Um fantoche com a voz da autonomia

Transcrição

Um fantoche com a voz da autonomia
Um fantoche com a voz da autonomia
A puppet with the voice of the autonomy
“Esquece tudo o que sabes ou pensas que sabes;
Abandona o poder e a lei que vigora.
No interior, onde correm os rios mais profundos,
Descobre as correntes da eternidade...”
Willow na Terra da Magia
1. Introdução
Manuel Machado
Psicólogo Clínico
Rogério Pastor-Fernandes
Psicólogo Clínico
Assistente do Curso de
Psicologia Clínica do
Instituto Superior de
Ciências da Saúde-Norte
Correspondência:
Manuel Machado
[email protected]
O Nuno (nome fictício) é um cliente do sexo masculino, com oito
anos, nascido em 11 de Agosto de 1993. Quando ele entrou pela
primeira vez no consultório, acompanhado pela mãe e pela irmã, o
que mais ressaltou foi o seu aspecto lânguido; muito moreno, com
umas grandes pestanas, e uma timidez marcada. Enquanto a mãe
falava, ele contorcia-se todo em movimentos ansiosos, e nunca olhava
para o psicólogo. Nas sessões seguintes foi progressivamente “soltando-se” mais, mas sempre sem olhar nos olhos do entrevistador; foi
progressivamente mostrando-se uma criança menos apática, menos
tímida e mostrou-se um Nuno, embora sempre sem perder a sua
timidez, capaz de conseguir divertir-se, de fazer humor e de brincar.
Pareceu-nos timidez; o seu comportamento mostrava uma inibição:
a sua incapacidade para comunicar com o psicólogo e o seu retraimento
perante a sua pessoa, levaram-nos a projectar uma dificuldade de
interacção caída por terra, logo que ao Nuno foi permitido entrar
em cena.
O acompanhamento psicológico que apresentamos contou com
onze sessões. Oito dessas foram realizadas com o Nuno e as outras
três (a primeira, a terceira e a sexta) com os pais. No que respeita
às entrevistas com os pais, para além da primeira, a terceira foi com
o intuito de retirar dados anamnésticos para posteriormente construir
uma história clínica, e a sexta na tentativa de dar aos pais (que foi
só a mãe visto o pai não ter podido ir) uma devolução do caso.
Foram aplicados o Teste do Pata Negra e o Teste do Desenho de
uma Família como meios auxiliares de diagnóstico. O resto do tempo
foi ocupado com sugestões (lúdicas) que o Nuno foi propondo. De
que modo?
Axline (1993) diz que “o brincar é o meio natural que a criança possui
para se expressar.” (p.9). Baseando-nos nesta afirmação, deu-se
liberdade para o poder fazer, quer através do desenho quer através
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do brinquedo. Arfouilloux (1980) especificamente em relação ao
brinquedo, diz que este é representação e comunicação:
“representação do mundo exterior que a criança se faz a si mesma,
representação do mundo do seu mundo interior que ela projecta nos
temas do seu brinquedo; ele é comunicação, pois, embora haja brinquedo
solitários, há outros que permitem o estabelecimento de uma relação
com outrem, seja um adulto ou uma criança. E quando a palavra falha,
essa forma de comunicação revela-se particularmente preciosa para
a entrevista.” (p.94). Desta forma, tentamos, por um lado, estabelecer
uma relação com o Nuno, encontrando um meio onde ambas as
partes (entrevistador e entrevistado) sentissem conforto para
comunicar, e por outro, onde nos fosse permitido (ao psicólogo
e cliente) perceber melhor a realidade que emergia do encontro,
a problemática e o mundo interior do cliente. A dramatização,
como instrumento terapêutico é o que pretendemos abordar
neste caso clínico.
2. Pedido
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Este caso ocorreu num Centro de Saúde, no serviço de psicologia.
É marcada uma consulta através de um contacto telefónico com
a mãe do Nuno, mediante uma carta da pediatra, onde, para além
dos dados de identificação deste, a problemática era apresentada:
“jovem com enurese e encoprese, embora não possua obstipação. Possui
aversão às casas de banho, que considera “nojentas” assim como as
necessidades de defecação e micção”. Iniciou um tratamento para
a enurese, há cerca de dois meses com um medicamento cujo
princípio activo é a desmopressina (acetato hidratado).
A mãe comparece à consulta com o Nuno e a sua irmã mais nova.
Com um comunicar ansioso, falava baixinho, para que o Nuno que
“fingia” estar desatento (o seu olhar para a janela, ou para a
marquesa seria uma fuga para outro dos sentidos - o “olhar ansioso”
a mascarar o “ouvido ansioso”?), não conseguisse ouvir. Mostravase difícil ouvi-la, naquela situação um pouco desconfortável para
os três intervenientes: o Nuno, que obviamente estaria a ficar mais
ansioso, não só, provavelmente com o conteúdo, mas também com
toda a proibição de que esse mesmo conteúdo se fez revestir; a
mãe que estava com vontade de contar algo mais; e o psicólogo,
algo “constrangido” por aquele ambiente de “informação-tabu”.
Por isso pediu-se à mãe que saísse um pouco, deixando o psicólogo
sozinho com o Nuno, marcando uma consulta com os pais, para
dali a duas semanas (3ª consulta).
Nesta primeira consulta, a mãe falava em nome do casal ao se
referir ao pedido de ajuda requisitada, utilizando por isso
normalmente o pronome nós (referindo-se a ela e ao marido) –
procurando assim talvez mostrar uma implicação paternal na
realidade que apresentava. Assim, a mãe e o pai procuravam ajuda
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técnica para o seguinte problema: o Nuno faz “chichi” nas calças,
durante o dia e durante o sono e faz também “cocó” durante o
dia. Como ele já tem quase 9 anos, eles estão preocupados com
o facto. Pareceu falar do problema, como algo externo (o que para
João dos Santos (in Branco, 2000) se correlaciona com um pior
prognóstico em termos de terapia), como uma “doença”, pedindo
ajuda para a retirar. Recorreram inicialmente à pediatra e sob o
cuidado dela, a criança inicia um tratamento farmacológico para
a enurese. O dirigir-se a uma consulta de psicologia ocorreu com
o intuito de “tratar” a encoprese, visto tratamento da enurese
estar a ser já contemplada por outro técnico. Segundo a mãe, o
Nuno “retém as fezes durante muito tempo e depois quando vai ao
quarto de banho já é tarde” (1ª consulta). Referiu, ainda, que ele não
gosta de defecar porque não gosta do cheiro que considera
“nojento”. Não encontram (pai e mãe) razões para este
comportamento, exceptuando o facto de ele ser uma criança que
gosta muito de brincar, empenhando-se muito naquilo que faz e
esquecendo-se frequentemente, com isto, de ir à casa de banho.
Chamam-no várias vezes à atenção numa tentativa de o “lembrar”
da sua necessidade fisiológica, mas não resulta. O pai diz, na terceira
sessão (consulta que constou numa entrevista aos pais sem que
o Nuno estivesse presente): “ó Nuno antes que o pai vá, não queres
ir tu e tal, depois para ir eu...; ó pai - dizia o Nuno -, se eu tivesse
vontade achas que não ia lá?”. Não sabem mais o que poderão fazer
e principalmente a mãe desespera com este problema.
Ao falarmos da procura de ajuda, teremos necessariamente de dar
a visão de quem foi designado como “possuidor” do problema, ou
seja, o nosso cliente. O Nuno, na primeira consulta, (como já foi
dito) manteve-se calado enquanto a mãe falava. Procurou-se ficar
um pouco sozinho com ele (pedindo à mãe para sair) – na tentativa
de o pôr mais à vontade com o psicólogo e com a situação - e ele
naturalmente manteve-se igualmente calado. Procurou-se comunicar
com ele. Iniciou-se um ciclo de pergunta – resposta. Procurou-se
saber a sua opinião acerca do que a sua mãe esteve a dizer, o que
ele achava da consulta de psicologia e da sua pertinência para o
seu caso. O Nuno respondeu com timidez, mostrando mais uma
vez inibição no seu modo de actuar com o psicólogo (Marcelli,
1998): respostas curtas que, além de serem neutras de um ponto
de vista emocional, (não nos permitindo sentir um envolvimento
afectivo, quer na forma de expressão, quer no conteúdo expresso),
nos pareceu representarem uma resposta estereotipada no que
concerne à sua família: “se tiver que ser, é preciso para se resolver as
coisas” – diz ele na primeira consulta. Com a angústia que o psicólogo
sentia que lhe estava a causar, e mais a sua por sentir que não estava
a conseguir uma aproximação - a criação de uma relação intersubjectiva -, propôs-se fazer um desenho. Fê-lo, a ansiedade pensamos
tenha diminuído e mostrou-nos/se.
Figura 1.
O que nos tentava transmitir com este? Que simbolismo teria na
sua vivência a personagem humana a levar com uma trela o cão
a fazer “chichi” e “cocó”? Estaria ele a contar-nos um controlo
exterior que sente em relação ao seu próprio corpo e consequentemente em relação ao controlo dos esfíncteres, sentindose “levado a passear a horas certas”?
Na sessão seguinte optamos por uma postura diferente. Munido
de fantoches, lápis de cor, folhas brancas e bonecos variados,
abrimos a porta do consultório desarmados - sem perguntas preestabelecidas. Procuramos centrarmo-nos na criança que chegava
e dar-lhe, como diz Axline (1993), “o comando da situação”,
partilhando com ele a “responsabilidade” pelo que se iria passar
na sessão, permitindo-lhe o direccionar da mesma. Já foi dito que
numa primeira fase, pretendíamos uma aproximação ao Nuno, ao
seu mundo interior. Como através da palavra, isso estava a parecer
difícil de conseguir, optamos por lhe dar completa liberdade para
ele escolher o meio com o qual preferiria comunicar. Estaríamos
disponíveis para qualquer comportamento que ele pretendesse
assumir, tendo presente que “não existe não comportamento, ou para
dizer as coisas mais simplesmente: não se pode deixar de ter
comportamento. Ora se admitimos que, numa interacção, todo
comportamento tem o valor de uma mensagem, ou seja, é uma
comunicação, segue-se que não se pode não comunicar, queira-se ou
não. Actividade ou inactividade, palavra ou silêncio, tudo tem valor de
mensagem.” (Watzalawick, Helmick-Beavin & Jackson, in Arfouilloux,
1980, p.65). Nesta segunda sessão, (realizada unicamente com
o Nuno), após o psicólogo ter tentado pôr o jovem à vontade
no respeitante “às regras” de não directividade, ele decidiu
brincar com fantoches. Nesta actividade, mostrou um grande
interesse, um grande envolvimento, não só no aspecto
motivacional como afectivo (tema explorado mais adiante).
