- Escola Secundária de Peniche

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- Escola Secundária de Peniche
Nº5 | 2015
PAIDEIA. Revista da Escola Secundária de Peniche
N.º 5/2015
Ficha Técnica:
Editor: Escola Secundária de Peniche
Diretor: José António Diniz
Coordenador: Miguel Dias Santos
Capa: Joana Sebastião
Impressão: GTO 2000, Lda - Bombarral
Depósito Legal: 311254/10
ISSN: 1647-6042
Exemplares: 300
Periodicidade: Anual
Notas: Foi respeitada a grafia original dos textos; as afirmações e opiniões são da exclusiva
responsabilidade dos seus autores.
Paideia, revista da escola secundária de
Peniche
N.º 5/2015
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
APRESENTAÇÃO
«Quando a terra galga o mar». Foi com esta frase algo impressionista mas
eloquente que Mariano Calado traçou, com cinzel especial para esta revista,
uma síntese que recobre o essencial da história de Peniche. Uma história que
tem como marco identitário a relação dos seus habitantes com o mar. O mar
que durante séculos lhes aguçou o engenho da sobrevivência – as artes da pesca – foi o mesmo mar que lhe determinou os traços do temperamento, da sua
psicologia colectiva; foi o mesmo mar que moldou a sua cultura e as suas crenças. São os ecos desses traços identitários, tecidos sob o jugo de Cronos, que
perscrutamos neste nú­mero da PAIDEIA, em textos que espreitam, dentro do
seu eclectismo, o simbó­lico e o material com que se matizam as singularidades
desse enlace. Percurso individual e colectivo, aqui o revivemos em estudos sobre as pescas e a conser­va tradicional, os movimentos sociais e na recolha de
memórias. A construção da memória, entendida como recusa de esquecimento,
convoca o colectivo para as suas responsabilidades sobre o destino comum. É
por isso uma construção social comprometida com as realizações do futuro.
Parte dessa construção está agora nas mãos da associação Patrimonium, sob
a orientação de antigos alunos desta escola, a quem agradecemos a preciosa
colaboração neste número dedicado às pescas. A sua ressurreição, em defesa
do património de Peniche, é o reflexo da vitalidade da sociedade civil e do seu
esforço para participar activamente na (re)construção da memória colectiva,
apresentando alternativas para uma nova antropologia cultural e, porque não,
para um economia marítima sustentável.
Um agradecimento muito especial a todos os colaboradores da revista,
deste número e dos pretéritos, e em especial ao colega e amigo João Luís Moreira, para quem o ensino apaixonado da língua portuguesa não dispensa a construção crítica – a sua em primeiro lugar - de textos e de escritores que servem
as suas divagações estéticas e o seu pedagogismo omnipresente.
MIGUEL DIAS SANTOS
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QUANDO A TERRA GALGA O MAR…
Mariano Calado
É assim: foi o mar que cimentou o nascer de Peniche.
Mas… ilha que era, dificilmente a terra vivia e progredia, prestando sempre, embora, a necessária assistência a quem, navegando, por aqui passava, procurando provavelmente poder fazer aguada, ou descansar, preparando-se para,
no caminho seguido, evitar maus tempos e procurar o abrigo das amplas enseadas que, a norte ou a sul, fosse encontrando. E, pobre embora de recursos e perante a dificuldade em consegui-los, cedo a vontade dos homens foi superando
a situação de pobres lusitanos perseguidos pelos exércitos dominadores de Júlio César. Mas bastou ter chegado o momento do abandono da atitude guerreira
dos romanos que aqui haviam chegado para que, entretanto, se transformasse
o clima de hostilidade em ambiente de convivência e de trabalho, em busca da
sobrevivência. E da presença e vivência com os agora pacíficos romanos, terão
os lusitanos, senão todos, criado vida na pequena ilha, onde muitos, ou não, terão ficado depois. E nasceu a obra a que o mar, sempre presente, deu vida: uma
pequena ilha postada em frente do boqueirão do rio que seria, depois, chamado de S. Domingos e, entretanto, feita encontro de diferentes culturas. E surgiu
desenvolvimento na terra rodeada de mar: arquitectam-se fornos, aproveitase o barro e criam-se, com ele, perfeitos trabalhos de olaria, particularmente
aqueles que se dirigiam às necessidades do mar. O porto ganha movimento.
E os tempos foram rolando…
A ilha é, então, palco de aportamento de uma verdadeira esquadra
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de cerca de duzentas embarcações transportando cruzados que se dirigiam à
Terra Santa, mas de quem o rei português, entretanto, consegue o apoio para
a conquista, com que há muito sonhara, da sarracena Lisboa. Por Phoenix foi
identificada pelo cronista (Ranulfo de Granville) que descreveu o empreendimento, corria o ano de 1147. E escreveu esse mesmo cronista que a ilha ficava
distante do continente «cerca de oitocentos passos», distância que calculamos
entre mil e quinhentos a mil e oitocentos metros, ou seja, mais ou menos até às
imediações de Porto de Lobos. Não seria grande tal distância, mas suficiente
para dificultar o progredir da povoação que, assim afastada do continente, vivia
e dificilmente sobrevivia na antiga ilha… O curioso, porém, ou perturbador, é o
testemunho do dito cronista que, não falando em gente, diz, textualmente, que
na ilha abundavam os veados e a planta do alcaçuz…
Mas, pelos meados do século XV, o rei D. Duarte alerta para os perigos
que representava a existência das águas que ainda dominavam o canal existente entre a Consolação e o Baleal, dado que já vários navios ali se tinham perdido
nos baixios e, por isso, ordenando que, dali em diante, só poderiam aproximarse do porto de Atouguia os navios que fossem acompanhados de experimentado piloto que, residindo habitualmente na região, fosse para tal aportamento
nomeado.
Entretanto, se, em frente, cingido às terras continentais, o porto
de Atouguia operava em pleno desenvolvimento (transporte de diversas e diferentes mercadorias, como metais, mantimentos, panos estrangeiros, armas,
madeiras, peças de mobiliário, vinhos, relevante actividade de pesca, ou caça,
de baleias…), e desenvolvia também um excelente trabalho de exploração de
sal, chegando a ser considerado como «um dos portos do litoral português mais
importantes na vida económica dos primeiros séculos da Nacionalidade», em
Peniche não se passava de uma luta inglória com o mar a dificultar-lhe o desenvolvimento, dada a sua insularidade e, para a época, palco de notórias dificuldades.
Até que…
Pelos finais do século XV dá-se por relativamente concluído (ou melhor: a
caminho da conclusão, que ainda levaria bastos anos…) o assoreamento que
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ligaria Peniche às terras de Atouguia: a terra ia galgando o mar, lenta mas progressivamente. E de tal maneira foi importante e decisivo esse acontecimento,
permitindo uma fácil, ainda que demorada travessia do espaço entre os dois
povoados que, pelo século XVI afora, já Peniche contava com uma densidade
populacional bastante maior que a de Atouguia (isto é: em Peniche, perto de
oitocentas pessoas; na Atouguia, perto de quinhentas) e, para mais, no dizer de
uma exposição dirigida por D. Afonso de Ataíde ao rei D. Manuel, em Peniche
«a gemte eh muita, e crece cada dia, e há as vezes aly de fora mil, e quinhemtas, e
duas mil pessoas, asy dos da terra aredor, e de lomge, como do Mar».
E a existência do istmo, ainda que débil, foi decisivo no desenvolvimento penicheiro, que a existência e exploração de portos naturais para a efectivação dos
trabalhos marítimos, a efectivação da construção naval e, de forma natural, a facilidade de deslocação e as permutas comerciais com o continente, passaram a
permitir um trabalho até ali praticamente proibido. E não foi em vão que, a par
com trocas de sal, cevada, trigo e vinho, se foram superiorizando as vendas de
pescado apanhado por barcos penicheiros, chegando a ocupar um porventura
inesperado patamar negocial com vendas de peixe, procurado, desde logo, por
muitos recoveiros, ou almocreves, não só de toda a região do Oeste como de
longínquas regiões, como Elvas, Olivença, Castelo Branco, Aveiro e Porto a até
da ainda mais remota paragem de Castela.
Quando a terra galga o mar…
E, por ter galgado o mar, com o assoreamento acontecido, Peniche chegou
a contar, em meados do século passado, com «900 embarcações, sendo perto
de 600 da pesca local e as restantes da pesca costeira (das quais aproximadamente 60 traineiras, 20 cercadores e 70 de pesca industrial não associada)»
e, quanto ao número de pescadores a trabalhar pela mesma época, contava a
antiga Vila com «cerca de 3.000 homens, dos quais um terço em traineiras e
os restantes na pesca local, artesanal e industrial não associada». Mas, ganho o
mar pela terra, e, naturalmente, provocadas pela constante e reactivada ocupação da pesca (sempre o mar…), foram surgindo ainda, vigorosas e rendosas ao
tempo, novas actividades, como várias fábricas de conserva de peixe, trabalhos
de congelação, lavagem e salga do peixe, conservação e tratamento de marisco, caixotaria, canastraria, conserto de redes, utensilagem náutica, serralharia,
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construção e electrificação naval e ainda recolha de limos para preparação de
adubos agrícolas e farinhas alimentícias. De resto, de lembrar que, para o desenvolver destas novas actividades, existiam ainda, pela mesma altura, «cerca
de 30 barcos devidamente aparelhados, cada um deles com uma companha de
6 homens, em média».
Quando a terra galga o mar…
Todavia, chegado é, inesperadamente (e, queira-o Deus, transitoriamente),
um momento em que o mar, certamente com ciúmes da terra, se encontra hoje
como que em tempo de triste neblina, esquecendo as centenas e centenas de
embarcações que, operárias das suas entranhas e manobradas por intrépidos
lavradores das ondas, deram vida e progresso a Peniche, deram vida e progresso à região, deram vida e progresso ao País, apagando ou diminuindo a sua
imagem, esquecendo-as, abandonando-as, relegando-as, porventura a troco de
prometedoras ilusões, para um limbo inconsciente de não utilidade…
E ouvem-se os astros perguntando, intrigados: até quando o mar se negará
à terra?
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ARTIGOS
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
O MAR E O ENSINO DAS CIÊNCIAS - atividades
laboratoriais, experimentais e de campo, NO ENSINO
SECUNDÁRIO – alguns exemplos
Ângela Cunha1 e alunos2
Baía de Peniche (Gâmboa – Baleal). Foto Rita Sarreira (março 2014)
Seria inevitável que na Escola Secundária de Peniche, pelo enquadramento geográfico e geológico, o ensino das ciências privilegiasse toda a zona
costeira e o mar.
Segundo Duarte (2009), as falésias calcárias contam uma história contínua com mais de 200 milhões de anos. Os afloramentos e paisagens de Peniche
constituem importantes georrecursos não renováveis e designam-se locais de
interesse geológico (LIGs) ou geossítios, tais como:
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• Horst do arquipélago das Berlengas: planalto de granito rosa da Berlenga
e os picos metamórficos dos Farilhões;
Professora da Escola Secundária de Peniche, Departamento de Matemática e Ciências Experimentais.
Catarina Baptista, Daniel Lourenço, Francisco Romão, Maria João Serrador, Maria Macatrão, Mariana Nunes, Mariana
Vala, Patrícia Bandarrinha, Rita Curopos, Rita Sarreira e Tatiana Vitorino.
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http://geossitios.progeo.pt
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• Campo de Lapiaz do Cabo Carvoeiro-Remédios;
• Registo sedimentar da Ponta do Trovão (183 milhões de anos);
• Erupção vulcânica da Papoa.
A península de Peniche integra-se na Orla Meso-Cenozóica Ocidental de
Portugal e assenta sobre rochas carbonatadas do Jurássico Inferior3, que correspondem ao testemunho da fase inicial de enchimento da Bacia Lusitânica. É
de destacar ainda, na região, a existência de fragmentos do maciço antigo que
constituem o arquipélago das Berlengas, localizados a ocidente da península
de Peniche. Neste arquipélago afloram, principalmente, rochas graníticas deformadas, de cor vermelha ou esbranquiçada, com granularidade média e com
datação de cerca de 280 milhões de anos. Ainda mais antigas são as rochas metamórficas (micaxistos e gnaisses) que constituem os Farilhões e as Forcadas,
a NW da ilha.
Ao longo de toda a costa as evidências geológicas revestem-se de um
enorme valor científico, educativo e cultural. Estas, revelam-se nas condições
excecionais de exposição de afloramentos e fazem com que Peniche seja um
importante laboratório natural para atividades de divulgação científica e ideal
para a aprendizagem in loco. (Duarte, 2009).
Numa abordagem prática, relacionando o mar, a biologia e a geologia,
aqui estamos nós, alunos e professora, divulgando o contributo, deste laboratório natural - Peniche, no ensino e aprendizagem das ciências.
A aprendizagem das ciências4 envolve a aquisição de conhecimentos de
acordo com os conteúdos programáticos, a utilização/aplicação de metodologias de trabalho diversas e a realização/divulgação de trabalhos.
A relevância do trabalho prático é expressamente reconhecida na atual revisão curricular do ensino secundário, onde se destacam os princípios da
articulação das aprendizagens teórico-práticas e da interação da componente
experimental com a componente expositiva (DGIDC, 2003, p.15-16).
Jurássico inferior- Na escala do tempo geológico corresponde à Era Mesozóica do Éon Fanerozóico compreendido entre 199 milhões e 600 mil e 175 milhões e 600 mil anos.
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De acordo com os conteúdos das disciplinas de “ciências” e das aulas práticas realizadas e/ou possíveis de
realizar.
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A abordagem do trabalho prático inclui o trabalho laboratorial e trabalho de campo. Ambos são realizados pelos alunos, implicam o recurso a procedimentos científicos com características diferentes (observação, formulação
de hipóteses, realização de experiências, técnicas manipulativas, elaboração de
conclusões, etc.), requerem a utilização de materiais específicos, semelhantes
aos usados pelos cientistas, ainda que por vezes simplificados para facilitar a
sua utilização; decorrem com frequência em espaços diferentes da aula (laboratório, campo).
As atividades laboratoriais são executadas através de um procedimento
laboratorial, cedido pelo professor, sugerido pelo manual escolar ou construído
pelos grupos de trabalho, como resposta ao problema que se pretende investigar.
A aprendizagem da metodologia científica requer a realização de investigações (Hodson, 1990). Estas são atividades de resolução de problemas que
exigem que seja o aluno a descobrir uma forma de resolver o problema que lhe
foi colocado ou que ele próprio gerou. A capacidade de utilizar metodologia
científica, envolve uma grande diversidade de conhecimentos procedimentais.
De acordo com De Pro (1998), estes incluem, as capacidades de investigação
que têm a ver com aspetos como definição do problema, formulação de hipóteses, planificação de procedimentos, observação, medição, classificação, domínio de técnicas de investigação, tratamento e análise de dados e elaboração das
conclusões.
O trabalho de campo é realizado ao ar livre onde, geralmente, os acontecimentos ocorrem naturalmente. As fotos que acompanham este artigo, da
autoria dos alunos, são disso prova.
O Trabalho de Grupo exige regras de funcionamento na planificação do
trabalho, com distribuição de tarefas e seu cumprimento, na execução das tarefas, no respeito pela opinião dos outros, (…). Propicia benefícios individuais
diversos: sociais, académicos e psicológicos e desvantagens, tais como o surgimento de conflitos que, se devidamente geridos, são condição do desenvolvimento de um trabalho produtivo e de qualidade.
O sucesso do trabalho de Grupo depende dos alunos mas também do
professor. O professor é o supervisor, isto é, observa, apoia na realização das
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tarefas, nas interações no seio do grupo (estimula o desenvolvimento de atitudes, tais como criatividade, curiosidade, reflexão crítica), ensina competências
sociais, incentiva o empenho individual dos alunos nas tarefas de grupo.
Atualmente, a disciplina de Biologia e Geologia (10.ºAno e 11.º Ano)
possui um bloco letivo semanal de 135 minutos, que permite a realização de
trabalhos prático-laboratoriais, e no 12.º Ano, a disciplina de Biologia possui
um bloco de 90 minutos.
Os conteúdos-alvo incidem nos subsistemas terrestres: Hidrosfera –
MAR, Geosfera e Biosfera. Para a sua produção optou-se pela formação de dois
grupos: um, constituído por alunos do 12.ºCT1 que trabalhou o conteúdo, A
Geologia e o MAR. Este, engloba a génese das rochas sedimentares, ambiente
sedimentar e ocupação antrópica da zona costeira. O outro grupo, constituído
por alunos do 12.º CT2, trabalhou o conteúdo, A Biologia e o Mar, que privilegia
o estudo do ecossistema marinho e preservação/recuperação do património
natural.
• O Mar e a Geologia
Os conteúdos da geologia na disciplina de Biologia e Geologia no 10.º
e 11.º Anos incluem a génese das rochas sedimentares (10.ºAno), o ambiente
sedimentar e a ocupação antrópica (11.º Ano).
Na península de Peniche, segundo Romão, J.M. (2009), afloram sucessões carbonatadas do Jurássico inferior a médio sobre a qual assentam depósitos aluviares, areias de praia e dunas. O registo sedimentar é caracterizado por
conjuntos de sucessões de estratos com composição, forma, estrutura e disposição diferenciadas.
No âmbito da génese das rochas sedimentares, os alunos de 10.º Ano
realizam trabalho de Campo, visitando a praia do Portinho D’Areia Norte e/
ou a praia do Abalo. Estas, localizadas na parte norte da península de Peniche caracterizam-se por arribas, fig. 1, organizadas em estratos sedimentares
sobrepostos. São constituídas por alternâncias de calcários intercalados com
margas ricas em matéria orgânica (coloração mais escura). Os estratos apresentam abundante conteúdo fossilífero como exemplos, as amonites e as belemenites, fig.3 e 4.
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Na produção de trabalhos no âmbito desta saída de campo os alunos
podem aplicar os princípios de estratigrafia, construir uma coluna estratigráfica, localizar fósseis e verificar a existência de diferentes características que
distinguem os estratos – aprendizagem in loco. Podem ainda recolher areias de
diferentes proveniências e observá-las à lupa binocular, fig.2.
Fig. 1 - Estratos numa arriba. Portinho D’Areia
Foto de Mariana Nunes (2013)
Fig. 3 - Fóssil de amonite5 no estrato.
Fig.2 – Areias observadas à lupa binocular.
Norte - Peniche. Foto de Rita Sarreira (2014)
Fig.4- Fóssil de belemenite6 no estrato.
Fotos de Catarina Baptista (2013)
Amonites, grupo extinto de moluscos cefalópodes, animais marinhos, extintos no final do Cretácico, há 65 milhões de anos (Ma).
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Belemenites, animais marinhos muito semelhantes às lulas atuais. Viveram no período Cretácico e foram extintas à 65 Ma.
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A recolha de fotos, pelos alunos, nas saídas de campo, revelam evidências sobre a génese das rochas sedimentares : meteorização7 → erosão8 →
transporte9 → sedimentação10 → diagénese11, como ilustra a sequência de
imagens da fig.5.
Fig. 5 - Sequência de etapas que ilustram a génese das rochas sedimentares (meteorização,
erosão, transporte, sedimentação e diagénese). Composição fotográfica de Catarina Baptista
(2014)
A erupção vulcânica da Papoa enquadra-se no conteúdo programático,
génese das rochas magmáticas e/ou ambiente magmático (10º Ano e/ou no
11º Ano).
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Alterações físicas e químicas das rochas
Remoção de blocos após meteorização
Movimento de “calhaus”/sedimentos pela água, vento, …
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Acumulação de sedimentos numa bacia de sedimentação.
Compactação e cimentação de sedimentos, formando rochas consolidadas.
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A brecha vulcânica12, fig.6, localiza-se no istmo13 que efetua a ligação da
Papoa com a plafaforma de abrasão marinha14, fig.7, da península de Peniche. As
brechas vulcânicas aí existentes são superficiais, caracterizando-se por conter,
segundo Romão (2009), fragmentos de rochas da parede de uma chaminé vulcânica.
Fig.6 – Brecha Vulcânica – Papoa.
Fig. 7 – Plataforma de abrasão – Peniche
Fotos de Rita Sarreira (2014)
Relativamente ao conteúdo programático ocupação antrópica e ordenamento do território, os alunos efetuam uma Saída de Campo ao Bairro do Visconde – Peniche. Fig.8 e 9.
O Bairro do Visconde é uma zona habitacional que se localiza na zona litoral sul de Peniche. É uma zona caracterizada pelo grande risco geológico, fig.8
e 9, queda de blocos da arriba pois encontra-se no topo e limite de arribas calcárias. A meteorização química está presente na drenagem das águas pluviais e
a meteorização mecânica, bem evidente na base das arribas, é consequência da
ação do mar (fig.8).
Brecha vulcânica corresponde a rochas clásticas cujos clastos/sedimentos (de angulosos a arredondados) são
maiores de 2 mm.
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Um istmo é uma porção de terra, estreita, cercado por água dos dois lados e que conecta com duas grandes
extensões de terra.
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Plataforma de abrasão marinha, faixa entre o mar e a arriba que fica descoberto na maré baixa.
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Fig. 8-Bairro do Visconde, meteorização mecânica. Fig. 9-Bairro do Visconde. Queda de blocos.
Erosão – muro de suporte artificial.
Fotos Rita Sarreira (2014)
A ocupação antrópica corresponde à ocupação de zonas terrestres pelo
Homem e a decorrente exploração, segundo as necessidades e as atividades
humanas, dos recursos naturais.
O ordenamento do território é o conjunto de processos integrados de organização do espaço biofísico, tendo como objetivo a sua ocupação, utilização e
transformação de acordo com as capacidades do espaço.
As arribas do Bairro do Visconde, são constituídas por um material rochoso consolidado, com uma inclinação acentuada e com pouca ou nenhuma
cobertura vegetal.Com a saída de campo ao Bairro do Visconde, os alunos podem identificar e registar, in loco, os riscos geológicos do bairro e reconhecer
as contribuições da geologia nas áreas da prevenção de riscos, ordenamento do
território, gestão de recursos ambientais e educação ambiental.
Nos trabalhos que produzem, os alunos reconhecem, rapidamente, a
necessidade de estabilizar as arribas e, pesquisando, descobrem o programa
FINISTERRA (Projeto de Intervenção na Orla Costeira Continental) que tem
como objetivo prioritário imprimir um novo impulso à execução das medidas
propostas e contidas nos POOC (Planos de Ordenamento da Orla Costeira), com
intuito de requalificar e reordenar o litoral português, tornando as arribas mais
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perigosas em arribas mais estáveis.
Outras atividades:
- Visita ao Campo de Lapiaz - Cabo Carvoeiro – Remédios, fig.10.
Campo de Lapiaz caracteriza-se por um conjunto de geoformas típicas
esculpidas numa plataforma carbonatada. Em Peniche, estende-se ao longo da
linha de costa desde o mirador de Frei João até ao Forte de Peniche. (Romão,
2009). Exemplo de paisagem cársica, os lapiaz resultam da ação combinada
de fenómenos de carsificação15 e erosão costeira imprimindo na paisagem uma
imagem singular no contexto da linha de costa portuguesa (Duarte, 2009).
Fig.10 – campo de Lapiaz – Peniche, Remédios. Foto de Rita Sarreira (2014)
- Observação à Lupa binocular de areias, fig.2 – estudo da granulometria/dimensão e calibragem/grau de arredondamento. O estudo destas características nas areias permite conhecer a sua proveniência e inferir se tiveram
ou não um longo “transporte” – génese das rochas sedimentares.
- Análise de parâmetros físicos [transparência das águas, temperatura
da água do mar e das poças de maré, velocidade relativa da corrente (poderá
ser avaliada pela dimensão dos calhaus que consegue transportar, movimento
da areia – quanto maior a energia de transporte maior será dimensão dos calhaus transportados)];
A carsificação é o processo do desenvolvimento da morfologia cársica, em rochas calcárias, que resulta da dissolução e da infiltração subterrânea de água.
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- Medição da extensão da praia durante a maré cheia/preia-mar e a maré
vazia/baixa-mar;
- Análise de parâmetros químicos (determinação do pH, cálculo do doseamento de oxigénio, salinidade, … );
- Importância das dunas na preservação do património natural. Fig.11.
No contexto da geologia, no 10.º Ano, as dunas surgem como um exemplo
de identificação de uma situação-problema que possibilita aos alunos problematizar e formular hipóteses, testar e validar ideias – conteúdo procedimental
– e, no domínio atitudinal, aceitar e discutir diferentes pontos de vista. Podem
também ser alvo de estudo no 12.º Ano como se verá mais à frente.
Fig 11 - Duna da Praia de Peniche de Cima. Foto de Rita Sarreira (2014)
O Inverno de 2014 causou importantes danos nas dunas como comprova a fig.11 relembrando o Homem de que a intervenção na dinâmica do litoral
tem de ser feita de forma equilibrada, ou seja, respeitando a dinâmica do litoral.
• O Mar e a Biologia
Na disciplina de Biologia e Geologia, 10.º Ano, no capítulo 1, Diversidade na Biosfera, no âmbito do conteúdo Diversidade, Organização, Extinção
e Conservação, os estudos em ambientes naturais – conteúdo procedimental
– concretizado nas Saídas de Campo através do registo sistemático de dados
alia-se ao conteúdo conceptual, com o reconhecimento das funções dos diferentes constituintes do ecossistema e ao conteúdo atitudinal pela valorização
do trabalho de grupo. Na disciplina de Biologia, 12.º Ano, na Unidade Preservar
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e Recuperar o meio ambiente, analisam-se situações-problema que podem pôr
em risco os ecossistemas e a sustentabilidade.
No estudo dos ecossistemas enfatiza-se o estudo de um ecossistema marinho, fig.12 e 13 e do ecossistema dunar, fig.11,14 e 15.
Fig.12 – Seres vivos marinhos, anémonas, …
Fig.13 – ouriços-do-mar, bivalves, …
Fotos de Tatiana Vitorino (2013)
Um ecossistema é um sistema dinâmico, onde estão em permanente ligação sistémica os fatores abióticos (ambiente ou meio físico-químico) e os fatores bióticos (organismos e as suas interações).
Os principais fatores abióticos num ecossistema marinho são: a luz, a
temperatura, a água e a salinidade. Estes fatores influenciam a distribuição e
a quantidade dos organismos no ecossistema e, quando um determinado fator
impede o desenvolvimento de uma espécie, este passa a ser um fator limitante.
Os fatores bióticos correspondem às interações que se estabelecem entre os
seres vivos. As interações podem ser: intraespecíficas, se os organismos envolvidos forem da mesma espécie, ou interespecíficas, se ocorrerem entre seres
vivos de espécies diferentes.
No contexto da biologia, a diversidade do ecossistema dunar, no domínio
da flora, possibilita a utilização de uma aplicação leafsnap, que permite a respetiva identificação taxonómica, in loco.
As dunas formadas a partir de areias secas (geralmente quartzo) transportadas pelo vento depositam-se de acordo com o sentido preferencial do
mesmo. À medida que estas se vão acumulando, a vegetação natural instala-se,
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favorecendo a fixação da duna e a acumulação de mais areia. A importância
deste ecossistema em Peniche é indiscutível e contribui para a estabilização
da linha de costa, impedindo o avanço do mar, fig.11,14 e 15. A importância de
preservar e recuperar este ecossistema está reconhecida através da aplicação
de medidas regulamentadas no Diário da República16.
A pesquisa inerente aos trabalhos que se realizam na visita às dunas permite aos alunos selecionar, organizar e tratar informação, como a registada no
Quadro I. Concomitantemente, desenvolvem atitudes e valores – importância
da preservação das dunas – e tomam conhecimento de iniciativas locais relacionadas com a preservação dunar, notícia 1.
Fig. 14 – Dunas – Peniche.
Fig. 15 – Dunas – Peniche. Fotos Ângela Cunha (2014)
Quadro I – Classificação das dunas
Nome da zona
Praia
(batida pelas ondas)
Exemplos da flora
microscópica
Microalgas
Praia (onde as ondas não
chegam)
de pequena dimensão
Duna secundária ou móvel
arbustiva e subarbustiva
Duna primária ou inicial
16
Dimensão da vegetação
Duna fixa ou ocupada
http://www.legislacão.org/tag/dunas
24
espessa
de grande dimensão
Cardo marítimo e Feno das
areias
Estorno, Cordeirinho das
praias
Alfinete das areias, Raízdivina
Camarinha
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Notícia 1
Câmara Municipal de Peniche lançou operação de proteção das
dunas (28 de abril de 2005)
“Construção do Sistema de Estabilização do Cordão Dunar Norte” é a
operação ambiental que está em curso na costa de Peniche, numa iniciativa
coordenada pelo Departamento de Energia e Ambiente da Câmara Municipal
de Peniche. Os trabalhos desenvolvidos pelo município pretendem minimizar a erosão costeira e ocorrem numa extensão de costa de cerca de três quilómetros, mais concretamente entre a Praia de Peniche de Cima e a Praia do
Baleal–Campismo. (…).
As causas da erosão das dunas no concelho de Peniche passam pelo
efeito conjugado da ação das marés, do vento e do caminhar sobre a vegetação, provocando recuos da base e descontinuidades nos taludes da duna primária, com a criação de aberturas de grande extensão, bem como a destruição do coberto vegetal que suporta a duna secundária. Os trabalhos em curso
nesta primeira fase do projeto, entre a Praia de Peniche de Cima e a Praia da
Cova de Alfarroba, numa extensão de 800 metros, consistem na construção
de um sistema de retenção dunar através da colocação de barreiras de canas
nas dunas primária e secundária, em fileiras paralelas à linha de costa. (…)
Está também prevista a construção de três passadiços sobrelevados
em madeira tratada para facilitar o acesso às praias pelos banhistas e para
proteção do sistema de retenção dunar. Em breve será construído o passadiço na zona da Praia de Peniche de Cima. Este projeto contempla, também,
ao longo do cordão dunar, a promoção do crescimento de espécies vegetais
típicas dos sistemas dunares, tais como o estorno, a arméria e a sabina-dapraia, entre outras, para consolidação das dunas. Segundo o Engº Nuno Carvalho, responsável da Divisão de Ambiente e Serviços Urbanos da Câmara
Municipal de Peniche, “através da promoção da retenção da areia nas dunas primária e secundária e do crescimento espécies vegetais próprias deste
ecossistema, estão a ser dados passos fundamentais para a estabilização e
preservação das dunas da costa norte de Peniche, minimizando-se os efeitos
da erosão costeira”.
http://www.cm-peniche.pt/News/
25
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Outras atividades:
- Observação ao microscópio de seres vivos presentes na água do mar
(colhidas em locais diferentes) – atividade laboratorial e/ou observação de
preparações definitivas de seres vivos marinhos (diatomáceas, plâncton, …);
- Estudo da comunidade planctónica. Usa-se uma “rede de plâncton” e
movimenta-se lentamente na água durante 2 a 4 minutos. Coloca-se a amostra
colhida em frascos etiquetados, fixando-a com formol. Repete-se a operação em
diferentes locais. No laboratório, observam-se ao microscópio.
