A experiência da Auditoria Oficial da Dívida Pública equatoriana e a

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A experiência da Auditoria Oficial da Dívida Pública equatoriana e a
A experiência da Auditoria Oficial da Dívida
Pública equatoriana e a recente tentativa de golpe
de Estado
Maria Lucia Fattorelli
Qua, 13 de outubro de 2010
Maria Lucia Fattorelli
No ano de 2007, o presidente Rafael Correa criou a Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público (CAIC), cuja
atribuição foi a realização da auditoria oficial da dívida pública do país - tanto interna quanto externa; seus impactos
sociais, ambientais e econômicos. Essa atitude soberana foi um passo fundamental em direção à conquista da verdadeira
independência da América Latina, ao mesmo tempo em que significou uma vitória dos movimentos sociais que há
décadas lutam pela auditoria da dívida pública, que consome a maior parcela dos recursos orçamentários.
O relatório final da CAIC apresentou ao presidente Rafael Correa o resultado das investigações técnicas, identificando
inúmeras irregularidades e indícios de ilegalidades e ilegitimidades no processo de endividamento público equatoriano,
tudo devidamente respaldado em documentos e provas. O presidente determinou a suspensão dos pagamentos aos
detentores dos títulos da dívida externa e submeteu tal relatório a crivos jurídicos nacionais e internacionais. Após o
referendo jurídico às conclusões da CAIC, o presidente anunciou a proposta de acatar somente 25 a 30% do valor dos
títulos da dívida externa comercial com a banca privada (Bonos 2012 y 2030). Aqueles detentores que não concordassem
com a proposta teriam que recorrer à Justiça, apresentando suas petições contra o Equador. Face às provas contundentes
de ilegalidade da dívida, 95% dos detentores dos títulos aceitaram a proposta, demonstrando a importância da auditoria
como instrumento capaz de alterar a atual correlação de forças que historicamente tem colocado os governos latino
americanos submissos ao mercado.
A atitude soberana do Equador abriu caminho para as auditorias na América Latina. Na reunião da ALBA realizada em
novembro de 2008, o presidente Correa apresentou o tema e, como conseqüência, Bolívia e Venezuela anunciaram
também a intenção de realizar auditoria de sua dívida pública.
No Brasil, durante o Seminário Internacional "Auditoría de la Deuda en América Latina" realizado em Brasília em
novembro de 2008, especialistas de diversos países realizaram intenso intercâmbio dos resultados da auditoria equatoriana
e promoveram reunião entre membros da CAIC com o presidente da Câmara dos Deputados. Algumas semanas depois,
foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Dívida Pública Brasileira (CPI da Dívida Pública), que havia sido
proposta pelo deputado Ivan Valente (PSOL/SP).
A CPI foi finalmente instalada em agosto de 2009 e, tal como na auditoria equatoriana, tive a oportunidade de contribuir
com as investigações técnicas da CPI, que identificou inúmeros indícios de ilegalidades da dívida pública brasileira - tanto
interna quanto externa. A grande diferença foi a ausência de vontade política de levar adiante tais resultados no Brasil,
apesar de a auditoria da dívida estar prevista na Constituição Federal de 1988 - art. 26 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias - até hoje não cumprido.
Após o enfrentamento do problema da dívida pública equatoriana, os investimentos em saúde e educação naquele país
quadruplicaram; os investimentos públicos são visíveis, cabendo citar o exemplo das recentes rodovias de concreto;
diversos setores estão sendo recuperados, ressaltando-se a melhoria nas condições de vida do sofrido povo equatoriano.
Evidentemente a atitude soberana do governo equatoriano e a ética que marca as ações do presidente Correa estão
provocando profundo incômodo a setores financeiros, aos que se locupletavam da corrupção antes instalada, aos amantes
do imperialismo e que servem a setores da direita elitista que foi varrida do poder.
A recém tentativa de golpe de estado é, sem sombra de dúvidas, uma das evidências desse incômodo. O próprio presidente
Corrêa declarou imediatamente que estava ocorrendo uma "conspiração", a fim de perpetrar um "golpe de estado".
