kimbundu em uma sanzala angolana (pepetela) - SIALA

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kimbundu em uma sanzala angolana (pepetela) - SIALA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
KIMBUNDU EM UMA SANZALA ANGOLANA (PEPETELA)
Denise Rocha, UNILAB/UEL1
Resumo: Narrada por um escravo analfabeto, por meio da ancestral prática da oralidade, a trajetória
do clã mestiço de Baltazar Van Dum, que vivia em uma sanzala2 nas cercanias de Luanda, durante
os anos 1641-1648, é o tema de A Gloriosa Família: O tempo dos Flamengos (1997). A obra do
escritor angolano Pepetela apresenta a prática do comércio negreiro e a luta, em Angola, entre os
holandeses, representantes da Companhia das Índias Ocidentais, e os portugueses, súditos
administrativos e militares da coroa, a fim de levar mão de obra cativa para as lavouras de cana-deaçúcar em Pernambuco e Bahia. O objetivo desse estudo é demonstrar a permanência de palavras
em kimbundu, que era a língua geral do antigo reino do Ngola, no português da contemporaneidade,
conforme a narrativa de Pepetela.
Palavras-chave: Literatura angolana; Pepetela; kimbundu; oralidade.
Introdução
Baltazar Van Dum, personagem histórico mencionado na obra História Geral das Guerras
Angolanas (1680), do português António de Oliveira Cadornega, se tornou protagonista do romance
A Gloriosa Família: O tempo dos Flamengos (1997), de Pepetela.3 Nessa narrativa sobre o conflito
entre os holandeses e os portugueses na disputa do tráfico negreiro, nos anos 1641 a 1648, o
ficcional Van Dum, um conhecido negreiro, falou para o filho Rodrigo (1643): “Temos resgatados
peças sempre entre os que falam kimbundu,4 que são os melhores escravos sem dúvida”. 5
1
Dra., Instituto de Humanidades e Letras, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB), Redenção-CE.
Estágio Pós-Doutoral, sob supervisão do Prof. Dr. Sérgio Paulo Adolfo, na Linha de pesquisa Diálogos Culturais do
Programa de Pós-Graduação em Letras-Estudos Literários, na Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR.
2
Sanzala significa aldeia e conjunto de cubatas. (PEPETELA, 1999, p. 408). No romance o termo é utilizado para se
referir à propriedade rural de Baltazar Van Dum que tinha uma casa grande e várias habitações (cubatas).
3
Pepetela (pseudônimo de Arthur Carlos Maurício Pestana dos Santos) é tradução do sobrenome Pestana em umbundu,
uma das línguas faladas em Angola.
Formado em Ciências Sociais, Pepetela, (1941-), que foi combatente nas lutas de independência em Angola (19611974), escreveu romances com fundo histórico, como forma de reflexão sobre alguns episódios da historiografia oficial
portuguesa que exaltava o processo de colonização dos lusos. Por meio de detalhadas pesquisas históricas, ele
aprofundou seu conhecimento do passado de seu país para melhor compreensão do presente e para escrever, de maneira
crítica, A revolta da casa dos ídolos (1980), Yaka (1984), Luejí: O nascimento dum império (1989) e A Gloriosa
Família: O tempo dos flamengos (1997).
4
Os termos em negrito, que aparecem ao longo do artigo, foram utilizados pela autora para realçar os substantivos e as
expressões em kimbundu.
5
PEPETELA. A Gloriosa Família: O tempo dos Flamengos. 2. impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 85.
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O kimbundu,6 que pertence ao grande grupo das línguas africanas designadas de bantu, é a
língua materna do narrador de A Gloriosa Família, um escravo mudo e surdo, presenteado pela
rainha Jinga a Baltazar Van Dum, que acompanha seu senhor, como uma sombra, a todos os locais,
seja no âmbito familiar, agrícola, político ou de entretenimento (jogos de baralho em uma das três
bodegas locais), entre outros. A permanente presença do cativo junto a Van Dum desperta a
desconfiança do português Domingues Fernandes. Este senhor, receoso de que o servo pudesse
revelar algum segredo, questiona a confiança depositada nele pelo amo, o qual contesta:
- Não tem perigo. É mudo de nascença. E analfabeto. Até duvido que perceba uma
só palavra que não seja de kimbundu. Sei lá mesmo se percebe kimbundo ... Umas
frases se tanto! Como pode revelar segredos? Este que é mesmo um túmulo, o mais
fiel dos confidentes. Confesse-lhe todos os seus pecados, ninguém saberá, nem
Deus. (PEPETELA, 1999, p. 393)
Testemunha ocular dos fatos ocorridos durante os sete anos (1641-1648) da ocupação
holandesa em Angola, o escravo, como um griot, incluiu em sua narrativa várias expressões em
kimbundu, ao evocar a trajetória do personagem histórico, Baltazar Van Dum, mesclada com
elementos ficcionais:7 Um conhecido comerciante de escravos, casado oficialmente com a nativa
negra, Inocência, e pai de filhos legítimos e bastardos, que tinha uma sanzala (propriedade rural
com várias casas) perto de Luanda, na área da lagoa do Kinaxixi e um arimo (plantação) na
margem do rio Bengo. No sítio Van Dum viviam Baltazar, sua esposa, filhos, escravos e forros em
um ambiente multiétnico e multilinguístico, no qual eram falados diversos idiomas: flamengo,
português e kimbundu.
Van Dum e seus patrícios, segundo o narrador-escravo, eram chamados de “mafulos (nome
por que chamamos os flamengos) [...]”. ( p. 12).