Analisemos o dramatizado:
Dramatiza uma família à volta da mesa a comer, em que a filha
(com a mesma idade do Nuno), apresenta um problema onde
intervêm a família, a professora, as empregadas da escola e os
amigos. O problema situava-se na questão de ela ter querido ir ao
quarto de banho durante as aulas e não ter podido pelo facto de
a professora não ter deixado. Ela ficou muito “preocupada” mas
lá conseguiu aguentar até ao recreio; aqui, as empregadas também
não deixaram. Ela continuou muito preocupada e isso reflectiuse na sua relação com os colegas: por estar preocupada não pôde
brincar e estes ficaram chateados. De seguida toda a família presente
na mesa comenta o acontecido, num diálogo entre duas personagens.
De ressaltar a conversa existente entre o tio e a filha, onde o tio
lhe apresenta soluções para o problema, como ir ao quarto de
banho de manhã antes de ir para a escola, ao que ela responde
que isso ela já sabia. Convém também referir a conversa entre a
mãe e o tio, onde a mãe refere que o pai por vezes se zanga por
ela não ir ao quarto de banho antes de ir para a escola e o tio
refere que ele não deverá fazer isso porque ela não tem culpa,
que deverá compreendê-la. Ao procurar “dar um sentido ao que
se ouve”, elevando ao plano do simbólico, do conteúdo lactente,
a dramatização e não só (pois é de simbolismo que o mundo e
consequentemente o que escrevemos (sendo as próprias palavras
objectos simbólicos) igualmente se passam), encontramo-nos com
uma exposição do caso: a preocupação manifesta com o controlo
da sua vida para além dos esfíncteres; o desespero de se sentir
controlado, preso e assim não poder largar o que tem dentro
(excreção); a preocupação dos outros e a pressão exercida pelos
outros, na mesa - um local para o Nuno de reunião familiar (dito
na sétima sessão), e também de introdução de algo no corpo
(comida); um local onde todos falam, demonstrando que todos
estão a par do problema e que o tentam solucionar – as soluções
apresentadas que não resultam e que a filha já sabia; e por fim, o
querer transmitir a sua não culpa aos pais e, provavelmente, também
ao psicólogo do que se passa, querendo dizer que o que se passa
acontece num plano não consciente, independente do controlo
voluntário, que os pais parecem querer impor à “força”, zangandose com ela(e). Parece-nos que nesta introdução, o Nuno mostrounos uma problemática, inserido na suas vivências, as suas angústias,
medos e alguma dinâmica social em torno do problema. Tudo
hipóteses, numa exposição que procura, mostrar um contínuo,
uma evolução: do cliente, da relação e do psicólogo enquanto
percepção que possui deste.
3. História desenvolvimental e familiar
(1) Fruto de uma gravidez planeada e desejada, de parto natural,
o Nuno nasceu e cresceu com os pais sempre muito presentes
– referem estes. Nasceu prematuro (sete meses e meio), com
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pouco peso (não sabendo ao certo qual) e na sequência permaneceu
sete dias na incubadora. Esse foi o único problema apresentado
pelos pais relativamente ao seu nascimento. Em relação à alimentação
(e como já foi dito, para os pais ele continua a comer pouco): era
um bocado “preguiçoso” (designação dada por uma enfermeira aos
pais), porque desde muito cedo teve que combinar o aleitamento
materno com biberão porque não se esforçava por se alimentar;
“se calhar pensava que ainda estava na barriga da mãe” – diz esta,
na terceira consulta.
Aos três anos foi para o infantário.Até lá passava o tempo, enquanto
os pais trabalhavam, com uma vizinha, e depois, quando ele tinha
14 meses, a mãe deixou de trabalhar para estar com ele. Dos dois
aos quatro anos (sensivelmente), o Nuno passou, segundo a mãe,
uma “fazesita (...) em que ele não era muito simpático. Que se alguém
lhe fizesse assim uma festazita na cabeça, e tal, chorava mesmo. Porque
dizia que ninguém gostava dele”. A mãe pergunta-se se a razão pela
qual o Nuno andava triste e pouco simpático, não seria do ter
começado a fazer chichi nas calças, ou então, do facto de ele “ter
duas primas que iam para lá muito, e iam brincar às vezes lá para fora
porque a mãe permitia, só se fosse por eu não deixar, e ele chorava.
sr. dr;. eu até deixei de trabalhar nesse período, porque até ia para o
jardim com ele brincar e tudo”. No infantário, começou por ser uma
criança que não falava, “Punha-se ali a um canto, e não falava” - diz
a mãe. Depois a educadora disse que ele com ela falava, começando
aos poucos a ser mais sociável na escola, mas em casa, embora
tenha melhorado, sempre manteve uns resquícios da tristeza que
o caracterizavam nessa fase. O percurso escolar foi feito sempre
sem problemas, sendo considerado pelos professores e pelos pais
como um bom aluno.
Os pais descrevem-no como uma criança demasiado sensível, um
pouco triste. Alguém que prefere brincar sozinho, a ler ou a jogar
à paciência. Possui como actividade extra curricular, para além do
inglês que no colégio onde anda é obrigatório, aulas de informática.
Alguém que embora costume brincar sozinho, é também “popular”
entre o grupo de pares; mais, para os pais, ele não só é “bom” a
brincar, como também “é bom naquilo que faz”. A mãe em
determinada altura da 3ª entrevista: “Por exemplo, e nós não somos
umas pessoas que deixamos o Nuno vir para a rua... mas se for lá em
casa um miúdo e ele estiver a jogar “tazos” ele ganha. O miúdo vai
zangado para casa porque não consegue ganhar ao Nuno. Portanto
ele é bom naquilo que faz”.
É uma criança ordenada, que gosta de estudar, (segundo eles por
iniciativa própria) responsável e persistente nas tarefas que realiza;
é uma criança, segundo os pais, “digna de se dizer que se porta
bem”. É bom aluno e os pais orgulham-se muito disso. Orgulhamse, igualmente, do facto de uma professora lhes ter dito, há uns
tempos atrás, que ele tinha uma inteligência acima da média e que
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provavelmente ia longe nos estudos. No momento da terceira
consulta, o Nuno estava em férias de passagem do terceiro para
o quarto ano.Vive com os pais e a irmã.
Em relação a perspectivas futuras, os pais querem que o Nuno
tire um curso superior. Este, embora tenha dito numa sessão que
queria tirar um curso superior e ganhar dinheiro para poder ajudar
os pais, escreveu no questionário de Zelazosca que quando “fosse
grande” queria ser jogador de futebol.
(2) De nível socio-económico médio, o pai tem 47 anos, é técnico
de vendas e classifica-se como sendo uma pessoa que trabalha
muito. O próprio Nuno, nas dramatizações, escolhe para fazer do
pai uma personagem que trabalha muito, que de tanto trabalhar
“até se esquece que tem de ir comer”; mas alguém que também
trabalha para que nada falte à família. O facto de o Nuno ter posto
no questionário de Zelazosca, o pai como alguém que quando
chega a casa “vai logo pôr a mala no sítio”, parece-nos ser significativo
desta percepção. É alguém que tem como escolaridade a quarta
classe, mas que gostaria de ter mais, porque considera que muito
dos seus colegas que têm mais escolaridade, não sabem tanto
quanto ele. Mas, mesmo trabalhando muito, considera-se um pai
presente, que ainda arranja tempo para brincar com os filhos e
para estar com a mulher.
A mãe tem 41 anos e é secretária administrativa. Possui o 12º ano.
Apresenta-se nas consultas com grande ansiedade - os seus
movimentos eram tensos e ao comunicar gesticulava muito.
Mostrou-se muito preocupada com o Nuno, com o seu problema
e com o seu futuro. No final de cada sessão tida com o jovem, ela
perguntava como ele estava, o que é que achavamos. Por parte do
Nuno, não encontro grandes registos da sua descrição - quer no
teste do desenho de uma família, quer no questionário de Zelazosca,
a figura da mãe foi de certo modo ignorada.
Como dizia sentir-se sozinho, com ninguém com quem brincar,
pediu aos pais um irmão. Estes, que nunca haviam pensado nisso
antes, concordaram em dar-lhe um irmão para que ele não se
sentisse tão sozinho. Vejamos o excerto da entrevista que expõe
o descrito:
“Pa 17 – Prontos, ele no princípio, quando ele andou ali no primeiro
ano de escolaridade, ele chateava-nos porque, oh pai todos têm
manos e eu não tenho mano, vou para casa e estou ali convosco
e tal, só tou a estudar, não tenho com quem me entreter, ele era
assim desse género. E quê que tu queres? Ai, eu quero ter um mano,
uma mana, ó pá prontos a gente começou a pensar porque nos não
queríamos mais que um filho.
P18 – Mas não foi por ele que tiveram outro filho?
Pa18 – Foi, foi por ele.
M18 – Foi mais por ele, que ele ia estar solitário, eu gostava de ter
4. Psicodiagnóstico
outro e depois eu e o meu marido começamos a ver que prontos...
Mas foi mais por ele.”