Segundo informações colhidas junto aos próprios equatorianos, as manifestações de policiais se mostraram como mero
pretexto para a tentativa de golpe, conforme relato do economista Franklin Canelos, que foi o vice-presidente da
Comissão de Auditoria da Dívida Pública do Equador(CAIC):
"Te comento además que hasta 2006, es decir inmediatamente antes del gobierno del Presidente Correa, la policía
nacional era "la última rueda del coche" entre las instituciones del estado. Es el Presidente Correa quien ha mejorado
notablemente la imagen y gestión de la policía con la dotación de vehículos, armamento, mejores remuneraciones,
formación etc. Un policía razo, hasta 2006 tenía un sueldo de US $ 250, hoy es de US $ 720, en un proceso de aumento
sostenido de sus sueldos. Un sargento de la policía que tenía un sueldo de US $ 450 hoy recibe US $ 1.200. Un oficial de
la policía que tenía un sueldo de US $ 600 hoy recibe US $ casi US $ 800.
Esto muestra que la insurrección policial por sueldos y salarios no es sino un pretexto para intentar un golpe de estado. La
nueva Ley de Servidores Públicos, que incluye FF.AA. Policía y Bomberos establece pago de horas extraordinarias a esos
servidores, cosa que nunca antes se había considerado aún cuando su trabajo se extiende por más de las 8 horas
reglamentarias.
A cambio de estabilidad laboral y pago de horas extraordinarias, amén de las remuneraciones que se han elevado
sustancialmente, la Ley deroga el pago de US $ 800 cada 5 años por ascensos y pago de bonos por juguetes en navidad,
anillos de oro por tiempo de servicio, etc.
Nunca antes la policía ha tenido cuarteles decentes, los policías, en ciudades pequeñas y en el campo, dormían en
colchones prestados, en el suelo. Hoy el gobierno les entrega cuarteles modernos y y bien habilitados así como viviendas
decentes para sus familias.
Insisto, se trató de llevar adelante un golpe de estado con el pretexto de las remuneraciones de los policías."
A melhoria das instituições estatais, dos servidores públicos e da prestação de serviços à sociedade em geral tem sido
possibilitada no Equador devido ao alívio decorrente dos pagamentos de juros e amortizações de uma dívida que era
decisivamente ilegal, ou seja, os recursos antes destinados ao serviço da dívida agora são destinados para beneficiar o
povo equatoriano.
O catedrático argentino Dr. Atilio A. Boron, diretor do Programa Latinoamericano de Educación a Distancia en Ciencias
Sociales (PLED) de Buenos Aires, também manifestou seu entendimento sobre o episódio recentemente ocorrido no
Equador, tendo declarado que houve uma tentativa de golpe de estado e não uma crise institucional, como veiculado por
vários meios de comunicação.
Boron destacou a realização da auditoria da dívida externa dentre as causas para a tentativa de golpe:
"Conclusión: no fue un pequeño grupo aislado dentro de la policía quien intentó dar el golpe sino un conjunto de actores
sociales y políticos al servicio de la oligarquía local y el imperialismo, que jamás le va a perdonar a Correa haber
ordenado el desalojo de la base que Estados Unidos tenía en Manta, la auditoría de la deuda externa del Ecuador y su
incorporación al ALBA, entre muchas otras causas.
Incidentalmente, la policía ecuatoriana hace ya muchos años que, al igual que otras de la región, viene siendo instruida y
adiestrada por su contraparte estadounidense. ¿Habrán incluido alguna clase de educación cívica, o sobre la necesaria
subordinación de las fuerzas armadas y policiales al poder civil? No parece. Más bien, actualiza la necesidad de poner fin,
sin más dilaciones, a la "cooperación" entre las fuerzas de seguridad de la mayoría de los países latinoamericanos y las de
Estados Unidos. Ya se sabe que es lo que enseñan en esos cursos."
Para Boron, o golpe não teve sucesso devido a três fatores que se fizeram presentes imediatamente à tentativa que acabou
frustrada: intensa mobilização social interna, uma vez que o povo equatoriano ocupou ruas para manifestar seu apoio ao
presidente Correa; solidariedade internacional vinda dos países da América Latina e Europa e, principalmente, a valentia
do presidente, que resistiu de pé e corajosamente, apesar do eminente risco que corria. No entanto, Boron alerta para o
risco de outros golpes aos governos que não se curvam ante os interesses imperialistas:
"La combinación de estos tres factores: la movilización popular interna, la solidaridad internacional y la valentía del
presidente terminó por producir el aislamiento de los sediciosos, debilitando su fuerza y facilitando la operación de rescate
efectuada por el Ejército ecuatoriano."
...
"Pero no hay que hacerse ilusiones: la oligarquía y el imperialismo volverán a intentar, tal vez por otras vías, derribar a los
gobiernos que no se doblegan ante sus intereses."
