de 1950, fez grande coisa pela agricultura.
Chávez gostaria que o país fosse auto-suficiente. Atualmente,
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a Venezuela importa mais da metade dos alimentos que consome; 64% em 1998. Enquanto os governos anteriores concentraram-se no petróleo, no desenvolvimento industrial ou no comércio, o governo de Chávez concentrar-se-á na agricultura. O
gado pasta em milhares de hectares que poderiam ser utilizados de forma mais produtiva.
Há mais de 50 anos, as pessoas falavam de “semear o petróleo”, isto é, investir a renda petrolífera para melhorar a agricultura. Isso nunca aconteceu e agora Chávez quer que aconteça.
Em 1999, começou modestamente, com o repasse de 15 milhões
de dólares às famílias camponesas, para ajudá-las a criar novos
assentamentos em zonas rurais. O plano foi projetado para aumentar a produção de itens como arroz, milho, leite, açúcar e
óleo de cozinha.
Poder-se pensar que a dieta do venezuelano é à base de arroz, já que a Venezuela é um país quente, que possui muitos rios
e várzeas. Mas, hoje, os venezuelanos comem mais trigo que
arroz, já que o trigo importado dos Estados Unidos, a preços
subsidiados, é mais barato que o arroz produzido no país. Segundo Federico Chapellín, um colunista de El Nacional, os venezuelanos consomem apenas 12 quilos de arroz por pessoa ao ano,
enquanto os colombianos comem 30 quilos, os brasileiros, 48, os
equatorianos, 58 e os peruanos, 32. Os venezuelanos compensam
seu baixo consumo de arroz comendo 65 quilos de trigo importado dos Estados Unidos.
A Venezuela produz arroz e, de fato, produz mais do que se
consome. Evidentemente, o trigo não é um cereal que próprio de
países tropicais. Então, para mudar as prioridades do país, Chávez
terá que mudar a dieta nacional e promover o arroz e o milho em
lugar das massas, à base de trigo. Chapellín sugere que o arroz
seja transformado em prato nacional e que a nova Constituição
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devia tê-lo declarado “cereal nacional”. Ao fazer isso, escreveu,
esperançado, “mudaríamos a mentalidade dos venezuelanos, que
comeriam mangas em lugar de maçãs, panquecas em vez de
hambúrgueres e arroz em vez de massa”.
Em um dos grandes centros comerciais de Caracas, fiz uma
lista dos diferentes lugares onde se poderia comer. Primeiro encontrei as “Wendy’s Old Fashioned Hamburgers”, ilustradas com
uma moça estadunidense de cachinhos curtos e dois lacinhos.
Depois, vi o “American Deli”, que tem a Estátua da Liberdade em
seu logotipo. Depois, a “Italian Coffee Company”, com letreiros
na rua que indicavam Canal Street e Manhattan. Acompanhavaas “Good Time Ice Cream”, “Happy Time Ice Cream”, “Chip-aCookie”, “Dunkin Donuts”, a loja de chocolates “St. Moritz”, e,
claro, McDonalds. É difícil imaginar que os alegres jovens que
freqüentam o centro comercial, com seu modo de vida à
estadunidense, queiram algum dia mudar seus hambúrgueres por
panquecas, ou comer arroz em vez de massa. Mas é essa mudança
revolucionária que o governo de Chávez está exigindo deles para
que reconstruam o país em bases mais nacionalistas.
21. JOSÉ VICENTE RANGEL E A POLÍTICA EXTERNA
,A POTÊNCIA SOVIÉTICA ENTROU EM COLAPSO, MAS ISSO NÃO SIGNIFICA QUE O
CAPITALISMO NEOLIBERAL DEVA SER O MODELO A SER SEGUIDO PELOS POVOS
DO OCIDENTE. MESMO QUE SEJA POR ESSA ÚNICA RAZÃO, CONVIDAMOS A
CHINA A QUE CONTINUE FAZENDO TREMULAR SUA BANDEIRA, PORQUE O
MUNDO NÃO PODE SER DOMINADO POR UMA FORÇA POLICIAL UNIVERSAL
QUE PRETENDE TER O CONTROLE DE TUDO.
O PRESIDENTE CHÁVEZ EM PEQUIM, OUTUBRO DE 1999.
C
hávez chegou à Presidência com grandes ambições em matéria
de política externa. Seu objetivo é, nada mais, nada menos do
que realizar o sonho bolivariano de unir os povos da América Latina. Outros lutaram por essa causa durante o último meio século,
principalmente Fidel Castro e Che Guevara. Castro, durante seus
primeiros anos de governo, invocou a tradição da “Nossa América”, na “Primeira Declaração de Havana”, de 1960. Com seu grande
senso histórico, elogiou a “América que Bolívar, Hidalgo, Juarez,
San Martín, O’Higgins, Sucre e Martí queriam ver libertada”.
Che Guevara, em seu campo boliviano de Ñancahuazu, em
dezembro de 1966, invocou o espírito da revolução continental
e brindou ao “novo grito de Murillo”, que a sua guerrilha estava
dando, fazendo eco ao advogado de La Paz que, em 1809, fora
designado para empreender a libertação da América Latina.
O fascínio de Hugo Chávez pelo projeto bolivariano de emancipação prolonga essa tradição de liderança radical americana e,
como venezuelano, pode contar com a relação privilegiada que
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seu país tem com a figura do Libertador. Em uma entrevista com
Agustín Blanco Muñoz, em 1995, ele argumentava que “a posição bolivariana nesse campo de visão geopolítica continua tendo toda a sua atualidade”.
Nenhum de seus generais nos tempos da independência, pelo
menos nenhum de seus generais venezuelanos, tinha essa visão,
essa noção de unir todos os territórios fragmentados da América Latina, para enfrentar o poder imperial do Norte. É uma posição que agora ganha espaço, não apenas entre os venezuelanos,
mas em toda a América Latina.
Dar ênfase à integração econômica da América Latina não
tem, obviamente, nada de novo; fez parte da retórica oficial de
quase todos os regimes, durante décadas. Em troca, a ênfase que
o presidente Chávez dá ao político é nova e interessante. Como
aspira a seguir os passos de Bolívar, queria convocar um Congresso Anfictiônico * em Caracas, no ano 2000, de todos os
Estados bolivarianos do continente, tal como fizera Bolívar no
Panamá, em 1826.
“O século 20 foi perdido. Assim como se fala da década de
1980 como da década perdida, o século 20 foi um século perdido. Nossos povos viviam melhor no século passado [19], do que
neste [20]. Viveram melhor. Então, é uma união, como dizia
Bolívar. A pátria, para nós, é a América: a união é fundamental.
Nisso, Martí, O’Higgins e Artigas estavam de acordo; Sandino e
Perón, também. É a união de todos esses povos.”
Sua estratégia, diz, “aponta na direção de formar uma grande aliança, uma grande união latino-americana e caribenha”. O
que deseja é uma “comunidade de nações e de Estados”.
*
Congresso de representantes de Estados (neste caso, de todos os Estados bolivarianos),
que se reuniriam para deliberar sobre assuntos de interesse de todos eles. (N. do E.)
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Isso, afirma, tem de ser conduzido politicamente, embora não
se esquecendo da economia. “Definimos, como prioritária e urgente na definição de nossa política externa, o tratamento, a
integração de 3 fronteiras que rodeiam a Venezuela” – a fronteira
caribenha (a bacia do Caribe), a fronteira amazônica (o Mercosul
e o Brasil) e a fronteira andina (a comunidade andina).
Chávez explicou ao intelectual Heinz Dietrich, em maio de
1999, que esperava que a Venezuela fosse logo capaz de “pisar
no acelerador” da integração da comunidade andina, do Mercosul
e da bacia do Caribe, “incluindo, claro, a América Central, até o
México, Cuba, Santo Domingo e todas as ilhas do Caribe”.
“Por que” – pergunta de maneira retórica – “não pensar em
uma moeda? Mas não o dólar, uma moeda latino-americana, uma
moeda nossa. Assim como a Europa unida, que conseguiu chegar ao euro...”
Chávez estendeu essa idéia da integração ao âmbito militar.
No princípio de novembro de 1999, dirigiu-se a um grupo de
membros do Parlamento Andino, um recinto inofensivo cujos
membros são escolhidos entre os parlamentares das repúblicas
andinas. Chávez tirou-os de sua letargia quando lhes sugeriu que
considerassem a possibilidade de criar uma Otan latino-americana, um projeto para uma aliança militar continental, coisa que
não podia estar mais longe de suas cabeças.
A Otan, claro, é uma instituição criada pelos Estados Unidos
e que trabalha em seu benefício. Chávez, de um só golpe, estava
sugerindo algo bastante diferente – uma Otan latino-americana
sem os Estados Unidos. Durante anos, sem dúvida, uma espécie
de Otan latino-americana funcionou, com o nome de Junta
Interamericana de Defesa. Seu quartel general fica em Washington e, embora alguns generais estadunidenses gostem de falar
castelhano, suas reuniões acontecem em inglês. Vários exércitos
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latino-americanos, em troca de apoio político, recebem ajuda
econômica de Washington, assim como armas de segunda mão.
Dois países em particular, o México e a Argentina, estabeleceram
estreitos vínculos militares com os Estados Unidos, os quais
equivalem a uma aliança militar formal.
Ainda assim, nem todos os oficiais latino-americanos vêem
tais acordos com bons olhos. Muitos se lembram da guerra das
Malvinas, em 1982, quando seu aliado estadunidense aliou-se à
Grã-Bretanha contra a Argentina. Outros se lembram das intervenções militares dos Estados Unidos no passado – no Panamá
e no Haiti (e em Granada, nos anos de 1980). Cada um reconhece que a ameaça de uma intervenção na Colômbia é grande.
Há outra preocupação entre os militares. Os Estados Unidos
invadiram o Panamá em 1989 e, naquela ocasião, aboliram a
Guarda Nacional panamenha. Muitos oficiais venezuelanos temem, e Chávez tornou-se o porta-voz desse temor, que este seja
o objetivo atual dos Estados Unidos no continente: abolir as
Forças Armadas!
A política externa do governo de Chávez está nas mãos competentes e eficientes de José Vicente Rangel,* político experiente e diplomata nato. Também é conhecido por seu apego sentimental à Revolução Cubana e por sua hostilidade com relação às
políticas estadunidense na América Latina. Três vezes candidato presidencial da esquerda, e durante décadas um dos mais
destacados jornalistas da Venezuela – tinha um programa semanal na rádio e na televisão, além de uma coluna na edição dominical do jornal El Universal – agora com 70 anos, é o encarregado
de colocar em prática a política externa bolivariana de Chávez.
