renovação do registro de arma de fogo

Transcrição

renovação do registro de arma de fogo
Revista Eletrônica PRPE. Junho de 2007
RENOVAÇÃO DO REGISTRO DE ARMA DE FOGO
Antonio Carlos de Vasconcellos Coelho Barreto Campello
Procurador da República
Professor de direito Penal da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco
Com a proximidade de expiração do prazo para a renovação dos registros de
arma de fogo efetuados nos órgãos estaduais, prevista no §3º, do art. 5º, da Lei nº10.826,
de 22 de dezembro de 2003, surgiram alguns importantes questionamentos de ordem
jurídica, com relevantes conseqüências não só para os cidadãos, mas também para o
interesse público.
É verdade que, numa primeira leitura, poder-se-ia pensar que a
exigência contida nos atos infra-legais de regulamentação atende à determinação contida no
§2º, do art. 5º da lei regulamentada, não inovando aquelas normas nada na disciplina legal
da matéria. Assim dispõem os dispositivos que interessam:
Lei 10.826/2003.
Art. 4o Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá,
além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:
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I – comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões de
antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não
estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal;
II – apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de
residência certa;
III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para
o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei.
............
Art. 5o O certificado de Registro de Arma de Fogo, com validade em todo o território
nacional, autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou
domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o
responsável legal pelo estabelecimento ou empresa. (Redação dada pela Lei nº 10.884, de 2004)
§ 1o O certificado de registro de arma de fogo será expedido pela
Polícia Federal e será precedido de autorização do Sisnarm.
§ 2o Os requisitos de que tratam os incisos I, II e III do art. 4o deverão
ser comprovados periodicamente, em período não inferior a 3 (três) anos, na conformidade
do estabelecido no regulamento desta Lei, para a renovação do Certificado de Registro de
Arma de Fogo.
§ 3o Os registros de propriedade, expedidos pelos órgãos estaduais,
realizados até a data da publicação desta Lei, deverão ser renovados mediante o pertinente
registro federal no prazo máximo de 3 (três) anos.
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Uma análise mais cuidadosa e sistemática do ordenamento
jurídico, contudo, leva-nos à conclusão de que não se pode equiparar a situação das
pessoas que já têm legalmente armas de fogo registradas perante os órgãos estaduais e
estão obrigadas a renovar o registro na esfera federal (art. 5º, §3º), com a daquelas que
vieram a adquirir arma já sob a égide da nova legislação (art. 5º, §2º).
A distinção de situações, além de se coadunar com os objetivos
da norma, é essencial para se manter a higidez do ordenamento jurídico, como
procuraremos demonstrar abaixo.
Inicialmente, é importante ter em mente os objetivos da Lei
nº10.826/2003 em relação aos temas por ela tratados, especialmente no que se refere a i)
aquisição; ii) porte, iii) registro e iv) renovação do registro de que cuida o §3º, do art. 5º.
i) No que tange às novas aquisições de armas, nítido é o seu
intuito restritivo, criando a lei requisitos que devem ser necessariamente comprovados pelos
cidadãos interessados, tais como a efetiva necessidade de adquirir arma; idoneidade,
mediante a apresentação de certidões negativas de diversos órgãos; ocupação lícita e
residência certa, além de capacidade técnica e aptidão psicológica de manuseio (art. 4º).
Além do mais, referidos requisitos devem ser comprovados periodicamente, quando das
sucessivas renovações do registro (art. 5º, §2º).
A imposição dessas exigências pela lei é louvável. Tem por
objetivo desestimular a aquisição de novas armas, no claro intuito de estancar a então
crescente escalada armamentista da sociedade brasileira.
ii) Também foi a lei extremamente rigorosa ao estabelecer os
requisitos para o porte de arma, tornando-o proibido como regra, apenas admitindo estreitas
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exceções (arts. 6º e 10, §1º). Aqui igualmente merece aplausos a nova lei, objetivando tornar
mais seguras as ruas, já que mesmo cidadãos de bem, em situações de estresse, podem vir
a usar sua arma por motivo banal, tal como uma discussão no trânsito.
