ÀS MARGENS DE BELO MONTE: CLASSES SUBALTERNAS

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ÀS MARGENS DE BELO MONTE: CLASSES SUBALTERNAS
A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
ÀS MARGENS DE BELO MONTE: CLASSES SUBALTERNAS,
RESISTÊNCIAS E DESTERREAÇÃO
IVANA DE OLIVEIRA GOMES E SILVA1
Resumo
Parte de um complexo movimento de reestruturação do capital, as ações do Estado capitalista para a
exploração predatória da Amazônia, atuam em várias frentes e a exploração do potencial
hidroenergético representa apenas uma entre outras formas. Historicamente as investidas do capital
desconsideram as populações originárias, as comunidades tradicionais, os trabalhadores em geral,
os quais são ameaçados e atingidos por ações expropriatórias, pelas quais são espoliados em seus
territórios, desde sua materialidade espacial até nas suas diferentes formas de resistência. O objetivo
principal desse artigo é debater as variadas formas de desterreação a que estão submetidas as
classes subalternizadas pelo capital, diante dos impactos e alterações impostas pelo barramento do
Rio Xingu em função da produção de energia elétrica.
Palavras chave: Estado capitalista, Amazônia, desterreação, resistência, classes subalternas.
Abstract
Part of a complex movement of capital restructuring, the actions of the capitalist state to the predatory
exploitation of the Amazonia, act on several fronts and the exploitation of the hydropower potential is
only one among other forms. Historically the capital invested disregard the originating peoples ,
traditional communities, workers in general, which are threatened and hit by expropriatory actions for
which they are exploited in their territories , from its materiality to space in its different forms of
resistance The main objective of this article is to discuss the various forms of dispossession that are
subject subaltern classes by capital, on the impacts and changes imposed by the Xingu River bus on
the basis of electricity production.
Keywords: Capitalist state, Amazonia, dispossession, endurance, subaltern classes.
1 – Introdução
O presente trabalho visa discutir a relação entre os interesses do Estado
Capitalista e as reações da sociedade civil no contexto do planejamento e
construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no município de Vitória do Xingu,
sudoeste do
estado do
Pará.
Centro de
irradiação
da crise
planetária
contemporânea, a lógica da acumulação capitalista e sua crise estrutural, tem no
Estado capitalista seu “imprescindível parceiro de aventuras e gozos”. Assim sendo,
uma das funções primordiais do Estado capitalista é prover de condições estruturais
favoráveis o processo de acumulação do capital ao mesmo tempo em que deve
zelar pelos interesses da população.
Os processos de territorialização do agrohidronegócio na Amazônia são
compreendidos neste estudo, a partir das ações do Estado executadas desde a
ditadura militar no Brasil, tomando a década de 1970 como ponto de partida. As
1
Acadêmica da Pós-Graduação FCT-UNESP.
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iniciativas do Estado são analisadas como expressão dessa parceria, que prioriza os
intentos do capital e desconsidera, reduz e degrada os seres humanos, que são
considerados meros custos de produção (Mészáros, 2007). Tal processo somente
se realiza ao impor a desterreação ou desterritorialização das populações
tradicionais, entendendo-se que desterreação pode ser definida como uma quebra
de vínculos, uma perda de território, um afastamento dos nossos territórios, havendo
assim, uma perda de controle das territorialidades pessoais ou coletivas, uma perda
de acesso a territórios econômicos, simbólicos.
A Amazônia brasileira possui características peculiares que ensejam a cobiça
do grande capital, quais sejam, uma extensão territorial que ocupa mais da metade
do território total do país, o bioma mais extenso e uma reserva hídrica de grandes
proporções. Para o recorte temporal adotado, a Bacia do Rio Xingu se tornou objeto
de interesse do Estado por seu potencial hidroelétrico oficialmente durante a década
de 1970.