6
No romance de Pepetela aparecem as palavras kimbundu /kimbundo e Kwanza/Cuanza.
O ficcional Baltazar Van Dum era claro, corado e de olhos azuis, nascido em Bruges em uma família católica, filho
mais velho de um comerciante que desejava que o mesmo estudasse Medicina. Mas ele alistou-se no exército espanhol
que estava em guerra crônica com a Holanda. Cansado do cotidiano em quartéis e em fortalezas, vividos na Catalunha e
Nápoles, pediu sua desmobilização e viajou até Portugal que estava unificado com a Espanha dos Filipes (1580-1640).
Em uma taberna perto da Ribeira das Naus, no rio Tejo, ele ficou sabendo sobre o alto preço de venda de um escravo e
envolvido pelo sonho de enriquecer imensamente com o comércio humano, partiu, aos 26 anos, em um navio espanhol
para Luanda, crente na existência uma árvore maravilhosa, a “árvore das patacas”, a qual “[...] bastava sacudir para
caírem as moedas de ouro, na Índia era coberta de especiarias, enquanto em África era coberta de escravos.”
(PEPETELA, 1999, p. 17).
No dia 29 de outubro de 1616, Baltazar chegou em Luanda, que era colônia portuguesa desde o final do século XVI, e
iniciou uma carreira como traficante de escravos, que foi abalada com a chegada dos holandeses no ano de 1641, os
quais o envolveram, posteriormente, no comércio que estava sendo enfraquecido pelos lusos que controlavam as
estradas do sertão.
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A narrativa de Pepetela contém um glossário final, principalmente formado por palavras em
kimbundu, kikongu, umbundu e tchokue. Entre aquelas vinculadas à fauna, flora, culinária, etc.
destacam-se vários vocábulos em kimbundu que foram incorporados ao léxico da língua
portuguesa:
. ARIMO- Plantação, lavra (corruptela do kimbundu usada no séc. XVII, hoje em
desuso). [...]
. CANZAR- Saquear (usado por A. O. Cadornega, a partir do kimbundu Ku-Kanza,
saquear). [...]
. FUNJI- Massa de fubá de mandioca ou milho cozida (kimbundu). [...]
. KILOMBO- Acampamento guerreiro (Umbundu, Kimbundu e outras). [...]
. KIMBANDA- Curandeiro, adivinho (kimbundu e outras). [...]
. KIMBO- Aldeia (kimbundu e outras). [...]
. KITANDA- Mercado (kimbundu). [...]
. MAKA- Conflito, discussão (kimbundu). [...]
. MALUVO ou MARUVO- Bebida fermentada extraída da palmeira (kimbundu).
[...]
. MUXIMA- Coração (kimbundu). Fazer boa muxima: lisonjear [...].
(PEPETELA, 1999, p. 407 e 408)
1-O kimbundu em Angola.
Angola é um país, que além do português, tem várias línguas nacionais como o umbundu, o
kikongo e o kimbundu, entre outras.8 O umbundu (bantu) é falado pelo grupo ovimbundu (centro do
país, Kwanza sul, Benguela, Bié, Huambo e parte de Huíla); o kikongo, falados pelos bakongo
(norte), e o chokwe-lunda e o kiokolunda (nordeste), nas províncias de Cabinda, Zaire e Uige. 9 Tal
como em Moçambique, em Angola não se formou um crioulo com base portuguesa.
O kimbundu (bantu) é a terceira língua mais falada (20%) no país pelos mbundus, mbakas,
ndongos e mbondos, cuja área sociocultural abrange variantes como o “axiluwanda, iwangu, puna,
ndembo, imbanga, holo, Karl, xinji, minungu, bambeiros, kibala, hako, sende, ngola jinga, songo,
mbondo, kisama e libolo”. (LINGUAS, s.d., on-line).
8
As outras línguas nacionais são “O quicongo (ou kikongo), falado no norte (Uíge e Zaire) tem diversos dialetos. Era a
língua do antigo reino do Congo. Ainda nesta região, na província de Cabinda, fala-se o fiote ou ibinda. O chocué (ou
tchokwe) é a língua do leste, por excelência. Têm-se sobreposto a outras da zona leste e é, sem dúvida, a que teve maior
expansão pelo território da actual Angola. Desde a Lunda Norte ao Cuando Cubango. Cuanhama (kwanyama ou
oxikwnyama), nhaneca (ou nyaneca) e mbunda são outras línguas de origem bantu faladas em Angola”. LINGUAS.
Associação dos Naturais e Amigos de Icolo e Bengo. Disponível em:<www.anabengo.org. >. Acesso em: 12 mai. 2014.
9
LOURENÇO, Eduardo et alii. Atlas da língua portuguesa na História e no Mundo. Lisboa: Imprensa-Nacional e Casa
da Moeda, 1992, p. 58.
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No artigo A língua kimbundu, o autor Rui Ramos informa que o kimbundu é falado por
cerca de um milhão de pessoas em Angola, bem como esclarece que:
Ao contrário de muitas línguas europeias, o Kimbundu caracteriza-se pela
prefixação na formação do género, dos tempos, e pessoas verbais.
As palavras concordam entre si pelo prefixo o que confere à língua grande
musicalidade e ritmo.
O dikamba diami dia-mu-zeka (O meu amigo está a dormir). 10
Ramos enfatiza no mesmo artigo que “o kimbundu foi uma das línguas de África que mais
conviveu com o português, pelo menos desde o século dezasseis até à actualidade”. (RAMOS. s.d,
on-line).
A língua portuguesa falada em Angola teve influências lexicais de várias línguas nacionais,
principalmente do kimbundu:
. nomes próprios das pessoas: Mbanba, Saki, Hungo;
. nomes dos deuses: Nzambi, Kalunga;
. nomes geográficos: das cidades: Madimu, Quilende, Ngala, Akala; dos rios:
Caluango, Kunene, Cassai; das regiões: Lombe, Quibaxe, Malambo, Luangue;
. nomes de vários objectos: instrumentos: mbuetete, quissange, chinguvos; potes:
disanga, panda, cachimbo: pêxi;
. nomes das espécies de fauna: aves: klingungu, kingungua, kinzuá; antílopes:
palanca, gunga;
. nomes da flora africana: árvores: mibanga, milemba, imbondeiro; frutas: jinjilu,
mákua;
. alimentação: canjica, funje, mudimbu;
. partes do corpo: dentes: maju; cabelo comprido: kindumba;
. nomes de vários representantes de várias camadas sociais: cipaio, jingamba,
makota, muata;
. jogos, danças e diversões: dimbuela, kindembele, cabetula, kizomba, hole, etc. 11
Os falantes desse idioma (bantu) são os ambundu (mbundu), mbakas, ndongos e mbondos,
que vivem a partir do mar, de Luanda, nas regiões do centro-oeste, e do rio Kwangu, rumo ao leste,
e para o sul e médio do rio Kwanza, envolvendo as províncias de Luanda, Bengo, Kwanza Norte e
partes do Kwanza sul. (LINGUAS, s.d., on-line).
No ano de 1575, Paulo de Novais contatou os ambundos, falantes de kimbundu, cujo rei
Ndembi enviou ao rei luso alguns escravos, 40 peças de pau aromático, 40 peças de argolas de
10
RAMOS, Rui. A língua kimbundu. Disponível em: < http://www.ciberduvidas.com/articles.php?rid=351 >. Acesso
em: 12 jun. 2014.
11
CZOPEK, Natalia. Lá porqué você fala uma língua nacional, não é mais angolano do que eu: Algumas observações
sobre a realidade linguística de Angola. Romanica Cracoviensia, v. 11, p. 83-89, 2012, p. 85. Disponível em:<
www.ejournals.eu/pliki/art/1528/>. Acesso em: 12 mai. 2014.
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cobre e 35 presas de elefante. Dez anos mais tarde, o português retornou com 7 ou 9 navios com
cerca de 700 soldados, marinheiros, artífices e alguns jesuítas com o objetivo de encontrar sal,
jazidas de cobre e prata.12 Novais ocupou a ilha de Loanda,13 que pertencia ao rei do Congo, depois
a terra firme, onde foi iniciada a colonização com a fundação de São Paulo de Assunção de Loanda
em 25 de janeiro de 1576, e a construção de feitorias, fortalezas, casas, capelas, estabelecimentos
comerciais e plantações. Esse processo de ocupação, que foi expandido em aldeias localizadas ao
longo do rio Kwanza, cujos sobas (chefes) se tornaram vassalos da coroa de Portugal, foi
interrompido com a ocupação de Luanda pelos holandeses no ano de 1641.
Mapa de Angola (1641-1648).
Rios Dande, Bengo, Kwanza, Lucala e Kwango
Fortalezas portuguesas no rio Kwanza: Muxima, Cambambe e Massangano.
(locais citados no romance de Pepetela)
2- Uma língua nativa no romance de Pepetela.
12
SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o limbambo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 262.
A palavra Loanda/Luanda origina-se de lu-ndandu. O prefixo lu (uma das formas do plural nas línguas bantu) é
comum nas palavras de regiões litorâneas, de bacias de rios ou regiões alagadiças. E, nesse caso, refere-se à restinga
circundada pelo mar. O termo ndandu significa objeto de comercialização, de valor, e tem relação com os pequenos
búzios, recolhidos na ilha de Luanda, que eram a moeda do antigo reino do Congo. Os povos ambundus (mbundus),
falantes de kimbundu, eliminavam alguns sons -Lu-ndandu a Lu-andu. No processo de aportuguesamento, o vocábulo
passou a ser feminino (Loanda/Luanda), pois se referia à ilha. PIRES, João. O Lobito e o Umbigo do Mundo. Boletim
da Câmara Municipal do Lobito. Secção “Divulgação” . Segundo Semestre 1965. Disponível em: < http://www.angolasaiago.net/cidmae15.html>. Acesso em: 12 jun. 2014.
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Premiada com o Prémio Camões 1997, a narrativa A Gloriosa Família: O tempo dos
flamengos
14
apresenta a vida do clã Van Dum durante os sete anos da ocupação holandesa em
Luanda e no sertão: o flamengo Baltazar constituiu uma dinastia de filhos da “casa grande”
(Gertrudes, Matilde, Ana, Rosário, Rodrigo, Benvindo, Ambrósio e Hermenegildo) e do “quintal”
(Nicolau, Catarina e Diogo), todos com nomes em língua portuguesa. Eles falavam flamengo,
português e kimbundu.
Os nomes dos rios existentes antes da chegada dos portugueses permaneceram: Kwanza,
Lucala, Dande, Bengo, entre outros, que podem ser vistos no mapa cima.
Na ilha de Luanda, que era propriedade do rei do Congo, vassalo da coroa portuguesa, Paulo
Dias Novais e cerca de 40 portugueses viveram e fundaram a Igreja de Nossa Senhora do Cabo
(1575) antes de se mudarem para o continente: “Se o continente pertencia aos reis do Ndongo,
descendentes de Ngola Kiluanje, a ilha pertencia ao rei do Kongo por causa dos zimbos”.15 (p. 43).
