0 Pedro de Oliveira Magalhães
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Pedro de Oliveira Magalhães INCONSTITUCIONALIDADE POR VÍCIO DE DECORO PARLAMENTAR Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de pósgraduação em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Orientador: Profº Thiago André Pierobom de Ávila. Brasília 2009 0 Trabalho (título): Inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar. Autor: Pedro de Oliveira Magalhães. Advogado, Colaborador da Defensoria Pública do Distrito Federal e Territórios no Núcleo de Atendimento Jurídico do Segundo Grau e Tribunais Superiores da Quinta Procuradoria Criminal, Bacharel em Direito pela Universidade Paulista, campus Brasília (2007), pós-graduando em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT). Endereço do autor: SGAN 914, BLOCO C, APT 218, South Beach, Asa Norte, Telefone: 34479686/84847002, Brasília-DF. Orientador: Thiago André Pierobom de Ávila. 1 RESUMO: Com o presente trabalho, buscamos demonstrar a viabilidade da tese consubstanciada na inconstitucionalidade da norma por violação ao disposto no § 1º do art. 55 da Constituição Federal de 1988, enunciado constitucional este que trata do decoro parlamentar. Com efeito, a temática objeto deste artigo versa acerca da possibilidade de serem declaradas inconstitucionais Emendas à Constituição, Leis Ordinárias e Complementares, etc., quando realizadas em um contexto fático de malversação das prerrogativas parlamentares, em evidente prejuízo à soberania popular, à representatividade e aos direitos políticos fundamentais. PALAVRAS-CHAVE: Inconstitucionalidade – Decoro – Parlamentar – Soberania. ABSTRACT: Through the present paper we intend to show the viability of the theory consubstantiated in unconstitutionality of the norm by violation to what is mentioned in the first paragraph of article 55 of the Federal Constitution of 1988, which concerns parliamentary decency. The subject of this article concerns the possibility of amendents to the Constitution, Ordinary and Complementary laws being considered unconstitutional when enforced in a factual context of malversation of parliamentary prerrogatives in evident prejudice to popular sovereignty, to representativeness and to fundamental political rights. KEYWORDS: Unconstitutionality – Decency – Parliamentary – Sovereignty. 2 SUMÁRIO Introdução - 03. 1. A Supremacia da Constituição e o controle de constitucionalidade – 06. 2. O processo legislativo constitucional – 08. 3. Prerrogativas e deveres dos parlamentares e o decoro – 09. 4. A natureza dúplice da norma constitucional – 12. 5. Considerações acerca da soberania popular e da representatividade – 13. 6. Introdução necessária à teoria – 17. 7. A violação dos direitos políticos fundamentais em decorrência do vício de decoro parlamentar – 22. 8. Síntese das conseqüências do vício de decoro parlamentar na ordem jurídica – 24. 9. Perspectiva de aplicação – 25. 10. Caracterização da inconstitucionalidade – 34. Conclusão – 41. Referências bibliográficas – 44. 3 INTRODUÇÃO Para a abordagem do presente tema, dada a sua complexidade e incipiência (haja vista que calcado em fatos recentes1), faremos considerações acerca de outras matérias entrelaçadas que permeiam a temática. No entanto, a fim de não fugir da presente proposta, não nos aprofundaremos naqueles tópicos secundários, conquanto façamos menções a eles periodicamente durante a monografia. Convém esclarecermos do que trata o presente estudo, pois não se pode olvidar que a interpretação gramatical constitui uma importante ferramenta hermenêutica, ainda que deva ser inserta nos paradigmas do método sistemático conjuntamente com os demais recursos que o exegeta tem à disposição (teleológico, histórico etc.) para a interpretação das normas. O lexicógrafo Aurélio, compreende por “inconstitucional”: “Não constitucional ou que se opõe à Constituição do Estado.” 2. A seu turno, a palavra “vício” possui as seguintes acepções: “1. Defeito grave que torna uma pessoa ou coisa inadequada para certos fins ou funções. 2. Inclinação para o mal. [Nesta acepç. opõese a virtude (1).] 3. Costume de proceder mal; desregramento habitual. 4. Conduta ou costume censurável ou condenável; libertinagem, licenciosidade, devassidão. 5. Qualquer deformação física ou funcional. 6. Costume prejudicial;” 3 1 O Supremo Tribunal Federal, em julgamento histórico, que transcorreu durante 5 (cinco) dias, finalizando sua primeira etapa em 28 de agosto de 2007, recebeu a denúncia do Procurador-Geral da República acusando 40 (quarenta) envolvidos na suposta sistemática criminosa denominada de “mensalão”. Dentre os réus constavam membros da alta cúpula do Partido dos Trabalhadores que, à época dos fatos, exerciam mandato parlamentar e funções no Poder Executivo Federal, além de outros agentes públicos e empresários relacionados na exordial acusatória. Segundo veiculado nos meios de informação, os Ministros da Suprema Corte esperam o desfecho do caso nos próximos três ou cinco anos. O Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Souza, por sua vez, afirmou: “Minha expectativa é obter condenação de todos os réus.” Como exemplo de que espécie de fatos podem ensejar a inconstitucionalidade de uma norma por nós defendida durante essa exposição, destaque-se a fala do primeiro membro de cor negra da história do Supremo Tribunal Federal, o relator do caso, Ministro Joaquim Barbosa : “Os fatos são claríssimos. Membros de uma agremiação (...) resolvem distribuir recursos a membros de outras agremiações. Tratativas acontecem e esses recursos são firmados sem registro.” (fonte, revista Veja. Edição 2024, de 5 de setembro de 2007. Abril. págs. 52/53). 2 Novo Dicionário Aurélio. 1° Edição, 11º Impressão. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1975. p. 755. 3 Novo Dicionário Aurélio. 1° Edição, 11º Impressão. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1975. p. 1458/1459. 4 Denota-se, portanto, que o vocábulo “vício” carrega em si carga patentemente negativa. Já o termo “decoro”, sinaliza: “1.Correção moral; compostura, decência. 2.Dignidade, nobreza, honradez, brio, pundonor.” 4 Por último, ainda conforme o renomado lexicógrafo, o adjetivo “parlamentar” significa: “1. Pertencente ou relativo ao Parlamento. 2. Membro de um parlamento.” 5 Vislumbrada a etimologia gramatical dos vocábulos em tela, faz-se mister averiguar, outrossim, o conteúdo jurídico pertinente a estes. Para tanto, buscamos os ensinamentos da jurista Maria Helena Diniz. Com efeito, juridicamente, “inconstitucionalidade” tem o sentido de: 1. Direito constitucional. Caráter do que é inconstitucional. 2. Direito processual. Pronunciamento do Supremo Tribunal Federal declarando tratado, norma ou ato contrário à Constituição, pela maioria absoluta de votos. 6 A palavra “vício”, por sua vez, contém a seguinte acepção jurídica: 1. Direito civil. a) Defeito do negócio jurídico que o torna anulável; b) imperfeição ou falha apresentada no objeto da relação jurídica; c) deterioração. 2. Direito administrativo. Irregularidade do ato administrativo. 3. Direito comercial. Avaria. 4. Lógica jurídica. O que invalida um pensamento (Renouvier). 5. Medicina legal. a) Deformidade; b) defeito físico; c) hábito de usar entorpecente, de fumar ou consumir bebidas alcóolicas; d) degenerescência moral que leva o paciente a praticar, habitualmente, atos indecorosos, condenáveis ou censuráveis. 6. Direito penal. Libertinagem. 7 O vocábulo “decoro”, a renomada professora dispensa as seguintes significações em suas lições: 1. Na linguagem jurídica em geral, quer dizer: a) honradez, dignidade ou moral; b) decência; c) respeito a si mesmo e aos outros. 2. Direito penal. a) Objeto do crime de injúria, que constitui ofensa à dignidade 4 Novo Dicionário Aurélio. 1° Edição, 11º Impressão. Rio de janeiro: Nova Fronteira 1975. p. 424. Novo Dicionário Aurélio, 1° Edição, 11º Impressão. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1975. p. 1038. 6 Dicionário jurídico. Vol. 2, 2° Edição. São Paulo: Saraiva 2005. p. 940. 7 Dicionário jurídico. Vol. 4, 2° Edição. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 877. 5 5 ou ao decoro; b) objeto do crime de ultraje público ao pudor, que consiste na prática de ato obsceno em local público. 8 Inobstante a percuciência da definição conferida ao último termo supracitado, a norma constitucional, consoante enfatizaremos no decorrer do trabalho, por sua própria natureza instituidora da ordem jurídica e do Estado, detém feição dupla, qual seja, uma face jurídica e outra política. Desse modo, tendo em vista que a função legislativa e a democracia em si mesmas consubstanciam o substrato do tema explorado, não se pode neste ponto perder de vista que a definição essencialmente política do que seja “decoro” e também a terminologia “parlamentar” é a mais adequada ao que se propõe, sem olvidar, evidentemente, os correlatos efeitos jurídicos que a elas estão vinculados inexoravelmente. Neste sentido, e para melhor esclarecimento daquilo que por ora se busca, a expressão “decoro parlamentar” e sua respectiva acepção, no âmbito da ciência política, torna-se imprescindível. Novamente, nos socorremos dos ensinamentos irretocáveis de Maria Helena Diniz, segundo a qual “decoro parlamentar” é: Ciência política. Decência que devem ter os deputados e senadores, conduzindo-se de modo não abusivo com relação às prerrogativas que lhes foram outorgadas e sem obter quaisquer vantagens indevidas, sob pena de perderem o mandato. 9 Tecidas essas considerações iniciais acerca do significado dos termos relativos à matéria, deve-se destacar que, em síntese, o escopo do presente estudo é a abrangência do contido no § 1° do art. 55 da Constituição Federal de 1988, à luz das diretrizes do Estado Democrático de Direito, em especial a soberania popular (art. 1°, parágrafo único da Constituição Federal), segundo o qual: Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: § 1º - É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas. 8 9 Dicionário jurídico. Vol. 2, 2° Edição. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 28. Dicionário jurídico. Vol. 2, 2° Edição. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 28. 6 Confira-se, por conseguinte, a fim de iniciarmos a compreensão do fenômeno, o entendimento esposado pelo constitucionalista Pedro Lenza acerca da temática proposta: 6.3.4. Vício de decoro parlamentar (?) Como se sabe e se publicou em jornais, revistas etc., muito se falou em esquema de compra de votos, denominado “mensalão”, para se votar de acordo com o governo ou em certo sentido. As CPIs vêm investigando e a Justiça apurando e, uma vez provados os fatos, os culpados deverão sofrer as sanções de ordem criminal, administrativa, civil etc. O grande questionamento que se faz, contudo, é se, uma vez comprovada a existência de compra de votos, haveria mácula no processo legislativo de formação das emendas constitucionais a ensejar o reconhecimento da sua inconstitucionalidade? Entendemos que sim e, no caso, trata-se de vício de decoro parlamentar, já que, nos termos do art. 55, § 1°, “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”. Vamos aguardar a maneira, uma vez ajuizada alguma ADI com base nesta tese, como o STF vai enfrentar essa importante questão. Em nosso entender, sem dúvida, trata-se de inconstitucionalidade, pois maculada a essência do voto e o conceito de representatividade popular.” 10 (grifos no original) 1 A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE Ao tratar do estudo da constitucionalidade e inconstitucionalidade, Gilmar Mendes, citando o jurista português Jorge Miranda, anota que: [...] constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação, isto é, “a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – um comportamento – que lhe está ou 10 Direito Constitucional ESQUEMATIZADO. 12° Edição. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 132/133. Em nota de rodapé de sua obra, o Dr. Pedro Lenza divide a co-autoria da tese em apreço com outra jurista, anotando que: “Depois de muito pensar e discutir, falar em vício de ética, vício de consentimento, a colega Simone Aparecida Smaniotto sugeriu “vício de decoro parlamentar”, o que entendemos perfeito, tendo em vista a regra do art. 55, § 1º.” (ob. cit. pág. 128, rodapé). 7 não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não no seu sentido”. Não se cuida, porém, de uma relação lógica ou intelectiva, adverte o mestre português, mas de uma relação de caráter normativo e valorativo. Em verdade, é essa relação de índole normativa que qualifica a inconstitucionalidade, pois somente assim logra-se afirmar a obrigatoriedade do texto constitucional e a ineficácia de todo e qualquer ato normativo contraveniente. “Não estão em causa – diz Jorge Miranda – simplesmente a adequação de uma realidade a outra realidade, de um quid a outro quid, ou a correspondência entre este e aquele ato, mas o cumprimento ou não de certa norma jurídica”. 