2 - Desenvolvimento
É crucial para a discussão do tema ressaltar que a região é conhecida
nacionalmente, há décadas, pelos graves conflitos fundiários sucessivos, em razão
da luta pelo uso e posse da terra. A disputa territorial na região foi impulsionada pela
sobreposição de grandes projetos coordenados e financiados pelo Estado, tais
como, a construção da Rodovia Transamazônica, Projeto de Colonização
coordenado pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA), Projetos de
Agropecuária e de exploração mineral financiados pela SUDAM (Superintendência
de Desenvolvimento da Amazônia), entre outros. Tais projetos pressupunham via de
regra a preponderância do interesse nacional, o suposto “vazio demográfico” e o
ataque aos habitantes tradicionais, sejam as populações indígenas, ribeirinhas,
extrativistas ou pequenos agricultores.
Na Amazônia, como no restante do Brasil e da América Latina, a partir da
década de 1970 foram criadas redes de mobilização popular, sobretudo como
manifestações de resistência aos opressivos regimes totalitários que tomaram o
poder na segunda metade do século XX. O anseio por participação da sociedade
civil nas decisões políticas fomentou o surgimento de várias frentes que se
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expressavam em movimentos e associações civis (GOHN, 2013). O cenário de
problemas sociais que impulsionou o surgimento e desenvolvimento dos
movimentos sociais era bastante amplo, o regime opressivo da ditadura militar era
apenas a face mais violenta apresentada aos que almejavam transformações na
sociedade. Miséria e opulência eram flagrantes nas cenas cotidianas do Brasil, no
contexto urbano ou rural.
A desigualdade social, os planos econômicos e de desenvolvimento
elaborados para o país e voltados exclusivamente para o atendimento dos
interesses do capital, a degradação da natureza promovida pelos grandes
empreendimentos, foram catalisadores de amplas reações de indignação e
provocaram o desenvolvimento de organizações populares e ações coletivas na luta
por direitos e por justiça social nos mais diferentes contextos: sindicatos de
trabalhadores urbanos e rurais, comunidades eclesiais de base da igreja católica,
associações, movimentos ambientalistas, etc. No decurso das décadas de 19701980 houve um acirramento do processo massivo e predatório de ocupação da
Amazônia brasileira (PÁDUA, 2000; FEARNSIDE, 2005). Neste período, a migração
foi incentivada pelo governo militar que via na ocupação deste „vazio demográfico‟, a
possibilidade de garantir o domínio e a soberania nacional sobre a região, bem como
a implementação de grandes projetos na perspectiva desenvolvimentista, tais como
os de mineração (Pólo Noroeste, Projeto Carajás), a construção de usinas
hidrelétricas (UHE Balbina-AM, Samuel-RO, Tucuruí-PA) e de rodovias, como a
abertura da Transamazônica (BR-230) e a Cuiabá-Santarém (BR-163).
Os Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu
foram iniciados em 1975. Destes estudos, cujas conclusões foram publicadas pelo
governo brasileiro no ano de 1980, quando a ELETROBRÁS recebeu o relatório dos
Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu, até o ano de
2010 quando a concessão da licença prévia foi expedida pelo IBAMA, em 1º de
fevereiro de 2010, ocorreram inúmeras manifestações contrárias ao projeto da UHE,
como assembleias, passeatas, embargos judiciais, atos públicos, promovidos por
movimentos sociais de resistência liderados por indígenas, ambientalistas,
religiosos, ribeirinhos, pesquisadores, artistas nacionais e estrangeiros, que
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denunciavam os graves danos socioambientais que a UHE provocaria na região e
solicitavam seu cancelamento.
Um marco emblemático da resistência popular regional diante dos projetos de
construções de Usinas Hidrelétricas no rio Xingu, foi a realização, no ano de 1989,
da I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Liderado pelos indígenas da etnia
Kayapó e apoiado pelos movimentos sociais em escala local, regional, nacional e
internacional, o encontro obteve ampla cobertura da imprensa mundial e teve como
símbolo maior da manifestação a reação indignada de Tuíra, mulher da etnia
Kayapó, que encostou um facão na face do representante da ELETRONORTE
durante o evento.
A Constituição Federal do Brasil, ao tratar do Meio Ambiente, postula que
cabe ao Estado assegurar o equilíbrio harmonioso entre o homem e o meio
ambiente em que vive, devendo sempre o interesse de proteção ao meio ambiente,
por ser um interesse público, prevalecer sobre os interesses individuais privados.