A Terra é hoje um planeta bem diferente de que era há milhares de milhões de anos e as rochas são o arquivo da sua história. Assistimos a uma degradação do ambiente e a sua contaminação põe em causa o futuro do planeta
e até o da humanidade. É muito importante refletir e aplicar o conceito sustentabilidade17 para que o património natural seja preservado.
O arquipélago das Berlengas (fig.15 e 16) é alvo do interesse das ciências, no que se refere à proteção e preservação do património natural. O mar
do arquipélago alberga uma fauna marinha riquíssima, ímpar na costa portuguesa, sendo por isso um dos melhores locais para a prática de atividades subaquáticas. Também a flora é de extrema relevância e diversidade, albergando
centenas de espécies botânicas na área.
Fig.16 – Berlengas. Gaivota Larus michahellis
Fig.17- Berlengas. Fotos Rita Sarreira
A sustentabilidade está diretamente relacionada ao desenvolvimento económico e material
sem agredir o meio ambiente, usando os recursos naturais de forma inteligente para que eles
se mantenham no futuro.
17
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
A Reserva Natural das Berlengas é considerada Reserva Mundial da Biosfera pela UNESCO desde 30 de Junho de 2011, pelo que a proteção da biodiversidade e assunção de medidas que visem a reconciliação da conservação
da biodiversidade com o seu uso sustentável é fundamental. Também a sua
integração na Rede Natura 2000 (rede de áreas designadas que visam a conservação dos habitats e de espécies selvagens raras, ameaçadas ou vulneráveis
na União Europeia) nas suas duas diretivas: diretiva Aves (relativa à conservação das aves selvagens) e diretiva Habitats (relativa à proteção dos habitats,
da fauna e da flora), veio auxiliar na conservação e na divulgação para a necessidade de valorizar e proteger esta área. Para além disso, o arquipélago integra
também a Rede de Reservas Biogenéticas do Conselho da Europa.
Alguns exemplos de preservação in loco visam a preservação do património local, tais como a sinalética de encaminhamento dos percursos para uma
mais eficaz preservação da fauna e da flora e a proteção dos locais de nidificação das aves locais (falcão peregrino, corvo marinho de crista, airo, pardela de
bico amarelo, etc.).
No âmbito da Biologia, no 12.º ano, no capítulo A Biologia e os Desafios
da Atualidade, no ponto 2, Preservar e Recuperar o Meio Ambiente, os alunos
podem explorar o conteúdo A Proteção da Biodiversidade e conhecer projetos
relacionados com a monitorização das gaivotas.
Um projeto a conhecer relaciona-se com a monitorização das gaivotas
em Peniche. O controlo da população de gaivotas em Peniche foi, durante alguns
anos e até 2012/2013, assegurado pela autarquia. O Instituto da Conservação
da Natureza e das Florestas (ICNF) é atualmente responsável pelo controlo da
população de gaivotas na ilha das Berlengas.
De acordo com informações prestadas pela Dra. Maria de Jesus Fernandes, diretora do Departamento de Conservação da Natureza e das Florestas de
Lisboa e Vale do Tejo o programa de controlo anual do crescimento populacional da colónia de gaivotas-de-patas-amarelas, Larus michahellis (fig.16 e 17),
iniciou-se em 1999 na ilha das Berlengas, tendo sido efetuadas quinze campanhas de controlo de natalidade até ao momento (fevereiro de 2014). O processo
utilizado consiste na destruição dos ovos. Na cidade de Peniche, a emulsão em
óleo dos ovos de gaivota cria uma película que impede o embrião de respirar
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
causando-lhe a morte, sem que seja necessário partir os ovos. Contudo, este
processo é mais moroso e só pode ser aplicado em locais com acesso facilitado,
bastando uma passagem por cada ninho pois as aves adultas continuam a chocar os ovos, não fazendo, na maioria dos casos, novas posturas.
Na ilha das Berlengas, o número de ovos destruídos varia entre os 75
000 e os 55 000, sensivelmente, tendo a população estagnado nos 20 000 indivíduos (valor aproximado), encontrando-se atualmente abaixo deste valor
(próximo dos 15 000).
Por questões de eficácia custo/resultado, a campanha de destruição de
ovos de gaivota é concentrada em três semanas, com intervalos de quinze dias
entre si. Esta metodologia tem em conta a capacidade reprodutora da espécie, uma vez que as gaivotas têm a capacidade de repor continuamente ovos
caso a ninhada ainda não esteja completa ou caso os ovos sejam destruídos na
primeira ou segunda semanas de incubação. A campanha realiza-se entre 15
de maio e 30 de junho (sensivelmente), sendo destruídos todos os ovos, excetuando os das áreas de controlo previamente definidas e que permitem avaliar
o sucesso do programa. A monitorização dos ovos de gaivota contribui para a
preservação de espécies como o sardão e outras que lhes servem de alimento.
Estas são algumas das atividades e projetos que o laboratório natural
– Peniche - permite quer através da recolha de evidências, quer pelo estudo e
observação in loco.
No início deste ano letivo as turmas de Biologia de 12.º Ano, coordenadas pela professora Ângela Cunha, reuniram documentos fotográficos recolhidos ao longo do percurso na escola secundária18, nas disciplinas de Biologia e
Geologia (10.º e 11.º Anos) e de Biologia (12.º Ano) e organizaram uma exposição cujo cartaz de divulgação consta da fig. 17. Os documentos expostos foram
organizados num portefólio disponibilizado na biblioteca escolar.
18
Anos letivos: 2011/2012, 2012/2013 e primeiro período de 2013/2014.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Fig.17- Foto do Cartaz da Exposição. Rita Sarreira (2013)
Da prática docente é possível inferir que o trabalho prático motiva a
aprender, ajudando a melhorar ambientes de aprendizagem e contribuindo
para veicular imagens adequadas da ciência, dos seus problemas, preocupações e das suas contribuições para a compreensão do mundo em que vivemos.
A motivação dos alunos é incrementada e a execução de trabalhos laboratoriais propicia um desenvolvimento positivo das suas atitudes, aumentando
o seu interesse. Envolve os alunos em todos os passos do raciocínio científico,
dando-lhes oportunidade de trabalhar como um cientista, vivendo e compreendendo os passos dos cientistas (Martins, 2005).
O impacto dos trabalhos práticos a nível cognitivo associa-se à capacidade na aprendizagem dos alunos, tornando-a mais eficaz, isto é, maior interesse e curiosidade nas áreas de investigação. Desenvolvem-se competências
científicas, ao nível dos procedimentos, das técnicas e da cooperação entre os
alunos patente no desenvolvimento das relações interpessoais e no incremento
da dinâmica do trabalho entre pares (Jorge, 2007).
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
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2003. Documento orientador da Revisão curricular do Ensino Secundário. Lisboa. Ministério da Educação, Abril.
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para o ensino, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Vila Real.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Lopes, José e Silva, Helena. A Aprendizagem Cooperativa na sala de aula.
Um guia prático para o professor. LIDEL. 2009
Marques, E. et al (1999), Técnicas Laboratoriais de Biologia. Bloco I. Porto Editora
Marques, Miguel (2007). Uma Breve História da Terra. Biologia e Geologia. Livro do Professor. Ensino Secundário. Edições ASA
Martins, E. (2005), Uma perspectiva histórica do ensino das Ciências Experimentais. Revista Bimensal. Edição 13.
Motta Lucinda, Viana Maria. (2008). Bioterra - Sustentabilidade na Terra (1ª
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Romão, J. N. (2009), Património geológico no litoral de Peniche: geomonumentos a valorizar e a divulgar. Geonovas, nº 22:21 a 33.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
A PESCA DA SARDINHA EM PENICHE
DURANTE O SÉC. XX
Élio Ribeiro19
Nota Introdutória:
O texto que se segue é um resumo da tese “A pesca da sardinha em Peniche durante o séc. XX” realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Integrados
dos Oceanos (2007-2010), numa parceria entre a Escola Superior de Tecnologia do Mar e a Universidade dos Açores.
Tratou-se de um levantamento bibliográfico e estatístico, no qual se tentou caracterizar a pesca de sardinha local durante o período de 1939-2007,
bem como os seus efeitos nos seus principais intervenientes. Para tal começouse por realizar uma colecta de vários tipos de dados estatísticos no Instituto
Nacional de Estatísticas (INE). Estes incluíam registos referentes à quantidade
de sardinha em quilogramas desembarcada anualmente no porto de Peniche,
bem como o valor monetário total obtido pela venda da sardinha em lota. De
seguida, tornou-se necessário adquirir o número de traineiras matriculadas
em Peniche durante o período acima referido que, juntamente com os valores
obtidos do número de tripulantes normalmente a bordo de cada embarcação,
permitiu saber o número de mestres, contramestres, motoristas e pescadores
que se encontravam matriculados nesta actividade em Peniche.
Ao contrário dos valores anteriormente referidos, estes dados não provêm do INE pela simples razão de este não discriminar nas Estatísticas de Pesca
anuais quantas embarcações se encontram matriculadas por porto de pesca
Licenciado e Mestre em Biologia Marinha - Investigador da Patrimonium, centro de Estudos e Defesa do
Património da Região de Peniche.
19
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
mas sim apenas por regiões. Após se ter verificado que tanto a Capitania de
Peniche como a Direcção Geral de Pesca e Aquicultura (DGPA) e órgãos associados não conseguiam disponibilizar dados tão antigos respeitantes a Peniche,
tornou-se assim necessário proceder-se uma recolha destes dados noutras fontes. Este facto não só deu origem a uma recolha de dados em diversas fontes
como no OPCENTRO de Peniche, no Grémio dos Armadores da Pesca da Sardinha presentemente armazenado no arquivo da DGPA e também a partir dos
valores referidos nos “Apontamentos para a História da Pesca da Sardinha e da
Construção Naval em Peniche” (Peixoto,1991); bem como à impossibilidade de
se conseguir um registo completo. No entanto, espera-se que tenha trazido alguma elucidação em relação à evolução deste sector primário durante o séc. XX
do qual a comunidade local tem vindo a depender e de que futuro se avizinha.
Arte de traineira de cercar para bordo em Peniche
De acordo com Peixoto (1991), terá sido em 1913 que se iniciou em Peniche a pesca da sardinha por este método com a aquisição da primeira traineira que entrou no seu porto. Comprada em Vigo, Espanha, tratava-se de uma
traineira bastante rudimentar para os padrões actuais, sendo movida a remos
e à vela (Fig.1). No entanto trazia consigo uma porção de espoletas e ovas de
bacalhau para além dos utensílios de bordo para a prática desta arte. Devido
ao desconhecimento geral da comunidade piscatória de Peniche acerca desta
“nova” arte de pesca da sardinha, juntamente com a embarcação veio um homem ensinar como se pescava por novo processo.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Figura 1 - Traineiras importadas do “tipo Vigo” – 1913/1914
Esta arte tinha basicamente uma rede (Fig.2) que, tendo na parte de cima
boias de cortiça e na parte de baixo chumbadas, depois de largada em círculo
podia ser fechada por baixo, graças a um conjunto de argolas (anilhas), colocadas a partir da tralha inferior, passando por elas um cabo (retenida) que permite, ao ser puxado para bordo, fechar o fundo da rede, ficando completamente
preso o peixe. De seguida vai-se colhendo a rede para bordo até que tenhamos
a possível pescaria em condições de ser enxalaviada.
Figura 2 – Esquema da arte de cercar pela borda
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Para auxiliar a traineira, utiliza-se uma pequena lancha que é lançada ao
mar no início da pescaria com a função de segurar a extremidade da rede sendo
recolhida pelo pessoal de bordo após completado o cerco.
A deslocação da embarcação era feita a remos, utilizando uma rede de
fio de algodão com o comprimento de aproximadamente 70 braças, um tamanho pequeno que se justificava pelo facto a rede era fechada e colhida apenas
através da utilização de trabalho manual, tratando-se de um processo bastante
moroso. No entanto a utilização de ovas de bacalhau como engodo e a utilização
de espoletas explosivas como atordoador, permitia à companha ganhar algum
tempo e completar a tarefa.
Alterações nos cascos e sua monitorização
Com a introdução da primeira traineira a remos de Vigo em Peniche em
1913, seguiu-se a importação nos dois anos seguintes de mais de 12 unidades
com tamanhos que podiam atingir os 13 metros de comprimento, embora já se
tivesse começado a construir-se em Peniche em 1914 a traineira do “tipo Vigo”
Em 1924, a primeira grande inovação tecnológica acontece com a motorização da primeira traineira do “tipo Vigo”, seguindo-se a motorização da restante frota de traineiras concluída em 1927, ano em que também foi criado um
novo modelo de casco baptizado de “tipo Peniche”.
Estes avanços tecnológicos permitiram dar uma mais rápida e maior raio
de deslocação e de acção à frota de traineiras, acelerando o processo do cerco
aos cardumes bem como permitindo a utilização de redes um pouco maiores
(80/90 braças de comprimento com um altura que variava entre os 25/27 braças).
Entre 1928/29 foram montados em cascos com um comprimento entre
10-11 metros os primeiros modelos de motores a petróleo, que possuíam um
arranque a gasolina, com uma potência entre 15/18 HP e 20/24 HP (Fig.3 e 4).
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Figura 3 - Traineira do “tipo Peniche” com motor de petróleo de 20/24 HP instalado – anos 30
Em 1932, a melhoria da frota evidencia-se com a substituição sucessiva
de cascos e pela instalação de novos motores, começando-se a notar uma
diminuição no emprego da peca como por “engodo” que utilizava ovas de
bacalhau, começando-se a dar preferência à pesca do “saltio” e à “ardente”. Nesse
mesmo ano inicia-se o processo de instalação de guinchos nas embarcações,
processo que dura até 1933, que iriam substituir o trabalho manual de puxar
a gereta (Fig.5), para fechar a rede, por uma força mecânica impulsionada pelo
próprio motor da traineira, por transmissão aplicada a “guincho”.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Figura 4 - Traineira do “tipo Peniche” na doca – anos 30
Figura 5 – Recolha manual de retenida (gereta)
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Dois anos depois, aparecem os primeiros motores a petróleo com uma
potência de 30 HP (Fig.6), bem como um aumento das redes com o aparecimento do primeiro motor a gasóleo em 1936.
Figura 6 – Traineira do “tipo Peniche” com motor de petróleo de 30 HP instalado – anos 30
A década de 40 é principalmente caracterizada por dois eventos:
Devido ao racionamento imposto pela Segunda Guerra Mundial, em 1942
é-se atribuído apenas 50 litros por dia a cada traineira que passariam a ter
como obrigação serem abastecidas no porto de matrícula. Tratou-se de uma
medida pouco popular entre os armadores de Peniche uma vez que se viram
obrigados a comprar óleo de baleia para misturar com o gasoil de modo a proporcionar mais algumas horas de trabalho na exploração da pesca.
Anos depois, entre 1947–1948 é-se instalado o primeiro rádio numa
traineira que se mostra uma boa alternativa à utilização periódica de pomboscorreios como forma de se ter noticias das embarcações.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Introdução de sondas electrónicas na pesca de cercar para bordo,
Novas normas de construção de embarcações
Uma nova evolução na pesca da sardinha começou em Dezembro de 1951
com a montagem da primeira sonda “Fishlupe” e sua utilização logo no início
de Janeiro do ano seguinte.
Seguiu-se a instalação em diversas embarcações de outras sondas electrónicas de pesquisa na perpendicular bem como de registo em papel (Fig.7),
um sinal de que a frota local está em plena fase de evolução, destronando os
processos de pesquisa visual de cardumes de sardinha adoptados até então,
permitindo detectá-los tanto de dia como de noite através de eco-localização,
indicando também a natureza do fundo bem como a profundidade.
Figura 7 – Registo de sonda electrónica. Pesquisa na perpendicular
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
No entanto, com avanço tecnológico tornou-se necessário alterar as dimensões das embarcações que a partir desse momento fossem construídas.
Devido a limitações legais, até ao requerimento colocado pelos armadores de
Peniche ao Ministério da Marinha em Janeiro de 1954 para aumentar o comprimento do casco em um metro para permitir a construção de um porão frigorífico para o transporte de gelo, as embarcações possuíam um comprimento
de 11-13 metros. Após a aceitação desse pedido, passou-se a poder construir
cascos maiores e com melhores condições de navegabilidade com a mesma força motriz e já equipados com porão frigorífico, passando-se a encontrar logo
nos dois anos seguintes embarcações com comprimento total de 16/17 metros,
equipados com motores de 130/170 HP e com redes com cerca de 150 braças
de comprimento (Fig.8).
Figura 8 – Traineira construída já de acordo com as novas normas de construção
As embarcações continuam a aumentar de tamanho de ano para ano e já
em 1958/59, encontramos traineiras com 19 metros e motores com 230 HP
de potência. Foi também neste período de tempo que se utiliza experimental41
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
mente rede em fibra de nylon. Tratando-se de uma rede levíssima e com maior
durabilidade, permitiu o aumento do tamanho das redes (em 1959, emprega-se
80 braças de nylon para se obter uma de 200 braças de comprimento) e diminuir o tempo de fecho do cerco. A popularização desta nova rede condena as
redes de algodão a uma gradual extinção.
Em 1960, atinge-se o número máximo de traineiras matriculadas em Peniche (83), com a presença de embarcações com 21 metros de comprimento
equipados com motores de 300 HP de potência.
Já no final da década de 60, assiste-se a mais uma melhoria tecnológica
com a instalação de aladores em 1967 (Fig.9) nas traineiras.
Figura 9 – Traineira com aladores instalados
A introdução de aladores a partir desse momento veio permitir um novo
aumento no comprimento das redes.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Anos 70
Após a adopção, ainda em 1969, do novo formato de popa baptizada de
“Popa de Painel”, que permite uma maior capacidade num casco do mesmo comprimento bem como uma melhoria nas condições de navegabilidade; torna-se
lugar-comum ter matriculado no Porto de Peniche na década de 70, traineiras
com cascos de 22 a 25 metros de comprimento com motores ainda mais potentes, com o máximo de 400 HP de potência. A bordo, para além do radar como
auxiliar de navegação, encontrava-se guinchos potentes e hidráulicos bem os
recentemente introduzidos aladores que permitem a utilização de redes agora totalmente feitas de nylon com 300 braças de comprimento e 50 braças de
altura (Fig.10). Com o aumento das dimensões das embarcações também veio
associado o aumento das tripulações sendo normal encontrar-se a bordo uma
tripulação de 22 homens.
Figura 10 – Típica traineira da década de 70
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Dos anos 80 à actualidade
Chega a década de 80 e com ela o aumento de todo o que pode ser aumentado e o melhoramento de tudo o que poder ser melhorado numa embarcação.
Assim, temos traineiras com o comprimento de 25/26 metros, equipada com
motores de 400/420 HP e com tripulações de, normalmente, 18 homens. As
redes também aumentaram o seu tamanho chegando às 420 braças de comprimento e 84/85 braças de altura o que vai permitir pescar a maiores profundidades. (Fig.11)
Figura 11 – Embarcação “Rainha de Peniche”, exemplo claro do tipo de traineira utilizado
neste período.
A bordo encontram-se guinchos poderosos, aladores aperfeiçoados, bem
como sondas electrónicas de pesquisa tanto na perpendicular (Fig.12) como na
horizontal (Fig.13)
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Figura 12 – Sonda de pesquisa na perpendicular com projecção a cores em ecrã
Figura 13 – Pesquisa na horizontal num raio de 1400 metros, numa pesquisa de 180⁰
Também se começa a empregar na pesca um emissor-sonda (Fig.14) que,
quando aplicado numa das anilhas da rede indica a velocidade a que a rede se
afunda, onde se localiza o cardume e mostra o fundo. O emprego deste aparelho
para além de facilitar a pesca irá evitar a perdas de redes em fundos duvidosos.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Figura 14 – Transmissão de um emissor-sonda indicando o percurso do chumbo da rede, a
configuração do fundo e a profundidade a que se encontra o peixe.
Sistema de remuneração
De acordo com Peixoto (1991), em 1938 é estabelecido oficialmente o
sistema de renumeração do trabalho que se encontra juntamente com as condições de matrícula para as traineiras no artigo 10 º:
“O produto líquido da pesca (após dedução dos encargos com alimentação, gasóleo, redes, impostos, etc.), divide-se da seguinte forma: 14 partes para
o proprietário da arte, 4 partes para o mestre, como administrador directo da
exploração da pesca, duas para o contra-mestre ou piqueiro, duas e meia para
o motorista e uma para cada companheiro e moços.”
É de notar que o número de partes que o proprietário recebia foi aumentando ao longo dos anos e assim temos o armador a receber 17 partes a partir
de 1943. Na década de 50, no breve período de 1952-1953 é determinado que
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
o armador deverá receber mais 3 partes do que recebia 9 anos antes, passando
agora a receber 20 partes do produto líquido da pesca. Um ano depois, finalmente estabelece-se que o proprietário passa a receber 48%.
Legislação Nacional
A formação profissional do sector marítima tem como suporte legislativo
de base o Regulamento de Inscrição Marítima (RIM) que data de 1964 (Almeida, J.F. et al., 2000). Trata-se de uma legislação que tem sofrido alterações ao
longo dos anos na tentativa de se adaptar à realidade do sector de acordo com
as evoluções introduzidas nomeadamente ao nível de tripulação, lotações, categorias de pessoal entre outras.
Embora este documento tenha servido de apoio à actividade, já houve
muitas tentativas de o substituir de modo a torna-lo mais consentâneo com as
disposições constitucionais, mais propriamente na relação de trabalho de que
recentemente se tornou autónomo através do Regime Jurídico do Contracto Individual de Trabalho aprovado pela Lei nº15/97, de 31 de Maio que substitui
tanto na prática como no direito, o contracto de matrícula.
Esta mesma Lei também aconselha um conjunto de medidas que possam
preencher lacunas existentes ao nível da contratação individual de trabalho,
que data de 1969, tendo-se verificado que têm sido publicados uma série de
portarias e regulamentos parcelares.
Nesse sentido a Lei nº15/97, de 31 de Maio conseguiu regulamentar situações irregulares bem como institucionalizar os direitos e deveres do trabalhador e da entidade patronal.
O contrato individual de Trabalho a Bordo das Embarcações de Pesca é
praticamente uma transição do contrato individual de trabalho.
Por regra, nas embarcações que se dedicam à pesca do cerco a distribuição do produto líquido da venda do pescado é feita, normalmente, da seguinte
forma: 4 partes para o mestre; 2 partes para o contramestre; 2,5 partes para o
motorista; 1,5 partes para o ajudante de motorista; 1 parte para a companha de
mar (uma por cada elemento).
47
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
No entanto, o facto deste sistema de remuneração por partes, em que os
rendimentos dependem apenas dos resultados da venda do pescado captura,
mostra ser um inconveniente para o pescador, uma vez que este é Rendimentos de Pesca
Um estudo realizado pelo Grémios dos Armadores da Pesca da sardinha
em 1965 intitulado “Estudos sobre a evolução da pesca da sardinha relacionadas com a pesca da sardinha - 1965” permitiu-lhes calcular qual a percentagem
dos encargos que se traduziam numa subtracção da receita bruta de pesca e
discriminá-los em “Encargos fixos” e “Encargos variáveis”.
Quadro 1 - Encargos fixos e variáveis suportados pela frota de traineiras durante o período de
1940-1965.
Encargos fixos
1)
Imposto do Pescado
7,00%
3)
Imposto do Selo
0,21%
48
Taxas
2)
4)
5)
Imposto Municipal
Grémio
Mutua
3,00%
1,00%
3,62%
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Encargos variáveis
6)
8)
10)
7)
9)
Contribuição Industrial
Licença de estabelecimento comercial e industrial
0,37%
Diversos
3,05%
0,17%
Juntas autónomas
1,00%
Previdência Social
1,03%
20,45%
Total de encargos
O Quadro nº1 demonstra que a actividade suportava encargos na ordem
dos 20,45% da receita bruta de pesca efectuada, muito devido ao Imposto do
Pescado (7%) e do Municipal (3%), que traduziam quase metade os encargos
totais. Tratava-se de um grande encargo principalmente quando se tem em
conta que os “Diversos” que incluem manutenção das embarcações e seus apetrechos, alimentação, combustível, redes, etc., são apenas 3,05%.
O seguinte quadro foi elaborado através dos dados fornecidos por um armador anónimo de Peniche. Nele encontram-se os “custos e perdas” associadas
a uma traineira moderna em tudo semelhante às que entraram em serviço a
partir dos anos 80.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Quadro 2 – Custos e perdas suportados pela frota de traineiras no ano de 2009.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
O Quadro nº2 mostra que existe actualmente uma carga financeira muito
superior à verificada no período de tempo de 1940-1965. Embora a percentagem correspondente ao pagamento de impostos tenha baixado drasticamente
e não esteja referido qualquer pagamento ao Grémio que foi extinto em 1975
(Peixoto, 1991) ou à Mutua, verifica-se que os custos de manutenção da embarcação aumentaram cerca de 10 vezes (de 3,05% para 30,83%) e os gastos
sociais quase 16 vezes (15,93% actualmente em comparação com os 1,03%
verificados anteriormente). Este aumento dos Custos gerais de 20,45% para
48,80% na prática significa que metade da Receita Bruta que o armador obtém
através da venda do pescado em lota será apenas para os pagamentos dos encargos gerais suportado pelo armador sem contar com o pagamento das remunerações à tripulação.
Variação do número de traineiras matriculadas no período de tempo entre 1939 e 2007
A seguinte figura mostra a variação do número de traineiras que se dedicava à pesca do cerco matriculadas no porto de Peniche entre 1939 e 2007.
Figura 15 – Variação do número de traineiras matriculadas em Peniche durante o periodo de
1939-2007.
51
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Apesar de se tratar de um registo incompleto, tal como foi anteriormente
referido, verifica-se que entre 1939 e 1941, houve uma queda no número de
traineiras em actividade nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial muito
provavelmente devido à instabilidade vivida nos primeiros dois anos da guerra
à qual o racionamento de provisões bem como o de combustível no ano seguinte não terá ajudado a situação. No entanto, já em 1943 verifica-se que estão
mais 10 traineiras em actividade do que 1941 o que, quando relacionado com
uma grande industria conserveira local e uma enorme necessidade de alimentar os soldados aliados com enlatados torna-se compreensível.
Não existem registos desde 1944 – 1947 mas tudo leva a crer que nesse período a frota local apresentou crescimento estável uma vez que em 1948
existem 78 traineiras matriculadas em Peniche.
Novamente, de 1949 – 1956 os registos são escassos tendo-se obtido dados que em 1957 encontravam-se 74 embarcações em actividade em Peniche
e novamente o mesmo número no ano seguinte, indicando que o período anteriormente mencionado poderá terá sido um período relativamente estável no
que diz respeito ao número de traineiras matriculadas localmente.
Segue-se 1961 em que se atinge o maior número de sempre de traineiras em actividade em Peniche (83), ano a partir do qual se tem verificado um
número cada vez menor de embarcações matriculadas tendo-se atingindo em
2007 um mínimo histórico de apenas 15.
Variação dos desembarques efectuados em Peniche durante o período de 1939 e 2007
Na seguinte figura elaborou-se um gráfico a partir do dados obtidos dos
desembarques de sardinha em Peniche de modo a demonstrar a variação do
peso desembarcado porto local entre 1939 e 2007.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Figura 16 – Variação dos desembarques totais (Kg) em Peniche durante o período de 19392007.
Constata-se, ao analisar a figura 17, que os primeiros anos da amostragem são caracterizados por ligeiras variações nas quantidades descarregadas
de sardinha até ao ano de 1947. Seguiu-se num período de 2 anos, uma queda
extrema na ordem das 6.500 toneladas registando-se em 1949 um valor mínimo histórico de apenas 1.096 toneladas desembarcadas. No entanto, é de notar
que em apenas 7 anos, em 1954, já se registam desembarques superiores aos
de 1947. Este aumento poderá estar relacionado com o provável grande número de traineiras em actividade associado à utilização cada vez mais comum da
tecnologia de sondas electrónicas na pesca da sardinha.
Também é a partir desse ano que se nota a evidência de um aumento gradual das descargas realizadas na lota local até atingir um pico máximo em 1986
de 22392 toneladas, ano a partir do qual se verifica um decréscimo mais ou
menos acentuado até 2007 em que foi descarregado apenas 8.866 toneladas.
É de realçar que durante o período 1947-1986 ocorrem dois períodos
de tempo que se verificou quedas abruptas nas descargas: entre 1967-1970 e
1974-1977, períodos de tempo em que há muito que se verificava a diminuição
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
do número de traineiras na frota local. No entanto após estas crises de 3 anos
verifica-se que existe sempre um rápido aumento nas descargas. Ao verificarmos o historial da frota local parece existir quase como que um paralelismo
entre os períodos de crise e o melhoramento da frota, ou seja, após um espaço
de tempo em que a quantidade descarregada diminui localmente verifica-se
o aumento no tamanho das embarcações e o melhoramento dos apetrechos a
bordo resultando num aumento rápido dos desembarques nos anos seguintes,
verificando-se também em menor grau em 1951.
Valores monetários uniformizados de acordo com as variações da
taxa de inflação anuais
Através da utilização das taxas de variação anuais de inflação, foi possível,
após uma rápida conversão de escudos para euros, elaborar o seguinte gráfico
que contem os valores inflacionados tanto valor total obtido pela venda da sardinha na lota como do preço a que foi vendida ao quilo.
Para se realizar esta uniformização considerou-se que o valor estimado
para cada ano seria igual ao valor registado no ano anterior acrescido taxa de
inflação desse ano.
Figura 17 – Valores totais (€) e Preço/Kg (€) inflacionados de acordo com as taxa de inflação
anuais verificadas durante o período de 1939-2007.
54
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
A figura 17 mostra uma tendência (esperada) do aumento progressivo
tanto do preço de venda por quilograma de sardinha bem como do valor total
obtido pela venda da mesma em lota. Mas é de notar que esse crescimento passa a ser mais acentuado a partir de 1975, atingindo o primeiro pico em 1991.
Este aumento parece estar relacionado com os altos níveis de inflação que se
registaram entre 1974 e 1985, muito provavelmente devido à instabilidade
pós-25 de Abril que se verificou, e que variaram entre os 15,2% e os 29,3%.
Entre 1991 e 2007, verificam-se constantes picos e quedas, principalmente dos
valores obtidos da venda em lota.
Se examinarmos o nível de desembarques durante esses anos (Fig.18)
podemos ver que o aparecimento de picos e de crescimento mais acentuado
do preço/kg da sardinha é precedido por períodos em que os desembarques
estiveram em baixa, havendo uma quedas dos valores assim que os desembarques voltam a aumentar. Trata-se da aplicação directa da “Lei da Oferta e da
Procura”:, - em intervalos de tempo com menos oferta (neste caso, uma quebra
nos desembarques), o preços tiveram a tendência para aumentar; mas a partir
do momento em que passou a existir uma maior oferta, verifica-se uma diminuição dos preços.