11 A idéia de controle de constitucionalidade surgiu nos Estados Unidos da América, de forma difusa, quando do julgamento do célebre caso Marbury v. Madison, relatado por John Marshall, à época juiz presidente (Chief Justice) da Suprema Corte daquela nação. Nas palavras de João Carlos Souto: “O voto (opinion) de John Marshall no caso Marbury v. Madison inaugurou, no limiar do século XIX, o controle judicial (judicial review) de constitucionalidade das leis, estabelecendo um sistema que viria a ser reproduzido na grande maioria das democracias ocidentais. A relevância desse julgado pode ser mensurada na assertiva de Craig R. Ducat, de que “provavelmente não há livro de prática de direito constitucional que não inicie mencionando Marbury vs. Madison”, (“there is scarcely a casebook on constitucional Law that does not begin with Marbury vs. Madison”).”12 O controle de constitucionalidade posteriormente adquiriu novos contornos na Europa Ocidental, caracterizando-se pelo modo concentrado, estabelecendo-se um órgão de cúpula para a análise da compatibilidade abstrata da lei com a Constituição. Em nosso país adotamos o controle de constitucionalidade tanto na forma difusa quanto concentrada. 11 Manual de Direito Constitucional. 2. Ed. ver. Coimbra, Coimbra Ed. 1981. 2. V. Págs. 273-4. Apud. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. Aspectos Jurídicos e Políticos. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 6. 12 Suprema Corte dos Estados Unidos, Principais Decisões. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 4. 8 No que diz respeito ao controle difuso de inconstitucionalidade, destaque-se, de antemão, não conseguirmos visualizar a possibilidade de aplicação da teoria, por razões que trataremos no item perspectiva de aplicação. 2 O PROCESSO LEGISLATIVO CONSTITUCIONAL O processo legislativo constitucional é conceituado pela doutrina como sendo “o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção) realizados pelos órgãos legislativos e cooperados para o fim de promulgar leis.” 13 Inicialmente, convém destacar que não vislumbramos interesse prático em se constatar eventual usurpação da soberania popular na primeira fase do processo de formação da norma, qual seja, no estágio denominado de iniciativa das leis (este último termo em sua acepção lata), posto que a prerrogativa em tela é conferida em todas as esferas de Poder da República14 e também ao cidadão15, conforme a orientação constitucional de democracia indireta e direta (com inequívoca prevalência pela metodologia indireta). O que se quer dizer com isto é que em vista da relativa amplitude da iniciativa de formação das normas, afigura-se, em princípio, desinteressante a cooptação de eventuais legitimados para a promoção de interesses alheios à soberania popular nesta etapa de iniciativa da norma. E, como pensamos e aguardamos que as teorias possuam algum efeito no plano concreto, descartamos por ora a hipótese aventada. Em síntese, a violação do decoro parlamentar no que tange à iniciativa das leis, devido à amplitude que a Constituição Federal conferiu a esta etapa do processo legislativo, aparenta ser irrelevante para a caracterização de mitigação da representatividade e a conseqüente usurpação da soberania popular (ou até mesmo no que concerne à infringência da harmonia entre os poderes) e, por conseguinte, não nos parece útil estender a interpretação do controle de constitucionalidade a este ponto. 13 SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação das Leis. 2° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 42. 14 Art. 60, incisos I, II e II, e art. 61 e § 1°, ambos da Constituição Federal de 1988. 15 Art. 61, § 2°, da Constituição Federal de 1988. 9 Entretanto, no que tange às demais etapas relacionadas ao processo legislativo de formação das normas, quais sejam, emenda, votação e sanção (às quais não nos aprofundaremos por não ser o objeto do presente trabalho), cremos viável a inquinação de inconstitucionalidade da norma por indecoro parlamentar e a conseqüente usurpação da soberania popular em qualquer delas singularmente considerada. Em outras palavras, em sendo verificada a malversação das prerrogativas parlamentares em qualquer dessas etapas, consoante os termos que serão explicitados quando da digressão da teoria que defendemos, pensamos que todo o processo legislativo de formação da norma será irremediavelmente contaminado pela mácula da inconstitucionalidade. É de se observar, diga-se logo, que o Poder Judiciário tem competência para a apreciação acerca da higidez no processo legislativo, tanto no que tange à ilegalidade quanto à inconstitucionalidade dos procedimentos referentes àquele, não se cogitando qualquer violação ao princípio da harmonia entre os Poderes (Constituição Federal, art. 2°) no exercício desse controle. É o que se pode depreender do julgado da lavra do Supremo Tribunal Federal, onde se assenta categoricamente que: O parlamentar tem legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de leis e emendas constitucionais que não se compatibilizam com o processo legislativo constitucional. 16 3 PRERROGATIVAS E DEVERES DOS PARLAMENTARES E O DECORO Pensamos que o instituto do decoro parlamentar é a garantia do mínimo de ética que o Estado Democrático de Direito exige por parte dos representantes de seu povo, cujo poder se resume na expressão soberania popular e, assim, pode ser visualizado como um instrumento constitucional de legitimidade da relação de poder do Estado sobre o indivíduo. 16 MS 24642/DF DISTRITO FEDERAL MANDADO DE SEGURANÇA Relator (a): Min. CARLOS VELLOSO Julgamento: 18/02/2004 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação DJ 18-06-2004 PP00045 EMENT VOL-02156-02 PP-00211. 10 Apesar do grande subjetivismo, o termo “decoro parlamentar” deve ser entendido como o conjunto de regras legais e morais que devem reger a conduta dos parlamentares, no sentido de dignificação da nobre atividade legislativa. 17 Entretanto, como já dissemos, para além da mera punição singularizada do parlamentar, acarretando-lhe a perda do mandato, entendemos que a conduta indecorosa pode gerar, outrossim, a inconstitucionalidade da norma. A redação do § 1º18 do art. 55 da Constituição Federal determina as três vertentes de conduta que caracterizam o chamado “vício de decoro parlamentar”, são elas: o abuso das prerrogativas asseguradas ao membro do Congresso Nacional, a percepção de vantagens indevidas e os casos definidos no respectivo regimento interno, Câmara ou Senado Federal, conforme o caso. Passa-se à análise de cada qual separadamente: 01. abuso das prerrogativas asseguradas ao membro do Congresso Nacional: as prerrogativas dos parlamentares, é preciso dizer, “são estabelecidas menos em favor dos congressistas que da instituição parlamentar, como garantia de independência perante outros poderes constitucionais. A Constituição Federal de 1988 restituiu aos parlamentares suas prerrogativas básicas, especialmente a inviolabilidade e a imunidade, mantendo-se o privilégio de foro e a isenção do serviço militar e acrescentou a limitação do dever de testemunhar”.19 Estão elas arroladas pelo art. 53 do Texto Constitucional. O “abuso” de tais prerrogativas consistiria em justamente utilizá-las como um veículo para a promoção de interesses estritamente pessoais, olvidando do alerta de que só são legítimas na medida em que garantem o exercício da função parlamentar. 02. a percepção de vantagens indevidas : em Direito Penal, para fins de tipificação do crime de corrupção passiva (Código Penal, art. 31720), define-se 17 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. São Paulo: Atlas, 2007. p. 446. 18 Conforme determina o dispositivo: “É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas parlamentares asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.” 19 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24º Edição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 534. 20 Corrupção Passiva: “317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem : Pena – reclusão, de dois a doze anos, e multa. § 1º A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício 11 vantagem indevida como aquela que “a lei não autoriza”21, podendo ser de “cunho patrimonial, moral, sentimental, sexual etc.”22 Sob este prisma, caracteriza-se percepção de vantagens indevidas, por exemplo, o recebimento de um automóvel por uma multinacional, ou ainda, a contratação de um seu parente ou amigo para ingressar nos quadros da Administração Pública (nepotismo, mediante, v.g., terceirização), uma vez que nesta última hipótese, conquanto de forma indireta, o nexo de benefício ao parlamentar é indiscutível. Neste sentido, aliás, muito recentemente o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante de nº 13, vedando de forma ampla a prática do nepotismo em toda a Administração Pública no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.23 Enfim, a depender do caso concreto, caracterizar-se-á o que seja a vantagem indevida, sempre realçando o vetor da moralidade/ética que deve nortear a conduta parlamentar. 03. casos definidos no regimento interno: os Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal prevêem postulados éticos que devem reger a atuação parlamentar, sob pena de incompatibilidade com o decoro exigível do cargo. Assim, por exemplo, na Câmara dos Deputados, o Regimento Interno estatui em seu capítulo V, acerca do Decoro Parlamentar que: 244. O Deputado que praticar ato contrário ao decoro parlamentar ou que afete a dignidade do mandato estará sujeito às penalidades e ao processo disciplinar previstos no Código de Ética e Decoro Parlamentar, que definirá também as condutas puníveis. ou o pratica infringindo dever funcional. § 2º Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem : Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.” 21 DELMANTO, Celso. (Atualizado por Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio M. de Almeida Delmanto). Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar, 2002. p. 633. 22 CAPEZ, Fernando. Vol. 3. Curso de Direito Penal, Parte Especial. São Paulo: Saraiva 2005. p. 433. O autor, em nota de rodapé, ressalta o entendimento em sentido contrário de Nelson Hungria, Comentários, cit., v. 9, p. 370, para quem a vantagem há de ter necessariamente cunho patrimonial. 23 Súmula vinculante nº 13: A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal. 12 Por sua vez, o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados nos informa em seus artigos 4º e 5º, respectivamente, os atos incompatíveis e atentatórios ao decoro parlamentar. Dentre tantas condutas previstas, bastante relevantes são aquelas consistentes na vedação de “abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional” (art. 4º, inc. I), “perceber, a qualquer título, em proveito próprio ou de outrem, no exercício da atividade parlamentar, vantagens indevidas” (art. 4º, inc. II), às quais são meras repetições da norma constitucional consignada no § 1º do art. 55, ao qual fazem expressa remissão. Outras condutas indecorosas previstas no Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados que não constam expressamente do Texto Constitucional, mas que merecem realce com relação ao objeto do trabalho são as seguintes: “fraudar, por qualquer meio ou forma, o regular andamento dos trabalhos legislativos para alterar o resultado da deliberação” (art. 4º, inc. III), “usar os poderes e prerrogativas do cargo para constranger ou aliciar servidor, colega ou qualquer pessoa sobre a qual exerça ascendência hierárquica, com o fim de obter qualquer espécie de favorecimento” (art. 5º, inc. IV), “relatar matéria submetida à apreciação da Câmara, de interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o financiamento de sua campanha eleitoral” (art. 5º, VIII). Em síntese, mediante um breve apanhado da matéria já se pode notar o viés eminentemente ético que caracteriza as disposições a respeito do decoro parlamentar. Para facilitar a didática, chamaremos genericamente a todas essas formas de incompatibilidade com o decoro parlamentar previstas no § 1º do art. 55 da Constituição Federal (casos definidos no regimento interno, abuso de prerrogativas e percepção de vantagens indevidas) de “malversação das prerrogativas parlamentares”. 