A próxima peste

Transcrição

A próxima peste
LAURIE GARRETT
A
PRÓXIMA
PESTE
AS NOVAS DOENÇAS DE
UM MUNDO EM DESEQUILíBRIO
•-
E DITORA
NOVA
FRONTEIRA
Título do original: THE COMING PLAGUE
©1994 by Laurie Garrett
Publicado mediante acordo com
Lennart Sane Agency AB.
Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Bambina, 25 - Botafogo
CEP 22251-050 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Te!.: 537 8770 - Fax: 286 6755
Endereço telegráfico: NEOFRONT
Edição brasileira:
O Guardador de Rebanhos
Editorial e Multimídia (coordenação)
Tradução: Margarida Dorfman Black,
Sonia Siessere e Marina Appenzeller
Edição do texto: Silvana Salerno
Consultoria médica: Dr. Jacyr Pasternak, chefe da Comissão de Conttole
de Infecção do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo
Paginação: Compupress, São Paulo
Agradecimentos especiais,
pela autorização para que textos fossem reptoduzidos nesta obra:
The power unseen, de Bernard Dixon. Copyright © 1994 Bernard Dixon.
Por autorização de W H. Freeman and Company.
Earth in the balance, de AI Gore. Copyright © 1992 senador AI Gore.
Reptodução autorizada por l{oughton Miflin Coo
A peste, de Albert Carnus. Copyright © 1948 Alfred A. Knopf, Ind.
Rats, lice, andHistory, de Hans Zinsser. Copyright © 1935 Litde, Brown & Coo
Trecho de "Sexually rransmitted diseases", de H. H. Handsfield, no volume 17, número 1, de Hospital Practice.
Trechos de Arrowsmith, de Sinclair Lewis. Copyright © 1925 Harcourt Bruce & Company,
renovado em 1953 por Michael Lewis, reprodução autorizada pelo editor.
Trecho de "Lives of a cell". Copyright © 1971 The MassachusettS Medical Society, de The lives Dfa cell,
de Lewis Thomas, usado por autorização de Viking Penguin, divisão da Penguin Books USA Inc.
ISBl'J 85-209-0692-3
CIP-Brasil Catalogação na fonte
Sindicato Nacional de Livros, RJ
Garrett, Lautie
G224p A próxima peste: as novas doenças de um mundo em desequilíbrio / Laurie Garret; tradução, Margarida
Dorfman Black, Sonia Siessere e Marina Appenzeller. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. 708 p.
Tradução de : The coming plague
1. Epidemiologia -
95-1850
Obras populares.
2. Doenças transmissíveis -
Obras populares.
II. Título.
CDD 614.4
CDU 616-036.22
SuMÁRIo
PREFÁCIO
11
INTRODUÇÃO
15
1
MACHUPO
Febre hemorrdgica boliviana
2
TRANSIÇÁO DA SAÚDE
A era do otimismo: vamos erradicar a doença
3
79
YAMBUKU
Ebola
6 O
107
BICENTENÁRIO DOS ESTADOS UNIDOS
Gripe suína e doença dos legiondrios
7
61
DENTRO DA FLORESTA
Febre de lassa
5
39
RINS DE MACACO E MARÉ BAIXA
Vírus Marburg, febre amarela e a epidemia de meningite no Brasil
4
23
155
N'ZARA
Lassa, Ebola e a política socioeconômica dos países em desenvolvimento
191
8 REVOLUÇÁO
Engenharia genética e a descoberta de oncogenes
9
219
ÍMÁS QUE ATRAEM MICROBIOS
Centros urbanos da doença
231
10 TROVOADA DISTANTE
Doenças sexualmente transmissíveis e usudrios de drogas injetdveis
255
H'l.T.-\RI: \ ' JDOGODOGO (PERIGO: ALGO MUITO PEQUENO)
r
rigms da aids
275
_ .\ hlGlE~E FEMININA
(DISCu'TIDA, PRINCIPALMENTE, POR HOMENS)
Síndrome de choque tóxico
13
377
A VI GANÇA DOS GERMES OU CONTINUEM
A INVENTAR NOVAS DROGAS
Bactérias, vírus e parasitas resistentes a drogas
14
397
TERCEIRO-MUNDIZAÇÁO
A relação da pobreza, da habitação e da desesperança
social com a doença
15
TODOS COM MUITA PRESSA
Os hantavírus nos estados unidos
16
439
503
NATUREZA E HOMO SAPIENS
Peste das focas, cólera, efeito estufa, biodiversidade
e massa microbiana
17
523
EM BUSCA DE SOLUç6ES
Preparo, vigilância e a nova compreensão
561
NOTAS
587
589
AG RADECIMENTOS
707
POSFÁCIO
Introdução
Ao tempo em que meu tio Bernard começou a estudar medicina na Universidade de
Chicago, em 1932, ele já havia testemunhado a grande pandemia de gripe de 1918-19. Ele
tinha sete anos, quando contava o número de carros fúnebres que passavam pelas ruas de
Baltimore. Três anos antes seu pai quase morrera de febre tifóide, contraída no centro dessa
cidade. E logo depois seu avô morrera de tuberculose.