Figura 18 – Comparação entre a quantidade de sardinha desembarcada (Kg) em Peniche e o
valor total (€) observado pela sua venda entre 1976 e 2007.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Embora o emprego desta lei seja mais evidente no período de 16 anos
mencionado acima, devido à presença de picos, na figura seguinte em que se
considera o período de 1939-1975, em cerca de metade da amostra (34), o preço de venda da sardinha em Peniche mostra influências de algo mais do que a
inflação.
Figura 19 – Comparação entre a quantidade de sardinha desembarcada (Kg) em Peniche e o
valor total (€) observado pela sua venda entre 1939 e 1975.
Com algumas excepções, verifica-se que existe um paralelismo entre o
aumento do valor obtido da venda do pescado e do nível dos desembarques.
Embora isso não queira dizer que a “Lei da Oferta e Procura” não se verificasse
neste período, - esta tendência parece indicar não era possível baixar o preço
de venda independentemente das quantidades pescadas, pelo contrário parece
verificar-se o aumento dos preços quanto mais se pesca. Se considerarmos que,
entre 1939 e 1974, ainda se encontrava em vigor o Imposto de Pescado (terminado em 1970), bem como o pagamento ao Grémio dos Armadores da Pesca da
Sardinha que se traduzia em 8% dos cerca de 20,5% das despesas, consegue-se
entender o porquê desta tendência.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Receitas de Pesca
Os seguintes cálculos foram realizados utilizando tanto o Quadro 1 como,
e graças à disponibilidade de um armador de Peniche de facultar dados recentes referentes à sua embarcação, o Quadro 2 como referência.
De modo a facilitar esses mesmos cálculos bem como a sua compreensão,
a amostra foi dividida, como anteriormente, em dois períodos de tempo:
1)
1939 a 1970 – Um período de tempo caracterizado por uma
grande carga fiscal pela presença do Imposto do Pescado e
pela comissão ao Grémio dos Armadores da Pesca da Sardinha,
com um crescente nível de desembarques e pelas maiores
inovações na arte da pesca do cerco.
2)
1980 a 2007 – Um período de tempo caracterizado por uma
diminuição persistente dos níveis de desembarques a partir
do ano de 1986 - em que se atingiu um máximo histórico de um período de tempo anterior com um grande nível de
inflação, dos últimos melhoramentos das tecnologias de pesca
e do aumento das dimensões das embarcações.
1939 – 1970
Ao analisar-se o Quadro 1 e as ocorrências verificadas durante este período, tem-se que:
•
•
Os encargos fiscais e parafiscais referentes ao Quadro 1 eram
pagos pelo armador a partir da Receita Bruta obtida pela
venda da sardinha em lota.
De 1939 a 1970, esses encargos correspondiam a 20,45% do
Lucro Bruto, muito devido à elevada carga fiscal por parte dos
Impostos.
57
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
É de referir que, embora à primeira vista, os encargos fiscais e parafiscais
não pareçam ser muito elevados, há que ter atenção que estes não incluem o
pagamento à tripulação, outro encargo suportado pelo armador e muito menos
o Rendimento Líquido que o mesmo obtinha da pesca. Também é de notar que
embora o Quadro 1 se refira aos encargos verificados de 1940 a 1965, incluiuse os anos de 1939, 1966 a 1970 por se considerar que não existiram mudanças
significativas nas frotas nesses anos.
Quadro 3 – Divisão geral da Receita Bruta entre 1939 - 1970
Como anteriormente referido e ao contrário da maior parte dos empregos, o pagamento aos homens a bordo das traineiras não era e continua a não
ser fixo mas sim feito através de um sistema de “partes” (Peixoto,1991) cujo número varia conforme a posição hierárquica que cada um ocupa na embarcação,
conforme expresso no seguinte quadro:
Quadro 4 – Número de “partes” recebidas por cada posição hierárquica a bordo das traineiras
no período de 1939 a 1970.
58
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Também incluído no sistema de “partes” encontrava-se o armador cujo
número de partes, ao contrário das suas tripulações, foi aumentando ao longo
dos anos até 1953, ano em que fica estipulado que passava a receber uma percentagem fixa de 48% (Peixoto,1991). Resumidamente:
Quadro 5 – Número de “partes” e percentagem recebida pelo armador durante o período de
1939 a 1970.
A bordo das embarcações, o número de tripulantes teve a tendência a ser
bastante regular (16), mesmo com as progressivas autorizações de aumentar
as dimensões das traineiras e dos apetrechos instalados (Peixoto, 1991).
O número de partes que a tripulação recebia, tendo em conta que a bordo
existia um mestre, um contra-mestre, um motorista e que os restantes tripulantes eram considerados companha; encontra-se exposto no Quadro 6.
Quadro 6 – Número de partes recebidas pelas tripulações a bordo nas traineiras entre 1939 e
1970.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Estes dados permitem o cálculo da percentagem correspondente à remuneração da tripulação em geral e ao armador que seria feita a partir do excedente da Receita Bruta após o pagamento dos encargos (Quadro 7).
Quadro 7 – Percentagem correspondente à tripulação e ao armador entre 1939 e 1970.
Por fim torna-se interessante examinar as percentagens correspondentes
a cada tripulante e ao armador da Receita Bruta e a variação desses valores durante o período de 1939-1970. Através das avaliações anteriormente explicadas em que se calculou a percentagens que correspondia à tripulação num todo
e tendo em conta o sistema de partes tanto aplicado às tripulações bem como
ao armador obteve-se Quadro 8:
Quadro 8 – Percentagem correspondente da Receita Bruta aos membros da tripulação e ao
armador entre 1939 e 1970.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Verifica-se que existe entre 1939 e 1953 uma gradual diminuição das percentagens recebidas pelos membros das tripulações embora o inverso aconteça
com os armadores. O ocorrido é facilmente explicado quando se tem em conta
que nesse período de tempo se tenha verificado uma estagnação do número de
partes recebidas pelos membros das tripulações enquanto que o armador ia
recebendo um número cada vez mais superior. A partir de 1954 até 1970 com
o armador a receber uns constantes 48% dos 79,55% do excedente da Receita,
um pouco menos do que recebia entre 1952-1953, verifica-se que os tripulantes sofrem um pequeno aumento embora quase insignificante
1980 – 2007
Utilizando a mesma linha de pensamento que foi usada no espaço de tempo entre 1939-1970, começou-se por expor a divisória inicial da Receita Bruta
que se faz entre os encargos fiscais e parafiscais e os pagamentos à tripulação e
ao armador. Uma vez que estes encargos são referentes a uma traineira moderna cujas características datam da década de 80, o seguinte quadro foi utilizado
como referência para o período de 1980-2007. As percentagens correspondente às remunerações bem como ao armador foram calculadas a partir dos documentos fornecidos pelo armador.
Quadro 9 – Divisão geral da Receita Bruta entre 1980 – 2007
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Tal como anteriormente, o sistema de pagamento às tripulações por “partes” continua a imperar, podendo-se verificar que a única alteração que existiu
entre 1980 – 2007 foi a introdução do “Ajudante de motorista” como parte da
tripulação a partir de 1997. Em relação ao número de “partes” recebidas por
cada posição hierárquica da tripulação em si, não se verifica qualquer alteração
no mesmo período. Ao comparar-se o esquema de pagamentos entre 1980 –
2007 com o utilizado no período 1939 – 2007, verifica-se que são praticamente
idênticos demonstrando que, em mais de 60 anos de historial de pesca, nunca
houve um único aumento do número de partes recebidas por qualquer membro da tripulação. Resumidamente:
Quadro 10 e 11 – Número de “partes” recebidas por cada posição hierárquica a bordo das
traineiras no período de 1980 a 1996 e no período de 1997 a 2007.
Em relação ao número de tripulantes por traineira, após a década de 70
em que se encontravam a bordo tripulações constituídas por uma média de 22
homens, deu-se o último grande melhoramento da frota no início dos anos 80
com o aumento das dimensões das embarcações bem como das tecnologias a
bordo (Peixoto,1991). A partir desse momento, deixou de ser necessário tantos
homens a bordo, passando a ser comum pescar-se com apenas 18 tripulantes
Isso permite o cálculo do respectivo número de partes que competia a
cada tripulação considerando novamente que numa tripulação apenas existe
um Mestre, um Contra-mestre, um Motorista e, a partir de 1997, um Ajudante
de Motorista sendo os restantes homens pagos como companha:
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Quadro 12 – Número de partes recebidas pelas tripulações a bordo nas traineiras entre 1980
a 2007.
Novamente e tal como foi feito no período de tempo entre 1939-1970,
esta análise será finalizada com um exame das percentagens da Receita Bruta correspondente a cada membro hierárquico da tripulação bem como o armador. Foi utilizado o mesmo tipo de raciocínio que se aplicou anteriormente,
tendo-se em conta as percentagens correspondentes à tripulação bem como
ao armador e também o número de partes recebidas por cada tripulante. O
seguinte quadro foi obtido:
Quadro 13 – Percentagem correspondente da Receita Bruta aos membros da tripulação e ao
armador entre 1980 e 2007.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Quando comparado estes dados com os do quadro 8 referentes ao período de 1954-1970, verifica-se que todos os intervenientes da pesca da sardinha
sofreram uma diminuição da percentagem da Receita Bruta que lhes correspondia. No entanto, nenhuma dessas diminuições foi tão drástica como a do
armador que passou a receber menos três vezes do que no intervalo de tempo
anteriormente referido, ganhando pouco mais que o dobro que o seu mestre
recebe. Verifica-se aumento das despesas relacionadas directa e indirectamente com as embarcações têm sido tal que para além de não permitirem manter
as percentagens recebidas anteriormente pelos tripulantes (e muito menos
aumentá-las), é extremamente prejudicial para o armador que se vê numa ocupação cada vez menos apelativa com uma grandes responsabilidade e poucos
ganhos.
Em suma…
A pesca da sardinha em Peniche é caracterizada por constantes altos e
baixos no nível dos desembarques, sendo possível identificarem-se vários ciclos. Estes ciclos são caracterizados por uma crescente abundância desta espécie na lota local até se atingir um pico máximo a partir do qual se seguem
vários anos com valores cada vez menores, os quais não recuperam até que
um novo ciclo recomece. O historial da pesca da sardinha torna evidente que
o recomeço de um novo ciclo encontra-se relacionado com os melhoramentos
que se realizam ao nível da frota, normalmente cerca de 3 anos antes. De facto,
anos com rendimentos cada vez menores ou, pelo menos, não tão elevados aos
que eram esperados pelos armadores, obriga-os a que, periodicamente, realizassem melhoramentos nas suas embarcações. Estes melhoramentos incluem
a introdução da sonda em 1951 ou o aumento das traineiras e da potência dos
seus motores na década de 70. Tratando-se de uma solução temporária, os melhoramentos das embarcações permitem a curto prazo mais lucros do que estavam a ter até então, maiores ou menores por traineira conforme o número
de elementos da frota, mas a médio e longo prazo verifica-se que anos com
grandes lucros de pesca acabam por ser cada vez mais raros.
No entanto, é de referir que as razões para fazer estes “upgrades” mudaram ao longo do tempo. De 1940 a 1970, a principal razão de o fazer pa-
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
rece tratar-se do Imposto do Pescado que se traduzia em quase metade dos
encargos gerais que o armador tinha com a sua embarcação e assim aumentar
o potencial de desembarque de peixe era mais uma forma que possuía para o
contrariar, para além do aumento do preço de venda. Mas, entre 1980 e 2007,
verifica-se que se trata de uma razão completamente diferente. Com a eliminação dos impostos acima referidos, a pesca da sardinha e os preços obtidos pela
sua venda passaram a estar bastante dependentes da Lei da Oferta e da Procura, de tal forma que os preços praticados por vezes não compensavam a inflação verificada, restando ao armador tentar desembarcar o máximo possível
de modo a conseguir vender o máximo possível a um preço bastante reduzido.
Torna-se caricato verificar que a Lei da Oferta e da Procura é aplicada com tal
extremismo que, neste período de tempo, os anos mais rentáveis foram aqueles
em que se pescou menos.
Trata-se da única forma do armador conseguir combater as suas
despesas. Com cada melhoramento da frota que deu início a um novo ciclo,
verificou-se também um aumento das despesas que cada armador tem com
a sua embarcação. De facto, o que antes não passava de 20,45% até 1970, a
partir de 1980 passou a 48,80%. Isto trata-se de uma consequência directa da
complexidade e das tecnologias envolvidas na pesca do cerco que se tornaram
inevitáveis, como anteriormente dito. Para além de ser, aparentemente, a
causa principal da diminuição do número de traineiras para valores históricos
mínimos, este aumento de despesas também teve consequências directas para
os pescadores de sardinha.
Assim, verificou-se uma diminuição da percentagem correspondente a
cada um dos intervenientes da pesca da sardinha, principalmente ao armador.
Se, anteriormente, se verificava que desde 1939 a 1970 este tentara receber
cada vez mais do excedente da Receita Bruta após o pagamento dos encargos,
chegando a receber 48%, essa tendência inverteu-se a partir do momento em
que será a própria embarcação e despesas relacionadas quem “recebe” cerca
48%. Isto traduziu-se obrigatoriamente numa diminuição extrema do que o
armador passou a receber (apenas 13,17% da Receita Bruta) e, em menor grau,
dos tripulantes, principalmente companha, que desde sempre recebem uma
pequena percentagem do rendimento bruto do que vendem.
Aliás, verifica-se que os tripulantes têm sido os mais menosprezados
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
nesta actividade, não tendo recebido qualquer aumento do número de partes
que o seu cargo lhes compete em mais de 60 anos de história, recebendo uma
percentagem cada vez menor cada vez que ocorre elementos causadores de
despesas como os anteriormente referidos e para além disso estão dependentes
de um empregador que se encontra numa profissão que à medida que o tempo
passa tornar-se cada vez menos apelativa, com mais responsabilidades e menos
lucros.
Em 1986 deu-se o último grande pico de desembarques. Como aconteceu
anteriormente, desde então que os níveis de sardinha desembarcada na lota de
Peniche têm vindo gradualmente a descer, não havendo, desta vez, qualquer
indicação de que o ciclo possa repetir-se tão rapidamente ou mesmo se irá repetir-se. Considerando o historial anteriormente descrito nesta discussão, um
novo apetrechamento das embarcações iria envolver um novo aumento de despesas que, a longo prazo, se tornariam insuportáveis para o armador.
Concluindo…
A pesca da sardinha em Peniche encontra-se em crise, uma crise que tem
sido adiada constantemente graças às inovações tecnológicas verificadas durante o séc. XX mas que não mais poderá ser evitada.
Por um lado, estes empreendedores encontram-se bastante dependentes
da extrema influência da Lei da Oferta e da Procura do mercado, o que significa
que cada um deles dependerá do insucesso dos seus companheiros de actividade. Para clarificar a situação, um armador que esteja a desembarcar baixas
quantidades tem de “esperar” que os restantes armadores não desembarquem
em grandes quantidades. Caso isso aconteça, o preço de venda será tão baixo
que poderá ter de abandonar a actividade. No entanto, caso um armador esteja
a desembarcar quantidades consideráveis de sardinha, também dependerá que
os restante armadores não capturem grandes quantidades de forma a ganhar
o maior lucro possível com a venda da sardinha em lota devido à baixa oferta.
Por outro lado, a possibilidade de fazer melhoramentos tecnológicos às
traineiras, de modo a aumentar os desembarques e assim vender a maior quantidade de peixe possível, mesmo que a um preço baixo está aparentemente fora
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
de questão. Com cada “upgrade” realizado na frota local veio um aumento de
despesas associadas à embarcação e, considerando que o armador actualmente apenas recebe o dobro que o seu mestre, um melhoramento à sua traineira,
para além de implicar um investimento de grande risco, também implicaria
uma menor fatia dos lucros que provavelmente não iria compensar.
Toda esta situação poderá ter consequências sociais locais sérias. Os pescadores que dependem do armador e do rendimento que a sua traineira obtém,
são as vítimas directas desta situação. Estes homens, a maior parte com qualificações profissionais baixas, passam a não ter outra alternativa senão aceitar
trabalhos na construção civil ou outros empregos igualmente duros e mal remunerados.
Trata-se assim de uma situação bastante delicada a que se vive actualmente no panorama da pesca da sardinha em Peniche. Torna-se imperativo desenvolver estratégias, não apenas locais mas, também, nacionais, de modo a
impedir que a situação piore ainda mais arranjando alternativas ao implicados
nesta indústria e soluções que mostrem ser eficazes para se obter uma pesca da
sardinha sustentável e lucrativa a longo prazo.
67
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
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68
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
A PESCA EM PENICHE – IMPACTOS DA ADESÃO DE
PORTUGAL À CEE (1986-1996)20
Inês Grandela Lourenço21
Também no sector das pescas, a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, em Janeiro de 1986, foi rodeada de expectativas. Desde a integração de Portugal22 na comunidade e a sua adesão ao projecto europeu que
teve início um conjunto de alterações económicas e políticas na pesca no sentido da harmonização entre a legislação nacional e a legislação comunitária. De
facto, a política comum de pescas (PCP)23 foi basilar no processo de construção
europeia. Toda a política comunitária no sector das pescas ficou definida no
ano 1983 e foi elaborada por países do centro do continente europeu, logo as
suas preocupações e as suas necessidades ficaram asseguradas na elaboração
dessas políticas. Assim, percebemos como as dificuldades da pesca em Portugal
estão relacionadas com o desajustamento das tentativas de modernização que
não contemplaram as especificidades e a realidade das pescas portuguesas.24
20
Texto apresentado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA, em 2007.
Licenciada em Historia - Investigadora da Patrimonium, centro de Estudos e Defesa do Património da Região
de Peniche.
21
O pedido de adesão à CEE foi entregue em 1977 e a partir de 1 de Janeiro de 1986 Portugal foi integrado na
comunidade.
22
A política comum de pescas (PCP) foi criada em 1970. Sendo a sobrepesca uma ameaça para o sector da pesca,
a PCP procura dentro da CEE uma solução comum e uma forma justa de redução das capturas.
23
Henrique Nogueira Souto, A Pesca em Portugal no novo contexto comunitário: o caso de Peniche, Lisboa, 1990,
pp.202-203.
24
69
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
A gestão do sector da pesca no quadro comunitário reveste-se de um elevado grau de complexidade, não só mas também, porque isso significa para
cada estado-membro estar em presença de forte concorrência no sector. Sendo a sobrepesca a principal ameaça para a pesca25, num contexto comunitário
entendeu-se a emergência em garantir uma pesca sustentável e assegurar o futuro do sector através da preservação dos recursos marinhos. Este é princípio
basilar da Política Comum da Pesca, para isso foi criada legislação para a limitação de capturas, a determinação de TAC’s, um sistema de quotas e limitação
da malhagem das redes.
A respeito da PCP, diz-nos um armador de Peniche e dirigente da Mútua
dos pescadores “a PCP foi um desastre para o nosso país. Não foram salvaguardados os interesses de Portugal em matérias como a manutenção da exclusividade das 12 milhas, a manutenção de acordos bilaterais que Portugal tinha, por
exemplo, com Marrocos, ou manutenção dos direitos de pesca longínqua que o
país detinha. Existe a ideia entre as várias entidades ligadas à pesca de o que
governo português é subserviente em relação às políticas que lhe são impostas.”26
Não obstante, no contexto de integração europeia a pesca em Portugal assiste
a um conjunto de modificações que se traduziram no relançamento do sector,
nomeadamente com a construção de infra-estruturas portuárias27, a recuperação e modernização da frota, o desenvolvimento da capacidade de industrialização do pescado, a adaptação das estruturas administrativas e mobilização de
recursos financeiros. Mesmo assim, frota de pesca continua envelhecida e os
pescadores revelam-se mal preparados e com dificuldades em acompanhar os
novos ritmos.
A pesca em Peniche sempre se destacou, no panorama nacional, pelo seu
dinamismo e pelo volume de desembarques no seu porto de pesca. Era o segundo porto de pesca mais importante do país e o grande fornecedor do maior centro consumidor de Portugal, a área metropolita de Lisboa. Naquela localidade
Por ser a principal causa da diminuição das unidades populacionais de peixe, tem como resultado a redução
de capturas, de desembarques e de rendimentos.
25
José António Amador (dir.), Marés, Publicação da Mútua dos Pescadores, nº 26, Outubro/Novembro/Dezembro, Lisboa, 1995, pp. 30.
26
Sobretudo através da criação de condições adequadas de acostagem de navios e reequipamento dos portos
de pesca.
27
70
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
o sector desenvolveu-se sobretudo no segmento da pesca costeira28, local e longínqua. Sendo a pesca do cerco a mais importante, destina-se essencialmente à
captura de pequenos pelágios: sardinha, carapau e cavala (espécies que desde
sempre representaram o maior volume dos desembarques). No ano da adesão,
em Peniche a pesca revelava algumas características de atraso e é fortemente
marcada pela tradição. Nesta frota envelhecida29, as traineiras e as rapas são
o tipo de embarcação predominante. No entanto desde o ano 1975 registou
alguns progressos, sobretudo pelo abandono gradual dos métodos de pesca
tradicionais. Existe uma especialização no segmento da pesca costeira, onde
se regista uma forte componente de frota industrial de cerco (traineiras)30 e de
pesca industrial não agremiada (PINA). Em 1986, as traineiras são em madeira,
estão equipadas com radar e sonar, contudo não possuem equipamentos de
conservação do pescado. No contexto nacional, a frota de traineiras de Peniche
é a mais numerosa, a mais jovem e a de maior dimensão, em consequência da
evolução que este segmento de pesca teve entre 1977 e 1982, por via das cooperativas que se desenvolveram. As restantes embarcações industriais de Peniche passaram a integrar a pesca costeira. Ainda em 1986, aquele porto possuía
a maior frota industrial polivalente do país com 35 embarcações ativas. Por sua
vez, a pesca local e a pesca costeira, sobretudo do cerco, estão associadas as
embarcações de menores dimensões e encontram-se em declínio (mantendose ao mesmo nível de 1982 a 1989). Em Julho de 1989 estavam registadas na
Capitania do Porto de Peniche 1 348 embarcações, das quais 789 se encontravam em actividade, destas apenas 378 possuíam motor.31 São as pequenas embarcações que estão fora da atividade. Por seu lado, as embarcações de maior
tonelagem (mais de 100 TAB) revelam maior vitalidade deste sector da frota.32A
tendência para a redução da frota, sobretudo das pequenas embarcações, vai ao
encontro da política nacional de redução da frota. Relativamente à questão dos
fundos estruturais/financiamentos o Sindicato de Peniche questiona as opções
dos programas de apoio: “a destruição da frota através dos abates é para con28
29
30
31
Onde está incluída a pesca do cerco.
Henrique Nogueira Souto, Op. Cit., pp. 204.
As traineiras.
TAB (Tonelagem de arqueação bruta).
Henrique Matos Nogueira Souto, A Pesca em Portugal no novo contexto comunitário: o caso de Peniche, Lisboa,
1990, pp. 104 e 105.
32
71
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
tinuar?” José Portada responde: “Os abates foram e são uma medida de gestão
da frota com a finalidade objectiva de (…) se preservar os recursos e garantir
condições de rentabilidade económica às empresas. (…) numa política de gestão
dos recursos, se torna necessário adequar a frota aos recursos disponíveis e nessa sequência o abate surge como uma medida estrutural adequada. (…) Só em
situações devidamente comprovadas como prioritárias e tendo em consideração
nomeadamente a idade das embarcações é que daremos apoio financeiro a estes
projectos.”33
No que respeita às formas de exploração comercial das embarcações de
pesca, em Peniche, verifica-se uma característica de uma pesca artesanal, onde
muitas vezes o proprietário do barco é também o seu mestre ou trabalha numa
unidade própria. As restantes formas de exploração correspondem às sociedades cooperativas anónimas.34
O sector da pesca é de grande importância económica para as comunidades localizadas no litoral do país, por ser um fator de fixação de população e por
simultaneamente induzir a um conjunto de atividades geradoras de emprego.
Sendo as principais atividades: a indústria de construção naval e de apetrechos
de pesca e auxiliares, as indústrias de transformação do pescado (indústria
das conservas, indústria de congelados, indústria da salga e secagem), assim
como, postos de trabalho em serviços administrativos e comerciais. Em Peniche, a pesca é o motor de toda a atividade económica, sendo que a maioria dos
pescadores são filhos de pescadores, as suas mulheres trabalhavam em atividades induzidas, nomeadamente, na indústria de conservas, de congelação e de
transformação de pescado ou como rendeiras/atadeiras. Para além de outras
atividades que se desenvolvem em terra diretamente relacionadas com a pesca:
seja ao nível das infraestruturas portuárias ou do comércio de artigos de pesca.
Num contexto comunitário de forte concorrência a necessidade de modernização e desenvolvimento é gritante. A comunidade piscatória de Peniche apresenta um ceticismo e hostilidade face às novas medidas emanadas
da Comunidade. Em Julho de 1989 estavam matriculados 3042 marítimos na
José António Amador (dir.), Suplemento de Marés, Publicação da Mútua dos pescadores, n.º 35/36 Junho,
Lisboa, 1999, p.10.
33
34
Henrique Nogueira Souto, Op. cit., p.118.
72
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Capitania do porto de Peniche35. Esta comunidade de pescadores envelhecida
apresentava-se pouco preparada profissionalmente, com um nível de instrução muito baixo, fato que condiciona as relações de produção (sendo a maioria trabalhadores por conta de outrem) e ainda dificulta o desenvolvimento da
atividade (uma vez que, a compra das embarcações, a modernização e a gestão
das empresas, num quadro de recurso ao financiamento, implicam um conhecimento das normas e o preenchimento de documentos).36 A fraca preparação
profissional sublinha a importância da formação profissional administrada nos
centros de formação profissional para o sector das pescas, como forma de preparar profissionais para competir num quadro de concorrência, capazes de se
adaptarem aos novos ritmos. Mas também para a melhoria das condições de
trabalho e de segurança das comunidades piscatórias e para a dignificação dos
profissionais da pesca, afirmando-se como um instrumento de recuperação do
sector.
Uma das questões chave de toda a política de pesca foi abordada por várias associações do sector: a Sesibal afirma: “até aqui o recrutamento tem sido
assegurado pela sucessão (…). Mas o que se verifica é que o investimento que tem
sido feito na formação não se reflecte na entrada de jovens para o sector.” Verifica-se que os mais jovens fogem da pesca devido às condições de trabalho pouco
atractivas e pelas baixas remunerações. Uma das questões que preocupam o
sector tem a sua expressão na pergunta colocada pelo Sindicato de Peniche:
“ O que é que o governo vai fazer para dignificar a profissão de pescador?”, José
Apolinário Nunes Portada, Secretário de Estado das Pescas, responde dizendo
que “considero que o conteúdo do ensino deve adaptar-se às mudanças em curso
no sector. O sector oferece hoje um conjunto de profissões cada vez mais exigentes e qualificadas que vão desde a produção à comercialização de pescado e à
aquicultura tradicional (…) além de toda a evolução nas técnicas de melhoria da
qualidade de pescado. (…) paralelamente torna-se necessário estudar o sector
por forma a encontrar outras vias que incentivem os jovens a aderir à profissão:
progressiva aproximação a um salário mínimo; prestações sociais que reforcem
a segurança contra doença e os acidentes; uma reforma condigna; limitações na
duração do trabalho; melhorias nas condições de trabalho; segurança no traba35
36
Desse total, 279 pertencem à pesca local e 2763 à pesca costeira.
E ainda, o ceticismo desta comunidade face às novas medidas para a pesca.
73
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
lho e uma atenção especial para os tempos passados a bordo; melhoria na comercialização por forma a rentabilizar a produção. (…).”37
Quanto à formação profissional administrada nos centros de formação
profissional para o sector das pescas, verifica-se um desajuste da formação relativamente às necessidades do sector, embora atualmente os cursos de formação têm tido em conta essas necessidades, diz-nos o Presidente do Sindicato
dos Pescadores de Peniche. Foi inaugurado em Peniche um centro de formação
do FORPESCAS em 1986, com o objectivo de formar um novo tipo de pescador.38 Em 1989, os 5 cursos leccionados no FORPESCAS eram frequentados por
129 alunos (formação profissional modular para contramestre, aptidão pescas,
ajudante de motorista, e ainda, de transformação pelo frio e de redeiro). A partir de Janeiro de 1990 só é possível a inscrição marítima após a conclusão do
curso de “Iniciação às Pescas”, ministrado por estes centros, para o acesso era
necessário ter idade mínima de 15 anos e a escolaridade obrigatória.39 Também
a progressão na carreira passou a exigir formação profissional, de forma a conferir aos marítimos as competências necessárias. A formação destes profissionais contribuiu em certa medida para a melhoria das condições de trabalho e
de segurança e para a dignificação dos profissionais da pesca, constituindo um
instrumento de recuperação do sector.
Esta comunidade verifica-se o regresso de pescadores reformados à faina,
porque o valor das suas reformas é muito baixo, mas também porque, apesar
da diminuição das embarcações, o número de pescadores e de jovens que ingressam nesta atividade tem vindo a diminuir. A questão da fuga dos jovens
desta atividade tem a ver com os riscos e incertezas inerentes a uma profissão
que está dependente da “sorte”. Também a falta de uma segurança económica e
as crescentes dificuldades em obter cédulas nas Capitanias contribui para esta
situação.
Com apoio do Instituto do Emprego e Formação Profissional, ao abrigo do
«Programa Pessoa», a Associação para o Desenvolvimento de Peniche (criada
em 1995) concluiu um estudo em Fevereiro de 1999, sobre a “Política de Recursos Humanos para a Fileira das Pescas em Cenário de Mudança” (MAHRE)
37
38
39
José António Amador (dir.), Op. cit., p.3 e 4.
Henrique Nogueira Souto, Op. cit., p.132.
Henrique Nogueira Souto, Op. cit. ,p.135.
74
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
iniciado em 1996 e coordenado pelo Prof. Dr. António Brandão Moniz e pelo Dr.
Duarte Nuno Vicente. Este estudo procedeu ao levantamento dos problemas
que afetam o sector, nomeadamente a estabilidade no emprego, as condições
de trabalho e a remuneração dos profissionais da pesca. E, ainda considera que
estes problemas tornam a pesca um mercado de trabalho pouco atrativo para
os jovens. O estudo revela ainda a existência de dificuldades de competitividade e de inovação do sector.40
A política da comunidade económica europeia para o sector incide sobre a conservação e a gestão dos recursos internos, regulando as condições de
acesso aos recursos, a definição de TAC’s41, as quotas nacionais de pesca e as
medidas de conservação; as relações internacionais de pesca; regulando também a comercialização dos produtos da pesca, a construção naval e a frota. A
regulamentação da organização do mercado incide sobre as normas de comercialização de pescado, regimes de preços e de trocas com o exterior e os apoios
às organizações de produtores.