Tive a honra de ser nomeada pelo presidente Correa para auxiliar no processo de auditoria oficial da dívida pública ao
integrar a CAIC no Equador, tendo também sido requisitada pela Câmara dos Deputados para auxiliar as investigações da
CPI da Dívida Pública no Brasil. As semelhanças do processo de endividamento de nossos países desde a década de 70
são impressionantes e os documentos a que tivemos acesso comprovam que a dívida externa faz parte de um mesmo
processo de dominação financeira do continente, em detrimento das necessidades mais urgentes de nossos povos.
Algumas semelhanças merecem ser destacadas, por serem flagrantemente ilegais:
Tanto a CAIC equatoriana como a CPI brasileira identificaram que a dívida externa de nossos países surgiu nos anos 70,
contratada por governos ilegítimos (ditaduras), e apresentaram excessivo crescimento a partir da elevação unilateral das
taxas de juros pelos bancos privados internacionais que controlavam a taxa Prime nos Estados Unidos e a taxa Libor na
Inglaterra. Esses bancos privados eram ao mesmo tempo os maiores credores daquela dívida ilegítima, ou seja, atuaram
unilateralmente e em benefício próprio. Tal atitude é legalmente questionável, segundo o disposto na Convenção de
Viena a respeito do Direito dos Tratados (1969), em seu artigo 62, que trata do "Cambio fundamental de circunstancias".
As investigações comprovaram que essa elevação unilateral das taxas de juros provocou a crise da dívida dos anos 80,
levando a uma situação que obrigou ao Banco Central de nossos países a assumir questionáveis dívidas de entidades
públicas e privadas, tornando-se o responsável perante os bancos privados internacionais. Os contratos firmados pelo
Brasil e Equador em 1983, 1984 e emenda em 1986 são extremamente semelhantes, variando apenas cifras e pequenos
detalhes, mas a essência imperialista e o desrespeito à nossa soberania são idênticos. Em 1992 houve renúncia a prescrição
da dívida externa equatoriana com bancos privados, enquanto que no Brasil se apurou a realização de obscuras operações
no Canadá, onde também foram firmadas solicitações de renúncias que não chegaram a ser devidamente esclarecidas à
CPI. Em 1994, ambos os países se submeteram ao Plano Brady, transformando aquela questionável dívida que já poderia
inclusive estar prescrita em títulos que depois foram aceitos no processo de privatizações para adquirir nossas empresas
estatais estratégicas e lucrativas. Posteriormente, houve a transformação em títulos denominados Global, tanto no Equador
como no Brasil.
Elaboramos uma simulação para demonstrar o impacto provocado pela elevação das taxas de juros, chegando ao
impressionante resultado que demonstra que caso as taxas tivessem sido mantidas em 6%, tal como contratadas, a dívida
externa estaria completamente paga e ainda haveria crédito a ser ressarcido tanto ao Brasil como ao Equador:
Outra importante conclusão foi possibilitada pela comparação entre os ingressos de recursos e saídas, demonstrando-se
que o processo de endividamento não foi uma fonte de financiamento, mas sim um mecanismo de extração de recursos de
nossas nações em favor do setor financeiro privado. As transferências líquidas efetuadas pelo Equador aos rentistas foi de
US$ 7,13 bilhões (1976 - 2006) e pelo Brasil foi de US$ 144 bilhões (1971 - 2008). Apesar desse impressionante volume
de pagamentos, as dívidas dos dois países continuaram crescendo.
Esses são apenas alguns exemplos, mas inúmeras foram as irregularidades encontradas nas duas investigações. A grande
diferença é que o Equador reagiu diante das ilegalidades apontadas pelas investigações, enquanto no Brasil as dívidas
interna e externa estão crescendo aceleradamente: a dívida interna já supera R$ 2,1 trilhão e a externa US$ 282 bilhões.
Adicionalmente, a cada ano o pagamento do serviço da dívida tem exigido um volume de recursos cada vez mais
relevante: em 2008 foram destinados 30,5% dos recursos do Orçamento Geral da União para o pagamento de juros e
amortizações. Em 2009, esse percentual saltou para 36%, enquanto áreas sociais fundamentais receberam quantias várias
vezes menores, como a saúde (4,64%), educação (2,88%), assistência social (3,09%).
Ao enfrentar essas ilegalidades e priorizar os interesses sociais, o Equador deu ao mundo uma lição de soberania,
demonstrando respeito à sua gente e à sua condição de nação independente. A tentativa de golpe de estado certamente
visou a retaliar a atuação daquele presidente que ao invés de seguir contentando às exigências do império financeiro, teve
coragem e altivez para mudar o rumo da história de seu país.
O golpe foi frustrado. Adelante, Correa!
13/10/2010
Maria Lucia Fattorelli é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida