A Medicina em História
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A Medicina em História
Leituras A Medicina em História A Medicina Árabe (I) 1. Os grandes centros científicos da última fase da Antiguidade Enquanto que a vida intelectual do Ocidente estava adormecida na altura das invasões bárbaras, no Oriente perdurava uma civilização urbana, dominada por dois impérios rivais: o império bizantino, herdeiro de Roma, e o império Persa. As cidades de Alexandria no Egipto, de Ra’s al-‘Ain na Síria, de Gundisabur no Irão, entre outras, constituíam autênticos centros culturais vivos, onde as obras dos sábios gregos eram lidas, ensinadas, comentadas e traduzidas. Para Alexandria convergiam estudantes de todo o próximo Oriente. Para a aprendizagem da arte médica, as obras de Galeno apresentavam uma forte reputação, muito embora a sua prolixidade fosse muito criticada. Mesmo assim, 16 delas, consideradas como as mais importantes, foram reunidas numa colecção, rapidamente traduzida em siríaco e depois em árabe, contribuindo para a existência de uma tradição científica ininterrupta. Em meados do sec. XII, um persa descreve as personagens indispensáveis para estarem ao serviço dos reis: secretários, poetas, astrólogos e médicos. Estes últimos devem adquirir a sua arte através da leitura de uma quinzena de obras, nas quais apenas figuram dois títulos gregos: os Aforismos de Hipócrates e os Doze Tratados de Galeno. De entres os vários médicos famosos de Alexandria destaca-se Paul de Egine que redigiu, baseado sobretudo em Oribase, uma compilação de escritos médicos gregos sob o título Epitome Medicale Libri Septem (“Manual de Medicina em Sete Livros”). Esta influência de Oribase no Oriente helénico marcou o triunfo do galenismo como sistema médico. 2. A conquista árabe Ao longo do século que se seguiu à morte do profeta Muhammad, em 632, o espaço géo-político dos árabes muçulmanos dilatou-se do Irão à Andaluzia. Conquistas rápidas e definitivas transformou um povo nómada numa elite militar dominadora de um vasto império. Esta mutação brutal foi acompanhada, naturalmente, de clivagens entre tribos e regiões, ao mesmo tempo que se elaborava o pensamento árabe. Não se pode afirmar que os árabes não tinham tradição médica. De facto, o acaso e a observação, o instinto e a razão tinham levado à descoberta de alguns remédios. O Corão e a Tradição islâmica impunham “sábias” regras de higiene: a interdição de bebidas alcoólicas e da carne de porco, o jejum prolongado durante os meses do Ramadão, os conselhos de moderação alimentar têm um valor dietético reconhecido. Um certo al-Harit, originário de at-Ta’if, terá aprendido alguns rendimentos da sua arte em Gundisabur, tendo contribuído para retomar as bases, em torno de Muhammad, de uma higiene alimentar fundada na sobriedade. Foram reunidas sob o nome de “Medicina do Profeta”, vários conselhos e práticas, de origem popular e religiosa, que eram consideradas como palavras do próprio Profeta e que parecem estar na base de práticas seguidas até à época moderna. A conquista árabe não significou, necessariamente, a morte do pensamento grego, filosófico e científico. No entanto, ele não era muito fecundo. Entre 600 e 750 não são conhecidos senão dois ou três sábios versados na arte médica. Foi preciso esperar até à chegada dos Abassídeos, em 750, para assistir à promoção em árabe da tradição do pensamento grego, criando um espaço cultural novo, na língua árabe. Os começos da medicina árabe situam-se neste contexto. VOLUME IV Nº3 MAIO/JUNHO 2002 47 Leituras 3. Apogeu dos enciplopedistas árabes 48 Abu Bakr Muhammad ibn Zakariyya ar-Razi, conhecido como “Galeno dos árabes”, é um dos baluartes da medicina árabe. O seu nome, que a Europa deformou para Razés, apresenta-o como originário de Rayy, metrópole persa situada a alguns quilómetros ao sul da actual Teerão. Nascido cerca de 865, teve uma formação em filosofia, matemática, astronomia, alquimia e música. No fim do sec. IX abandona Rayy atraído pela brilhante Bagdad, já que o Iraque era nesta altura dominado pelos emires de origem shiita, os quais favoreciam a vida intelectual e científica. Segundo uma antiga tradição, a visita ao hospital de Bagdad convenceu ar-Razi sobre a eficácia da medicina, a partir da qual passa a desenvolver uma intensa actividade como médico, ligado ao hospital de Bagdad. A obra de ar-Razi impressiona pela sua amplitude e variedade, sendo-lhe atribuídos 184 títulos, repartidos do seguinte modo: 61 de medicina, 46 de lógica, filosofia e teologia, 33 de ciências naturais, 21 de alquimia, 11 de astronomia e matemáticas e 12 diversos. Sendo um experiente prático, foi sobretudo um pensador apoiado no conhecimento dos autores da Antiguidade de tal modo que a sua obra é dominada pelas tensões fecundas entre um saber recebido, uma reflexão pessoal e uma experiência adquirida. Que importância teve este pensador-filósofo na medicina? Muito embora ainda haja muito por conhecer da sua obra, um dado ressalta da sua leitura: a qualidade das suas observações médicas. As suas obras estão cheias de notações concretas que testemunham a grande atenção prestada aos doentes e às manifestações das suas doenças. A maneira de descrever as dores e de as caracterizar como agudas, crónicas, lancinantes, recorrentes, desemboca numa semiologia a todos os títulos impressionante. O manuscrito existente em Oxford, contendo a análise de 32 observações clínicas minuciosas, é prova dessa semiologia impressionante. Pormenores concretos como o nome do doente, os sintomas da doença, os tratamentos praticados e os resultados obtidos, traduzem preocupações e qualidades que lhe permitiram fazer diagnósticos extremamente precisos. A medicina de ar-Razi é a obra de um espírito empírico e racional, recusando qualquer forma de ocultismo e desconfiando dos dogmas estabelecidos. Rejeitando qualquer forma de profetismo, porque os homens são por natureza iguais e nenhum pode aspirar a uma superioridade intelectual ou espiritual e exercendo sempre uma crítica virulenta à religião, acrescido do seu gosto pela alquimia e da sua filosofia anti-aristotélica, valeram-lhe um julgamento muitas vezes impiedoso. JMT VOLUME IV Nº3 MAIO/JUNHO 2002