0 Pedro de Oliveira Magalhães

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0 Pedro de Oliveira Magalhães
Pedro de Oliveira Magalhães
INCONSTITUCIONALIDADE POR VÍCIO DE DECORO PARLAMENTAR
Monografia apresentada como requisito
para conclusão do curso de pósgraduação em Ordem Jurídica e
Ministério Público pela Fundação Escola
Superior do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios.
Orientador: Profº Thiago André Pierobom de Ávila.
Brasília
2009
0
Trabalho (título): Inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar.
Autor: Pedro de Oliveira Magalhães. Advogado, Colaborador da Defensoria Pública
do Distrito Federal e Territórios no Núcleo de Atendimento Jurídico do Segundo Grau e
Tribunais Superiores da Quinta Procuradoria Criminal, Bacharel em Direito pela
Universidade Paulista, campus Brasília (2007), pós-graduando em Ordem Jurídica e
Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios (FESMPDFT).
Endereço do autor: SGAN 914, BLOCO C, APT 218, South Beach, Asa Norte,
Telefone: 34479686/84847002, Brasília-DF.
Orientador: Thiago André Pierobom de Ávila.
1
RESUMO: Com o presente trabalho, buscamos demonstrar a viabilidade da tese
consubstanciada na inconstitucionalidade da norma por violação ao disposto no § 1º do
art. 55 da Constituição Federal de 1988, enunciado constitucional este que trata do
decoro parlamentar. Com efeito, a temática objeto deste artigo versa acerca da
possibilidade de serem declaradas inconstitucionais Emendas à Constituição, Leis
Ordinárias e Complementares, etc., quando realizadas em um contexto fático de
malversação das prerrogativas parlamentares, em evidente prejuízo à soberania popular,
à representatividade e aos direitos políticos fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: Inconstitucionalidade – Decoro – Parlamentar – Soberania.
ABSTRACT: Through the present paper we intend to show the viability of the theory
consubstantiated in unconstitutionality of the norm by violation to what is mentioned in
the first paragraph of article 55 of the Federal Constitution of 1988, which concerns
parliamentary decency. The subject of this article concerns the possibility of amendents
to
the
Constitution,
Ordinary
and
Complementary
laws
being
considered
unconstitutional when enforced in a factual context of malversation of parliamentary
prerrogatives in evident prejudice to popular sovereignty, to representativeness and to
fundamental political rights.
KEYWORDS: Unconstitutionality – Decency – Parliamentary – Sovereignty.
2
SUMÁRIO
Introdução - 03.
1. A Supremacia da Constituição e o controle de constitucionalidade – 06.
2. O processo legislativo constitucional – 08.
3. Prerrogativas e deveres dos parlamentares e o decoro – 09.
4.
A natureza dúplice da norma constitucional – 12.
5. Considerações acerca da soberania popular e da representatividade – 13.
6. Introdução necessária à teoria – 17.
7. A violação dos direitos políticos fundamentais em decorrência do vício de
decoro parlamentar – 22.
8. Síntese das conseqüências do vício de decoro parlamentar na ordem
jurídica – 24.
9. Perspectiva de aplicação – 25.
10. Caracterização da inconstitucionalidade – 34.
Conclusão – 41.
Referências bibliográficas – 44.
3
INTRODUÇÃO
Para a abordagem do presente tema, dada a sua complexidade e incipiência
(haja vista que calcado em fatos recentes1), faremos considerações acerca de outras
matérias entrelaçadas que permeiam a temática. No entanto, a fim de não fugir da
presente proposta, não nos aprofundaremos naqueles tópicos secundários, conquanto
façamos menções a eles periodicamente durante a monografia.
Convém esclarecermos do que trata o presente estudo, pois não se pode
olvidar que a interpretação gramatical constitui uma importante ferramenta
hermenêutica, ainda que deva ser inserta nos paradigmas do método sistemático
conjuntamente com os demais recursos que o exegeta tem à disposição (teleológico,
histórico etc.) para a interpretação das normas.
O
lexicógrafo
Aurélio,
compreende
por
“inconstitucional”:
“Não
constitucional ou que se opõe à Constituição do Estado.” 2.
A seu turno, a palavra “vício” possui as seguintes acepções:
“1. Defeito grave que torna uma pessoa ou coisa inadequada para
certos fins ou funções. 2. Inclinação para o mal. [Nesta acepç. opõese a virtude (1).] 3. Costume de proceder mal; desregramento
habitual. 4. Conduta ou costume censurável ou condenável;
libertinagem, licenciosidade, devassidão. 5. Qualquer deformação
física ou funcional. 6. Costume prejudicial;” 3
1
O Supremo Tribunal Federal, em julgamento histórico, que transcorreu durante 5 (cinco) dias,
finalizando sua primeira etapa em 28 de agosto de 2007, recebeu a denúncia do Procurador-Geral da
República acusando 40 (quarenta) envolvidos na suposta sistemática criminosa denominada de
“mensalão”. Dentre os réus constavam membros da alta cúpula do Partido dos Trabalhadores que, à época
dos fatos, exerciam mandato parlamentar e funções no Poder Executivo Federal, além de outros agentes
públicos e empresários relacionados na exordial acusatória. Segundo veiculado nos meios de informação,
os Ministros da Suprema Corte esperam o desfecho do caso nos próximos três ou cinco anos. O
Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Souza, por sua vez, afirmou: “Minha expectativa é
obter condenação de todos os réus.” Como exemplo de que espécie de fatos podem ensejar a
inconstitucionalidade de uma norma por nós defendida durante essa exposição, destaque-se a fala do
primeiro membro de cor negra da história do Supremo Tribunal Federal, o relator do caso, Ministro
Joaquim Barbosa : “Os fatos são claríssimos. Membros de uma agremiação (...) resolvem distribuir
recursos a membros de outras agremiações. Tratativas acontecem e esses recursos são firmados sem
registro.” (fonte, revista Veja. Edição 2024, de 5 de setembro de 2007. Abril. págs. 52/53).
2
Novo Dicionário Aurélio. 1° Edição, 11º Impressão. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1975. p. 755.
3
Novo Dicionário Aurélio. 1° Edição, 11º Impressão. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1975. p. 1458/1459.
4
Denota-se, portanto, que o vocábulo “vício” carrega em si carga
patentemente negativa.
Já o termo “decoro”, sinaliza: “1.Correção moral; compostura, decência.
2.Dignidade, nobreza, honradez, brio, pundonor.” 4
Por último, ainda conforme o renomado lexicógrafo, o adjetivo
“parlamentar” significa: “1. Pertencente ou relativo ao Parlamento. 2. Membro de um
parlamento.” 5
Vislumbrada a etimologia gramatical dos vocábulos em tela, faz-se mister
averiguar, outrossim, o conteúdo jurídico pertinente a estes. Para tanto, buscamos os
ensinamentos
da
jurista
Maria
Helena
Diniz.
Com
efeito,
juridicamente,
“inconstitucionalidade” tem o sentido de:
1. Direito constitucional. Caráter do que é inconstitucional. 2. Direito
processual.
Pronunciamento
do
Supremo
Tribunal
Federal
declarando tratado, norma ou ato contrário à Constituição, pela
maioria absoluta de votos. 6
A palavra “vício”, por sua vez, contém a seguinte acepção jurídica:
1. Direito civil. a) Defeito do negócio jurídico que o torna anulável;
b) imperfeição ou falha apresentada no objeto da relação jurídica; c)
deterioração. 2. Direito administrativo. Irregularidade do ato
administrativo. 3. Direito comercial. Avaria. 4. Lógica jurídica. O
que invalida um pensamento (Renouvier). 5. Medicina legal. a)
Deformidade; b) defeito físico; c) hábito de usar entorpecente, de
fumar ou consumir bebidas alcóolicas; d) degenerescência moral que
leva o paciente a praticar, habitualmente, atos indecorosos,
condenáveis ou censuráveis. 6. Direito penal. Libertinagem. 7
O vocábulo “decoro”, a renomada professora dispensa as seguintes
significações em suas lições:
1. Na linguagem jurídica em geral, quer dizer: a) honradez, dignidade
ou moral; b) decência; c) respeito a si mesmo e aos outros. 2. Direito
penal. a) Objeto do crime de injúria, que constitui ofensa à dignidade
4
Novo Dicionário Aurélio. 1° Edição, 11º Impressão. Rio de janeiro: Nova Fronteira 1975. p. 424.
Novo Dicionário Aurélio, 1° Edição, 11º Impressão. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1975. p. 1038.
6
Dicionário jurídico. Vol. 2, 2° Edição. São Paulo: Saraiva 2005. p. 940.
7
Dicionário jurídico. Vol. 4, 2° Edição. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 877.
5
5
ou ao decoro; b) objeto do crime de ultraje público ao pudor, que
consiste na prática de ato obsceno em local público. 8
Inobstante a percuciência da definição conferida ao último termo
supracitado, a norma constitucional, consoante enfatizaremos no decorrer do trabalho,
por sua própria natureza instituidora da ordem jurídica e do Estado, detém feição dupla,
qual seja, uma face jurídica e outra política.
Desse modo, tendo em vista que a função legislativa e a democracia em si
mesmas consubstanciam o substrato do tema explorado, não se pode neste ponto perder
de vista que a definição essencialmente política do que seja “decoro” e também a
terminologia “parlamentar” é a mais adequada ao que se propõe, sem olvidar,
evidentemente, os correlatos efeitos jurídicos que a elas estão vinculados
inexoravelmente.
Neste sentido, e para melhor esclarecimento daquilo que por ora se busca, a
expressão “decoro parlamentar” e sua respectiva acepção, no âmbito da ciência política,
torna-se imprescindível. Novamente, nos socorremos dos ensinamentos irretocáveis de
Maria Helena Diniz, segundo a qual “decoro parlamentar” é:
Ciência política. Decência que devem ter os deputados e senadores,
conduzindo-se de modo não abusivo com relação às prerrogativas que
lhes foram outorgadas e sem obter quaisquer vantagens indevidas,
sob pena de perderem o mandato. 9
Tecidas essas considerações iniciais acerca do significado dos termos
relativos à matéria, deve-se destacar que, em síntese, o escopo do presente estudo é a
abrangência do contido no § 1° do art. 55 da Constituição Federal de 1988, à luz das
diretrizes do Estado Democrático de Direito, em especial a soberania popular (art. 1°,
parágrafo único da Constituição Federal), segundo o qual:
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: § 1º - É
incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no
regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro
do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.
8
9
Dicionário jurídico. Vol. 2, 2° Edição. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 28.
Dicionário jurídico. Vol. 2, 2° Edição. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 28.
6
Confira-se, por conseguinte, a fim de iniciarmos a compreensão do
fenômeno, o entendimento esposado pelo constitucionalista Pedro Lenza acerca da
temática proposta:
6.3.4. Vício de decoro parlamentar (?) Como se sabe e se publicou
em jornais, revistas etc., muito se falou em esquema de compra de
votos, denominado “mensalão”, para se votar de acordo com o
governo ou em certo sentido. As CPIs vêm investigando e a Justiça
apurando e, uma vez provados os fatos, os culpados deverão sofrer as
sanções de ordem criminal, administrativa, civil etc. O grande
questionamento que se faz, contudo, é se, uma vez comprovada a
existência de compra de votos, haveria mácula no processo
legislativo de formação das emendas constitucionais a ensejar o
reconhecimento da sua inconstitucionalidade? Entendemos que sim e,
no caso, trata-se de vício de decoro parlamentar, já que, nos termos
do art. 55, § 1°, “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos
casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas
asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de
vantagens indevidas”. Vamos aguardar a maneira, uma vez ajuizada
alguma ADI com base nesta tese, como o STF vai enfrentar essa
importante questão. Em nosso entender, sem dúvida, trata-se de
inconstitucionalidade, pois maculada a essência do voto e o conceito
de representatividade popular.” 10 (grifos no original)
1
A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E O CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE
Ao tratar do estudo da constitucionalidade e inconstitucionalidade, Gilmar
Mendes, citando o jurista português Jorge Miranda, anota que:
[...] constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos
de relação, isto é, “a relação que se estabelece entre uma coisa – a
Constituição – e outra coisa – um comportamento – que lhe está ou
10
Direito Constitucional ESQUEMATIZADO. 12° Edição. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 132/133. Em nota
de rodapé de sua obra, o Dr. Pedro Lenza divide a co-autoria da tese em apreço com outra jurista,
anotando que: “Depois de muito pensar e discutir, falar em vício de ética, vício de consentimento, a
colega Simone Aparecida Smaniotto sugeriu “vício de decoro parlamentar”, o que entendemos perfeito,
tendo em vista a regra do art. 55, § 1º.” (ob. cit. pág. 128, rodapé).