4 A NATUREZA DÚPLICE DA NORMA CONSTITUCIONAL Haja vista a maior aproximação da temática proposta deve-se realçar um aspecto que a nosso ver consta de toda a norma constitucional e que, a todo instante durante o transcorrer do presente trabalho, deve ser rememorado para que seja possível 13 a plena construção da teoria, qual seja, a existência da faceta “política” das normas constitucionais. Com efeito, abalizada doutrina leciona sob o prisma de que a norma constitucional deve ser considerada de natureza “dúplice”, conjugando duas faces, a política e a jurídica.24 Assim, socorrendo-nos dessas irretocáveis lições, observamos que dois aspectos de capital importância assomam, de imediato, à reflexão do intérprete em se tratando de normas constitucionais. Em primeiro lugar, elas são de superior categoria hierárquica em face das normas da legislação ordinária, já pela natureza de que algumas se revestem (constitucionalidade material), já em razão do instrumento a que se vinculam ou aderem (constitucionalidade formal). Em segundo lugar – e este é o outro aspecto que nos vem à reflexão – a norma constitucional é de natureza “política”, porquanto rege a estrutura fundamental do Estado, atribui competência aos poderes, dispõe sobre os direitos humanos básicos, fixa o comportamento dos órgãos estatais e serve, enfim, de pauta à ação dos governos, visto que no exercício de suas atribuições não podem eles evidentemente ignorá-la.25 Conclui-se, portanto, que as relações que a norma constitucional, pela sua natureza mesma, costuma disciplinar, são de preponderante conteúdo político e social e, por isso mesmo, sujeitas a um influxo político considerável, senão essencial, o qual se reflete diretamente sobre a norma, bem como sobre o método interpretativo aplicável.26 5 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA SOBERANIA POPULAR E DA REPRESENTATIVIDADE Para a compreensão exata da presente tese, faz-se mister ter em conta a soberania popular como sendo o pilar inicial do Estado Democrático de Direito, mediante o qual se assomam outros valores essenciais a este sistema, tais como a dignidade da pessoa humana e a pluralidade. 24 Neste sentido, Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. Malheiros Editores. São Paulo: 2006. Pág. 463. 25 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 459/461. 26 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. pág. 461. 14 Ainda sob este enfoque, deve-se dizer que o principal veículo da soberania popular instaurada pelo parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal de 1988 é inequivocamente a representatividade, haja vista que as formas de participação direta na democracia (plebiscito e referendo, respectivamente) são de rara verificação em nossa prática democrática e, também, de previsão um pouco tímida na sistemática adotada em nosso ordenamento jurídico.27 Acerca do sentido da palavra “representação”, em ciência política, os dicionaristas e publicistas coincidem em indicar que mediante ela se faz com que “algo que não esteja presente se ache de novo presente”.28 Essa relação soberania popular e representatividade, é assunto por demais complexo e extenso, que certamente merece um estudo exclusivo para seu tratamento, transbordando, por conseguinte, da temática proposta. Entretanto, é imprescindível conhecer as linhas iniciais desse sinalagma indissociável. Em doutrina, diz-se que a democracia repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários, que lhe conferem essência conceitual, de um lado, a soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte de poder, que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo; do outro, a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da “vontade popular”; nos casos em que a representação é indireta, surge um princípio derivado ou secundário: o da representação. As técnicas utilizadas pela democracia para concretizar esses princípios têm variado, e certamente continuarão a variar, com a evolução do processo histórico, predominando, no momento, as técnicas eleitorais com suas instituições e o sistema de partidos políticos, como instrumentos de expressão e coordenação da vontade popular.29 Pode até mesmo ser que, em um futuro não muito distante, com o aperfeiçoamento dos meios cibernéticos de comunicação (rede mundial de computadores e toda a parafernália digital que a cada dia se inova), a democracia direta possa ser novamente exercida pela humanidade, a exemplo do que ocorria nas cidades 27 Nas palavras de Pedro Lenza, referindo-se ao instituto da iniciativa popular: “(...) percebe-se que a experiência brasileira é muito tímida. Reconhecemos que os requisitos rígidos contribuem para esta situação (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, como vimos, fala em “instituto decorativo”).”(grifos no oririnal). Direito Constitucional ESQUEMATIZADO. 12° Edição. São Paulo: Saraiva, 2008.p. 344. 28 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 13º Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 217. 29 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24º Edição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 131. 15 gregas da antiguidade30, haja vista a indiscutível celeridade e possibilidade de reunir diversas pessoas (ou melhor, manifestações de vontade) em um âmbito virtual. Mas, enquanto os novos tempos não chegam, se é que virão, ou mesmo se tal metodologia será, de fato e de direito, apropriada, temos de nos contentar com a democracia cuja técnica mais viável é a representatividade (conquanto existam mecanismos de democracia direta, sua utilização é escassa). Contudo, aceitar a representatividade como técnica democrática não nos pode conduzir à conclusão de que o vínculo do representante para com a soberania do povo se esgota no sufrágio. A chamada “soberania popular”, a qual, como toda a conceituação, demanda juízo de valor, pode ser visualizada por inúmeros enfoques. Assim, por exemplo, muito embora sem definir o conteúdo axiológico, mas pautando-se na perquirição de sua existência, a doutrina soviética apregoava que o poder do povo (sinônimo de soberania popular) é possível quando a estrutura econômica da sociedade se condiciona pelo domínio do sistema social de produção. Quando existe semelhante base econômica, a sociedade é homogênea no sentido de que não se divide em classes, o que determina a unidade de vontade e interesses de todos os seus membros.31 Por outro lado, a referida doutrina preconiza que diferente é a situação quando o resultado do desenvolvimento histórico surge da propriedade privada, que conduz à divisão da sociedade em classes com interesses antagônicos. Nestas condições, 30 Com relação à democracia direta nas antigas cidades gregas, Paulo Bonavides narra que : “A Grécia foi o berço da democracia direta, mormente Atenas, onde o povo, reunido na Ágora, para o exercício direto e imediato do poder político, transformava a praça pública “no grande recinto da nação”. A democracia antiga era a democracia de uma cidade, de um povo que desconhecia a vida civil, que se devotava por inteiro à coisa pública, que deliberava com ardor sobre as questões do Estado, que fazia de sua assembléia um poder concentrado no exercício da plena soberania legislativa, executiva e judicial. Cada cidade que se prezasse da prática do sistema democrático manteria com orgulho um Ágora, uma praça, onde os cidadãos se congregassem todos para o exercício do poder político. O Ágora, na cidade grega, fazia pois o papel dos parlamentos nos tempos modernos”. Mas arremata, logo em seguida, uma triste realidade concomitante àquele espírito cívico reinante à época : “A escura mancha que a crítica moderna viu na democracia dos antigos veio porém da presença da escravidão. A democracia, como direito de participação no ato criador da vontade política, era privilégio de ínfima minoria social de homens livres apoiados sobre esmagadora maioria de homens escravos.” Ciência Política. 13º Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 288. 31 Tradução livre do trecho “Ello es posible cuando la estructura económica de la sociedad se condiciona por el dominio del sistema social de producción. Cuando existe semejante base económica, la sociedade es homogénea en el sentido de que no se divide en clases, lo cual determina la unidad de voluntad e intereses de todos sus miembros.” FUNDAMENTOS DEL DERECHO ESTATAL SOVIÉTICO (PROBLEMAS GENERALES EL PODER, LA SOCIEDADE Y EL INDIVIDUO ORGANIZACION DEL ESTADO DE LA URSS), da autoria de Yuri Dolgopólov e Levón Grigorián. Traducción al español, Editorial Progreso, Moscú, 1979. p . 81. 16 o caráter do poder popular se modifica devido à transformação da estrutura econômica e social, no sentido da consolidação de nova base econômica e à diferenciação social entre os membros da sociedade. Surge o poder do Estado.32 Eximindo-nos em penetrar o mérito desse entendimento e de outros, em sentido contrário ou semelhante33, imperioso observar que com o advento da Constituição Federal de 1988 adotou-se um compromisso pluralista, conciliando fatores liberais numa ordem jurídica pautada pelo Estado Social.34 Portanto, sob este prisma deve ser analisada a soberania popular. Na democracia semidireta (adotada em nosso País, conjugando técnicas de democracia direta e indireta), a prevalência da representatividade é inequívoca (aspecto indireto), sendo esta fundada no instrumento denominado mandato políticorepresentativo. O mandato representativo é criação do Estado liberal-burguês, ainda como um dos meios de manter distintos Estado e sociedade, e mais uma forma de tornar abstrata a relação povo/governo. Segundo a teoria da representação política, que se concretiza no mandato, o representante não fica vinculado aos representados, por não se tratar de uma relação contratual.35 Deve-se ressaltar ainda que o Tribunal Superior Eleitoral36, no que foi referendado pelo Supremo Tribunal Federal37, entendeu que o mandato parlamentar pertence à agremiação partidária, e não ao congressista. Do posicionamento da Suprema Corte, cuja fundamentação extravasa a temática proposta, apenas anotando que, de todo modo, pautou-se sob o argumento da pluralidade e, em última análise, da preservação da própria soberania popular, extrai-se 32 Tradução livre do trecho “Distinta es la situación cuando a consecuencia del desarrollo histórico surge la propriedad privada, que conduce a la división de la sociedad en clases con interesses antagónicos. En estas condiciones, el carácter del poder público se modifica debido a la transformación de la estructura económica y a la diferenciación social entre los miembros de la sociedad. Surge el poder del Estado. FUNDAMENTOS DEL DERECHO ESTATAL SOVIÉTICO (PROBLEMAS GENERALES EL PODER, LA SOCIEDADE Y EL INDIVIDUO ORGANIZACION DEL ESTADO DE LA URSS), da autoria de Yuri Dolgopólov e Levón Grigorián. Traducción al español, Editorial Progreso, Moscú, 1979. p . 82. 33 A perquirição da doutrina soviética acerca da soberania popular demandaria uma análise muito mais sociológica e histórica do que jurídica ou política, haja vista as peculiaridades do sistema comunista e as disparidades gritantes entre sua teoria e prática. 34 Neste sentido, Paulo Bonavides destaca que: “A Constituição de 1988 é basicamente em muitas de suas dimensões essenciais uma Constituição do Estado Social.” Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 371. 35 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24º Edição, Malheiros Editores. São Paulo: 2005. Pág. 139. 36 Consulta 1398, posteriormente transformada na Resolução 22.610. 37 Mandados de Segurança 26602, 26603 e 26604. 17 de relevante a orientação sedimentando a imprescindibilidade de ética na conduta de nossos representantes, de modo a compeli-los à permanência na sigla pela qual foram eleitos, obstando-se, por conseguinte, a promiscuidade inerente ao vulgarmente conhecido “troca-troca partidário”38, quase sempre imbuída da malversação das prerrogativas da função e, portanto, caracterizadora de vício de decoro. Para além desta vinculação de índole partidária que, certamente, mas não sempre, vincula o representante à orientação de sua agremiação política, cremos que a existência de um quantum mínimo de ética constitucionalizada pode garantir a fidelidade do representante ao povo como um todo, e não tão só a uma parcela de correligionários. Desse modo, ao serem fixados efeitos jurídicos negativos à norma promulgada sob a eiva do indecoro parlamentar, alcança-se um duplo resultado: “prevenção” à malversação das prerrogativas parlamentares e “punição” à subtração do mandato representativo à soberania popular. Por ora, tenhamos em conta que a soberania popular é aquele poder pluralista, cuja titularidade da sociedade é exercida por representantes, os quais, por sua vez, devem exercê-lo com probidade, sob pena de desvirtuá-lo. 6 INTRODUÇÃO NECESSÁRIA À TEORIA Ante a temática que abordaremos, poder-se-ia aventar que eventual controle judicial acerca dos atos legislativos que somados culminam em norma (em acepção lata) seria afrontoso à harmonia entre os poderes39, haja vista a previsão contida no caput do art. 53 da Constituição Federal, segundo o qual “Os deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. (grifo nosso). Esse entendimento açodado deve ser refutado de plano por substanciais razões, quais sejam: 38 Adianto aos mais açodados que a qualificação de “promíscuo” ao “troca-troca partidário” não tem, evidentemente, nenhuma conotação sexual. Ao menos não se tem notícia (ainda) a esse respeito. 