(P – psicólogo, Pa – pai, M – mãe)
A irmã tem 22 meses, os pais dizem ser uma criança sem problemas
de maior, também bem comportada, mas não tão bem comportada
como o irmão (faz mais birras – diz a mãe). A relação dele com a
irmã, dizem os pais ser boa, acham que eles se dão muito bem e
que ele é uma criança muito compreensiva em relação a ela. O
Nuno diz igualmente dar-se bem com a irmã, gostar de brincar
com ela, tendo pena unicamente que ela não seja maior para
poderem jogar futebol juntos.
(3) Nunca foi internado nem precisou de cuidados médicos
prolongados. Em relação à história dos sintomas - motivo de
consulta -, o Nuno começou a regular, quer em termos de fezes
quer em termos de urina, por volta dos dois anos. “Ia ao pote
como uma pessoa normal” – diz a mãe. Depois, a partir “mais ou
menos” dos 3 anos e meio, começaram a aparecer os
comportamentos de enurese diurna e nocturna e um pouco mais
tarde (mais ou menos um ano) encoprese diurna. A mãe
relativamente a estes comportamentos dizia: “Primeiro comecei
a ter paciência, a falar com ele, e assim. Pronto só que como ele
atrasava tanto, eu comecei a fazer-lhe ver que ele não poderia andar
sujo na rua assim constantemente. (...) E eu e o pai dizíamos: ó filho,
tu vês as outras pessoas, vês as outras crianças, elas não se sujam
assim na rua, pronto tu não vais andar...”
A mãe tem medo que o problema perturbe as suas relações com
os amigos, mas pensa que tal facto ainda não deva ter acontecido
já que acredita que ele consegue sempre esconder.
Em relação à alimentação, “isso é que nos preocupa um bocado” diz o pai - porque o Nuno é uma criança que come pouco. Em
termos de padrões de sono, os pais referem que ele sempre dormiu
bem, claro que por vezes acordava a meio da noite molhado - e
quando isso acontecia ele ia dormir para a cama dos pais (possível
beneficio secundário do sintoma). Também referem, em relação
ao dormir, que ele há já muito tempo que dorme na sua cama,
mas que ainda adormece muitas vezes na cama dos pais - para
depois o porem a fazer “chichi” o mais tarde possível, diz o pai
(possível beneficio secundário).
Acham também estranho, no seu comportamento, a sensibilidade
do Nuno, que em certas situações é considerada demasiada, (por
exemplo, a tia - “que tem um modo um pouco agressivo de lidar” dá-lhe um beijo, agarra-se a ele de uma forma mais bruta e ele
começa logo a chorar). Não encontram igualmente razões para
explicar este facto.
Se pretendermos dividir o percurso avaliativo do terapêutico,
deparamo-nos com uma dificuldade mais de ordem teórica do
que prática1. Partimos com uma estruturação de uma avaliação,
mas com o primeiro impacto (de dificuldades de comunicação)
adiamos e reformulamos o objectivo. Assim, levantamos a hipótese
de que percurso avaliativo do caso tivesse ocorrido até à nona
sessão - quando foi realizada uma entrevista de devolução, dando
deste modo, uma resposta à procura de ajuda. Fomos construindo
algo com o Nuno – uma compreensão de si – ao seu ritmo, e isso
constituiu uma avaliação para ambos.
Iniciaremos por falar-vos do lado da avaliação mais formal realizada
ao Nuno. Como já foi dito, esta constou de dois testes – O Teste
do Desenho de uma Família e o Teste do Pata Negra. A recorrência
de meios auxiliares de diagnóstico, foi adoptada por nós, como
complemento auxiliar da entrevista. Assim, e como refere Cunha
(1993), o psicólogo deve utilizá-los como instrumentos para testar
hipóteses (que de outra forma não encontrou resposta). Desse
modo, e especificando para o caso do Nuno, os instrumentos
utilizados procuraram “clarificar” áreas da sua personalidade e da
sua realidade interpessoal que se encontravam nublosas. Passamos
a explicar:
Na quarta sessão, aplicamos o teste do desenho de uma família
e logo de seguida foi administrado o questionário de Zelaszoska
em complementaridade deste. Este teste, segundo Cunha (1993),
procura avaliar dinamicamente as relações familiares, atitudes e
sentimentos do sujeito para com a sua família e autopercepção na
constelação familiar. Na primeira consulta, com tão pouco à vontade
dos entrevistados, pouco conseguimos percepcionar sobre a sua
dinâmica relacional. Posteriormente, na entrevista com os pais,
algo mais foi retirado, embora o conseguido não tivesse sido
preenchido. Através dos fantoches, o Nuno mostrou-nos um pouco
como percepcionava a família e o seu papel nela, mas faltava uma
estruturação, uma confirmação de um conteúdo que antevíamos
a sua extrema importância. Procuramos, então, através de uma
técnica não maçadora do ponto de vista da sua execução, dar uma
1 A sobreposição entre avaliação e mudança terapêutica, ocorreu neste caso, de uma
forma não planeada, pois ao pretendermos perceber, compreender o nuno na sua
complexidade e na sua individualidade, algo nele mudou. Ou seja: acreditamos que,
provavelmente, à medida que fomos descobrindo a sua forma de estar no mundo,
ele progressivamente foi também descobrindo coisas, que o fizeram mudar de atitude
perante o mundo.
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estruturação ao que formulávamos em hipóteses e tentar alcançar
assim mais segurança no que teorizávamos.
A utilização do teste do pata negra – visto este ser um teste que
procura explorar os “conflitos profundos da alma infantil” (Boekholt,
2000) – prendeu-se com uma necessidade colocada, quando da
realização da análise compreensiva. Procurávamos teorizar sobre
a dinâmica interna, possíveis conflitos e incongruências no seu
estar. Conflitos com o exterior – familiar e possíveis conflitos
internos. Através da análise das dramatizações procurámos definilos e o PN surgiu como um meio de confirmação das hipóteses
levantadas.
Os principais resultados foram:
No Teste do Desenho de uma Família: o Nuno representou uma
família onde a racionalidade e a responsabilidade são valores muito
considerados e admirados. Uma família em que quem detém o
poder é o pai: a personagem que prefere, a pessoa que coordena,
que impõem ordem e racionalidade á mesa (um local onde se
introduz alguma coisa no corpo); onde quem é mais simpático é
o avô porque já não impõem ordem nem racionalidade, mas que
também já não tem poder; mas quem é mais feliz é o filho, que
ainda “tá a começar a vida”, ou seja, que ainda não começou, e que
por isso ainda não detém a responsabilidade (de comer sempre
tudo, por exemplo) dos adultos, e que o Nuno talvez considera
como desprazerosa e cansativa. Assim parece-nos que o Nuno
representa uma ambivalência entre duas posturas, que ele as coloca
como opostas: se por um lado ele procura identificar-se com um
pai responsável, racional, onde a ordem impera, por outro gostaria
de estar no lado mais despreocupado, mais livre, no lado dos filhos,
que se mantêm fora “desta forma de se ser” adulto, que o Nuno
vê como pesada, cansativa e trazendo desprazer. Por isso ele
escreve no questionário que gostaria de ser livre e ir percorrer
o mundo – e talvez soltar-se desta “prisão” em que os adultos
estão.
No Teste do Pata Negra, o Nuno mostra uma forte repressão da
agressividade. Esta censura, formada agora já internamente (visto
também advir de uma intolerância do meio), acarreta um forte
sentimento de culpabilidade e uma necessidade de auto-punição
(auto-agressividade). Esta punição dirige-se a variadas formas de
agressividade, nomeadamente, aquelas relacionadas com os desejos
de carácter erótico (com o voyeurismo relacionado com a cena
primitiva) que ele, por considerar agressivos para outros, reprime
e pune-se. O pai, neste teste, é representado como alguém de qual
o Nuno procura não ir contra e, desse modo, não magoar, visto
o pai, neste teste, ser considerado alguém que estava chateado
com filho (pata negra magoou o pai). Este medo transforma-se
numa incapacidade de mostrar agressividade para com pai, de
rivalizar com ele, e deste modo poder realizar uma gestão mais
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sincera dos seus desejos mais perversos. Outro dos seus temas
conflituosos, levantados na interpretação, foi aquele relacionado
com a ambivalência entre dependência/independência (maior
autonomia). A mãe porquita aparece como alguém que fomenta
uma dependência: ao querer que os seus filhos possam ficar a
mamar muitas horas, ou ao permitir, e ficar contente, com as
atitudes regressivas dos filhos, ou mesmo quando escárnia as suas
tentativas de autonomização. Por outro lado, a pata negra tenta
a autonomização, ao tentar deixar de mamar e passar a comer
erva. Porém, o escárnio da mãe, e a angústia de partir (baseandonos na placa partida), são imperativos mais fortes, levando a que
o herói não consiga suportar a solidão nem a separação de sair
e comer erva sozinho – angústia de separação. Demonstra assim
uma insegurança, uma falta de apoio – pelo apoio da mãe que se
dá unicamente se este se mantiver no estado de dependência e
pelo apoio do pai, que se mostra muito rígido e intolerante no
que respeita à liberdade de escolhas -, que lhe faz ter medo de se
aventurar pelos caminhos do desconhecido e assim crescer, e
desenvolver-se de uma forma salutar.
Procuramos agora, após o exposto, descrever o Nuno de forma
mais sistemática.