7
não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não no
seu sentido”. Não se cuida, porém, de uma relação lógica ou
intelectiva, adverte o mestre português, mas de uma relação de
caráter normativo e valorativo. Em verdade, é essa relação de índole
normativa que qualifica a inconstitucionalidade, pois somente assim
logra-se afirmar a obrigatoriedade do texto constitucional e a
ineficácia de todo e qualquer ato normativo contraveniente. “Não
estão em causa – diz Jorge Miranda – simplesmente a adequação de
uma realidade a outra realidade, de um quid a outro quid, ou a
correspondência entre este e aquele ato, mas o cumprimento ou não
de certa norma jurídica”. 11
A idéia de controle de constitucionalidade surgiu nos Estados Unidos da
América, de forma difusa, quando do julgamento do célebre caso Marbury v. Madison,
relatado por John Marshall, à época juiz presidente (Chief Justice) da Suprema Corte
daquela nação. Nas palavras de João Carlos Souto:
“O voto (opinion) de John Marshall no caso Marbury v. Madison
inaugurou, no limiar do século XIX, o controle judicial (judicial
review) de constitucionalidade das leis, estabelecendo um sistema
que viria a ser reproduzido na grande maioria das democracias
ocidentais. A relevância desse julgado pode ser mensurada na
assertiva de Craig R. Ducat, de que “provavelmente não há livro de
prática de direito constitucional que não inicie mencionando Marbury
vs. Madison”, (“there is scarcely a casebook on constitucional Law
that does not begin with Marbury vs. Madison”).”12
O controle de constitucionalidade posteriormente adquiriu novos contornos
na Europa Ocidental, caracterizando-se pelo modo concentrado, estabelecendo-se um
órgão de cúpula para a análise da compatibilidade abstrata da lei com a Constituição.
Em nosso país adotamos o controle de constitucionalidade tanto na forma
difusa quanto concentrada.
11
Manual de Direito Constitucional. 2. Ed. ver. Coimbra, Coimbra Ed. 1981. 2. V. Págs. 273-4. Apud.
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. Aspectos Jurídicos e Políticos. São Paulo:
Saraiva, 1990. p. 6.
12
Suprema Corte dos Estados Unidos, Principais Decisões. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 4.
8
No que diz respeito ao controle difuso de inconstitucionalidade, destaque-se,
de antemão, não conseguirmos visualizar a possibilidade de aplicação da teoria, por
razões que trataremos no item perspectiva de aplicação.
2
O PROCESSO LEGISLATIVO CONSTITUCIONAL
O processo legislativo constitucional é conceituado pela doutrina como
sendo “o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção) realizados pelos órgãos
legislativos e cooperados para o fim de promulgar leis.” 13
Inicialmente, convém destacar que não vislumbramos interesse prático em
se constatar eventual usurpação da soberania popular na primeira fase do processo de
formação da norma, qual seja, no estágio denominado de iniciativa das leis (este último
termo em sua acepção lata), posto que a prerrogativa em tela é conferida em todas as
esferas de Poder da República14 e também ao cidadão15, conforme a orientação
constitucional de democracia indireta e direta (com inequívoca prevalência pela
metodologia indireta).
O que se quer dizer com isto é que em vista da relativa amplitude da
iniciativa de formação das normas, afigura-se, em princípio, desinteressante a cooptação
de eventuais legitimados para a promoção de interesses alheios à soberania popular
nesta etapa de iniciativa da norma. E, como pensamos e aguardamos que as teorias
possuam algum efeito no plano concreto, descartamos por ora a hipótese aventada.
Em síntese, a violação do decoro parlamentar no que tange à iniciativa das
leis, devido à amplitude que a Constituição Federal conferiu a esta etapa do processo
legislativo, aparenta ser irrelevante para a caracterização de mitigação da
representatividade e a conseqüente usurpação da soberania popular (ou até mesmo no
que concerne à infringência da harmonia entre os poderes) e, por conseguinte, não nos
parece útil estender a interpretação do controle de constitucionalidade a este ponto.
13
SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação das Leis. 2° Edição. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 42.
14
Art. 60, incisos I, II e II, e art. 61 e § 1°, ambos da Constituição Federal de 1988.
15
Art. 61, § 2°, da Constituição Federal de 1988.
9
Entretanto, no que tange às demais etapas relacionadas ao processo
legislativo de formação das normas, quais sejam, emenda, votação e sanção (às quais
não nos aprofundaremos por não ser o objeto do presente trabalho), cremos viável a
inquinação de inconstitucionalidade da norma por indecoro parlamentar e a conseqüente
usurpação da soberania popular em qualquer delas singularmente considerada.
Em outras palavras, em sendo verificada a malversação das prerrogativas
parlamentares em qualquer dessas etapas, consoante os termos que serão explicitados
quando da digressão da teoria que defendemos, pensamos que todo o processo
legislativo de formação da norma será irremediavelmente contaminado pela mácula da
inconstitucionalidade.
É de se observar, diga-se logo, que o Poder Judiciário tem competência para
a apreciação acerca da higidez no processo legislativo, tanto no que tange à ilegalidade
quanto à inconstitucionalidade dos procedimentos referentes àquele, não se cogitando
qualquer violação ao princípio da harmonia entre os Poderes (Constituição Federal, art.
2°) no exercício desse controle. É o que se pode depreender do julgado da lavra do
Supremo Tribunal Federal, onde se assenta categoricamente que:
O parlamentar tem legitimidade ativa para impetrar mandado de
segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de
aprovação de leis e emendas constitucionais que não se
compatibilizam com o processo legislativo constitucional. 16
3
PRERROGATIVAS E DEVERES DOS PARLAMENTARES E O
DECORO
Pensamos que o instituto do decoro parlamentar é a garantia do mínimo de
ética que o Estado Democrático de Direito exige por parte dos representantes de seu
povo, cujo poder se resume na expressão soberania popular e, assim, pode ser
visualizado como um instrumento constitucional de legitimidade da relação de poder do
Estado sobre o indivíduo.
16
MS 24642/DF DISTRITO FEDERAL MANDADO DE SEGURANÇA Relator (a): Min. CARLOS
VELLOSO Julgamento: 18/02/2004 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação DJ 18-06-2004 PP00045
EMENT VOL-02156-02 PP-00211.
10
Apesar do grande subjetivismo, o termo “decoro parlamentar” deve ser
entendido como o conjunto de regras legais e morais que devem reger a conduta dos
parlamentares, no sentido de dignificação da nobre atividade legislativa. 17
Entretanto, como já dissemos, para além da mera punição singularizada do
parlamentar, acarretando-lhe a perda do mandato, entendemos que a conduta indecorosa
pode gerar, outrossim, a inconstitucionalidade da norma. A redação do § 1º18 do art. 55
da Constituição Federal determina as três vertentes de conduta que caracterizam o
chamado “vício de decoro parlamentar”, são elas: o abuso das prerrogativas asseguradas
ao membro do Congresso Nacional, a percepção de vantagens indevidas e os casos
definidos no respectivo regimento interno, Câmara ou Senado Federal, conforme o caso.
Passa-se à análise de cada qual separadamente:
01. abuso das prerrogativas asseguradas ao membro do Congresso Nacional:
as prerrogativas dos parlamentares, é preciso dizer,
“são estabelecidas menos em favor dos congressistas que da
instituição parlamentar, como garantia de independência perante
outros poderes constitucionais. A Constituição Federal de 1988
restituiu aos parlamentares suas prerrogativas básicas, especialmente
a inviolabilidade e a imunidade, mantendo-se o privilégio de foro e a
isenção do serviço militar e acrescentou a limitação do dever de
testemunhar”.19
Estão elas arroladas pelo art. 53 do Texto Constitucional. O “abuso” de tais
prerrogativas consistiria em justamente utilizá-las como um veículo para a promoção de
interesses estritamente pessoais, olvidando do alerta de que só são legítimas na medida
em que garantem o exercício da função parlamentar.
02. a percepção de vantagens indevidas : em Direito Penal, para fins de
tipificação do crime de corrupção passiva (Código Penal, art. 31720), define-se
17
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. São Paulo: Atlas, 2007. p.
446.
18
Conforme determina o dispositivo: “É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos
definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas parlamentares asseguradas a membro do
Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.”
19
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24º Edição. São Paulo: Malheiros,
2005. p. 534.
20
Corrupção Passiva: “317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda
que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de
tal vantagem : Pena – reclusão, de dois a doze anos, e multa. § 1º A pena é aumentada de um terço, se, em
conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício
11
vantagem indevida como aquela que “a lei não autoriza”21, podendo ser de “cunho
patrimonial, moral, sentimental, sexual etc.”22
Sob este prisma, caracteriza-se percepção de vantagens indevidas, por
exemplo, o recebimento de um automóvel por uma multinacional, ou ainda, a
contratação de um seu parente ou amigo para ingressar nos quadros da Administração
Pública (nepotismo, mediante, v.g., terceirização), uma vez que nesta última hipótese,
conquanto de forma indireta, o nexo de benefício ao parlamentar é indiscutível.
Neste sentido, aliás, muito recentemente o Supremo Tribunal Federal editou
a Súmula Vinculante de nº 13, vedando de forma ampla a prática do nepotismo em toda
a Administração Pública no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.23
Enfim, a depender do caso concreto, caracterizar-se-á o que seja a vantagem
indevida, sempre realçando o vetor da moralidade/ética que deve nortear a conduta
parlamentar.
03. casos definidos no regimento interno: os Regimentos Internos da
Câmara dos Deputados e do Senado Federal prevêem postulados éticos que devem reger
a atuação parlamentar, sob pena de incompatibilidade com o decoro exigível do cargo.
Assim, por exemplo, na Câmara dos Deputados, o Regimento Interno estatui
em seu capítulo V, acerca do Decoro Parlamentar que:
244. O Deputado que praticar ato contrário ao decoro parlamentar ou
que afete a dignidade do mandato estará sujeito às penalidades e ao
processo disciplinar previstos no Código de Ética e Decoro
Parlamentar, que definirá também as condutas puníveis.
ou o pratica infringindo dever funcional. § 2º Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de
ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem : Pena – detenção, de
três meses a um ano, ou multa.”
21
DELMANTO, Celso. (Atualizado por Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de
Almeida Delmanto). Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar, 2002. p. 633.
22
CAPEZ, Fernando. Vol. 3. Curso de Direito Penal, Parte Especial. São Paulo: Saraiva 2005. p. 433. O
autor, em nota de rodapé, ressalta o entendimento em sentido contrário de Nelson Hungria, Comentários,
cit., v. 9, p. 370, para quem a vantagem há de ter necessariamente cunho patrimonial.
23
Súmula vinculante nº 13: A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou
por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa
jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão
ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer
dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste
mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.
12
Por sua vez, o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos
Deputados nos informa em seus artigos 4º e 5º, respectivamente, os atos incompatíveis e
atentatórios ao decoro parlamentar.
Dentre tantas condutas previstas, bastante relevantes são aquelas
consistentes na vedação de “abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos
membros do Congresso Nacional” (art. 4º, inc. I), “perceber, a qualquer título, em
proveito próprio ou de outrem, no exercício da atividade parlamentar, vantagens
indevidas” (art. 4º, inc. II), às quais são meras repetições da norma constitucional
consignada no § 1º do art. 55, ao qual fazem expressa remissão.
Outras condutas indecorosas previstas no Código de Ética e Decoro
Parlamentar da Câmara dos Deputados que não constam expressamente do Texto
Constitucional, mas que merecem realce com relação ao objeto do trabalho são as
seguintes: “fraudar, por qualquer meio ou forma, o regular andamento dos trabalhos
legislativos para alterar o resultado da deliberação” (art. 4º, inc. III), “usar os poderes e
prerrogativas do cargo para constranger ou aliciar servidor, colega ou qualquer pessoa
sobre a qual exerça ascendência hierárquica, com o fim de obter qualquer espécie de
favorecimento” (art. 5º, inc. IV), “relatar matéria submetida à apreciação da Câmara, de
interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o
financiamento de sua campanha eleitoral” (art. 5º, VIII).