39 Constituição Federal, art. 2°. 18 a) a Constituição Federal é um sistema e, como tal, suas normas devem ser interpretadas de forma compatível. Sendo assim, a coexistência do § 1° do art. 55 com o art. 53, caput, resulta imperiosa; b) as garantias constitucionais são de natureza relativa,40 devendo ceder em face do interesse social de alta relevância, no caso, o decoro parlamentar e mediatamente o próprio postulado da soberania popular (cujo veículo normativo é a representatividade) como axioma fundamental do ordenamento jurídico; c) ademais, eventual fulminação de inconstitucionalidade da norma não embaraça o voto parlamentar singularmente considerado, mas sim seus efeitos, ou seja, o que dele resulta: a própria formação da lei (lato sensu) e, por fim, d) não conseguimos visualizar um nexo de prejudicialidade ao disposto no caput do art. 53 com a fulminação de inconstitucionalidade de uma norma cujo processo foi praticado ao arrepio do § 1° do art. 55, ambos da Constituição Federal, posto que a prerrogativa conferida naquele dispositivo presta-se à proteção da função parlamentar e não ao amparo do abuso das respectivas prerrogativas (e, acrescentemos, subtração da representatividade inerente à democracia, com evidente prejuízo à soberania popular). Ademais, corroborando esse entendimento demonstrando a perfeita coexistência entre o caput do art. 53 e o § 1 do art. 55 até mesmo na seara política, é cediço que “a inviolabilidade não protege o parlamentar de processo político por perda de mandato, fundamentado em abuso de prerrogativa da imunidade material, a teor do art. 55, II, e § 1°.” 41 Em síntese, dizer-se que os Deputados e Senadores são invioláveis por seus “votos” não significa que estes (os votos) sejam, no que tange aos efeitos jurídicos que deles defluem, igualmente, intangíveis. A garantia da inviolabilidade destina-se ao exercício da função parlamentar e não ao voto em si mesmo considerado quando eivado de manifesta subtração da 40 A respeito da regra concernente à “relatividade” dos direitos e garantias fundamentais há uma exceção, muito bem alertada pelo Douto Processualista Paulo Rangel, que é de natureza “absoluta”, qual seja, aquela constante do inc. III do art. 5° da Constituição Federal, dispondo que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;” Segundo o renomado autor: “(...) a afirmativa de que não existem direitos constitucionais absolutos é errônea. O direito da pessoa acusada ou investigada de não ser submetida a tortura, tratamento desumano ou degradante é absoluto. Nenhuma pessoa pode abrir mão desse direito e o Estado não pode utilizar esses meios ilícitos para descobrir a verdade.” Direito Processual Penal. 11° Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 389. 41 DEZEN JUNIOR, Gabriel. Direito Constitucional. Vol. I. 10° Edição. Brasília: Vestcon, 2006. P. 412. 19 soberania popular, ou seja, alheio à própria legitimidade (a representatividade do povo) que o fundamenta. Não fosse assim seria inviável a declaração de inconstitucionalidade de qualquer norma, posto que sua gênese, baseada em uma suposta inviolabilidade do voto, impediria o controle jurisdicional, tornando-a inatacável. Isto, obviamente, é repugnante ao Estado Democrático de Direito. Assim, partindo da premissa de que qualquer ato da função legiferante não pode destoar do estabelecido na Constituição Federal, a violação do § 1° do art. 55 implica transgressão da norma maior e, consoante uma exegese ampla da norma em tela – a que mais se coaduna com a soberania popular –, reputamos que um processo de formação da norma constituído em decorrência de uma série de atos conjugados afrontosos ao dispositivo padece irremediavelmente de inconstitucionalidade. Uma vez tecidas essas considerações de índole puramente jurídica, deve-se observar simultaneamente a faceta política que envolve a matéria, posto que a interpretação da norma constitucional, deve-se realçar sempre, requer dois prismas distintos, “de um lado, o jurídico, doutro o político, ambos porém decisivamente importantes, demandando a única solução possível: o equilíbrio desses dois pratos da balança constitucional.”42 A doutrina alerta para os malefícios em sede de uma eventual contenda insolúvel entre situação e oposição no âmbito político que ocasione grande instabilidade, resultando em grave prejuízo à produção legislativa e, por conseguinte, ao atendimento das necessidades da sociedade e do cidadão. Neste sentido, José Afonso da Silva disserta que: Pode ocorrer que a maioria parlamentar seja oposição e então o conflito entre Executivo e Legislativo se estabelece, com prejuízo para a comunidade. Pois, nem um programa nem outro se realizam, de vez que a maioria oposicionista tem possibilidade de aprovar as próprias iniciativas legislativas, mas o governo oporá obstáculos, primeiramente usando do direito de veto, depois, caindo este, não executando a lei, ou executando-a mal.43 42 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo : Malheiros, 2006. p. 463. 43 Processo Constitucional de Formação das Leis. 2° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 152. 20 Das sábias lições do renomado constitucionalista, evidentemente, não se pode inferir – realizando uma interpretação descabida e apressada –, que a soberania popular, calcada na pluralidade 44 de representação, possa ser objeto de utilização imoral para a satisfação de determinados interesses, quaisquer que sejam. O que queremos dizer é que eventuais conflitos entre situação (governo) e oposição têm de ser solucionados no âmbito institucional, respeitando-se as leis e a Constituição Federal. Certamente que o Brasil necessita de uma ampla reforma política para a resolução desses conflitos, mas enquanto esta não se efetiva deve ser impreterivelmente respeitado o sistema presente, sob pena de mácula irremovível ao ordenamento jurídico vigente.45 E nem se pode alegar que, por exemplo, ao subjugar a autonomia do Congresso Nacional para o atendimento de um programa do governo da ocasião, estarse-ia caracterizada a representatividade de todo modo, posto que o Presidente da República elegeu-se de forma legítima pela maioria absoluta dos eleitores e destarte, ainda que por via oblíqua (para não dizer escusa), a elaboração de normas visadas pelo chefe do Poder Executivo estaria em consonância com o interesse público; no Estado Democrático de Direito, destaque-se, tal concepção é inadmissível, uma vez que é inconcebível vislumbrar a satisfação do interesse público dissociada da legalidade institucional. Em Direito, como é cediço, os fins “não” justificam os meios. Na esfera do Direito Administrativo, mas que também se aplica perfeitamente ao paradigma do Direito Constitucional temos a lição lapidar do renomado publicista Celso Antônio Bandeira de Mello, demonstrando a incompatibilidade total do interesse público com a ilegalidade: É que o interesse público só pode realizar-se na forma da lei. Aliás, de direito, inexiste interesse público a não ser intra legem. Contra a lei ou fora dela é inconcebível. Sob o ângulo da Ciência da Administração, sob perspectiva extrajurídica, pode-se imaginar certo interesse da coletividade prescindindo-se do que as normas 44 Até porque o atendimento de interesses de qualquer grupo social, maioria ou minoria - não importa -, não pode menoscabar por completo os interesses de outrem. Em razão disto que o Constituinte originário elegeu o pluralismo político como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1°, inc. V). 45 Neste sentido, dissertando sobre a premente necessidade de uma reforma política em nosso país, Paulo Bonavides, na obra Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 214. 21 estabelecem e da maneira que estatuem para realizá-lo. Entretanto, por definição, interesse algum é interesse público senão quando confortado pela ordenação normativa, inclusive quanto à forma de efetivar-se.46 Desse modo, repita-se, não há ideologia política ou programa de governo que satisfaça o interesse público em descompasso com a legalidade (lato sensu)47. Não é a isso que o Estado Democrático de Direito se presta. Vislumbra-se assim que para a efetivação da teoria que defendemos faz-se mister uma postura corajosa e democrática do poder que representa a garantia dos cidadãos e da sociedade contra o arbítrio e a preservação da ordem jurídica: o Poder Judiciário.48 Doravante, a interpretação da norma constitucional, por parte de seus aplicadores (os membros do Poder Judiciário), deve oferecer a todo momento uma leitura democrática e consentânea com o primado da soberania popular. A palavra intérprete, adverte Fernando Coelho, “tem origem latina – interpres – que designava aquele que descobria o futuro nas entranhas das vítimas. Tirar das entranhas ou desentranhar era, portanto, o atributo do interpres, de que deriva para a palavra interpretar com o significado específico de desentranhar o próprio sentido das palavras da lei, deixando implícito que a tradução do verdadeiro sentido da lei é algo bem guardado, entranhado, portanto, em sua própria essência.49 A Constituição Federal há de sempre ser interpretada, pois somente por meio da conjugação da letra do texto com as características históricas, políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor sentido da norma jurídica, em confronto com a realidade sociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia.50 46 Curso de Direito Administrativo. 20° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 427. A legalidade em sentido amplo, compreendida como ordenamento jurídico, tendo por norma hierarquicamente superior e fundamental a Constituição Federal. 48 Certamente não se está pregando aqui aquilo que os positivistas denominam com temor “governo de juízes” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 631); não. O que se deseja é tão somente que o judiciário assuma de fato seu mister institucional na defesa do Estado Democrático de Direito sempre que para tanto for convocado. 49 COELHO, Fernando. Lógica jurídica e interpretação das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 182. apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. Editora Atlas. São Paulo: 2007. p. 10. 50 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 149. apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. Editora Atlas. São Paulo: 2007. pág. 10. 47 22 7 A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS FUNDAMENTAIS EM DECORRÊNCIA DO VÍCIO DE DECORO PARLAMENTAR Acerca da necessária vinculação entre a atuação do legislador e os direitos políticos fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet averbou que: Na medida em que os direitos políticos são considerados como direitos de participação (no sentido de uma posição ativa do indivíduo) na atividade estatal e na condução do interesse público, costumam – como já frisado alhures – ser enquadrados no status civitatis de Jellineck ou mesmo no âmbito das liberdades-participação dos franceses. Neste sentido, também a lição de Pontes de Miranda, para quem os direitos políticos são direitos à participação na formação da vontade estatal e direitos ao exercício de funções públicas. Mais recentemente, de acordo com a lição recolhida de Vieira de Andrade, sustentou-se, entre nós (diga-se de passagem, acertadamente), a natureza mista dos direitos políticos que, na condição de direitos de participação dos cidadãos na vida política, possuem natureza mista de direitos de defesa e direitos a prestações.51 Neste ponto, deve-se ter em conta que a única forma de salvaguardar tais direitos, em um Estado Democrático de Direito, no qual a soberania popular é um dos dois pilares de sustentação (o outro é a dignidade da pessoa humana) é observando-se a prescrição constitucional acerca do decoro parlamentar, sendo este o liame de vinculação que subsiste entre o eleitor e o eleito após o exercício do voto. Afastar esse vínculo mínimo (decoro parlamentar) entre o (s) representante (s) e o (s) representado (s) (a sociedade) sinaliza a marginalização da própria soberania popular, como valor a ser considerado de verificação compulsória. Ou seja, o respeito ao decoro parlamentar é a conduta positiva “mínima” que o Estado pode prestar ao cidadão-eleitor. Com efeito, a atuação parlamentar decorosa é uma prestação imprescindível à promoção dos direitos políticos fundamentais, posto que, de outro modo, a soberania popular mesma restará inequivocamente violada. 