Ora, esse Estado é efetivamente o provedor de condições estruturais para o avanço
do Capital, cuja característica destrutiva é evidenciada por diversos autores de
teorias críticas, tais como Mészáros (2007), que discute a incontrolabilidade e a
destrutividade do capital globalizante. Eis alguns dos eixos contraditórios que
destacamos preliminarmente no estudo em curso: As ações do Estado versus os
interesses da sociedade civil; interesses públicos x interesses privados; expansão
incontrolável do capital x sobrevivência humana.
Belo Monte enquanto um projeto gestado pelo Estado e contestado
vigorosamente pelas populações regionais durante três décadas, oferece a
possibilidade de análise da fragilidade do território tradicional diante dos avanços do
capital. Mais ainda, vislumbramos a possibilidade de analisar a ascensão de um
partido originário das lutas populares transformado em agente estratégico do capital
para viabilizar a processos de territorialização do agrohidronegócio na Amazônia.
3 - Belo Monte: represamento de injustiças e silenciamentos
Desde a retomada do planejamento e das obras da UHE Belo Monte na
primeira década dos anos 2000, assistimos um esforço monumental das forças do
capital para silenciar as vozes e pensamentos discordantes do insano megaprojeto
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do PAC. O fato de o poder central do país estar ocupado pelo Partido dos
Trabalhadores (PT) quando o projeto da UHE Belo Monte finalmente se impôs e
massacrou as resistências populares foi uma grande surpresa de início e uma
constatação tardia de um processo de cooptação (e de corrupção) que estava em
curso há mais tempo.
A proximidade ideológica e militante existente entre os integrantes dos vários
movimentos sociais locais, contrários à UHE Belo Monte e o governo que está
ocupando o poder central, gerou uma profusão de constrangimentos e processos de
desmobilização. Havia uma expectativa nos movimentos sociais que a eleição de
Lula encerraria de vez a sanha da construção da UHE no Xingu. A construção das
alianças do governo petista, contudo, acenava na direção contrária. Edson Lobão,
político conservador maranhense, que se destacou desde os conflitos envolvendo a
construção da UHE Itaipu Binacional defendendo os empreendimentos hidrelétricos
sem se importar com os prejuízos das populações atingidas2, esteve ocupando
posições estratégicas junto ao Ministérios de Minas e Energia, capitaneado por
Dilma Roussef, quando finalmente o governo assumiu a construção da UHE Belo
Monte como ação prioritária diante das ameaças de “apagão” do setor elétrico.
Diante da resistência amplamente divulgada pelas populações ameaçadas pelo
represamento do rio Xingu, em setembro de 2009, na condição de Ministro das
Minas e Energia, Lobão vociferou sobre a existência de “forças demoníacas”
contrárias aos projetos hidrelétricos. O enunciado do ministro expõe um amplo
movimento de criminalização (demonização!) dos movimentos sociais contrários ao
empreendimento da UHE Belo Monte.
Na metodologia utilizada pelos empreendedores da UHE Belo Monte para
silenciar e neutralizar os movimentos sociais merece ser destacado o processo de
apropriação e deturpação das estratégias desenvolvidas historicamente pelos
movimentos sociais. O simulacro democrático operacionalizado nas audiências
públicas obrigatórias, demonstrou desde os antecedentes das obras, que todas as
2
A pesquisadora Guiomar Germani, na obra “Expropriados terra e água: o conflito de Itaipu” (2003),
destaca pronunciamento do então deputado federal Edison Lobão, no dia 11 de abril de 1981, na
condição de vice-líder do governo, defendendo a direção da Itaipu Binacional frente às denúncias de
corrupção, recebimento de propinas e descaso nos processos indenizatórios e de reassentamentos
dos expropriados.
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armas antigas da política arcaica seriam utilizadas para forçar a opinião pública em
favor da barragem. Foram providenciados ônibus e caminhões para transportar
caravanas de participantes, trazidos de redutos eleitorais de áreas rurais, de
comunidades religiosas conservadoras e pouco esclarecidas, munidos de bandeiras,
camisetas e frases em favor do empreendimento, usando apenas o volume de
pessoas presentes e seus gritos como argumento para intimidar os movimentos
contrários à UHE Belo Monte. Numericamente inferiores, graças às artimanhas dos
empreendedores no controle de participantes nos eventos, os movimentos sociais
sofreram com campanhas difamatórias, acusados de serem atrapalhadores do
progresso, dos empregos que seriam gerados para a população local, etc. O fato de
ter no governo, patrocinador do empreendimento, os antigos aliados, também
repercutiu fortemente contra muitas lideranças da resistência ao empreendimento.