Aos 12 anos, Bernard teve o que era chamado de "doença de verão", passando os longos e quentes dias típicos de Maryland à toa pela casa, "bancando o preguiçoso", como
dizia sua mãe. Não foi senão em 1938, quando estava no último ano da Faculdade de
Medicina da Universidade da Califórnia, em San Francisco, e se ofereceu como cobaia no
serviço de radiologia, que tio Bernard descobriu que a "doença de verão" era, na verdade,
tuberculose. Sem dúvida, ele adquirira a moléstia de seu avô e sobrevivera, mas pelo resto
da vida apresentaria cicatrizes nos pulmões, reveladas por uma radiografia de tórax.
Parece que todos tinham TB naquele tempo. Quando o jovem Bernard Silber estava
lutando para custear seus estudos de medicina em Chicago, novas estudantes de enfermagem eram rotineiramente submetidas a testes de anticorpos contra TB. As mulheres que
vinham da zona rural sempre apresentavam resultado negativo para TB, quando iniciavam
os estudos. E todas, invariavelmente, após um ano na enfermaria de um hospital urbano,
apresentavam resultado positivo. Qualquer doença naqueles dias podia avivar uma infecção latente de TB, e os sanatórios de tuberculose viviam superlotados. O tratamento se
limitava a respouso, uma variedade de dietas calorosamente discutidas, exercícios, ar fresco
e excepcionalmente o pneumotórax, um procedimento cirúrgico.
Em 1939, tio Bernard começou sua residência, por dois anos, no Hospital do Condado de Los Angeles, onde conheceu minha tia Bernice, que era assistente social. Bernice
mancava e era surda de um ouvido, em consequência de uma infecção bacteriana na infância. Quando Bernice tinha nove anos de idade, desenvolveram-se bactérias no seu ouvido
que acabaram por infeccionar o osso mastóide. Houve uma complicação que causou
osteomielite, o que deixou sua perna direita 2,5 centímetros mais curta do que a esquerda,
forçando-a a caminhar com os joelhos voltados para fora a fim de manter o equilíbrio.
Logo após terem se conhecido, Bernard contraiu uma indesejável infecção pneumocócica e
recebeu o mais moderno tratamento médico da época: atendimento carinhoso e oxigênio.
Por um mês, agora na condição de paciente do hospital, ele definhava esperando estar entre
os 60 por cento dos americanos que, na era pré-antibióticos, sobreviviam a uma pneumonia bacteriana.
As infecções bacterianas eram comuns e muito graves antes de 1944, ano em que os primeiros antibióticos tornaram-se disponíveis. Meu tio Bernard podia diagnosticar escarlatina,
pneumonia pneumocócica, febre reumática, coqueluche, difteria ou tuberculose em questão
16
A PRÓXIMA PESTE
de minutos com pouco ou nenhum apoio laboratorial. O médicos tinham de saber como agir
com presteza porque essas infecções tendiam a se agravar rapidamente. Além disso, não havia
muito que um laboratório pudesse indicar a um médico em 1940 que, sendo observador e
contando com uma sólida formação, não pudesse determinar por si mesmo.
Os vírus eram uma enorme caixa-preta naqueles tempos, e embora Bernard não tivesse
dificuldade em diferenciar entre rubéola, gripe, encefalite São Luís e outras viroses, não havia
tratamento e ele não sabia o que esses minúsculos rriicróbios podiam fazer ao corpo humano.
Tio Bernard familiarizou-se com a medicina tropical durante a Segunda Guerra Mundial, quando serviu no corpo médico do exército americano em Guadalcanal e outros campos de batalha no Pacífico. Foi quando aprendeu diretamente sobre doenças das quais pouco ouvira falar na faculdade: malária, dengue e várias moléstias parasitárias. O quinino
desempenhou um bom papel na cura da malária, mas pouco podia fazer pelos pracinhas
que sofriam de doenças causadas por organismos tropicais, abundantes no teatro da guerra
no Pacífico.
Após dois anos de guerra, o exército americano distribuiu seu primeiro e escasso suprimento de penicilina, instruindo os médicos a usar o precioso medicamento com parcimônia,
em doses de cerca de 5 000 unidades (menos de um terço do que seria considerado, em
1993, como dose mínima para infecções de gravidade secundária). Naqueles primeiros dias,
antes que as bactérias se tornassem resistentes a antibióticos, tais doses operavam milagres.