Em síntese, mediante um breve apanhado da matéria já se pode notar o viés
eminentemente ético que caracteriza as disposições a respeito do decoro parlamentar.
Para facilitar a didática, chamaremos genericamente a todas essas formas de
incompatibilidade com o decoro parlamentar previstas no § 1º do art. 55 da Constituição
Federal (casos definidos no regimento interno, abuso de prerrogativas e percepção de
vantagens indevidas) de “malversação das prerrogativas parlamentares”.
4
A NATUREZA DÚPLICE DA NORMA CONSTITUCIONAL
Haja vista a maior aproximação da temática proposta deve-se realçar um
aspecto que a nosso ver consta de toda a norma constitucional e que, a todo instante
durante o transcorrer do presente trabalho, deve ser rememorado para que seja possível
13
a plena construção da teoria, qual seja, a existência da faceta “política” das normas
constitucionais.
Com efeito, abalizada doutrina leciona sob o prisma de que a norma
constitucional deve ser considerada de natureza “dúplice”, conjugando duas faces, a
política e a jurídica.24
Assim, socorrendo-nos dessas irretocáveis lições, observamos que dois
aspectos de capital importância assomam, de imediato, à reflexão do intérprete em se
tratando de normas constitucionais. Em primeiro lugar, elas são de superior categoria
hierárquica em face das normas da legislação ordinária, já pela natureza de que algumas
se revestem (constitucionalidade material), já em razão do instrumento a que se
vinculam ou aderem (constitucionalidade formal). Em segundo lugar – e este é o outro
aspecto que nos vem à reflexão – a norma constitucional é de natureza “política”,
porquanto rege a estrutura fundamental do Estado, atribui competência aos poderes,
dispõe sobre os direitos humanos básicos, fixa o comportamento dos órgãos estatais e
serve, enfim, de pauta à ação dos governos, visto que no exercício de suas atribuições
não podem eles evidentemente ignorá-la.25
Conclui-se, portanto, que as relações que a norma constitucional, pela sua
natureza mesma, costuma disciplinar, são de preponderante conteúdo político e social e,
por isso mesmo, sujeitas a um influxo político considerável, senão essencial, o qual se
reflete diretamente sobre a norma, bem como sobre o método interpretativo aplicável.26
5
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA SOBERANIA POPULAR E DA
REPRESENTATIVIDADE
Para a compreensão exata da presente tese, faz-se mister ter em conta a
soberania popular como sendo o pilar inicial do Estado Democrático de Direito,
mediante o qual se assomam outros valores essenciais a este sistema, tais como a
dignidade da pessoa humana e a pluralidade.
24
Neste sentido, Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. Malheiros Editores. São
Paulo: 2006. Pág. 463.
25
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p.
459/461.
26
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. pág.
461.
14
Ainda sob este enfoque, deve-se dizer que o principal veículo da soberania
popular instaurada pelo parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal de 1988 é
inequivocamente a representatividade, haja vista que as formas de participação direta na
democracia (plebiscito e referendo, respectivamente) são de rara verificação em nossa
prática democrática e, também, de previsão um pouco tímida na sistemática adotada em
nosso ordenamento jurídico.27
Acerca do sentido da palavra “representação”, em ciência política, os
dicionaristas e publicistas coincidem em indicar que mediante ela se faz com que “algo
que não esteja presente se ache de novo presente”.28
Essa relação soberania popular e representatividade, é assunto por demais
complexo e extenso, que certamente merece um estudo exclusivo para seu tratamento,
transbordando, por conseguinte, da temática proposta. Entretanto, é imprescindível
conhecer as linhas iniciais desse sinalagma indissociável.
Em doutrina, diz-se que a democracia repousa sobre dois princípios
fundamentais ou primários, que lhe conferem essência conceitual, de um lado, a
soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte de poder, que se exprime pela
regra de que todo o poder emana do povo; do outro, a participação, direta ou indireta, do
povo no poder, para que este seja efetiva expressão da “vontade popular”; nos casos em
que a representação é indireta, surge um princípio derivado ou secundário: o da
representação. As técnicas utilizadas pela democracia para concretizar esses princípios
têm variado, e certamente continuarão a variar, com a evolução do processo histórico,
predominando, no momento, as técnicas eleitorais com suas instituições e o sistema de
partidos políticos, como instrumentos de expressão e coordenação da vontade popular.29
Pode até mesmo ser que, em um futuro não muito distante, com o
aperfeiçoamento dos meios cibernéticos de comunicação (rede mundial de
computadores e toda a parafernália digital que a cada dia se inova), a democracia direta
possa ser novamente exercida pela humanidade, a exemplo do que ocorria nas cidades
27
Nas palavras de Pedro Lenza, referindo-se ao instituto da iniciativa popular: “(...) percebe-se que a
experiência brasileira é muito tímida. Reconhecemos que os requisitos rígidos contribuem para esta
situação (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, como vimos, fala em “instituto decorativo”).”(grifos no
oririnal). Direito Constitucional ESQUEMATIZADO. 12° Edição. São Paulo: Saraiva, 2008.p. 344.
28
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 13º Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 217.
29
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24º Edição. São Paulo: Malheiros,
2005. p. 131.
15
gregas da antiguidade30, haja vista a indiscutível celeridade e possibilidade de reunir
diversas pessoas (ou melhor, manifestações de vontade) em um âmbito virtual.
Mas, enquanto os novos tempos não chegam, se é que virão, ou mesmo se
tal metodologia será, de fato e de direito, apropriada, temos de nos contentar com a
democracia cuja técnica mais viável é a representatividade (conquanto existam
mecanismos de democracia direta, sua utilização é escassa).
Contudo, aceitar a representatividade como técnica democrática não nos
pode conduzir à conclusão de que o vínculo do representante para com a soberania do
povo se esgota no sufrágio.
A chamada “soberania popular”, a qual, como toda a conceituação, demanda
juízo de valor, pode ser visualizada por inúmeros enfoques. Assim, por exemplo, muito
embora sem definir o conteúdo axiológico, mas pautando-se na perquirição de sua
existência, a doutrina soviética apregoava que o poder do povo (sinônimo de soberania
popular) é possível quando a estrutura econômica da sociedade se condiciona pelo
domínio do sistema social de produção. Quando existe semelhante base econômica, a
sociedade é homogênea no sentido de que não se divide em classes, o que determina a
unidade de vontade e interesses de todos os seus membros.31
Por outro lado, a referida doutrina preconiza que diferente é a situação
quando o resultado do desenvolvimento histórico surge da propriedade privada, que
conduz à divisão da sociedade em classes com interesses antagônicos. Nestas condições,
30
Com relação à democracia direta nas antigas cidades gregas, Paulo Bonavides narra que : “A Grécia foi
o berço da democracia direta, mormente Atenas, onde o povo, reunido na Ágora, para o exercício direto e
imediato do poder político, transformava a praça pública “no grande recinto da nação”. A democracia
antiga era a democracia de uma cidade, de um povo que desconhecia a vida civil, que se devotava por
inteiro à coisa pública, que deliberava com ardor sobre as questões do Estado, que fazia de sua assembléia
um poder concentrado no exercício da plena soberania legislativa, executiva e judicial. Cada cidade que
se prezasse da prática do sistema democrático manteria com orgulho um Ágora, uma praça, onde os
cidadãos se congregassem todos para o exercício do poder político. O Ágora, na cidade grega, fazia pois o
papel dos parlamentos nos tempos modernos”. Mas arremata, logo em seguida, uma triste realidade
concomitante àquele espírito cívico reinante à época : “A escura mancha que a crítica moderna viu na
democracia dos antigos veio porém da presença da escravidão. A democracia, como direito de
participação no ato criador da vontade política, era privilégio de ínfima minoria social de homens livres
apoiados sobre esmagadora maioria de homens escravos.” Ciência Política. 13º Edição. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 288.
31
Tradução livre do trecho “Ello es posible cuando la estructura económica de la sociedad se condiciona
por el dominio del sistema social de producción. Cuando existe semejante base económica, la sociedade
es homogénea en el sentido de que no se divide en clases, lo cual determina la unidad de voluntad e
intereses de todos sus miembros.” FUNDAMENTOS DEL DERECHO ESTATAL SOVIÉTICO
(PROBLEMAS GENERALES EL PODER, LA SOCIEDADE Y EL INDIVIDUO ORGANIZACION DEL
ESTADO DE LA URSS), da autoria de Yuri Dolgopólov e Levón Grigorián. Traducción al español,
Editorial Progreso, Moscú, 1979. p . 81.
16
o caráter do poder popular se modifica devido à transformação da estrutura econômica e
social, no sentido da consolidação de nova base econômica e à diferenciação social
entre os membros da sociedade. Surge o poder do Estado.32
Eximindo-nos em penetrar o mérito desse entendimento e de outros, em
sentido contrário ou semelhante33, imperioso observar que com o advento da
Constituição Federal de 1988 adotou-se um compromisso pluralista, conciliando fatores
liberais numa ordem jurídica pautada pelo Estado Social.34 Portanto, sob este prisma
deve ser analisada a soberania popular.
Na democracia semidireta (adotada em nosso País, conjugando técnicas de
democracia direta e indireta), a prevalência da representatividade é inequívoca (aspecto
indireto), sendo esta fundada no instrumento denominado mandato políticorepresentativo. O mandato representativo é criação do Estado liberal-burguês, ainda
como um dos meios de manter distintos Estado e sociedade, e mais uma forma de tornar
abstrata a relação povo/governo. Segundo a teoria da representação política, que se
concretiza no mandato, o representante não fica vinculado aos representados, por não se
tratar de uma relação contratual.35
Deve-se ressaltar ainda que o Tribunal Superior Eleitoral36, no que foi
referendado pelo Supremo Tribunal Federal37, entendeu que o mandato parlamentar
pertence à agremiação partidária, e não ao congressista.
Do posicionamento da Suprema Corte, cuja fundamentação extravasa a
temática proposta, apenas anotando que, de todo modo, pautou-se sob o argumento da
pluralidade e, em última análise, da preservação da própria soberania popular, extrai-se
32
Tradução livre do trecho “Distinta es la situación cuando a consecuencia del desarrollo histórico surge
la propriedad privada, que conduce a la división de la sociedad en clases con interesses antagónicos. En
estas condiciones, el carácter del poder público se modifica debido a la transformación de la estructura
económica y a la diferenciación social entre los miembros de la sociedad. Surge el poder del Estado.
FUNDAMENTOS DEL DERECHO ESTATAL SOVIÉTICO (PROBLEMAS GENERALES EL PODER, LA
SOCIEDADE Y EL INDIVIDUO ORGANIZACION DEL ESTADO DE LA URSS), da autoria de Yuri
Dolgopólov e Levón Grigorián. Traducción al español, Editorial Progreso, Moscú, 1979. p . 82.
33
A perquirição da doutrina soviética acerca da soberania popular demandaria uma análise muito mais
sociológica e histórica do que jurídica ou política, haja vista as peculiaridades do sistema comunista e as
disparidades gritantes entre sua teoria e prática.
34
Neste sentido, Paulo Bonavides destaca que: “A Constituição de 1988 é basicamente em muitas de suas
dimensões essenciais uma Constituição do Estado Social.” Curso de Direito Constitucional. 18° Edição.
São Paulo: Malheiros, 2006. p. 371.
35
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24º Edição, Malheiros Editores. São
Paulo: 2005. Pág. 139.
36
Consulta 1398, posteriormente transformada na Resolução 22.610.
37
Mandados de Segurança 26602, 26603 e 26604.
17
de relevante a orientação sedimentando a imprescindibilidade de ética na conduta de
nossos representantes, de modo a compeli-los à permanência na sigla pela qual foram
eleitos, obstando-se, por conseguinte, a promiscuidade inerente ao vulgarmente
conhecido “troca-troca partidário”38, quase sempre imbuída da malversação das
prerrogativas da função e, portanto, caracterizadora de vício de decoro.