*
José Vicente Rangel agora é ministro da Defesa. Seu sucessor no Ministério das Relações Exteriores foi Luis Alfonso Dávila. (N.da T.)
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Nas paredes de sua sala, ao lado de uma estátua de Bolívar,
só há um quadro: a fotografia de José Ignacio Arcaya, ministro
de Relações Exteriores que, no início dos anos de 1960, foi o único
chanceler que se recusou a ceder à solicitação que os Estados
Unidos fizeram a todos os países latino-americanos, de boicotar
Cuba de Fidel Castro. Ignacio Arcaya é lembrado como o
chanceler da dignidade. Em uma década sombria, fez o que tinha
de fazer. Seu filho é o ministro do Interior de Chávez.* Por sua vez,
o filho de Rangel é um dos partidários de Chávez na Assembléia
Constituinte.* A foto foi bem escolhida.
De ombros largos, cabelo branco e bigode militar, José
Vicente Rangel evoca a imagem do genial coronel Blimp ou,
talvez, a de um corretor de seguros, ofício que desempenhou no
passado. Exilado na Espanha na década de 1950, durante a
ditadura de Marcos Pérez Jiménez, aceitou o primeiro trabalho
que lhe ofereceram.
Nascido em 1929, no tempo do ditador Juan Vicente Gómez,
Rangel é o produto da euforia radical da era posterior a 1945. Foi
educado no conservador liceu católico La Salle, de Barquisimeto,
cursou Direito na Universidade de Mérida, tendo depois entrado
na Universidade Central, em Caracas, um foco de radicalismo
político. No princípio, aderiu às fileiras da União Republicana
Democrática (URD), de Jóvito Villalba, tendo sido membro da
direção nacional do partido durante muitos anos, de 1950 a 1963.
Grande parte de sua vida política foi influenciada por sua
profunda desconfiança na AD, particularmente em seu principal
líder, Rómulo Betancourt, que adotou um anticomunismo intran*
*
Ignácio Arcaya é, agora, embaixador da Venezuela na ONU. O atual ministro do Interior e Justiça é Luis Miquilena. (N. da T.)
José Vicente Rangel Ávalos foi eleito, em julho de 2000, prefeito de Sucre, município caraquenho. (N. da T.)
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sigente e um compromisso com os Estados Unidos. Essa profunda hostilidade com relação à AD é compartilhada por Chávez, e
é uma das características de todas as principais figuras de seu
governo. Rangel abandonou finalmente a URD em 1964, quando o próprio Villalba aliou-se ao partido detestado. Nos anos de
1970, Rangel aproximou-se do MAS, que surgira de uma cisão do
PCV, tendo sido seu candidato à Presidência da República sem ser
um membro ativo do partido.
Por que então esse outrora esquerdista empedernido cerrou
fileiras com Chávez? Por coisas do acaso, Rangel me disse um dia.
Ele esteve a par da existência de Chávez antes da fracassada
tentativa de golpe, de fevereiro de 1992, que transformou este
numa figura pública. O filho de Rangel, José Vicente Rangel
Ávalos, estudou na Academia Militar da Venezuela durante os
anos de 1980. Seu oficial superior (além de seu orientador), foi
Hugo Chávez. Durante os fins de semana, o ex-candidato presidencial da esquerda, bastante famoso – Rangel – encontrava-se
com o futuro líder do golpe, totalmente desconhecido – Chávez.
Mais tarde, Rangel visitou Chávez na prisão de Yare.
Paradoxalmente, o filho de Rangel teve de deixar a Academia.
Pensava-se que o filho de um conhecido homem de esquerda
tinha de se infiltrar no Exército para fomentar um golpe. Ninguém
suspeitou naquele tempo que era o comandante Chávez, e não o
recruta Rangel Ávalos, que estava por trás da conspiração.
Uma das tarefas de José Vicente Rangel como ministro de
Relações Exteriores consistiu em buscar melhorar a imagem do
presidente no estrangeiro. Durante a campanha presidencial de
1998, a oposição conservadora pintou Chávez com as cores mais
sombrias: no melhor dos casos, Nasser e Ataturk; e, no pior, Hitler
e Mussolini. John Maisto, o embaixador estadunidense em Caracas, recusou-se a lhe dar um visto para os Estados Unidos quan-
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do era candidato, e recebeu sua eleição com alarmismo. Diplomata de carreira, desprovido de ambições, não tinha intenções de
passar à história como o homem que “perdeu” a Venezuela.
Maisto achava que Chávez era um golpista perigoso e antidemocrático. Segundo dizem, afirmou não conhecer “ninguém na
Venezuela que considere Chávez um democrata”. Richard
Wilkinson, o embaixador britânico, e os demais embaixadores
europeus adotaram posições mais comedidas. Chávez foi convidado a visitar a Grã-Bretanha em 1998 e deixou uma excelente
impressão em todos que conheceu.
Depois de sua eleição em 1998, Chávez empreendeu uma
viagem pelos países da América Latina, particularmente pelo
México, Brasil e Argentina. Em toda a parte foi recebido com
cortesia, embora a maior parte dos outros presidentes obviamente esperava que seu sonho bolivariano de integração continental não fosse mais do que uma retórica sedutora. Foi a
Roma e conversou com o papa e, na Espanha, teve uma entrevista com o rei. Tinha de se livrar da imagem negativa que
haviam feito dele.
Depois de alguns meses como presidente, repetiu o exercício. Em setembro de 1999, falou nas Nações Unidas, em Nova
York, fazendo o mesmo em Washington. Os estadunidenses
mantiveram uma posição hostil durante os primeiros meses de
seu governo e, em agosto de 1999, depois que as disputas entre o velho Congresso e a nova Assembléia Constituinte transbordaram para as ruas de Caracas, Washington expressou abertamente sua preocupação.
A situação na Venezuela é motivo de “crescente preocupação”
– disse James Foley, porta-voz do Departamento de Estado, em 30
de agosto, expressando solenemente seu desejo de que as partes
chegassem “a um acordo sobre a maneira de exercer o poder” e de
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“garantir a elaboração de uma Constituição que preserve o compromisso duradouro da Venezuela com a democracia”.
No entanto, com a visita de Chávez a Washington, o ambiente começou a mudar. Conquistou os editores do Washington
Post, com quem tomou um café da manhã. “Falou com imagens
coloridas e dramáticas” – segundo o relato de Nora Boustany –
“que ele via e sentia a dor dos venezuelanos quando percorria
os campos, depois de ter pago com a prisão, há 5 anos, sua
tentativa de golpe de 1992”. Acrescentou que se “comprometeu
a ser criativo para atacar os problemas do país, mas não prometeu milagres nem soluções de um dia para o outro”. “Precisa-se de uma liderança séria” – disse ao Washington Post – “e
não de populismo irresponsável”.
No decorrer do ano, Chávez dirigiu-se a outras partes do
mundo, incluindo a China, Japão, Coréia do Sul, Malásia,
Cingapura e as Filipinas. Desde a presidência de Carlos Andrés
Pérez, nos anos de 1970, a Venezuela não se considerava um país
do Terceiro Mundo. Presidentes anteriores, em particular o próprio Pérez, tinham o hábito de visitar continentes distantes. De
fato, durante sua segunda presidência, na década de 1990, Pérez
era acusado de passar tempo demais representando o papel de
homem de Estado internacional. Seja como for, a posição da
Venezuela como membro fundador da Opep torna-a, evidentemente, um ator mundial e Chávez, apesar dos inevitáveis encargos domésticos, estava muito consciente de que devia obter tanto
apoio internacional quanto possível.
Nesse contexto, sua visita à China em outubro teve uma
importância considerável, tanto política quanto econômica. As
necessidades potenciais da Venezuela em arroz e artigos de consumo baratos, e as necessidades da China em petróleo, faziam
com que os dois países fossem parceiros complementares. Mas
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Chávez também apreciava a posição chinesa em matéria de política internacional. Seu entusiasmo pela “terceira via” do primeiro-ministro britânico desvanecera-se depois da guerra do Kosovo,
quando compreendeu que a posição britânica, de apoio incondicional aos Estados Unidos, estava em total contradição com sua
própria concepção da política mundial. Chávez assegurou aos
líderes chineses, em Pequim, que era a favor de “um mundo aberto
e multipolar”, que respeitasse a soberania dos povos.
“Na Venezuela, na América longínqua, já içamos a bandeira
da soberania popular; nisso estamos totalmente de acordo com
o povo chinês e seu governo revolucionário.”
Ao visitar o túmulo de Mao Tse-tung, em 12 de outubro, pronunciou em elogio que ninguém pode ignorar, ao “grande estrategista, grande soldado, grande estadista e grande revolucionário”. Quando encontrou o ministro chinês Zhu Rongji,
simplesmente disse que o povo venezuelano estava começando
a “levantar-se”, assim como a China levantara-se 50 anos antes,
“sob a liderança de seu Grande Timoneiro”. Chávez disse aos
chineses que não acreditava no neoliberalismo, pois este fora um
desastre para o Terceiro Mundo. Buscara impor modelos econômicos a partir dos centros de poder mundial no Ocidente, mas
mergulhara milhões de pessoas na pobreza, deixando-as sem
outras perspectivas senão o desemprego, a miséria e a morte.
“A potência soviética entrou em colapso, mas isso não significa que o capitalismo neoliberal deva ser o modelo a ser seguido pelos povos do Ocidente. Mesmo que seja por essa única razão, convidamos a China para que continue fazendo tremular sua
bandeira, porque o mundo não pode ser dominado por uma força policial universal que pretende ter o controle de tudo”.
Depois de viajar pela Ásia, Chávez voltou para casa via Europa. Disse ao chanceler alemão Gerhard Schroeder, que deseja-
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va “criar um modelo econômico diferente” e que seus conselheiros
“observavam com muita atenção o modelo alemão e europeu”.
Também disse que “a nova Constituição daria mais estabilidade
e segurança aos investimentos nacionais e estrangeiros”.