Como definir aquele retraimento, aquele modo de estar, onde a
timidez tomava parte de algumas relações sociais... Com o psicólogo
foi-se mostrando progressivamente mais liberto, mas na “voz” dos
fantoches, ou seja, através do brincar. Provavelmente perante tudo
o que representaria a conversa de adultos, ele adoptava uma
postura submissa, actuava de um modo obediente, sem nunca olhar
nos olhos, transmitindo fragilidade. A mãe e o pai descrevem-no
também como uma criança, antes de mais, “bem comportada”
(obediente?), mas triste e extremamente sensível. Mas também
nos apresentaram um outro Nuno, aquele que com os colegas é
sociável, brincalhão; esse Nuno que se assemelhava ao outro que
aos poucos foi aparecendo na consulta. Então descrevemos aqui
duas posturas, em dois contextos sociais diferentes; que
representarão talvez um condicionalismo de realidades - o que as
realidades lhe valorizam... Recorrendo a Marcelli (1998) podemos
afirmar que ele apresenta uma “inibição de certas condutas externas
e socializadas” 2, que neste caso nos parecem ser em grau moderado,
visto ele, em contacto com outras crianças bem como em contacto
com o psicólogo, conservar a capacidade de brincar e de retirar
2 Característica de “crianças sempre calmas, facilmente submissas, agindo de modo que
nunca se fale delas, qualificadas habitualmente de muito obedientes.” (Marcelli, 1998).
prazer com isso. Então o retraimento parece que se mantinha com
“o mundo dos adultos” e em especial com a família.
Depois existem os comportamentos motivadores da consulta: a
enurese e a encoprese. Comportamentos perante os quais o Nuno
dramatiza uma grande angústia.
A enurese no Nuno - “emissão activa completa e não controlada de
urina, uma vez passada a idade de maturidade fisiológica, habitualmente
adquirida entre os 3 e os 4 anos.” (Marcelli, 1998) -, levanta-nos um
problema: defini-la em termos de secundária ou primária3. Se por
um lado a mãe nos refere como sendo secundária (começando o
controlo dos esfincteres por volta dos dois anos), por outro, o
período em que ela diz ter havido esse controlo foi muito curto,
com a duração aproximada de um ano e meio. O Nuno apresentava
um comportamento enurético de noite e de dia – enurese diurna
e nocturna (ou mista). Em relação à frequência, ela apresenta-se
irregular (não todos os dias), de uma forma mais recorrente no
caso da nocturna entre três a quatro dias por semana e mais
intermitente (uma vez por semana) no caso da diurna.
Depois existe também a encoprese: “defecação nas calças de uma
criança que ultrapassou a idade habitual de aquisição de asseio corporal
(entre 2 e 3 anos)” (Marcelli, 1998). Também aqui a determinação
de uma encoprese primária ou secundária no Nuno é motivo de
discussão, embora em menor grau que a enurese. Aqui o controle
dá-se mais cedo, e também a idade aproximada apontada pela mãe
como o início do comportamento encoprético foi mais tardia que
na enurese, por isso acreditamos que mais do que no caso desta
última, poderemos afirmar que o Nuno apresenta uma encoprese
secundária. Segundo a mãe este comportamento dava-se porque
o Nuno “retinha demasiado” e depois “quando não aguentava mais
é que era “obrigado” a fazer nas calças”. Tal como João dos Santos
(in Branco, 2000) diz, “a encoprose aparece-nos, ao contrário dos
autores que anteriormente estudaram o assunto, não uma falta de
controlo, mas um super-controlo com descargas inconscientes e, portanto,
incontroláveis.” (p.325). Desta forma, e recorrendo ao comportamento
descrito pela mãe, o facto do Nuno ver televisão incessantemente
(tal como o porquinho, no teste do pata negra via incessantemente
os pais a darem um beijo), querendo adiar os dejectos que continha,
parece-nos representar uma vontade dirigida para se controlar,
para não deitar cá para fora o que considera “nojento”, e motivo
provavelmente de avaliação negativa por parte dos outros. Ao
3 “A enurese secundária caracteriza-se pela existência de um período anterior de asseio
transitório. A enurese primária sucede directamente ao período de não-controle fisiológico.”
(Marcelli, 1998).
definir a encoprese e a enurese, e tomando como base a avaliação
médica da pediatra, assocializemos como sendo de origem
psicológica. Base que segundo Santos (in Branco, 2000) se verifica
na maioria dos casos. Marcelli (1998) ao definir estes distúrbios
esfincterianos em termos psicológicos, divide o estudo em termos
de factores de personalidade da criança e factores do ambiente
da criança – divisões que analisaremos separadamente. Santos (in
Branco, 2000) define estes comportamentos como sintomas
reactivos (embora diferenciando a encoprese e a enurese diurna
da enurese nocturna, pela primeira lhe parecer mais “limitado aos
processos intrapsíquicos que a criança desenvolve por si própria”
(p.179)), já que segundo este autor, serão consequência do
impedimento do exercício da fantasia, do silenciamento da
imaginação (Santos in Branco, 2000).
Mas o Nuno apresenta também um medo poderoso, uma angústia
em relação ao controlo e à necessidade deste. Esta preocupação,
parte de situações concretas como a escola – que é representada
como um trabalho – onde mostra necessidade de ter sempre tudo
sobre controlo (como se percebe, por exemplo, na sessão seis),
nomeadamente em termos dos esfíncteres (sessão dois); mas
também generalizando-se para um medo do futuro (sessão 6).
Apresenta assim medo não só do presente como também do
futuro, e esse permanente medo (de perder o controlo) talvez
seja o que lhe provoca a insegurança no seu modo de enfrentar
a realidade e que provavelmente o transforma num ser tímido,
inibido e obediente – e que o faz assim reprimir os seus
comportamentos agressivos (teste do pata negra) e ter medo de
se aventurar pelos caminhos da independência.
5. Intervenção psicoterapêutica
Klein (in Arfouilloux, 1980) afirma que a criança expressa as suas
fantasias, desejos e experiências reais de um modo simbólico
através de brincadeiras e jogos. Assim, a capacidade de brincar e
a imaginação são ferramentas que sabíamos serem essenciais e
específicas no trabalho com crianças. Também o particular desta
abordagem é a existência do factor-família como bastante
interveniente e influenciador nas problemáticas das crianças questão que o psicólogo terá que ter, obviamente, presente (Toro,
1998).
Sentimos, pela forma como comunicou com o psicólogo, e pelo
discurso da mãe, que ao Nuno não estava a ser “dada voz”: de
alguma maneira os seus sentimentos e a sua percepção do caso
não estavam a ser ouvidos (pela 1ª consulta teria ficado claro que
não seria pela “conversa de adultos” que o Nuno seria ouvido,
pelo menos no respeitante aos seus sentimentos). Assim, a primeira
abordagem ao caso, foi no sentido de contrariar o percepcionado:
VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003
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baseando-nos nos princípios da Play Therapy 4 não directiva (Axline,
1993), tentamos criar um conjunto de condições que favorecessem
e não mais impedissem o seu crescimento; um ambiente onde não
sentisse pressões, tentativas de encaminhamento, direcções. Uma
realidade onde ele pudesse, como agente activo, direccionar “a sua
forma de estar” (e assim encontrar uma forma de se expressar,
por um lado, e por outro, comunicar de uma forma mais sincera
e menos estereotipada connosco e consigo).
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Com bonecos e fantoches dramatizamos situações, criadas pelo
Nuno, umas vezes apenas ele, fazendo simultaneamente todas as
personagens, outras vezes, pedindo a colaboração do psicólogo
para contracenar consigo. Falavam assim: com a máscara de um
boneco, que deste modo passava a constituir tudo o que se quisesse
– tudo de dentro. Esta foi a estrutura assumida: iniciar um processo
terapêutico sem que nada tivesse pré-destinado, onde fosse a
criança a escolher o caminho a seguir e onde, através da criação
de um método de intervenção psicoterapêutica, lhe fosse fornecido
um ambiente que favorecesse a sua “self-expression” (Axline,
1993), que favorecesse a expressão dos seus sentimentos e lhe
aumentasse o “insight”.
Nestas pequenas encenações, o Nuno através de um fantoche que
escolhia, e sempre cabisbaixo (sem nunca olhar nos olhos), falava
de uma forma fluída, de uma forma muito mais espontânea,
mostrando uma “riqueza interior”, no que respeita à fantasia, à
imaginação e ao sonho, que nos surpreendeu, a nós, equipa técnica,
e aos pais (quando confrontados com o facto) que o julgavam mais
“honesto” na comunicação que dia a dia ia fazendo com eles5.
Passamos a explicar, fazendo um resumo das sessões nas quais se
dramatizou:
4 Axline (1993), apresenta oito princípios básicos para que a método se constitua:
o terapeuta deverá desenvolver um clima amigável, caloroso com a criança para que
se estabeleça o mais rápido possível a relação; o terapeuta deverá aceitar a criança
tal como ela é; o terapeuta deverá estabelecer um clima de permissividade na relação
de modo que a criança possa expressar os seus sentimentos completamente. O
terapeuta deverá reconhecer os sentimentos na criança e reflecti-los outra vez à
criança de forma a que aumente o insight nesta; o terapeuta deverá manter um
profundo respeito pela forma como a criança tem de solucionar os seus problemas
e dar-lhe a oportunidade para o fazer; o terapeuta não deverá direccionar as acções
ou o discurso da criança; o terapeuta não deverá apressar a terapia; o terapeuta
deverá unicamente estabelecer as limitações que serão sadias para a manutenção do
processo terapêutico.
5 Pois, para os pais, o Nuno era uma criança que se “portava bem”, que raras vezes
manifestava conteúdos que eles de alguma forma não desejavam (exceptuando o
controle de esfíncteres, a relação que mantinha com a comida e a sua elevada
sensibilidade).
VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003
As sessões nas quais se dramatizou (2ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 8ª e 10ª), foram
intercaladas por outras nas quais se aplicou os meios auxiliares de
diagnóstico e entrevistas realizadas aos pais. Neste capítulo cingir-nos-emos às conversas, que como já dissemos, se realizavam
através de personagens atribuídas aos bonecos. Procuramos retirar
o essencial destas.