Para além desta vinculação de índole partidária que, certamente, mas não
sempre, vincula o representante à orientação de sua agremiação política, cremos que a
existência de um quantum mínimo de ética constitucionalizada pode garantir a
fidelidade do representante ao povo como um todo, e não tão só a uma parcela de
correligionários.
Desse modo, ao serem fixados efeitos jurídicos negativos à norma
promulgada sob a eiva do indecoro parlamentar, alcança-se um duplo resultado:
“prevenção” à malversação das prerrogativas parlamentares e “punição” à subtração do
mandato representativo à soberania popular.
Por ora, tenhamos em conta que a soberania popular é aquele poder
pluralista, cuja titularidade da sociedade é exercida por representantes, os quais, por sua
vez, devem exercê-lo com probidade, sob pena de desvirtuá-lo.
6
INTRODUÇÃO NECESSÁRIA À TEORIA
Ante a temática que abordaremos, poder-se-ia aventar que eventual controle
judicial acerca dos atos legislativos que somados culminam em norma (em acepção lata)
seria afrontoso à harmonia entre os poderes39, haja vista a previsão contida no caput do
art. 53 da Constituição Federal, segundo o qual “Os deputados e Senadores são
invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. (grifo
nosso).
Esse entendimento açodado deve ser refutado de plano por substanciais
razões, quais sejam:
38
Adianto aos mais açodados que a qualificação de “promíscuo” ao “troca-troca partidário” não tem,
evidentemente, nenhuma conotação sexual. Ao menos não se tem notícia (ainda) a esse respeito.
39
Constituição Federal, art. 2°.
18
a) a Constituição Federal é um sistema e, como tal, suas normas devem ser
interpretadas de forma compatível. Sendo assim, a coexistência do § 1° do art. 55 com o
art. 53, caput, resulta imperiosa;
b) as garantias constitucionais são de natureza relativa,40 devendo ceder em
face do interesse social de alta relevância, no caso, o decoro parlamentar e
mediatamente o próprio postulado da soberania popular (cujo veículo normativo é a
representatividade) como axioma fundamental do ordenamento jurídico;
c) ademais, eventual fulminação de inconstitucionalidade da norma não
embaraça o voto parlamentar singularmente considerado, mas sim seus efeitos, ou seja,
o que dele resulta: a própria formação da lei (lato sensu) e, por fim,
d) não conseguimos visualizar um nexo de prejudicialidade ao disposto no
caput do art. 53 com a fulminação de inconstitucionalidade de uma norma cujo processo
foi praticado ao arrepio do § 1° do art. 55, ambos da Constituição Federal, posto que a
prerrogativa conferida naquele dispositivo presta-se à proteção da função parlamentar e
não ao amparo do abuso das respectivas prerrogativas (e, acrescentemos, subtração da
representatividade inerente à democracia, com evidente prejuízo à soberania popular).
Ademais, corroborando esse entendimento demonstrando a perfeita
coexistência entre o caput do art. 53 e o § 1 do art. 55 até mesmo na seara política, é
cediço que “a inviolabilidade não protege o parlamentar de processo político por perda
de mandato, fundamentado em abuso de prerrogativa da imunidade material, a teor do
art. 55, II, e § 1°.” 41
Em síntese, dizer-se que os Deputados e Senadores são invioláveis por seus
“votos” não significa que estes (os votos) sejam, no que tange aos efeitos jurídicos que
deles defluem, igualmente, intangíveis.
A garantia da inviolabilidade destina-se ao exercício da função parlamentar
e não ao voto em si mesmo considerado quando eivado de manifesta subtração da
40
A respeito da regra concernente à “relatividade” dos direitos e garantias fundamentais há uma exceção,
muito bem alertada pelo Douto Processualista Paulo Rangel, que é de natureza “absoluta”, qual seja,
aquela constante do inc. III do art. 5° da Constituição Federal, dispondo que “ninguém será submetido à
tortura nem a tratamento desumano ou degradante;” Segundo o renomado autor: “(...) a afirmativa de que
não existem direitos constitucionais absolutos é errônea. O direito da pessoa acusada ou investigada de
não ser submetida a tortura, tratamento desumano ou degradante é absoluto. Nenhuma pessoa pode abrir
mão desse direito e o Estado não pode utilizar esses meios ilícitos para descobrir a verdade.” Direito
Processual Penal. 11° Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 389.
41
DEZEN JUNIOR, Gabriel. Direito Constitucional. Vol. I. 10° Edição. Brasília: Vestcon, 2006. P. 412.
19
soberania popular, ou seja, alheio à própria legitimidade (a representatividade do povo)
que o fundamenta.
Não fosse assim seria inviável a declaração de inconstitucionalidade de
qualquer norma, posto que sua gênese, baseada em uma suposta inviolabilidade do voto,
impediria o controle jurisdicional, tornando-a inatacável. Isto, obviamente, é repugnante
ao Estado Democrático de Direito.
Assim, partindo da premissa de que qualquer ato da função legiferante não
pode destoar do estabelecido na Constituição Federal, a violação do § 1° do art. 55
implica transgressão da norma maior e, consoante uma exegese ampla da norma em tela
– a que mais se coaduna com a soberania popular –, reputamos que um processo de
formação da norma constituído em decorrência de uma série de atos conjugados
afrontosos ao dispositivo padece irremediavelmente de inconstitucionalidade.
Uma vez tecidas essas considerações de índole puramente jurídica, deve-se
observar simultaneamente a faceta política que envolve a matéria, posto que a
interpretação da norma constitucional, deve-se realçar sempre, requer dois prismas
distintos, “de um lado, o jurídico, doutro o político, ambos porém decisivamente
importantes, demandando a única solução possível: o equilíbrio desses dois pratos da
balança constitucional.”42
A doutrina alerta para os malefícios em sede de uma eventual contenda
insolúvel entre situação e oposição no âmbito político que ocasione grande
instabilidade, resultando em grave prejuízo à produção legislativa e, por conseguinte, ao
atendimento das necessidades da sociedade e do cidadão.
Neste sentido, José Afonso da Silva disserta que:
Pode ocorrer que a maioria parlamentar seja oposição e então o
conflito entre Executivo e Legislativo se estabelece, com prejuízo
para a comunidade. Pois, nem um programa nem outro se realizam,
de vez que a maioria oposicionista tem possibilidade de aprovar as
próprias iniciativas legislativas, mas o governo oporá obstáculos,
primeiramente usando do direito de veto, depois, caindo este, não
executando a lei, ou executando-a mal.43
42
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo : Malheiros, 2006. p.
463.
43
Processo Constitucional de Formação das Leis. 2° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 152.
20
Das sábias lições do renomado constitucionalista, evidentemente, não se
pode inferir – realizando uma interpretação descabida e apressada –, que a soberania
popular, calcada na pluralidade 44 de representação, possa ser objeto de utilização imoral
para a satisfação de determinados interesses, quaisquer que sejam.
O que queremos dizer é que eventuais conflitos entre situação (governo) e
oposição têm de ser solucionados no âmbito institucional, respeitando-se as leis e a
Constituição Federal.
Certamente que o Brasil necessita de uma ampla reforma política para a
resolução desses conflitos, mas enquanto esta não se efetiva deve ser impreterivelmente
respeitado o sistema presente, sob pena de mácula irremovível ao ordenamento jurídico
vigente.45
E nem se pode alegar que, por exemplo, ao subjugar a autonomia do
Congresso Nacional para o atendimento de um programa do governo da ocasião, estarse-ia caracterizada a representatividade de todo modo, posto que o Presidente da
República elegeu-se de forma legítima pela maioria absoluta dos eleitores e destarte,
ainda que por via oblíqua (para não dizer escusa), a elaboração de normas visadas pelo
chefe do Poder Executivo estaria em consonância com o interesse público; no Estado
Democrático de Direito, destaque-se, tal concepção é inadmissível, uma vez que é
inconcebível vislumbrar a satisfação do interesse público dissociada da legalidade
institucional. Em Direito, como é cediço, os fins “não” justificam os meios.
Na esfera do Direito Administrativo, mas que também se aplica
perfeitamente ao paradigma do Direito Constitucional temos a lição lapidar do
renomado
publicista
Celso
Antônio
Bandeira
de
Mello,
demonstrando
a
incompatibilidade total do interesse público com a ilegalidade:
É que o interesse público só pode realizar-se na forma da lei. Aliás,
de direito, inexiste interesse público a não ser intra legem. Contra a
lei ou fora dela é inconcebível. Sob o ângulo da Ciência da
Administração, sob perspectiva extrajurídica, pode-se imaginar certo
interesse da coletividade prescindindo-se do que as normas
44
Até porque o atendimento de interesses de qualquer grupo social, maioria ou minoria - não importa -,
não pode menoscabar por completo os interesses de outrem. Em razão disto que o Constituinte originário
elegeu o pluralismo político como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1°, inc.
V).
45
Neste sentido, dissertando sobre a premente necessidade de uma reforma política em nosso país, Paulo
Bonavides, na obra Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 214.
21
estabelecem e da maneira que estatuem para realizá-lo. Entretanto,
por definição, interesse algum é interesse público senão quando
confortado pela ordenação normativa, inclusive quanto à forma de
efetivar-se.46
Desse modo, repita-se, não há ideologia política ou programa de governo
que satisfaça o interesse público em descompasso com a legalidade (lato sensu)47. Não é
a isso que o Estado Democrático de Direito se presta.
Vislumbra-se assim que para a efetivação da teoria que defendemos faz-se
mister uma postura corajosa e democrática do poder que representa a garantia dos
cidadãos e da sociedade contra o arbítrio e a preservação da ordem jurídica: o Poder
Judiciário.48
Doravante, a interpretação da norma constitucional, por parte de seus
aplicadores (os membros do Poder Judiciário), deve oferecer a todo momento uma
leitura democrática e consentânea com o primado da soberania popular.
A palavra intérprete, adverte Fernando Coelho, “tem origem latina –
interpres – que designava aquele que descobria o futuro nas entranhas das vítimas. Tirar
das entranhas ou desentranhar era, portanto, o atributo do interpres, de que deriva para a
palavra interpretar com o significado específico de desentranhar o próprio sentido das
palavras da lei, deixando implícito que a tradução do verdadeiro sentido da lei é algo
bem guardado, entranhado, portanto, em sua própria essência.49
A Constituição Federal há de sempre ser interpretada, pois somente por
meio da conjugação da letra do texto com as características históricas, políticas,
ideológicas do momento, se encontrará o melhor sentido da norma jurídica, em
confronto com a realidade sociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia.50
46
Curso de Direito Administrativo. 20° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 427.
A legalidade em sentido amplo, compreendida como ordenamento jurídico, tendo por norma
hierarquicamente superior e fundamental a Constituição Federal.
48
Certamente não se está pregando aqui aquilo que os positivistas denominam com temor “governo de
juízes” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006.
p. 631); não. O que se deseja é tão somente que o judiciário assuma de fato seu mister institucional na
defesa do Estado Democrático de Direito sempre que para tanto for convocado.
49
COELHO, Fernando. Lógica jurídica e interpretação das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 182.
apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. Editora Atlas. São
Paulo: 2007. p. 10.
50
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 149. apud
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. Editora Atlas. São Paulo:
2007. pág. 10.
47
22
7
A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS FUNDAMENTAIS EM
DECORRÊNCIA DO VÍCIO DE DECORO PARLAMENTAR
Acerca da necessária vinculação entre a atuação do legislador e os direitos
políticos fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet averbou que:
Na medida em que os direitos políticos são considerados como
direitos de participação (no sentido de uma posição ativa do
indivíduo) na atividade estatal e na condução do interesse público,
costumam – como já frisado alhures – ser enquadrados no status
civitatis de Jellineck ou mesmo no âmbito das liberdades-participação
dos franceses. Neste sentido, também a lição de Pontes de Miranda,
para quem os direitos políticos são direitos à participação na
formação da vontade estatal e direitos ao exercício de funções
públicas. Mais recentemente, de acordo com a lição recolhida de
Vieira de Andrade, sustentou-se, entre nós (diga-se de passagem,
acertadamente), a natureza mista dos direitos políticos que, na
condição de direitos de participação dos cidadãos na vida política,
possuem natureza mista de direitos de defesa e direitos a prestações.51
Neste ponto, deve-se ter em conta que a única forma de salvaguardar tais
direitos, em um Estado Democrático de Direito, no qual a soberania popular é um dos
dois pilares de sustentação (o outro é a dignidade da pessoa humana) é observando-se a
prescrição constitucional acerca do decoro parlamentar, sendo este o liame de
vinculação que subsiste entre o eleitor e o eleito após o exercício do voto.