51 A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. Sétima Edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 207/208. Deve-se ressaltar que o autor, entretanto, faz uma reserva pessoal a esta doutrina, no sentido de que a dimensão prestacional dos direitos políticos é de índole “indireta” (ob. cit. Pág. 209). 23 Portanto, a obrigação dos representantes para com o eleitorado, em vista dos direitos políticos fundamentais, consubstancia-se em uma “satisfação ética”, a rigor, uma prestação de contas em acepção jurídica. Esta, certamente, somente se realizará mediante a participação ativa das instituições civis no processo de constitucionalidade e compatibilidade ética mínima. Pensar diferente não se coaduna com o que se almeja no regime democrático, que preceitua por sua própria essência a soberania popular52. Em outras palavras, de que vale o voto popular (sufrágio universal) se a atuação indecorosa de seus representantes é ditada por interesses meramente privados e econômicos, dissociados das aspirações e interesses dos representados (maiorias e minorias)? Ademais, a inexistência de expressa previsão constitucional acerca do direito político fundamental de que por ora se trata não obsta o seu reconhecimento, pois é possível desvelar-se direito fundamental implicitamente do contexto sistemático constitucional, consoante dissertou o Professor Thiago André Pierobom de Ávila, citando a doutrina de Alexy elucidando a questão que por ora se coloca: Ao lado da norma explícita de direitos fundamentais, Alexy acrescenta o conceito de normas adscritas, que são as que, pela indeterminação do conteúdo semanticamente aberto das normas constitucionais explícitas, discriminam seu conteúdo estabelecendo uma relação de precisão. O critério de revelação dessas normas adscritas é fornecido pela argumentação jusfundamental correta, que possibilita, até mesmo, o reconhecimento de novos direitos fundamentais. 53 52 Ainda que a noção do que seja “povo” seja bastante variável na história das democracias. Neste sentido, José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo. 24º Edição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 135/136. 53 PROVAS ILÍCITAS E PROPORCIONALIDADE. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.8. 24 8 SÍNTESE DAS CONSEQUÊNCIAS DO VÍCIO DE DECORO PARLAMENTAR NA ORDEM JURÍDICA Sintetizando o entendimento esposado nos tópicos anteriores, pensamos que a inobservância do § 1º do art. 55 da Constituição Federal de 1988 acarreta a violação da norma maior em três graus distintos, que relacionaremos agora de forma gradativa. Assim temos que: Em primeiro lugar, o indecoro parlamentar desrespeita os direitos políticos fundamentais do cidadão, uma vez que estes exigem uma conduta positiva-prestacional por parte dos representantes, consubstanciada em agir na defesa dos interesses maiores da nação e do eleitor singularmente considerado, o que somente pode se verificar de acordo com os parâmetros impostos pela ordem jurídica. Assim, a inobservância do “mínimo ético” exigível de um representante do povo causa mácula aos direitos políticos de seus eleitores e, igualmente, de todo o eleitorado nacional, posto que estes últimos consentiram em aceitar a sua representatividade, por almejarem a pluralidade política (ou seja, satisfação dos interesses da maioria e das minorias). Em segundo plano, visualizamos que o indecoro parlamentar usurpa a representatividade. Esta consiste em técnica democrática de exercício do poder. Sob este prisma, observa-se que o indecoro parlamentar denota desprezo por esta sistemática, afetando, em última análise, a própria democracia, uma vez que banaliza sua atual metodologia de exercício. Por último, há que se falar da soberania popular. Visto que o vício de decoro parlamentar afeta os direitos políticos fundamentais e a representatividade, por si só, tais motivos bastariam para fulminar também a soberania popular. No entanto, poder-se-ia argumentar em sentido contrário, sustentando-se a imprecisão do conceito de soberania popular. A crítica é procedente. Contudo, assim como muitos outros institutos, a soberania popular é mais um daqueles que, conquanto não se encontre sua precisa definição/conceituação, podese obter por exclusão o que não lhe é afeiçoado. O indecoro parlamentar é, fora de dúvida, uma dessas hipóteses. 25 Ora, não se pode falar em soberania, quando não há poder. A soberania é precisamente a expressão máxima do poder. Nas sociedades modernas democráticas, o poder do povo ou popular. Então, o representante não toma para si algo que não lhe pertence, pois assim o poder, na acepção de soberania popular, não mais existiria. O que lhe compete é tão somente o exercício deste, e não a sua titularidade. Conclui-se, por conseguinte, que o respeito à Constituição Federal é o limite imposto ao representante no exercício do poder, posto que, de outro modo, esta prerrogativa se transformaria em propriedade privada do parlamentar. Logo, a soberania popular, instituidora da ordem jurídica, uma vez patente a distinção entre “a titularidade e o exercício do Poder Constituinte, sendo titular o povo e o exercente aquele que, em nome do povo, cria o Estado, editando a nova Constituição” 54, deve ser preservada a todo custo, pois, do contrário, toda a nação perde sustentação legitimadora. 9 PERSPECTIVA DE APLICAÇÃO Sob um prisma ético-jurídico, de acordo com os ensinamentos colhidos da obra do Professor Pedro Lenza, entendemos que a negociação escusa (em sentido amplo) de interesses privados para a produção de normas jurídicas em determinado sentido, ou seja, consoante a vontade de um ou alguns cidadãos (restrito conjunto de pessoas55) caracteriza vício irremovível (de natureza absoluta) no processo de formação das leis (lato sensu). 54 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. São Paulo: Atlas, 2007. p. 22. 55 Neste ponto, mister passar ao largo no que concerne à caracterização do que seria esse grupo de pessoas, evitando adentrar a temerária esfera das ideologias, a qual, conforme a experiência tem demonstrado, costuma macular a obra do operador do Direito (não se está pregando aqui o positivismo puro e exacerbado, mas apenas afastando-se, neste ponto, repita-se, do terreno da ciência política). Com efeito, se detentoras do capital financeiro ou tão somente governantes de ocasião, para a configuração da inconstitucionalidade consoante a tese esboçada esse aspecto é irrelevante. Assim, havendo o indecoro parlamentar, independentemente da fonte cooptadora e dos motivos para tanto, há irremediável mácula de inconstitucionalidade. Em sentido contrário, Paulo Bonavides sustenta que: “A doutrina constitucional pouco progresso fez com relação ao reconhecimento consumado da “sociedade de grupos”. Politicamente é essa sociedade pluralista a forma imposta pelas necessidades e problemas oriundos da civilização tecnológica, onde esta já se implantou ou planeja implantar-se. Esse manifesto atraso com os fatos 26 O debate e o consenso entre os entes políticos partícipes do processo de tramitação de um projeto de lei 56 são inerentes à democracia pluralista (que busca a Constituição Federal, art. 1°, inc. V). Contudo, tanto o dissenso quanto o consenso político deve ser pautado por idéias, que visem ao bem estar da nação, ou seja, fiéis ao interesse geral. Não vemos como atender ao mandamento do parágrafo único do art. 1° da Constituição Federal quando o jogo democrático se restringe à promoção de interesses estritamente pessoais e eivados de imoralidade. Acerca da promiscuidade entre os interesses privados e o exercício da democracia por parte de seus representantes, Jean-Jacques Rousseau escrevia que: Nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados nos negócios públicos e o abuso das leis por parte do governo é um mal menor que a corrupção do legislador, continuação infalível dos interesses particulares. 57 Neste sentido, pensamos que a negociação de votos – seja qual for o meio utilizado: compra em dinheiro, concessão de cargos etc. – para o êxito de determinado projeto de lei em votação, além de constituir indecoro na função parlamentar, caracteriza inequívoca afronta ao dispositivo constitucional supracitado que assegura a soberania popular. ocasiona o pouco caso que os juristas têm feito dessa explosão nos fundamentos do sistema representativo. Continuam eles a valer-se de categorias tradicionais e obsoletas de raciocínio, em ordem a elaborar nova linguagem que melhor sirva à compreensão do processo de mudança em curso. Como reflexo talvez da lentidão dos juristas, verifica-se igual atraso no tocante à inconstitucionalização da realidade representativa nos termos do pluralismo de grupos, dentro do quadro constitucional. Quando os partidos começam nas cartas políticas a receber certidão de maioridade e a ter sua participação explicitada em atos jurídicos, já eles mesmos se acham em parte obsoletos, em virtude do avanço que fazem os grupos de interesses, estes naturalmente ainda mais distantes de alcançarem o reconhecimento formal do legislador. A representação só é concebível e explicável hoje se a vincularmos com a dinâmica daqueles grupos, com os interesses políticos, econômicos e sociais que eles agitam tenazmente, buscando-lhe a prevalência, via de regra em nome de posições ideológicas, cuja profunda análise o constitucionalista jamais poderá se eximir de levar a cabo.” (Ciência Política. 13º Edição. São Paulo : Malheiros, 2006. p. 235/236). De todo modo, conforme dissemos, a caracterização e as finalidades do grupo fomentador do abuso das prerrogativas parlamentares é irrelevante para a configuração da inconstitucionalidade, visto que a violação à norma do § 1º do art. 55 da Constituição Federal haverá independentemente de quem sejam os responsáveis e dos fins por ele visados, uma vez que a ilicitude nestas hipóteses sempre estará presente. 56 A doutrina é vacilante a respeito da nomenclatura adequada, se “projeto de lei” ou “lei”, em relação ao corpo legislativo ainda não dotado de perfeição. José Afonso da Silva, em sua obra Processo Constitucional de Formação das Leis, por exemplo, utiliza tão somente a terminologia “lei”. 57 O Contrato Social ou Princípios do Direito Político. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal – 13. São Paulo: Atlas. p. 79. 27 No que concerne ao decoro parlamentar e sua imprescindibilidade para a validade do processo legislativo constitucional, antes de tudo é necessário termos em conta as lições do emérito jurista Miguel Reale que, dissertando sobre a teoria do mínimo ético, leciona que: A teoria do “mínimo ético” consiste em dizer que o Direito representa apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver. Como nem todos podem ou querem realizar de maneira espontânea as obrigações morais, é indispensável armar de força certos preceitos éticos, para que a sociedade não soçobre (...) Assim sendo, o Direito não é algo diverso da Moral, mas é uma parte desta, armada de garantias específicas.58 Sem embargo de que nem tudo que é jurídico é moral (ao contrário do que preconiza a teoria do “mínimo ético”),59resta indene de questionamentos que a Constituição Federal contém inúmeros preceitos de substrato valorativo, devido à própria natureza dúplice (jurídico-política) já mencionada da norma constitucional, entre os quais avulta o § 1º do art. 55, que por seu turno detém eficácia jurídica plena. Corroborando o que por ora se sustenta, mencionamos linhas atrás a edição da Súmula Vinculante de nº 13 do Supremo Tribunal Federal, coibindo a prática do nepotismo em toda a Administração Pública, sinalizando a forte tendência da Egrégia Corte em prestigiar a moralidade (da qual o decoro é conseqüência inerente no exercício da função parlamentar) no que tange às funções públicas. Desta feita, partimos do prisma de que a violação do § 1° do art. 55 da Constituição Federal caracteriza inconstitucionalidade incidente sobre o processo legislativo constitucional (imediatamente infringindo também o disposto no parágrafo único do art. 1° da Constituição Federal), sendo o resultado desse procedimento invariavelmente inconstitucional. Doravante, analisemos o âmbito de incidência da teoria. 