Também insistiu na multipolaridade. O mundo tinha que
entender due “as pessoas têm o direito de reorganizar seus acordos como melhor lhes convenha. Existe um princípio fundamental: a autodeterminação dos povos. Não pode haver uma política internacional que observe o que outros povos fazem, para
depois lhes impor seu próprio modelo”.
O entusiasmo de Chávez por um mundo “multipolar” ainda
parece estranho no contexto latino-americano, embora dez anos
depois do fim da guerra fria, os europeus tenham se manifestado com freqüência a favor desse conceito. “Não podemos aceitar um mundo politicamente unipolar, nem a unilateralidade de
uma única hiperpotência”, anunciou o ministro de Relações
Exteriores francês, Hubert Védrine, em discurso pronunciado em
Paris, em 3 de novembro. No entanto, na América Latina dos anos
de 1990, os países mais avançados, especialmente o México, a
Argentina e até certo ponto o Chile, consideram-se membros
potenciais do Ocidente e membros potenciais do Primeiro Mundo. De seu ponto de vista, a América Latina faz parte do pólo
estadunidense – uma atitude não muito diferente da de Tony
Blair, no Reino Unido. Ainda assim, até no debate europeu, poucos foram os que indicaram onde poderiam ser criados os outros
pólos potenciais. Os Estados Unidos e a Europa são considerados
exemplos únicos.
Hugo Chávez defende uma posição totalmente diferente e
original, alinhando-se com Védrine na busca de um mundo
multipolar e apostando na formação de um pólo latino-americano. Para isso, conta com o apoio firme, porém tácito, do Brasil,
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em que o presidente Fernando Henrique Cardoso, ao mesmo tempo em que aceita com entusiasmo o modelo econômico neoliberal,
compartilha a crença tradicional dos sucessivos governos brasileiros na importância geopolítica de um país de tamanho continental, como é o Brasil. Chávez vê com otimismo o que considera
um renascimento global do nacionalismo:
“Creio que estamos atravessando um período em que o nacionalismo renasce. Isso pode ser visto no conflito da Tchetchênia
contra os russos. É como o regresso da história, assim como as
velhas nações voltaram depois da I Guerra Mundial... Antes havia
um duplo globalismo, duas potências imperiais que queriam
dominar o mundo, e então uma delas entrou em colapso e a outra
disse, ‘agora é minha vez, sou o dono da nova ordem mundial,
o mundo unipolar’. Essa idéia fracassou rapidamente. O que temos agora é uma desordem mundial. Não há ordem, não há uma
única superpotência. No futuro haverá vários centros e veremos
a formação de alianças e blocos.”
O problema de Chávez é que ainda não existem sinais de que
os países da América Latina organizem-se em um bloco capaz de
negociar com o resto do mundo. Essa mensagem demorará muito
a ser transmitida. Muitos presidentes latino-americanos vão se
mostrar resistentes, já que nenhum deles considera a Venezuela
um líder político natural no continente.
Na Venezuela, Chávez fala, passando por cima de seus auditores
imediatos, a um público mais amplo. A mesma técnica pode dar
resultados na América Latina e pode ser que, pouco a pouco, nesse universo mais amplo ele também venha a ter um público.
22. A GUERRA CIVIL NA COLÔMBIA E O FUTURO DO
SONHO BOLIVARIANO
PEÇO A CHÁVEZ QUE, POR FAVOR, PERMANEÇA EM SEU TERRITÓRIO, POIS
NÓS RESOLVEREMOS NOSSOS PRÓPRIOS PROBLEMAS. NÃO QUEREMOS
NOS MANIFESTAR SOBRE OS PROBLEMAS INTERNOS DA VENEZUELA, PORQUE
NÃO QUEREMOS QUE INTERFIRAM NOS ASSUNTOS INTERNOS DA
COLÔMBIA. SE CHÁVEZ ENTRAR EM CONTATO COM AS GUERRILHAS,
QUEREMOS SER INFORMADOS ANTES.
PRESIDENTE ANDRÉS PASTRANA EM WASHINGTON, SETEMBRO DE 1999.
P
ara a Força Armada venezuelana e, por consegüinte, para o
presidente Chávez, o principal problema externo que o país
enfrenta, há tempos, é sua relação com a Colômbia. A Venezuela
tem centenas de quilômetros de fronteira com a Colômbia, um
país que durante décadas esteve envolvido no tipo de guerra civil
prolongada e sem saída que a Venezuela teve de enfrentar durante
o século 19.
Essa guerra atravessa freqüentemente a fronteira. Fazendeiros venezuelanos dos Estados de Zulia e Táchira são seqüestrados de vez em quando e caminhoneiros que transportam mercadorias da e para a Colômbia são atacados. Os dois lados, as
guerrilhas de esquerda e os paramilitares de direita, estiveram envolvidos nesses incidentes fronteiriços.
Mas o problema colombiano é muito mais significativo e
central para a Venezuela do que o assunto relativamente simples
dos incidentes fronteiriços. A Colômbia é um país em profunda
crise e o futuro do governo de Chávez depende inevitavelmente
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do que aconteça no país vizinho. O Estado colombiano atual está
à beira do colapso e, de fato, em muitos lugares do país já entrou
em colapso, devastado pela economia da droga, que alcançou
importância maior que a economia nacional tradicional.
Fato ainda mais significativo: as novas forças emergentes na
Colômbia, associadas às Farc e ao Exército de Libertação Nacional – ELN, retomaram as bandeiras bolivarianas.
Na realidade, o anseio público do governo da Venezuela,
expresso ao governo do presidente Pastrana, em Bogotá, é favorecer as negociações de paz entre as partes beligerantes na Colômbia. O êxito de tais negociações é fundamental para a segurança da Venezuela.
A crise na Colômbia prolongou-se tanto, e passou por tantas
fases, que quem não conhece com precisão o país e seu passado
tem dificuldade para compreender o que está acontecendo. Durante a maior parte de sua história, a Colômbia atravessou ciclos
de violência de extrema intensidade. Grande parte desta situação
foi provocada pelas guerras e lutas camponesas pelo direito à
terra. A situação de guerra civil e de anarquia local é tão pronunciada que a derrocada do Estado central foi anunciada muitas
vezes. Porções consideráveis desse país, do tamanho de um continente, nunca chegaram a ser controladas pelo governo central.
Na década passada, a situação evoluiu significativamente, em
parte, devido à guerra fria e, em parte, devido à natureza instável do comércio da droga.
Manuel Marulanda, o líder das Farc, governa de fato um terço
do país. O ELN não é tão poderoso quanto as Farc, mas também
tem capacidade de mobilizar e de motivar uma parte substancial da população. Marulanda domina zonas importantes do país
há quarenta anos e, agora, suas forças guerrilheiras podem surgir em qualquer momento em quase todas as regiões. Na maior
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parte desse período, foi um líder camponês aliado ao Partido
Comunista. Esteve sob as ordens de Jacobo Arenas, um dos mais
sofisticados teóricos dos partidos na América Latina. O movimento camponês, para o bem ou para o mal, era dominado pelo
Partido – às vezes estimulado, outras vezes retido, segundo as
necessidades políticas do momento.
Às vezes, houve êxitos, como quando o Partido Comunista e
a guerrilha das Farc sobreviveram ao ataque de sua base de
Marquetalia, em 1964, uma ofensiva lançada pelo Exército colombiano com a ajuda dos Estados Unidos. Às vezes, houve
desastres, como quando o Partido recomendou a aceitação dos
oferecimentos de paz e o estabelecimento de uma organização de
frente civil, no final dos anos de 1980, a União Patriótica, para
participar da política convencional. Muitos líderes guerrilheiros,
das Farc e de outros grupos, desceram das montanhas para participar das campanhas políticas da União Patriótica. Os líderes e
muitos de seus seguidores foram rapidamente massacrados pelos grupos paramilitares de direita. Tal política foi um erro imenso. A experiência teve tamanho impacto sobre Marulanda que até
hoje ele está convencido de que um acordo de paz significaria
repetir a catástrofe do passado.
Embora as Farc estejam em guerra contra o Exército colombiano, seus mais ferozes opositores são os grupos paramilitares.
Estes se separaram das Forças Armadas, ainda que freqüentemente atuem com seu apoio tácito. Financiados pelos traficantes de drogas, são imensamente ricos e poderosos, além de
impiedosos na guerra. As Farc também são financiadas pela
economia da droga, embora principalmente por intermédio dos
que a cultivam e produzem e não dos vendedores e traficantes.
A distinção pode parecer sutil, e existe pelo menos um caso
documentado de um comandante das Farc que financiou suas
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operações independentes com dinheiro da comercialização propriamente dita.
Desde que a União Patriótica foi destruída, a situação mudou
muito. As Farc estão em uma posição muito mais vantajosa, que
obriga o governo a se sentar à mesa de negociações. As Farc não
são o mesmo animal político das décadas passadas. Com o colapso da União Soviética e o fim da guerra fria, já não existe um
partido comunista poderoso, com capacidade para manipular a
guerra camponesa. Jacobo Arenas, a eminência parda das antigas Farc de tipo soviético, faleceu. Manuel Marulanda voltou a
sua encarnação anterior, de líder camponês tradicional, atuando
por conta própria, conduzindo a guerra com astúcia camponesa
e com 40 anos de experiência acumulada atrás de si.
Ao mesmo tempo, a natureza do trabalho no campo mudou
completamente, em parte devido à destruição e à devastação da
própria guerra, em parte, devido às transformações do comércio
da droga. Durante vinte anos, a Colômbia foi um importante
produtor de maconha, mas não cultivava papoula (produzida
principalmente no México e na Guatemala); cultivava pouca
coca. A Colômbia apenas processava um pouco da coca cultivada no Peru e na Bolívia, para produzir cocaína e exportá-la. O
processamento da coca não necessitava de muita mão-de-obra.
Hoje, o quadro é bastante diferente. A terra dedicada ao cultivo de cânhamo, coca e papoula foi multiplicada por 5. A Colômbia é, agora, o segundo maior produtor de coca na América
e o maior exportador de heroína. As somas de dinheiro geradas
por essa atividade econômica são tão gigantescas que as cifras
parecem inverossímeis. De acordo com uma informação recente, os traficantes de droga, depois de 20 anos de negócio, haviam acumulado um total de mais de 75 bilhões de dólares em 1997,
mais do que o produto nacional bruto da Colômbia. Fato ainda
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mais significativo, do ponto de vista da guerra camponesa, é o
impacto no emprego rural. São milhares as pessoas que aderiram
ao cultivo de plantas destinadas à produção de drogas e que
foram severamente atingidas pelas campanhas indiscriminadas
de erradicação.