Assim, a restrição legal à concessão de porte de arma, (dirigida
aos cidadãos cumpridores da lei), acompanhada de intensa e rigorosa fiscalização visando à
apreensão de armas portadas sem autorização (dirigida principalmente àqueles que vivem à
margem da lei), deveria trazer mais segurança à população.
Por razões óbvias, é certo que apenas as medidas dirigidas às
pessoas cumpridoras da lei têm produzido algum efeito na diminuição da violência, o mesmo
não acontecendo, porém, com a marginalidade, que continua a andar armada nas ruas, sem
ser, regra geral, importunada pelas autoridades. Essa conhecida omissão estatal, contudo,
não retira o mérito da lei ao restringir o porte.
iii) O registro, é sabido, apenas autoriza a posse da arma na
residência ou local de trabalho (art. 5º, caput), com o fim precípuo da autodefesa.
Ao contrário dos tópicos anteriores, a exigência do registro visa a
dotar o Poder Público de um banco de dados em que constem todas as armas existentes no
País, informando quais são, quem as possui, onde se encontram e qual o perfil do
proprietário.
Por razões manifestas, não atende ao interesse público criar-se
obstáculos ao registro das armas existentes, sob pena de se ter um cadastro falho, parcial,
de pouco valor. Em outras palavras, existindo no mundo real a arma, tem o possuidor o
dever de cadastrá-la e o Poder Público o dever de efetuar o cadastramento.
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Poder-se-ia argumentar que a imposição de requisitos para o
registro, comprovados periodicamente, teria por finalidade compelir a entrega da arma às
autoridades dos que eventualmente não atendessem aos requisitos.
Como será visto mais abaixo, porém, a lei, embora pudesse fazêlo, não previu essa hipótese de perda compulsória da propriedade da arma, razão pela qual
não estará o proprietário obrigado a entregá-la às autoridades. E aí vem a questão: a arma
existe no mundo real, ninguém pode retirá-la compulsoriamente do proprietário1, sob pena
de violar o direito constitucional de propriedade, mas o Poder Público se nega a registrá-la.
Essa negativa implica ofensa indireta ao direito de propriedade,
visando negá-lo, sem respaldo no ordenamento. De duvidosa constitucionalidade, portanto,
a exigência contida no §2º, do art. 5º, da Lei nº10.826/20032.
Neste pequeno estudo, porém, não nos aprofundaremos neste
ponto, já que pretendemos aqui abordar especificamente a renovação de registro de que
cuida o §3º, do mesmo artigo, o que faremos a seguir.
iv) Aqui temos a simples renovação do registro das armas antigas,
legalmente adquiridas antes da vigência da Lei nº10.856/2003 e que estavam regularmente
registradas em diversos órgãos de segurança dos Estados da Federação (art. 5º, §3º). Esse
o tema principal de nosso pequeno estudo.
1
Por falta de previsão legal da expropriação.
2
O STF abordou o tema no julgamento da Adi 3112-1-DF, sustentando o relator linha diferente da aqui defendida. Isto,
contudo, não prejudica nosso estudo porque: i) o tema foi abordado de modo superficial, unicamente sob a ótica da
propriedade; ii) não foram abordadas diretamente as conseqüências jurídicas do indeferimento do registro,
especialmente acerca da não compulsoriedade intrínseca à hipótese do art. 31 da Lei de regência; iii) a
inconstitucionalidade do §2º não é pressuposto, neste estudo, das conclusões nele contidas acerca da hipótese prevista no
art. 5º, §3º, especialmente sobre o interesse público que informa a sua existência.
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Cuida-se de uma situação consolidada, que atinge milhares de
pessoas que, de forma legítima, de acordo com as leis então vigentes, têm a posse de arma
de fogo em suas residências. A essas pessoas que a norma contida no citado §3º, do art. 5º,
se dirige.
Mas pergunta-se: qual o objetivo dessa norma?