A ilha localiza-se muito próxima de Luanda e na narrativa de Pepetela é o local do início do
romance e de celebração do matrimônio entre Rodrigo Van Dum e Nzuzi, filha do governador Dom
Agostinho Corte Real. Os moradores desse local, que tem cerca de 7 km de comprimento, tinham
um costume peculiar em relação aos dos luandenses: “Mas em Luanda não nadavam no mar. Como
se este lhes fosse interdito, Aliás só os axiluanda, os habitantes da Ilha, tomavam banho no mar”.
(p. 31)
O extenso rio Kwanza tem 17 ilhas, e uma delas chama-se Ensandeira: “nome que os
portugueses aprenderam no Kongo e deturparam logo para designar a nossa mulemba. De facto, no
14
A presença do flamengo, Baltazar Van Dum, antigo morador de Luanda, que foi envolvido em querelas por causa do
comércio de escravos, durante os sete anos da conquista holandesa (1641-1648), época na qual os antigos colonizadores
portugueses recuaram para o interior, para Massangano, foi relatada na obra História Geral das Guerras Angolanas
(1680), do português António de Oliveira Cadornega, que viveu muitos anos nesse país:
“Em a cidade assistia hum homem por nome Baltazar Van Dum, Flamengo de Nação, mas
de animo Portuguez que havia ido dos primeiros Arrayaes para a Loanda com permissão de
quem governava os Portuguezes o qual esteve posto em risco de o matarem os Flamengos,
a respeito que antes desta tregoa corrente [...]”. (CADORNEGA apud PEPETELA, 1999, p.
19).
Esse trecho da obra de Cadornega, que documenta a existência histórica de Baltazar Van Dum, faz parte do prefácio do
romance A Gloriosa Família: No tempo dos Flamengos, de Pepetela (1997), evidencia a intenção do autor em basear-se
em fontes reais, para construir os conflituosos bastidores do tráfico negreiro em Angola: a luta entre os holandeses,
representantes da Companhia das Índias Ocidentais, e os portugueses, súditos administrativos e militares da coroa, com
o objetivo de levar mão de obra cativa para as lavouras de cana-de-açúcar em Pernambuco e Bahia.
15
Zimbos ou jimbos eram um tipo de búzios que tinham valor comercial. Eram “a moeda do reino”. (PEPETELA,
ibidem, p. 43).
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meio da ilha havia uma mulemba imperial, das que podem dar sombra a mais de pessoas”. (p. 143).
Nota-se que os portugueses denominaram a árvore frondosa e de grande porte com o adjetivo
imperial, sinalizando uma mentalidade colonial.
Ao patrício Croesen, secretário da Companhia das Índias Ocidentais, Baltazar Van Dum
esclareceu sobre a ocupação de algumas ilhas, uma das quais era administrada por Fernão
Rodrigues, antigo colonizador:
- Tem uma ilha, mas é mesmo à frente de Massangano. Dessa ilha ele controla a
navegação no Kwanza, é o seu quartel-general. Fernão Rodrigues foi nomeado
capitão do Kwanza. O que tem a ilha perto da foz é Gaspar Gonçalves, o
Ensandeira.
-É isso, é isso, Ensandeira, já ouvi falar. É nome português?
- Não, é nome daqui da terra, exactamente do Kongo. É o nome de uma árvore
muito grande que há nessa ilha. Outros lhe chamam mulemba. A árvore deu o
nome à ilha. A ilha ao proprietário. (PEPETELA, 1999, p. 36).
Algumas árvores da região têm uma dimensão transcendental, conforme o narrador: “Este
sítio do qual nos aproximamos agora, passada a lagoa do Kinaxixi com suas mafumeiras e
mulembas povoadas de espíritos [...]”. (p. 19).16
As aldeias (Muxima, Cambambe e Massangano), localizadas ao longo do rio Kwanza, em
cujas proximidades foram erguidas as fortalezas portuguesas, mantiveram o nome em kimbundu:
“À medida que andavam, recebiam reforços de Massangano, da Muxima, de Cambambe”. ( p.
144). Do lado dessas fortificações se realizavam feiras de compras e vendas de escravos.
O narrador-escravo informa sobre a viagem junto a seu amo até Massangano, que era a
capital dos portugueses depois da ocupação de Luanda pelos holandeses:
Demorámos duas horas até ao Lucala, muito perto do sítio onde este deságua no
Kwanza. Massangano ficava na confluência dos dois rios, que formam um ângulo
agudo, com a fortaleza num cabeço. [...] Nos aproximamos do rio Kwanza e da
fortaleza. [...] À direita entravam nele as furiosas águas do Lucala. (PEPETELA,
1999, p. 255 e 259).
Em Massangano, eles foram informados que: “Há um mês, Gaspar Borges Madureira
derrotou a rainha Jinga no Dande. A própria estava na batalha, segundo diz quem combateu”.
Cadornega informou-os sobre o confronto militar de tropas portuguesas contra as da soberana:
16
Mafumeira:
VOCÁBULOS
KIMBUNDU-PORTUGUÊS.