Nesse contexto, as Forças Armadas de que dispõe Marulanda
já não são compostas de pequenos produtores rurais que lutam
por um pedaço de terra, mas de trabalhadores rurais que lutam
por seu trabalho. Marulanda mobilizou esse proletariado rural que
trabalha nas plantações de coca e de maconha e os defendeu, com
muito êxito, contra os esforços do governo, do Exército e dos
Estados Unidos, para destruir seu meio de vida. Em parte, a razão pela qual as Farc têm êxito é porque Marulanda tem dinheiro para gastar.
Essas evoluções não são apenas relevantes para aqueles que
se interessam pela história da Colômbia; têm também impacto na
Venezuela. Em certa medida, porque o reposicionamento das Farc,
realizado por Marulanda, implicou em retomar o passado de uma
forma semelhante à de Hugo Chávez. A esquerda colombiana,
depois de ter abandonado o pouco apreço de tipo marxista que
o Partido Comunista tinha por Bolívar, buscou reintroduzir a
figura do Libertador no panteão de seus heróis. As Farc têm agora
milícias bolivarianas. A Colômbia, é preciso que se diga, sempre
teve algumas dificuldades com Bolívar, visto que seu verdadeiro herói pátrio da época, Francisco de Paula Santander, foi o
responsável pelo desmantelamento do projeto bolivariano da
Grande Colômbia.
As Farc também não estão sozinhas. Em algum lugar do cenário perambulam os antigos seguidores do general Gustavo
Rojas Pinilla, o ditador dos anos de 1950, que acabou com a
guerra civil daquela época – a “Violência” – e que desfruta hoje
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do retorno de sua popularidade muito semelhante à de Medina
Angarita na Venezuela. Quando Rojas Pinilla tentou voltar, nos
anos 1970, obteve grande apoio dos nacionalistas socialistas do
mesmo tipo daqueles que agora apóiam Hugo Chávez.
No momento, o governo de Hugo Chávez conformou-se em
seguir os passos de seus predecessores da década de 1990, mantendo discussões sobre o problema fronteiriço com o governo
de Bogotá e com as organizações guerrilheiras. O ministro de
fronteiras do governo de Caldera era Pompeyo Márquez, o exlíder comunista e membro influente do MAS, que manteve,
durante muito tempo, contatos com Marulanda. Utilizou seus
contatos para obter a garantia de que as Farc não penetrariam
em território venezuelano. Outros contatos com as Farc foram
estabelecidos por Francisco Arias Cárdenas, quando era governador do Estado de Zulia. Arias Cárdenas declarou estar convencido de que os paramilitares colombianos são dirigidos pelo
Exército daquele país.
O ex-presidente Caldera encontrou-se com o ex-presidente
colombiano Ernesto Samper na cidade fronteiriça de Guasdualito,
em agosto de 1997, quando foi acordado que a Venezuela desempenharia um papel nas negociações de paz com as guerrilhas que
o governo colombiano programava. Tais negociações foram organizadas, em princípio, pelo Congresso colombiano, para serem
depois retomadas e estimuladas pelo atual presidente Andrés
Pastrana. Na seqüência, a Venezuela sugeriu que a Colômbia
seguisse o exemplo centro-americano, abrindo espaço para a
criação de um “Grupo de Amigos” do processo de paz colombiano, ao qual se unirriam o México, a Costa Rica e a Espanha.
No princípio, o presidente Chávez deixou claro que desejava
continuar com essa política e ajudar o processo de paz. Vários
membros de seu governo haviam iniciado contatos informais com
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os movimentos guerrilheiros e várias reuniões entre representantes da guerrilha e do governo venezuelano aconteceram em
Havana e em Caracas. Enquanto Chávez como presidente segue
em grande parte as políticas estabelecidas por Caldera, Chávez,
como pessoa, assim como Arias Cárdenas e o ministro Rangel
inclinam-se para uma solução negociada do conflito.
Em setembro de 1999, o presidente Pastrana começou a
mostrar preocupação com as intenções venezuelanas, como explicou ao Washington Post: “Peço a Chávez que, por favor, permaneça em seu território, pois nós resolveremos nossos próprios
problemas. Não queremos nos manifestar sobre os problemas
internos da Venezuela, porque não queremos que interfiram nos
assuntos internos da Colômbia. Se Chávez entrar em contato com
as guerrilhas, queremos ser informados antes.”
O governo de Washington sempre ronda essas disputas entre
Caracas e Bogotá e, assim, os Estados Unidos comprometeramse a apoiar o governo de Bogotá custe o que custar – prometendo-lhe entregar 1,5 bilhão de dólares durante os próximos 3 anos.
Ao mesmo tempo em que são obrigados a mostrar que apóiam as
negociações de paz na Colômbia, não gostariam que os seguidores das Farc desempenhassem qualquer tipo de papel em um
futuro governo colombiano.
A posição militar dos Estados Unidos na região mudou em
conseqüência do tratado que os obrigou a se retirarem de suas
imensas bases na zona do canal do Panamá, em dezembro de
1999. Todas as forças terrestres, navais e aéreas dos Estados
Unidos tiveram de ser transferidas para outros locais na América Latina e no Caribe. Dado que os Estados Unidos têm acesso aos
aeroportos das Antilhas Holandesas, diante da costa da
Venezuela, pressionaram o governo de Chávez para que os autorizasse a sobrevoar o território venezuelano sem autorização
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prévia enquanto estão envolvidos na campanha contra o tráfico
de drogas na Colômbia.
Chávez, para grande irritação dos estadunidenses, negou-se a
autorizar. Sabendo que essa política é aprovada não apenas pela
esquerda, mas também pela Força Armada da Venezuela, os Estados Unidos terão de admitir que não poderão obter o que desejam,
mesmo continuando a tentar mudar a decisão de Chávez.
Em janeiro de 2000, foi possível perceber como pode ser forte
a pressão dos Estados Unidos, quando o Equador, o terceiro elemento da Grande Colômbia de Bolívar, parecia seguir os passos
da Venezuela. País rico em petróleo, mas endividado, com um
debilitado e incompetente ancien régime, o Equador anunciou sua
intenção de adotar o dólar estadunidense como moeda nacional.
A economia do país estava em crise, com uma inflação em torno de 60% em 1999, e mais da metade de uma população de 12
milhões de habitantes em estado de pobreza crítica. A estratégia
de dolarização do presidente Jamil Mahuad era enfaticamente
combatida pelo principal movimento indígena do país, que representava mais de 4 milhões de indígenas, e por setores importantes das Forças Armadas. Sexta-feira, 23 de janeiro, depois de uma
marcha pela capital, da qual participaram milhares de indígenas,
jovens oficiais, liderados pelo coronel Lucio Gutiérrez e centenas
de indígenas liderados pelo principal líder indígena, tomaram o
edifício do Congresso, em Quito, e anunciaram a criação de um
“parlamento do povo”. Na manhã seguinte, o coronel Gutiérrez
declarou que o governo do presidente Mahuad fora deposto e
substituído por uma junta composta por 3 homens. Gutiérrez era
membro da junta, ao lado de Antonio Vargas, um professor de 40
anos que presidia a Confederação Nacional de Nações Indígenas
do Equador, e Carlos Solórzano, um ex-presidente da Corte Suprema. Depois de discussões com o Exército, Gutiérrez viu-se
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obrigado a abandonar seu posto na junta, em favor do comandante-em-chefe, general Carlos Mendoza. Os militares equatorianos estiveram preocupados durante anos com a capacidade de
mobilização do movimento indígena radical no campo, mas estavam divididos quanto às decisões a tomar. Alguns relatórios
sugeriam que Gutiérrez devia renunciar para evitar um possível
golpe de direita contra os índios. Mais de 20 comandantes regionais não apoiaram o golpe de Gutiérrez e Vargas.
“A insurreição indígena no Equador é um dos fenômenos mais
dramáticos ocorridos nos últimos anos” – disse o general José
Gallardo, ex-ministro da Defesa, citado em um telegrama de
Monte Hayes, o correspondente da Associated Press em Quito.
Gallardo, segundo Hayes, fora “o principal opositor, dentro das
Forças Armadas, aos programas que, no início da década de 1990,
davam assistência social às comunidades indígenas rurais ignoradas pelas agências de governo. O objetivo era aumentar a influência do Exército nos vilarejos e aniquilar qualquer ameaça à
segurança nacional oriunda do movimento indígena radical”.
Horas mais tarde, sábado, 24 de janeiro, o ânimo do general
Mendoza dobrou-se à pressão da embaixada estadunidense em
Quito. Mendoza dissoveu a junta e, levando em conta as sutilezas constitucionais, designou o vice-presidente, Gustavo Noboa,
como novo presidente. Disse aos repórteres que sua decisão fora
tomada depois de discutir com representantes estadunidenses, que
o haviam ameaçado com o congelamento tanto da ajuda quanto dos investimentos estrangeiros se o poder não fosse devolvido ao governo eleito. “Estávamos buscando evitar o isolamento
internacional do Equador” – disse.
Solórzano e Vargas opuseram-se totalmente à dissolução da
junta. Vargas denunciou o general Mendoza por ter traído os
índios e afirmou que sua federação continuaria lutando por uma
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mudança radical. O novo governo tomou represálias rápidas
contra os organizadores do golpe dentro das Forças Armadas e
prendeu 4 coronéis – Lucio Gutiérrez, Fausto Cobo, Gustavo
Lalama e Jorge Brito – e 12 tenentes-coronéis. Cerca de 200
oficiais também foram detidos.
O Equador não é a Venezuela e o coronel Gutiérrez não é Hugo
Chávez. O Equador tem uma elite governante profundamente
racista, e muitos de seus membros unir-se-ão contra a ameaça a
seus privilégios que representa a subclasse indígena. No entanto, a tentativa de golpe de janeiro do ano 2000 tem certa semelhança com o golpe de Chávez de 1992 e há quem acredite que
já viu o epitáfio do ancien régime no Equador.
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23. NOVOS DIREITOS PARA OS POVOS INDÍGENAS
SE EU TIVESSE DE ESCOLHER UMA BELA VENEZUELANA, SERIA UMA INDÍGENA,
DE CARA REDONDA, DE PREFERÊNCIA PEQUENA; É POR ISSO QUE NOSSA
FILOSOFIA NÃO CONSISTE EM ESCOLHER UMA BELA VENEZUELANA...