Na quarta sessão, posteriormente ao Teste do Desenho de uma
Família, conversamos pondo a nossa voz nos bonecos. Os bonecos,
à semelhança da dramatização anterior (2ª consulta exposta
anteriormente), também representaram uma família, constituída
pelo pai, a mãe, o filho, a filha e o tio. Nesta representação falase do emprego dos diversos membros da família, da eventualidade
da filha poder vir a ajudar o pai no seu novo emprego de desenhador
e no problema, que poderia surgir, de esta ter que fazer os desenhos
que o chefe manda, quando prefere fazer aqueles em que ela tenha
imaginação. O Nuno arranja então a solução para esta filha: fazer
um desenho com imaginação e depois dirigir-se para o chefe e
mostrar-lho; se ele gostar muito bem, se não gostar ela faz as
mudanças necessárias. De seguida, a filha fala com o tio acerca da
sua escola (fazendo neste caso particular o Nuno de filha e o
psicólogo de tio). Fala-lhe de um desenho que fez na escola, um
desenho um pouco mal feito (pois pôs o cabelo no meio quando
o S. António não o tinha), ficando preocupada e nervosa com o
facto, mesmo depois de a professora lhe ter dito que isso não
tinha importância.
Na quinta sessão, na dramatização entram: uma mãe (de 30
anos), um pai (de 50 anos), uma filha (de 3 anos) e um filho (de 8
anos) (a mesma idade do Nuno). Nesta sessão discute-se mais
uma vez o emprego do pai. Nesta família (de fantoches) o pai ia
mudar para um emprego geograficamente mais perto, porque
como ia sempre levar o filho ao infantário e chegava sempre tarde
ao trabalho, então, ao mudar-se para este novo local poderia, deste
modo, evitar os atrasos (reafirmando a ideia de que como o pai
é prejudicado pelo facto dos filhos se atrasarem). Na cena seguinte,
o pai afirma não ser o único prejudicado pelos atrasos, culpando
de igual modo o próprio filho, este por chegar tarde à escola, este
por fazer um teste sempre a correr, este por andar sempre a
correr. O pai afirma que o filho já é um bom aluno mas se não
andasse sempre a correr poderia estar mais atento. A conversa
agora estabelece-se entre a menina e o pai, na qual a menina conta
uma história fabulosa de umas cobras que existiam no seu recreio,
mas que não pareciam, pois elas assumem a morfologia de tudo
que comem.
Vale a pena analisarmos a forma como o Nuno constitui a família
nestas duas primeiras sessões. O trabalho, a obrigação, é um tema
de conversa central. O Nuno coloca nestas personagens uma
grande preocupação da perfeição, uma grande ansiedade6 (como
no desenho da escola da filha). É interessante analisar ainda a
representação que o Nuno faz do trabalho, é interessante ver
como representa os filhos enquanto um entrave, um impedimento
ao bom funcionamento do mesmo e como isso se repercute
provavelmente em culpabilidade, com a filha do casal representado
a querer ajudar o pai e a ser prejudicada (mais uma vez no seu
contexto profissional) por ter perturbado a ordem familiar
(acordando tarde). Depois vemos o dilema que o Nuno colocou
na filha: será que deverá fazer o que lhe mandam ou por outro
lado fazer o que lhe dá mais prazer e que lhe exige imaginação?
Ao ter de ir trabalhar com os adultos (pai) passaria a estar sob
o comando de alguém e, dessa forma, deixaria de privilegiar o
prazer. Poderá o problema ser posto: como resolver a necessidade
de obter prazer, quando a necessidade de agradar aos outros
(fazendo o que lhe mandam) é, talvez, um imperativo mais forte?
Na sexta sessão, entram o pai, a mãe, o filho, a filha e o tio
fantoches. A mãe (representado pelo Nuno) fala com o pai
(psicólogo) acerca do trabalho da filha, na escola: “a filha agora disse
que em vez de fazer desenhos, agora a professora vai-lhe ensinar a
fazer retratos de pessoas”. A mando da professora começa a fazêlo, pois esta tinha encontrado ninguém que o conseguisse fazer.
A filha estava um bocado nervosa, mas depois descobriu que não
tinha muita dificuldade em fazê-lo. De seguida a mãe fala do seu
emprego, descrito no extracto da sessão:
apagar. Porque senão ficava zangado.
Pai – Porque é que a menina não conseguiu?
Mãe – Ela não tinha muita força. Mas eu ajudei-a, o chefe não viu
e ela... (gaguejando)
Pai – A menina devia ter ficado nervosa?!
Mãe – Sim, não conseguir, as outras bem que ajudavam mas ela não
queria ajuda. Então elas disseram que era melhor pedir ajuda porque
senão o chefe ficaria muito zangado com ela. Então ela pediu-me
a mim e eu ajudei.
Pai – Ajudaste...
Mãe – Pois.
Pai – Conseguiste fazer o teu desenho e por isso também conseguiste
ajudar a fazer o dos outros.
Mãe – Até porque se eu não conseguisse fazer, não conseguisse
apagar, para ela, mais ninguém, ela não queria mais ninguém que não
fosse eu. Mas ela disse: o chefe está ali tem cuidado e ela veio
devagarinho apagou e foi outra vez, porque o chefe não quer que
venham ao dos outros porque podem copiar. Foi assim.
Pai – Tem sido complicado para ela.
Mãe – Sim para ela. Mas para ela é sempre... ela sabe enfrentar as
coisas, o... se o chefe se zangar com ela, ela diz que tem culpa mas
também nunca pode fazer tudo, tudo bem, não é muito experiente
nisso. Por isso...
Pai – Ela consegue superar as coisas... não pode fazer tudo, tudo
bem...
Mãe – Há coisas que também nos enganamos e que também não
podemos fazer tudo bem.
(O pai, representado pelo psicólogo, fala com a mãe, representado
Pai – E as pessoas ás vezes exigem tudo das pessoas.
pelo Nuno, acerca do seu novo emprego. Emprego no qual ela tem
Mãe – Pois.
que desenhar.)
Mãe – A professora disse, faz um com jeitinho, não poderia haver
nenhum engano, porque não temos borracha que apague bem.
Pai – Tiveste que ter controlo.
Mãe – Sim.
Pai – Mas é complicado viver assim sem se poder enganar?!
Mãe – Vá – lá. Só me enganei uma vez e consegui apagar, ela também
disse, Que tinha que apagar com força porque senão é que não
apagava mesmo.
Pai – Tu conseguiste?!
Mãe – Sim. A menina é que não conseguiu e eu ajudei-lhe. Porque
senão o chefe ficava zangado e ela ainda bem que não me viu a
6 “Emoção gerada pela antecipação de um perigo vago (neste caso, a imperfeição) de
difícil previsão e controlo” (Doron & Parot, 2001, p.67).
O Nuno fala-nos desta vez de duas personagens, que retratam
duas posturas em relação, mais uma vez, ao trabalho. Uma, que
tem tudo sob controlo, outra mais insegura, num estado ansioso
por não estar a conseguir fazer o que lhe foi mandado. Situam-se
assim em duas situações possíveis: o conseguir e o não conseguir
fazer o exigido. O que as une, parece-nos ser o sentimento de
ansiedade e de medo, que de certa forma é igual, por ser dirigido
a um chefe, aquele que as mantém em estado permanente de
tensão e que não as deixa viver de uma forma mais tranquila. A
conversa começa pela mãe a transmitir-nos um estado de ansiedade
resultante de uma situação do seu trabalho. E o facto de o pai
(representado pelo psicólogo), não a ter deixado falar mais (explorar
o sentimento) e ter concluído a ideia com: “deve ser complicado
viver sem se poder enganar”, talvez possa ter provocado uma
forma defensiva de reagir no Nuno, reacção a uma realidade que
provavelmente mostrava-se demasiado angustiante, mesmo tendo
sido colocada na “voz” de um boneco – e não na sua. Deste modo,
VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003
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para mascarar ainda mais a angustia, o Nuno teve talvez necessidade
de inventar outra personagem – a amiga da mãe - dando assim
uma identidade a toda a angustia vivida no comprimento do exigido.
Mais tarde, nesta sessão, a filha (representado pelo psicólogo) e
o bébé (Nuno) têm uma conversa:
Filha (psicólogo) fala com o bebé (Nuno)
Com a devolução do problema, por parte do psicólogo ao Nuno,
este mais uma vez retraiu-se e assumiu uma postura regressiva,
infantil, sem capacidade para sequer formular o problema, e por
isso sem a obrigação de o pensar. Pergunta ao contracenante que
já é mais velho, e procura-se esconder – depois de se ter mostrado
um pouco – na sua linguagem da china. Assustado com o exposto,
ele termina: “eu não sei como vocês descobriram se eu estava
bem escondido”.
Filha – Olá. Tu ontem andaste a fazer uma coisa e depois disseste
que era eu.
Bébé – O que é que eu fiz eu não fiz nada.
Filha – Andaste, partiste uma coisa e depois disseste que era eu.
Bébé – Hã, mas não fui eu que parti, fui eu que andava a jogar á
bola e só dei um chutinho.
Filha – Mas porque é que disseste que era eu?
Bébé – Hã porque como sei que tu ás vezes ao brincar partes as
coisas eu disse que és tu.
Filha – Então querias que a mãe me ralhasse a mim?
A dramatização da sessão sete começa com o nascimento o
bebé fantoche. O pai (representado pelo Nuno) fala ao tio acerca
das suas expectativas em relação ao recém-nascido, dizendo que
ele é bonito, que era um bocadinho brincalhão agora, mas que
depois vai ser um menino muito bem comportado. O pai espera
que não haja problemas no seu crescimento: como ficar doente,
a mulher não estar a trabalhar e desse modo não terem dinheiro
e não conseguirem viver. Fala de seguida na importância da escola
na aprendizagem:
Bébé – Sim, ficava mais contente.
40
Filha – Mas eu ficava triste.
O tio representado pelo psicólogo e o pai pelo Nuno
Bébé – Pois aí é que é o problema.
Tio – A questão da escola é importante e se ele por acaso não
Filha – É um problema?!
souber...
Bébé – É, mas como sou bebezinha (com uma voz muito infantil
Pai – Sim. Mas...pois se ele depois começar mal pode acabar mal
que quase não se percebia), já não sei qual é o problema.
e nunca mais pode levar e se ele por exemplo nunca mais sair
Filha – Não entendes.
daquela turma nunca mais vai para a faculdade. E a faculdade já se
Bébé – Tu deves entender melhor que eu; já andas na escola. Em
sabe que é muito mais pior.
que ano andas?