Os médicos do exército ficaram tão impressionados com os poderes da nova droga, que
colhiam a urina de pacientes tratados com ela e cristalizavam a penicilina excretada para
reaproveitá-la em outros pracinhas.
Anos depois, quando eu estudava imunologia no curso de pós-graduação em Berkeley,
Universidade da Califórnia, tio Bernard me regalava com histórias que soavam como se
fosse medicina da Idade Média. Eu estava preocupada com coisas tais como citômetros de
fluxo a laser ativados por fluorescência, que podiam separar diferentes células vivas do sistema imunológico, a nova tecnologia da engenharia genética, anticorpos monoclonais e
decifração do código genético humano.
"Sempre comparei a produção de antibióticos ao pessoal do Imposto de Rendà', dizia
tio Bernard, quando eu não parecia tão interessada nas situações difíceis enfrentadas pelos
médicos antes dos antibióticos. "As pessoas estão sempre procurando saídas, mas assim que
as encontram, o IR as fecha. O mesmo ocorre com os antibióticos: mal você consegue um
e já as bactérias se tornam resistentes."
Durante o verão de 1976, tive motivos para refletir sobre a sabedoria de meu tio
Bernard. Enquanto estava às voltas com meu projeto de pesquisa de pós-graduação no
Centro Médico da Universidade de Stanford, a mídia dava notícias aos montes sobre
doenças infecciosas. Vejamos: o governo americano estava prevendo uma epidemia maciça de gripe que, segundo diziam, ultrapassaria a de 1918 - um horror global que cobrara o tributo de mais de 20 milhões de vidas. Um grupo da Legião Americana reuniuse em Filadélfia, no Dia da Independência dos EUA, e alguma coisa fez com que 182
integrantes ficassem doentes, matando 29. Algo diferente, especialmente estranho estava
acontecendo na África, onde, segundo notícias da confusa imprensa daqueles dias, um
novo e aterrorizante vírus estava matando pessoas: no Zaire e no Sudão, algo chamado
Vírus do Macaco Verde ou Marburg ou Ebola, ou uma mistura dos três, vinha ocupando a atenção de especialistas do mundo todo.
Introdução
17
Em 1981, o Dr. Richard Krause, dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, publicou um livro provocativo intitulado The restless tide: the persistent challenge ofthe microbial
world 1, no qual sustenta que doenças há muito consideradas extintas podem voltar para
pôr em perigo o povo americano. Em audiências no Congresso, um ano depois, perguntaram a Krause: - Por que temos tantas novas doenças infecciosas?
- Nada de novo aconteceu - respondeu Krause. - As pestes existem, assim como a
morte e os impostos. 2
Mas o impacto da AIDS levou maior número de virologistas na década de 80 a considerar a possibilidade de que algo de novo estava, na verdade, acontecendo. Conforme a
doença se espalhava de uma parte do mundo para outra, os cientistas se perguntavam: "De
onde vem isso? Há outros agentes biológicos por aí? Será que algo pior vai aparecer, algo
que poderá ser transmitido de pessoa a pessoa pelo ar?"
As perguntas foram ficando mais veementes à medida que a década de 80 se arrastava.
Em um coquetel na Universidade Rockefeller, o jovem virologista Stephen Morse aproximou-se do célebre presidente da instituição, o lauteado Prêmio Nobel Joshua Lederberg, e
perguntou-lhe o que achava da crescente preocupação com os micróbios emergentes.
Lederberg, como era de seu feitio, respondeu em termos absolutos: - O problema é grave
e está piorando. - Com um sentimento de missão compartilhada, Morse e Lederberg dispuseram-se a colher opiniões entre seus colegas sobre a questão, reunir evidências e advogar
uma causa.
Por volta de 1988, um grupo marcante de cientistas americanos, constituído principalmente de virologistas e especialistas em medicina tropical, chegou à conclusão de que
era tempo de soar o alarme. Liderados por Morse e Lederberg, da Universidade Rockefeller,
Tom Monath, do Instituto de Pesquisas Médicas de Doenças Infecciosas dos EUA, e
Robert Shope, da Universidade de Yale, os cientistas procuraram um meio de tornar
conhecida sua preocupação comum. Porém, o que mais os inquietava era que pudessem
parecer uns chatos protestando contra a redução de verbas para pesquisa ou que fossem
acusados de espalhar alarme falso.
No dia 1.0 de maio de 1989, os cientistas se reuniram no Hotel Washington, em frente à
Casa Branca, e durante três dias discutiram como conseg~i~evidências de que os micróbios
caugdores de doenças no planeta, longe de derrotados, representavam agora ameaça ainda
D;aior para ã humanidade. O encontro fora co-patrocinado pelo Instituto Nacional de Alergia e DoençaS InfecciOS-as, pelo Centro Internacional Fogarty e pela Universidade Rockefeller.