Desde 1986 têm sido adotadas as disposições da Organização Comum de
Mercado (OCM) dos produtos de pesca. A adesão à Europa traduziu-se na liberalização e diversificação dos fluxos comerciais, quer a nível mundial quer dentro da própria CEE.42 Em Peniche a abertura do seu porto de pesca ao Mercado
Comum, deixou-o permeável ao pescado concorrente (nomeadamente de Espanha) o que se traduz na incerteza de que o peixe capturado seja comercializado,
é um aspeto negativo da adesão assinalado por esta comunidade piscatória.
Pois a globalização do mercado dos produtos da pesca traduz-se um cenário de
competitividade e concorrência para o sector da pesca de cada Estado-Membro
da comunidade europeia. No que respeita aos subsídios da CEE, apenas beneficiam aqueles que sabem preencher os documentos necessários à obtenção de
tais ajudas, sobretudo os donos das embarcações. No balanço da atividade (em
1995) o Comandante Raul Patrício Leitão43 destaca a construção de 10 armazéns para comerciantes de pescado no porto de Peniche, a instalação, reposição
e manutenção de defesas e ainda, a concessão da Fábrica e Silo de Gelo e dos
40
41
José António Amador (dir.), Op. Cit., p. 13 e 14.
Totais Admissíveis de Capturas (TAC)
Manuel Cardoso Leal, «As pescas portuguesas: balanço de 20 anos de integração europeia», in A Economia
Portuguesa – 20 anos após a adesão, António Romão (org.), Almedina, Coimbra, 2006, p.180.
42
43
Presidente da Junta Autónoma dos Portos do Centro.
75
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Estaleiros Navais de Peniche44. De acordo com o presidente do Sindicato dos
Pescadores de Peniche45, os dirigentes destas organizações de produtores são
pouco capazes e pouco preparados para essa tarefa - falta de preparação neste
sector é generalizada. E, também por isso, Portugal tem sido um “mau aluno” na
gestão do sector da pesca em contexto comunitário, com falta de estruturas e
falta de organização. Afirma ainda que, em 1986, com a integração de Portugal
na comunidade económica europeia o sector das pescas serviu de moeda de
troca relativamente a outros sectores. Ocorreram alterações ao nível da organização do mercado, da comercialização dos produtos de pesca, das estruturas
de pesca, da construção naval e sobre a frota de pesca e ao nível das relações
internacionais de pesca.
Para finalizar concluímos que a europeização das pescas portuguesas
traduziu-se num aumento do rigor da regulamentação e da fiscalização na actividade. Em Peniche houve necessidade de adotar novas estruturas para comercialização e conservação de peixe, em conformidade com as novas exigências.
Nesta localidade o sector registou algum progresso devido a uma alteração das
técnicas, embora mantendo em alguns aspectos uma feição tradicional. A modernização existiu sempre que possível, decorrente da adesão de à Comunidade Económica Europeia, consequência dos novos ritmos, do novo contexto económico e das novas condições de mercado. E os problemas (pré-existentes) que
envolvem o sector, apenas se vêm agravados pelo desajustamento das medidas
comunitário que não atendem à realidade da pesca em Portugal.
Cujos contratos, decorrentes de Concursos Públicos, foram atribuídos a sociedades locais constituídas para
o efeito.
44
Entrevista com o Presidente do Sindicato dos pescadores de Peniche, realizada no dia 19 de Janeiro de 2007,
em Peniche.
45
76
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
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Legislação
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
A CONSERVAÇÃO DE PESCADO ATRAVÉS DO SAL
(Uma perspectiva diacrónica da realidade local)
Luís Rendeiro46
Introdução
A importância que o sal teve na conservação dos alimentos e principalmente na independência do Homem em relação à sua própria subsistência alimentar, é tema passível de ser mais extenso do que aquele exposto neste artigo.
Trazer à luz das investigações a problemática da conservação do pescado,
é apercebermos que longe da realidade dos dias de hoje, onde a existência de
uma indústria de congelação e conserveira tão bem estabelecida na conservação de alimentos, a descoberta do sal como fonte vital dessa conservação viria
ser motor durante milénios para esse efeito de conservação.
Para se perceber toda a importância do sal, na independência alimentar,
nas trocas inter-regionais, bem como elemento vital numa economia de zonas
costeiras e na indústria das pescas até a meados da 1ª metade do século XX,
teremos de retroceder até à génese da sua utilização no quotidiano do Homem.
Onde podemos averiguar que desde da sua génese, até bem pouco tempo, o sal
foi alvo de cobiça económica, produto por excelência, presente nas vertentes
de conservação de carnes e de pescado. O sal vai servir assim de fio condutor,
para numa maneira transversal nos apercebermos da sua importância numa
sustentabilidade económica em zonas do litoral português.
Licenciado em Arqueologia e Mestre em Arqueologia pré-história - Investigador da Patrimonium centro de Estudos
e Defesa do Património da Região de Peniche.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Os Primórdios
A conservação dos alimentos, principalmente aquela onde o sal é utilizado como fonte de conservação, é atestada desde os primórdios da humanidade.
Em termos de realidade arqueológica, a utilização de sal na conservação
de alimentos, é atestada por aquilo que parece ser a exploração de sal marinho
integrado num modelo económico típico dos ambientes estuarinos no Sudoeste da Península Ibérica, (Soares, J. 2013).
Assim, nos estudos levados acabo recentemente pela investigadora Joaquina Soares, a mesma confirma que a partir da Revolução dos Produtos Secundários da Criação de Gado no último quartel do IV milénio a.C, a produção de sal
tem claras razões para se intensificar.
Assumindo algumas problemáticas que à arqueologia dizem respeito, a
questão como o da evidência física dessas possíveis redes de troca, é algo relevante explanar. Numa realidade económica, onde o sal seria mercadoria efetiva,
as evidências físicas deste produto é impercetível no registo arqueológico.
Nesta tentativa de traçar uma realidade do passado, os arqueólogos vão
utilizar vestígios que indiretamente se poderão ligar ao comércio do sal. Sendo exemplo disso os fragmentos de conchas marino-estuarinas em contextos
arqueológicos situados no interior do país, cujo distância pode atingir mais de
200Km do litoral, (Soares, J. 2013). Que tal como a autora refere, estes alimentos por si só, não teriam a capacidade económica de suportar estas trocas interregionais de longa distancia entre interior e litoral.
Seria então uma adição de produto a estes alimentos, neste caso o sal,
que assumia uma valência substancial capacitadora de sustentar estas trocas
comerciais inter-regionais litoral-interior. Passando este a ter um estatuto de
prestígio alimentar das comunidades estuarinas, que poderiam hipoteticamente trocar por cereais e cabeças de gado (idem ibidem).
Não podemos reflectir sobre esta questão, sem acrescentar que segundo
a autora do estudo, o sal vai acabar por atingir nesta época, um valor acrescentado face à galopante procura. Principalmente com a característica de sustentar
as tais rotas inter-regionais entre litoral e interior, e onde os tais “pães de sal”
fáceis de transportar sustentavam uma economia alimentar agro-marítima.
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A utilização do sal na conservação e na utilização culinária, parece neste
cenário quase prova fidedigna, onde a sua produção acaba por ser mais fácil de
comprovar. Através das estruturas de combustão destinadas a moldes cerâmicos e de evaporação de água salgada, que conjuntamente com os abundantes
fragmentos de cerâmicos resultantes da quebra intencional dos moldes, que
serviriam para o processo de obtenção dos tais “pães de sal”, acabam por ser
testemunhos dessa produção.
Estas realidades foram já atestadas em alguns contextos pré-históricos,
como em Marismilla no paleoestuário do Guadalquivir (Escacena Carrasco, J.L,
1996), Ponta da Passadeira em Setúbal (Soares, J. 2000), Monte da Quinta 2 no
estuário do Tejo (Valera, A. et al, 2006).
Em todas elas a produção de sal via ígnea é comprovada por produção
de salmoura em grandes vasos contentores, aquecidos no forno. E que através
da concentração de salmoura e cristalização do sal em recipientes cerâmicos,
formando os tais “pães de sal” (Soares, J. pg. 180. 2013).
Verifica-se assim que desde os primórdios, o sal e a sua capacidade para
conservar alimentos é utilizado pelo Homem, tornando-o numa mercadoria de
elevado valor.
Acabando por ser o sal uma das bases de conservação alimentar vital,
que vai permitir nesse alvorecer da civilização, a independência sazonal dos
alimentos.
Lvcio Arvénico Rvstico – o garum, e o sal no mundo Romano
Nesta importância crescente do sal, como método de conservação por
excelência, a diacronia da história repõem-nos para realidades que acabam por
ser mais familiares com a nossa vivência local.
Se falar em conservação de alimentos, e neste caso específico do pescado,
em que o sal acaba por ser a ignição desse método milenar de salgar para
conservar, então falar das conservas piscícolas onde o pescado é decomposto
numa mistura de sal e água (salmoura) acaba por descrever o aprimorar deste
método.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
De facto na antiguidade clássica, estes preparados piscícolas ganham uma
nova dimensão. Existem referências escritas do tal garum, que repõem esse
produto alimentar para cronologias que remontam ao século V a.C. Essas fontes
helénicas falam deste produto como sendo fabricado na cidade de Gades, e cujo
população mediterrânea sob influência grega e fenícia, o apreciavam bastante
(Bugalhão, J. pg.36. 2001).
Mas será no avançar da romanização de toda a Península Ibérica e do mar
Mediterrânico, que estes preparados piscícolas à base da conservação através
da salmoura, vão tomar grandes proporções na vida económica e comercial
destes povos.
Caracterizado por ser um produto de excelência à mesa de um qualquer
romano cujas suas posses o permitissem, estes preparados, pastas e molhos
(Garum). Uma iguaria que temperava os alimentos e condimentava o paladar
através do seu sabor forte e extremamente salgado.
Este garum ou liquamen era obtido através do esmagamento de vísceras
e sangue de peixes (atum, cavala, sardinha e peixes pequenos) que postos em
salmoura e expostos à temperatura ambiente durante períodos prolongados,
ou então aquecidos para uma maior aceleração do processo, eram lentamente
decompostos numa pasta, sobejamente apreciada nesta época por todo o
império.
Para o transporte deste produto, eram utilizadas as ânforas, contentores
por excelência na época. E cujo sua produção, está plenamente representada na
nossa localidade, pelo fornos de ânforas do Morraçal da Ajuda.
Estes fornos e olaria instalados durante o principado de Augusto, é tida
como uma das mais antigas olarias romanas da antiga Lusitânia, (Cardoso,
G. et al, 2011). A conferir a qualidade do garum por aqui produzido, estão as
evidencias da presença de ânforas produzidas no Morraçal da Ajuda, em locais
como Idanha-a-Velha, Beja, Évora, Conimbriga e Braga e para o nordeste da
Tarraconense, (idem ibidem).
Será então no decorrer desta observação sobre o processo de conservação
de produtos piscícolas, principalmente dos achados efetivos dos fornos romanos
de produção de ânforas do Morraçal da Ajuda, que a questão de uma “indústria”
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
de conservas nascida há mais de 2000 anos acaba por marcar um aspecto mais
tradicionalista vincado no quotidiano das populações.
E se a realidade aponta para essa importância vital para a economia da ilha
de Peniche em épocas romanas, não podemos deixar de perceber a realidade do
seu desaparecimento aquando o desmoronar do império, por volta do século V
d.C.
A diacronia do tempo e a importância efectiva do sal
Assim seria lógico que com o desaparecimento do império, e com ele toda
uma rede de trocas e comércio que impulsionava efetivamente esta produção
de garum, e de preparados piscícolas onde o sal funcionava como elemento
vital para a produção do mesmo, desaparecesse.
E dai se deduzir que estes produtos piscícolas, e principalmente o uso do
sal para a sua conservação, entra-se na esfera das técnicas que desaparecem no
findo de uma civilização?
Na realidade, esta técnica de conservação de produtos piscícolas através
da ação do sal (osmose), embora sofra algumas alterações quanto à obtenção
do produto final que os romanos lhe davam (garum), o facto é que findado o
império, as populações e os territórios que produziam estes produtos, vão
continuar a elaborar as mesmas técnicas de conservação através do sal.
Mudando apenas o produto final, assim em vez de produção do garum, as
populações utilizam estas técnicas aprimoradas ao longo dos séculos através
dos gregos e depois através dos romanos, para conservarem o peixe como
produto bruto.
A salga de peixe, onde após a sua abertura longitudinal (escalar), e depois
de eviscerar (amanhar), este é colocado em tanques, onde são dispostos com
camadas de sal. E onde os peixes mais pequenos (sardinhas, cavalas, biqueirão)
são introduzidos numa salmoura, a fim de através da acção da água do mar e
o sal, o processo acabe por produzir um produto cuja conservação confere-lhe
um uso na alimentação para os longos meses de inverno.
Assim o nascimento desta característica tão única, não só no litoral
português, mas também um pouco pelo litoral mediterrânico, de utilizar o sal
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como elemento essencial na conservação de produtos piscícolas. Vai acabar por
elevar o sal a um patamar de produto de excelência nas trocas entre o interior e
o litoral. E que como já anteriormente tínhamos verificado, é algo que se inicia
nos alvoreceres da nossa civilização, e que ganha novos contornos ao longo dos
milénios.
Nesta visão diacrónica da utilização do sal na conservação de alimentos,
principalmente nos produtos piscícolas, o desaparecimento de uma organização
estável e produtiva como o Império romano, e uma reorganização na produção
e no comércio, vai acabar por ditar o sal como um dos poucos produtos a se
tornarem ainda mais vitais e apetecíveis.
Será o sal, cuja sua produção será passível de se obter dividendos para
o dono, o senhor das terras e em primeira instancia para o rei, que vai acabar
muitas vezes por estabelecer uma forte fonte de rendimento?
Havendo já uma tradição bem vincada na salga dos alimentos, e
principalmente do peixe, um pouco pelas vilas piscatórias no litoral português,
é então fácil de concluir que o sal como condimento essencial nesta preservação
de alimentos vai dar aos terrenos onde pode ser produzido, um valor
relativamente apetecível.
Podemos observar que ainda nos primórdios da reconquista de Lisboa,
onde esta começa a tornar-se num centro de comércio vital do jovem reino,
os Judeus que na altura se estabeleciam como comerciantes por excelência,
iniciam um comércio de especiarias vindas do Levante (plantas medicinais,
frutos secos, mel e peles) e daqui sai o sal, peixe e cavalos (Garcia, M.A. 1993).
Certamente que se este comércio de sal estava já tão bem implementado
numa Lisboa recém-conquistada, então a sua produção certamente se manteve
estável e regular.
E observando as fontes escritas acerca deste produto, deparamo-nos
com o testemunho escrito mais antigo que remonta ao ano de 929 acerca das
marinhas do Baixo Vouga (Bastos, M.R. pg.33, 2009), ou o ano de 959 referente
às marinhas de Mumabona Dias em Aveiro (Bernardo, H.B.1966) e (Bastos,
M.R. 2009). É fácil atestar que mesmo antes do nascimento do nosso reino, a
produção de sal, era já algo de efectivo no nosso território.
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No panorama local as primeiras referências a este produto surge no foral
de Afonso Henriques concedendo as terras de Touguia a Guilherme de Corni em
1147, faz já constar as divisas a serem pagas pela produção de sal. Bem como
mais tarde na confirmação regia no foral de D. Sancho I (1190) e a de D. Afonso
II (1218), onde e tal como afirmara categoricamente Pina Leal, as palavras
“De marnis (…)” se refere a “De marinhas (…)”. Repondo assim a inevitável
produção de sal, uma vez por todas na realidade existente naquela época para
este território. (Bernardo, H.B. pg.17, 1966)
Embora sem nos dar a certeza de já existirem por cá efetivamente a certeza
de existir produção de sal em épocas pré-Guilherme de Corni, o facto que a sua
produção foi de imediato alvo de obrigatoriedade de dividendos para a coroa.
Não querendo fazer apenas alusão à produção do sal na região de Peniche,
até que para tal, a leitura de Hernani de Barros Bernardo e as suas “Marinhas
ignoradas da Estremadura – as salinas de Peniche.” São ainda tidas como bastante
válidas para os panoramas Medievais a contemporâneos. Pelo menos até novos
estudos nesse sentido, ou surgimento de outras realidades arqueológicas que
evidenciem outras prespectivas.
A realidade que assim podemos observar nas fontes escritas acerca das
tais salinas de Atouguia, são aquelas que até hoje nos chegaram as mãos. Como
exemplo disso de uma carta expedida de D.Diniz em 1284, onde disponha da
sua marinha da Atouguia a favor de Sebastião Pelágio. Ou nos documentos dos
ajustes entre a viúva de Fernão Fernandes Cogominho, uma tal D.Joana Dias,
e o Mosteiro de Alcobaça (Bernardo, H.B. pg.18, 1966). Referentes ao século
XIV, podemos averiguar no diploma de 28 de Setembro de 1340, que há época
já Peniche se demonstrava um ponto geoestratégico de um comércio apoiado
no mar. Onde se pode ler que um tal mercador Afonso Domingues, possuía em
Peniche “casa de pousada e de deposito para madeiras e sal (…)” (Calado, M.
pg.85, 1984). Atestando uma vez mais o sal, certamente produzido na região e
que encontrava a sua comercialização em rotas marítimas locais.
Nesse sentido e muito resumidamente podemos observar que ao longo
dos séculos XII, XIII e XIV as produções de sal na região são expostas em alguns
documentos dessas épocas.
Havendo referências no século XVI, pela mão do Padre Rodrigo Nunes
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
que nas suas Memorias das antiguidades concelhias, descreve o abandono de
salinas localizadas em Peniche (Bernardo, H.B. pg.32, 1966).
Na obra de Pedro Cervantes de 1865, este refere que existia na zona da
Pranjeira umas ruinas que ele repõem para umas antigas salinas, bem como fora
da contra-escarpa do fosso da praça umas ruinas que continham as inscrições
“casas de sal” (Cervantes, P. pg.26, 1865).
Também na obra de Pinho Leal de 1873, este autor refere umas ruinas de
supostas salinas junto da ponte do Baluarte da Misericórdia, e que o mesmo
refere que volvidos 20 anos, já haviam sido soterrados (Pinho Leal, A.S.B. 1873).
Estas duas visões de autores contemporâneos entre si, dão-nos a realidade
de uma produção salineira inexistente em Peniche. O que nos faz perceber que
certamente começa a existir um declínio a partir do século XVI na produção de
sal em Peniche, que vai resultar já numa inexistente presença no século XIX.
Factor aliás que leva Pedro Cervantes no seu texto “A Industria de Peniche”,
na sua descrição da vida económica da vila, a referir que “Em Peniche não há,
actualmente marinhas de sal, mas podia, e devia havê-las.” Mostrando que a
dependência da indústria pesqueira naquela altura ao sal, era de tal enorme,
que a produção de sal na localidade era vista como potencial económico viável.
De tal modo que o próprio tinha intenções de construir em Peniche umas
salinas, tal era o potencial da produção. Contudo essas salinas nunca chegaram
a ser construídas (Cervantes, P. pg.69,1865 appud Bernardo, H.B.pg. 41, 1966).
Na realidade outras tentativas houve, pois existe relatos de salinas na zona da
Pranjeira nos finais do século XIX. Bem como tentativas de construção também
de salinas na zona do fosso, já no inicio do século XX. Havendo mesmo salinas
efectivas na zona dos antigos Medões de Peniche de Baixo, por volta de 1944,
e que apenas duraram 3 anos em funcionamento, produzindo ainda assim
quantidade avultada de sal, e que segundo o autor refere, ser de muito boa
qualidade, (Bernardo, H.B.pg. 43, 1966).
Uma pequena paragem no tempo, e uma reflexão sobre o Clima
Antes de avançar com a realidade actual, e as tradições da conservação de
peixe através do sal, que ainda hoje teimam em persistir. Existe ainda espaço
para observarmos uma questão pertinente, o clima.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Não querendo entrar por ciências que não estão no meu domínio, a
paleoclimatologia (ciência que estuda as variações do clima ao longo dos
tempos),dá-nos a perceber a diacronia da história. Tomando conhecimento
do artigo “No trilho do sal: Valorização da história da exploração das salinas no
âmbito da gestão costeira da laguna de Aveiro” de Maria Rosário Bastos, onde
está exposta a questão climática, designada como Pequeno Óptimo Climático
(ambiente mais seco, com pouca pluviosidade). Que ocorreu, segundo alguns
cientistas, entre o ano 700 ao ano 1200, embora exista a teoria de que esta se
deu entre o século X e século XIV, não havendo consenso, e onde as temperaturas
seriam mais altas que a actualidade.
Este clima teria favorecido o crescimento populacional, bem como outros
aspectos da vida económica e territorial da população. Entre as quais, uma
sucessão de condições próprias ao nível da metreologia para a exploração
salineira, um pouco por todo o litoral, (Bastos, M.R. pg.38, 2009).
Que a partir do século XVI, até à metade do século XIX, devido a uma
situação climática oposta, a Pequena Idade do Gelo (temperaturas mais baixas),
originou a inversão da realidade observada anteriormente.
Este aspecto do clima existente nos alvores de Portugal, dão-nos a
consciência que por volta do século XII, por esta costa litoral, as zonas
ribeirinhas eram abundantes, facilitando uma maior existência de salinas um
pouco por todo o litoral.
A conservação do Peixe através do sal – a realidade actual
Parece-nos hoje um pouco estranho falar numa indústria conserveira onde
o sal seja produto essencial usado nessa conservação. Contudo não podemos
esquecer que um dos alimentos mais característicos da nossa gastronomia, o
Bacalhau, é um produto directo dessa conservação através do sal.
Na nossa localidade de Peniche, os indícios do declínio do uso do sal
surgem com o aparecimento das primeiras fábricas conserveiras em 1910, a
então primeira fábrica de conservas em molhos. E que a partir de 1912 com
a aquisição de terrenos por parte de Júdice Fialho, onde construi a Fabrica de
conservas – Algarve Exportadora, que começa a laborar em 1916, começa-se a
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
assistir um aumento significativo da indústria conserveira em Peniche (Peixoto,
L.C. pg.34, 1991)
Contudo o chicharro salgado, a sardinha salpicada ou colocada em barricas
de salmoura para ser transportada deste porto de Peniche para todo o país, ou
simplesmente para serem consumidos no inverno por esta comunidade local. É
algo que sempre se foi mantendo activa nesta localidade piscatória.
As técnicas de preparação do pescado para uma conservação através do
sal, é aliás ainda bem falada em Peniche, pelo menos entre a população mais
idosa. O escalar o chicharro para o salgar e coloca-lo depois em pias com
salmoura, ou o colocar a sardinha em salmoura em pios, e depois prensa-la
a chamada estiva, são termos usados ainda pela população, quando se fala da
conservação do pescado efectuada em Peniche. Mas para tal não deveria haver
admiração.
Pois se por um lado começamos a assistir desde o princípio do seculo XX
em Peniche ao surgimento de novas tecnologias, principalmente no que toca à
conservação de alimentos, por outro lado verifica-se durante a primeira metade
do mesmo seculo, ainda o uso tradicional do sal para esse efeito.
O surgimento de latas conservas de sardinha tal como hoje a conhecemos,
pode ter a sua remanescência em Peniche na primeira década do século XX, mas
o facto é que o seu surgimento na historia da alimentação surge pela primeira
vez em 1810, em Nantes, pela mão de Joseph-Pierre Collin, e em meados dos
anos 20 desse mesmo século, já na costa atlântica de França.
Realidade essa que Portugal viria a conhecer apenas no século seguinte.
Embora seja ainda importante referir que a invenção, deste tipo de
conservação de alimentos através de molhos e fechados hermeticamente num
recipiente, a fim de evitar a sua decomposição, é atribuído a Nicolas Appert,
cientista francês que em 1795 inventou este método.
Assim, e passado quase 100 anos depois da sua primeira utilização como
industria conserveira, o litoral português começa a sua diáspora na implantação
de instalações fabris, onde a conserva de sardinha por este método, começa a
bordejar um pouco por toda a costa.
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Em Peniche, como já foi referido, esta realidade começa em 1910. E onde
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
se nota um aumento de instalações destas unidades fabris, principalmente
durante a 1ª Guerra Mundial, onde constava já à época 13 unidades fabris.
Nesta mecanização na conservação de pescado, onde a salga de peixe e o
próprio sal, pouco a pouco vão sendo substituídos. Avança a técnica da conserva
de lata, da sardinha e do atum enlatada em azeite, das instalações fabris, e da
industrialização da conservação de pescado. De tal modo, que já pela altura da
2ª Guerra Mundial, o sector conserveiro era a sustentabilidade económica da
vila de Peniche conjuntamente com a pesca.
Juntando a esta inovação, começam a surgir também em Peniche, na
década de 30 as fábricas de gelo, que vão directamente substituir o sal na
sua função mais básica, a de conservar o pescado até ao seu destino final,
(Peixoto,L.C.1991) Agora o pescado deixa de ser salpicado com sal para aguentar
a distância necessária para a sua comercialização a longas distâncias, para
passar a ser gelado. Consequentemente surge em Peniche a primeira fábrica de
congelação, que vem assim, acabar por oferecer outra solução à conservação
de pescado, principalmente aquele que tradicionalmente não entrava dentro
da esfera dos enlatados.
Iniciando assim a fatiga do chicharro escalado e salgado, da sardinha de
barrica, ou estivada, diminuem os armazéns especializados nesses produtos,
e por consequência diminuem os homens e mulheres que se prestam a essa
actividade.
O sal começa a sua última e derradeira aparição como suprassumo da
conservação de pescado. A última grande reserva de sal é feita em Peniche em
1945, e o ultimo navio carregado de sal, a atracar no porto de Peniche, fê-lo no
ano de 1953 (Peixoto, L.C. pg. 85, 1991)
Começa assim, o fim de uma economia onde o sal era o principal motor
de subsistência. Ao fim de tantos milénios a apurar a técnica de conservação
de alimentos, e neste caso específico do pescado, o sal como elemento
conservador de alimentos, é relegado para segundo plano, mas nunca sonegado
completamente da conservação de alimentos.
Aprova da existência, ainda pelos estendais de Peniche, de peixe a secar,
das raias, do carapau e do tão apreciado quelme, são a prova viva desta tradição
milenar que ainda teima em persistir.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Numa moda que há uns anos a esta parte parece ser viral no panorama
cultural do nosso país, e a meu ver, ainda bem. No conjunto das possibilidades
patrimoniais de se elevar um património a uma categoria classificativa, talvez
seja ideia disparatada de se considerar o peixe-seco como património integrante
da cultura de Peniche? Penso que não.
A história do sal e da sua importância na conservação nos alimentos e
principalmente no pescado, está evidente, bem como evidente é a continuação
nas tradições locais, na produção de um produto tão típico de Peniche.
O sal e o seu uso para conservação de pescado, passou de ser uma acção
desprestigiada e corriqueira, sem muito valor como produto obtido, para nos
dias de hoje ser uma actividade exercida de maneira menos continua, e onde
as técnicas são diversas, como diversas são as espécies hoje em dia salgadas e
secas.
Parece então algo de caricato, que considerar hoje em dia o sal, como
produto capacitador de fomentar um produto regional e de marca de uma região,
como é o caso do peixe-seco. Principalmente quando hoje em dia o conservar, é
sinonimo de frescura e rapidez no processo. De facto, o salgar e depois secar é
um trabalho tradicional, que produz um produto único e apreciado pelos locais,
pelos emigrantes e já adere um grupo crescente de novos apreciadores. Então
repensar, tendo em conta todas estas evidências cronológicas relacionadas com
a conservação e principalmente o uso do sal como agente conservador, num
produto típico e ainda persistente na economia penichense como o peixe-seco,
não seja de algum modo caricato.
Salgar e secar, a persistência de um testemunho
Sendo ainda muito vincado hoje em dia, o uso do sal na conservação de
pescado, não poderia acabar esta reflexão sobre o uso do mesmo nas tradições
penicheiras, sem trazer à luz deste texto, entre os que ainda hoje protagonizam
esta tradição, um testemunho vivo dessa actividade milenar.
Não podia, até porque como penicheiro, e como investigador, mas
principalmente por afinidade directa, trazer o testemunho de quem uma
vida inteira aprimorou esta técnica sobejamente enraizada na localidade, a
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
seca de peixe, sendo de extrema importância para perceber este elemento de
conservação.
De seu nome Olívia Borges vulgo (Ti Olivia Paleca), desde de cedo foi
tropeçando pelas lides e da azáfama da venda de peixe de porta-a-porta.
Com os seus já avançados 78 anos de idade, a seca de peixe ainda continua
a ser rotina nos seus dias.
Entre a vida intensa na compra e venda de pescado, a Dona Olivia, ou
antes, Ti Olivia como gosta de ser chamada, desde de cedo observou que a salga
e seca de peixe seria uma optima forma de rentabilizar a compra do pescado,
tal não fosse uma tradição aprendida através da sua avó. Principalmente na
época de Inverno, onde o pescado não tinha o escoamento que é normal em
épocas de veraneio, a salga e posterior seca desse pescado viria a conservar o
mesmo durante um bom tempo.
Durante os anos que trabalhou nas lides da venda de pescado, foi
aprimorando desde de cedo a técnica da seca de peixe, pois entre tentativas
e erros e avanços e recuos, ora o sal não era o mais apropriado e ter-se-ia
de encontrado outro de melhor qualidade, ora a salmoura teria de ser feita
usando outra técnica, a exposição ao sal seria trabalho árduo de conseguir
uma uniformização deste passo consoante o tipo de pescado, e a exposição ao
sol e os dias que seriam precisos para a boa secagem do peixe seria outro dos
conhecimentos adquiridos ao longo de anos e anos a trabalhar este produto.
De facto, toda esta aquisição de competências na secagem de pescado
contribui para que a Ti Olivia agarre num produto sobejamente conhecido e
trabalhado nas épocas em que se iniciou no mundo do trabalho, e vai elevar
uma produção meramente ocasional e fugaz, a uma produção constante e de
cariz mais profissional.
Certamente que não foi a única pessoa da sua época a secar peixe de
maneira constante e mais efectiva, pois com o nascimento do Mercado Municipal
na década de 40, a inovação de produtos e a constante venda em lugar fixo
motivou a uniformização dos produtos vendidos ao público.
Assim a efectividade de produzir um produto básico e de fácil acesso
a todos os comerciantes de peixe, a salga e posterior seca, que se traduz na
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
produção do peixe-seco, que conjuntamente com toda uma variedade de peixes,
molúsculos, crustáceos e bivalves, passam a constar na variedade de pescado
numa banca de peixe do Mercado de Peniche.