Afastar esse vínculo mínimo (decoro parlamentar) entre o (s) representante
(s) e o (s) representado (s) (a sociedade) sinaliza a marginalização da própria soberania
popular, como valor a ser considerado de verificação compulsória. Ou seja, o respeito
ao decoro parlamentar é a conduta positiva “mínima” que o Estado pode prestar ao
cidadão-eleitor.
Com efeito, a atuação parlamentar decorosa é uma prestação imprescindível
à promoção dos direitos políticos fundamentais, posto que, de outro modo, a soberania
popular mesma restará inequivocamente violada.
51
A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. Sétima Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007. p. 207/208. Deve-se ressaltar que o autor, entretanto, faz uma reserva pessoal a esta doutrina, no
sentido de que a dimensão prestacional dos direitos políticos é de índole “indireta” (ob. cit. Pág. 209).
23
Portanto, a obrigação dos representantes para com o eleitorado, em vista dos
direitos políticos fundamentais, consubstancia-se em uma “satisfação ética”, a rigor,
uma prestação de contas em acepção jurídica. Esta, certamente, somente se realizará
mediante a participação ativa das instituições civis no processo de constitucionalidade e
compatibilidade ética mínima.
Pensar diferente não se coaduna com o que se almeja no regime
democrático, que preceitua por sua própria essência a soberania popular52.
Em outras palavras, de que vale o voto popular (sufrágio universal) se a
atuação indecorosa de seus representantes é ditada por interesses meramente privados e
econômicos, dissociados das aspirações e interesses dos representados (maiorias e
minorias)?
Ademais, a inexistência de expressa previsão constitucional acerca do
direito político fundamental de que por ora se trata não obsta o seu reconhecimento,
pois é possível desvelar-se direito fundamental implicitamente do contexto sistemático
constitucional, consoante dissertou o Professor Thiago André Pierobom de Ávila,
citando a doutrina de Alexy elucidando a questão que por ora se coloca:
Ao lado da norma explícita de direitos fundamentais, Alexy
acrescenta o conceito de normas adscritas, que são as que, pela
indeterminação do conteúdo semanticamente aberto das normas
constitucionais explícitas, discriminam seu conteúdo estabelecendo
uma relação de precisão. O critério de revelação dessas normas
adscritas é fornecido pela argumentação jusfundamental correta, que
possibilita, até mesmo, o reconhecimento de novos direitos
fundamentais. 53
52
Ainda que a noção do que seja “povo” seja bastante variável na história das democracias. Neste sentido,
José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo. 24º Edição. São Paulo: Malheiros,
2005. p. 135/136.
53
PROVAS ILÍCITAS E PROPORCIONALIDADE. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.8.
24
8
SÍNTESE DAS CONSEQUÊNCIAS DO VÍCIO DE DECORO
PARLAMENTAR NA ORDEM JURÍDICA
Sintetizando o entendimento esposado nos tópicos anteriores, pensamos que
a inobservância do § 1º do art. 55 da Constituição Federal de 1988 acarreta a violação
da norma maior em três graus distintos, que relacionaremos agora de forma gradativa.
Assim temos que:
Em primeiro lugar, o indecoro parlamentar desrespeita os direitos políticos
fundamentais do cidadão, uma vez que estes exigem uma conduta positiva-prestacional
por parte dos representantes, consubstanciada em agir na defesa dos interesses maiores
da nação e do eleitor singularmente considerado, o que somente pode se verificar de
acordo com os parâmetros impostos pela ordem jurídica.
Assim, a inobservância do “mínimo ético” exigível de um representante do
povo causa mácula aos direitos políticos de seus eleitores e, igualmente, de todo o
eleitorado nacional, posto que estes últimos consentiram em aceitar a sua
representatividade, por almejarem a pluralidade política (ou seja, satisfação dos
interesses da maioria e das minorias).
Em segundo plano, visualizamos que o indecoro parlamentar usurpa a
representatividade. Esta consiste em técnica democrática de exercício do poder. Sob
este prisma, observa-se que o indecoro parlamentar denota desprezo por esta
sistemática, afetando, em última análise, a própria democracia, uma vez que banaliza
sua atual metodologia de exercício.
Por último, há que se falar da soberania popular. Visto que o vício de decoro
parlamentar afeta os direitos políticos fundamentais e a representatividade, por si só, tais
motivos bastariam para fulminar também a soberania popular. No entanto, poder-se-ia
argumentar em sentido contrário, sustentando-se a imprecisão do conceito de soberania
popular. A crítica é procedente.
Contudo, assim como muitos outros institutos, a soberania popular é mais
um daqueles que, conquanto não se encontre sua precisa definição/conceituação, podese obter por exclusão o que não lhe é afeiçoado. O indecoro parlamentar é, fora de
dúvida, uma dessas hipóteses.
25
Ora, não se pode falar em soberania, quando não há poder. A soberania é
precisamente a expressão máxima do poder. Nas sociedades modernas democráticas, o
poder do povo ou popular.
Então, o representante não toma para si algo que não lhe pertence, pois
assim o poder, na acepção de soberania popular, não mais existiria. O que lhe compete é
tão somente o exercício deste, e não a sua titularidade. Conclui-se, por conseguinte, que
o respeito à Constituição Federal é o limite imposto ao representante no exercício do
poder, posto que, de outro modo, esta prerrogativa se transformaria em propriedade
privada do parlamentar.
Logo, a soberania popular, instituidora da ordem jurídica, uma vez patente
a distinção entre “a titularidade e o exercício do Poder Constituinte, sendo titular o povo
e o exercente aquele que, em nome do povo, cria o Estado, editando a nova
Constituição” 54, deve ser preservada a todo custo, pois, do contrário, toda a nação perde
sustentação legitimadora.
9
PERSPECTIVA DE APLICAÇÃO
Sob um prisma ético-jurídico, de acordo com os ensinamentos colhidos da
obra do Professor Pedro Lenza, entendemos que a negociação escusa (em sentido
amplo) de interesses privados para a produção de normas jurídicas em determinado
sentido, ou seja, consoante a vontade de um ou alguns cidadãos (restrito conjunto de
pessoas55) caracteriza vício irremovível (de natureza absoluta) no processo de formação
das leis (lato sensu).
54
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. São Paulo: Atlas, 2007. p.
22.
55
Neste ponto, mister passar ao largo no que concerne à caracterização do que seria esse grupo de
pessoas, evitando adentrar a temerária esfera das ideologias, a qual, conforme a experiência tem
demonstrado, costuma macular a obra do operador do Direito (não se está pregando aqui o positivismo
puro e exacerbado, mas apenas afastando-se, neste ponto, repita-se, do terreno da ciência política). Com
efeito, se detentoras do capital financeiro ou tão somente governantes de ocasião, para a configuração da
inconstitucionalidade consoante a tese esboçada esse aspecto é irrelevante. Assim, havendo o indecoro
parlamentar, independentemente da fonte cooptadora e dos motivos para tanto, há irremediável mácula de
inconstitucionalidade. Em sentido contrário, Paulo Bonavides sustenta que: “A doutrina constitucional
pouco progresso fez com relação ao reconhecimento consumado da “sociedade de grupos”. Politicamente
é essa sociedade pluralista a forma imposta pelas necessidades e problemas oriundos da civilização
tecnológica, onde esta já se implantou ou planeja implantar-se. Esse manifesto atraso com os fatos
26
O debate e o consenso entre os entes políticos partícipes do processo de
tramitação de um projeto de lei
56
são inerentes à democracia pluralista (que busca a
Constituição Federal, art. 1°, inc. V).
Contudo, tanto o dissenso quanto o consenso político deve ser pautado por
idéias, que visem ao bem estar da nação, ou seja, fiéis ao interesse geral. Não vemos
como atender ao mandamento do parágrafo único do art. 1° da Constituição Federal
quando o jogo democrático se restringe à promoção de interesses estritamente pessoais e
eivados de imoralidade.
Acerca da promiscuidade entre os interesses privados e o exercício da
democracia por parte de seus representantes, Jean-Jacques Rousseau escrevia que:
Nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados nos
negócios públicos e o abuso das leis por parte do governo é um mal
menor que a corrupção do legislador, continuação infalível dos
interesses particulares. 57
Neste sentido, pensamos que a negociação de votos – seja qual for o meio
utilizado: compra em dinheiro, concessão de cargos etc. – para o êxito de determinado
projeto de lei em votação, além de constituir indecoro na função parlamentar,
caracteriza inequívoca afronta ao dispositivo constitucional supracitado que assegura a
soberania popular.
ocasiona o pouco caso que os juristas têm feito dessa explosão nos fundamentos do sistema
representativo. Continuam eles a valer-se de categorias tradicionais e obsoletas de raciocínio, em ordem a
elaborar nova linguagem que melhor sirva à compreensão do processo de mudança em curso. Como
reflexo talvez da lentidão dos juristas, verifica-se igual atraso no tocante à inconstitucionalização da
realidade representativa nos termos do pluralismo de grupos, dentro do quadro constitucional. Quando os
partidos começam nas cartas políticas a receber certidão de maioridade e a ter sua participação explicitada
em atos jurídicos, já eles mesmos se acham em parte obsoletos, em virtude do avanço que fazem os
grupos de interesses, estes naturalmente ainda mais distantes de alcançarem o reconhecimento formal do
legislador. A representação só é concebível e explicável hoje se a vincularmos com a dinâmica daqueles
grupos, com os interesses políticos, econômicos e sociais que eles agitam tenazmente, buscando-lhe a
prevalência, via de regra em nome de posições ideológicas, cuja profunda análise o constitucionalista
jamais poderá se eximir de levar a cabo.” (Ciência Política. 13º Edição. São Paulo : Malheiros, 2006. p.
235/236). De todo modo, conforme dissemos, a caracterização e as finalidades do grupo fomentador do
abuso das prerrogativas parlamentares é irrelevante para a configuração da inconstitucionalidade, visto
que a violação à norma do § 1º do art. 55 da Constituição Federal haverá independentemente de quem
sejam os responsáveis e dos fins por ele visados, uma vez que a ilicitude nestas hipóteses sempre estará
presente.
56
A doutrina é vacilante a respeito da nomenclatura adequada, se “projeto de lei” ou “lei”, em relação ao
corpo legislativo ainda não dotado de perfeição. José Afonso da Silva, em sua obra Processo
Constitucional de Formação das Leis, por exemplo, utiliza tão somente a terminologia “lei”.
57
O Contrato Social ou Princípios do Direito Político. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal
– 13. São Paulo: Atlas. p. 79.
27
No que concerne ao decoro parlamentar e sua imprescindibilidade para a
validade do processo legislativo constitucional, antes de tudo é necessário termos em
conta as lições do emérito jurista Miguel Reale que, dissertando sobre a teoria do
mínimo ético, leciona que:
A teoria do “mínimo ético” consiste em dizer que o Direito representa
apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a
sociedade possa sobreviver. Como nem todos podem ou querem
realizar de maneira espontânea as obrigações morais, é indispensável
armar de força certos preceitos éticos, para que a sociedade não
soçobre (...) Assim sendo, o Direito não é algo diverso da Moral, mas
é uma parte desta, armada de garantias específicas.58
Sem embargo de que nem tudo que é jurídico é moral (ao contrário do que
preconiza a teoria do “mínimo ético”),59resta indene de questionamentos que a
Constituição Federal contém inúmeros preceitos de substrato valorativo, devido à
própria natureza dúplice (jurídico-política) já mencionada da norma constitucional,
entre os quais avulta o § 1º do art. 55, que por seu turno detém eficácia jurídica plena.
Corroborando o que por ora se sustenta, mencionamos linhas atrás a edição
da Súmula Vinculante de nº 13 do Supremo Tribunal Federal, coibindo a prática do
nepotismo em toda a Administração Pública, sinalizando a forte tendência da Egrégia
Corte em prestigiar a moralidade (da qual o decoro é conseqüência inerente no exercício
da função parlamentar) no que tange às funções públicas.