Há que se diferenciar aqui pelo menos duas tendências majoritárias
assumidas pelos atores locais remanescentes das grandes ações coletivas na
região entre os anos de 1980 até os anos 2000, diante da construção da UHE Belo
Monte: A) os grupos que se institucionalizaram e cooptados pelo governo assumiram
seu discurso desenvolvimentista, abandonando a luta contra a barragem e
assumimindo um discurso de buscar os benefícios do empreendimento; B) os
grupos que insistiram em se posicionar contrários à UHE Belo Monte e com isso
foram isolados no cenário político. É possível também identificar subgrupos que se
mesclam alternadamente aos dois grupos majoritários em ações coletivas
pulverizadas. O pragmatismo dos governos petistas na administração do estado
burguês rapidamente abandonou as bases, ou seja, as entidades de classes,
movimentos por justiça social, coletivos que possibilitaram a ascensão do partido,
que por mais de 30 anos foi companheiro nas lutas contra as desigualdades
profundas existentes no país.
Contudo, podemos compreender que o processo de rendição ao capital foi
iniciado há pelo menos uma década antes da chegada ao poder central, com a
institucionalização das organizações de base, até então articuladas como lutas
amplas por justiça social, igualdade, cidadania, emancipação, direitos, reforma
agrária, etc. O novo formato de lutas, disseminado desde o início dos anos 1990,
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visava criar novas mobilizações estimuladas por programas e projetos sociais
encimados por ONG‟s, com um padrão formal de pessoa jurídica obrigatório e com
uma crescente burocratização das ações e lutas decorrentes de conflitos sociais. A
figura
das
lideranças
assalariadas,
vinculadas
formalmente
aos
coletivos
institucionalizados operando full time também sinalizavam para mudanças
significativas nas mobilizações e organizações populares.
A desterritorialização da resistência é um dos produtos mais caros ao capital
em sua marcha desenfreada rumo à exploração ilimitada aos recursos naturais da
Amazônia e quiçá do planeta. O uso dos conhecimentos construídos no processo de
consolidação da UHE Belo Monte pelos empreendedores, que neutralizou
sistematicamente a resistência popular, representa um ataque à história das lutas
dos trabalhadores.
A desmobilização dos grupos subalternizados pelo capital está em curso, e tal
operação articula uma teia que mobiliza dinheiro, poder, ameaças, intimidação,
judicialização da resistência, criminalização dos opositores e o atropelamento de
direitos constitucionais e de acordos com organismos internacionais. A violação do
direito de consulta livre, prévia e informada, previsto na Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Declaração da ONU sobre os
Direitos dos Povos Indígenas expõe o processo unilateral e atropelado do
licenciamento e a violação do direito de consulta prévia, comprovam o descaso do
governo brasileiro com a legislação e a falta de diálogo com os povos indígenas
sobre Belo Monte.
4 – Belo Monte e suas ‘Frentes de Atração’ 3
A Licença Prévia (LP) da usina apresentou uma série de condicionantes a
serem cumpridas pela empresa para a obtenção da Licença de Instalação. Dentre
essas condicionantes, destacam-se aquelas relacionadas aos reassentamentos, que
serão construídos para realocação da população atingida pelo empreendimento Belo
3
Referência a uma das principais táticas, desde os tempos coloniais, em um cerco pacífico de povos
indígenas (Lima, 1995), que era a de identificar-se como amigo, isto é, como um interlocutor de
confiança. A iniciativa da pacificação dos povos indígenas estava ligada ao fato destes estarem
situados em áreas destinadas, pelo Estado, à exploração econômica intensiva, como nos projetos de
colonização e nos grandes projetos de mineradoras e hidrelétricas. (Silva, 2009).