Com a construção de novas instalações do Porto de pesca e a respectiva
lota em 1988, o aparecimento de um maior volume de pescado, e maior
diversidade (Peixoto, L.C. 1991), vai acabar por alargar o leque de pescado
vendido ao público no Mercado de Peniche.
Nesse sentido, se a diversidade de pescado fresco vendido ao público
cresce, então nada mais logico que a diversidade de peixe-seco acompanhe a
mesma tendência. Já não basta o carapau, a raia ou o quelme seco, todo o peixe
desde que o preço fosse convidativo ao comprador, ou a sua venda ao público
não se realiza-se, passa a ser passível de ser seco.
Ainda não há tantas décadas, proliferavam pelo 1º andar do Mercado de
Peniche, uma variedade imensa de peixe-seco (carapau, raia, quelmes, pataroxa,
safio, moreia, polvo, abróteas, etc) produto do trabalho das várias peixeiras
com quem convivi e aprendi algumas histórias de vida, onde o peixe (pescado
ou vendido) era mote para recordações de vida.
Eram nas bancas dessas peixeiras (Celeste Catraia, Fátinha Paleca, Ti
Idaliza) as que já não se encontram entre nós, bem como as peixeiras (Ti Olivia,
Fátima Rendeiro, ou Maria Celeste Catraia) que já não exercem a profissão, ou
ainda das peixeiras (Zezinha, Arminda, Conceição Travinca ou a Luisa) que
ainda hoje teimam em dar vida ao 1º andar do Mercado de Peniche, onde todas
as semanas enchem as suas bancas com o mais variado pescado. Que eu fora
acostumado a ver a variedade de peixe-seco, e a procura constante de clientes
locais, gentes que vinham da parte mais rural do Concelho, ou a abundante vaga
de emigrantes, normais na época de Verão, e que procuravam além de outros
produtos, o então peixe-seco de Peniche.
Neste testemunho vivo, de quem numa vida inteira se dedicou entre outras
vendas, à venda do peixe-seco, e como a própria Ti Olivia refere, a um sustento
familiar desde da época da sua avó. Esta peixeira de profissão e de alma, conta
que nas suas lides, a passagem da técnica da salmoura para o salgar o peixe deuse ainda na infância, quando nos dias de chuva a salmoura não era suficiente
para conservar o peixe, e tinha-se de salpicar o peixe com sal grosso para evitar
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
a sua putrefação. Nessa observação simples, a sua avó e posteriormente a sua
mãe, constataram que a salga seria melhor opção que a salmoura. Assim a
técnica da salga em todo o tipo de pescado (exepto do polvo, que ainda hoje
se utiliza a salmoura), passa a ser norma na obtenção do então peixe seco. A
Ti Olivia crescia nesta adaptação de secagem de peixe, e aprimorou-a ao longo
dos anos.
Como ela costuma dizer, “na altura da minha mãe, todas vendiam peixeseco em Peniche, iam para os arredores de carroça, para as Caldas da Rainha e
Torres Vedras. Na minha altura também íamos, não de carroça, mas agora de
carro. Mas para Lisboa? Para Lisboa fui eu a única. Logo a seguir ao 25 de Abril,
lá para os fins dos anos 70 comecei a ir a Lisboa vender peixe-seco.”. E de facto,
a Ti Olivia levou a venda de Peixe-seco para as ruas de Lisboa. Não que já não
existisse peixe-seco à venda pelas ruas do Arsenal, ou no Mercado 24 de Julho e
mesmo na Praça da Figueira, mas o peixe-seco de Peniche, com a qualidade que
lhe é conhecida, foi esta peixeira que com a sua visão empreendedora levou-o
para capital.
Começava assim uma longa caminhada de negócio e comércio, onde no
crescimento de clientes na capital, onde se poderia escoar então o produto, a
necessidade de aquisição de cada vez mais pescado, era uma constante.
Conjuntamente com essa necessidade de produto, crescia a necessidade
de mão-de-obra. Lembro-me bem das minhas primeiras lides, onde numa
mesa de grandes dimensões, se amanhava, escalava e cortava-se toneladas e
toneladas de peixe das mais variadas espécies, que seguiam para as dornas de
água para se lavar o resto das vísceras, e onde de seguida se salgava em pios,
dornas ou diretamente em caixas de madeira. Lembro-me dessa imagem, onde
entre mulheres e homens se juntava a essa mesa perto de 20 pessoas, semana
após semana e mês após mês.
Pode-se então afirmar que com uma extensão de produtividade a esta
escala, certamente não se afigura outra personagem como a Ti Olivia mais
representativa da tradição do Peixe-Seco como produto típico da cultura de
Peniche. Se bem que este foi trazido pelas vagas migratórias do início do século
XX pelas populações vindas da Figueira da Foz, Murtosa e Nazaré, o peixe seco
rapidamente se tornou parte da tradição alimentar local.
Tal como peixe-seco tornou-se sinónimo do nome Ti Olivia Paleca.
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Ilações possíveis
Nesta temática de conservar alimentos (principalmente pescado) através
do sal, tomando o conhecimento da importância deste desde dos primórdios da
civilização, a consciência da sua relevância para a economia do litoral português
bem como para as trocas de alimentos a nível inter-regional, é assim atestada.
Durante a pré-história o uso do sal está actualmente à luz das
investigações arqueológicas, a dar evidências da sua utilização na economia
destas comunidades. Realidade essa que já nas épocas da Romanização do
nosso território está sobejamente atestado. Os fornos do Morraçal da Ajuda e
a sua produção de ânforas vem-nos dar as evidências de uma realidade onde a
produção de molhos e pastas elaboradas através da conservação de sardinhas
ou alguns peixes pequenos da mesma família e a acção do sal, passam a ser
parte de uma economia local, perpetrada por esta romanização do território.
Com a queda do Império, e novas vagas de outros povos na Península
Ibérica, certamente pelas evidências, o sal não perdeu a sua importância na
conservação do pescado na costa mediterrânica nem na costa atlântica. A
certeza de um produto cuja importância foi ao longo de milénios comprovada
na conservação de alimentos, certamente ajudou a esse prolongamento no
tempo no uso deste produto.
Antecedendo os alvores da nossa Nacionalidade, a produção de sal está
atestada através de algumas fontes escritas que nos chegam até hoje. Bem como
posteriormente através dos forais e cartas de doação respeitantes a Atouguia,
comprova-se a importância do sal nesta região, ainda que tenhamos reservar
algumas conclusões sobre a presença de produção de sal realizada nessa época
na região.
Podemos observar que, por razões de alargamento de território nacional,
e estabelecimento constante de populações nesta região, principalmente
a partir do século XII, a produção de sal e consequente existência de salinas
nesta região, é uma realidade comprovada. E que conjuntamente com os
estudos paleoclimaticos conhecidos, apercebemos que o clima e as condições
ambientais da época ajudaram à implantação um pouco por todo o litoral
português destas salinas.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
A decadência da produção de sal a partir do século XVI parece também
ela ser real no panorama local. Decadência essa que é comprovada pelas fontes
escritas, pela sua completa ausência em Peniche já nos séculos posteriores.
Embora a utilização do sal, na conservação do pescado que diariamente chegava
ao porto de Peniche, traduzindo-se numa dependência enorme deste produto.
Dependência essa, que nos finais do século XIX tentam minimizar com
a construção de algumas salinas, mas sendo efémeras, são instalações que
perduram por um curtíssimo tempo. Nunca contribuindo para a independência
local deste produto.
Esta dependência do sal, só tem aquando das instalações da indústria
conserveira em Peniche, em meados da 1ª década do século XX, que numa
crescente onda de modernização desta indústria, irá já contar com mais de uma
dúzia de fábricas de conserva em épocas da 1ª Guerra Mundial. Contribuindo
assim e conjuntamente com a posterior aparição das primeiras fábricas de
congelação de pescado já em meados da época de 30 do mesmo século, para o
início do fim da dependência do sal para a conservação de pescado.
O sal passa a ser, a partir da 2ª metade do século XX, apenas mais um
agente que conserva o pescado, e não o único produto capaz de realizar essa
conservação.
Os produtos obtidos desta condição de salga, salmoura ou seca, passam
de ser corriqueiros e elementos básicos de uma economia local e nacional, para
passarem a ser produtos típicos de caris tradicional e elaborados apenas por
alguns. Permitindo assim um produto único, que ainda persiste, não apenas
localmente, mas em algumas zonas do litoral português. O peixe-seco é um
dos produtos que ainda sobrevive desta tradição milenar do uso do sal como
elemento de conservação, muitos outros existiriam em variadíssimas épocas
desta tradição de salgar para conservar, mas perderam-se as técnicas e o gosto
alimentar por tais acepipes.
A sardinha de estiva, ou o biqueirão salgado, são o exemplo desses produtos
tão apreciados não há muito tempo, mas que hoje em dia não são produzidos,
sendo o peixe-seco o derradeiro sobrevivente dessa conservação de pescado
onde o sal era rei, o ouro branco de tantos e a subsistência de muitos. O peixeseco é apenas hoje uma amostra mais tradicionalista dessa importância do sal,
e o vestígio de milénios de uso e evolução da técnica de conservar alimentos.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
PESCADORES DE PENICHE EM LUTA- A GREVE DE
1975
Adriano Constantino47
Introdução
Ao meu pai, grevista de 1975
Assinala-se este ano, os 40 anos da greve dos pescadores de Peniche, a
primeira grande greve do pós 25 de Abril realizada pelos marítimos. A origem
desta luta, por melhores salários e melhores condições de trabalho, remonta
ainda a 1970, ultrapassada então com um acordo entre o Grémio dos Armadores da Pesca da Sardinha e a Casa dos Pescadores de Peniche. Com os ventos
de Abril a luta reacende-se e rapidamente tem uma forte adesão da classe piscatória, destacando-se nesta luta a Comissão Pró Sindicato dos Pescadores de
Peniche que tem um papel fundamental na greve de 1975.
Palavras-chave: Peniche, greve, pescadores, pós 25 de abril, Sindicato
dos Pescadores;
O período pós 25 de Abril
O país:
Após a revolução, no período compreendido entre Abril de 1974 e Julho
de 1976, Portugal conhece uma complexa alteração política e institucional caracterizada por uma forte agitação social reivindicativa marcada pelo maior
surto grevista no século XX.
Licenciado em Arqueologia - Investigador da Patrimonium centro de Estudos e Defesa do Património da Região de
Peniche.
47
99
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
As greves verificadas, surgiram ora como resultado de movimentos espontâneos dos trabalhadores, ora integradas num plano de organização sindical, tendo também aparecido greves gerais ao nível de sector, como foi o caso
das pescas, atingindo todo o país.
Em 1975, Portugal está abraços com um “crise nas pescas”. No Algarve, a
29 de Janeiro, cerca de 1500 pescadores da sardinha voltam à greve, reivindicado em Olhão melhores salários a fim de garantir o salário mínimo nacional
durante os 12 meses; fixação de 21 tripulantes como mínimo em cada traineira
com acostado; retribuição alterada de 15$00 para 18$00 por 1000$00 de pesca; melhoria das pensões diárias para 30$00 e 50$00, consoante o produto da
pesca; consagração da caldeirada, indemnização de 150 contos (750 euros) por
morte ou inutilização pelo trabalho; rectificação das partes de alguns camaradas com encargos especiais; um mês de férias e subsídios de Natal. (O Século,
17 de Fevereiro). Em Portimão, reivindicava-se 17$00 por conto para barcos
com dois acostados ou 18$00 para barcos com um só acostado, mas se o total
da venda, no fim do mês não chegar a 3300$00, os pescadores exigem que o armador se comprometa a pagar o resto, para além destas reivindicações exigem
10 quilogramas de peixe para cada pescador, garantia de trabalho por um ano
e 150 contos por morte ou invalidez, 150$00 ao dia por trabalhos em terra e
que o contrato de trabalho entrasse em vigor a partir do dia 1 de Janeiro. Uma
segunda proposta admite em vez de 21 pescadores por traineira seja de 19
pescadores desde que os contramestres recebessem 32$00 por conto em vez
de 34$00 (O Século, 19 de Fevereiro). As reivindicações do sindicato não são
atendidas por intransigência dos armadores voltando os pescadores ao mar em
Março embora as reivindicações tenham-se mantido.
Em Vila do Conde e Povoa do Varzim, cerca de cinquenta barcos da pesca
artesanal não se fazem ao mar, impedidos pelos armadores que são contra a
decisão do Ministério do Trabalho e da Secretaria das Pescas, por estes terem
atendido às reivindicações dos pescadores através da Intersindical (O Século,
7 de Fevereiro): o fim da obrigatoriedade para as mulheres e outros familiares
dos tripulantes a trabalharem gratuitamente na descarga do peixe; obrigação
para os pescadores descarregarem o peixe e safar o aparelho; fiscalização das
vendas em lota por um tripulante da embarcação; descanso ao Domingo; proibição dos despedimentos sem justa causa e manutenção do número actual dos
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
tripulantes; os pescadores não mestres passam a ter direito a um quilo e meio
de peixe da maior quantidade de peixe capturado; nos dias em que ficaram em
terra a tratar dos apetrechos de pesca terão direito a 127 escudos; a receita
liquida por uma tripulação composta até catorze tripulantes será divida em 20
partes, das quais 7,5 será para o armador (2 para o mestre e o resto para o armador) e 1 parte para cada pescador. (Jornal de Noticias, 21 de Janeiro).
A 11 de Abril os pescadores do cerco de Matosinhos regressam ao mar depois um mês de greve. Após reunião na Casa dos Pescadores entre a Comissão
dos Pescadores, o Dr. Andrade dos Santos, elemento da Secretaria de Estado
das Pescas, Augusto Silva Belchior da Intersindical de Lisboa e de Artur Simões
do Ministério do Trabalho, ficou acordado retomar os trabalhos, não trabalhar
ao Domingo, manter as condições de trabalho da actividade da pesca com as
entidades oficiais e organizações sindicais (O Século, 11 de Abril).
Também na pesca industrial ocorrem várias greves, na pesca do bacalhau
verifica-se várias greves como por exemplo nas embarcações “Senhora dos Navegantes” e “Luís Ferreira de Carvalho”, em greve desde o fim de Janeiro devido
sobretudo aos baixos salários e nos arrastos costeiros do Norte do país em greve em Março.
Peniche
O porto de pesca de Peniche apresentava-se como um dos principais portos de pesca a nível nacional, com o total de 4000 inscritos marítimos e cerca
de 280 embarcações (O Século, 6 de Janeiro de 1975). A actividade principal do
porto era sobretudo a pesca da sardinha, sendo também pescados outros pelágios. Segundo Luís Correia Peixoto, nos anos 70 as traineiras atingem 22 a 25
metros e estão equipadas com guinchos hidráulicos e aladores, sondas electrónicas, atingindo os motores 400hp e apresentando a popa em painel, o que representa uma grande mudança na disposição do convés e na forma de largar a
rede deixando-se de largar a rede por bombordo passando-se a fazer pela popa.
Na década de 70, a frota nacional cercadora fora reduzida drasticamente
a metade, aparentemente devido à indisponibilidade prolongada de sardinha o
que se verifica também em Peniche. Na edição da Voz do Mar de 6 de Janeiro de
72, surge uma notícia deste decréscimo de traineiras passando de cerca de 80
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
traineiras para menos de 50. O total do pescado capturado em 1974 foi de 16
345 956 quilos valendo 134 526, 725 contos, no ano anterior o valor foi mais
reduzido, 106 372, 072 contos. (O Século, 6 de Janeiro de 1975)
Para além da pesca, a sociedade penicheira estava fortemente ligada a actividades relacionadas com o mar. Em meados da década de 70, laboravam seis
fábricas de conservas de peixe empregando, sobretudo, mão-de-obra feminina com salários praticados inferiores aos trabalhadores masculinos, parando
a sua produção nos meses de defeso da sardinha; duas fábricas de congelação;
cinco estaleiros; e existindo largas dezenas de atadeiras em situação precária
sendo só contratadas quando havia trabalho e com ordenados baixos (O Século,
6 de Janeiro de 1975).
Neste período, em Peniche, assiste-se à ocupação de várias casas, como é
o caso do Bairro de Santa Maria, por famílias de classe mais baixa e com poucos
recursos financeiros, este fenómeno é transversal a todo o país estimando-se
que cerca de 2000 casas camarárias tenham sido ocupadas em Portugal, (VIEIRA, Joaquim 2000).
Os antecedentes
A 10 de Maio de 1970, surge uma notícia no jornal local, A Voz do Mar,
do regresso ao mar dos barcos de Peniche após o acordo entre a Delegação do
Grémio dos Armadores da Sardinha e a Casa dos Pescadores de Peniche sobre
os rendimentos da pesca a auferir pelos pescadores, demonstrando o conflito
entre armadores (patrões) e pescadores (trabalhadores) existente em Peniche,
curiosamente com reminiscências à greve de 1961 que teve como base a luta
por melhores salários, ficando acordado o seguinte:
“Cláusula 11.ª- Do produto de cada maré de pesca, serão distribuídos para
“caldeirada” por cada tripulante:
1) Quando as vendas foram efectuadas em Peniche, 20$00.
2) Quando as vendas forem efectuadas noutros portos, 30$00.
Quando o produto da maré não atinja o montante integral das caldeiradas
e impostos, será ratado proporcionalmente à sua totalidade, sendo de sua conta
o pagamento dos impostos.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Cláusula 12.ª- Quinzenalmente, do rendimento da pesca livre de caldeiradas o armador pagará para distribuir pela companha as seguintes percentagens:
Até 50 000$00, 36,4%.
De 50 000$00 a 120 000$00, 42%.
Mais de 120 000$00, 42%.
O valor total destas percentagens será entregue às companhas de 1 a 6 e
de 16 a 21 de cada mês terá a seguinte distribuição, no máximo 28 partes:
Mestre, 4; Contra mestre, 2; Marinheiro pescador (Max. 5) 1,2; Pescadores, 1; Moços pescadores (14 a 15 anos), ½; Moços pescadores (15 aos 16
anos), ¾; Casa dos Pescadores 1 (Peniche); Guardas, 1 (para todos); Auxiliares
das artes d pesca 1.
§ 3º - Em cada quinzena utilizar-se-á para liquidação a que se refere o
corpo deste artigo, apenas uma percentagem, aquela que corresponder à totalidade do rendimento da pesca livre de caldeiradas.”
No Inverno de 1973 os pescadores voltam a parar após reunião com o
Capitão da Capitania pelo descanso semanal ao domingo, até então o único descanso semanal estava compreendido entre as 17h de Sábado e as 10h da manha
de Domingo. Dessa reunião alguns pescadores são intimidados pelo Capitão da
Capitania com ordem de prisão caso se verificasse alguma greve embora se tenha conseguido que o descanso semanal fosse prolongado até as 3h da manhã
de Segunda-Feira.
Na altura do embarque dos pescadores da traineira Boa Fé, às 3 da madrugada para faina, são intimidados com a presença de elementos da PIDEDGS, na zona da Ribeira e área circundante, com metralhadoras em punho.
A 23 de Março de 1974 assiste-se a uma nova paralização face à grave
situação salarial dos pescadores entrando os pescadores em greve.
Curiosamente no dia 25 de Abril há uma tentativa de furar a greve mas o
armador da embarcação “Cinco Netos” é abordado pelos militares de Abril na
Ribeira ao embarcar a rede e obrigado a recolher a rede no armazém.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Logo após o 25 de Abril, são encetadas negociações entre os pescadores
e os armadores alterando então as percentagens dos ganhos sobre a pesca. Os
pescadores exigiram 45% sobre o valor total do pescado mais 40 escudos (20
cêntimos actualmente) por irem para o mar, ficando acordado que seria 42%
do valor do pescado quando ultrapassasse os 100 contos (quinhentos euros),
anteriormente o limite era os 120 contos (600 euros), caso a pesca não ultrapasse os 100 contos ficam com 39,2%, passando a gozar de descanso desde as
5:30 de sábado e as 10h da manhã de Segunda-Feira. (O Século, 6 de Janeiro de
1975).
A constituição do Sindicato dos Pescadores de Peniche
Logo após a Revolução de Abril, a 7 de Maio, (Viriato Dias 1975) é criada
uma Comissão Pró Sindicato dos Pescadores de Peniche, aderindo à Intersindical, sendo Carlos Cordeiro o presidente da Comissão, fazendo ainda parte Arménio Pinto, Júlio Gonçalves de Almeida, João Leitão Viola, Saul da Silva Maia
Guincho, Ilídio Jeremias Rosa e Carlos Mota. As reuniões para a formação do
sindicato começaram ainda antes do 25 de Abril de forma clandestina, elegendo uma comissão directiva, com conhecimento do Capitão do Porto. Até à data,
os interesses dos pescadores eram defendidos pelo presidente da direcção da
Casa dos Pescadores, um oficial da Marinha de Guerra que acumulava as funções de Capitão do Porto, sendo a entidade que negociava os contractos de trabalho com os armadores em representação dos pescadores (idem ibidem).
As reuniões da Comissão são agendadas sempre para a Casa dos Pescadores pela falta de um espaço físico para o Sindicato. A essas reuniões chegou a
assistir o Capitão do Porto sendo alvo de muitas críticas por parte dos pescadores presentes perante a conduta praticada antes do 25 de Abril de repressão e
de ataque aos pescadores, mais tarde ocorre a substituição do Capitão do Porto
por pressão dos pescadores.
A 29 de Outubro de 1974 é agendada uma convocatória aos sócios para
se reunirem em Assembleia Geral na Associação de Educação Física Cultural e
Recreativa Penichense a 3 de Novembro pelas 21h para com o intuito de informar a actividade desenvolvida pela Comissão; discutir e aprovar os estatutos;
eleição da Comissão Pró Sindicato; aprovação de contas da Cooperativa e o seu
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
destino. Para além dos sócios e da Comissão esteve presente o Sr. Almirante
Silvano Ribeiro, antigo Comandante do Porto de Peniche e membro da Junta
da Salvação Nacional. Os estatutos são redigidos, no dia seguinte, na Casa dos
Pescadores tendo no total vinte e dois artigos que definem os regulamentos da
Comissão, destacando-se:
“Artigo 3º - O Sindicato dos Pescadores de Peniche representará todos os
pescadores ou auxiliares de pesca, como tal matriculados, que exerçam efectivamente a profissão em barcos registados na Capitania do respectivo porto.
Artigo 5º - Para garantir a plena independência do Sindicato em face do
patronato, os mestres não serão elegíveis para os corpos gerentes ou para as
Secções Sindicais, embora possam inscrever-se como sócios e gozar dos restantes direitos que a estes pertencem.
Artigo 6º- O Sindicato dos Pescadores de Peniche será independente e autónomo em relação à Casa dos Pescadores a qual deia de exercer as funções de
representação profissional, limitando-se a assegurar localmente as atribuições
da Junta Central das Casas dos Pescadores de Peniche em matéria de previdência, abono de família e acção social.
Artigo 7º- Enquanto não estiver completado a divisão dos bens do pessoal
e dos serviços actuais Casas dos Pescadores entre estas e as associações sindicais que lhes irão suceder nas funções de representação profissional, o sindicato dos Pescadores de Peniche utilizará as instalações, o pessoal, a estrutura
administrativa e os recursos técnicos e financeiros da Casa dos Pescadores de
Peniche, em termos a estabelecer por acordo com a respectiva Direcção.
Artigo 11º - Serão criadas formas descentralizadas (delegados sindicais,
etc.) para levar a acção do Sindicato aos barcos e a todos os locais de trabalho”
Já no ano seguinte, a 26 de Fevereiro são de novo chamados os associados
para debater no dia 3 de Março (Segunda-feira) às 11h, assuntos da classe, desta vez já na sede da Comissão, no edifício da Escola de Pesca.
A 5 de Agosto é publicado no Diário da República a criação do Sindicato
dos Pescadores do Distrito de Leiria, tendo como sede Peniche.
“Os pescadores de Peniche querem um sindicato de base e não de cúpula. Não queremos estar afastados das outras classes como no antigo regime.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Embora, para a união da classe em todo o país queremos sindicato com ligação
local com um representante em cada porto, para discussão dos problemas a
nível nacionais.”
A paralisação do sector
O início da greve ocorre após as reivindicações da Comissão Pró Sindicato não serem atendidas pelos armadores. A Comissão reivindicava 15 dias de
férias pagas e a institucionalização dos delegados sindicais a bordo, remunerados em ausência por obrigações sindicais, e uma nova distribuição dos valores
realizados com a venda do pescado capturado passando os pescadores a auferir 100$00 de imediato e 45% das vendas até 150 contos e 50% a vendas superiores a esse montante, quantia dividida em três partes para o mestre, duas
para o contramestre e uma para cada pescador da companha. Curiosamente
não surge nenhum dado em relação à categoria de Motorista e de Ajudante de
Motorista, embora na altura tenha existido também uma Comissão Pró Sindicato dos Motoristas Marítimos.
A 20 de Março, Quinta-feira, reuniram-se às 17h, na Associação de Educação Física e Recreativa e Cultural Penichense a Comissão Pró-Sindicato e os
pescadores da pesca da sardinha ficando acordado o início greve, mais tarde,
a 31 de Março, aderem os barcos da artesanal após uma reunião realizada no
cinema do Club Stella Maris.
No dia 21 é posto a circular um comunicado explicativo da Direcção da
Comissão do Sindicato com o apoio da Comissão Provisória Directiva da Casa
dos Pescadores de Peniche sobre o início da greve referindo-se à necessidade
de produzir. A famosa “Batalha da Produção” é travada por todo o país, o próprio secretário das Pescas, o Dr. Mário Ruivo, em entrevista antes de partir, em
Abril, para uma conferência internacional em Genebra salienta a importância
de produzir no sector da pesca. O porto de Peniche foi o único porto que nunca
paralisou o seu trabalho após o 25 de Abril nem aprovou o defeso da sardinha,
embora seja praticado desde 15 de Janeiro a 15 de Maio, sendo os barcos obrigados a procurar outras espécies como o carapau no Cerro (pesqueiro a Sudoeste da Berlenga) ou então a encalhar os barcos, com a excepção de um barco
que poderia apanhar sardinhas unicamente para ser vendidas como isco para a
pesca artesanal, mas mesmo assim sujeito a quotas.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
No comunicado é ainda exposta a intransigência dos armadores em atender às reivindicações propostas, embora a Comissão já tenha feito algumas cedências, sendo levantada a questão pelos armadores em relação à despesa do
gasóleo e às oficinas. Por fim, no último ponto surge a criação de piquetes de
greve à entrada dos armazéns de redes para não deixar ninguém trabalhar tendo as atadeiras aderido à greve.
Com o avançar da greve, a 3 de Abril é convocada para esse dia uma reunião com os pescadores da sardinha, às 21h no Stella Maris, com a presença de
um Delegado do Ministério do Trabalho e da Secretaria das Pescas. Entretanto
são marcadas mais reuniões entre a Comissão Pró Sindicato e os pescadores da
sardinha e da artesanal, muitas delas no Club Stella Maris, desta forma realizam-se reuniões a 7, a 17, a 24 de Abril e a 5, 6 e a 14 e 16 de Maio.
Na reunião de 7 de Abril esteve presente cerca de quatrocentos pescadores, tendo-se discutido a situação da greve bem como dos estatutos para o
Sindicato dos Pescadores, ficando aprovado por unanimidade o envio de um
telegrama ao Primeiro-Ministro, ao ministro do Trabalho, ao conselho de Revolução e à Secretaria das Pescas. (O século 15 de Abril). No dia 16 reúnem-se
no Ministério do Trabalho vários elementos que compõem as comissões do sindicato, dos armadores de pesca artesanal e o secretário de Estado Dr. Carvalho
Costa.
Em Maio no dia 9 os pescadores da pesca da sardinha de Peniche reúnemse em plenário deliberando:“1º- Dar prazo até ao dia 17 de Maio de 1975 aos
armadores para satisfazer as reivindicações das cláusulas 15ª e 17ª do contrato
de trabalho.
2º - Saneamento imediato dos mestres armadores e mestres não sindicalizados.
3º A partir da data estabelecida os pescadores vão para o mar com mestres escolhidos pelos tripulantes e com uma comissão de gestão escolhida pela
mesma.
4º Estas posições foram tomadas em virtude dos mestres armadores e
armadores, não terem adiantado as negociações do contrato em referência,
causando portanto, prejuízos enormes aos pescadores e à própria economia. “
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
No dia 12 de Maio regressam os barcos da pesca artesanal ao mar (Jornal
a Voz do Mar edição de 15-05-1975) terminando a greve para os pescadores da
artesanal.
A 14 e 16 de Maio assiste-se a novas reuniões com os pescadores da sardinha contando com a presença dos delegados do governo, estando para greve
a resolução da greve. Que se vem a verificar no dia 19 com um comunicado:
“A Comissão do Sindicato dos Pescadores de Peniche, vem informar os
pescadores da sardinha chegaram a acordo com os armadores da mesma arte
dando-se por finda a greve que arrastava há cerca de dois meses.
A Comissão do sindicato dos Pescadores de Peniche depois de analisar
os resultados desta luta dos pescadores, quer da pesca artesanal quer da pesca
da sardinha, conclui que mais uma vez a classe piscatória deste porto, devido
á sua unidade, elevada consciência de classe e devido à sua consciência sobre
a realidade nacional, conseguiu conquistar aos armadores melhores regalias e
condições de trabalho.”
Os pescadores regressam ao trabalho no dia 20, com os mestres a receber
3 partes em vez das 4 e conquistou-se o descanso semanal de Domingo. Uma
vez mais a traineira “Cinco Netos” cruza-se com a História sendo a primeira
traineira a ir para o mar na madrugada de Sábado apanhando 253 cabazes de
sardinha e a primeira a largar na Segunda-feira após o descanso semanal de
Domingo. Muitas outras traineiras seguiram o rumo do “Cinco Netos” e rapidamente se fizeram ao mar, outras fruto da greve, tinham ainda trabalhos de
calafetagem e de pintura a fazer a bordo (O Século- 24 de Maio de 1975).
Paralelamente à greve, o Sindicato tenta um acordo com os compradores
sobre os Carretos (descarga e transporte do peixe pelos pescadores até ao armazém do comprador sendo o comprador obrigado a pagar por esse trabalho)
sendo publicado um comunicado por parte da Comissão, a dia 19 de Maio, aos
pescadores da sardinha e cercadoras que desde aquela data até dia 18 do próximo mês, cada cabaz vendido deverá ser pago 2$50 e 3$50.
108
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Considerações finais
Embora ainda falte consultar alguma documentação relativa à formação
do sindicato e das conquistas efectuadas com a greve, bem como a repressão
exercida no período anterior ao 25 de Abril sobre as reivindicações da classe
piscatória concluiu-se, com os dados consultados até ao momento, que greve
dos pescadores de Peniche de 1975 ocorre devido às tensões criadas no período anterior à Revolução entre os armadores e pescadores sobre a repartição
dos ganhos da pesca e do descanso semanal, situação análoga a várias comunidades piscatórias nacionais.