58 Lições Preliminares de Direito. 27° Edição. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 42. Ressaltando o desacerto da teoria do “mínimo ético”, Miguel Reale, após enunciar vários exemplos em que a norma encontra-se dissociada da moral, anota que: “(...) Não é exato, portanto, dizer que tudo o que passa no mundo jurídico seja ditado por motivos de ordem moral. Além disso, existem atos juridicamente lícitos que não o são do ponto de vista moral (...) Há, pois, que distinguir um campo do Direito que, se não é imoral, é pelo menos amoral, o que induz a representar o Direito e a Moral como dois círculos secantes.” Ob. cit. p. 43. 59 28 Primeiramente, fazendo um paradigma entre o Direito Constitucional e o Direito Administrativo60, destaquemos nossa ênfase na constatação de que da mesma forma que a moralidade é um princípio vetor da atividade do administrador, o decoro é um axioma inseparável da função parlamentar, para que esta seja constitucionalmente legítima. Sendo o § 1° do art. 55 da Constituição Federal norma de eficácia plena61, por conseguinte, prescinde de qualquer regulamentação infraconstitucional. Ademais, em vista de sua feição eminentemente valorativa, seu substrato é de índole evidentemente material. Logo, o seu não atendimento, em que pese este fato jurídico (ilícito, enfatize-se) situar-se em momento anterior à formação definitiva da norma, caracteriza afronta ao conteúdo, repita-se, material da Constituição Federal. Não se pode confundir a natureza da norma com o vício que a inquina. Assim, dizer que determinado preceito é materialmente constitucional, convém destacar, é consignar o seu valor como elemento essencial, no sentido estruturante, à nação. Por outro lado, a doutrina denomina como sendo apenas “formalmente” constitucionais as normas que não detém valor instituidor de um Estado. Esta divisão é inerente a constituições de natureza “analítica”, como é o caso da Constituição brasileira, “a despeito da inexistência de critério seguro e objetivo que nos permita identificar, a priori e com validade absoluta, o conteúdo essencial ou, se preferirmos, a matéria própria de toda norma constitucional.” 62 Noutro giro, em relação às espécies de “vícios” de inconstitucionalidade que podem macular uma norma, denomina-se “formal” ou “nomodinâmica” a inconstitucionalidade que se verifica quando a lei ou ato normativo contiver algum defeito em sua “forma”, vale dizer, no processo legislativo de sua elaboração, ou mesmo em razão de ter sido praticado por autoridade incompetente. Noutro giro, chama-se 60 Aceitando, como se aceita de modo pacificado na doutrina e jurisprudência nacional, a distinção entre ambas as disciplinas: Direito Constitucional e Direito Administrativo. Neste sentido, entre outros, Paulo Bonavides, in Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 43/45. 61 Consoante a classificação proposta pelo Prof. José Afonso da Silva, normas constitucionais de eficácia plena são “aquelas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular" (Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7º Edição. São Paulo: Malheiros: 2007. p. 101.). 62 MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 18. 29 “material”, de “conteúdo”, “substancial” ou “doutrinário” a inconstitucionalidade concernente à “matéria”, ou seja, ao conteúdo mesmo do ato normativo.63 Diante desse contexto, entretanto, acatamos a tese de que a violação ao § 1º do art. 55 da Constituição Federal caracteriza uma terceira hipótese sui generis de inconstitucionalidade, uma vez que dadas as suas peculiaridades não nos parece enquadrar-se a tese proposta com integralidade em uma das duas tradicionais categorias de inconstitucionalidade. Em virtude de suas especificidades, até mesmo devido à sua muito recente criação, parece-nos que mesmo se amoldando em parte às duas divisões supracitadas, deve prevalecer a sua autonomia como vício de inconstitucionalidade, sob pena de incidirmos em equívoco ao nos posicionarmos acerca de qual das duas clássicas modalidades de inconstitucionalidade estaria inserida aquela que propomos em face do § 1º do art. 55 da Constituição Federal.64 Logo, não se pode depreender tratar-se de mera irregularidade procedimental que não afeta o conteúdo da norma derivada desse processo. Inadmissível, no Estado Democrático de Direito, que a Constituição Federal deixe de ser observada em qualquer momento65, seja antes, ou depois da formação da norma. No âmbito do Direito Constitucional, vislumbra-se que os atos de Estado possuem natureza dúplice (tal qual, acreditamos, o próprio Direito Constitucional): política e jurídica. Neste sentido, pensamos que a categoria dos chamados atos puramente políticos, alheios ao controle de constitucionalidade, não persiste em sede do Estado Democrático de Direito. Com efeito, ensina o Professor José Afonso da Silva: Nossa Constituição é rígida. Em conseqüência, é a lei fundamental e suprema do Estado brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere poderes e competências governamentais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos 63 Pedro Lenza, in Direito Constitucional Esquematizado. 12° Edição. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 129/132. 64 Pedro Lenza, a seu turno, nas lições de que nos socorremos para chegar a essa conclusão, disserta que : “Particularizando, a inconstitucionalidade por ação pode-se dar por três formas : a) do ponto de vista formal; b) do ponto de vista material; c) estamos pensando em uma terceira forma em razão dos escândalos de suposto “mensalão” e “mensalinho” para votar em um sentido ou em outro, “batizada” de “vício de decoro parlamentar”. in Direito Constitucional Esquematizado. 12° Edição. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 128. 65 Para que a argumentação não venha a soar equivocada, esclareça-se que em situações excepcionais, quais sejam, estado de sítio e estado de defesa, ainda assim subsistem garantias constitucionais mínimas ao cidadão e às instituições. Confira-se arts. 136 e 137 Da Constituição Federal. 30 Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela estabelecidos. Por outro lado, todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal. 66 O voto parlamentar, a seu turno, configura um ato estatal, posto que oriundo de um dos poderes do Estado, qual seja, o Poder Legislativo. Tendo em vista que os atos do Poder Executivo e do Poder Judiciário são submetidos a exame de compatibilidade com o ordenamento jurídico, seria evidentemente afrontoso ao princípio da separação dos poderes, art. 2°, e ao disposto no inc. XXXV67, do art. 5º, ambos da Constituição Federal, que os atos da função legislativa, individualmente considerados, fossem dispostos alheios ao controle de constitucionalidade no que concerne aos seus “efeitos jurídicos”, ou seja, pudessem restar fora do âmbito de irradiação dos ditames constitucionais. Em suma, pensamos que da mesma forma que os atos emanados pelos Poderes Executivo e Judiciário devem situar-se sob os parâmetros constitucionais, assim também os atos políticos, como o voto parlamentar, submetem-se ao crivo constitucional. Para esclarecer melhor o que queremos demonstrar, socorremo-nos dos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello acerca dos atos políticos, pois acreditamos serem aplicáveis as mesmas razões ao voto, dada a índole inequivocamente política deste, a fim de viabilizar seu controle jurisdicional de constitucionalidade: Atos políticos ou de governo, praticados com margem de discrição e diretamente em obediência à Constituição, no exercício de função puramente política, tais o indulto, a iniciativa de lei pelo Executivo, sua sanção ou veto, sub color de que é contrária ao interesse público, etc. Por corresponderem ao exercício da função política e não administrativa, não há interesse em qualificá-los como atos administrativos, já que sua disciplina é peculiar. Inobstante também sejam controláveis pelo Poder Judiciário são praticados de modo amplamente discricionário, além de serem expedidos em nível 66 67 Curso de Direito Constitucional Positivo. 24° Edição. Malheiros Editores. São Paulo: 2005. Pág. 46. “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” 31 imediatamente infraconstitucional – ao invés de infralegal -, o que lhes confere fisionomia própria [...] Pelo quanto se disse, entretanto – já se vê -, atribuímos à noção de ato político ou de governo relevância totalmente diversa da que lhe é conferida pela doutrina européia. Esta os concebe para efeitos de qualifica-los como atos insuscetíveis de controle jurisdicional, entendimento que repelimos de modo absoluto e que não se coadunaria com o texto constitucional brasileiro, notadamente o art. 5°, XXXV. 68 Dessarte, realizando o caminho inverso, ou seja, retirando do Direito Administrativo e trazendo para o Direito Constitucional a noção do âmbito do controle jurisdicional dos atos políticos (haja vista a derivação inequívoca daquele ramo, o Direito Administrativo, do Direito Constitucional propriamente dito69), afigura-se plenamente possível a idéia inicial do presente trabalho. Em síntese, toda vez que um ato de natureza política afetar direitos, sejam eles individuais ou difusos, a conduta parlamentar será passível de controle jurisdicional.70 Desse modo, verifica-se que o indecoro parlamentar viola tanto o direito subjetivo político fundamental do cidadão ao exercício de sua cidadania, no que tange à sua finalidade de participação na vida Estatal, quanto a própria soberania popular e, portanto, repita-se, afigura-se inequivocamente viável a fulminação de inconstitucionalidade das normas construídas neste contexto. 68 Curso de Direito Administrativo. 20° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 357/358. Neste sentido, Paulo Bonavides citando o jurista chileno Mario B. González (Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 44/45). E, também, Hely Lopes Meirelles, não enaltecendo uma relação de primariedade e derivação, mas pautando-se por um critério concernente à estática e a dinâmica das relações socio-jurídicos, onde aduz, em síntese, que: “(...) o Direito Constitucional faz a anatomia do Estado, cuidando de suas formas, de sua estrutura, de sua substância, no aspecto estático, enquanto o Direito Administrativo estuda-o na sua movimentação, na sua dinâmica.” Direito Administrativo Brasileiro. 30° Edição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 41. 70 No sentido do texto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo. 20 Edição. São Paulo: Atlas, 2007. p. 47. A renomada jurista assevera que os atos emanados da função política são passíveis de controle pelo Poder Judiciário. Contudo, ressalva que os atos que versem sobre questões exclusivamente políticas estão alheios a esse controle. São essas as palavras da insígne autora: “Costumava-se dizer que os atos emanados no exercício da função política não são passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário; as Constituições de 1934 (art. 68) e 1937 (art. 94) estabeleciam que as questões exclusivamente políticas não podiam ser apreciadas pelo Poder Judiciário. As Constituições posteriores silenciaram, mas a vedação persiste, desde que se considerem como questões exclusivamente políticas aquelas que, dizendo respeito à polis, não afetam direitos subjetivos. No entanto, se houver lesão a direitos individuais e, atualmente, aos chamados interesses difusos protegidos por ação popular e ação civil pública, o ato de Governo será passível de apreciação pelo Poder Judiciário.” Entendemos que a posição da professora é compatível com o que expusemos, haja vista as considerações tecidas ao longo do trabalho. 