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Monte (BRASIL, 2010). Atualmente, a obra já está quase concluída e os
reassentamentos apresentam problemas, desde famílias que foram excluídas do
programa sob as mais diferentes alegações, como prazos de cadastramento, por
exemplo, até problemas estruturais nas casas entregues aos expropriados. A
empresa preferiu indenizar a reassentar, pagando aos moradores quantias abaixo
do mercado local, inflacionado pelo próprio empreendimento. Outra estratégia
utilizada foi negociações individualizadas, por exemplo, em vilas na área rural. A
estratégia de „dividir para dominar‟, foi aplicada durante as reuniões de negociação e
a individualização na negociação serviu aos intentos do empreendedor, que gastou
menos nas indenizações e não se comprometeu com o reassentamento coletivo na
área rural.
As ações mitigatórias dos impactos do empreendimento no que se refere aos
povos indígenas, na prática são ações genocidas, visto que uma das metodologias
adotadas pelo Consórcio Construtor de Belo Monte (CCBM) criou um balcão de
negociações na cidade de Altamira, o que colocou em situação de alta
vulnerabilidade as populações das diferentes etnias do Xingu. Atraídos para a
cidade, sem contar com alojamentos adequados, centenas de indígenas ocuparam
os vãos entre os prédios da Universidade Federal do Pará, ou ficaram amontoados
em espaços superlotados e inadequados alugados pelo Consórcio. Casos de
bebedeiras, brigas e até estupros envolvendo indígenas ocorreram durante este
período. A motivação das populações indígenas para a permanência na cidade era a
busca por bens de consumo, geralmente supérfluos, prejudiciais à saúde coletiva,
distribuídos de forma similar aos relatos da ocupação europeia nas américas no
século XVI. Os “presentes” variavam desde roupas, alimentos industrializados,
combustíveis, veículos motorizados, eletrodomésticos, enfim, uma parafernália de
bugigangas que de alguma forma gera uma dependência perversa das populações
nativas a diversos produtos desnecessários as suas dietas ou as suas vidas nas
aldeias. Não obstante a desfaçatez da oferta abundante dos presentinhos, as obras
reivindicadas nas aldeias, que consistiram basicamente em moradias, escolas e
postos de saúde, quando muito tiveram a construção iniciada, mas nenhuma das
etnias recebeu efetivamente esses investimentos que seriam relevantes para o bem-
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estar das comunidades a médio e longo prazo. Criou-se uma dependência brutal das
populações indígenas em relação ao consórcio empreendedor: o ritmo da vida no
ambiente tradicional foi alterado, muitas famílias abandonaram suas roças e
passaram a se alimentar exclusivamente com os produtos fornecidos pelo
empreendimento.
A sociedade civil, devidamente institucionalizada, foi convocada pelo governo
federal, via Ministerio da Integração Nacional e com o aparato local do CCBM, para
participar do rateio de um montante estimado em R$ 500.000.000,00 (quinhentos
milhões de reais). No discurso do empreendedor, os movimentos sociais seriam
“empoderados” ao participar da distribuição dos recursos, participando dos editais,
submetendo projetos ao gestor dos recursos do PDRS Xingu. O Comitê Gestor do
PDRS Xingu é composto por representantes dos governos federal, estadual e
municipais, comunidades indígenas, movimentos sociais, organizações ambientais,
entidades sindicais dos trabalhadores rurais, urbanos, de pescadores e entidades
patronais. De acordo com o discurso oficial, essa estrutura permitiria que a
população afetada, assim como as associações que a representa, opinassem sobre
a implantação do projeto de Belo Monte (BRASIL, 2011).
A criação de um comitê composto pelos representantes da sociedade
envolvidos e/ou afetados pela obra de Belo Monte é propagandeada pelo
empreendimento como um exemplo de gestão de conflitos, na verdade é um grande
balcão que privilegia e coopta parceiros de acordo com a sua influência no cenário
regional e partidário. É um dispositivo que neutraliza os movimentos de resistência,
considerando-se que ao aceitarem participar do jogo na caça aos recursos
financeiros, aceita-se operar dentro das regras do consórcio. Assim, do ponto de
vista formal e ao arrepio das leis, o empreendimento se impõe dispersando,
subjugando e silenciando seus opositores.