Também diferente das situações previstas nos dois primeiros
tópicos, em que o objetivo de desestímulo à aquisição e ao porte são evidentes, o escopo
aqui é o da transparência e confiabilidade no banco de dados, reunindo em um só cadastro
padronizado as informações de todas as armas de fogo existentes no País.
Cediço que esse objetivo não era alcançado com os cadastros
estaduais, geridos em grande parte de forma não confiável, sem o mínimo rigor e
padronização, além de conterem informações vagas e desatualizadas.
Pode-se afirmar, assim, sem medo de errar, que a norma em
comento tem por finalidade, além de atualizar os cadastros então existentes, centralizar as
informações em um cadastro nacional, uniforme. A existência desse banco de dados é
essencial para o combate à violência e à criminalidade.
Mas, para atingir esse intuito, é indispensável que o maior número
de pessoas venha a renovar, perante a Polícia Federal, o antigo registro efetuado nos
órgãos estaduais, nos moldes da determinação contida no dispositivo legal em apreço.
Aqui, porém, começa o paradoxo: por uma interpretação
equivocada desse dispositivo (destinado especialmente às pessoas que já tinham arma
registradas nos Estados), ao invés de se incentivar a renovação, tem-se colocado toda sorte
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de obstáculo aos cidadãos.
De fato, na regulamentação da mencionada lei, conferiu-se à
renovação de que trata o §3º, do art. 5º o mesmo tratamento dispensado para a aquisição de
nova arma. Como já visto, ao contrário daquelas situações, na renovação do registro se
busca a construção de um banco de dados federal atualizado, confiável e padronizado,
necessitando-se, portanto, de ampla adesão da população, incompatível com os vários
obstáculos criados.
O primeiro deles consiste no valor das taxas cobradas. Apenas
para renovar o registro de uma única arma de fogo, paga-se R$600,00 (seiscentos reais), aí
incluídos os valores referentes aos exames de capacidade técnica e aptidão psicológica.
Além da despesa, a burocracia e o tempo despendido para a
realização desses exames também constituem fatores de desestímulo à renovação do
registro. Não é preciso muito esforço para se concluir que não será pequeno o número de
pessoas que simplesmente quedarão inertes1.
Vê-se, assim, que o objetivo visado pela lei em relação à
confiabilidade do cadastro federal de armas estará seriamente comprometido, já que
certamente milhares de pessoas, diante desses obstáculos, deixarão de cumprir o
determinado no dispositivo legal em apreço, passando, assim, à clandestinidade.
Evidentemente que esse não é o escopo da norma comentada,
nem atende ao interesse público jogar de uma só vez milhares de brasileiros na ilegalidade.
1
Até agora, a soma das armas recadastradas (455 mil) e das devolvidas (500 mil) à Polícia Federal não
representa nem 10% do universo de armas do País - estimado em 10 a 15 milhões. (Publicado no JC on line
de 5/6/7).
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Mas, o que fazer com as pessoas que detêm armas legalmente há
anos, regularmente registradas nos órgãos então competentes, que requereram a renovação
do registro na forma do art. 5º, §3º e o tiveram indeferido por uma razão qualquer? Perderão
compulsoriamente a propriedade e a posse da arma? Ficarão com a arma sem registro,
tornando-se automaticamente foras-da-lei?
Quanto à perda compulsória da propriedade, a primeira resposta
que vem à mente é a de que, indeferido o registro, poderá o interessado entregar
espontaneamente a arma, na forma prevista no art. 311, da Lei em tela. Poder-se-ia
argumentar em favor dessa tese, inclusive, que o escopo da lei ao determinar a renovação
do registro das armas na forma do §3º, do art. 5º seria, ao contrário do que sustentado linhas
acima, principalmente o de restringir a posse de armas, obrigando aqueles que venham a ter
indeferida a renovação do registro a devolver a arma.