69 32 Ademais, qualquer ato que em seu extrato final repercuta na Constituição Federal, possui inegável natureza jurídico-política, visto que a própria norma constitucional detém este caráter. Ora, ao imiscuir-se no processo legislativo constitucionalmente previsto a vontade emanada através do voto não detém índole puramente política, mas, outrossim, jurídica. Basta deduzir-se que todo o procedimento (constituído mediante o voto) integra um processo (no caso, processo legislativo constitucional) destinado a realização de um fim (norma). Inarredável, por outro lado, a conclusão de que tanto o processo (processo legislativo constitucional), quanto o procedimento – o (s) voto (s) –, exercem influência mútua em seus respectivos conteúdos. Destarte, se os procedimentos, ou seja, votos que compõem um processo – processo legislativo de formação da norma –, estavam adrede viciados, porque realizados sob o abuso das prerrogativas parlamentares, contaminado estará irremediavelmente o conteúdo final deste trâmite – a norma. O princípio do due processo f law estende-se à gênese da lei. Uma lei mal formada, vítima de defeitos no processo que a gerou, é ineficaz; a ninguém pode obrigar.71 O paradigma com a “teoria dos frutos da árvore envenenada”, com esteio no processo penal, com efeito, resulta inevitável. Toda a teorização lógica da tese dos frutos da árvore envenenada encaixa-se com precisão na sistemática da inconstitucionalidade por ora sustentada. Senão vejamos: A teoria dos “fruits of poisonous tree”, ou teoria dos frutos da árvore envenenada, cuja origem é atribuída à jurisprudência norte-americana, nada mais é do que simples conseqüência lógica da aplicação do princípio da inadmissibilidade de provas ilícitas. Se os agentes produtores da prova ilícita pudessem dela se valer para a obtenção de novas provas, a cuja existência somente se teria chegado a partir daquela (ilícita), a ilicitude da conduta seria facilmente contornável. Bastaria a observância da forma prevista em lei, na segunda operação, isto é, na busca das provas obtidas por meio de informações extraídas pela via da ilicitude, para que se legalizasse a ilicitude da 71 STJ – 1º T. – RMS nº 7.313-0/RS – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Diário de Justiça, Seção I, 5 de maio 1997 – Ementário STJ 18/395 apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. Editora Atlas. São Paulo: 2007. p. 710. 33 primeira (operação). Assim, a teoria da ilicitude por derivação é uma imposição da aplicação do princípio da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente.72 O mesmo raciocínio jurídico efetuado na teoria dos frutos da árvore envenenada pode ser transposto para a seara constitucional, desde que, evidentemente, com as devidas adaptações. Desse modo, numa correlação lógica, o voto “viciado” (fruto da malversação das prerrogativas parlamentares) se equipararia à prova ilícita naquela teoria. Por conseguinte, a norma obtida mediante votos “viciados”, corresponde à prova derivada de ilicitude, consoante aquele entendimento. A conclusão que se quer chegar com essa analogia é a seguinte: o vício da origem não pode gerar efeitos juridicamente válidos. No entanto, é preciso destacar que somente pode ser aplicado esse entendimento, tendo em vista a necessária existência de nexo de causalidade entre o voto “viciado” e a norma promulgada. Com efeito, deve-se aferir no caso concreto se o voto (s) “viciado(s)” isoladamente teve “relevância” para a configuração da inconstitucionalidade da norma, pois, do contrário, não se poderá falar em mácula ao § 1º do art. 55 da Constituição Federal. Por último, cremos que o controle de constitucionalidade com fundamento no § 1º do art. 55 da Constituição Federal, dada a sua natureza de inconstitucionalidade sui generis, somente pode ser realizado na forma “concentrada” perante o Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a própria natureza dúplice da norma constitucional. Assim, cremos que somente o Pretório Excelso pode declarar a inconstitucionalidade de uma norma cujo caráter “político” é ainda mais proeminente do que o encontrado nas demais esparsas pelo texto constitucional, visando a preservar a harmonia necessária entre os poderes (Constituição Federal, art. 2º). Portanto, conferir essa possibilidade em sede de controle incidenter tantum (difuso), além de ser temerário, haja vista a banalização que pode acarretar, afigura-senos ilegítimo, em vista da substancial peculiaridade dessa modalidade de vício de inconstitucionalidade. 72 OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de Processo Penal. 4º Edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 290/291. 34 Logo, compete às entidades civis, em defesa da ética e da cidadania, subsidiar (com informações pertinentes) e provocar os legitimados à propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade73, tornando o procedimento democrático e, simultaneamente, prestigiando a segurança jurídica. Destarte, a própria sistemática de escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal, que conta com a participação do Poder Legislativo e, ademais, a legitimidade restrita para a promoção de ações diretas de inconstitucionalidade, parecenos, assegurar, respectivamente, a harmonia entre os poderes e evitar a banalização e uso político do instrumento em apreço, considerando-se a atual tendência em preservar a constitucionalidade das normas, sempre que possível, quando puder ser interpretada de forma consentânea com a Constituição Federal.74 10 CARACTERIZAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE Para a realização da presente teoria, tendo em vista a quase inexistência de referências acerca da temática (com exceção da obra de Pedro Lenza), a fim de elaborarmos um raciocínio jurídico coerente, demonstrativo da viabilidade prática e teórica da tese, serviu-nos de inspiração os ensinamentos do grande filósofo René Descartes em seu discurso do método, segundo o qual seriam necessários quatro preceitos para o alcance do conhecimento: O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não 73 Cuja enumeração consta do rol de incisos do artigo 103 da Constituição Federal. Acerca do tema, lecionam Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco: “Instrumento situado no âmbito do controle de constitucionalidade e não apenas uma simples regra de interpretação—como o STF enfatizou em decisão exemplar—, o princípio da interpretação conforme a Constituição consubstancia essencialmente uma diretriz de prudência política ou, se quisermos, de política constitucional, além de reforçar outros cânones interpretativos, como o princípio da unidade da Constituição e o da correção funcional (...) Essa prudência, por outro lado, não pode ser excessiva, a ponto de induzir o intérprete a salvar a lei à custa da Constituição, nem tampouco a contrariar o sentido inequívoco, para constitucionalizá-la de qualquer maneira. No primeiro caso porque isso implicaria interpretar a Constituição conforme a lei e, assim, subverter a hierarquia das normas; no segundo, porque toda conformação exagerada implica, no fundo, usurpar tarefas legislativas e transformar o intérprete em legislador positivo, na exata medida em que a lei resultante dessa interpretação— conformadora só nas aparências— em verdade seria substancialmente distinta, em sua letra como no seu espírito, daquela que resultou do trabalho legislativo.” Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 112/113. 74 35 se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum para duvidar dele. O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse certeza de nada omitir. 75 Desta feita, partimos de paradigmas jurídicos correlatos na tentativa de solucionar os meandros do objeto da presente monografia, cientes de antemão que, a despeito de tentarmos desenvolver um esboço das linhas iniciais do instituto, a temática demanda uma construção científica e jurisprudencial mais elaborada. Neste sentido, o processo penal é, fora de dúvida, um instrumento de garantia do réu. Da mesma forma, pensamos que deva ser visualizado o processo legislativo constitucional para a sociedade. A analogia entre os ramos processuais, em determinadas hipóteses, como a que por ora se trata, faz-se imperiosa. Atualmente, inclusive, tem se falado em devido processo legal em sua acepção substantiva também no âmbito do processo civil o que, em última análise, é o que se busca na higidez que deve permear a vertente processual legislativa constitucional. Assim, tendo em conta o axioma do devido processo legal em sua acepção substantiva, o processo legislativo constitucional deve assegurar aos seus partícipes (membros do Poder Legislativo e o Presidente da República), igualdade substancial nos termos do procedimento, de molde a proporcionar à sociedade o resultado final (norma) que exprima a pluralidade de representação e, precipuamente, satisfaça a soberania popular. 75 Discurso do Método. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 49/50. 36 Importante destacar, por exemplo, que o Regimento Interno do Senado Federal, de índole procedimental, assegura nos incisos de seu dispositivo 402 os seguintes preceitos: I – a participação plena e igualitária dos Senadores em todas as atividades legislativas, respeitados os limites regimentais; (...) VII – preservação do direito das minorias; (...) XIII – possibilidade de ampla negociação política somente por meio de procedimentos regimentais previstos. Além dessa paridade supra, é preciso destacar a proporcionalidade e razoabilidade que devem pautar os procedimentos ínsitos àquele processo o que, na esfera política, diz respeito ao mínimo de ética desejável da parte de nossos representantes. Dito de outra forma, não se pode entender razoável e nem proporcional o abuso das prerrogativas parlamentares para a formação das leis. É cediço que a principal objeção à doutrina por nós aqui defendida seria a impossibilidade de controle jurisdicional acerca do decoro parlamentar. Sobre este ponto, Alexandre de Moraes leciona com percuciência que, por tratar-se de ato disciplinar de competência privativa da Casa Legislativa respectiva, não competirá ao Poder Judiciário decidir sobre o mérito da tipicidade da conduta parlamentar nas previsões regimentais caracterizadoras da falta de decoro parlamentar ou mesmo sobre o acerto da decisão – desde que garantido o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório -, pois tal atitude consistiria em indevida ingerência em competência exclusiva de órgão do Poder Legislativo, atribuída diretamente pela Constituição Federal (CF, art. 55. § 1º e 2º), sem qualquer previsão de recurso de mérito.76 As palavras do renomado constitucionalista são irretocáveis. Ressalte-se, contudo, que se o “fato” gerador do indecoro parlamentar violar direitos será passível de apreciação jurisdicional. Entretanto, o que aqui se busca, conforme dissemos noutra passagem, não é o controle jurisdicional sobre as condutas parlamentares em si mesmas consideradas mas, isto sim, a respeito do resultado final desse processo quando eivado de imoralidades que configuram atos indecorosos por parte dos parlamentares. 76 Direito Constitucional. Vigésima Segunda Edição. São Paulo: Atlas, 2007. p. 446. 37 O controle jurisdicional exposto por esta teoria recai, por conseguinte, sobre os vícios que maculam a norma em seu processo, e não com relação a condutas “interna corporis” dos membros do Congresso Nacional, ou de uma Assembléia Legislativa de algum Estado da Federação. Com efeito, levando-se adiante o entendimento de que o processo legislativo constitucional constitui garantia da sociedade, observa-se que é preciso verificar, no caso concreto, quando o indecoro parlamentar efetivamente maculou a composição de uma norma legal. Para tanto, deve-se perquirir a relevância dos votos, por assim dizer, “contaminados” pelo indecoro parlamentar durante a tramitação processual de uma norma (lei, em sentido amplo). O que seria, então, um voto “relevante” para que seu vício de origem macule a norma de inconstitucionalidade? Voto “relevante”, para fins de inconstitucionalidade da norma, seria aquele sem o qual o advento desta não seria possível. Este conceito, enfatize-se, é substancialmente de raciocínio lógico-jurídico. Senão vejamos: É cediço que a Constituição Federal prevê que uma emenda constitucional pode ser proposta por um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal e até mesmo pelo próprio Presidente da República, além da hipótese de mais da metade das Assembléias Legislativas das Unidades da Federação manifestando-se cada uma delas pela maioria de seus membros (art. 60, incisos I, II e III), esta última, “regra que não teve uma única aplicação nesses cem anos de República”.77 Nesta primeira fase, consoante dissemos ao tratarmos do processo legislativo constitucional, acreditamos, em princípio, que não há interesse prático em aplicar-se a teoria, haja vista o maior acesso que os interesses de ocasião teriam para promover esse impulso inicial. Noutro giro, o procedimento de aprovação da Emenda Constitucional, por exemplo, atrai o foco da teoria aqui preconizada, tendo em vista as práticas atuais observadas em nossa política. Com efeito, a Constituição Federal determina para a efetivação do poder constituinte derivado a obtenção de três quintos dos votos dos membros das duas casas 77 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 64. 