5 – Conclusões
Cada reivindicação ou projeto de sindicatos, associações, fundações, ong‟s,
na dinâmica definida pelo CCBM, ,tem sua esfera de identificação fragmentada,
territorial, corporativa e socialmente. Cada projeto encaminhado e defendido pelos
representantes dos movimentos sociais junto aos comitês, expressa a fragmentação
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e o isolamento a que foram submetidos. O pragmatismo, imediatismo e
despolitização dos movimentos sociais é o trunfo que os operadores do capital
exploram nesse momento. O valor de uso do território, inclusive do território
simbólico da resistência da classe trabalhadora, é reduzido ao valor de troca, que o
capital define como melhor lhe convém.
Daí emerge a necessidade de buscar esclarecer a consciência da atual
ausência de uma luta contra-hegemônica, que significa um retrocesso na luta dos
trabalhadores da região afetada pela UHE Belo Monte. A luta por justiça social que
marcou a história dos trabalhadores da Transamazônica e Xingu, está amiudada,
constrangida, servindo ao capital, buscando pedinchas travestidas de políticas
públicas, como reparação por um dano maior. Essa cumplicidade maliciosamente
construída pelo Estado capitalista, serve para encobrir o aviltamento do território
duramente conquistado pelas lutas dos trabalhadores em suas associações,
sindicatos, movimentos, no decorrer de décadas. Constituído na parceria com o
Estado, o território do capital tem a seu favor todo o aparato político. Não há limites
legais, ambientais, jurídicos. Segundo a procuradora da República em Altamira,
Thaís Santi4, “houve um processo de silenciamento da sociedade civil.”
A reflexão acerca da significação do território para além de uma racionalidade
instrumental, que na contemporaneidade tem reduzido-o à um status de recurso
natural dentro de uma lógica economicista, busca problematizar uma concepção
dicotomizante que aparta natureza e sociedade como se fossem categorias isoladas.
O esforço reflexivo para compreender os desdobramentos do avanço destrutivo do
capital é crucial para a construção de sua necessária superação.
A produção de eletroenergia, considerada essencial para a operacionalização
do modelo urbano-industrial, pilar do sistema capitalista, faz com que a energia
elétrica seja concebida como uma mercadoria importante para a reprodução do
capital, e, consequentemente sua produção e uso se encontram administradas pela
lógica do mercado.
Pulverizadas as resistências, as injustiças socioambientais decorrentes da
construção da usina hidrelétrica no rio Xingu, são tratadas pela lógica do capital
4
Entrevista concedida à Eliane Brum em dezembro de 2014.
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como custos de produção. Isso é representativo da irracionalidade de um sistema
que ameaça o futuro da humanidade, seja pela desumanização nas relações, pelo
desrespeito às leis e pela ausência total de limites. De acordo com Antunes (2003, p.
16), é “imprescindível entender quais mutações e metamorfoses vêm ocorrendo no
mundo contemporâneo, bem como quais são seus principais significados e suas
mais importantes consequências”, assim buscamos acompanhar as metamorfoses
que envolvem os movimentos sociais no confronto com os interesses do capital, com
o objetivo de entender as contradições da sociedade do capital, as transformações e
mudanças que atingem diretamente as diferentes formas de expressão do trabalho e
da cultura, já contaminadas pela imposição das condições degradantes à classe
trabalhadora pelo capital.
Busca-se, portanto, ampliar os horizontes de entendimento desse processo,
para ter condições de evidenciar as contradições e os vínculos existentes entre as
várias dimensões do processo hegemoneizador do capital em nível mundial e que
implica na condução política dos trabalhadores, nos sindicatos, nos movimentos
sociais e nos partidos políticos. Tal tarefa exige que se concentrem esforços para
dirigir a atenção sobre a dinâmica geográfica do trabalho e sua plasticidade
continuamente
refeita,
para
a
constante
territorialização-desterritorialização-
reterritorialização que extrapola as fronteiras existentes entre o que é rural e do que
é urbano, que rompe com os termos cidade-campo e se mescla às diferentes
relações de trabalho, vínculos empregatícios e às subjetividades expressas no
âmbito da identidade organizativa (THOMAZ JUNIOR, 2009).
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