O entendimento supra, contudo, não se sustenta, por uma razão
simples: o art. 31 cuida da hipótese da entrega voluntária da arma, enquanto que aqui
estamos diante de hipótese de entrega compulsória: a lei obriga o registro e este não é
deferido pelas autoridades, pretendendo estas que o interessado se desfaça dela
unicamente como conseqüência lógica do indeferimento, sob pena de incorrer na prática de
crime. A grave sanção imposta para a permanência da posse da arma não registrada revela,
assim, a compulsoriedade da entrega, afastando a aplicação do art. 31.2
A perda compulsória da propriedade por ato do poder público,
assim, somente pode se dar por meio de confisco, excepcionalmente admitido pela
1
Art. 31. Os possuidores e proprietários de armas de fogo adquiridas regularmente poderão, a qualquer tempo, entregá-las à Polícia
Federal, mediante recibo e indenização, nos termos do regulamento desta Lei
2
Outro fator que revela insofismavelmente que o art. 31 não pode ser invocado para obrigar a entrega da arma consiste
no valor fixo da indenização previsto pela norma, incompatível com a noção de justa e prévia indenização requerida na
desapropriação, que pressupõe avaliação de cada arma a ser tomada do particular.
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Constituição, ou mediante desapropriação, nas hipóteses legalmente previstas, não
presentes no caso em exame.
Fosse a intenção da lei obrigar a entrega da arma quando
indeferida a renovação do registro de que trata o art. 5º, §3º, teria que, necessariamente,
estipular essa hipótese como causa de perda da propriedade, mediante indenização, o que,
contudo, não se verifica, talvez até mesmo por omissão involuntária do legislador, mas que
não pode ser suprida pelo aplicador da lei.
Teremos, portanto, situação no mínimo inusitada: o cidadão que
tiver o registro indeferido não estará obrigado a entregar a arma, pois a Constituição lhe
garante o direito de propriedade, que só pode ser cassado mediante expressa previsão legal
e justa indenização, inocorrentes, in casu. A arma continuará na sua posse, mas sem
registro nos bancos de dados federais, situação que não atende ao interesse público.
Nesta hipótese, seria até mesmo de tipificação duvidosa a
conduta no crime previsto no art.121, da lei multicitada, que exige o dolo para sua
configuração, a princípio incompatível com a conduta de quem adquiriu legalmente a arma,
possuía o registro regular e requereu sua renovação perante as autoridades, afastando
qualquer traço de clandestinidade da respectiva posse.
Não se pode esquecer, também, do instituto penal do exercício
regular de direito, excludente da antijuridicidade, pois além do direito de propriedade,
teríamos o de autodefesa, tão necessário hoje diante do fracasso do Poder Público em
conter a criminalidade. Não se pode negar que a posse da arma na residência, adquirida
segundo as leis então vigentes, caracteriza meio necessário ao exercício da defesa do
1
Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação
legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular
ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
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proprietário e de sua família. Essa, aliás, a posição legitimada pela sociedade brasileira, por
meio do recente plebiscito.
Afastada a existência de crime, sequer se pode ventilar a hipótese
de perda da arma como efeito da condenação, previsto no art. 91, do Código Penal.
De qualquer sorte, como já visto, não cremos ser interesse do
Poder Público tornar, de uma hora para outra, milhares de brasileiros criminosos, não sendo
esse o escopo da norma comentada, nem muito menos atende ao interesse público ter um
banco de dados incompleto, como sói acontecer se persistirem as exigências mencionadas.
Assim, até mesmo pela sua posição topográfica na lei, conclui-se
que as disposições do §2º (de constitucionalidade duvidosa, como visto), do art. 5º da lei não
se aplica à renovação de que trata o §3º do mesmo artigo, devendo as autoridades
procederem à renovação do registro sem maiores exigências, de sorte a incentivar a adesão
maciça da população que possui arma legalmente, a fim que todas elas constem do banco
de dados atual e confiável.
Tudo o que foi dito pode ser resumido num raciocínio:
a arma de fogo existe no mundo dos fatos, logo deverá ser registrada. A
opção pelo indeferimento do registro não a fará desaparecer, apenas a tornará
invisível para as autoridades. Parece-nos, esta ultima opção, pouco inteligente.

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