Disponível
http://www.angolabelazebelo.com/vocabulos-kimbunduportugues/ >. Acesso em: 12 jun. 2014.
em:
<
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A vitória foi importante, não só porque foram muitos os efectivos envolvidos, mas
sobretudo porque conseguimos tomar o kilombo da rainha.[...] Foram muitos
guerreiros apanhados, os que sobraram da degolação feita pelos nossos jagas, já
sabe como é. Também alguns makotas e sobas importantes, mas esses foram
decapitados. (PEPETELA, 1999, p. 257, 261 e 263).17
Algumas denominações de regiões relacionadas ao governo da rainha, aliada dos
holandeses, conservaram os nomes, segundo o narrador, filho de uma escrava e de um padre
napolitano, que evoca as reminiscências de sua infância vivenciadas na corte: “Posso dizer que sou
um filho do Kwanza, pois nasci no meio dele, nas ilhas perto de Maopungo, onde foi a capital de
Jinga em épocas de defesa, Pungo Andongo, a terra dos enormes pedregulhos que pareciam escalar
até ao céu”. (p. 259).
Alguns territórios ao sul foram conquistados pelos nômades jagas, que após ocuparem um
local, deixavam um chefe e seguiam: “Assim dominaram o Kassanje, a Matamba, o Libolo e toda
a margem sul do Kwanza até Benguela”. (p. 44). Verificar no mapa acima.
São Paulo de Luanda, construída à beira-mar, tem uma estação seca, sem chuvas (maio a
agosto), conhecida como cacimbo, com alguns dias úmidos que causam uma névoa intensa: “O
general era magro e estava forrado de aço. [...] Os olhos brilhantes se dirigiram para a fortaleza do
Morro, visível agora, pois a névoa do cacimbo se erguia gradualmente”. (p. 197).
A vila não tinha água potável nas proximidades: “Para as necessidades da cidade baixa, um
patacho ia todos os dias ao Bengo encher barricas de água. [...] Tinha sido escavado um poço na
Lagoa dos Elefantes, a sul, e era daí que saía a água para os poderosos. O poço se chamou Maianga
do Povo”. (p. 20). Não havia nas proximidades de Luanda, tampouco salinas marítimas: “O sal
tinha de vir de Kissama, das minas naturais, enquanto não chegasse o que era produzido nas salinas
de Benguela, o melhor que se conhecia”. (p. 112). Observar no mapa.
Dividida em duas zonas - a Cidade Alta e a Cidade Baixa- Luanda, no início do século
XVII, tinha construções militares (Fortaleza de São Pedro da Barra (1618) e Fortaleza de São
Miguel de Luanda (1634)), administrativas (Palácio do Governador (1607) e a Casa da Câmara
(1623)), religiosas (Igreja de São Sebastião (1576), Igreja da Misericórdia (1576) e a Santa Casa de
Misericórdia; Sé Episcopal (1583); Igreja dos Jesuítas (1593) e Convento São José (1604)).18 Ao
lado de residências de civis, havia bodegas, pontos de encontro masculino, nos quais os holandeses
se revelavam grandes consumidores de vinho: “Os portugueses parecem que estão a provar o vinho,
17
18
Kilombo significa acampamento guerreiro. (PEPETELA, 1999, p. 407). Makotas: os mais velhos. RAMOS.
LUANDA. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Luanda >. Acesso em: 12 mai. 2014.
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bebem aos poucos, mas não é apenas por delicadeza, é apenas timidez ou até medo de enfrentar o
mau espírito, o cazumbi,19 do vinho”. (p. 16). Havia ainda lojas e um mercado ao ar livre:
Chegámos ao largo da Kitanda, onde desembocava a rua Direita. Havia duas
dezenas de vendedores, meia dúzia com hortaliças e fruta, mais umas tantas
mulheres a venderem cola, outras carvão. A maior parte dos compradores eram
também mulheres. Mas estavam dois soldados holandeses numa banca de cola,
discutindo com a kitandeira sobre as maravilhas do fruto, para eles desconhecido. E
mais a frente passámos por Angélica Ricos Olhos que comprava fuba de bombó.20
(PEPETELA, 1999, p. 335).
Realizado na Ilha de Luanda, no casamento de Rodrigo Van Dum com Nzuzi foi servido um
grande banquete depois de muitos preparativos: algumas mulheres “batiam o funji nas panelas,
enquanto no fogo se preparava saka-saka” e chegavam “cabaças de maluvo”. A música era
marcada “pelas palmas e dois ngomas”. (PEPETELA,1999, p. 112, 102, 104 e 107).21 Além de
vários tipos de carnes assadas e de peixes, foram servidas muitas frutas de formas variadas:
Matilde recusou o vinho que lhe queriam servir mas aceitou um segundo refresco
de múcua. Já um outro oficial lhe oferecia quitaba, que vinha cortada aos
pedacinhos em cima de folha de bananeira, e tinha feito grande sucesso junto dos
oficiais mafulos, os quais provavam pela primeira vez a iguaria. (PEPETELA,
1999, p. 105). 22
Depois da aquisição do “arimo na margem do rio Bengo”, Baltazar Van Dum começou a
construção da casa grande: “Dali se via a Ilha toda, desde a ponta fechando a entrada para o porto
até à barra da Corimba no sul. [...] E para trás, no sentido do oriente, se via a entrada da terra, o
reino que Ngola Kiluanje unificou, a pátria dos Ngola, a minha”. (p. 19).
No interior, longe de Luanda, em fuga dos flamengos, em agosto de 1641, moradores da vila
e da região se abrigaram ao lado do rio Bengo e na região da Kilunda. Os escravos Van Dum:
“foram a carregar as imbambas23 e as riquezas de Baltazar”. (p. 29). E padre Tavares, durante os
anos de ocupação holandesa (1641-1648), fez verdadeiras incursões militares pelas fazendas ao
19
Cazumbi: alma de antepassado, espírito errante.
Kitanda/Quitanda: mercado, feira, pequena loja, posto de venda de alimentos frescos. VOCÁBULOS. Fuba: farinha e
bombó: mandioca macerada e seca ao sol (tipo de polvilho).