Tio – É mais difícil?
Filha – Eu ando no terceiro ano.
Pai – Mhum, mhum.
Bébé – Bem me parecia, já tens nove anos, a mim já não me enganas.
Tio – Para ti é muito importante a escola dos teus filhos não é?
Filha – Mas como é que queres que eu te perceba se tu não falas,
Pai – Mhum, mhum. Para eles saberem as regras, para se comportarem
eu não posso entender tudo.
bem. Porque senão eles não sabem as coisas da escola, não sabiam
Bébé – Pois não. Também não percebes as coisas que eu digo em
nada, não sabiam falar, não sabiam ler, é que eles falam..., quando
chinês pois não?
são bébés falam de um maneira, que não se percebe. E então ele
Filha – Não. Fazes isso e depois eu fico zangado.
pode ficar com esse hábito de falar dessas coisas, e pode ficar assim.
Bébé – Eu não sei como vocês descobriram se eu estava bem
Portanto tem que ir para a escola para aprender, mas também pode
escondido.
ouvir-nos e aprender, mas não sabe tão bem, se a professora lhe
ensinasse, sabe melhor.
A confrontação de sentimentos opostos – tristeza/ alegria –
colocados em questão, e formulados enquanto problema: como
conseguir estar contente – e viver com isso - sem que outros
fiquem tristes. Através de uma satisfação sua, mas acarretando uma
insatisfação de outrem, o Nuno, talvez se tenha encontrado num
emaranhado existencial do qual não encontrava solução: como
conviver com a sua liberdade (a obtenção do seu prazer), quando
essa mesma afecta o “estar” dos outros? Outros que lhe são
significativos enquanto objectos de amor e dependência – a sua
família (pois as conversas se passam entre os seus membros).
VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003
(A partir deste momento pousa o boneco na mesa e começa a
falar sem mexer com o boneco, mas sempre sem olhar nos olhos
do psicólogo)
Tio – Tem que aprender as regras, não só de falar mas de tudo, que
é para começar a falar como os grandes.
Pai – E para escrever porque senão, como é que ele vai saber
escrever.
Tio – Então é por isso que ele tem de ir para a escola. Mas ele tem
ar de maroto.
Pai – Tem. Isso não se nota tanto mas... pode até ser. Veremos.
Depois é que se vê.
bébé na cara da filha), cheirete mal que taveee...
Tio – Quando ele for grande?
Filha – Ouviste bem não fales outra vez isso, ouviste?
Pai – Quando ele tiver a idade da irmã que tem 8.
Bébé – O quê? Mas primeiro vais cheirar ah truuuuu (põe outra
Tio – Ai já se consegue ver.
vez o rabo do bebe na cara da filha)
Pai – 8 não 9. Só que ele, depois, vai começar a brincar com as
Filha – Ai que cheiro nojo anda cá (corre atrás do bebé). Apanhei-
coisas e a irmã, há. E vai brincar com ela, mesmo que sejam bonecas
te. Agora vais á casa de banho fazer. Então anda lá... puuuuu
ele vai brincar, em bébé, só que depois já não vai achar tanta piada.
Mãe – Está a obrigar o bebe a ir à casa de banho?!
Mas de certeza vai gostar de um, que é de fazer..., que é um de fazer
Filha – Prontos, já estás, faz!
gelados. Vai gostar imenso. É um coiso que nós demos que é de
Bébé – Oh que fixe estou a fazeer...só se for a brincar em vez de
fazer gelados, é novo. E ele deve gostar.
meter na sanita meteu a tomar banho, olha que engraçado...
Filha – O quê?
O Nuno apresenta-nos um medo, uma insegurança, em relação ao
futuro, posta na voz de um pai, que tem como preocupação base,
a educação formal – mais uma vez o trabalho. Este medo dá-se
com um enquadramento de uns postulados que nos parecem ser
bastante rígidos, apresentados em forma de expectativas de
desenvolvimento. Vocacionando o bebé, para um rumo estável e
delineado, sem que exista “uma borracha que apague bem” (sessão
seis).
A certa altura da sessão, o Nuno apresenta uma postura que
aparentava estar com sono, diz então que o pai está com sono
porque trabalha muitas horas.
No final da consulta, numa conversa entre a filha (representado
pelo Nuno) e a mãe (representado pelo psicólogo), conversa da
qual, a certa altura, entra mais outra personagem, que é o bébé
(representado pelo Nuno com a outra mão):
Bébé – Tou na banheira...
Filha – Anda cá (o bebe foge, a filha anda atrás dele)
Bébé - Vai dormir um bocadinho que tu precisas. (a filha sai de cena)
oh mãe, ela obrigou-me a fazer... mas eu já fui cinco vezes, não
preciso de ir outra vez.
Mãe – Pronto, se tu achas que não precisas!?
Bébé – Mas tens que ir dizer que não porque senão ela vem atrás
de mim.
Mãe – Achas que precisas que eu lhe diga isso?
Bébé – Sim
Mãe – E porque é que não dizes tu?
Bébé – Ah, porque ela vem atrás de mim como é que queres que
eu diga?
Mãe – Ela anda sempre atrás de ti, não é?
Bébé – Pois... agora apanhou uma taulada... ficou quente.
Mãe – E tu estás a precisar de ajuda?!
“Mãe – Sabes que o pai tava a falar acerca do irmão que estava com
Bébé – Sim.”
um bocado de medo que lhe acontecesse qualquer coisa, que não
podia estudar e tudo isso...
Filha – Ah..., ele já me tinha dito isso, ele já me tinha dito. Eu acho
bem. Só te digo este tempo de noite parece que tá cá um calor,
vou meter um coiso para me tapar os olhetes (enquanto tapava a
cara do boneco com o chapéu)
Mãe – Porque assim já não vês o que se passa à tua volta.
Filha – Mas vê-se bem, oh. Só que este chapéu é muito grande, é
quase da minha altura. E também aprendi a dançar. É muito fácil, é
assim, eu chamo o meu irmão e ele faz, queres ver (pega no bébé
com a outra mão), um dois três (começam a dar passos de dança),
um dois três, tã tã tã. (começam a dançar de uma forma mais
agressiva) Pi pi lá lá lá...
Mãe – Estás muito contente?!
Filha – Sim estou, olha para isto, ele quando fez assim pushhh, (dá
uma pirueta com o bébé e o rabo deste para da cara da filha) é que
Adoptando uma postura muito infantil, o Nuno dramatiza alguém
completamente encurralado numa realidade, onde, entre quatro
paredes não pára de fugir; fugir em círculo; encontrar-se sempre
no mesmo sítio – ciclo vicioso. Mostra-se um verdadeiro drama,
completamente angustiante para quem o observa, pois o bebé,
que por o ser não consegue fugir; e alguém mais velho, mais forte,
que não desiste de correr atrás e não consegue ver o cansaço
(psíquico?) de quem procura a fuga para além das paredes, olhar
para o seu comportamento (físico?), e assim parar com a perseguição.
Aquele ciclo é representado unicamente pelo Nuno, querendo se
calhar dar a ideia de algo interno. O psicólogo, representando uma
personagem exterior, é introduzido como possível mediador do
conflito, e como ajudador de alguém que assim precisa. Implica o
terapeuta se calhar pela primeira vez na sua problemática, e formula
um pedido de ajuda.
ele cheira mal, que cheira muito mal. Precisa de ir à casa de banho.
Bebé – Ai não preciso nada, já fui à casa de banho 5 vezes não
preciso de ir outra vez ouviste oh... pufff (põe outra vez o rabo do
Na oitava consulta, ultima neste processo de dramatizações, o
Nuno reafirma este pedido de ajuda e manifesta uma sensação de
VOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003
41
desconforto. No princípio desta sessão, a mãe disse-nos que iriam
de férias, de lá a duas semanas e por isso sabíamos que o caso
teria de terminar. Marcou-se então, apenas mais duas consultas
com o Nuno e uma com a mãe, na tentativa de lhe dar a devolução
do caso e de lhe sugerir um encaminhamento. Acabamos a consulta
deste modo: a filha (representado pelo Nuno) a queixar-se da
perna que lhe doía, porque tinha caído no quarto e agora não se
conseguia levantar, chama o irmão e pede-lhe ajuda. O irmão
(representado pelo psicólogo) pergunta-lhe se lhe doía muito, ela
responde que sim, que agora não se conseguia levantar. Então o
irmão diz-lhe que a iria ajudar, que iria falar com a mãe e explicarlhe o seu problema. Acabou a sessão; com a inevitabilidade de uma
finalização precoce marcamos uma consulta com a mãe e mais
uma, em Agosto, com o Nuno.
42
Quis fazer um desenho na décima primeira consulta. Nada
mais. Nada de despedidas melodramáticas, unicamente (sempre
sem olhar nos olhos) que foi fixe andar lá.
Faz um desenho. Este representa um rapaz a segurar um papagaio
(em forma de borboleta) no terraço de sua casa. O pai que acabou
de pintar um quadro está a chamar o filho para ir vê-lo. Chama-o tocando à campainha (trrim...). O filho manda-o esperar um
bocado pois não pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo. O
quadro que o pai pintou, representa uma “coisa esquisita”, “uma
espécie de trovões e chuva a cair num caminho de terra”. Na casa
existe uma varanda onde estão colocadas três flores e uma cortina.
Do outro lado existe uma árvore com maçãs. Dentro dessa árvore
existe uma cobra que come as maçãs e progressivamente vai
ficando mais gorda. Existe também, no cimo da folha, um sol, nuvens
e montanhas. O sol está com medo que a borboleta (papagaio)
suba demais e que lhe atinja com os seus cornos. O rapaz também
está com medo que a borboleta se perca nas montanhas.
Figura 2.