OSMEL SOUSA, MEMBRO DA ORGANIZAÇÃO MISS VENEZUELA
A
Venezuela produz mais mulheres bonitas do que qualquer
outro país do mundo, segundo os critérios de beleza das organizações que criaram os concursos de “Miss Mundo” e de “Miss
Universo”. No entanto, nenhuma das vencedoras provém dos
povos indígenas, nem da comunidade negra.
Se houvesse apenas um responsável por isso, seria certamente
Osmel Sousa, um desenhista de publicidade que se tornou o chefe
da Organização Miss Venezuela. Trabalha em uma casa pintada
de rosa no centro de Caracas, que lhe serve ao mesmo tempo de
escritório e de escola para as belezas aspirantes. Pintada de rosa
também por dentro, seu luxuoso interior poderia ser o cenário de
um bordel hollywoodiano. Freqüentam esse lugar, durante 5
meses todos os anos, 26 jovens desejosas de aprender os detalhes
mais sutis da aparência, do estilo e da apresentação.
O senhor Sousa senta-se atrás de uma imensa escrivaninha,
localizada em um quarto pequeno, cujas paredes estão todas
cobertas por espelhos. No meio do quarto há um minúsculo púl-
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pito redondo, atapetado de rosa, no qual suas pupilas em potencial podem mostrar seus encantos.
Sousa possui a franquia para operar a Organização Miss
Venezuela e organiza um concurso anual na televisão venezuelana que apresenta as moças de sua escola. “Este programa tem
a pesquisa de audiência do ano” – diz, com orgulho – “portanto, é o mais caro. Os patrocinadores têm de pagar muito dinheiro – o que financia nossa organização e nossa escola”. Sua escola
ganhou várias vezes os concursos de “Miss Mundo” e de “Miss
Universo”.
Como escolhe as moças para sua escola? “Vou às academias
e às festas, como uma espécie de caça-talentos. Fazemos uma
seleção de 40 jovens entre as quais selecionamos 10. E assim
vamos, até chegar a 26. Aí, elas vêm para a escola e se preparam
para o concurso. Freqüentam a escola durante 5 meses. Ensinamos a elas como se prepararem e, também, algumas frases em
inglês, se é que ainda não as sabem. Aprendem a arrumar o
cabelo, a se maquiar como se fossem profissionais, a desfilar na
passarela. E, claro, vão ao ginásio, fazem exercícios, aprendem
como cuidar do corpo.”
Na prática, as moças que freqüentam a escola são subvencionadas. “Não pagam nada. Apenas exigimos delas que se dediquem
em tempo integral. Não podem estudar nem fazer mais nada.”
A cada ano há 50 juízes. “Vêm de todos os estratos sociais”
– informa Sousa – “e mudam todos os anos. São cantores, atrizes, políticos, cabelereiros, desenhistas, ex-rainhas de beleza,
diplomatas. Uma vez tivemos até um embaixador inglês.” Essa é
a organização que define os padrões da beleza venezuelana.
Como faz isso?
“A beleza venezuelana não existe, porque temos uma grande mistura de raças. Se eu tivesse de escolher uma bela
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venezuelana, seria uma indígena, de cara redonda, de preferência pequena; é por isso que nossa filosofia não consiste em escolher uma bela venezuelana, mas em selecionar uma moça
nascida na Venezuela. Pode ter um pai húngaro e uma mãe espanhola, não importa, desde que tenha nascido na Venezuela.”
E quanto às negras? A Venezuela é um país caribenho que um
dia teve uma significativa população de escravos. Os negros
constituem ainda uma importante minoria, localizada nas províncias costeiras. “Sim, temos negras” – diz Sousa, folheando um
catálogo publicitário com os rostos e as silhuetas de anos anteriores. “Veja, sempre temos uma morena. Aqui está uma” – e
aponta para a foto da “Miss Delta do Orinoco”, de pele morena,
em meio a uma dúzia de belezas arianas de raça pura. “Parece
Naomi Campbell, não acha?”
No entanto, existe uma verdade terrível que se sente obrigado a admitir: “Miss Venezuela nunca foi negra”. E por quê? “Porque as pessoas na Venezuela não se sentiriam bem representadas
por uma negra.”
Enquanto a indústria publicitária continuar retratando mulheres brancas nas propagandas e instituições como a Organização
Miss Venezuela continuarem fornecendo exemplos da beleza branca européia, é quase certo que essa situação não vai mudar.
O que acontece com as ex-rainhas de beleza que não são
candidatas à Presidência, como Irene Sáez? Sousa lança um olhar
a seu álbum de fotografias. “Esta está casada com um multimilionário. Esta está casada com um magnata do petróleo. Esta foi
nossa terceira “Miss Mundo” e é atriz nos Estados Unidos. Esta
trabalha para uma empresa telefônica nos Estados Unidos e ganha um monte de dólares. Esta é modelo na Itália.”
Reclina-se para trás em sua cadeira e reflete sobre o êxito de
suas protegidas. “Todas elas são da classe média e todas se casam
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com homens muito ricos. Todas se saíram muito bem; estamos
muito contentes. As moças ricas, na Venezuela, não gostam de
participar de concursos de beleza. Têm dinheiro demais.”
A propósito, quem são os venezuelanos? Um milhão de europeus instalaram-se no país depois de 1945. Serão venezuelanos?
As costas caribenhas vibram ao ritmo dos descendentes dos
antigos escravos africanos. Serão venezuelanos?
Mais de 300 mil indígenas vivem nas zonas fronteiriças do
país: nas regiões esquecidas dos Estados de Zulia e Apure, para
oeste, e Amazonas e Bolívar, para o sul, vivem inumeráveis tribos e nações. Serão venezuelanos?
São perguntas que os “venezuelanos” parecem se fazer raramente. Durante décadas, vociferaram palavras de ordem nacionalistas e se inclinaram em silêncio diante da imagem de Colombo
e de Simón Bolívar e ainda assim não se perguntam quem são,
nem de onde vêm. Trata-se de um desafio que o governo do
presidente Chávez tem de enfrentar e que, aliás, não procurou
evitar: “A história não é simplesmente uma façanha épica” – disse
a Agustín Blanco Muñoz – “é a história de uma cultura, a maneira
como o país foi criado, por que se chama Venezuela, por que
somos desta cor, qual foi o processo que nos trouxe onde estamos
agora”. Em 1999, durante as reuniões da nova Assembléia Constituinte, algumas perguntas sobre a identidade nacional começaram a ser formuladas. As discussões mais acirradas diziam respeito aos direitos que s deviam ser assegurados aos povos
indígenas na nova Constituição.
De 23 milhões de habitantes no total, 316 mil (cerca de 1,4%)
identificam-se como indígenas, mas o número é, seguramente,
muito maior. O grupo mais numeroso, os wayúu, também conhecidos como guajiros, inclui provavelmente 197 mil pessoas, que
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ocupam, principalmente, o Estado de Zulia, entre o lago de
Maracaibo e a fronteira colombiana.
Nas zonas quase desertas do Sul e do Leste vivem cerca de 100
mil indígenas: 44 mil no Amazonas, 35 mil em Bolívar, 21 mil em
Delta Amacuro. Ao norte do Orinoco, 7 mil vivem em Anzoátegui
e 6 mil em Apure.
Acredita-se que há cerca de 26 grupos étnicos na Venezuela, que
receberam diferentes nomes dos colonos através dos séculos. Merecem ser chamados pelos nomes que eles mesmos se dão: wayúu,
warao, pemón, añú, yanomani, jivi, piaroa, kariña, pumé, yecuana,
Yukpa, eñepá, kurripakao, barí, piapoko, baré, baniva, puinave, yeral,
jodi, kariná, warekena, yarabana, sapé, wanai, uruak...
O governo de Chávez interessou-se desde o princípio pelo
futuro dos povos indígenas. Atala Uriana, uma liderança wayúu
do Estado de Zulia, partidária do Pólo Patriótico, foi nomeada a
primeira-ministra do Meio Ambiente; renunciou, depois, para
integrar a Assembléia Constituinte. No processo de eleições para
esta Assembléia, foram feitos acordos especiais para garantir a
eleição de três representantes dos povos indígenas. O Conselho
Nacional Indígena (Conive) realizou um encontro em março para
escolher seus delegados: Nohelí Pocaterra, uma wayúu, trabalhadora social e presidenta do Conselho Mundial de Povos Indígenas; José Luis González, um pemón, sociólogo, membro destacado do Conive e fundador da Associação Indígena do Estado de
Bolívar, e Guillermo Guevara, um jivi, diretor da Organização
Regional dos Povos Indígenas do Estado do Amazonas. Todos
tinham uma longa experiência na promoção dos direitos dos
povos indígenas.
A história da colonização branca e da resistência indígena na
Venezuela é longa, complicada e pouco pesquisada; mas o que
está claro há muito tempo é que a independência, no início do
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século 19, piorou as coisas para os indígenas. Durante 2 séculos,
os espanhóis permitiram que os capuchinhos, os jesuítas e os
franciscanos organizassem missões onde os indíos gozavam de
algumas medidas de proteção. Mas os jesuítas se foram em 1760;
uma fatalidade aguardava os capuchinhos, meio século mais
tarde. Suas extensas missões ao longo do rio Caroní estavam
próximas do Delta do Orinoco, por razões estratégicas, pois ajudavam a resguardar o país dos ingleses e dos holandeses. Em
1817, foram atingidos pela chegada dos exércitos de Bolívar, que
percebera que aquele que controlasse as ricas missões dos
capuchinhos ganharia a guerra. Os missionários, assim como a
maior parte da Igreja católica, estava do lado dos espanhóis e, em
7 de maio de 1817, sofreram as conseqüências de sua opção: 20
missionários, com idades compreendidas entre 32 e 70 anos,
foram massacrados. As tropas do Libertador tomaram as missões,
roubaram seus cereais e seu gado e recrutaram os índios das
missões para seus regimentos.
Ao longo do século 19, os governos nunca tiveram nenhuma
política indígena, salvo a falsa esperança de que as missões fossem restauradas. Os índios foram implacavelmente deslocados do
centro para as fronteiras do Estado.
Mais ao sul, em meados do século 18, os espanhóis começaram a avançar para as águas do Alto Orinoco. Os yecuana, conhecidos então como makiritare, não se intimidaram e durante
anos, entre 1765 e 1775, organizaram uma grande campanha de
resistência. Em uma única noite, no final do ano de 1775, tomaram e queimaram 19 fortes e acampamentos espanhóis, ao longo da estrada que ia de Angostura (Ciudad Bolívar) a La Esmeralda, no Alto Orinoco.
Mais de 100 anos depois, em maio de 1913, durante o auge da
borracha, os brancos contra-atacaram. O coronel Tomás Funes as-
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sumiu o controle de San Fernando de Atabapo, com um pequeno
exército de operários da borracha; o governador da cidade, Roberto
Pulido, foi assassinado, assim como sua esposa, seus irmãos e 130
moradores do lugar. Era simplesmente uma etapa preliminar ao
massacre dos índios makiritare. O coronel Funes dominou a cidade
durante 9 anos, sem controle do Estado central, matando centenas
de índios. Um livro intitulado Os filhos da Lua descreve como “dezenas e dezenas de vilarejos makiritare foram destruídos e seus
habitantes assassinados. Calculando aproximadamente, 2 mil índios foram massacrados durante esses anos trágicos”.
O coronel Funes rendeu-se às forças do general Emilio
Arévalo Cedeño, um famoso guerrilheiro aliado a Maisanta, o
bisavô do presidente Chávez. Funes achou que, rendendo-se,
salvaria sua vida, mas foi fuzilado assim mesmo. Os indígenas da
Venezuela lembram as histórias de sua opressão com muito mais
detalhe do que os descendentes dos colonos brancos.
Em outubro de 1999, os índios pemón que vivem no Sudeste
da Venezuela chamaram a atenção, ao destruir várias tores de
eletricidade. As tores haviam sido construídas atravessando seu
território para transportar uma rede de alta-tensão de Guri ao
Brasil. Os pemón não aceitavam as tores e argumentavam que
aumentar a disponibilidade de energia elétrica barata provocaria o desenvolvimento das empresas mineradoras. As reservas de
ouro da região já haviam atraído uma legião de trabalhadores
pouco preocupados com o respeito aos direitos dos pemón. A
posição oficial do governo consistia em que as tores causavam
muito pouco dano ao meio ambiente; era preciso desenvolver a
região para criar postos de trabalho. O projeto da rede elétrica,
cujo custo chegava a 110 milhões de dólares, não podia ser paralisado porque os contratos já haviam sido assinados com as
cidades do Norte do Brasil.
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Em dezembro, uma das maiores líderes indígenas da América Latina, Rigoberta Menchú, chegou a Caracas para dar sua
benção às mudanças relativas aos índios, instauradas pela nova
Constituição. A guatemalteca Rigoberta Menchú ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1992. Ela foi uma incansável protagonista
da campanha continental que busca garantir o reconhecimento
dos direitos dos povos indígenas.
“Em muitos países, o assunto vem sendo debatido nos últimos
15 ou 20 anos e se imagina que dar direitos aos indígenas pode
ser algo ruim ou que pode afetar negativamente os demais cidadãos. Mas demonstramos que somos patriotas, assim nos colocamos, apesar de sermos atingidos pelo racismo e pela exclusão...
É importante que as pessoas abandonem esses fantasmas, pois
constituem uma trava para o desenvolvimento da coexistência
pacífica entre grupos diferentes.”
A atitude dos colonos brancos em relação aos índios foi
mudando nos últimos anos na América Latina. Em alguns países, os indígenas constituem a maioria da população e estão
começando a visar ao poder, o que é um direito seu. Em outros
lugares, os mestiços estão começando, assim como os negros, a
se perguntar como definir a si mesmos em meio a uma situação
de mudança. Esses serão debates muito importantes do século 21
e a Venezuela de Chávez é um dos países de vanguarda onde tais
temas vêm sendo tratados abertamente.
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24. TEODORO PETKOFF E A OPOSIÇÃO A CHÁVEZ
A TERRÍVEL DERROTA DOS PARTIDOS TRADICIONAIS NAS ELEIÇÕES DO FINAL
DE 1998 E SUA NOTÓRIA FALTA DE APOIO OU DE AFETO NO CORAÇÃO E NA
MENTE DA GRANDE MAIORIA DAS PESSOAS SIGNIFICOU O DESMANTELAMENTO
TOTAL DE TODA A OPOSIÇÃO POLÍTICA ORGANIZADA A CHÁVEZ.
T
odas as tardes, em Caracas, os cidadãos que se interessam pelas
coisas da política compram El Mundo, vespertino do grupo
Capriles, dirigido com grande faro e brilho por Teodoro Petkoff
durante o ano de 1999. El Mundo foi a cara inteligente da oposição a Hugo Chávez. Preciso, informado e terrivelmente irritante,
Petkoff expressou sua visão das coisas com imensa vitalidade.
Teodoro Petkoff, como muitos outros atores da política
venezuelana, é um combatente guerrilheiro de outrora. Nascido
em 1931, filho de imigrantes búlgaros que se estabeleceram perto
de Maracaibo, Petkoff integrou-se às fileiras do PCV em 1949, no
começo da ditadura de Pérez Jiménez, sendo logo levado para o
ativismo político e o jornalismo. Dentro do Comitê Central do
Partido, em 1961, foi um ferrenho defensor da revolta armada
contra o governo de Rómulo Betancourt. Em 1962, acompanhou
Douglas Bravo nas montanhas. Preso duas vezes, esteve na prisão de San Carlos, em Caracas, durante três anos, de 1964 a 1967,
quando participou, com outros presos, de uma fuga espetacular.
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Petkoff foi sempre um dissidente. Discordava cada vez mais
da estratégia adotada pelo PCV, tendo sido um crítico precoce da
invasão da Tchecoslováquia em 1968, um acontecimento apoiado tanto pelo Partido Comunista quanto por Fidel Castro. Em
1969, aceitou o convite que o presidente Rafael Caldera fez às
guerrilhas para que baixassem das montanhas, ou voltassem do
exílio, e, em 1970, ajudou a fundar o MAS, cisão do PCV.
Durante os 30 anos seguintes, Petkoff foi a consciência da
combativa esquerda venezuelana. Eurocomunista de primeira
hora, foi candidato à Presidência em várias ocasiões. Na década
de 1990, à medida que a crise da sociedade venezuelana tornava-se mais aguda, pôs seu nome e sua credibilidade a serviço do
presidente Caldera, o Kerenski octogenário do ancien régime.
Como ministro do Desenvolvimento de Rafael Caldera, deu a esse
governo a possibilidade de sobreviver. Foi, sem dúvida, um típico
gesto de coragem.
Depois, em meados de 1998, quando os líderes do veículo
político que Petkoff ajudara a criar uns 30 anos antes decidiram
unir suas forças à campanha de Hugo Chávez, Petkoff desertou.
Seu desligamento do MAS foi um momento-chave para a esquerda. Uns acompanharam Chávez e os outros se transformaram em
colunistas de El Mundo, o jornal que Petkoff procurou para divulgar sua própria posição política contra Chávez.
Durante a maior parte do primeiro ano do governo de
Chávez, os colunistas de El Mundo e de outros jornais, especialmente o El Universal, bombardearam notícias políticas. Surpreendentemente, para um governo que contava com tantos jornalistas, o regime de Chávez mostrou-se profundamente
medíocre em matéria de relações públicas, tendo sido incapaz
de refutar os ataques da imprensa hostil. Os colunistas, alinhados e dirigidos por Petkoff, fizeram muito barulho; no entan-
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to, eram vozes gritando no vazio, sem respaldo político real.
Quando Petkoff foi obrigado, pelos proprietários do jornal, a
renunciar, aparentemente por razões comerciais, sua debilidade ficou evidente. A terrível derrota dos partidos tradicionais
nas eleições do final de 1998 e sua notória falta de apoio ou de
afeto no coração e na mente da grande maioria das pessoas
significou o desmantelamento total de toda a oposição política organizada a Chávez. Tal foi o descrédito em que caíram os
políticos de ontem que a maioria se aposentou sigilosamente,
ou foi para casa escrever suas memórias.
A única oposição séria, além dos colunistas, vinha dos dirigentes dos poderosos grupos econômicos, tradicionalmente acostumados a vociferar e a serem ouvidos: homens como Vicente
Brito, presidente da Fedecámaras, Antonio Herrera Vaillant, vicepresidente da onipresente Venamcham, a câmara de comércio
venezuelano-estadunidense que reúne milhares de negócios estrangeiros e nacionais; e Luis Eduardo Paul, o presidente da
Câmara Petrolífera. De forma notória, durante os debates sobre
a nova Constituição, esses indivíduos e seus grupos tomaram a
peito, por meio de entrevistas e conferências na imprensa, destacar sua oposição às cláusulas econômicas, contrárias a seus
interesses. Mas eles também, como os colunistas, não tinham
apoio político.
Ocasionalmente, pode-se ouvir alguma voz da era anterior.
Muitos velhos conservadores temem o que chamam de neopopulismo de Chávez. Eduardo Fernández, outrora esperança presidencial do Copei, denunciou o “messianismo, o paternalismo,
o centralismo e a visão financeira da economia” que, segundo ele,
estão se espalhando pela América Latina, ao mesmo tempo em
que “massas apáticas e despolitizadas” substituem os velhos
partidos e ideologias.
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No final de 1999, durante a campanha para o plebiscito sobre a nova Constituição, essa oposição foi ficando cada vez mais
barulhenta, usando os temas tradicionais da direita latino-americana. Expressavam o temor de que a democracia estivesse sendo
destruída com meios democráticos. Atacavam Chávez chamando-o de conspirador em longo prazo e criticando-o por usar de
violência verbal, a “linguagem da guerra civil”. A oposição queixava-se de que já não havia a tradicional cortesia do debate e que
“o país estava dividido em duas metades que não se falam”.
Boa parte da enfática retórica dessa oposição embrionária
pretende provocar os diferentes opositores potenciais a Chávez
para os unir em uma nova cruzada política oposicionista. Chávez,
dizia-se, era contra os partidos políticos, contra o mundo dos
negócios, contra os meios de comunicação e hostil à Igreja católica. Se esses setores da sociedade se levantassem contra a
ameaça representada por ele, um novo movimento político de
oposição poderia ser organizado.
Algumas críticas foram tão longe que sugerem que setores da
Força Armada estão incomodados com o projeto de Chávez e
estariam dispostos a participar de um novo golpe de Estado. Há
gente dentro do velho MBR-200 descontente com o modo como
as coisas estão sendo feitas. Alguns são conservadores, mas
outros esperam que as políticas do governo sejam mais revolucionárias, não menos. Querem que sejam tomadas medidas contra
os ricos e os privilegiados e que haja uma defesa mais firme dos
interesses da Venezuela frente aos Estados Unidos. Além do mais,
como poderá se depreender da leitura deste livro, um golpe não
é coisa de todos os dias, que qualquer oficial descontente possa
levar a cabo. Mesmo quando são planejados por homens competentes e com visão, que tenham apoio popular, podem fracassar
com muita facilidade.
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Com tudo isso, a oposição reaparecerá. Muitos dos políticos
desprestigiados esperam que seus partidos voltem à ação. Isso
aconteceu no Peru do general Velasco Alvarado e na Argentina
do general Perón, onde os velhos partidos voltaram à ação quando o interregno terminou. Mas a Venezuela parece estar atravessando um processo de mudança mais profunda, que transformará
a paisagem política para sempre. Quando a oposição civil
venezuelana finalmente emergir, terá origem nas fileiras do próprio chavismo, de gente descontente com o ritmo das mudanças.
Em janeiro de 2000, quando o governo festejou seu primeiro
aniversário, sinais de profundas dificuldades começaram a aparecer
entre os velhos chavistas. Chávez estava no processo de reestruturação de seu gabinete, mas, antes que pudesse concluí-lo, teve de
aceitar a renúncia de Jesús Urdaneta Hernández, o chefe da Disip
e um de seus mais próximos e antigos companheiros.
A causa primeira da súbita saída de Urdaneta Hernández foi
ter-se negado a atender à solicitação de Chávez que lhe pediu um
relatório sobre as atividades de funcionários da Disip durantes os
saques que tiveram lugar depois das inundações de dezembro. A
imprensa mencionou casos de saqueadores exterminados e,
embora no início o presidente negasse que algo semelhante tivesse ocorrido, foi pressionado por José Vicente Rangel a solicitar
um relatório detalhado a Urdaneta Hernández. Como ministro de
Relações Exteriores, Rangel estava a par das pressões internacionais, provenientes de potenciais investidores e conhecia os
danos que as notícias sobre as execuções estavam causando.
Urdaneta Hernández, como chefe dos serviços de inteligência, tinha idéia do que sucedera, mas disse a Chávez que apenas
poderia apresentar um relato geral e não algo detalhado, já que
devia “proteger” seus homens. Como forma de contra-ataque,
perguntou ao presidente o que fizera com um informe anterior
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da Disip que denunciava atos de corrupção cometidos por Rangel
e Luis Miquilena. Pela primeira vez, Chávez era obrigar a pesar
os méritos relativos das alas civil e militar de seu governo.
Diante de chantagem tão evidente, Chávez não teve dificuldade em pôr-se ao lado dos civis. Diz-se que pôs a mão no ombro
de Urdaneta Hernández e disse-lhe: “Irmão, acho que assim não
poderemos chegar a um acordo”. Urdaneta Hernández foi imediatamente destituído e substituído na Disip por outro incondicional de Chávez, o capitão Eliécer Otaiza.
Nessa mesma semana, Chávez fez mudanças importantes
entre seus principais colaboradores, nomeando um civil, Isaias
Rodríguez, para o novo cargo de vice-presidente, enviando
Ignacio Arcaya para seu posto anterior nas Nações Unidas, em
Nova York, e substituindo-o, como ministro do Interior e Justiça, por Luis Alfonso Dávila. Um novo ministro da Defesa também
foi nomeado, o general Ismael Eliécer Hurtado, substituindo o
general Raúl Salazar.
O capitão Otaiza abriu um inquérito sobre as atividades dos
agentes da Disip que tinham atuado na área das inundações. Não
foi fácil, já que a Disip, enquanto serviço secreto, tinha agentes que
usavam pseudônimo e estavam acostumados a se cobrirem uns aos
outros em caso de críticas externas à corporação. Otaiza teve que
apelar à DIM, a inteligência militar, para acelerar as investigações.
No princípio do mês seguinte, sexta-feira, 4 de fevereiro,
houve grandes manifestações em todas as cidades do país para
celebrar o oitavo aniversário da “intervenção militar” de Chávez
em 1992. Chávez fez um discurso em Caracas no qual afirmou que
o 4-F “valera a pena”.
No entanto, em outros lugares havia mais problemas, já que
o tenente-coronel Urdaneta não tinha a intenção de desaparecer
em silêncio. Reuniu-se com dois dos mais antigos colegas de
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Chávez no MBR-200, o tenente-coronel Francisco Arias
Cárdenas, influente governador de Zulia, e o tenente-coronel Yoel
Acosta Chirinos, o organizador do MVR. Na mesma sexta-feira,
os três oficiais fizeram sua própria celebração na histórica cidade de Coro, onde tornaram pública uma declaração na qual acusavam o governo de perder o rumo. Coro, capital do Estado de
Falcón, está próxima ao mar e foi utilizada muitas vezes, durante
o século 19, para lançar movimentos de oposição.
A principal queixa dos três oficiais era que sua revolução
militar fora absorvida pelos civis. Urdaneta lançou então uma
dura campanha de críticas contra os dois aliados civis de Chávez,
Miquilena e Rangel. Chávez apareceu na televisão para expressar seu pesar e também seu agradecimento a Urdaneta e a seus
companheiros do passado pelo trabalho realizado através dos
anos. Mas explicou que o processo avançara. Já não eram um
pequeno grupo de conspiradores, mas um governo com responsabilidades frente a toda a nação.
A imprensa falou até a exaustão da divisão entre os comandantes, sugerindo até a possibilidade de outro golpe de Estado.
Mas, na prática, Chávez continuou firme no comando, e Arias
Cárdenas e Acosta Chirinos não eram, de forma alguma, tão críticos quanto Urdaneta Hernández. Não foi difícil dividi-los. As
críticas a Miquilena e Rangel foram facilmente desconsideradas.
A causa real dos problemas era as eleições previstas para 28
de maio e a luta no interior da V República pelos cargos. Havia
muitos empregos disponíveis, de governadores e prefeitos, mas
havia candidatos demais, para poucos postos. Membros do MVR
e membros dos partidos que compunham o Pólo Patriótico estavam ansiosos pela aprovação presidencial.
Miquilena, como principal cérebro político a serviço do MVR,
era a figura-chave. Tomou todas as decisões sobre as promoções
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individuais, garantindo que o equilíbrio entre civis e militares, e
entre a direita e a esquerda, fosse respeitado. Assim, terminou
sendo detestado pelos que foram afastados ou eliminados. Mas,
como gozava da confiança do presidente, já que Chávez reconhecia nele a figura mais indispensável de seu governo, seus
opositores foram facilmente neutralizados.
Arias Cárdenas decidiu ir à luta e candidatou-se à Presidência contra Chávez, nas eleições de maio. Apesar de ser um homem
inteligente, com apoio considerável no Estado de Zulia, parecia
impossível que alcançasse o grau de popularidade nacional de
Chávez. Em longo prazo, o problema da formação de uma oposição constitucional e respeitada permanece sem resposta. É francamente insatisfatório ter uma imprensa hostil e irresponsável,
submetida aos interesses de seus ricos proprietários, enquanto o
núcleo original de oficiais, que deu o apoio inicial para a intervenção militar de Chávez, ainda sonha com a ação inconstitucional. Os desprestigiados partidos políticos tradicionais, do
ancien régime, não dão sinais de recuperar sua antiga força. Só
depois das eleições de maio de 2000* será possível discernir a
forma e o alcance das futuras forças de oposição.
*
Como se sabe, as eleições previstas para 28 de maio foram canceladas na última hora
e propostas para o final de julho (N. do. T.)
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EPÍLOGO
OS MILITARES E A SOCIEDADE CIVIL
A IDIÉIA É OS MILITARES VOLTAREM A SUA FUNÇÃO SOCIAL FUNDAMENTAL, DE
MODO QUE, ENQUANTO CIDADÃOS E ENQUANTO INSTITUIÇÃO, POSSAM SE
INTEGRAR AOS PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO DEMOCRÁTICO DO PAÍS.
HUGO CHÁVEZ, ENTREVISTADO EM JANEIRO DE 2000.
O
presidente Chávez interessa-se pela educação e pelo desenvolvimento econômico, mas é, antes de tudo e sobretudo,
um soldado. Duas das figuras históricas que pôs no pedestal, o
próprio Bolívar e Ezequiel Zamora, são indiscutivelmente militares. “Eu entendo a alma do Exército” – disse-me, durante nossa conversa em La Casona – “e faço parte dessa alma.” Um de seus
projetos mais controvertidos é integrar a Força Armada à vida da
sociedade civil.
Para pessoas estranhas à América Latina, e particularmente
depois que o general Pinochet derrubou Salvador Allende, em
setembro de 1973, é quase impossível pensar em um líder militar
sem recordar a imagem grotesca de uma junta com óculos escuros, dirigindo um regime autoritário e repressivo. Poucos se lembram dos dirigentes militares radicais que se colocaram ao lado dos
camponeses e implantaram reformas, apesar da feroz oposição das
oligarquias locais e dos Estados Unidos. Poucos se lembram de que
Allende recrutou oficiais radicais para servir em seu governo.
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Chávez sabe muito bem que muitas pessoas, na América Latina e em outros lugares, hesita freqüentemente em apoiar governos em que a participação militar é importante, mesmo quando foram eleitos democraticamente. Ele explica o quanto desanimada
ficou a sua geração de oficiais no momento do golpe chileno, mas
também gosta de recordar o quanto impressionadas ficaram as pessoas com os governos militares progressistas do Peru e do Panamá. Chávez tem orgulho de seus antecedentes militares e acredita
firmemente que os soldados têm o direito de ir ao encontro da sociedade, não devendo permanecer enclausurados em seus quartéis.
Quer presenciar uma revolução nas relações entre os setores civis
e os militares da sociedade e se felicita pelo fato de os soldados
terem agora direito a voto. José Vicente Rangel explicou-me:
“Chávez faz parte de uma geração atípica de oficiais. Surgiram num
período em que o Exército venezuelano mal havia saído da luta guerrilheira dos anos de 1960. Durante esse tempo, o Exército – e todas as
Forças Armadas da região – haviam sido “pentagonizado”.* A escola
estadunidense das Américas, no Panamá, os “conselheiros” militares
estadunidenses e a “doutrina de segurança nacional” desempenharam
um papel muito importante”.