- A natureza não é benigna - disse Lederberg na abertura da reunião. - A conclusão a que chegamos é que as unidades de seleção natural (DNA, às vezes elementos do
RNA) não são de maneira alguma acondicionadas perfeitamente em organismos distintos.
Todas elas compartilham da biosfera inteira. A sobrevivência da espécie humana não é um
programa evolucionário preordenado. Existem fontes abundantes de variação genética que
permitem aos vírus aprender novos truques, que não se limitam, necessariamente, ao que
acontece rotineira ou mesmo freqüentemente.
O historiador ~am McNeill, da Universidade de Chicago, descreveu em linhas gerais
as razões por que o Homo sapiens tem sido vulnerável aos ataques de micróbios no decorrer
dos milênios. Ele via cada evento epidêmico catastrófico da história humana como o resultado irônico das medidas destinadas ao progresso da humanidade. À medida que os seres humanos tentam melhorar seu destino, eles realmente aumentam sua vulnerabilidade à doença.
18
A PRÓXIMA PESTE
- Vale a pena, penso eu, tomar consciência dos limites aos nossos poderes - disse
McNeilI. - É bom ter em mente que quanto mais conquistamos, mais impelimos infecções aos limites da experiência humana, mais abrimos caminho para uma possível infecção
catastrófica. Jamais escaparemos aos limites do ecossistema. Queiramos ou não, somos
apanhados na cadeia alimentar, comendo e sendo comidos.
Por três dias, os cientistas apresentaram evidências que corroboravam os presságios de
McNeill: os vírus estavam sofrendo mutações em ritmo rápido; focas morriam enquanto
eles ali estavam reunidos; mais de 90 por cento dos coelhos da Austrália morreram em apenas
um ano com o surgimento de um novo vírus na região; grandes pandemias de gripe estavam aniquilando o mundo animal; a cepa Andrômeda quase emergiu na África sob a
forma do vírus Ebola; megalópoles estavam surgindo no mundo em desenvolvimento,
criando nichos de onde "virtualmente qualquer coisa podia surgir"; florestas tropicais
vinham sendo destruídas, forçando animais e insetos transmissores de doenças a ocupar
áreas de habitação humana e levantando a possibilidade muito real de micróbios misteriosos e letais, pela primeira vez, contagiarem a humanidade em larga escala, a ponto de pôr
em perigo a sobrevivência da raça humana.
Pertencente a uma geração mais nova e educada em uma era de confiante medicina
curativa e preocupação mínima com doenças infecciosas, vivenciei esses debates mais como
se fossem tema dos romances de Michael Crichton do que como uma exposição científica
empírica. Todavia, eu e milhares de jovens cientistas criados na era pós-antibióticos e da
engenharia genética tínhamos de admitir que era impressionante a lista de vírus recente- I
mente surgidos: o vírus da imunodeficiência humana que causava AlDS, os tipos I e II de
HTLV ligados aos cânceres sanguíneos, diversos tipos de vírus recém-descobertos causadores da hepatite, numerosos vírus hemorrágicos descobertos na África e Ásia.
Em fevereiro de 1991, o Instituto de Medicina (10M) organizou uma mesa-redonda
especial, com o intuito de investigar mais a fundo as questões levantadas no encontro científico de 1989 e advertir o governo federal sobre dois pontos: a gravidade da ameaça microbiana
aos cidadãos americanos e as medidas que poderiam ser tomadas para melhorar a vigilância e
~nitoramento das doenças nos EUA. No outono de 1991, os integrantes da mesa-redonda divulgaram o relatório Emerging infections: microbial threats to health in the Un.ited States 3, ~
que concluiu que o perigo de surgimento de doenças contagiosas no país era verdadeiro e que
os órgãos públicos estavam mal equipados 12<lfa p!:.evenir ou lidar ~novas e idemias.
I
-= Nossa mensagem é que problema é grave, está piorando e devemos multiplicar
nossos esforços para superá-lo - disse Lederberg no dia da divulgação do relatório.
Após a divulgação, o Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos EUA, de Atlanta
(CDC), começou um processo rigoroso que resultaria na primavera de 1994 em um plano
de vigíIância intensificada e uma rápida resposta a surtos epidêmicos. A lenta reação à
emer~ência do HIV em 1981 permitiu que a epidemia se espalhasse, chegando a atingir
1,5 milhão de americanos em 1993 e custandoaogoverno federal mais de 12 bilhões de
dólares anualmente em pesquisa, desenvolvimento de medicamentos, educação e tratamento.