O período de paralisação para os pescadores da sardinha é cerca de sessenta dias, regressando os barcos ao mar cinco dias depois de ter terminado o
defeso. Após ter realizado várias entrevistas a pescadores da altura, incluindo
mestres e membros da Comissão Pró Sindicato, no fim da greve havia já muitas
dificuldades por parte dos pescadores, o que em parte pode ter permitido o
desfecho logo após o fim do defeso.
Para além das conquistas por parte dos pescadores da sardinha será importante compreender a extensão às atadeiras e aos pescadores da pesca artesanal para além do papel desempenhado pela Comissão Pró Sindicato dos
Motoristas Marítimos.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Bibliografia
DIAS, Viriato; PAIVA, Octávio (1975)- Pesca- Peniche o Impasse, Lisboa, O
Século Ilustrado, pp. 4-7.
VIEIRA, Joaquim (2000)- A Propriedade, in Portugal Século XX Crónicas
em Imagem 1970-1980, Circulo de Leitores, Printer Portuguesa, pp. 161-167
Periódicos
[s.n.] Os barcos voltam ao mar, in Voz do Mar, 15 de Maio de 1975, Peniche, p.8.
[s.n.] Hoje- Seis mil pescadores do bacalhau podem entrar em greve, in
Jornal O Século, 10 de Fevereiro de 1975, Lisboa, p. 8.
[s.n.] Em Olhão Prossegue a greve dos pescadores de sardinha, in Jornal O
Século, 9 de Janeiro de 1975, Lisboa, p. 9.
[s.n.] Em Peniche- Pescadores decidem manter a greve, in Jornal O Século,
15 de Abril de 1975, Lisboa, p.4.
[s.n.] Greve Geral ameaça a pesca do arrasto, in O Primeiro de Janeiro, 27
de Março de 1975, Porto, p.10.
[s.n.] Melhores Proventos auferem os pescadores de Peniche, in Voz do
Mar, 10 de Maio de 1970, Peniche, pp 1 e 6.
[s.n.] O problema das pescas constitui um elemento extremamente importante no que diz respeito à nossa economia, in Primeiro de Janeiro, 14 de
Abril de 1975, Porto, pp. 1 e 2.
[s.n.] Os pescadores de Peniche em greve, in Voz do Mar, 3 de Abril de
1975, Peniche, p.8.
[s.n.] Peniche: após dois meses de greve, as traineiras regressam ao mar,
in Jornal O Século, 21 de Maio de 1975, pp 1 e 5.
110
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
[s.n.] Peniche: Conhecer para transformar, in Jornal O Século, 6 de Janeiro
de 1975, Lisboa pp. 1 e 14.
[s.n.] Peniche 72 Evolução ou Decadência?, in Voz do Mar, 6 de Janeiro de
1972, Peniche, p. 1.
[s.n.] Pesca da sardinha na costa algarvia: greve termina sem êxitos para
pescadores, in Expresso, Lisboa, 28 de Março de 1975, p.6.
[s.n.] Pescadores Algarvios: Em greve há vinte e dois dias, in Jornal O Século, 19 de Fevereiro de 1975, Lisboa, pp 1 e 7.
[s.n.] Pescadores de Peniche mantêm-se firmes na greve, in Expresso, 5 de
Abril de 1975, Lisboa, p. 2.
[s.n.] Pescadores em greve- Matosinhos: regresso à faina, Peniche: continua o impasse, in Jornal O Século, 11 de Abril de 1975, Lisboa, p.2.
[s.n.] Pescadores no Algarve: a greve continua, in Jornal O Século, 17 de
Fevereiro de 1975, Lisboa pp. 1 e 7.
[s.n.] Sábado de Aleluia- Pescadores querem ser senhores do seu destino,
in Jornal O Século, 31 de Março de 1975, Lisboa, p. 3.
Arquivo do Sindicato dos Pescadores da Pesca da Sardinha do Distrito de Leiria
AAVV (1974); Convocatória de 29 de Outubro de 1974, Peniche, Comissão
Pró Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1974); Bases Estatuárias, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos
Pescadores, 30 de Outubro.
AAVV (1975); Convocatória de 13 de Março de 1975, Peniche, Comissão
Pró Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Convocatória de 19 de Março de 1975, Peniche, Comissão
Pró Sindicato dos Pescadores.
111
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
AAVV (1975); Convocatória de 28 de Março de 1975, Peniche, Comissão
Pró Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Convocatória de 3 de Abril de 1975, Peniche, Comissão Pró
Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Convocatória de 7 de Abril de 1975, Peniche, Comissão Pró
Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Convocatória de 17 de Abril de 1975, Peniche, Comissão
Pró Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Convocatória de 24 de Abril de 1975, Peniche, Comissão
Pró Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Convocatória de 5 de Maio de 1975, Peniche, Comissão Pró
Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Convocatória de 6 de Maio de 1975, Peniche, Comissão Pró
Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Comunicado de 10 de Maio de 1975, Peniche, Comissão Pró
Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Convocatória de 14 de Maio de 1975, Peniche, Comissão
Pró Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Convocatória de 16 de Maio de 1975, Peniche, Comissão
Pró Sindicato dos Pescadores.
AAVV (1975); Convocatória de 19 de Maio de 1975, Peniche, Comissão
Pró Sindicato dos Pescadores.
Entrevistados: António Catarino; Areolindo Correia Arménio; Pinto Elísio Constantino; João Comboio; Manuel Batalha
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
OS PESCADORES, DE RAUL BRANDÃO – ETNOGRAFIA E
MEMÓRIA
João Luís Moreira48
O meu primeiro contacto com a obra de Raúl Brandão deu-se com a peça
O Avejão, pequeno texto dramático que muito me aprouve trabalhar, visto que
rapidamente encontrei nele semelhanças com um outro, da autoria de Woody
Allen, intitulado “Death knocks”49. Woody Allen, de forma magistral, conduz-nos
ao universo satírico e à mordaz ironia com que o povo americano consegue rir
de si próprio. No fundo, não é dos americanos que o cineasta se ri, mas sim da
“cultura” instituída. Nesta peça, Nat, enquanto lia um jornal, recebe a visita da
sua sinistra Morte. Para ganhar tempo e iludi-la, o homem decide o seu destino
através de um jogo de gin rummy. A Morte ainda tenta recuperar a si o ar autoritário, sombrio e definitivo que a cultura lhe transmitiu, mas Woody Allen não o
permite e esta Morte, desde o primeiro momento em que tropeça num algeroz,
ao entrar em casa de Nat até ser enganada por este, está condenada ao ridículo.
No caso de O Avejão – episódio dramático (1929), de Raul Brandão, a situação
afigura-se outra; o cómico está lá, mas o que constitui o fulcro da peça é o ajuste
de contas, como se de um julgamento final se tratasse. A Velha, no final, percebe
que não viveu e pede para voltar atrás, mas a irreversibilidade do tempo e da
morte, no fundo, não cedem.
Enfim, poderá parecer descabida a relação acima entre autores tão
distantes, mas foi esta que me levou, ao longo dos anos, a procurar conhecer
melhor a obra de Raul Brandão. Este contacto, devo dizê-lo, deu-se de surpre48
Professor da Escola Secundária de Peniche, destacado no Chapitô.
O título indicado é o que surge na edição americana de Getting even (1971). Em Portugal, o livro foi publicado
com o título Para acabar de vez com a cultura, em 1980. “A morte chama” é o título dado ao texto referido.
49
113
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
sa em surpresa. Depois de rir e refletir com O Avejão, anos mais tarde, viria a
familiarizar-me com o autor através de Memórias (volumes I e II), registo em
que, creio, melhor se revela, de forma quase comovente, legando-nos a sua visão de um Portugal em convulsão (o país que acabava de acenar à República),
mas sentindo-o através da memória que transforma muitos dos seus textos em
autênticos documentos históricos, pois poderão servir como porta de entrada
a muitas figuras incontornáveis que com ele se cruzaram. Apesar disto, foi com
Húmus (1917) – texto publicado em plena turbulência modernista - que Raul
Brandão se me revelou na totalidade: pela convergência de influências, pela ousadia, mas, sobretudo pela originalidade que, afinal viria a criar escola, funcionando o autor como epígono de muitos romancistas que se seguiram, cultores
de um estilo ficcional mais subversivo50.
Os pescadores (1923) vêm colar o autor a uma tendência herdada, talvez,
de um certo romantismo chegado a Garrett, levando-o a dar atenção a tudo
o que constitui a alma de um Portugal que estava, a seu ver, a desaparecer e
que sentia ser merecedor de registo e atenção. Álvaro Manuel Machado, aliás,
em relação a esta herança, precisa-a e refere-se a “um romantismo, digamos,
voltado para dentro, íntimo e problemático” (Machado, 1984: 14) como cerne
da escrita de Raul Brandão. Em Os pescadores não é ao intimismo puro que
assistimos, mas sim ao registo de um mundo para melhor compreensão de si
mesmo, o que acaba por vir ao encontro da afirmação de Machado. O mesmo se
poderá dizer da intenção social da obra do autor, na sua globalidade. Maria João
Reynaud, em recensão crítica a Os operários (1984), refere-se a um “projecto
de empreender a análise dos vários estratos que formavam a sociedade coeva”
(Reynaud, 1985: 102), “uma congeminada “Vida Humilde do Povo Português”
(Idem: 101), apontando uma trilogia que planeava publicar e de que, além da
colectânea acima referida, fariam parte Os pescadores e uma outra que ficou
apenas delineada, intitulada Os lavradores.
Os textos que compõem Os pescadores, organizados por locais da costa e,
por isso, sem critério de organização por ordem cronológica são profundos, reflexivos, plenos de uma sensibilidade que, por si só, para efeitos de análise estética, dariam um estudo longuíssimo que nos obrigariam a passar por uma série
Álvaro Manuel Machado, por exemplo, refere os nomes de José Régio, Miguel Torga, José Rodrigues Miguéis,
Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira, Almeida Faria (1984: p. 12).
50
114
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
de tendências estéticas (romantismo, realismo, impressionismo, simbolismo,
decadentismo, modernismo…), tal a complexidade da escrita de Raul Brandão.
Convém, por isso, que nos detenhamos apenas em algumas linhas de leitura em
relação ao estilo e intenção da obra, à pesca e às gentes e aos lugares, nomeadamente à visão que nos transmite de Peniche.
Filho e neto de homens ligados ao mar, Raul Brandão não se encontrava,
por isso, a ceifar em seara alheia. Daí o realismo e a propriedade com que, nos
vários textos que compõem a obra, ora se emociona perante o lirismo da paisagem marítima, pintada sempre de matizes vários e (re)convocando os sentidos, ora se aproxima do registo etnográfico, funcionando como mediador de
um grupo profissional detentor de códigos próprios e a reter pela escrita: gíria,
arte, comportamentos, rotinas e modo de vida…
A dedicatória “à memória do meu avô, morto no mar”, abre a obra e marca o tom: um livro constituído por registos de impressões e memórias, dedicado não só a uma pessoa, o avô, mas, diria, a toda uma classe profissional no
seio da qual cresceu e desde cedo se movimentou. “Tomo então apontamentos
rápidos – seis linhas – um tipo – uma paisagem. Foi assim que coligi este livro,
juntando-lhe algumas páginas de memórias” (Brandão, 1972: p.7). É desta forma que nos dá a seiva deste livro – tipos, paisagens e memórias. Organizado de
norte para sul, Os pescadores percorre a costa portuguesa, mas parte de uma
série de “linhas de saudade” (Idem, ibidem), sentimento que prevalece: saudade
de um tempo, de um espaço e das pessoas. Há uma porta aberta a um mundo
comentado pelo autor, que afirma: “O mundo que não existe é o meu verdadeiro
mundo” (Idem: 9). Guardo porém a sensação que, neste ponto, não é propriamente o mundo criado pela ficção a que Raul Brandão se está a referir, mas sim
o mundo da memória e do passado, que se diluiu no tempo, mas não na memória, que insistentemente o fixa e preserva.
Humildemente, o autor refere, ainda em relação à conceção de Os pescadores, que é um livro feito de “nadas que farão sorrir os outros. São efectivamente nadas… E no entanto reconheço que essa foi a melhor parte da minha
existência, minuto único de saudade em que a luz se suspende e o universo se
entranha para sempre na alma” (Idem: 14). Poderemos deter-nos um pouco,
precisamente, nesta osmose entre sujeito e objecto. O que vê passa a fazer parte
de si, daí que o texto esteja repleto de registos impressionistas (no sentido esté-
115
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
tico do termo). Os sentidos captam tudo: “luz”, “uma paisagem”, quadrinhos ao
ar livre”, “o azul”, “um imenso eco prolongado”, mas o que aqui verdadeiramente
impele o escritor, a um nível mais espiritual, é “perceber a grande voz do mar”
(Idem: 7). Para todos os efeitos, o que temos em mãos é um texto de 1ª pessoa,
que oscila entre o registo diarístico e a memória e que testemunham, para nos
servirmos de uma expressão de Paula Morão, os “limites entre a vida e a arte”
(Morão, 2011: p. 55) e numa sempre renovada “atração pela alma da paisagem”
(Machado, 1984: 14), a que acrescentaríamos: pela alma das gentes e dos lugares. Em relação ao estilo, Maria João Reynaud refere-se à “técnica da descrição
itinerante” (Reynaud, 1988: 83), acrescentando ainda algo que nos parece rigoroso e adequado à escrita de Raul Brandão, que é o facto de Impressões e paisagens, Os pescadores e Portugal pequenino constituírem “uma espécie de tríptico
da paixão de ver” (idem, ibidem). Mas não esqueçamos o leitor, parte integrante
desta “paixão”, por intenção clara do autor. A vivacidade com que as descrições
nos chegam, o pormenor desta vida árdua e o lirismo com que a paisagem e as
pessoas são tratadas não caem na retórica inocente do simples registo. Para
Raul Brandão os leitores, aqueles a quem se destina a obra têm de ter acesso
a este mundo aqui apresentado. Aliás, Álvaro Manuel Machado dá conta disso,
falando do autor como alguém que se “situou no seu tempo, tornando-o nosso”
(Op. Cit: 12).
Da Foz do Douro a Sagres, o périplo pela Costa portuguesa vai motivando várias visões e levantando problemas: a angústia da morte e da perda, a vida
árdua dos pescadores, a pobreza, a nobreza de carácter das gentes, os comentários sobre uma actividade em declínio, a crítica à sobre-exploração das nossas
costas – recordemos que a obra é de 1923 e recolhe textos escritos pelo autor
desde 1900 até essa data! Perceções de um homem sobre uma arte que, afinal,
nos nossos dias, parece estar a sofrer de alguns males já por si, então, identificados.
A “pesca da sardinha”, secção do livro que inclui dois textos, um datado
de 1900 e registado na Foz do Douro e outro, datado de Setembro de 1920,
registado no Baleal, ganha lugar de destaque. Depois de um breve trecho descritivo, tão típico dos textos que compõem a colectânea, passa aos pormenores
da faina, acompanhando a rotina da pesca da sardinha desde o romper do dia
até ao final do mesmo:
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Os barcos formam círculo para além da baía, entre as Berlengas e
a costa: sete, oito, dez, de vela triangular, que se preparam para erguer a
armação da sardinha – uma grande rede com um saco -, o copo. A sardinha, ao encontrar no seu caminho a rede, deriva para o saco, tirando-a os
pescadores com a chalavara para dentro dos barcos (Brandão, 1972: 55).
O cenário impressiona o autor, que se desdobra em impressões sensitivas
deixadas pelo “hálito fresco e húmido” do mar, pelos “farrapos de névoa” que
pairam sobre as águas, do “dia de chumbo”, pela “onda de prata” que é, afinal, a
própria sardinha (Idem:55). Ao descerrar-se a cortina de névoa, eis que surge
então o cenário:
No fundo Peniche e a formidável cenografia do Carvoeiro, que entra
pelo mar dentro; à direita as Berlengas, que pelo recorte e pela cor parecem duas nuvens pousadas no mar; à esquerda as terras cortadas a pique.
Uma grande rocha no mar, o Baleal, ligada à terra por um fio de areia, com
uma baía a norte e outra ao sul (Idem: 56).
As gentes merecem igualmente a atenção do olhar atento do autor, gentes
que parecem dividir a sua vida entre a terra e o mar51, refere-se ele à “gente
morena de Peniche ou do Ferrel que acumula e que, terminada a vindima, e
recolhido o mosto nas cubas, vai, com as mãos ainda tintas do cacho, apanhar a
sardinha” (Idem: 56). Há ainda outros pormenores interessantes, como a referência à extinta via-férrea que ligava Peniche à linha do Oeste, por onde saía o
produto da faina:
Apenas arrematada em Peniche, os almocreves levam a sardinha
pela estrada, que atravessa os campos areentos, os salgados, a Atouguia
da Baleia, a Serra d’El-Rei até Óbidos e S. Mamede. Nesta época é um vaivém incessante de cargas: o pavimento arruinado cheira a salmoura. Sai
pela via férrea (Idem: 57).
A observação do poveiro, por exemplo, de que o autor dá conta, constitui talvez o mais completo retrato veiculado nesta colectânea, numa secção intitulada “De caminha à Póvoa”, num texto cuja entrada situa em 20 de
Setembro de 1921. A relação deste com o mar, a forma como passa os dias, como se ocupa, a individualidade em
relação a outros grupos, a forma como se orienta no mar, como detecta os cardumes, são aspectos que prendem
a atenção de Raul Brandão, mas leia-se também a decadência instalada, com gentes desocupadas, sujas, a morrer de tédio, numa Póvoa a desparecer. Aliás, tal como em toda a costa, segundo o autor.
51
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Mas, apesar do cenário idílico, com aroma a mar e matizado a “duas tintas”, Raul Brandão comenta o que vê, oscilando a sua escrita entre a descrição
apaixonada do viajante que vê e a visão crítica do jornalista que comenta, ou
do etnógrafo que procura compreender o objecto de estudo. “Cada vez se inventam mais aperfeiçoados modos de a destruir, redes, aparelhos, armações”
(Idem: 57), o que explica a enorme quantidade de pescado que, segundo o autor, caía sobre Lisboa, vinda de Setúbal, do Algarve e de vários outros pontos da
costa. Noutro ponto da obra, num texto intitulado “Sardinha! Sardinha!”, refere
a quantidade prodigiosa desse peixe que se retirava do mar e os meios de o
fazer: “armações valencianas”, o “cerco americano”, a “chavega”, as “netas”, as
“redes” (Brandão, 1972: 168). A sardinha, em Olhão, cidade que oferece como
exemplo, “enriquece e arruina” (Idem: 169), acrescentando que “nenhum peixe
dá mais dinheiro e poucos têm mais préstimo” (Idem, ibidem). Porém, já então,
faz notar que “é aos montes que a sardinha é apanhada por essa costa para enriquecer meia dúzia de felizes” (Idem, ibidem), lucro que motiva por parte do
autor as mais acesas críticas, com o texto a oferecer-nos, por um lado a fartura,
mas, por outro, a delapidação que ela acarreta. Se não, vejamos:
Por isso a destruição é enorme e sem folga, dura o ano todo, antes
da desova, depois da desova, à rede, a tiro, sem cessar e sem tréguas – uns
barcos em terra, outros no mar, uns pescando-a e outros conduzindo-a,
com a borda metida na água. Cheira a sardinha (Idem: 170).
Porém, acrescenta Raul Brandão, o volume de trabalho era tanto que nem
os pescadores existentes eram suficientes, implicando isso que o país tivesse
de os ir tirar às terras, com tudo o que isso implica ao nível do equilíbrio entre
a exploração agrícola e as outras fontes de rendimento do país, mas o cenário
ainda não fica por aqui:
O azeite corre como um rio: é preciso importá-lo que não chega. O sal aumentou de preço, porque só este greiro branco permite
que o peixe não se estrague. […] Organizam-se companhias a toda
a pressa, e de norte a sul a exploração redobra. É uma febre (Idem,
ibidem).
Mas chamo atenção para a nota de rodapé que preenche quase duas páginas dos mais sérios e conscientes avisos sobre esta febril exploração, com as
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
consequências que, se por si na altura adivinhadas, para nós já são claramente
visíveis actualmente. A falta do pescado que já se observava, a emigração que,
de norte a sul, levava pessoas para as américas, as “criminosas traineiras” que
pescavam com dinamite e carboneto, a falta de método e de fiscalização, excessos legais e regulamentos por cumprir… Enfim, a lista é sobejamente conhecida
de todos os que, mais ou menos, se mantêm a par do que se passa ainda hoje no
país. “Fartem-se enquanto é tempo” (Idem:170), avisa. “Estou farto”, desabafa
a determinada altura, comentário a que associa uma nota de rodapé crucial,
como disse, para entendermos os problemas que já no primeiro quartel do século XX se observavam e, no fundo minavam a atividade. Refere-se o autor ao
facto de que “todos os pescadores de norte a sul se queixam de que o peixe falha” (Idem; 170) – Caminha, Aveiro, Nazaré, Sesimbra, Olhão. Um outro aspeto
curioso é o facto de entrar igualmente em pormenores técnicos e de estrutura
da própria política de pesca, dando conta de uma atividade económica em mudança rápida (e nem sempre para melhor, como o texto evidencia), também ela
a precisar, tal como as restantes áreas, de uma atualização técnica, embora com
cautela, evoluir, sim, mas à medida do país. Observa Raul Brandão:
-Aperfeiçoamentos técnicos: barcos, aparelhos, estações de
pesca, cais, abrigos, etc., mas com cuidado, porque o país é pobre e
os resultados seriam escassos. Agora fala-se para aí muito em escolas de pesca, que serviriam apenas para anichar mais algumas dúzias de vadios políticos. A grande escola de pesca é o mar. Alguma
coisa se conseguiria porém com exemplos, trabalho e meia dúzia de
pessoas dedicadas. Mas pouco – porque afinal estou convencido de
que os pescadores sabem mais com os olhos fechados do que os técnico com eles abertos (Idem: 171).
Agosto de 1919 marca uma das entradas do livro e a da estadia em Peniche, que terá motivado, também aqui, as sentidas impressões do autor, que oscilam entre o enlevo emprestado pela paisagem e a acutilância com que critica
o espaço urbano de Peniche e a forma como a pesca se industrializara. “Peniche
é horrível” (Brandão, 1972: 130), com a culpa a ser atribuída “aos homens dos
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
municípios” que, segundo o autor, “transformaram terras cheias de carácter em
terras incaracterísticas, com edificações banais, avenidas novas e chalés de zinco. Degradaram tudo” (Idem, ibidem).
Cruzando os tempos, partindo dos séculos em que Peniche era um forte onde se cruzavam piratas, transportando-nos para um universo de aventura e exotismo, detém-se agora no mau cheiro que assola a vila e explica a sua
opinião sobre Peniche: “Mas Peniche é sobretudo horrível para mim, porque
é o tipo de pesca industrializada, o barracão, a fábrica de peixe, a caserna da
sardinha, onde impera o Fialho do Algarve” (Idem, ibidem). Porém, nem tudo
é mau e, por sinal, até esquecemos de imediato a má impressão, porque Raul
Brandão, com a sua reconhecida e auto-proclamada (ver Memórias, volume I)
capacidade de ver beleza em tudo, transporta-nos para os pequenos tesouros
que esta região encerra: a escola de rendeiras, de que fixou “a ingenuidade e a
pureza” (Idem: 130-131) das crianças aprendizes, “debruçadas sobre os bilros
e os piques” (ibidem); as Berlengas ao longe, que o deixam “cismático”; a “Senhora dos Remédios;” a “mole negra e cenográfica que se esboroa na extremidade, tomando o aspeto estranho de torres medievais […] É o castelo do diabo!”
(Idem: 131); a praia do Baleal, que classifica como “a mais linda praia da terra
portuguesa (Ibidem); a graça da capelinha de Santo Estevão, na ilha do Baleal;
o “recorte delicado das Berlengas” (Idem: 134), que observa com “assombro”
– “o monte solitário sai todo vermelho da água verde e grossa como um vidro”
(Idem, ibidem); as cavernas misteriosas que evocam passados aventureiros…
Enfim, todo um enquadramento que motiva um “sonho misterioso” com cobras
de vegetação, braços que o enroscam em verde, fiordes, “arabescos fantásticos”
(Idem: 138) que desenham e recortam a ilha. “Passa-se qualquer coisa que pertence antes ao sonho” (Ibidem), daí resumir desta forma a impressão que retira
da ilha: “mas já não tenho dúvidas: são as nereidas, filhas da incestuosa Dóris,
no seu último domínio” (Idem: 139).
Impressiona-o ainda a riqueza das águas da costa de Peniche: sardinha,
pargo (o mais delicioso de Portugal), dourada, o atum, a muge, o godilhão, a
lagosta, polvos… vida marinha que sustenta a fauna alada que cruza os céus da
região: airós, galhetas, gaivotas, patos, pombos cinzentos, maçaricos reais, cisnes negros… Testemunho, tudo isto, de um ecossistema ainda em equilíbrio e
generoso para com os habitantes que do mar e da terra sobrevivem, o que con-
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fere ao elemento humano características únicas que Raul Brandão comenta da
seguinte forma: “Os homens devem ser felizes diante deste espectáculo sempre
igual e sempre renovado” (Idem: 140).
A dualidade mar/terra, que impressiona o nosso autor a vários níveis,
como já sugeri anteriormente e que se vê na forma como se vive a terra: “Esta
nossa terra portuguesa vai pela costa […] Sempre de braços abertos para o mar,
estreitando-o amorosamente contra si” (….), ou seja, Portugal existe e subsiste de olhos postos no mar, mas o que a obra deixa transparecer e que se me
afigura digno de registo é o efeito que isso deixa nas pessoas. No segmento
intitulado “Os pescadores” (páginas 88 a 92), Raul Brandão, embora centrado
nos habitantes de Mira, avança perspectivas que poderemos estender a muitas
comunidades que vivem do mar, que, no fundo, partilham uma genealogia comum e que vem na sequência do acima se disse: a importância da mulher no
bastidor da faina, o carácter sagrado da instituição familiar, a simplicidade e a
humildade, embora sem miséria, a convivência diária com a felicidade e com a
infelicidade, a consequente religiosidade vincada…
Além disso, afirma o autor que o “contacto com a terra obriga o homem
a olhar para o chão, o convívio com o mar obriga-o a levantar a cabeça” (Brandão, 1972: 88), o que podemos entender como uma característica da alma da
terra e da gente, se Portugal se encontra virado para o Atlântico, as suas gentes
reflectem-no e se olham para o céu é porque acreditam em algo superior que
assegura a dádiva que é o mar, vivo que dá e tira, ao mesmo tempo, daí a cabeça
levantada, que tanto pode sugerir a súplica como o orgulho, devido ao facto de
os homens do mar fazerem vida a enfrentar algo que tanto respeito impõe. De
outro ponto de vista, a nossa História foi assim escrita; deste eterno confronto
entre terra e mar, que foi moldando as gentes até lhes conferir uma alma, nobreza e carácter únicos, tal como única é escrita de Raul Brandão que, obra a
obra nos deslumbra com a sua escrita magistral.
O convite à sua leitura fica desde já estendido – e não precisam de ler
Woody Allen primeiro!
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BIBLIOGRAFIA
Brandão, Raul, Os pescadores, Lisboa, Círculo de Leitores, 1972.
Machado, Álvaro Manuel, Raul Brandão entre o romantismo e o moderninsmo, Lisboa, Instituto da Cultura e Língua Portuguesa, 1984.
Morão, Paula, “Retrato e auto-retrato – Fronteiras e limites”, O secreto e
o real – Ensaios sobre Literatura Portuguesa, Lisboa, Campo da Comunicação,
2011, pp. 55-65.
Reynaud, Maria João, “Recensão crítica a Os operários, de Raul Brandão”,
in Colóquio / Letras, n.º 86, JUL. de 1985, pp. 100-102.
Reynaud, Maria João, “Raul Brandão reeditado, crítica a Impressões e paisagens, de Raul Brandão”, in Colóquio / Letras, n.º 106, NOV. de 1988, pp. 82-83.
Salema, Álvaro, “Portugal visionado, crítica a Portugal pequenino, de
Raul Brandão”, in Colóquio / Letras, n.º 92, JUL. 1986, p. 82.
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VARIA
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
MEMÓRIAS DA PESCA
ENTREVISTA – SR. JOSÉ MARIA MALHEIROS CATIVO52
JF – O Sr. José Maria Malheiros Cativo é o nosso convidado para nos falar sobre a construção naval em Peniche, desde a época dele e dos seus antecessores, que
eram familiares. É precisamente aí que nós queríamos começar. Se calhar são os
primórdios da construção naval em Peniche... À vontade; uma conversa simples…
e espontânea. Não há problema, pode…
JM – A ideia da construção naval vem do lado dos meus avós maternos. Já o meu
avô, acho que já o meu bisavô era construtor naval porque é uma família que vem de
S. Martinho do Porto e S. Martinho do Porto, na altura, onde faziam as caravelas e
tudo aquilo era mar… E então aquele bichinho mordeu sempre e eu…
MS - Diga-me o nome do seu avô se faz favor.
JM – O meu avô era António Fernandes Malheiros. E depois fui aprender o ofício…
MS – Com que idade?
JM - Com 11 anos. Naquele tempo eramos quatro irmãos: três raparigas e eu
era o único rapaz e, naquela altura, os rapazes é que iam estudar iam fazer qualquer
coisa. De maneira que vim para a Escola, para a antiga Escola Industrial e Comercial, mas aquele bichinho falava mais alto e acabei por ir para o ofício, até porque os
meus tios vários estaleiros, um deles junto da minha casa e então, aos bocadinhos,
ia para lá aplainar, cortar, serrar
A presente entrevista foi realizada nas instalações da Escola Secundária de Peniche, no dia 7 de novembro de 2013,
e conta com três intervenientes: o Sr. José Maria Malheiros Cativo, construtor naval, daqui em diante assinalado no
texto com as iniciais JM e os professores João Fernandes (JF) e Miguel Santos (MS), professores da Escola Secundária
de Peniche.
52
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MS - Lembra-se quantos estaleiros havia nessa altura?
JM – Estaleiros, assim por alto, deviam haver aí uns sete ou oito…
JF – O Manel Rapaz…
JM – Manel Rapaz, Sá Bandeira, o Carneirinho, três…
JF - …Eram feitos nos armazéns, ali no Alto da Vela…
JM – O meu avô teve um estaleiro mesmo encostado ao muro da fortaleza. E os
meus tios, na altura, tinham três estaleiros: um aqui em Peniche de Cima, um junto
da casa dele, ali ao pé do Alto dos Moinhos, ao pé da Nigel, e um ali na Rua da Saudade, ao pé do Capilé - não sei se te lembras… Por acaso, fui o último a trabalhar lá
naquele estaleiro, numa reparação. É que os barcos eram construídos mesmo dentro
da vila, que é agora cidade… E depois aquilo era engraçado porque iam a baixo
puxados por juntas de bois e já se faziam barquitos aí com 10, 11 metros, na altura.