38 legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal) (art. 60, § 2º). Aqui, evidentemente, a viabilidade da presente teoria é notória. Sabemos que a Câmara dos Deputados conta com 513 (quinhentos e treze) membros (Deputados) em seu quadro atual, mas, para facilitar a exposição da temática, suponhamos que fossem apenas (cem). Assim, neste parlamento hipotético, imaginemos que o governo de ocasião e sua base aliada obtenham 59 (cinqüenta e nove) votos garantidos para a aprovação de Emenda Constitucional na Câmara dos Deputados. Logo, para aprovar-se a Emenda à Constituição naquela casa legislativa faltar-lhe-ia um único voto, completando-se, afinal, o total de 60 (sessenta votos). Ante esse panorama, mediante ordens da cúpula dessa engrenagem, suponha-se que os interessados “comprem” o voto de algum Deputado da oposição e, por fim, conseguem a aprovação da Emenda Constitucional no âmbito da Câmara dos Deputados. Obedecido ao processo de tramitação, esse projeto de Emenda Constitucional vai para o Senado Federal (supondo-se que tenha sido iniciado na Câmara dos Deputados, como de regra acontece; exceto quando a proposta é de iniciativa de Senador), no qual o governo de ocasião teria maioria confortável de três quintos, sendo aprovada sem maiores dificuldades. Questiona-se: Foi aquele voto “comprado” relevante para o advento da Emenda à Constituição Federal? A resposta só pode ser uma: sim. É inegável que, em vista de uma mera relação de causalidade (concatenação de fatos), não fosse a “compra” daquele voto, ainda que somente um, a norma não teria ingressado no ordenamento jurídico. Portanto, a “relevância” do (s) voto (s) deve ser aferida no caso concreto, mediante a utilização do raciocínio lógico-jurídico em vista do quórum de aprovação constitucionalmente previsto. Por último, saliente-se que pensamos que, observando-se as devidas adaptações relativas ao quórum, o mesmo que concluímos hipoteticamente fazendo menção ao processo de emenda à Constituição vale para todos os outros instrumentos legislativos (lei ordinária, lei complementar etc.). Mas, como verificar o “vício” da conduta do parlamentar que fulmine a norma de inconstitucionalidade? Em princípio, pelo menos duas respostas podem ser dadas a essa interrogação: 39 Numa primeira linha de entendimento, poderíamos pensar que uma vez impugnadas judicialmente condutas parlamentares e, posteriormente, transitadas em julgado as decisões judiciais relativas àquelas ações, um dos legitimados à propositura de ações diretas de inconstitucionalidade ajuizaria novo pleito, desta vez impugnando a própria norma resultante daqueles atos. Ao final, competiria ao Supremo Tribunal Federal decidir se aquela (s) conduta (s) teve relevância no processo de que resultou a norma. Esse raciocínio, pretensamente almeja assegurar a segurança jurídica. Mas incide em um equívoco intransponível em sua linha de argumentação. Senão vejamos: Parte a argumentação da necessária condição do trânsito em julgado da sentença relativa à (s) conduta (s) parlamentar (es) impugnada (s). Assim, estar-se-ia garantindo a segurança jurídica. Entretanto, é cediço que toda norma detém presunção, conquanto relativa (juris tantum) de constitucionalidade. Com efeito, a partir de sua edição a norma já passa a irradiar efeitos, ainda que eventualmente venha a ser declarada inconstitucional. Logo, quanto antes esta norma for extirpada da ordem jurídica, menos danos irá ocasionar e, por conseguinte, desta forma que se irá privilegiar efetivamente a segurança jurídica. Evidentemente, argumentar-se-á que sem o trânsito em julgado não se pode caracterizar uma conduta como sendo indecorosa. No entanto, a nosso sentir, essa premissa é equivocada. Conforme a sistemática que expusemos, competirá ao Supremo Tribunal Federal decidir a respeito da inconstitucionalidade da norma. Neste sentido, cumpre observar que sobre a (s) conduta (s) do (s) agente (s) público (s) não deve recair qualquer suspeita de imoralidade/ilegalidade, justamente em decorrência da (s) honrada (s) função (ões) que ocupa (m). Desse modo, inequívoco, por outro lado, que uma ação, de natureza penal ou cível (ação civil pública, ação popular, ação de improbidade administrativa etc.), por si só, já é o suficiente para formular um sinal relevante de que a conduta parlamentar possa estar “viciada”. Assim, competiria ao Supremo Tribunal Federal, pautando-se em tais “fatos”, decidir se são ou não suficientes para eivar a norma de inconstitucionalidade. Logo, o trânsito em julgado necessário é do juízo realizado pelo Pretório Excelso, 40 bastando para tanto “notoriedade” de que a conduta do parlamentar é “contaminada”. Indaga-se, então, o que se reputa como “notoriedade”, para fins de controle de constitucionalidade, a fim de configurar conduta viciada por parte do parlamentar? Pensamos, em princípio, que mediante a análise probatória dos autos, relativo (s) ao (s) outro (s) processo (s) envolvendo o (s) parlamentar (es), o tribunal deverá verificar a presença de um fumus imoral, pois “o agente público não só tem que ser honesto e probo, mas tem que mostrar que possui tal qualidade. Como a mulher de Cesár.”78 Em outras palavras, ao Supremo Tribunal Federal compete julgar a norma tendo em vista o contexto geral, consoante as circunstâncias que permeiam o fato e, assim, decidir ou não a respeito de sua inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar. Atente-se, então, que ao Pretório Excelso caberá manifestar-se de antemão a respeito de determinada conduta parlamentar, no que tange à higidez, sem que este juízo vincule as demais instâncias judiciais, até porque não se trata de decisão definitiva quanto ao ato do parlamentar, mas sim com relação à norma resultante deste – no sentido de que a malversação das prerrogativas parlamentares foi determinante para o advento da lei (em sentido amplo) na ordem jurídica. Uma vez superado este ponto, os opositores residuais à tese argumentarão, também, que uma mera ação de natureza civil não pode ensejar mácula de indecoro sobre determinada conduta, sendo imprescindível o ajuizamento de uma ação penal para tanto, pois nesta há um controle maior e efetivo acerca de sua admissibilidade. Contudo, é de se observar que não há “uma diferença ontológica entre o ilícito administrativo, o civil e o penal. Essa diferença, quem faz é o legislador, ao atribuir diferentes sanções para cada ato jurídico (sendo a penal, subsidiária e a mais gravosa).” 79 78 Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, ao analisar o princípio da moralidade (Rextr. nº 160.381-SP – STF – 2º Turma. RTJ 153/1.030). Pensamos que a mesma argumentação cabe perfeitamente à ética política. Com relação à mulher de César, conforme reza a lenda: César ao chegar a Roma ouviu boatos de que sua mulher o estaria traindo. Após averiguar o fato, mesmo tendo comprovado que o mesmo não era crível, advertiu sua mulher para que isto nunca mais ocorresse e que ela se atentasse para suas condutas, uma vez que não bastava apenas “ser” honesta, devendo também transparecer isto. Muito diferente do que tem sido verificado na prática política nacional, na qual nossos representantes sequer disfarçam sua desonestidade, em verdadeiro descaso para com a opinião pública. 79 Ministro Joaquim Barbosa do Supremo Tribunal Federal no Inquérito 1.968-2 (DF). 41 De todo modo, a existência de requisitos mais rigorosos para o recebimento de uma ação penal também não é premissa consistente, posto que, conforme dissemos, competirá ao Supremo Tribunal Federal manifestar-se a respeito da conduta parlamentar, ainda que acessoriamente, para que seja declarada inconstitucional a norma (lato sensu), independentemente da natureza da ação que recaia sobre tais atos. Das críticas e considerações a respeito da primeira resposta à indagação que nos levou à argumentação discorrida pode-se extrair a seguinte conclusão (a qual, a meu ver, é a resposta adequada àquele questionamento, sem embargo do aperfeiçoamento jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal lhe deve conferir em casos práticos, ou mesmo outras soluções possíveis): Impugnada (s) judicialmente determinada (s) conduta (s) de parlamentar (es) consistente em auferir vantagem (s) indevida (s) para votar em determinado sentido, no âmbito de qualquer justiça (cível, em sentido amplo, ou penal), em sendo ajuizada ação direta de inconstitucionalidade de uma norma com fundamento na relevância desse (s) voto (s) originado (s) da conduta imoral, compete ao Supremo Tribunal Federal apreciar a questão, exercendo juízo ético-valorativo (e constitucional, obviamente) sobre o fato, inclusive requisitando cópias dos autos que tramitam perante o (s) outro (s) juízo (s), de fato (s) conexo (s) ao objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade, bem como informações acerca do procedimento legislativo de formação da norma que está sendo atacada. Destarte, em vista de tal contexto, o Supremo Tribunal Federal analisaria a presença ou não da notória ausência de decoro parlamentar e consequente violação do devido processo legal constitucional de formação das normas, que resultasse ou não em violação ao disposto no § 1º do artigo 55 da Constituição Federal. CONCLUSÃO Acreditamos que o § 1º do art. 55 da Constituição Federal de 1988, para além de reprimir exclusivamente condutas parlamentares singulares, irradia seus preceitos com ainda mais vigor na ordem jurídica, no sentido de se coadunar com o disposto no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal (soberania popular), que por sua vez é o fundamento do próprio Estado Democrático de Direito. 42 Entender diversamente, pensamos, no atual estágio do desenvolvimento jurídico, seria sedimentar a supremacia do mero formalismo sobre o conteúdo materialmente constitucional das normas que consubstanciam a representatividade e os direitos políticos fundamentais e, por conseguinte, escamotear a soberania popular como axioma primeiro de nosso ordenamento jurídico. Em suma, não se está a propor um viés quixotesco da realidade jurídicopolítica, uma ética inalcançável na real politik. Pelo contrário, pugna-se com a presente teoria o mínimo de ética possível na seara do Direito Constitucional, cuja expressão mais idônea é inequivocamente o decoro parlamentar. Neste sentido, o § 1º do art. 55 da Constituição Federal é o ponto de fusão entre as esferas do Direito e da Política, devendo assim prevalecer a interpretação que mais atenda à pacificação social e ao atendimento do bem comum. De modo algum queremos propor algo surreal, no sentido de pregar uma tese totalmente inviável e ilógica – tal como pode se utilizar de paralelo a bela história de Dom Quixote e sua batalha contra os moinhos de vento80—. Não é isso. Cremos verdadeiramente que a teoria da inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar é viável e não mera elucubração jurídica. Portanto, entendemos necessária uma reflexão acerca dessa nova modalidade de inconstitucionalidade que, talvez, seja a mais nociva de todas ao meio social. Assim, em sendo apurada conduta (s) de parlamentar (es) que repercuta (m) na esfera judicial e, vislumbrando-se a relevância desta (s) no processo de formação da norma (Emenda Constitucional, Lei Ordinária, Lei Complementar etc.), podem os legitimados à Ação Direta de Inconstitucionalidade provocar a atuação do Supremo Tribunal Federal para que este decida acerca da ofensa ou não ao § 1º do art. 55 da Constituição Federal, privilegiando o devido processo legal em sua acepção substantiva na seara processual constitucional, bem como os postulados da soberania popular, da representatividade e dos direitos políticos fundamentais. 80 CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de La Mancha. EDICIÓN DEL IV CENTENÁRIO. REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. ASOCIACIÓN DE ACADEMIAS DE LENGUA ESPAÑOLA. Cap. VIII (Del buen sucesso que el valeroso don Quijote tuvo em la espantable y jamás imaginada aventura de los molinos de viento, con otros sucesos dignos de felice recordación) p. 75/76. 43 Essa nova perspectiva de inconstitucionalidade gera para a sociedade dois benefícios incontestáveis: “prevenção” à malversação das prerrogativas parlamentares e “punição” à subtração do mandato representativo à soberania popular. A soberania popular, por conseguinte, de conteúdo pluralista e democrático, só pode ser efetivamente exercitada no âmbito da probidade, com vistas ao bem estar comum. 44 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. - ÁVILA, Thiago André Pierobom de. PROVAS ILÍCITAS E PROPORCIONALIDADE. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. - BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 13º Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. - BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18° Edição. São Paulo: Malheiros, 2006. - CAPEZ, Fernando. Vol. 3. Curso de Direito Penal, Parte Especial. 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