O CDC estava determinado a não permitir que tal erro se repetisse.
Em 1993, porém, vozes discordantes protestaram, acusando a comunidade científica
de se concentrar apenas em vírus e nas ameaças que diziam respeito somente a cidadãos
americanos. Cientistas empenhados em combater doenças como Joe McCormick, Peter
Piot, David Heymann, Jonathan Mann e Daniel Tarantola procuravam energicamente
o
Introdução
19
mostrar que micróbios não respeitam fronteiras nacionais estabelecidas pelo homem. Acima
de tudo, diziam eles, em boa parte do munçio as doenças emergentes mais perigosas não
eram causadas por vírus, mas por bactérias ou parasitas. Segundo eles, fazia-se necessária
uma visão muito mais abrangente.
Outras críticas salientavam que uma retrospectiva das inábeis e mal-orientadas tentativas de controlar os micróbios, ao longo dos tempos, revelaria que grande parte da falha
cabia a essa mesma comunidade científica a exigir agora vigilância. O que fazia sentido
como ação de controle de micróbios, do ponto de vista de órgãos governamentais e instituições acadêmicas do país mais rico do mundo, afirmava gente como Uwe Brinkmann, Andrew
Spielman e Isao Arita, poderia mostrar-se desastroso quando executado nas nações mais
pobres do planeta.
As críticas eram também contra· a visão estreita dos americanos que se importavam
apenas com doenças emergentes no país e com isso perdiam a verdadeira perspectiva. Esta
perspectiva podia ser obtida à vista de uma pequena menina ndbeleenrolada em uma canga
verde. Ela estava deitada no duro chão de terra de uma clínica nos arredores de Bulauaio, no
Zimbábue. Sua mãe, sentada a seu lado, lançava olhares súplices a cada estranho que entrava
naquela clínica de duas salas. A menina, de quatro anos de idade, emitia um choro fraco.
- É sarampo - disse o diretor da clínica, dedo em riste apontado para a criança. Saiu
em seguida com um funcionário do governo para mostrar as inovações feitas nos sanitários
e as medidas tomadas para aumentar o teor protéico da alimentação das crianças da aldeia.
Ao retornar uma hora depois à clínica de taipa, a mãe, apoiada na planta dos pés, balançava-se, as lágrimas escorrendo silenciosamente pelo semblante. Cessara o débil choro
da criança. Poucas horas depois, a mulher e seu marido colocaram adiante do guidão de
uma bicicleta uma esteira de palha enrolada, contendo o corpo da menina e, com o olhar
vazio fitando o horizonte, o desespero estampado na face, levaram a bicicleta estrada de
barro vermelho abaixo.
Numa época em que mulheres dos países mais ricos do mundo providenciavam para
que seus filhos ficassem "imunizados", expondo-os propositadamente ao sarampo, caxumba e até mesmo varíola, tais doenças obrigavam os habitantes de algumas das nações mais
pobres do planeta a encontrar meios de enfrentar a morte esperada de mais da metade de
seus filhos antes dos dez anos de idade.
A longa lista de vacinas e medicamentos que os médicos americanos recomendavam a
seus pacientes para tomar antes de viajar fora do país era uma prova concreta do abismo
existente em matéria de saúde entre os países ricos e os em desenvolvimento. Nos anos 70,
americanos e europeus que se afligiram com a pobreza do hemisfério sul distribuíram vultosas somas entre os países carentes para projetos destinados a levar suas populações à idade
moderna. Pensava-se na época que a situação de saúde de uma população melhoraria à
medida que a estrutura global da sociedade e a economia crescessem para se assemelhar às
dos EUA, Canadá e Europa ocidental.
Em 1990, as maiores instituições doadoras do mundo seriam forçadas a concluir que
os esforços de modernização pareciam apenas ter piorado a situação difícil do cidadão comum do Terceiro Mundo, ao mesmo tempo que aumentaram o poder, a riqueza e a corrupção
das elites nacionais e instituições estrangeiras. Bucólicas comunidades agrícolas haviam se
transformado, no espaço da uma única geração, em áreas concentradas em torno de um ou
mais grandes centros urbanos que cresciam como horríveis feridas cancerosas na paisagem,
20
A PRÓXIMA PESTE
devorando o estilo de vida das pessoas e o meio ambiente e impelindo jovens à procura de
emprego para favelas semi-urbanas irregularmente espalhadas, desprovidas de um mínimo
de recursos sanitários para recolhimento de excreções humanas e sem contar com assistência alguma da saúde pública.