Desta feita, partimos do prisma de que a violação do § 1° do art. 55 da
Constituição Federal caracteriza inconstitucionalidade incidente sobre o processo
legislativo constitucional (imediatamente infringindo também o disposto no parágrafo
único do art. 1° da Constituição Federal), sendo o resultado desse procedimento
invariavelmente inconstitucional. Doravante, analisemos o âmbito de incidência da
teoria.
58
Lições Preliminares de Direito. 27° Edição. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 42.
Ressaltando o desacerto da teoria do “mínimo ético”, Miguel Reale, após enunciar vários exemplos em
que a norma encontra-se dissociada da moral, anota que: “(...) Não é exato, portanto, dizer que tudo o que
passa no mundo jurídico seja ditado por motivos de ordem moral. Além disso, existem atos juridicamente
lícitos que não o são do ponto de vista moral (...) Há, pois, que distinguir um campo do Direito que, se
não é imoral, é pelo menos amoral, o que induz a representar o Direito e a Moral como dois círculos
secantes.” Ob. cit. p. 43.
59
28
Primeiramente, fazendo um paradigma entre o Direito Constitucional e o
Direito Administrativo60, destaquemos nossa ênfase na constatação de que da mesma
forma que a moralidade é um princípio vetor da atividade do administrador, o decoro é
um axioma inseparável da função parlamentar, para que esta seja constitucionalmente
legítima.
Sendo o § 1° do art. 55 da Constituição Federal norma de eficácia plena61,
por conseguinte, prescinde de qualquer regulamentação infraconstitucional. Ademais,
em vista de sua feição eminentemente valorativa, seu substrato é de índole
evidentemente material. Logo, o seu não atendimento, em que pese este fato jurídico
(ilícito, enfatize-se) situar-se em momento anterior à formação definitiva da norma,
caracteriza afronta ao conteúdo, repita-se, material da Constituição Federal.
Não se pode confundir a natureza da norma com o vício que a inquina.
Assim, dizer que determinado preceito é materialmente constitucional, convém destacar,
é consignar o seu valor como elemento essencial, no sentido estruturante, à nação.
Por outro lado, a doutrina denomina como sendo apenas “formalmente”
constitucionais as normas que não detém valor instituidor de um Estado. Esta divisão é
inerente a constituições de natureza “analítica”, como é o caso da Constituição
brasileira, “a despeito da inexistência de critério seguro e objetivo que nos permita
identificar, a priori e com validade absoluta, o conteúdo essencial ou, se preferirmos, a
matéria própria de toda norma constitucional.” 62
Noutro giro, em relação às espécies de “vícios” de inconstitucionalidade que
podem
macular uma
norma,
denomina-se
“formal” ou
“nomodinâmica”
a
inconstitucionalidade que se verifica quando a lei ou ato normativo contiver algum
defeito em sua “forma”, vale dizer, no processo legislativo de sua elaboração, ou mesmo
em razão de ter sido praticado por autoridade incompetente. Noutro giro, chama-se
60
Aceitando, como se aceita de modo pacificado na doutrina e jurisprudência nacional, a distinção entre
ambas as disciplinas: Direito Constitucional e Direito Administrativo. Neste sentido, entre outros, Paulo
Bonavides, in Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 43/45.
61
Consoante a classificação proposta pelo Prof. José Afonso da Silva, normas constitucionais de eficácia
plena são “aquelas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem, ou têm possibilidade de
produzir, todos os efeitos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular"
(Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7º Edição. São Paulo: Malheiros: 2007. p. 101.).
62
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 18.
29
“material”, de “conteúdo”, “substancial” ou “doutrinário” a inconstitucionalidade
concernente à “matéria”, ou seja, ao conteúdo mesmo do ato normativo.63
Diante desse contexto, entretanto, acatamos a tese de que a violação ao § 1º
do art. 55 da Constituição Federal caracteriza uma terceira hipótese sui generis de
inconstitucionalidade, uma vez que dadas as suas peculiaridades não nos parece
enquadrar-se a tese proposta com integralidade em uma das duas tradicionais categorias
de inconstitucionalidade.
Em virtude de suas especificidades, até mesmo devido à sua muito recente
criação, parece-nos que mesmo se amoldando em parte às duas divisões supracitadas,
deve prevalecer a sua autonomia como vício de inconstitucionalidade, sob pena de
incidirmos em equívoco ao nos posicionarmos acerca de qual das duas clássicas
modalidades de inconstitucionalidade estaria inserida aquela que propomos em face do
§ 1º do art. 55 da Constituição Federal.64
Logo, não se pode depreender tratar-se de mera irregularidade
procedimental que não afeta o conteúdo da norma derivada desse processo.
Inadmissível, no Estado Democrático de Direito, que a Constituição Federal deixe de
ser observada em qualquer momento65, seja antes, ou depois da formação da norma.
No âmbito do Direito Constitucional, vislumbra-se que os atos de Estado
possuem natureza dúplice (tal qual, acreditamos, o próprio Direito Constitucional):
política e jurídica. Neste sentido, pensamos que a categoria dos chamados atos
puramente políticos, alheios ao controle de constitucionalidade, não persiste em sede do
Estado Democrático de Direito. Com efeito, ensina o Professor José Afonso da Silva:
Nossa Constituição é rígida. Em conseqüência, é a lei fundamental e
suprema do Estado brasileiro. Toda autoridade só nela encontra
fundamento e só ela confere poderes e competências governamentais.
Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos
63
Pedro Lenza, in Direito Constitucional Esquematizado. 12° Edição. São Paulo: Saraiva, 2008. p.
129/132.
64
Pedro Lenza, a seu turno, nas lições de que nos socorremos para chegar a essa conclusão, disserta que :
“Particularizando, a inconstitucionalidade por ação pode-se dar por três formas : a) do ponto de vista
formal; b) do ponto de vista material; c) estamos pensando em uma terceira forma em razão dos
escândalos de suposto “mensalão” e “mensalinho” para votar em um sentido ou em outro, “batizada” de
“vício de decoro parlamentar”. in Direito Constitucional Esquematizado. 12° Edição. São Paulo:
Saraiva, 2008. p. 128.
65
Para que a argumentação não venha a soar equivocada, esclareça-se que em situações excepcionais,
quais sejam, estado de sítio e estado de defesa, ainda assim subsistem garantias constitucionais mínimas
ao cidadão e às instituições. Confira-se arts. 136 e 137 Da Constituição Federal.
30
Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são
limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas
daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela
estabelecidos. Por outro lado, todas as normas que integram a
ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com
as normas da Constituição Federal. 66
O voto parlamentar, a seu turno, configura um ato estatal, posto que oriundo
de um dos poderes do Estado, qual seja, o Poder Legislativo. Tendo em vista que os atos
do Poder Executivo e do Poder Judiciário são submetidos a exame de compatibilidade
com o ordenamento jurídico, seria evidentemente afrontoso ao princípio da separação
dos poderes, art. 2°, e ao disposto no inc. XXXV67, do art. 5º, ambos da Constituição
Federal, que os atos da função legislativa, individualmente considerados, fossem
dispostos alheios ao controle de constitucionalidade no que concerne aos seus “efeitos
jurídicos”, ou seja, pudessem restar fora do âmbito de irradiação dos ditames
constitucionais.
Em suma, pensamos que da mesma forma que os atos emanados pelos
Poderes Executivo e Judiciário devem situar-se sob os parâmetros constitucionais, assim
também os atos políticos, como o voto parlamentar, submetem-se ao crivo
constitucional.
Para esclarecer melhor o que queremos demonstrar, socorremo-nos dos
ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello acerca dos atos políticos, pois
acreditamos serem aplicáveis as mesmas razões ao voto, dada a índole inequivocamente
política deste, a fim de viabilizar seu controle jurisdicional de constitucionalidade:
Atos políticos ou de governo, praticados com margem de discrição e
diretamente em obediência à Constituição, no exercício de função
puramente política, tais o indulto, a iniciativa de lei pelo Executivo,
sua sanção ou veto, sub color de que é contrária ao interesse público,
etc. Por corresponderem ao exercício da função política e não
administrativa, não há interesse em qualificá-los como atos
administrativos, já que sua disciplina é peculiar. Inobstante também
sejam controláveis pelo Poder Judiciário são praticados de modo
amplamente discricionário, além de serem expedidos em nível
66
67
Curso de Direito Constitucional Positivo. 24° Edição. Malheiros Editores. São Paulo: 2005. Pág. 46.
“A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
31
imediatamente infraconstitucional – ao invés de infralegal -, o que
lhes confere fisionomia própria [...] Pelo quanto se disse, entretanto –
já se vê -, atribuímos à noção de ato político ou de governo relevância
totalmente diversa da que lhe é conferida pela doutrina européia. Esta
os concebe para efeitos de qualifica-los como atos insuscetíveis de
controle jurisdicional, entendimento que repelimos de modo absoluto
e que não se coadunaria com o texto constitucional brasileiro,
notadamente o art. 5°, XXXV. 68
Dessarte, realizando o caminho inverso, ou seja, retirando do Direito
Administrativo e trazendo para o Direito Constitucional a noção do âmbito do controle
jurisdicional dos atos políticos (haja vista a derivação inequívoca daquele ramo, o
Direito Administrativo, do Direito Constitucional propriamente dito69), afigura-se
plenamente possível a idéia inicial do presente trabalho.
Em síntese, toda vez que um ato de natureza política afetar direitos, sejam
eles individuais ou difusos, a conduta parlamentar será passível de controle
jurisdicional.70
Desse modo, verifica-se que o indecoro parlamentar viola tanto o direito
subjetivo político fundamental do cidadão ao exercício de sua cidadania, no que tange à
sua finalidade de participação na vida Estatal, quanto a própria soberania popular e,
portanto,
repita-se,
afigura-se
inequivocamente
viável
a
fulminação
de
inconstitucionalidade das normas construídas neste contexto.
68
Curso de Direito Administrativo. 20° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 357/358.
Neste sentido, Paulo Bonavides citando o jurista chileno Mario B. González (Curso de Direito
Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 44/45). E, também, Hely Lopes Meirelles, não
enaltecendo uma relação de primariedade e derivação, mas pautando-se por um critério concernente à
estática e a dinâmica das relações socio-jurídicos, onde aduz, em síntese, que: “(...) o Direito
Constitucional faz a anatomia do Estado, cuidando de suas formas, de sua estrutura, de sua substância, no
aspecto estático, enquanto o Direito Administrativo estuda-o na sua movimentação, na sua dinâmica.”
Direito Administrativo Brasileiro. 30° Edição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 41.
70
No sentido do texto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo. 20 Edição. São Paulo:
Atlas, 2007. p. 47. A renomada jurista assevera que os atos emanados da função política são passíveis de
controle pelo Poder Judiciário. Contudo, ressalva que os atos que versem sobre questões exclusivamente
políticas estão alheios a esse controle. São essas as palavras da insígne autora: “Costumava-se dizer que
os atos emanados no exercício da função política não são passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário;
as Constituições de 1934 (art. 68) e 1937 (art. 94) estabeleciam que as questões exclusivamente políticas
não podiam ser apreciadas pelo Poder Judiciário. As Constituições posteriores silenciaram, mas a vedação
persiste, desde que se considerem como questões exclusivamente políticas aquelas que, dizendo respeito
à polis, não afetam direitos subjetivos. No entanto, se houver lesão a direitos individuais e, atualmente,
aos chamados interesses difusos protegidos por ação popular e ação civil pública, o ato de Governo será
passível de apreciação pelo Poder Judiciário.” Entendemos que a posição da professora é compatível com
o que expusemos, haja vista as considerações tecidas ao longo do trabalho.
69
32
Ademais, qualquer ato que em seu extrato final repercuta na Constituição
Federal, possui inegável natureza jurídico-política, visto que a própria norma
constitucional detém este caráter. Ora, ao imiscuir-se no processo legislativo
constitucionalmente previsto a vontade emanada através do voto não detém índole
puramente política, mas, outrossim, jurídica. Basta deduzir-se que todo o procedimento
(constituído mediante o voto) integra um processo (no caso, processo legislativo
constitucional) destinado a realização de um fim (norma).
Inarredável, por outro lado, a conclusão de que tanto o processo (processo
legislativo constitucional), quanto o procedimento – o (s) voto (s) –, exercem influência
mútua em seus respectivos conteúdos.