Entretanto, as embarcações começaram a mexer… e decidi ir mais para a borda da
água por causa do acesso ao bota abaixo e, então, foi por aí que veio, de modo que…
Tive o gosto de ter sido quem fez o maior barco em Peniche, uma embarcação com
32 metros, foi para o longo curso. Foi na altura em que eu passei de carpinteiro a
mestre, porque eu trabalhava com um tio meu; adoeceu na altura e aquilo ficou-me
de um dia para o outro nos braços; ele saiu à noite e de manhã já não apareceu, infelizmente teve uma doença grave.
MS - Voltando um bocadinho atrás; quando fala em aprendizagem. Aprendizagem consistia em quê, em ver fazer?
JM - Era aprendizes mesmo; porque hoje é… quase tudo vai já com uma idade
avançada e para se ir para um ofício como este, tem que se começar de novo… Na
altura, recordo-me que rapazes entre os 11 e os 13 anos éramos, só naquele estaleiro,
éramos 14. Íamos lá aprender mesmo, ajudar…
MS - Mas a primeira arte era a carpintaria…
JM - Era a carpintaria; e aquilo começava-se como aprendiz, depois oficial de
3.ª, oficial de 2.ª, oficial de 1.ª. Hoje não, aquilo… por força da idade, vai passando
e chega a carpinteiro. Mesmo que não saiba nada de carpintaria, não é? Mas é um
carpinteiro.
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JF - Mas a história era mesmo começar…
JM - Era mesmo começar, mas era não só, no ofício da construção naval… era
serralharia, era mecânico, era pedreiro, era todos aqueles que começavam em rapazes, iam por ali fora… Uns seguiam, outros acabavam por ficar pelo caminho…
JF - Os pais chegavam a pagar…
JM - Chegavam a pagar para os filhos irem aprender, uma coisa que era para eles.
JF - Uns não ganhavam nada… O tempo que roubavam ao formador, vamos
chamar-lhe assim, os pais contribuíam com um x…
MS - Então vamos ver a história da construção de um barco, desde a origem………., materiais, técnicas, na altura…
JF - Eu vou fazer que sou um possível proprietário de barco. Eu quero um barco
com 15 metros, para pescar com redes de pescada, por exemplo.
JM - Começava-se os preparativos, claro, fazia-se um modelo; há 50, 60 anos,
fazia-se o modelo. Hoje não, aparece um projecto já feito por um…
JF - Arquiteto naval…
JM -… Já traz…naquela altura era o mestre de estaleiro é que fazia o modelo que é isto que está aqui. Cada um tinha o seu gosto e nenhum deles era igual…
M - O modelo era uma peça em madeira…
JM - Era uma peça em madeira que consiste…
JF - Em metade do bordo…
JM - … Geralmente era metade… É um bordo, que cada um faz ao seu gosto…
Depois, esta parte aqui é a amura, aqui são as alhetas; antigamente as popas não
eram de painel, esta é a popa de painel – era uma popa de leque ou uma popa redonda – o João é capaz de ter aí algumas fotografias. A partir daí, fazia-se o modelo,
passava-se o modelo… Este está à escala de 1/15, salvo erro, consoante o tamanho
da embarcação fazia-se a escala a 1/10, 1/15. Quando eram embarcações já muito
grandes, para não se fazer um modelo enorme, fazia-se… depois dali passava-se
para o chão, em tamanho natural, tiravam-se os moldes, depois começavam-se os
preparativos, de arranjar a madeira, porque nem toda a madeira …
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MS - Que madeiras?
JF - O passar para o chão é a grade.
JM - Traçá-lo no chão em tamanho natural e depois, dali, tirar uma grade, para
depois marcar a madeira e dali é que saía… É assim, são poucas coisas…
JF - Estes traços que aqui estão…
JM - São as balizas.
JF - Isto corresponde… São estes elementos que aqui estão que dão a grade… A
grade, não é?
JM - Portanto, na grade são marcadas as balizas e é por ali que se traça.
JF - Estes vários pontos…
JM - São as linhas de água… Que é por aqui que, depois que se traça um… Foi
pena não ter o plano geométrico, mas é mais ou menos isto que aqui está…
JF - É por aqui que se tira uma grade. A grade acaba por ser isto. É tirada daqui.
JM - É o que se põe em cima da madeira
JF - E a madeira depois é cortada.
JM - Antigamente, quem sabia traçar era mesmo o mestre e era uma coisa que
era escondida, o carpinteiro não tinha acesso… Era mesmo escondido; traçavam no
ofício e só eles é que sabiam, não passavam…
MS - O conhecimento…
JM - Os conhecimentos…
JF - Só mesmo no final de carreira…
JM - Nem isso, não. Havia alguns que levavam com eles… Eu tive a felicidade…
MS - Mas era para não serem superados?
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JM - Era para serem mestres mesmo; não fazia sentido ter um carpinteiro ao lado
que sabia tanto como o mestre, não é? Eu tive a sorte; a sorte e porque tinha muito
gosto também. Ajudava a traçar… Os meus tios, normalmente, levavam sempre os
rapazes para ir… Alcança-me isto, alcança aquilo, passa-me os pregos, passa-me o
virote… Aquilo depois era traçado com pregos, e eu, como era da família e gostava
muito do ofício… E ele cascava-me mais que nos outros…
MS - Olhe, e as madeiras?
JM - E então ia para lá e aprendi… A madeira depois era escolhida. Aqui há 50
anos não era preciso ir muito longe para arranjar madeira para a construção naval,
porque aqui no concelho…
MS - Era pinho?
JM - Pinho manso, pinho bravo e carvalho, eram normalmente o que se usava.
Pinho manso para as balizas, o esqueleto…
MS - Era mais flexível?
JM - Não, era precisamente o contrário… É mais rijo e tem uma veia totalmente diferente… Se olhar para um pinheiro manso, tem aquelas ramas em cima e as
curvas, porque aproveita-se a veia da madeira para fazer as curvas, para não quebrarem…
JF - Não é um pau direito…
JM - Não é um pau direito…
JF - … E depois fazer um torto, tem de se aproveitar a curvatura…
JM - E como tem os veios naquela posição, não parte com facilidade.
JF - Essa era uma das principais artes de um carpinteiro naval; era saber escolher
a madeira…
JM - Primeiro saber escolher e normalmente eu, pelo menos, ia sempre ao pinhal
escolher a madeira, até pelos feitios; e é engraçado, quando a gente olha para uma
árvore já tem a ideia daquilo que vai fazer dela. Esta vai fazer a roda de proa, aquela
vai fazer o poço da popa, a proa que será isto…
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JF - Tem de arranjar uma árvore que…
JM - …que consiga fazer esta forma. Para além das formas, saber escolher a
madeira também; a zona onde é criada, por exemplo. Se for um chão de areia… Eu
ia para o pinhal com o madeireiro, ver umas árvores, mas se fosse chão de areia,
elas podiam ser muito bonitas, mas eu não queria, porque quanto mais rijo for o
chão onde é criada, melhor é a madeira, porque tem uma veia mais apertada, é mais
rija. E depois a época de corte. Normalmente, cortamos madeira para a construção
naval, ao contrário de uma serração. O melhor corte é do minguante de janeiro, é o
melhor corte, ou minguante e agosto, são os dois cortes melhores. Claro que quando
tínhamos de cortar noutra época…
MS - E há uma explicação?
JM - Há, há uma explicação… Cortávamos noutra época, mas geralmente sempre no minguante; e minguante porquê? Porque é quando a árvore deixa de crescer e
então aperta as veias e não corre seiva ali dentro e a madeira fica ali… Se cortarmos
uma árvore no minguante de janeiro, por hipótese, trazemo-la para o estaleiro e fica
lá e cortamos uma árvore, por hipótese, em abril, no minguante de abril também;
quando chegar a utilizar a árvore, vamos supor que a utilizávamos em outubro, a
árvore de abril, a do corte de abril estava estragada e foi cortada uns meses depois e
a árvore do corte de janeiro estava boa.
Normalmente, os armadores que acompanhavam a construção gostavam de ir ver
o que se estava a fazer e não gostavam muito de ver árvores sangradas… Já devem
ter visto num pinhal a sangria, a aproveitar a seiva e não sei quê. Eu cortei muitas
mesmo sangradas, o que fazíamos, cortávamos logo o pé, o bocado de sangrar, só
para evitar que o armador: “Eh, pá, isto já foram árvores sangradas!”; ficavam com
a ideia que a árvore já estava com menos força e não sei quê. É ao contrário, porque
a árvore quando é sangrada, na parte do pé, onde tem as bicas, chamamos bicas,
tem muito mais força do que uma árvore normal, mas eles não gostavam… E para a
gente também era pior, porque custava mais a dar a forma porque a madeira é mais
rija e sujeita-se a partir…
MS - Quantos homens é que poderiam trabalhar numa encomenda destas, numa
embarcação de 15 metros…
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JM - Normalmente, quatro, cinco pessoas. Agora…
MS - E quanto tempo demorava?
JM - Demorava para aí uns seis meses a fazer um barco, porque era tudo feito à
mão, tudo… Para ter uma ideia, só tivemos energia eléctrica a partir de 67, 68; é que
começou a aparecer máquinas; aliás, máquinas havia, mas não era tradição de estaleiro, não é? Portanto, era tudo feito à mão. Mesmo os pinheiros de maior dimensão
eram cortados no pinhal. Iam para lá os serradores, com serras, braçal, eram mesmo
só serradores. Só faziam material para a construção, só serravam para a construção
naval, mas toda a forma do barco era toda serrada à mão. Depois é que começou
a aparecer umas plainas, uns berbequins, a ajudar, de resto, a furação era todo um
trabalho feito à mão, tudo, daí levar bastante tempo, não é? Porque isto implica
muita mão-de-obra; para além de mão d’ obra, implica um desperdício de madeira
muito grande, porque há muito desperdício, para aproveitar as formas. Aproveitase aquela peça e o resto vai fora. Normalmente, num pinheiro bravo, que era para
forro, também tínhamos por hábito, de um pinheiro, aproveitar, claro, se ele tivesse
dimensão para isso, quatro tábuas no máximo, e o resto, aproveitava-se, sim, mas
era para outras coisas, já não era para aquilo porque já não tem a mesma força que
tem a outra árvore… da mesma árvore, mas é diferente, a peça.
De maneira que depois ia para o pinhal e então o mestre é que traçava a madeira,
marcava e depois lá ia serrar, aplainar… E daí a importância dos aprendizes, que
começavam por ajudar a cortar as peças, a pregar, a aplainar, a ver…
JF - O serrador era mais ou menos isto: dois cavaletes, a peça em cima, um serrador em cima da peça e outro por baixo…
JM – o pau era alinhado…
JF - Era uma lâmina, com duas travessas…
JM - Chamava-se mesmo uma serra braçal…
JF - … uma serra braçal… o risco em cima; eu vi muita vez, ali.
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JM - … Uma linha; era a linha de batida… Marcava-se uma linha, punha-se o
pau em cima, por acaso nem era em cima do cavalete; havia uma peça que era chamada burra. Era alta; a frente era alta e depois vinha por baixo, que era para arrastar
o pau… pela burra, e depois tinha uns pontais, que era para ter facilidade em manobrar, para mudar os pontais quando era preciso a serra passar para o outro lado. Era
um trabalho muito moroso, tinha muita mão-de-obra… era tudo feito à mão. Não
é que isto fosse uma… Como é que hei-de dizer? Nunca ninguém fez fortuna na
construção naval…
MS – Já agora; já voltamos à construção… Disse-me há bocadinho que havia
para aí seis, sete, oito…
JM - Para ter uma ideia, eu aqui há uns anos, já há uns anos, comecei assim,
já depois de eu já ser… já trabalhava… Porque depois um aprendiz começa por
vir meter um rombinho numa lancha, fazer uma quilha, pequenas coisas; depois é
que vai evoluindo até trabalhos mais complicados; e então, numa altura em que já
trabalhava, comecei assim, um dia, a fazer um apanhado e cheguei a 200 homens a
trabalhar em Peniche, 200 carpinteiros em Peniche.
MS - Isso é fantástico!
JM - Para ter uma ideia, quando eu fui para o ofício, o meu tio, os meus tios,
que na altura o meu avô já tinha falecido, tinham sessenta homens a trabalhar num
estaleiro, num espaço pequeno.
MS – Mas a opção do armador, em escolher o estaleiro naval A ou B, tinha que
ver com que critérios?
JM - Tinha que ver…
MS - Com a honestidade, com o preço…
JM - O preço às vezes influenciava um bocadinho também, mais a qualidade, depois a amizade também, mais a amizade. Havia armadores que tiveram muitos barcos e sempre com o mesmo construtor. Havia outros que, por vezes, mudavam; ora
mandavam fazer aqui, depois voltavam… Mas a amizade também contava muito e
a confiança na construção, pronto… Isso era o essencial. Outros optavam pelo prazo
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
de entrega, porque se havia um estaleiro que estava com mais trabalho, aquilo era
para hoje, não é? Uma pessoa quando encomendava uma embarcação, era para ontem e então, por vezes, optavam por ir a outro estaleiro. Não era que não gostassem
daquele, mas era porque aquele entregava-lhe o barco, por hipótese, daqui por seis
meses e o outro entregava… Daqui a dois meses podiam ter a embarcação pronta,
porque tinha menos que fazer…
MS - E porque iam barcos para fora do país, de Peniche, com certeza…
JM - De Peniche para todo o país. Os meus tios construíram muito para África,
naquele tempo. Muitos barcos. Inglaterra também; chegámos a fazer barcos para
Inglaterra. E para as ilhas… Agora para o país, era para todo o país, assim como
de Vila do Conde, de Aveiro, Figueira da Foz, também se faziam construções que
vinham para Peniche. Como eu disse, tinha muito a ver com os prazos de entrega.
Eu deixei de fazer uma traineira com 26 metros, para Sines, porque o armador
perdeu o barco. O barco abalroou, com as rochas… Perdeu o barco. Felizmente, não
houve vítimas. E então, aquilo, queria um barco logo. Veio de Sines, porque não havia tradição de construção. Veio a Peniche, direito, para eu lhe construir, porque eu
já tinha construído barcos para lá… E chegou-me aqui e perguntou-me quanto tempo eu levava para lhes entregar o barco e eu disse: “Eh, pá, uma embarcação destas,
um ano.” E o homem ficou assim a olhar para mim. “Eh, pá, então não lhe vá parecer
mal, mas eu vou a Vila do Conde”. Na altura, o Samuel tinha muita gente… “Eu vou
a Vila do Conde”. “Eh, pá, não me parece nada mal, se ele levar um ano a entregar
a embarcação e mandar fazer em Vila do Conde, já me parece um bocadinho mal,
agora se ele a entregar… O que é que aconteceu: O homem foi a Vila do Conde e
teve o cuidado de, quando veio para baixo, porque ele era de Sines, de passar aqui
e ter uma conversa comigo e o homem disse que lhe entregava o barco em seis meses, pronto; é metade do tempo, não é? Ele entregou o barco e, infelizmente, esteve
quase dois anos à espera que ele o entregasse e o sofrimento lá. Ia-lhe acontecendo
o mesmo que aconteceu ao filho do Campino, do Manel, do Manel não, o irmão, o
Alberto, que morreu lá, por causa dos nervos; ia-lhe acontecendo precisamente a
mesma coisa. Por isso está a ver como era que as coisas se passavam. Eu nunca fui
capaz, para ter uma embarcação, se não fazia aquela, fazia outra. Eh, pá, eu sabia
que, à partida, não conseguia fazer o barco naquele espaço de tempo, então nem
sequer…
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
JF - No meio disto tudo, é que é assim: a mão-de-obra especializada não havia
como economistas há agora por aí, não é? E eu não tinha hipótese de dizer: “Vou ali
buscar mais sete calafates e consigo fazer isto… Não havia. Tinha aquela mão-deobra e só podia contar com aquilo.
JM - Mas como havia muito estaleiro e qualquer deles tinha muita gente… Eu
cheguei a contar – e devem-me ter escapado alguns – pelo menos duzentos homens
a trabalhar na altura, oficiais.
JF - E vocês chegaram a ter quantos barcos armados, semi-armados, a acabar…
JM – No tempo do meu tio, já se faziam embarcações até 20 metros… 20, 22
metros, com 26 mais tarde. Mas chegaram a ter seis, sete barcos armados ao mesmo
tempo, cinco, seis homens num barco, cinco, seis noutro… Para além disso, tinham
que dar todo o apoio à frota que havia – e era muita, não é? Toda a reparação; e havia
a tradição de as embarcações pararem quase todas na mesma altura, para reparar. O
estaleiro quase que parava para o pessoal se deslocar para fazer a reparação
MS - E a reparação era feita no mesmo estaleiro…
JM - A reparação era feita no mesmo estaleiro, normalmente, mas num sítio totalmente diferente. Bastante longe até do estaleiro. Além de ser tudo feito à mão, era
tudo carregado à mão também. Tudo às costas e tudo a pulso.
MS - Então e o que é que se estragava mais… e era dado para reparação?
JM - Bordas; substituíam-se algumas tábuas, porque havia desgaste, porque era
diferente do que é hoje; as embarcações andavam tudo apertado, para descarregar o
peixe, por exemplo, abicavam, carregavam todo aquele peso, apertadas umas com
as outras… De maneira que havia tudo isso…
MS - Então e voltando às técnicas de construção, tínhamos ficado nas madeiras.
JM - Técnicas de construção pouco evoluiu… A forma de construir é quase a
mesma de há 500 anos e continua a ser a madeira. O que evoluiu foi a forma das
embarcações. Deixou de se fazer a popa de leque e a popa redonda, e foi a popa de
painel que veio facilitar em muito o trabalho do carpinteiro, e, para além disso, deu
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
outra segurança às embarcações. Veio beneficiar em tudo, a popa de painel, tanto
que hoje raramente se faz um barco que não tenha uma popa de painel. E isso veio
facilitar bastante, porque eram muito trabalhosas, as outras popas… O resto é tudo
quase feito da mesma forma.
MS - Os barcos, na altura, já eram a motor.
JM - Já eram a motor.
MS - Vela, remo…
JM - Ainda se fizeram muitos a vela e a remo, embarcações mais pequenas, mas
depois começou tudo a ser com motor. E havia muito carpinteiro, porquê, porque as
embarcações evoluíram… vamos lá a ver… A forma de construir foi sempre a mesma, mas evoluíram muito porque começou a haver embarcações com maior porte.
Um armador hoje manda fazer uma embarcação e fica toda a vida com ela; naquele
tempo não, o máximo que tinha uma embarcação era quatro, cinco anos. Depois
queriam mandar fazer uma maior, com motor mais forte, com mais força, para levar
mais arte. Houve a necessidade de cada vez ir para mais longe; as capturas começaram a ser menos. E então era assim, porque havia muito carpinteiro; quatro, cinco
a embarcação. Normalmente iam para o Algarve, que os mares eram mais calmos
e sofriam menos; o que não prestava para aqui, era para lá, para o sul. Daí que era
constante estarem a fazer embarcações novas: ou porque era maior, ou porque era
o motor…
O que é engraçado é que nunca havia uma embarcação igual, porque os armadores nunca queriam nada igual. Era quase como a moda, não é? Um vai comprar uma
camisa e o outro não quer uma camisa igual, tem que ter alguma diferença, nem que
seja só nos botões. E então: “Eu quero um barco, mas não quero igual ao daquele
fulano. Quero com mais ½ metro, quero com mais 20 cm, quero com mais um bocadinho de boca ou um bocadinho de pontal… Que é uma coisa que as embarcações
também não têm, é largura nem altura. Cá em cima não se fala; é a boca que é a
largura e o pontal, que é a altura, não é?
MS - Exacto!
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JM - Assim como não têm lado direito nem lado esquerdo, já deve ter ouvido
falar em bombordo e estibordo. Quando perguntam: “Que largura tem aquele barco?”. Não respondo. “Não sei”. “Então, não sabe? Então mas o barco…” Não, se me
perguntarem “a boca”, eu respondo… Isto por graça, não é?
MS - Claro.
JM - De modo que depois foi evoluindo, foi evoluindo… Também é engraçado
porque quando falávamos de hoje, dos tempos que correm, qualquer um quase que é
carpinteiro, não é? Mas não é assim, porque – O João deve ter conhecido um senhor
que para além de ser pescador, era o homem dos sete ofícios, o Rogério. E então
também foi armador, também teve barcos construídos por ele, inclusive fez um (…)
JF - Era um autodidacta.
JM - Era um autodidacta. E então o homem, quando fazia lá na… ali em Ribamar… era em Ribamar ou era…
JF - Na Atalaia.
JM - Na Atalaia, lá no quintal dele. Começava a fazer uma lanchinha ou um
barquito e eu recordo-me, era novo, lembro-me de ver aquela cara lá pelo estaleiro,
a conversar com os meus tios, e a ver… E um dia, eu estava até a ajudar o meu tio
Chico e ele disse: “Ó Sr. Chico, Eh pá, posso fazer-lhe uma pergunta”? “Não, diga
lá”. “É que eu estou a fazer uma lanchinha – que era uma coisinha destas – e eu faço
as tábuas tão direitinhas, mas não consigo lá pregar nenhuma, que elas partem-se
todas”. E o meu tio começou a rir e disse: “Pois é. O problema está em fazer direitas,
porque numa construção de um barco não há nenhuma que seja direita. Todas elas
são tortas. E então era daí que ele não conseguia pôr, porque não tem uma peça que
seja direita, numa embarcação.
Por as peças não serem direitas, tenho uma história também engraçada. Aqui há
uns quinze anos, catorze, fiz duas traineiras para Sagres, dois barcos com 23 metros.
E os homens, depois, havia quem quisesse o cavername em carvalho, porque era o
armador também… Lá ao sul gostavam mais do pinho manso, porque era mais leve
e não sei quê… E então o homem quis a estrutura em pinho manso e eu andei bastante à procura de pinho manso, porque eram embarcações já grandes. E fui cortar
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madeira ali perto de Alcácer do Sal. O pinho manso, naquela zona, era bem melhor.
Ao contrário do pinho bravo, que é bem melhor para a zona do norte. E andava um
senhor a cortar, a abater árvores, manso, numa herdade que é a Herdade da Palma,
vocês já devem ter passado por lá, aquilo lá perde-se de vista. E eu, na altura, precisava de 200 toneladas de madeira. E falei com o homem e disse que sim senhor,
que me arranjava a madeira e eu tinha de ir lá cortar a madeira, para aproveitar precisamente as formas. Aquilo lá eles trabalham ao casal; o homem leva a moto-serra
e a mulher é que vai desviando as ramas e aquilo tudo. E o homem - eu cheguei lá
de manhã - escalou dois casais: “Olhem, vão aqui com este senhor; a árvore que ele
mandar pôr a baixo – pôs-me à-vontade, porque aquilo era madeira para moer - nem
que seja para tirar uma peça, pode pôr a árvore a baixo, desde que ela sirva”. O preço que ele me vendia a mim também compensava, que a madeira para a construção
naval é sempre muito mais cara do que outra qualquer. E então o homem mandou
e aquilo é enorme; e então ia com o casal, a conversar e as senhoras iam atrás e eu:
“Olhe, corte aquela árvore”. Eles cortaram, punham a baixo. “Tire-me esta peça,
aquela; o resto não me interessa. Olhe, corte-me aquela”.
No outro dia – fui lá vários dias. Num dia, íamos assim a andar, à procura de uma
árvore, e oiço as senhoras, que iam atrás: “Eh, pá, que confusão que isto me faz;
com tanta árvore tão bonita que está aí, e o homem só escolhe as árvores feias, todas
tortas, é o que ele quer. Eu não disse nada, mas ficou-me. E entretanto, vinha a Peniche, porque eu vinha sempre ficar a casa. No outro dia eu não fui, para deixar aqui
o trabalho mais ou menos alinhavado; e eu fui e levei-lhe o desenho de um barco. E
quando estávamos assim…disse-lhe: “Sabe porque é que eu quero as árvores tortas?
É para fazer estas peças”. “Ah, pois estava-me a fazer confusão!”. Esta é uma das
histórias que ficou…
MS - Alguma história marcante que…
JM - Havia coisas engraçadas… Há uma história, também, com um biólogo que
esteve aqui, no Museu de Peniche, que é o Ivo Lisboa, ele até escreveu já vários livros, um homem que catalogou aqui o S. Pedro de Alcântara, aqui, esteve aqui muito
tempo no Museu e ficou muita amizade porque ele adora a construção naval. Aliás,
ele até tem um artigo que escreveu… Sobre uma árvore, quando fizemos o Mestre
Malheiros. Aquilo para arranjar uma árvore para fazer uma roda de proa, tinha que
ser uma árvore já com um porte muito grande, porque era uma embarcação muito
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grande e com uma forma que desse realmente para fazer aquilo, que esta peça não
convém ser….ter… Convém ser peça única, não é? Encontrámos um senhor que
tinha uma serração e que negociava em madeira e fomos à procura da árvore. Dissemos lá o que queríamos e ele levou-nos a procurar a árvore e andámos quilómetros e
quilómetros e quilómetros e vários dias à procura de uma árvore que servisse para a
roda de proa, entretanto encontrámos… E o homem tinha uma árvore ao pé da casa
dele e essa árvore dava, mas aquela árvore era centenária, já. Não havia dinheiro que
pagasse a árvore, mas o homem viu-nos tão aflitos, tão aflitos! Queríamos começar
o barco e não tínhamos… não encontrávamos… ele tinha acompanhado lá… “Eh,
pá! Em último caso eu corto a árvore, porque vocês não deixam de fazer o barco por
causa de não arranjarem a peça”. E procurámos, procurámos, procurámos e encontrámos uma árvore… E, por sinal, essa árvore ainda lá está, nunca foi abatida, ainda
continua; e então ele escreveu uma história: “Uma árvore no caminho de Alcobaça”.
E qualquer dia vou lá com ele, mostrar-lhe a árvore, que ele já me falou nisso.
M - Tiramos uma fotografia à árvore!...
JM - E ele quer lá ir ver a árvore e está lá; e sempre que ali passo, olho para
lá. O senhor já deve ter morrido, que ele já era com uma certa idade, mas a árvore
continua lá e eu fico muito contente de ela não ter sido abatida, porque além de eu
precisar da madeira, uma coisa que sentia era quando olhava para uma árvore e a
mandava pôr a baixo… Custava-me um bocadinho. Acreditem que me custava. Isto
é uma história.
E há outra, que é o timoneiro, que teve uma avaria e partiu aqui esta parte, da
borda. Isto era uma peça também com uma forma e era uma reparação e era preciso.
Lá no estaleiro havia por vezes muita madeira, nem havia para todas as reparações.
Também andei com um madeireiro, uma série de dias à procura de uma peça para
fazer aquilo; encontrámos uma, realmente, em que o senhor, já de idade, ao fim de
muito tempo, pediu-nos para aí o dobro ou o triplo do valor da árvore, que era para
não a vender. Mas eu, como estava tão aflito para reparar o barco e aquilo era uma
reparação, ao contrário de uma construção, que tem um orçamento e a gente está
limitados aos custos, ali era uma reparação, o homem queria era o barco, custasse
mais dez ou custasse menos dez, aquilo não interessava. Então a gente foi, o homem
pediu o dinheiro e eu assim: “Tá bem, a gente amanhã vem cortar a árvore”. “Vêm,
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mas trazem o dinheiro, e trazem o dinheiro em vivo”. Que as pessoas dantes não
aceitavam cheques, tinham muito medo; ainda mais naquela fase pós-25 de Abril,
em que toda a gente tinha medo dos cheques. E é engraçado que fomos cortar a
árvore e o homem levou a moto-serra só, em cima da carrinha, levou só a motoserra, porque a árvore tinha de ser carregada depois com uma máquina, mas levou
a moto-serra já a prever o que ia acontecer… e aconteceu. Chegámos lá, demos o
dinheiro ao homem, o homem contou o dinheiro; isto ao pé da árvore. “Pronto, tá aí
o dinheiro?”. “Tá”. O homem pôs a moto-serra a trabalhar; aquilo levava um corte
e depois levava outro corte, que a gente chama “a cunha”, que é para levar com a
árvore dentro e vai tombar. Qual não é o espanto da gente, quando o homem mete a
moto-serra a trabalhar, faz a cunha, entretanto, vai para tirar a moto-serra do outro
lado, vem de lá a velhota; quase que bate no velhote lá ao pé da gente, de ele ter
vendido a árvore. Se não tem a cunha feita, tínhamos ficado sem a árvore. A gente
muito encolhidos, não é? Ela ralhou muito, muito com o homem, claro. Mas a gente
também sentiu um pouco, fomos mesmo já com a intenção; sabíamos quase que
aquilo ia acontecer. Portanto, há várias… há histórias assim… Isto tudo porque é
preciso determinadas peças para a construção.
M - O momento do lançamento – estou a ver ali uma fotografia – ou do baptismo
do barco, era um momento solene ou…
JM – Era, era, mas para mim era o pior da construção. Da construção não me
metia medo, fosse o que fosse, com mais ou menos dificuldade em arranjar os materiais, o bota-abaixo sim, metia-me muito respeito. E porquê? Porque nunca tivemos
condições de fazer um bota-abaixo. Era sempre com o coração nas mãos. Porque
aquilo, quando se começava a arrastar - e era por arrasto, por atrito - quando se
começasse, não se podia parar, porque não tínhamos hipótese de o voltar a puxar
para cima, se houvesse um azar qualquer e o sítio onde trabalhávamos era perda da
embarcação, de certeza absoluta.
De maneira que aquilo tirava-me o sono, mas muito sono mesmo, porque aquilo
era uma responsabilidade terrível. Felizmente, nunca houve problemas de maior.
Houve um problema, um susto muito grande com esse barco, com o Mestre Malheiros, precisamente porque tínhamos um ponto fixo… Isso era onde tirávamos os
barcos. Aqui, d’um lado é pedra, rocha, do outro lado tinha a muralha e rocha tudo.
Só tínhamos aqui um cantinho por onde ele saía. E tinha de sair por ali, porque se
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saísse por aqui, vinha para cima das pedras. O bota-abaixo era feito a acompanhar
a maré. Só tínhamos aquele espaço de tempo para arrastar e tínhamos de arrastar a
embarcação quase 100 metros. Um barco grande.
Aproveitava-se as marés que escoavam mais e à medida que a maré ia andando,
é que íamos andando com a embarcação, de maneira que quando a maré escoasse,
pronto, desse a baixa-mar, a embarcação estivesse… E depois, quando vinha… E
depois, à medida que ela vinha enchendo, é que a embarcação era puxada para fora.