No mundo industrializado de livre mercado dos anos 70, pessoas de todas as camadas
sociais cada Vf2. mais se conscientizavam do elo entre poluição ambiental e saúde. Conforme se tornaram conhecidos os riscos do uso incorreto de pesticidas, de tintas à base de
chumbo, das fibras de amianto, da poluição do ar e dos alimentos adulterados, os habitantes dos países mais ricos do mundo clamaram por regulamentos que reprimissem a contaminação do meio ambiente e dos alimentos.
Com a descoberta dos buracos de ozona da Terra, os cientistas em todo o mundo
começaram a discutir a necessidade de medidas, de responsabilidade global, no sentido
de impedir os danos ainda maiores que a poluição poderia causar às camadas gasosas
protetoras do planeta. De igual modo, os oceanógrafos procuraram mostrar, com veemência crescente, que todas as nações são responsáveis pelo lamentável estado em que se
encontram os oceanos e pela quase extinção ou risco de extinção de suas populações de
peixes, corais e mamíferos. Conservacionistas voltaram a atenção para a proteção da vida
selvagem. E biólogos como E. O. Wilson, de Harvard, e Frank Lovejoy, do Instituto
Smithsoniano, advertiram sobre um evento que poderia causar a extinção maciça da
flora e da fauna mundiais em tal proporção que rivalizaria com o desaparecimento dos
dinossauros no período cretáceo.
Citando a evidência fóssil para explicar cinco grandes eventos de extinção na história
antiga da Terra, Wilson perguntou como o mundo podia tolerar mais e mais destruições
ambientais causadas pela mão do homem. "Esses números devem causar hesitação a qualquer um que acredita que o que o Homo sapiens destrói, a natureza irá reparar. Pode ser,
mas não em um espaço de tempo que tenha sentido para o homem contemporâneo."4
Ao se aproximar a humanidade da última década do século XX, o conceito de aldeia
global - explicado primeiramente pelo filósofo canadense Marshall McLuhan como a
interligação mundial criada pela tecnologia da mídia - fez com que as massas se
conscientizassem da importância da ecologia. Os ambientalistas começaram a pensar em
nível macro, planejando medidas para mudar as políticas sobre baleias em lugares tão diversos como Japão, Alasca, Rússia e Noruega. O Banco Mundial decidiu incluir exigências
ecológicas nos seus parâmetros para conceder empréstimos aos países em desenvolvimento.
O acidente nuclear de T chernobil provou, aos olhos de muitos cientistas, que era insensatf2. considerar o controle de risco tóxico um problema cujas soluções eram sempre restritas
por questões de soberania nacional.
E, em 1992, os EUA elegeram um vice-presidente que advogou um ambicioso Plano
Marshall global para proteger o meio ambiente. Albert Gore advertiu que só uma mudança
radical global da perspectiva humana, combinada com minuciosos sistemas de normas
internacionais e incentivos econômicos, garantiria a sobrevivência do planeta sob o ângulo
ecológico, e adotou a retórica dos ambientalistas críticos, dizendo: ''Aqueles que têm um
interesse muito fone no status quo provavelmente continuarão a sufocar qualquer mudança
expressiva até que cidadãos em número suficiente que se preocupam com o sistema ecológico estejam dispostos a falar abertamente e exigir de seus líderes que restabeleçam o equilíbrio da Terrà'. 5
lt
é
Introdução
2~
A nível macro, portanto, um senso de interligação global estava se desenvolvendo sobre
pOIltos tais como justiça econômica e desenvolvimento, preservação ambiental e, em alguns casos, regulamentos. Embora houvesse diferença em perspectiva e semântica, essa
globalização de pontos de vista sobre algumas questões já havia superado linhas ideológicas
bem antes da queda do Muro de Berlim. Desde então, a idéia acelerou-se, embora haja
agora considerável preocupação manifestada fora do país sobre o domínio exercido pelos
americanos sobre idéias, aspectos culturais, tecnologias e economia.
Não foi senão com a emergência do vírus de imunodeficiência humana, contudo,
que se tornaram claros os limites e imposições em relação à globalização da saúde em um
contexto mais amplo do que vacinação em massa e programas de controle de diarréias.
Do momento em que foi descoberta, em 1981, entre homossexuais masculinos, em Nova
York e na Califórnia, a AIDS tornou-se um prisma através do qual as cores bonitas pelas
quais as sociedades esperavam ser vistas foram fragmentadas em milhares de pedaços
desiguais refletindo a realidade. Através do prisma da AIDS foi possível para os especialistas em saúde pública de todo o mundo testemunhar o que eles consideravam hipocrisia, crueldade, falhas, inadequação de instituições sagradas da humanidade, incluindo as
instituições médicas, ciência, religião organizada, sistemas judiciários, as Nações Unidas
e sistemas de governo de todas as nuances políticas.