Uma vez desaparecido o fenômeno das guerrilhas, na década de 1970, “os oficiais começaram a buscar novas motivações.
Começaram a estudar nas universidades e estabeleceram vínculos com a sociedade civil”. À medida que a situação econômica
*
“Pentagonizado” refere-se ao Pentágono, o prédio da Secretaria da Defesa e do Estado-Maior das Forças Armadas estadunidenses, que tem a forma de pentágono, ou
seja, uma figura geométrica com 5 lados; refere-se à influência que sofrem os militares latino-americanos que fazem cursos na Escola das Américas, situada no Panamá, mantida e orientada pelos EUA.
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do país piorou, os oficiais, que já não estavam confinados no
gueto dos quartéis, começaram a viver a experiência da crise em
primeira mão. Foram também afetados por outro fator decisivo:
“A corrupção teve um impacto bastante específico nas Forças Armadas. Boa parte do corpo de oficiais estava envolvido. Creio que foram
levados pela liderança política civil, creio que, sem dúvida, corromper
os oficiais superiores era garantia de seu apoio e neutralizava seu
descontentamento. Isso talvez tenha neutralizado as camadas superiores, mas criou muito descontentamento nas camadas inferiores, entre oficiais que estavam estudando e tinham contato com os estudantes. Começaram a perceber que os oficiais superiores participavam da
‘farra’ e que muitos deles enriqueciam rapidamente”.
Quando discuti o assunto com Chávez em La Casona, ele
enfatizou a humilhação dos jovens oficiais de sua geração:
“A falta de equilíbrio no país afetou os militares. Num extremo de
pêndulo estavam os ‘gorilas’, e no outro, os ‘eunucos’. Durante muitos
anos, os militares venezuelanos foram ‘eunucos’: não estávamos autorizados a falar; tínhamos de observar em silêncio, enquanto presenciávamos o desastre causado por governos incompetentes e corruptos.
Nossos oficiais superiores estavam roubando, nossas tropas quase não
tinham o que comer; e tínhamos de nos submeter a uma disciplina
férrea. Mas que tipo de disciplina era essa? Era cúmplice do desastre”.
Chávez quer levar os militares para a sociedade civil, “mas não
como ‘gorilas’, não como Hitler ou Mussolini, não, nada disso. A
idéia é os militares voltarem a sua função social fundamental, de
modo que, enquanto cidadãos e enquanto instituição, possam se
integrar aos projetos de desenvolvimento democrático do país”.
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Durante o primeiro ano do governo de Chávez, os militares
trabalharam em seu próprio projeto socialdemocrático, chamado Plano Bolívar 2000. “Graças a Deus, tínhamos a experiência
do Plano Bolívar 2000” – disse-me Chávez. – “Estivemos trabalhando nisso durante dez meses, na zona litorânea, e foi muito
bom, porque os militares estavam sensibilizados com esses temas.
Já haviam trabalhado em tarefas humanitárias no que seria uma
zona de desastre; não custava nada utilizar esse enorme potencial humano para ajudar em operações para resgatar gente e
salvar vidas.”
Reconhece que, agora, os militares vão mais longe, integrando-se por si, pouco a pouco, à direção política do país, mas não
na política de partidos. Chávez é profundamente hostil aos dois
partidos que dominaram o país durante tantos anos e, na realidade, não gosta de partidos políticos, uma noção que em parte
adquiriu dos teóricos da Causa R, que desenvolveram uma ideologia similar à dos Verdes alemães. Seu próprio partido, o MVR,
está moribundo e os dois principais partidos que o apóiam, o
MAS e o PPT, estão em permanente conflito. Chávez gostaria
também que os militares praticassem um modesto internacionalismo.
Vão aos Estados Unidos, mas também vão a Cuba, à Bolívia,
ao Brasil, para explicar o Plano Bolívar 2000. Explicam às pessoas que as Forças Armadas venezuelanas desempenham agora
uma função social. “Afinal, já não pensamos em entrar em guerra
com ninguém, nem com a Colômbia, nem com o Brasil, nem com
a Guiana, nem com Cuba, com ninguém.”
O Equador é um país onde a mensagem de Chávez foi ouvida com clareza, em janeiro, quando os oficiais radicais uniram-se aos camponeses dos Andes equatorianos para tentar derrubar o governo.
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Os jornalistas sempre foram suscetíveis aos encantos dos líderes carismáticos da América Latina e eu não sou nenhuma exceção.
Graham Greene apaixonou-se pelo finado general Omar Torrijos, o
governante de esquerda do Panamá, que convenceu Jimmy Carter
a devolver o canal do Panamá. Ele é um dos modelos de Chávez.
Gabriel García Márquez nunca dissimulou seu afeto por Fidel Castro, outro herói de Chávez, enquanto os intelectuais peruanos ficaram hipnotizados pelo falecido general Juan Velasco Alvarado, um
pioneiro da “via militar para o socialismo” nos anos de 1960 – um
exemplo que Chávez também aprecia. Hugo Chávez possui o mesmo carisma magnético que seus predecessores; é um atraente e audaz
tenente-coronel, mas tem uma diferença: sua tentativa fracassada
de tomar o poder pela força foi ratificada depois em eleições presidenciais por um povo agradecido. O entusiasmo de Chávez pelas
mudanças é contagiante. Sua busca de uma alternativa para a vida
das favelas é ambiciosa, porque a Venezuela ainda é uma sociedade de quadrilhas e de saqueadores – como mostraram as reportagens
sobre as inundações de dezembro. Com seu comportamento sem lei,
os jovens das favelas apenas seguem o exemplo dos maiores e
melhores das altas esferas do país, que roubaram e saquearam a
riqueza nacional em níveis sem precedentes.
Transformar essa gente amoral, que vive em pocilgas, em
pioneiros voluntários, que partem para fazer florescer o deserto,
exige uma grande dose de imaginação e muita fé. As pessoas que
perderam suas casas nas inundações não vão pensar que a experiência é fácil. Você, viveria em uma favela com vista para o
Caribe, que desaba no mar a cada vinte anos, ou se mudaria para
as distintas margens do Orinoco, repletas de insetos desagradáveis e de doenças, onde nunca na história houve povoamento em
massa? Preferiria estar num barraco em Caracas, cercado de
amigos e vizinhos, com a possibilidade de ser camelô, ou gosta-
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ria de ir para outro lugar do país, quando um governo benevolente proporciona casa e, eventualmente, terra para trabalhar?
São opções reais e difíceis.
No programa revolucionário do governo de Chávez há muitas aspirações utópicas, e ainda há muito a dizer. Tornou pública uma nova agenda de desenvolvimento para a América do Sul
e uma também para Washington. Sua hostilidade para com o
neoliberalismo e a globalização, seu apoio aos direitos dos povos indígenas e sua busca de uma estratégia agrícola que permita
a seu país alimentar seu próprio povo, levam a que seja considerado um aliado tácito dos movimentos de protesto que sacudiram Seattle em novembro de 1999, durante a conferência da
Organização Mundial do Comércio. A globalização talvez seja a
doença do novo milênio, mas os anticorpos para combatê-la estão
sendo criados lentamente.
Os líderes radicais na América Latina tendem a desaparecer.
Em eleições livres, saem vitoriosos aqueles que estão tão longe
da esquerda que é fácil de serem controlados pelos governos de
Washington. Os sucessivos governos estadunidenses dispuseram
de inúmeras armas para destruir os regimes que desaprovam,
desde o assassinato, ou a invasão militar, até a franca desestabilização por meios políticos e econômicos, passando pelo financiamento de grupos de oposição e pela manipulação de campanhas pela imprensa hostil.
Os estadunidenses mantiveram-se em silêncio quanto a Chávez.
Mesmo a oposição conservadora venezuelana, tão acostumada a
começar seu discurso em Washington, concentrou suas atividades
em artigos revanchistas na imprensa caraquenha. Os estadunidenses,
preocupados com as suas eleições presidenciais, concentrados principalmente na guerra civil na Colômbia e, agora, nos acontecimentos no Equador, ainda não sabem o que pensar de Chávez. A opo-
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sição venezuelana sabe exatamente o que pensa, mas está tão desarticulada devido ao colapso do ancien régime, é tão rechaçada e
detestada, que ainda não dá sinais de recuperação.
O que devemos, então, fazer, com Hugo Chávez? É um democrata ou um ditador em gestação? Representa, por acaso, uma
volta anacrônica ao passado, ao reivindicar modelos econômicos que fracassaram e receitas políticas de ontem? Ou representa um futuro possível para a América Latina, uma verdadeira
alternativa para a globalização e o neoliberalismo?
Eu o vejo como uma figura interessante e significativa, um
homem honesto que leva no coração os interesses de seu povo, que
espera mudar a história de seu país para o bem. Não acabará se
transformando em um Mussolini, nem tampouco é um perigoso
bonapartista outrora evocado brilhantemente por Marx. Chávez é
um homem de esquerda, um radical em busca de novas formas de
fazer política, de novas estruturas de organização econômica e de
caminhos diferentes para conceber o futuro das relações internacionais dentro da América Latina e entre as duas Américas.
Obviamente, tem uma visão utópica, o que não é raro em um
continente onde se diz que as utopias florescem, e seria ingênuo
não imaginar que seus sonhos possam algum dia serem traídos.
Porém, reuniu à sua volta as pessoas mais preparadas do país e,
em um ano apenas, dispôs dos cadáveres dos velhos partidos
políticos, tendo lançado as bases de um quadro de recuperação
da história da Venezuela que talvez leve a um renascimento
cultural capaz de resistir ao “colosso do Norte”.
Com uma atitude inteligente e criteriosa em matéria de política petrolífera e com uma retórica poderosa, dirigida contra o
neoliberalismo, pode ser que consiga fazer a andar a economia
venezuelana, em prol das massas empobrecidas que, em boa
parte, não se beneficiaram com os avanços do século 20. Talvez
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isso não aconteça. Talvez tudo termine em lágrimas. Muitos
projetos radicais na América Latina foram abandonados, como
cadáveres na forca que o vento balança e faz girar. As propostas do comandante Chávez merecem um destino melhor.

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