Destarte, se os procedimentos, ou seja, votos que compõem um processo –
processo legislativo de formação da norma –, estavam adrede viciados, porque
realizados sob o abuso das prerrogativas parlamentares, contaminado estará
irremediavelmente o conteúdo final deste trâmite – a norma.
O princípio do due processo f law estende-se à gênese da lei. Uma lei mal
formada, vítima de defeitos no processo que a gerou, é ineficaz; a ninguém pode
obrigar.71
O paradigma com a “teoria dos frutos da árvore envenenada”, com esteio
no processo penal, com efeito, resulta inevitável. Toda a teorização lógica da tese dos
frutos
da
árvore
envenenada
encaixa-se
com
precisão
na
sistemática
da
inconstitucionalidade por ora sustentada. Senão vejamos:
A teoria dos “fruits of poisonous tree”, ou teoria dos frutos da árvore
envenenada, cuja origem é atribuída à jurisprudência norte-americana, nada mais é do
que simples conseqüência lógica da aplicação do princípio da inadmissibilidade de
provas ilícitas. Se os agentes produtores da prova ilícita pudessem dela se valer para a
obtenção de novas provas, a cuja existência somente se teria chegado a partir daquela
(ilícita), a ilicitude da conduta seria facilmente contornável. Bastaria a observância da
forma prevista em lei, na segunda operação, isto é, na busca das provas obtidas por meio
de informações extraídas pela via da ilicitude, para que se legalizasse a ilicitude da
71
STJ – 1º T. – RMS nº 7.313-0/RS – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Diário de Justiça, Seção I,
5 de maio 1997 – Ementário STJ 18/395 apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional.
Vigésima Segunda Edição. Editora Atlas. São Paulo: 2007. p. 710.
33
primeira (operação). Assim, a teoria da ilicitude por derivação é uma imposição da
aplicação do princípio da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente.72
O mesmo raciocínio jurídico efetuado na teoria dos frutos da árvore
envenenada pode ser transposto para a seara constitucional, desde que, evidentemente,
com as devidas adaptações.
Desse modo, numa correlação lógica, o voto “viciado” (fruto da
malversação das prerrogativas parlamentares) se equipararia à prova ilícita naquela
teoria. Por conseguinte, a norma obtida mediante votos “viciados”, corresponde à prova
derivada de ilicitude, consoante aquele entendimento.
A conclusão que se quer chegar com essa analogia é a seguinte: o vício da
origem não pode gerar efeitos juridicamente válidos. No entanto, é preciso destacar que
somente pode ser aplicado esse entendimento, tendo em vista a necessária existência de
nexo de causalidade entre o voto “viciado” e a norma promulgada.
Com efeito, deve-se aferir no caso concreto se o voto (s) “viciado(s)”
isoladamente teve “relevância” para a configuração da inconstitucionalidade da norma,
pois, do contrário, não se poderá falar em mácula ao § 1º do art. 55 da Constituição
Federal.
Por último, cremos que o controle de constitucionalidade com fundamento
no § 1º do art. 55 da Constituição Federal, dada a sua natureza de inconstitucionalidade
sui generis, somente pode ser realizado na forma “concentrada” perante o Supremo
Tribunal Federal, tendo em vista a própria natureza dúplice da norma constitucional.
Assim, cremos que somente o Pretório Excelso pode declarar a
inconstitucionalidade de uma norma cujo caráter “político” é ainda mais proeminente do
que o encontrado nas demais esparsas pelo texto constitucional, visando a preservar a
harmonia necessária entre os poderes (Constituição Federal, art. 2º).
Portanto, conferir essa possibilidade em sede de controle incidenter tantum
(difuso), além de ser temerário, haja vista a banalização que pode acarretar, afigura-senos ilegítimo, em vista da substancial peculiaridade dessa modalidade de vício de
inconstitucionalidade.
72
OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal. 4º Edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
p. 290/291.
34
Logo, compete às entidades civis, em defesa da ética e da cidadania,
subsidiar (com informações pertinentes) e provocar os legitimados à propositura de
Ação Direta de Inconstitucionalidade73, tornando o procedimento democrático e,
simultaneamente, prestigiando a segurança jurídica.
Destarte, a própria sistemática de escolha dos membros do Supremo
Tribunal Federal, que conta com a participação do Poder Legislativo e, ademais, a
legitimidade restrita para a promoção de ações diretas de inconstitucionalidade, parecenos, assegurar, respectivamente, a harmonia entre os poderes e evitar a banalização e
uso político do instrumento em apreço, considerando-se a atual tendência em preservar
a constitucionalidade das normas, sempre que possível, quando puder ser interpretada
de forma consentânea com a Constituição Federal.74
10
CARACTERIZAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE
Para a realização da presente teoria, tendo em vista a quase inexistência de
referências acerca da temática (com exceção da obra de Pedro Lenza), a fim de
elaborarmos um raciocínio jurídico coerente, demonstrativo da viabilidade prática e
teórica da tese, serviu-nos de inspiração os ensinamentos do grande filósofo René
Descartes em seu discurso do método, segundo o qual seriam necessários quatro
preceitos para o alcance do conhecimento:
O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não
conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a
pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não
73
Cuja enumeração consta do rol de incisos do artigo 103 da Constituição Federal.
Acerca do tema, lecionam Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet
Branco: “Instrumento situado no âmbito do controle de constitucionalidade e não apenas uma simples
regra de interpretação—como o STF enfatizou em decisão exemplar—, o princípio da interpretação
conforme a Constituição consubstancia essencialmente uma diretriz de prudência política ou, se
quisermos, de política constitucional, além de reforçar outros cânones interpretativos, como o princípio da
unidade da Constituição e o da correção funcional (...) Essa prudência, por outro lado, não pode ser
excessiva, a ponto de induzir o intérprete a salvar a lei à custa da Constituição, nem tampouco a
contrariar o sentido inequívoco, para constitucionalizá-la de qualquer maneira. No primeiro caso porque
isso implicaria interpretar a Constituição conforme a lei e, assim, subverter a hierarquia das normas; no
segundo, porque toda conformação exagerada implica, no fundo, usurpar tarefas legislativas e transformar
o intérprete em legislador positivo, na exata medida em que a lei resultante dessa interpretação—
conformadora só nas aparências— em verdade seria substancialmente distinta, em sua letra como no seu
espírito, daquela que resultou do trabalho legislativo.” Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 112/113.
74
35
se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não
tivesse motivo algum para duvidar dele.
O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse
em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de
melhor solucioná-las.
O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando
pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me,
pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais
compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não
precedem naturalmente uns aos outros.
E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão
completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse certeza de nada
omitir. 75
Desta feita, partimos de paradigmas jurídicos correlatos na tentativa de
solucionar os meandros do objeto da presente monografia, cientes de antemão que, a
despeito de tentarmos desenvolver um esboço das linhas iniciais do instituto, a temática
demanda uma construção científica e jurisprudencial mais elaborada.
Neste sentido, o processo penal é, fora de dúvida, um instrumento de
garantia do réu. Da mesma forma, pensamos que deva ser visualizado o processo
legislativo constitucional para a sociedade. A analogia entre os ramos processuais, em
determinadas hipóteses, como a que por ora se trata, faz-se imperiosa.
Atualmente, inclusive, tem se falado em devido processo legal em sua
acepção substantiva também no âmbito do processo civil o que, em última análise, é o
que se busca na higidez que deve permear a vertente processual legislativa
constitucional.
Assim, tendo em conta o axioma do devido processo legal em sua acepção
substantiva, o processo legislativo constitucional deve assegurar aos seus partícipes
(membros do Poder Legislativo e o Presidente da República), igualdade substancial nos
termos do procedimento, de molde a proporcionar à sociedade o resultado final (norma)
que exprima a pluralidade de representação e, precipuamente, satisfaça a soberania
popular.
75
Discurso do Método. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 49/50.
36
Importante destacar, por exemplo, que o Regimento Interno do Senado
Federal, de índole procedimental, assegura nos incisos de seu dispositivo 402 os
seguintes preceitos:
I – a participação plena e igualitária dos Senadores em todas as
atividades legislativas, respeitados os limites regimentais; (...)
VII – preservação do direito das minorias; (...)
XIII – possibilidade de ampla negociação política somente por meio
de procedimentos regimentais previstos.
Além dessa paridade supra, é preciso destacar a proporcionalidade e
razoabilidade que devem pautar os procedimentos ínsitos àquele processo o que, na
esfera política, diz respeito ao mínimo de ética desejável da parte de nossos
representantes. Dito de outra forma, não se pode entender razoável e nem proporcional
o abuso das prerrogativas parlamentares para a formação das leis.
É cediço que a principal objeção à doutrina por nós aqui defendida seria a
impossibilidade de controle jurisdicional acerca do decoro parlamentar. Sobre este
ponto, Alexandre de Moraes leciona com percuciência que,
por tratar-se de ato disciplinar de competência privativa da Casa
Legislativa respectiva, não competirá ao Poder Judiciário decidir
sobre o mérito da tipicidade da conduta parlamentar nas previsões
regimentais caracterizadoras da falta de decoro parlamentar ou
mesmo sobre o acerto da decisão – desde que garantido o devido
processo legal, a ampla defesa e o contraditório -, pois tal atitude
consistiria em indevida ingerência em competência exclusiva de
órgão do Poder Legislativo, atribuída diretamente pela Constituição
Federal (CF, art. 55. § 1º e 2º), sem qualquer previsão de recurso de
mérito.76
As palavras do renomado constitucionalista são irretocáveis. Ressalte-se,
contudo, que se o “fato” gerador do indecoro parlamentar violar direitos será passível de
apreciação jurisdicional. Entretanto, o que aqui se busca, conforme dissemos noutra
passagem, não é o controle jurisdicional sobre as condutas parlamentares em si mesmas
consideradas mas, isto sim, a respeito do resultado final desse processo quando eivado
de imoralidades que configuram atos indecorosos por parte dos parlamentares.
76
Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. São Paulo: Atlas, 2007. p. 446.
37
O controle jurisdicional exposto por esta teoria recai, por conseguinte, sobre
os vícios que maculam a norma em seu processo, e não com relação a condutas “interna
corporis” dos membros do Congresso Nacional, ou de uma Assembléia Legislativa de
algum Estado da Federação.
Com efeito, levando-se adiante o entendimento de que o processo legislativo
constitucional constitui garantia da sociedade, observa-se que é preciso verificar, no
caso concreto, quando o indecoro parlamentar efetivamente maculou a composição de
uma norma legal.
Para tanto, deve-se perquirir a relevância dos votos, por assim dizer,
“contaminados” pelo indecoro parlamentar durante a tramitação processual de uma
norma (lei, em sentido amplo). O que seria, então, um voto “relevante” para que seu
vício de origem macule a norma de inconstitucionalidade? Voto “relevante”, para fins
de inconstitucionalidade da norma, seria aquele sem o qual o advento desta não seria
possível. Este conceito, enfatize-se, é substancialmente de raciocínio lógico-jurídico.
Senão vejamos:
É cediço que a Constituição Federal prevê que uma emenda constitucional
pode ser proposta por um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado
Federal e até mesmo pelo próprio Presidente da República, além da hipótese de mais da
metade das Assembléias Legislativas das Unidades da Federação manifestando-se cada
uma delas pela maioria de seus membros (art. 60, incisos I, II e III), esta última, “regra
que não teve uma única aplicação nesses cem anos de República”.77
Nesta primeira fase, consoante dissemos ao tratarmos do processo
legislativo constitucional, acreditamos, em princípio, que não há interesse prático em
aplicar-se a teoria, haja vista o maior acesso que os interesses de ocasião teriam para
promover esse impulso inicial.
Noutro giro, o procedimento de aprovação da Emenda Constitucional, por
exemplo, atrai o foco da teoria aqui preconizada, tendo em vista as práticas atuais
observadas em nossa política.
Com efeito, a Constituição Federal determina para a efetivação do poder
constituinte derivado a obtenção de três quintos dos votos dos membros das duas casas
77
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 64.
38
legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal) (art. 60, § 2º). Aqui,
evidentemente, a viabilidade da presente teoria é notória.