Se o HN era nosso modelo, concluíram os principais cientistas, a humanidade estava
em apuros. O Homo sapiens recebeu a nova doença primeiro com total indiferença, depois
com desprezo pelos infectados pelo vírus, seguido por um sentimento quase patológico de
rejeição popular, baseado em mecanismos de racionalização da epidemia que variava desde
afirmar que o vírus era inteiramente inofensivo até insistir que determinados indivíduos ou
raças eram os únicos a ser abençoados com a capacidade de sobreviver à infecção. A história, sustentavam, julgaria o desempenho dos líderes políticos e religiosos do mundo dos
anos 80. Seriam eles considerados equivalentes aos clérigos e membros da aristocracia de
Londres, do século XVII, que fugiram da cidade deixando os pobres sujeitos à peste bubônica, ou a história se mostraria mais compassiva simplesmente achando-os incapazes de ver
a tempestade até que ela atingisse seus lares?
No decorrer dos últimos cinco anos, os cientistas, especialmente nos EUA e na França,
vêm manifestando sua preocupação de que o HIV; longe de representar uma aberração da
saúde pública, pode ser um sinal do que há por vir. Eles advertem que a humanidade aprendeu
muito pouco sobre prevenção e resposta a novos microorganismos, a despeito da clamorosa
tragédia da AIDS, e pedem para que se reconheça que mudanças a nível micro no ambiente de qualquer nação podem afetar a vida a nível macro global. 6
Os velhos inimigos da humanidade são, afinal, os microorganismos. Eles não desaparecem apenas porque a ciência inventou medicamentos, antibióticos e vacinas (com a notável exceção da varíola). Eles não desapareceram do planeta quando americanos e europeus limparam seus municípios e cidades na era pós-industrial. E os microorganismos não
serão aniquilados simplesmente porque seres humanos resolvem ignorar sua existência.
Neste livro estudo a história recente do aparecimento de doenças, examinando em
ordem aproximadamente cronológica exemplos que focalizam as causas das epidemias
microbianas e a maneira como a humanidade responde a elas, do ponto de vista da cultura, ciência, medicina, burocracia, política e liderança religiosa.
22
A PRÓXIMA PESTE
o
livro examina também a biologia da evolução a nível microbiano, analisando cuidadosamente os meios pelos quais os agentes da doença e seus vetores estão se adaptando para
se contrapor às armas defensivas utilizadas para proteger os seres humanos. Além disso, A
próxima peste procura saber de que forma o homem está sendo realmente cúmplice dos
microorganismos, mediante projetos de desenvolvimento malplanejados, medicina malorientada, saúde pública fora de padrão e ação/inação política míope.
Finalmente, são oferecidas algumas soluções. O medo, sem soluções lenitivas potenciais, pode ser volátil. Ele tem, através da história, estimulado o confinamento perpétuo
das yítÍmas de uma doença. De um ângulo menos grave, ele levaria ao uso inadequado
de dinheiro e recursos humanos visando afugentar um inimigo real ou imaginário ..
O que é necessário, de maneira geral, é um novo paradigma de como as pessoas encaram a doença. Em vez de um ponto de vista que considera a relação entre a humanidade e
os microorganismos como historicamente linear, tendendo no decorrer dos séculos a riscos
sempre decrescentes para a humanidade, deve-se procurar uma perspectiva mais desafiadora, que permita uma relação não-linear entre o Homo sapiens e o mundo microbiano,
denuo e fora de seu corpo. Como DickLevms, da Universidade de Harvard, afirma: "É
preciso aceitar a complexidade, procurar uma forma de descrever e entender uma ecologia mutável que não põôemos ver, mas pela qual somos constantemente afetados".
Aos 80 anos e aposentado, não mais exercendo a medicina, meu tio Bernard pergunta
a si mesmo como muitos médicos americanos hoje reconheceriam um caso de malária,
difteria, febre reumática, tuberculose ou tifo sem precisar da orientação de demorados exames de laboratório. Ele duvida que a maior parte dos médicos no mundo industrializado
possa diagnosticar velhos flagelos como febre amarela ou dengue, quanto mais reconhecer
um microorganismo inteiramente novo. À medida que ele e o restante dos médicos da era
pré-antibióticos do mundo desenvolvido estão se aposentando e envelhecendo, Bernard
pergunta se os médicos do ano 2000 estarão melhor ou pior preparados para tratar pneumonia bacteriana do que os médicos do tempo anterior aos antibióticos.
Preparo exige compreensão. Para compreender as interações entre o Homo sapiens e o
yastO e multiforme mundo microbiano, é preciso forjar perspectivas que combinem áreas
tão diyersas como medicina, ambientalismo, saúde pública, ecologia básica, biologia dos
primaras, comportamento humano, desenvolvimento económico, parasitologia, virologia,
bacteriologia, biologia evolucionária e epidemiologia.