21
Funji (“Massa de fubá de mandioca ou milho cozido”), maluvo ou maruvo (“Bebida fermentada extraída da
palmeira”) e ngoma (tambor). A expressão saka-saka (kikongo) tem o significado de “Esparregado de folhas de
mandioca cozidas em óleo de palma”. (PEPETELA, 1999, p. 408).
22
Múcua: fruto do imbondeiro. VOCÁBULOS.
23
Imbambas: cargas (pertences). Idem, ibidem.
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longo do Kwanza, pelos kimbos da região [...] à procura dos objectos sacrílegos [...]”, como
“chifres de mbambi com pós misteriosos”. Os mafulos não deixavam entrar nenhum kimbanda na
cidade, porque os predikant falavam nos kimbandas como usuários de artes do demónio”. (p. 116).24
No confronto entre lusos e flamengos, iniciado no dia 25 de agosto de 1641, por causa de
Luanda, o governador Pedro César de Menezes e a parte da população recuaram para a quinta dos
jesuítas no rio Dande e, outras pessoas fugiram para outras propriedades localizadas ao longo do rio
Kwanza. Posteriormente, o governador decidiu se refugiar em Massangano, levando pertences
pessoais e documentos administrativos e históricos:
Acontece que o rio levava pouca água, pois se estava na época do cacimbo, e as
chalupas encalharam logo ali acima. Os holandeses vieram e pegaram fogo aos
barcos. Morreram os feridos, se queimaram os papéis. Assim se perderam todos os
documentos da conquista e fundação da cidade e todos os mambos e makas que
aconteceram nesses anos todos até à chegada dos mafulos. (PEPETELA, 1999, p.
121) 25
2.1- Kimbundu na sanzala Van Dum.
Baltazar Van Dum residia em uma grande sanzala, que tinha uma casa grande e vinte
cubatas. Acompanhado de seu fiel escravo, saia de sua propriedade, localizada nas cercanias da
lagoa do Kinaxixi, descia pelo “carreiro entre os imbondeiros”, seguia pela “areia musseque” até
chegar a uma taberna ou a sede da Companhia das índias Ocidentais, em Luanda. (PEPETELA,
1999, p. 29, 19, 30 e 18). 26
Os escravos de sua propriedade tinham nomes em kimbundu: Ngonga, Kundi, Dimuka,
Lemba, Chicomba, Mufolo, Kalumbo, entre outros, com exceção de uma escrava doméstica que
tinha perdido seu nome étnico e sua identidade: “Dolores era uma mulher que coxeava, por ter uma
perna dez centímetros mais curta que a outra, e ganhou esse nome porque, no tempo dos
portugueses, habitava a cidade uma espanhola que caminhava da mesma maneira e se chamava
Dolores”. A cativa Dolores tinha concebido um menino claro de olhos azuis, filho de Hermenegildo
24
Kimbo (aldeia) e kimbanda (curandeiro, advinho) em kimbundu e outras línguas. Idem, ibidem.
Mbambi: (bambi): cabra pequena, cuja pele é muito usada na arte da adivinhação e na confecção de
tambores. PINTO, Alberto Oliveira. Vocabulário de kimbundu no português de Luanda. Disponível em:,
http://www.multiculturas.com/angolanos/alberto_pinto_kimbundu.htm>. Acesso em: 12 jun. 2014.
Predikant é o pastor calvinista (flamengo).
25
Mambos: casos, problemas; makas: discussões, conflitos. (PEPETELA, 1999, p. 408).
26
Imbondeiro é uma árvore e musseque ou muceque: “Originalmente a areia vermelha; mais tarde, os bairros
periféricos (e pobres) de Luanda”. Idem, ibidem.
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Van Dum, que, por causa de sua bela aparência, despertara a cobiça da avó Inocência que pegava a
criança e queria alimentá-lo com papas, sem sucesso: “Mas os gritos de Gustavo é que não
paravam. Exigia a presença da mãe em seu kimbundo incipiente. E quando a avó o soltou, fugiu
para o quintal”. (p. 208 e 370).
Diogo Van Dum, filho de uma escrava, que fora tardiamente reconhecido pelo pai, somente
dominava o kimbundu e tinha dificuldades para falar português: “Só o despertou [a Baltazar] a parte
final da fala difícil de Diogo, tropeçando constantemente na gramática portuguesa por ter sido
criado até muito tarde no quintal”. (p. 165).
Em Angola, Baltazar aprendeu kimbundo, a língua nativa falada pela sua esposa Inocência,
seus filhos legítimos e não legítimos e os cativos da sua quinta:
Baltazar era muito versátil em línguas e os filhos aproveitaram um bocado. Na
sanzala se falava kimbundu, português e flamengo. Kimbundu sobretudo por
causa de D. Inocência, que não se sentia à vontade em mais nenhuma língua que
não a nossa materna. Já os filhos de Baltazar preferiam o português. Excepção feita
a Nicolau e Catarina, os dois mais velhos do quintal, que usavam muito kimbundu,
talvez por terem mais trato com os negros. (PEPETELA, 1999, p. 21 e 22).
Conhecedor do idioma kikongo, Padre Tavares, em visita à propriedade Van Dum, na qual
era falado o kimbundu, iniciou uma investigação para saber se havia objetos considerados pagãos.
Afoito, ele preparou uma cerimônia religiosa que estava sendo boicotada por algumas pessoas.
Inocência, que havia sido criada em uma missão católica portuguesa, tentava persuadir os filhos a
assistirem a missa:
Que é isso, menino? – repreendeu a mãe em kimbundu. – Não tinha nada demais.
Missa nunca fez mal a ninguém.
Todos se calaram. D. Inocência se levantou, dizendo concença, das poucas palavras
portuguesas que utilizavam normalmente. (PEPETELA, 1999, p. 204).
Receosa de contar suas faltas ao padre radical, a genitora se esquivava da confissão,
afirmando não dominar a língua portuguesa:
[...] a mãe tinha logo dito, não me vou confessar com tradutor, porque o padre não
percebe kimbundu e eu não sei português, o que não era totalmente verdade, ela
poderia falar português se o quisesse, fazia isso com padre Mateus que falava
kikongo e não kimbundu [...]. (PEPETELA, 1999, p. 205 e 206).
D. Inocência, filha de um soba de Kilunda, mantinha hábitos culturais de sua etnia, embora
tivesse sido evangelizada. Em agosto de 1646, em uma das fases dos conflitos bélicos entre lusos e
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holandeses, seu filho Rodrigo Van Dum, genro de Dom Agostinho Corte Real, governador da Ilha
de Luanda, de administração congolesa, chegou à sanzala paterna. Esbaforido, anunciou que seu
sogro iria comandar um exército vindo do Congo, associado aos flamengos, e que ele iria participar.
Desesperada, a mãe imaginou que Rodrigo iria morrer:
D. Inocência só se benzia. Mas calada até então. Quando percebeu que o filho ia
inevitavelmente para a guerra, nada se podia fazer para evitar, começou a bichanar
orações. E quando o marido concluiu, tenta de todas as maneiras te esconder o
máximo possível, começou ela a xinguilar e a gritar, aiuê o meu filho que vai prá
guerra, ao o meu filho uê, no português mais puro, raríssimo nela [...]. D. Inocência
fazia já o komba antecipado do filho [...]. (PEPETELA, 1999, p. 288). 27
Em um pequeno lote de escravos conduzidos à sanzala Van Dum, um rapaz alto chamou a
atenção pelo porte, beleza e por poder se comunicar com o pumbeiro (comprador de escravos no
sertão), e ajudantes. Ao perceber que o escravo podia se fazer entender, Baltazar perguntou a
Nicolau: “-Mas se é lá do sul, como fala kimbundu?/ - Aprendeu com os jagas. A língua dele
também não deve ser muito diferente”. (p. 225).
Seu nome era Thor, um príncipe, que despertou um profundo amor em Rosário Van Dum. O
romance proibido deles foi descoberto e provocou a fúria de Baltazar. Ambrósio, irmão da moça,
atacou ferozmente o jovem que tentava esclarecer a situação: “Em breve ouvi os gritos e a fala
entrecortada de Thor, a explicar em kimbundo que gostava mesmo de Rosário, a culpa era do
amor, discursos que conhecemos de outros personagens, embora em línguas diferentes, inútil
repetições”. (p. 243).
Condenado a morrer, ele foi arrastado por Nicolau e Dimuka, e seguido por Ambrósio e
Kalumbo para ser decapitado perto da lagoa do Kinaxixi:
Quando transpunham o portão, o escravo pôde ainda ouvir o grito da amada, eu
quero casar com ele, pai, perdoa, pai, perdoa. Mas não percebeu certamente, pois
ela gritou em português. E talvez nesses momentos antes da execução já não se
oiça senão as vozes que gritam cá dentro. (PEPETELA, 1999, p. 246).
O kimbundu era o idioma de comunicação entre Rosário e Thor, mas no momento de maior
comoção na sanzala, quando Baltazar Van Dum atuou como acusador e juiz supremo e condenou o
27
Xinguilar: cair em transe, incorporação de espírito. VOCÁBULOS. A palavra xinguilar tem “origem na cerimônia da
dissaquela, significando o momento de receber a incorporação dos espíritos”. PINTO.
No caso específico de D. Inocência, era uma forma de luto, com movimentos bruscos dos quadris, puxões dos cabelos e
gritos como forma de lamentos pelo falecido.
Komba: velório. (PEPETELA,1999, p. 408).
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rapaz a morte, por ter desonrado sua filha, a língua portuguesa prevaleceu. Em uma tentativa
desesperada para salvar a vida do amado, clamando por perdão e clemência, Rosário não se fez
entender por Thor, principalmente ao propor ao seu pai implacável o casamento deles.
Em visita ao arimo do Bengo com seu filho Nicolau, Baltazar presenteou os cativos com
tecidos e, segundo o narrador-escravo, que os acompanhava: “À hora do jantar, o meu dono juntou
os cinco escravos e distribuiu por eles alguns panos. Não era grande coisa, eram restos dos
negócios, mas ficaram contentes. Nicolau segredou para eles em kimbundu, agora já podem
arranjar mulher”. (p. 113). Mais tarde, Baltazar se reuniu à roda da fogueira e se comunicou em
diversos idiomas:
O engraçado eram as línguas da conversa. Se era para todos perceberem e
participarem, utilizavam o kimbundo. Se Baltazar queria dizer alguma coisa
confidencial a Nicolau, usava o flamengo. E se Nicolau ou o meu dono se dirigiam
a Diogo, para só os três se comunicarem, o português era o escolhido. Complicado
para quem não dominava os três idiomas. (PEPETELA, 1999, p. 114).
2.2- Línguas (tradutores) de kimbundu no processo de evangelização.
Muitos religiosos não aprendiam os idiomas nativos, tal como padre Tavares, e se faziam
acompanhar de tradutores no processo de evangelização, de “línguas, indispensáveis para os gentios
entenderem perfeitamente a palavra de Deus”. (p. 201).
Hermenegildo Van Dum questionou o religioso: “- Está há tantos anos aqui e ainda precisa de
usar línguas para contactar com os negros? Nunca a prendeu a falar kimbundu?” De forma
arrogante eurocêntrica, padre Tavares expressou sua cosmovisão de um mundo dividido entre
civilização e barbárie, progresso e atraso:
- Aprendi latim, posso entender francês e italiano, idiomas civilizados. Não preciso
de aprender línguas de bárbaros.
- Mas dão jeito para ensinar os mandamentos...
- Para isso servem os línguas, eles têm a indispensável formação religiosa. Alguns
chegam até a professar. (PEPETELA, 1999, p. 198).
Diante de uma mostra de intolerância pessoal com os nativos a serem catequizados, o jovem
Van Dum refletiu, pois “sabia de padres que tinham opinião contrária, falavam mesmo de utilidade
de traduzir o catecismo e os evangelhos nos dialectos africanos. Uma inútil perda de tempo,
consideraria Padre Tavares”. (p. 201).
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Conclusão
No romance A Gloriosa Família: O tempo dos flamengos (1997), de Pepetela, a questão da
oralidade evidencia-se em dois aspectos. De um lado, no propósito do narrador-escravo de manter a
tradição dos griots africanos: a de narrar fatos históricos e socioculturais para a posteridade sobre a
competição entre portugueses e holandeses (1641-1648), em Luanda e região, pela força escrava
para trabalhos na lavoura canavieira no Brasil, com ênfase no cotidiano dos Van Dum. E de outro,
no seu projeto de vida: o de criar um canal de comunicação com o futuro de Angola, via linha
transcendental, por meio de uma narrativa permeada de elementos de caráter religioso ancestral,
sem influência cristã.
Flamengo e católico, Baltazar Van Dum não percebia a ambiência mística africana,
tampouco a importância da oralidade na preservação cultural e memorialística e, por isso, seu
escravo, profundamente magoado diante da falta de consideração e ignorância do seu senhor,
arquitetou um plano que só seria realizável na esfera mágica que imperava também perto da lagoa
do Kinaxixi:
Uma desforra para tanto desprezo seria contar toda a sua estória, um dia. Soube
então que o faria, apesar de mudo e de analfabeto. Usando poderes desconhecidos,
dos que se ocultam no pó branco da pemba ou nos riscos traçados nos ares das
encruzilhadas pelos espíritos inquietos. Fosse de que maneira fosse, tive a certeza
de o meu relato chegar a alguém, colocado em impreciso ponto do tempo e do
espaço, o qual seria capaz de gravar tudo tal como testemunhei. (PEPETELA,
1999, p. 393 e 394).28
Em seu relato, como testemunha de um mundo em transformação no século XVII, o
narrador-escravo utiliza expressões orais (interjeições): “[...] mas xé, que é isto? Escravo não tem
sentimento, aiué, e tenho de estar atento ao meu dono [...]”. (p. 23), além de utilizar palavras em
kimbundu (bantu), que era conhecido também como língua de Angola, por ser o idioma geral do
antigo reino do Ngola, da dinastia da rainha Jinga (século XVII).
O kimbundu, que era falado pelos ambundos, entre outros povos, legou muitos vocábulos à
língua portuguesa, conforme pode ser constatado no romance de Pepetela e que fazem parte do
léxico do português da atualidade. Palavras de origem quimbunda que foram aportuguesadas estão
no glossário componente da obra.
28
Pemba: “Argila branca usada em umbanda para afastar os malefícios e atrair os espíritos benéficos”. Umbanda:
“Ciência do quimbanda, podendo consistir na arte de curar ou adivinhar, sempre mediante o chamamento dos espíritos
dos antepassados”. PINTO.
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A escolha de substantivos e expressões reflete geralmente um elemento identificador do
local ou vinculado à fauna, flora, geografia, etc. Em A Gloriosa Família são mencionados muitos
dos topônimos, em kimbundu, relacionados aos componentes fluviais e às antigas aldeias dos sobas
e, que foram incorporados ao cotidiano do uso da língua portuguesa pelos colonizadores no início
do século XVII: nomes próprios, topográficos (regiões e aldeias: Muxima, Cambambe e
Massangano), rios (Kwanza, Dande, Bengo e Lucala), alimentos, entre outros aspectos.
Referências
BONVINI, Emilio. Línguas africanas e português falado no Brasil. In: FIORIN, José Luiz;
PETTER, Margarida (Orgs.). África no Brasil: A formação da língua portuguesa.1. ed. 2. reimp.
São Paulo: Contexto, 2009. p. 15-62.
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LOURENÇO, Eduardo et alii. Atlas da língua portuguesa na História e no Mundo. Lisboa:
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PEPETELA. A Gloriosa Família: O tempo dos Flamengos. 2. reimp. Rio de Janeiro: Nova
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PINTO, Alberto Oliveira. Vocabulário de kimbundu no português de Luanda. Disponível em:,
http://www.multiculturas.com/angolanos/alberto_pinto_kimbundu.htm>. Acesso em: 12 jun. 2014.
PIRES, João. O Lobito e o Umbigo do Mundo. Boletim da Câmara Municipal do Lobito. Secção
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RAMOS,
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VOCÁBULOS
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Disponível
em:
http://www.angolabelazebelo.com/vocabulos-kimbunduportugues/ >. Acesso em: 12 jun. 2014.
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Iconografia
MAPA DE ANGOLA (1641-1648). BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e
Angola 1602-1686. São Paulo: Editora USP, 1973. p. 47.
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