Sabemos que a Câmara dos Deputados conta com 513 (quinhentos e treze)
membros (Deputados) em seu quadro atual, mas, para facilitar a exposição da temática,
suponhamos que fossem apenas (cem). Assim, neste parlamento hipotético, imaginemos
que o governo de ocasião e sua base aliada obtenham 59 (cinqüenta e nove) votos
garantidos para a aprovação de Emenda Constitucional na Câmara dos Deputados.
Logo, para aprovar-se a Emenda à Constituição naquela casa legislativa faltar-lhe-ia um
único voto, completando-se, afinal, o total de 60 (sessenta votos).
Ante esse panorama, mediante ordens da cúpula dessa engrenagem,
suponha-se que os interessados “comprem” o voto de algum Deputado da oposição e,
por fim, conseguem a aprovação da Emenda Constitucional no âmbito da Câmara dos
Deputados. Obedecido ao processo de tramitação, esse projeto de Emenda
Constitucional vai para o Senado Federal (supondo-se que tenha sido iniciado na
Câmara dos Deputados, como de regra acontece; exceto quando a proposta é de
iniciativa de Senador), no qual o governo de ocasião teria maioria confortável de três
quintos, sendo aprovada sem maiores dificuldades.
Questiona-se: Foi aquele voto “comprado” relevante para o advento da
Emenda à Constituição Federal? A resposta só pode ser uma: sim.
É inegável que, em vista de uma mera relação de causalidade (concatenação
de fatos), não fosse a “compra” daquele voto, ainda que somente um, a norma não teria
ingressado no ordenamento jurídico. Portanto, a “relevância” do (s) voto (s) deve ser
aferida no caso concreto, mediante a utilização do raciocínio lógico-jurídico em vista do
quórum de aprovação constitucionalmente previsto.
Por último, saliente-se que pensamos que, observando-se as devidas
adaptações relativas ao quórum, o mesmo que concluímos hipoteticamente fazendo
menção ao processo de emenda à Constituição vale para todos os outros instrumentos
legislativos (lei ordinária, lei complementar etc.).
Mas, como verificar o “vício” da conduta do parlamentar que fulmine a
norma de inconstitucionalidade? Em princípio, pelo menos duas respostas podem ser
dadas a essa interrogação:
39
Numa primeira linha de entendimento, poderíamos pensar que uma vez
impugnadas judicialmente condutas parlamentares e, posteriormente, transitadas em
julgado as decisões judiciais relativas àquelas ações, um dos legitimados à propositura
de ações diretas de inconstitucionalidade ajuizaria novo pleito, desta vez impugnando a
própria norma resultante daqueles atos.
Ao final, competiria ao Supremo Tribunal Federal decidir se aquela (s)
conduta (s) teve relevância no processo de que resultou a norma. Esse raciocínio,
pretensamente almeja assegurar a segurança jurídica. Mas incide em um equívoco
intransponível em sua linha de argumentação. Senão vejamos:
Parte a argumentação da necessária condição do trânsito em julgado da
sentença relativa à (s) conduta (s) parlamentar (es) impugnada (s). Assim, estar-se-ia
garantindo a segurança jurídica. Entretanto, é cediço que toda norma detém presunção,
conquanto relativa (juris tantum) de constitucionalidade.
Com efeito, a partir de sua edição a norma já passa a irradiar efeitos, ainda
que eventualmente venha a ser declarada inconstitucional. Logo, quanto antes esta
norma for extirpada da ordem jurídica, menos danos irá ocasionar e, por conseguinte,
desta forma que se irá privilegiar efetivamente a segurança jurídica.
Evidentemente, argumentar-se-á que sem o trânsito em julgado não se pode
caracterizar uma conduta como sendo indecorosa. No entanto, a nosso sentir, essa
premissa é equivocada.
Conforme a sistemática que expusemos, competirá ao Supremo Tribunal
Federal decidir a respeito da inconstitucionalidade da norma. Neste sentido, cumpre
observar que sobre a (s) conduta (s) do (s) agente (s) público (s) não deve recair
qualquer suspeita de imoralidade/ilegalidade, justamente em decorrência da (s) honrada
(s) função (ões) que ocupa (m).
Desse modo, inequívoco, por outro lado, que uma ação, de natureza penal
ou cível (ação civil pública, ação popular, ação de improbidade administrativa etc.), por
si só, já é o suficiente para formular um sinal relevante de que a conduta parlamentar
possa estar “viciada”.
Assim, competiria ao Supremo Tribunal Federal, pautando-se em tais
“fatos”, decidir se são ou não suficientes para eivar a norma de inconstitucionalidade.
Logo, o trânsito em julgado necessário é do juízo realizado pelo Pretório Excelso,
40
bastando para tanto “notoriedade” de que a conduta do parlamentar é “contaminada”.
Indaga-se, então, o que se reputa como “notoriedade”, para fins de controle de
constitucionalidade, a fim de configurar conduta viciada por parte do parlamentar?
Pensamos, em princípio, que mediante a análise probatória dos autos,
relativo (s) ao (s) outro (s) processo (s) envolvendo o (s) parlamentar (es), o tribunal
deverá verificar a presença de um fumus imoral, pois “o agente público não só tem que
ser honesto e probo, mas tem que mostrar que possui tal qualidade. Como a mulher de
Cesár.”78
Em outras palavras, ao Supremo Tribunal Federal compete julgar a norma
tendo em vista o contexto geral, consoante as circunstâncias que permeiam o fato e,
assim, decidir ou não a respeito de sua inconstitucionalidade por vício de decoro
parlamentar.
Atente-se, então, que ao Pretório Excelso caberá manifestar-se de antemão a
respeito de determinada conduta parlamentar, no que tange à higidez, sem que este juízo
vincule as demais instâncias judiciais, até porque não se trata de decisão definitiva
quanto ao ato do parlamentar, mas sim com relação à norma resultante deste – no
sentido de que a malversação das prerrogativas parlamentares foi determinante para o
advento da lei (em sentido amplo) na ordem jurídica.
Uma vez superado este ponto, os opositores residuais à tese argumentarão,
também, que uma mera ação de natureza civil não pode ensejar mácula de indecoro
sobre determinada conduta, sendo imprescindível o ajuizamento de uma ação penal para
tanto, pois nesta há um controle maior e efetivo acerca de sua admissibilidade.
Contudo, é de se observar que não há “uma diferença ontológica entre o
ilícito administrativo, o civil e o penal. Essa diferença, quem faz é o legislador, ao
atribuir diferentes sanções para cada ato jurídico (sendo a penal, subsidiária e a mais
gravosa).” 79
78
Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, ao analisar o princípio da moralidade (Rextr. nº
160.381-SP – STF – 2º Turma. RTJ 153/1.030). Pensamos que a mesma argumentação cabe
perfeitamente à ética política. Com relação à mulher de César, conforme reza a lenda: César ao chegar a
Roma ouviu boatos de que sua mulher o estaria traindo. Após averiguar o fato, mesmo tendo comprovado
que o mesmo não era crível, advertiu sua mulher para que isto nunca mais ocorresse e que ela se atentasse
para suas condutas, uma vez que não bastava apenas “ser” honesta, devendo também transparecer isto.
Muito diferente do que tem sido verificado na prática política nacional, na qual nossos representantes
sequer disfarçam sua desonestidade, em verdadeiro descaso para com a opinião pública.
79
Ministro Joaquim Barbosa do Supremo Tribunal Federal no Inquérito 1.968-2 (DF).
41
De todo modo, a existência de requisitos mais rigorosos para o recebimento
de uma ação penal também não é premissa consistente, posto que, conforme dissemos,
competirá ao Supremo Tribunal Federal manifestar-se a respeito da conduta
parlamentar, ainda que acessoriamente, para que seja declarada inconstitucional a norma
(lato sensu), independentemente da natureza da ação que recaia sobre tais atos.
Das críticas e considerações a respeito da primeira resposta à indagação que
nos levou à argumentação discorrida pode-se extrair a seguinte conclusão (a qual, a meu
ver, é a resposta adequada àquele questionamento, sem embargo do aperfeiçoamento
jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal lhe deve conferir em casos práticos, ou
mesmo outras soluções possíveis):
Impugnada (s) judicialmente determinada (s) conduta (s) de parlamentar (es)
consistente em auferir vantagem (s) indevida (s) para votar em determinado sentido, no
âmbito de qualquer justiça (cível, em sentido amplo, ou penal), em sendo ajuizada ação
direta de inconstitucionalidade de uma norma com fundamento na relevância desse (s)
voto (s) originado (s) da conduta imoral, compete ao Supremo Tribunal Federal apreciar
a questão, exercendo juízo ético-valorativo (e constitucional, obviamente) sobre o fato,
inclusive requisitando cópias dos autos que tramitam perante o (s) outro (s) juízo (s), de
fato (s) conexo (s) ao objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade, bem como
informações acerca do procedimento legislativo de formação da norma que está sendo
atacada.
Destarte, em vista de tal contexto, o Supremo Tribunal Federal analisaria a
presença ou não da notória ausência de decoro parlamentar e consequente violação do
devido processo legal constitucional de formação das normas, que resultasse ou não em
violação ao disposto no § 1º do artigo 55 da Constituição Federal.
CONCLUSÃO
Acreditamos que o § 1º do art. 55 da Constituição Federal de 1988, para
além de reprimir exclusivamente condutas parlamentares singulares, irradia seus
preceitos com ainda mais vigor na ordem jurídica, no sentido de se coadunar com o
disposto no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal (soberania popular), que
por sua vez é o fundamento do próprio Estado Democrático de Direito.
42
Entender diversamente, pensamos, no atual estágio do desenvolvimento
jurídico, seria sedimentar a supremacia do mero formalismo sobre o conteúdo
materialmente constitucional das normas que consubstanciam a representatividade e os
direitos políticos fundamentais e, por conseguinte, escamotear a soberania popular como
axioma primeiro de nosso ordenamento jurídico.
Em suma, não se está a propor um viés quixotesco da realidade jurídicopolítica, uma ética inalcançável na real politik. Pelo contrário, pugna-se com a presente
teoria o mínimo de ética possível na seara do Direito Constitucional, cuja expressão
mais idônea é inequivocamente o decoro parlamentar.
Neste sentido, o § 1º do art. 55 da Constituição Federal é o ponto de fusão
entre as esferas do Direito e da Política, devendo assim prevalecer a interpretação que
mais atenda à pacificação social e ao atendimento do bem comum. De modo algum
queremos propor algo surreal, no sentido de pregar uma tese totalmente inviável e
ilógica – tal como pode se utilizar de paralelo a bela história de Dom Quixote e sua
batalha contra os moinhos de vento80—. Não é isso.
Cremos verdadeiramente que a teoria da inconstitucionalidade por vício de
decoro parlamentar é viável e não mera elucubração jurídica. Portanto, entendemos
necessária uma reflexão acerca dessa nova modalidade de inconstitucionalidade que,
talvez, seja a mais nociva de todas ao meio social.
Assim, em sendo apurada conduta (s) de parlamentar (es) que repercuta (m)
na esfera judicial e, vislumbrando-se a relevância desta (s) no processo de formação da
norma (Emenda Constitucional, Lei Ordinária, Lei Complementar etc.), podem os
legitimados à Ação Direta de Inconstitucionalidade provocar a atuação do Supremo
Tribunal Federal para que este decida acerca da ofensa ou não ao § 1º do art. 55 da
Constituição Federal, privilegiando o devido processo legal em sua acepção substantiva
na seara processual constitucional, bem como os postulados da soberania popular, da
representatividade e dos direitos políticos fundamentais.
80
CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de La Mancha. EDICIÓN DEL IV CENTENÁRIO. REAL
ACADEMIA ESPAÑOLA. ASOCIACIÓN DE ACADEMIAS DE LENGUA ESPAÑOLA. Cap. VIII
(Del buen sucesso que el valeroso don Quijote tuvo em la espantable y jamás imaginada aventura de los
molinos de viento, con otros sucesos dignos de felice recordación) p. 75/76.
43
Essa nova perspectiva de inconstitucionalidade gera para a sociedade dois
benefícios incontestáveis: “prevenção” à malversação das prerrogativas parlamentares e
“punição” à subtração do mandato representativo à soberania popular.
A soberania popular, por conseguinte, de conteúdo pluralista e democrático,
só pode ser efetivamente exercitada no âmbito da probidade, com vistas ao bem estar
comum.
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