A próxima peste conta a história de homens e mulheres que lutaram~para entender e
CD trolar as ameaças microbianas da era pós-Segunda Guerra Mundial. A medida que os
grJ11ces conquistadores das lutas contra doenças se aposentam, os laboratórios das faculda 'o e as faculdades de medicina enchem-se de uma nova energia científica que não se
deGica a rareias aparentemente antiquadas, mas que foram valiosas nas históricas lutas
ecol . ~ -cas co tra o microorganismos. Conforme nos aproximamos do novo milênio, poucos
jm'ens cientistaS ou médicos em qualquer parte do mundo conseguem reconhecer rapidamente um mosquitO tigre, um ratO Peromyscus maniculatus, coqueluche ou difteria.
A habilidac e necessária para descrever e reconhecer as perturbações na micro ecologia
do Homo 51lpiens orão desaparecendo com o passar das gerações, deixando a humanidade
embalada numa auro-sacisfà.ção nascida do orgulho pelas descobertas e triunfos médicos,
mas despreparada para a próxima peste.
Notas
Introdução
1. R. M. Krause, Washington, Fundação Nacional de Doenças Infecciosas, 1981.
2. R. M. Krause, prefácio para S. S. Morse, ed., Emerging viruses (Oxford.)ng.: Oxford University
Press, 1993).
3. J. Lederberg, R. E. Shope e S. C. Oaks, Jr., Washington: National Academy Press, 1992.
4. E. O. Wilson, The diversity o/lifo (Cambridge, MA: Harvard Universiry Press, 1992): 31.
5. A. Gore, Earth in the balance (Nova York: Houghton Mifflin, 1992).
6. J. Lederberg, "Medical science, infectious disease, and the uniry of mankind", Journal o/the American
Medical Association 260 (1988): 684-85; e Instituto de Medicina, Emerging infections: microbial threats to
health in the United States (Washington: National Academy Press, 1992).
1. Machupo
1. K. M. Johnson et aI., "Yirus isolations from human cases ofhemorrhagic fever in Bolivia", Proceedings
o/The Society o/ Experimental Biology and Medicine 118 (1965): 113-18.
2. H. W. Lee, "Korean hemorrhagic fever" in S. R. Patryn, ed., Ebola virus hemorrhagic fever(Amsterdam:
Elsevier Press, 1978): 331-43.
3. R. G. Gordon, et aI., "Bolivian hemorrhagic fever probably transmitted by personal contact", American
Journal o/ Epidemiology 82 (1965): 85-91.
4. Muitos anos depois, Kuns se debruçaria sobre amostras de insetos que coletou em San Joaquín, e
descobriu que determinada espécie de carrapato mole, Ornithodoros boliviensis, transportava um vírus, que,
entretanto, não era responsável pela epidemia entre os seres humanos. Também não se parecia a nenhum
outro tipo de vírus sul-americano. Assim, Kuns batizou o novo microorganismo de Matucare, nome de um
regato próximo de San Joaquín. Mostrou que o vírus era letal para filhotes de ratos e porquinhos-da-índia,
mas inofensivo aos seres humanos. O Matucare jamais teria sido descoberto se não tivesse havido um surto
de doença entre as pessoas perto do habitat do carrapato o. boliviensis.
5. R. B. MacKenzie, P. A. Webb e K. M. Johnson, "Detection of complement-fixing antibody after
Bolivian hemorrhagic fever, employing Machupo, Junín and Tacaribe virus antigen", American Journal o/
Tropical Medicine and Hygiene 14 (1965): 1079-84; K. M. Johnson et aI., "Isolation of Machupo virus
from wild rodent Calomys cal/osus'; American Journal o/Tropical Medicine and Hygiene 15 (1966): 103-6; P.
A. Webb, "Properties of Machupo virus", American Journal o/ Tropical Medicine and Hygiene 14 (1965 :
799-801; P. A. Webb et aI., "Some characteristics of Machupo virus, causative agent of Bolivian hemorrhagic
fever", American Journal ofTropical Medicine and Hygiene 16 (1967): 531-38; e K. M. Johnson, "Arenavirusesin B. N. Fields et aI., eds., Virology (Nova York: Raven Press, 1985): 1033-53.
O exército dos EUA forneceu apoio logístico para a investigação Machupo. Em 1964, o sargemo Lowe:.se infectou e quase morreu em conseqüência da doença. Como aconteceu com Webb meses antes. a.
_
de Lowery cuidou do marido doente e também desenvolveu a doença. O estado de Lowery era do
que, certa manhã de domingo, o diretor do hospital ordenou ao patologista Gorgas que ficasse de p
=_
ISBN 85-209-0692-3
111111111111111111111111111111
9 798520 906926