O pai chama-o para ver um mundo de trovões e chuva, algo incomVOLUME V Nº6 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2003
preensível, “esquisita” que o pai pinta, representando um mundo
que quer mostrar ao filho. O filho, não pode, e agora respondelhe para esperar um bocado pois as cores que ele agora manipula
com o papagaio não se enquadram provavelmente com o quadro
que o pai pintou – não consegue conjugar estes dois mundos, e
um terá que passar para o sonho. E a borboleta voa e o pai toca
a campainha fazendo barulho. Só o céu, a sua borboleta e a serpente
se encontram coloridas – o mundo mais terreno encontra-se
monocromático, as pessoas, a casa e a árvore vazias de cor. A
manipulação da cor, tal como a manipulação do papagaio conjugamse num mundo para lá das montanhas, onde o menino por manipulálas manda esperar o pai. Mas existem medos. A borboleta ao voar
pode magoar alguém, o sol, que já está com a boca vermelha da
borboleta o ter atingido com os cornos. Também o voar demais
pode levar a que ela se perca, e se sinta sozinha, e o desespero
da solidão aparece.A liberdade trás destes paradoxos: provavelmente
mostra-lhe um mundo mais colorido mas pede-lhe mais precisão
na manipulação do papagaio. A responsabilidade talvez seja
monocromática, com nuvens mais negras e pode eventualmente
trazer trovoada. E para lá das montanhas, onde reina o desconhecido?
O mundo pintado no quadro do pai pode sempre se revelar e não
existe nenhum papagaio de papel que resista. Mas o tempo urge.
A arvore com vida está a ser corroída pela serpente que lhe come
os frutos - as sementes: o começo de novas arvores. A serpente,
que se destaca pela cor, vai ficando maior, comendo todo o interior
da árvore - todo o seu mundo interno. Deixando-lhe unicamente
a capa, aquela que normalmente se utiliza para desenhar uma
arvore: um invólucro ondulado que esconde todo um mundo de
frutos e folhas.
6. Reflexões finais: evolução e análise
compreensiva
Brincamos. Com o desenho, com os bonecos, o Nuno experimentou.
Confrontou nas suas personagens e por vezes simultaneamente,
sentimentos opostos, formas de estar e de actuar diferentes: a
tristeza e a alegria (sexta sessão); a insegurança versus segurança;
a angústia da falta de controlo confrontada com o excesso de
controlo; a autonomia e a dependência; a imaginação com a inibição.
A brincar colocou a sua existência; aquilo que talvez tenha de mais
sério, que especificamente lhe pertence e no entanto foi tudo a
brincar, não passou de um “faz de conta”. Apresentando o que nos
pareceu constituir evolução, mudança, realçamos primeiro o seu
lado mais subjectivo, menos visível: como já foi dito, pareceu-nos
estar a existir progressivamente uma libertação, no que nos expunha
e na relação que tinha com o psicólogo; a espontaneidade foi-se
tornando mais visível, a alegria também. Pareceu-nos que o Nuno,
no contexto da relação psicoterapêutica, tornou-se uma criança
mais alegre. Quando provavelmente percebeu que tudo o que
fazíamos era a brincar, ele deixou (de uma forma progressiva,
subtil) a obrigação de ter fazer o que agradaria os outros (exactamente por ser brincar), e passou a fazer o que o seu organismo
lhe ia “pedindo” (experiencia organísmica7).
Mas a mudança não ocorreu unicamente dentro das paredes do
consultório, ela - e agora apresentando a visão dos pais, exposta
espontaneamente por estes nas entrevistas - verificou-se logo após
o segundo contacto que teve com o psicólogo:
Excerto da terceira consulta realizada com os pais:
“P – E em relação a fezes como é que é?
No final do processo, o Nuno já não possuía o comportamento
encoprético, dizendo a mãe que ele já não fazia nas calças, nem
mesmo à noite, há já algum tempo (mais ou menos quatro semanas).
Disse também que ele andava muito melhor desde de que
frequentava as consultas de psicologia. Perguntou-se o que entendia
por “andar melhor” e ela disse-nos que andava “mais bem disposto,
mais contente”.
Que repercussões terá para a família o facto do Nuno ir diminuindo
os conteúdos sintomáticos? Será que o “bode expiatório” teria
que continuar a existir e o resmungar passasse a ser mais outra
“doença”? O sintoma, motivo de consulta, de certa forma o que
“dava mais nas vistas” (encoprese) tinha desaparecido, mas os
outros? Aqueles que o mantinham escondido num estado anímico?
M – Em relação a isso o Nuno anda muito contente porque gosta
de vir cá. Diz que tem um amigo que é o sr. dr. e que o sr. dr. o
deixa brincar e que faz coisas. E disse: sabes mãe o meu organismo
só já faz á noite, e eu disse olha que bom tás a ver, valeu a pena,
valeu a pena então. O sr. dr. disse-te..., não ele ainda não me falou
nisso, mas tu disseste-me aquilo e gosto de ir lá e também quero
que ele... para a próxima vou-lhe dizer, que ele é meu amigo também
quero mostrar-lhe que sou amigo dele.
(...)
P – A escola não será uma preocupação a questão de fazer na
escola?
M – Pois eu para mim ele agora anda muito contente porque ele
anda despreocupado porque o organismo funciona á noite e ele
agora está consolado. É o que ele diz á noite estou em casa, não
é? Eu acho que ele, quer dizer o ter vindo aqui, o sr. dr. da maneira
como lidou com ele acho que ele se calhar entendeu o essencial.”
P –psicólogo, M – mãe
Quando falamos no assumir uma postura de não directividade, no
devolver à criança a responsabilidade de direccionar a sua vida,
ali, naquele contexto especifico, inspirando-nos em João dos Santos
(Branco, 2000) (a respeito de um caso que teve, que em relação
ao sintoma é semelhante): talvez alguma coisa se tinha descontraído
no Nuno, que aquela expressão de tensão que ele tinha, era como
se toda a família estivesse contraída com aquele problema, e como
se a criança estivesse completamente fechada, até para a expulsão
das suas matérias fecais. Assim após ter estado apenas uma sessão
com o Nuno, o sintoma encoprético quase desapareceu.
7 Este conceito refere-se a tudo o que se passa no organismo em qualquer momento,
e engloba tanto os acontecimentos conscientes como os fenómenos inconscientes
(Rogers e Kinget, 1975).
O Nuno parece-nos encontrar-se num estado de grande tensão,
proveniente de um conflito, que por sua vez provem de uma
ambivalência em relação a modos de se posicionar no mundo. O
que queremos dizer com isto, é que vários factores intervêm, de
um modo sentido para o Nuno, como pouco tolerante, quase
opondo-os, fazendo-o criar uma angústia que ao longo da sua
evolução se foi tornando mais interiorizada, mais contida, desta
forma originando e mantendo os sintomas. A este respeito citamos
mais uma vez João dos Santos (in Branco, 2000) a respeito do
comportamento encoprético quando diz: “É curioso, porque ao
mesmo tempo que isto se passa (encoprese), a criança é capaz de
guardar também outras coisas para si, portanto, é capaz de se conter
noutros aspectos. Por exemplo a criança começa a chorar menos, a
chorar no sentido de gritar, de fazer grandes birras e, a pouco e pouco,
vai deixando de chorar assim, e depois, já aos seis anos, quase que já
não chora, só quando há realmente motivos sérios para se chorar.”
(p.189)
Mas descreveremos primeiro os factores que a nós, e apoiandonos em Rogers (1994) nos parecem importantes como intervenientes nesta realidade - a família e a personalidade da criança,
nomeadamente em relação ao primeiro, não só a relação de pai
e mãe - individual ou em conjunto - com a criança mas de igual
modo, entre si.
Que padrões regem esta família, quais os valores mais exaltados?
Parece-nos, não só pelas dramatizações do Nuno, como também
pelas descrições dos pais, que a família tem o “peso” do trabalho
bem presente não só nas vidas dos adultos, como também reflectido
na educação dada aos filhos, e um pouco abordada em forma de
chantagem ao Nuno. O trabalho é visto como algo difícil, onde o
sofrimento terá necessariamente que estar presente para que
possa “dar frutos”. E o Nuno sente-o, o que lhe gera culpabilidade
(provavelmente por eles trabalharem tanto para que não lhe falte
nada, por não poder ajudar nada ainda). Assim ele dramatiza este
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problema (em quase todas as sessões), quer problematizando o
seu próprio “trabalho” que é a escola, recriminando-se (sessão 4),
quer pondo-se a ajudar o pai e a mãe com o que sabe fazer - que
é desenhar – tentando, assim, aliviar esta culpabilidade inerente
que sente. A nível relacional, ele procura enquadrar-se no que os
pais consideram ser o “portar-se bem”, o seguir as normas. Através
da dramatização e não só ele verbaliza o desejo de um dia poder
vir a ajudar os pais (nessa luta que travam todos os dias contra
o prazer) - como nos explica no questionário de Zelazosca –
traduzido no desejo de ter muito dinheiro para poder ajudar os
pais. Pensamos que o que foi descrito na sessão quatro, demonstra
essa preocupação e essa culpabilidade.Também na sexta entrevista
a conversa entre o psicólogo e o Nuno demonstra essa necessidade
de ajudar - de agradar - naquilo em que os pais, provavelmente,
consideram importante investir:
“P – A escola é muito importante para ti?
C – Sim, porque é lá que se aprende.
P – E porquê que queres aprender?
C – Para tirar um curso e ganhar dinheiro para mim e para a minha
família. Porque se não se esforçar, não se ganha nada.”
P – psicólogo, C – cliente
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Nesta família tudo se discute num plano racional, onde os sentimentos
estão subjugados às normas e às obrigações – quem possui a
racionalidade, como já foi apresentado na análise do desenho de
uma família, detém o poder. Plano também imposto ao Nuno, que
o faz parecer, aos pais, como uma criança muito responsável. A
ordem, a planificação, também são aqui valores muito enfatizados.
Em relação ao pai especificamente, o Nuno manifesta o desejo que
este passe mais tempo consigo, e visto este ter de trabalhar muito
o jovem propõe, em dramatização, que ele vá trabalhar para casa
enquanto ele também faz os deveres. Parece-nos então que o Nuno
o sente como um pouco ausente - se calhar preocupado unicamente
com a sua educação, ou então, como expôs no desenho de uma
família, coordenando e ordenando, na assumpção de uma postura
de líder na sua educação. Postura de chefia a tal ponto que deixa
de poder ser alcançado e onde as suas ordens adquirem uma força
tal que não poderão ser postas em causa.
Em relação à mãe, esta aparece como muito preocupada com o
filho, adoptando uma postura sempre muito protectora com este.
Ao mesmo tempo que manifesta a preocupação projecta igualmente
muita ansiedade, para o psicólogo, e provavelmente para o Nuno
no seu dia a dia. Ou seja, é uma mãe que está muito preocupada
com o seu filho, e para quem o decidir a educação é visto como
algo difícil de suportar, “penoso”, “doentio” (tal como ela colocou
o problema da encoprese), perdendo, assim, espontaneidade no
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relacionamento. Adopta uma postura de hiper-protecção por falta
de segurança na tendência actualizante do ser humano, visto ela,
por não acreditar nas suas capacidades e pensar que todo o processo
educativo é um processo difícil, se fecha - como se de um casulo
se tratasse - a ela e ao Nuno numa dinâmica, que provavelmente o
faz adoptar uma postura regressiva, de passividade, por medo “que
o deixem sozinho” (desenho de uma família) ou seja medo de
crescer, de se autonomizar – daí, provavelmente, a sua angústia. É
uma mãe que talvez eduque o filho como estivesse a “amestrar
papagaios” (Santos, in Branco, 2000, p.178).
Portanto esta família - e recorrendo ao simbolismo apresentado
pelo Nuno nas consultas - é uma família “que está na mesa”, a
introduzir algo ao Nuno. É uma família que provavelmente o escuta
pouco, deixando-lhe pouco espaço para as suas necessidades.
Exploremos o pouco espaço: falamos de avaliações que em relações
interpessoais constantemente se fazem (Roger & Kinget, 1975).
Parece-nos que em relação ao Nuno, esta família possui uma avaliação
do seu comportamento bastante condicional. As experiências do
self 8 da criança, são avaliadas positivamente de um modo bastante
selectivo, sendo provavelmente alvo de consideração negativa as
experiências que contrariassem a racionalização instituída, o valor
do trabalho e do controlo, a expressão da agressividade, os rituais
de limpeza e de um modo mais geral da liberdade para crescer.
Assim teorizando acerca da personalidade do Nuno e baseandonos na teoria rogeriana (in Rogers & Kinget, 1975) da personalidade,
podemos arriscar dizer que este se encontra num estado de conflito.
Como já vimos, o pai e a mãe, têm em relação a ele e ao seu
comportamento, um tipo de avaliação condicional, ou seja: unicamente
certos comportamentos do Nuno são valorizados como alvo de
consideração positiva. Este processo de avaliação talvez seja sentido
pelo Nuno de uma forma demasiado rígida, onde experiências
agressivas ou de revolta não possam sequer ser consciencializadas.
Assim, como o experienciar consideração positiva da parte dos
outros se mostra como uma necessidade (Rogers & Kinget, 1975)
por vezes mais forte que o processo de avaliação organísmica
(experiencia organismica), o Nuno ao pretender satisfazer esta
necessidade adopta como força directriz das suas experiências a
avaliação dos outros, e o que os outros, no que experiencia,
consideram de positivo ou negativo. O Nuno seleccionando na
consciência as experiências causadoras de culpabilidade e desse
8 O Self designa a configuração experiencial composta de percepções relativas ao
Self, as relações do Self com o outro, com o meio, e com a vida em geral, assim como
os valores que o individuo atribui a estas diversas percepções. (Rogers & Kinget,
1975, p. 165).
modo recalcando-as, tornou-se então no filho que eles gostariam
de ter (que permitiam ter), com o seu lado de líder (demonstrando
uma força de controlo sobre os outros), mas ao mesmo tempo
responsável, obediente, higiénico9 e racional, como um adulto, embora
com um medo da solidão como um bebé (teste do pata negra).
Na altura da entrada para o infantário, o Nuno passou uma fase
que só chorava, aparecendo, pouco depois, o sintoma enurese.
Esta fase representou provavelmente o conflito da criança com o
exterior; que não o deixava fazer o que o seu organismo lhe pedia
– talvez uma espécie de manifestação do desconforto causado por
duas forças que se mostravam opostas: a necessidade de
consideração positiva (positive self regard) e a necessidade do
organismo. Fase essa, que resultou provavelmente num compromisso:
onde a avaliação do comportamento começou progressivamente
a ser realizado por si. Ou seja: o Nuno passou, tomando como
base critérios exteriores, a avaliar ele próprio a experiência do
seu Self, passando desse modo a mostrar uma angustia quase
permanente acerca do que expulsa e do que exprime (procurando
desse modo adquirir um controlo do mundo e especificamente
dos seus esfíncteres). O seu conflito vai, deste modo, passando de
factores exteriores para factores internos, para o seio da sua
personalidade formando-se desse modo uma personalidade
neurótica segundo (Rogers & Kinget, 1975).
Assim como foi dito na analise do teste de uma família, o Nuno
encontra-se numa ambivalência que encontra dois pólos antagónicos,
devido ao pouco espaço que os pais lhe dão para que ele se
encontre “e seja quem é”. O seu organismo pede mais liberdade,
mais autonomia, menos controle. Deseja como diz no questionário
de Zelazosca “que ninguém o chateie” e se pudesse, gostaria “de ser
livre e ir conhecer o mundo”.
Por isso ele fecha-se num comportamento anímico para o mundo
que lhe tenta invadir a privacidade. Um ambiente que reprime as
necessidades do seu organismo (“que dizem respeito a toda uma
serie de restrições que limitam a criança nos seus movimentos e
deslocação no espaço (não o deixando ir brincar com as primas (cf.
enquadramento)), na utilização de certos objectos, e na forma de
manipular outros, na manifestação dos seus impulsos, e, em particular,
limitação da liberdade excretar urina e matérias fecais.” (Santos in
Branco, 2000, p.338)) e que lhe impede o crescimento, mantendo
a evolução psicoafectiva da sua personalidade, fixado num estado
mais infantil (Marcelli, 1998). Desta repressão, que progressivamente
vai ficando mais internalizada, surgem os sintomas: “A criança (...)
estando submetida a fortes tensões ou rigorosas normas educativas,
submete-se retendo as fezes, como retém a agressividade. (...) Incapaz
de suportar constantemente a contenção, (o Nuno) exprime a sua
agressividade através das fezes (e urina).” (Santos in Branco 2000,
p. 338). Possui assim dois modos de estar, que ele os vê como
incompatíveis e que lhe trazem incongruência: um mundo de
contenção e um mundo de expulsão, que por ser reprimido (quer
pela família que por ele) não surge ou não é simbolizado
correctamente na consciência.
Mas existe também a ambivalência, proveniente da necessidade de
auto-realização que o motiva para o “florescimento”, ou seja, existe
também a necessidade de auto-realização que provavelmente vai
perdendo força ao outro lado motivador da dependência; um lado
que reclama um Nuno mais livre para experienciar e desse modo
mais seguro de si, com menos medo de ficar sozinho, mas ao
mesmo tempo com mais controle da sua vida e consequentemente
dos seus esfíncteres, mas de uma forma despreocupada, involuntária
como o próprio controlo o é; uma liberdade que encontrada lhe
permitirá ser “jogador de futebol” (questionário de Zelazosca), ou
não, dependendo da escolha que dia a dia for fazendo.
BIBLIOGRAFIA
Arfouilloux, J. C. (1980). A entrevista com a Criança. Rio de Janeiro: Zahar
Editores
Axline,V. M. (1993). Play Therapy. 33ª edição. New York: Balentine Books.
Boekholt M. (2000). Provas Temáticas na Clinica Infantil. Lisboa: Climepsi
Branco, M. E. C. (2000). Vida Pensamento e Obra de João dos Santos. Lisboa:
Livros Horizonte.
Cunha, J. A. (1993). Psicodiagnóstico – R. Porto Alegre: Artes Médicas
Doron R. & Parot F. (2001). Dicionário de Psicologia. Lisboa: Climepsi editores
Marcelli, D. (1998). Manual de Psicopatologia da Infancia de Ajuriaguerra. Porto
Alegre: Artemed.
9 João dos Santos (in Branco, 2000), a educação para a limpeza é a primeira forma
de educação imposta pelos pais; ao dizerem para ele ver as outras crianças e que
ele não poderia andar assim sujo na rua, estariam a salientar o conteúdo agressivo
que ele poderia representar para o que estaria exterior ao Nuno, principalmente os
pais. Se ao contrário disso o tivessem tentado ouvir ou, como diz Rogers (1989): “O
relacionamento constitui-se de uma expressão mutável de sentimentos e atitudes, com o
outro empenhando-se em escutar e ouvir com aceitação, mas também com direito a seus
próprios sentimentos e atitudes, que também necessitam ser ouvidos com aceitação.”,
provavelmente a agressão seria ouvida e teria sido trabalhada (contida?).
Rogers & Kinget (1975). Psicoterapia e Relações Humanas Vol I. Belo
Horizonte: Interlivros.
Rogers, C. (1989). Sobre o Poder Pessoal. São Paulo: Martins Fontes.
Rogers, C. (1994). O Tratamento Clínico da Criança-Problema. 2ª edição. São
Paulo: Livraria Martins Fontes
Toro, J. (1998). Psiquiatría de la infancia y de la adolescencia. In J.V. Ruiloba,
(ed), Introduccion a la Psicopatologia y la Psiquiatria. 4ª edición. Barcelona:
Masson
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