De maneira que aquilo era um trabalho… Era um risco mesmo! Era de tal forma que
tínhamos muita gente que ia assistir ao bota-abaixo, para a praia, para ver.
Normalmente, fazíamos o bota-abaixo da madrugada para o dia, nessa maré, que
era para a embarcação poder sair à tarde, durante o dia, para não ter a noite, precisamente, pelo risco. E então aquilo tínhamos o que chamamos um ficho, tínhamos um
ferro chumbado na rocha, onde se fazia o retorno, para depois fazer o arrasto, uma
talha, porque aquilo era complicado e aquilo tirou dezenas ou centenas de embarcações; e no dia do bota-abaixo do Mestre Malheiros, com o barco a meio da praia, o
barco ficou e arrancou o ficho. Agora, vocês não imaginam o que aquilo é, a aflição
que foi porque tínhamos que arranjar um ficho, passámos um cabo de aço à volta
de uma rocha e quando ligámos aquilo tudo; entretanto, perdeu-se muito tempo e a
maré não perdoa, não é? Perdeu-se muito tempo, quando estava tudo a jeito, voltou
a fazer-se o mesmo trabalho; guarnir uma tralha, com várias voltas, para desmultiplicar a força e o barco ficou e a rocha cortou, o cabo d’aço cortou a rocha e tivemos
de voltar a fazer tudo de novo. Passámos então já com água pelos peitos e eram os
carpinteiros que faziam o bota-abaixo. Há lá uma pedra que é a Geraldeira, que por
sorte aguentou e o barco lá saiu. Mas aquilo correu… No fundo, não correu nada
bem, porque aí já tínhamos em cima de um berço e o barco era equilibrado… portanto, o barco…
JF – Tinha uma estrutura…
JM – Assim, em cima de um berço e tinha aqui uma estrutura de madeira, que
era para não tombar, nem para um lado nem para o outro. Mas quando chegávamos
com a embarcação em seco, já não ia fazer movimento nenhum, tirávamos tudo,
aquela madeira ficava só lá a base, a segurar todo o travamento. Tirávamos que era
para ele depois, com a maré, sair, para o barco poder flutuar. Por pouca sorte, o mar
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mexia um bocadinho e, quando mexia, trazia força; o barco deu um bocadinho de
si à almofada – chamamos almofada ao suporte. Saiu e, quando a maré encheu, foi
abaixo. O barco adornou todo. Toda a gente gritava que a embarcação se ia virar.
Felizmente, já tinha água suficiente para ele não se ter virado. Mas isso era o pior!
O bota-abaixo era o pior! A maior festa que havia, por tradição, era quando se punha
a quilha ao estaleiro.
MS- A quilha?
JM- A quilha. Quando se lançava a quilha, por tradição, os armadores normalmente faziam quando se fazia este trabalho. Aqui é que normalmente o armador…
JF – Pagava uns copos.
JM- Levava, quando se punha assim… Quando se levantava a quilha, que a gente
dizia “pôr a quilha ao estaleiro”, para começar a construção, é que o armador normalmente levava… Não era grande coisa: às vezes umas azeitonas, um pão, um garrafão de vinho, naquele tempo… Tinha depois, também, quando o barco ia abaixo,
depois já do bota-abaixo, fazerem uma missa, que era tradição…
JF – O baptismo.
JM – O baptismo do barco. E a maior parte das vezes faziam uma adiafa, aí já
um almoço, normalmente caldeirada… Arranjar um barracão, um armazém e fazer
um almoço, depois da missa para a tripulação…
JF – Familiares e carpinteiros.
JM- Familiares nem sempre.
JF – Pois, mas… electricistas, mecânicos…
JM – Os carpinteiros, todas as pessoas que tinham colaborado na construção:
eletricistas, carpinteiros. E então faziam. Infelizmente, isso acabou por se perder;
as adiafas começaram a ser caras. Os meus tios também tiveram por hábito, durante
muito tempo, em que o meu tio Manel tinha por hábito, quando o barco ia abaixo,
fazer um almoço para o pessoal. Deixou de fazer e eu lembro-me desse almoço. Foi
ali na casa dele, no armazém, que era o estaleiro em que ele fez o almoço. Era baca141
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lhau com batatas e grão, que era o que dava mais jeito, menos trabalho. E houve, na
altura um carpinteiro que quando veio comer para as mesas, que aquilo eram mesas
corridas em cima de cavaletes… E ele meteu uma série de postas de bacalhau em
cima do prato. Aquilo chocou tanto, tanto o meu tio que ele disse que nunca mais
fazia e nunca mais fez. Não é por ele ter… Ele até comer o dobro, foi pela acção que
ele fez. E aquilo chocou-o muito e ele nunca mais fez. Mas também chegou a haver
essa tradição.
MS – E ensinamento, ensinou muitos aprendizes?
JM – Ensinei, ensinei alguns. E ao contrário daquilo que se passava com outros
mestres, noutro tempo, eu, sempre que riscava um barco, puxava-os para irem lá ver
e ensinar como era. Infelizmente, não queriam saber, não queriam responsabilidade.
Tinha duas pessoas unicamente, naquele conjunto de pessoas, que sabiam traçar,
mas também não queriam assumir a responsabilidade de traçar, não era? Mas que
sabiam. De resto, nunca ninguém quis aprender.
Dei formação depois, num curso, aqui em Peniche, no Forpescas, daqueles cursos que houve, de formação. Também ensinei, mas aquilo… Vocês são professores
aqui na Escola e sabem como é que as coisas se passavam; e ainda por cima com
rapazes que não tinham querido andar na escola, com idades de 16, 17, 18 anos,
naquelas fases da vida… E eu tinha o último… O horário era à última hora, que era
bem pior, porque eles já estavam fartos de escola, mas felizmente nunca tive problemas nenhuns com eles, ficaram… Ainda andam por aí 2 ou 3 carpinteiros, desta
malta nova, com 35, 37 anos, que saíram desse curso… De resto, deixou de haver
estaleiros.
MS – E hoje, reformado, continua a fazer alguma coisa?
JM – Dei formação em Angola, também, convidaram-me para um projecto em
Angola em que dei formação; e gostei muito. Serviu-me… Foi uma experiência
de que gostei muito, não estava habituado. O que mais me custou foi meterem-me
numa sala de aula, sem experiência, sem nada que me acompanhasse, para além do
conversar, e era um estaleiro, de vez em quando. Mas foi uma experiência muito
boa, muito boa que tive. Agora, reformado, não, não faço nada.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
MS – Estas miniaturas…
JM – Não, nem isso sequer…
MS – Foram feitas em Peniche?
JM – São… E há pessoas que fazem isso, mas eu não. A única coisa que faço
agora, ainda ligada à construção, ou à pesca, faço é inspecções anuais às embarcações de madeira, faço as vistorias anuais como se faz aos carros… Colaboro com a
Capitania nesse aspeto. Fui, durante muitos anos, também perito numa companhia
de seguros, que era a Mútua, da pesca da sardinha. Fui perito da Mútua durante 16
anos, também, era mais um extra que vinha, não é? Dava muito dissabor, mas tudo
o que vinha para além do vencimento servia, mas agora não, a construção naval…
se voltasse atrás, voltava a ter o mesmo, voltava a fazer a mesma coisa, mas fiquei
muito cansado e muito desiludido, até, com algumas pessoas. Porque isto, na construção naval, como na maior parte das coisas, as pessoas só têm valor enquanto são
precisas, depois: “Eh pá, fulano foi… trabalhou nisto, foi bom… mas não passa
disso”. Não se dá valor àquilo que a pessoa realmente foi, não se olha como devia.
Não que eu quisesse que me fizessem…
JF – Alguma estátua…
JM – Felizmente, já fui homenageado, no dia do pescador, aqui pela Câmara
Municipal, mas… não… Já fui convidado uma vez ou duas a ir fazer… falar, como
estou aqui, através desse livro, também com pouca experiência, como deve calcular,
não é? A única coisa que tenho é a prática de construção. Fiz a 1.ª classe, o 1.º ano e
nem sequer o acabei. Perdi o ano por faltas e, para verem aquilo que eu gostava da
construção naval, tive faltas a Português, tive faltas a várias disciplinas e não tive
uma única falta a Trabalhos Manuais… Perdi o ano por faltas, porque naquele tempo
não se justificava, os meus pais….. Também não me interessava nem Industrial nem
Comercial, que era o que havia. Trabalhei naquilo que gostei.
Não me arrependo nem um bocadinho e, como lhe digo, voltava a fazer o mesmo
se as coisas voltassem atrás. Não voltava a fazer algumas coisas, porque isso, a gente vai aprendendo, não é? Ou voltava a fazer, mas de maneira diferente, mas voltava
a ser construtor.
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JF – Uma situação complexa num arranjo de um barco, uma coisa assim…
JM – Tive uma. Tive uma situação que me trouxe também… Como é que heide dizer? Que me deu um gozo e um prazer terrível. Foi uma embarcação com 30
metros. Tinha sido construída em Vila do Conde, de Sesimbra. Que andava na pesca
e que se afundou em Sesimbra. Estava preparado para sair para pesca, mas caiu
muito temporal e ainda não havia o abrigo que há agora e a embarcação afundou-se
e, com o mar, ficou quase totalmente destruída por baixo. Na obra viva, porque a
embarcação tem as obras vivas, será aquela que anda debaixo de água e à que está
fora d’água chamamos obra morta. Toda esta zona desapareceu e o barco, depois,
subiram-no em Sesimbra, em Setúbal e aquilo ninguém queria fazer a reparação ….
Houve um armador, na altura, foi na força da pesca, ali da lagosta, em Marrocos e,
aquilo, aproveitavam tudo e mais alguma coisa para ir para lá… O homem, para
aproveitar a licença do barco, quis reparar a embarcação e levou-me a Setúbal, se
eu a reparava. Eu olhei para aquilo e disse que sim senhor, que lhe recuperava o
barco. O barco para Peniche com 350 bidons metidos no que restava do barco, para
ele poder flutuar. Subimos na embarcação. Ele vinha todo torcido. Não o consegui
subir no estaleiro onde eu trabalhava. Não dava para subir, devido àquele ingueiro e
as condições para subir… Subia-o lá, onde hoje é a praia.
MS - Esse ingueiro…
JM – O ingueiro… O ingueiro é aquilo que fica entre as rochas, onde passa a
água, quando seca, chamamos o ingueiro… de modo que subia-o lá e fui para lá
começar a reparar aquilo. Ao lado havia o estaleiro de um senhor já de idade, que
era o Pompílio, na altura, que era o mestre que cá havia; e em que ele olhou para
embarcação, chamou-me e disse que eu era doido em ir reparar aquilo.
O trabalho era pouco, na altura, e aquilo era uma reparação e eu fui fazer aquilo.
Há uma peça naquela embarcação… Isto tudo tinha desaparecido. E é esta peça que
a gente chama “o cadasto” e como é mais larga nesta zona, mais grossa, que é o sítio
que a gente chama a “viola”, que é onde trabalha a hélice. Para substituir, precisava
essa peça, a parte de cima da embarcação teria de ser totalmente desmontada, para
substituir e peça. Mas eu precisava de a substituir e ia olhando, largava o trabalho,
nunca vinha para casa, ficava a olhar e a pensar, de noite, como é que se fazia…
E vieram dizer-me como é que havia de fazer a peça. Tirou-se os moldes à peça e
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tudo aquilo, o estaleiro era do outro lado, ali em frente ao Marché e eu reparava do
outro lado, onde está o barzinho agora. O barco estava aí para reparar. Mandei tirar
o molde, fiz a peça, no estaleiro, mesmo os homens que estavam lá a trabalhar, os
carpinteiros, perguntavam-se e perguntaram-me como é que eu ia meter a peça sem
desmanchar as cambotas e sem tirar aquilo tudo cá de cima. E eu fiz a peça toda,
nunca disse a ninguém. Já tinha pensado como é que a ia meter, mas nunca disse a
ninguém…
JF – Coisa de mestre!
JM – Inclusive o Pompílio, que era um homem experiente e tinha o dobro da
minha idade, na altura, um homem já em fim de carreira e toda a vida ligado à construção naval também, farto de construir. Eu era um rapaz ainda novo, na altura… E
quando a peça está pronta para ir para o lugar, o Pompílio disse-me: “Olha lá, pá.
Então como é que tu agora vais meter a peça no lugar sem tirares as cambotas e sem
desmanchares aquilo tudo”? E precisamente com a peça ao lado; trabalhava-se na
praia, assim como é, e os homens, carpinteiros que trabalhavam comigo: “Zé, então
e agora a peça? Temos de começar a desmanchar aquilo? Como é que a gente põe
a peça”? “Faz um buraco na areia e depois puxas a peça para cima”. O Pompílio
olhou para mim: “Nunca tinha pensado nisso! E perguntava.me a mim como é que
tu ias meter a peça no lugar sem desmanchar as cambotas”. Que ele não me via
desmanchar nada. Aquilo depois tinha a abertura, tinha tirado a velha, não é? Eu
mandei fazer um buraco, que a peça ainda tinha quase 4 metros e tal, quase 5 metros. Aquilo era praia; ainda apanhámos água no fundo, mas como a embarcação,
depois, também subia até cá acima, mandei fazer um furo na areia. Depois levou
uma pecinha aparafusada cá em cima e cá de cima puxámos a peça. E o homem
deu-me os parabéns… Ninguém tinha pensado nisso, por incrível que pareça. Tinha
sido eu a única pessoa e isto porquê, por estar muito tempo lá a olhar como é que ia
substituir a peça. Portanto, é uma história… Realmente, é muito fácil. De maneira
que há histórias assim.
JF – E principalmente um rapaz novo!
JM – É que eu era o mais novo construtor que havia na altura. Metido ali…
JF – No meio daqueles dinossáurios, não é?
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
JM – Era o mais novo e o maior estaleiro que havia era o nosso, não é? De maneira que aquilo, a reparação daquele barco acarretou uma fortuna, trouxe uma fortuna
grande. Para mim, o meu ganho foi o meu ordenado e mais nada. O dinheiro não
sobrava, nunca chegava. Mas o dinheiro também não é tudo e, felizmente, ficou uma
amizade grande com as pessoas e aquilo trouxe-me…
JF – Projeção.
JM – Foi. Depois fiz barcos precisamente porque as pessoas acreditavam. Era um
rapaz novo e eles eram uns homens experientes e não sei quê, eu era um carpinteiro.
E havia aquele…
JF – Não sei se acredito, se não…
JM – Pois… Os outros eram mais experientes, pessoas já com provas dadas e eu
era um novato. Como carpinteiro sabia trabalhar. De maneira que aquilo, depois, na
altura, me trouxe assim, um…
MS – Inovou.
JM – Projetou… E mesmo a nível nacional. Comecei a ser conhecido em Vila do
Conde, Maia, na Figueira. “Eh, pá! Quem é que é o fulano que fez isto”? “Foi fulano”. E o nome do estaleiro começou a ser conhecido no meio. E trouxe-me um bocado mais porque chegou-me um dia aos ouvidos, logo quando o meu tio adoeceu,
acabamos o Mestre Malheiros e aquela fase de trabalho escasseou. Houve pouco que
fazer, muito pouco. Não havia os financiamentos que começou a haver, o trabalho
escasseou muito e eramos ainda 20 homens ali a trabalhar e havia pouco que fazer,
mas não era só o nosso estaleiro que não tinha trabalho ou encomendas, eram todos.
MS – E em que período é que houve essa crise?
JM – Essa crise maior foi em 80 e… Ela começou logo em 77, 78, porque os
armadores todos se retraíram, não é? “Como é que isto vai ficar”? Havia aquele papão em que os comunistas iam tirar tudo às pessoas e não sei quê. E aquilo parou,
esteve muito mau, tanto que eu estive para embarcar como carpinteiro de bordo,
que os navios tinham carpinteiros e eu estive mesmo para embarcar. Tirei uma carta
de carpinteiro, que aliás era a única que havia em Peniche. Foi tirada em Peniche,
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
a minha, depois. Havia carpinteiros de Peniche, mas que tinham tirado as cédulas
deles em… Com a categoria de carpinteiro… E eu estive mesmo para embarcar em
76, precisamente naquela fase em havia pouco que fazer.
Ainda eram os meus tios e foi a partir daí, em 77, que formamos a Cooperativa e
ficou um dos meus tios à frente, como mestre. Não havia ninguém habilitado. Não
havia. Por bons carpinteiros que tivéssemos, mas habilitado a ser Mestre e a dirigir não havia, não é? E ele, que já tinha idade, que já tinha 70 e tal anos, na altura,
comprometeu-se a ficar com a gente, mas na dúvida se ia haver ou não trabalho. Foi
quando fizemos o “Fruto da Liberdade”. Foi o primeiro barco. Uma das primeiras
cooperativas que se formou; tiveram financiamento, acreditaram na gente porque
estava lá o meu tio. O estaleiro era um dos melhores estaleiros do país. E a partir daí
é que começou a evoluir.
Depois houve toda aquela evolução de Cooperativas de pesca de cerco e houve
muito, muito, muito trabalho. Depois, a partir ali de 86, 87 em diante, começou a
cair. E isto para dizer… Eu por acaso tinha uma encomenda, um barco de 15 metros
que foi o “Vila de Peniche”, um rapaz que acreditou em mim, porque já não havia
o meu tio. Disse: “Não. Vais-me fazer um barco”. Mas isto, conversa com os dois,
enquanto se tratava da papelada e, no estaleiro, ninguém sabia e apareceu aquele
barquito do Patalavaca, foi para ali para o Ramiro, fazer, e eles disseram que o Ramiro ia fazer um barquito, por sinal até era mais pequeno que aquele que eu fiz, que
era de 15 metros e o deles era de 11… E houve um, chegou-me aos ouvidos. Ele diz
que é mentira, mas eu acredito que tivesse sido verdade: “Ah, a gente não arranja
nenhum barco para fazer porque o mestre é fraco”. Isto era o que havia. E depois,
com o andar dos anos, acabei por lhe dizer um dia, numa reunião, que eramos uma
Cooperativa, e eu tive o azar de ter de ficar à frente da Cooperativa, para além de
mestre, como…
MS – Administrador.
JM – Era… Tive que ficar sempre, durante 12 anos. Bons carpinteiros; tivemos
sempre pessoal para trabalhar que era uma maravilha, mas outra coisa ninguém
queria. Responsabilidades ninguém queria. Queriam fazer, mas tinha que lhes dizer:
“Fazes assim”. Tanto que eu marcava tudo, tudo, tudo. Então, um dia, chegou-me
aos ouvidos; isto já passados uns anos, já o estaleiro construía muito… Já o mestre
era…
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JF – Conceituado.
JM – Já o mestre era bom e que nunca ninguém teve a coragem de dizer: “Dáse mais qualquer coisa ao mestre”. Em termos de vencimento, o que me chocou
também um bocado, na altura, porque tive que ser eu a dizer: “Ou a partir de agora
ganho como mestre, ou…”; que a responsabilidade que tem é completamente diferente. Eles reconheceram. Eu pedi mais alguma coisa e eles, depois, nem me aqueceu nada, e eu nem quis: “Ah, para pedires isso, mais valia estares calado”! Portanto
reconheciam que que devia ter ganho mais, mas até ali… E nessa altura eu disse a
essa pessoa: “Tu uma vez disseste isto assim, assim…”. “Ah, mentira! Nunca disse
isso, nem nunca dizia”. Mas disse, que eu acredito que tivesse dito. De modo que
hoje não tenho… Gosto muito de construir. A qualquer sítio onde vou, adoro barcos
e…
MS – Mas há só um estaleiro em Peniche, não é?
JM – Agora só há um estaleiro...
JF – E já não faz construção.
JM – Construção não. Faz alguma reparação, muito pouca.
JF – Os carpinteiros navais que lá estão fazem basicamente reparações.
JM – Alguma e quando é alguma mais complicada, já têm de pedir ajuda a alguém que lhes dê uma indicação. De resto, não fazem mais nada. Eu ainda sou accionista daquele estaleiro. Infelizmente, nunca mais…
JF – Ah, pois, porque aquilo houve uma união…
JM – Fui convidado dezenas de vezes a ir para lá, ser mestre lá, com vencimento
bastante superior àquele que eu tinha. Nunca me arrependi. Podia estar melhor financeiramente, mas profissionalmente, depois da volta que aquilo deu. Como digo,
tinha sido diferente, acredito, mas nunca me arrependi.
MS – Então e de que é que se fazem os barcos.
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JM – Em madeira, agora não, praticamente não se fazem. Fazem-se os de fibra,
alumínio, aço e pouco mais. Pouco mais e é fácil de fazer, porque não tem nada que
ver com a construção de madeira. A construção de madeira é uma arte.
M – Já não se faz em Peniche e já não se faz no país.
JM – Praticamente não. As pessoas acabaram e foram envelhecendo e ninguém…
Mesmo ninguém procura agora um armador. Primeiro porque não há, segundo porque é mais fácil, é mais rápido. Se calhar os custos de construção também são menos.
JF – A manutenção é…
JM – A manutenção é um bocadinho diferente também. De qualquer modo, há
muito pescador antigo que gosta mais da madeira, de andar ao mar num barco de
madeira do que num barco de fibra d’aço ou outro qualquer. A embarcação é mais
segura, em termos de estabilidade.
JF – Tem um desenho de águas mortas completamente diferente.
JM – Tive um engenheiro de construção naval que também adorava a construção. Formou-se, mas aprendeu muito comigo também, algumas coisas, porque a
prática depois é que vai ensinando e eu acho que a maior parte das pessoas deviam,
na prática, passar por vários sítios, para depois verem as coisas de maneira diferente.
E ele vinha muitas vezes a Peniche. E o sonho dele era a construção em cimento.
Era o sonho daquele homem e aquilo tinha ido para a frente, na altura. Às pessoas
fazia-lhes muita confusão, uma embarcação de cimento.
Eu, por acaso, a primeira vez que vi uma embarcação em cimento foi em Luanda,
porque eu fiz o serviço militar em Luanda, não fiz em Angola, porque nunca saí de
Luanda. E já tinha o bichinho de ir aos estaleiros e vi. Era um draga-minas e era
em cimento. E depois comecei a ver algumas embarcações de cimento. Vinha aqui,
inclusivamente, uma de recreio que toda a gente pensava que era fibra e era cimento. Quando estive a dar formação em Moçâmedes, tinha uma embarcação-escola,
para dar aulas práticas, que era uma embarcação em cimento, feita em Cuba, linda.
Também ninguém dizia que era que era cimento… E o homem, o sonho dele, era o
cimento.
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Também tenho uma história, por causa do cimento, muito engraçada. Fizemos a obra a um barco. Antigamente cortava-se muita vez a popa de painel e depois
acrescentava-se e fazia-se uma popa, ou seja, modificava-se a embarcação, em vez
de se construir de novo. E a gente fez uma obra ali onde era o Chinês velho. E depois
da obra feita, tivemos que fazer uma prova de estabilidade. E a prova de estabilidade
é com diversos pesos, com o barco adornado a um lado, adornado ao outro, para ver
a inclinação… o ângulo… para saber…
JF – Se adornar de mais, o barco reprova.
JM – Está reprovado. E então, fomos fazer uma prova e os pesos, para ser mais
fácil, não havia equipamentos, era com bidons de água: punham seis bidons a um
bordo, enchiam-se de água, depois despejavam-se, para passar os níveis para outro
bordo e era assim que se fazia a prova, não era? De maneira que fizemos a prova
toda… As provas eram feitas dentro de água, claro. E para ajudar na manobra dos
bidons e isso, o mestre do barco pediu a dois moços para irem ajudar e eles foram ao
sábado e então veio o engenheiro Conceição e veio esse tal engenheiro dos barcos
de madeira, vieram três ou quatro rapazes mais novos para irem aprendendo também. Foi a um sábado. De maneira que, depois daquilo feito, mandaram tirar um
balde de água, metia-se um densímetro para ver a densidade da água, para fazer os
cálculos, não é? De modo que o engenheiro pediu ao mestre: “Mestre, peça aí para
tirar um balde de água, se faz favor”. O homem tirou um balde de água, a prova foi
feita na bóia, ali ao pé do Molhe Leste. O homem tirou um balde de água, meteu-se
o balde em cima do bidon, meteu o densímetro dentro de água; eles olharam uns
para os outros: “Não pode ser… Importa-se de tirar outro balde de água”? O homem
tirou outro balde de água, mete… “ Isto é mesmo verdade”! E virou-se para a gente
e disse assim: “Eh, pá, isto não pode ser. Esta água é muito salgada”! Do que eles
conheciam, era a água mais salgada do país. Naquela zona, porque se for junto à
muralha, a densidade era menos.
Entretanto, o homem disse aquilo. As pessoas ouviram, não disseram nada e
começou-se a falar então das embarcações de cimento e quando se começa a falar
das embarcações de cimento é que os homens… Um morreu até há pouco tempo, o
Carlos, diz assim para o Zé maria, o mestre do barco, a gente chamava o Chinês: “Já
viu Mestre, estão aqui a enfiar o barrete às pessoas. Primeiro, que a água era muito
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salgada, agora é com os barcos de cimento”. Nunca tinham ouvido numa embarcação de cimento. Aquilo foi uma confusão muito grande. Mas o que é facto é que a
gente, aqui, tinha a água mais salgada do país. Ali, à boca do porto, era muito mais
salgada do que junto à muralha; a densidade era muito maior. De maneira que… Eu
também pensava que a água era salgada, mas a densidade dela é totalmente diferente
em determinadas zonas… de maneira que a história é assim.
MS – Muito bem, para terminar, retomava só uma questão anterior. A questão da
aprendizagem… Digo isto porque já tive na mão, já li, manuais de construção naval,
que já existiam no século XVI, a explicar aquilo que o Senhor explicou.
JM – Mas muito pouco; há muito pouco sobre construção naval…
MS – Sim, sim, mas naquela altura, já ensinavam o que o senhor explicou aqui.
É engraçado; eu conhecia de ler o manual: a forma como escolhiam a árvore, o tipo
de árvore… Isto para dizer, enfim, que as técnicas mantiveram-se durante 500 anos
inalteradas.
JM – Na madeira mantém-se…
JF – Os entalhes, as uniões…
JM – E depois hoje… hoje não, já há alguns anos, um rapaz ia aprender e, conforme ia crescendo, ia avançando na profissão. Mesmo que pouco soubesse ou nada.
Um oficial de 1.ª, de 2.ª e 3.ª, os vencimentos alteravam-se e os trabalhos também,
não é? O oficial de 1.ª fazia coisas que não faziam o de 2.ª ou de 3.ª e havia a necessidade. E eu para chegar a 1.ª, tive que fazer um exame que havia. E então uma das
perguntas, ou um dos trabalhos que tinha que desenvolver era: uma embarcação sofria um rombo e portanto era dada ao carpinteiro uma tábua para tapar o rombo. Normalmente, a tábua tinha um bocadinho mais de comprimento, mas não tinha largura
do rombo, dava para tapar parte do rombo e o carpinteiro tinha de tapar o rombo.
Dava para tapar parte do rombo e o carpinteiro tinha de tapar o rombo, se não a maré
vinha e o barco ia para o fundo. E para passar para 1.ª, tinha de saber como resolver
aquela situação. Uma pessoa fica assim… Eu também fiquei, também tiveram de
fazer o trabalho por mim. E então, também, lá está: é muito fácil. Corta-se a madeira
em cruz e, depois, o bocado que tem a mais, corre e ela ganha na largura. Mas isto
também… Isto prova que há aquelas coisas que nem todos os carpinteiros sabiam
fazer, porque podia alguma situação daquelas aparecer e a madeira não dar…
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MS – Muito obrigado. Estávamos realmente aqui muito mais tempo, se fosse
necessário.
JM – Para vos dar determinados… A fundação era feita com calafete; aí é que
nasce a profissão de calafate, que era no fim da construção, tapar as juntas todas com
uma estopa ou linho e a profissão de calafate fazia o calafete, fazia a furação toda
que fosse para além de 5/8. A partir de 5/8, quanto mais grosso, já era feita por um
calafate e não por um carpinteiro; e depois fazia outra coisa que a maior parte dos
carpinteiros em Peniche, os carpinteiros navais, que aprenderam como eu, de pequeninos - e que não se falava - eram as cavilhas, que faz a ….. de uma junta. Faz-se um
furo, depois mete-se um torno – que a gente chama uma cavilha, que é para a água
não passar, nem para um lado nem para o outro. Isso é o essencial, numa construção.
É fazer aplicar uma cavilha, a que normalmente se dá o nome de cavilha d’água.
Dá-se na gíria, porque o nome daquilo é cavilha de entalhar. Mas se disser a muitos
carpinteiros: “Olha, vai ali pôr uma cavilha de entalhar”, ele não sabe o que é.
MS – Já agora, e os acabamentos, isso depois levava alguma tinta…
JM – Os acabamentos interiores eram o carpinteiro naval também que fazia,
porque havia um carpinteiro de limpos que fizesse forragem interior, assim como camarotes, armários e tudo. Aqui em Peniche, nunca houve essa tradição. Devia haver
os pintores também, mas o carpinteiro naval aqui era polivalente, fazia tudo. Normalmente, ficavam na pintura, aqueles que não tinham jeito para carpintaria. Para
os arranjos interiores, iam aqueles que não tinham jeito para aqueles trabalhos mais
bonitos. Tinha sempre o cuidado de escolher as pessoas. As tintas evoluíram muito,
porque aqui há muito ano, não havia as chamadas tintas de fundo, os anti-vegetativos não existiam; era dada uma crena com alcatrão e verniz quente, que era outro
trabalho que as embarcações, de vez em quando, tinham de vir a seco, para raspar
aquilo, para não ganharem as algas e aquilo tudo. Hoje há um anti-vegetativo que
uma embarcação… São caras, mas são muito boas; em que a embarcação aguenta
um ano dentro de água, sem vir a seco para limpar, se não agarra aquelas algas.
Naquela altura não, de mês a mês, dois meses, tinha que vir a seco e aquilo era um
trabalho que era feito pelo carpinteiro, que era dar crena, que era verniz e alcatrão,
juntos. Depois levava petróleo, uma quantidade de petróleo para poder … em que
aquilo, o barco vinha a seco, era queimado, davam calor para tirar aquelas algas…
Raspava alguma que lá tinha limo e depois voltar a dar. Era feito por um carpinteiro.
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Era um trabalho tremendo. Depois começaram a aparecer outros. Há tintas muito
boas, já. Há um diluente anti-vegetativo, que a gente chama o Peacock, que…
JF – Alguns desses anti-vegetativos estão proibidos.
JM – Estão proibidos… São só para embarcações de alto mar, para não poluírem
os portos. A gente aplica aqui, parte dele. Enfim, tintas muito caras, mas muito boas.
JF – Cinco litros daquilo custam cento e tal euros.
JM – Cento e tal euros, cinco litros! Eu já comprei… O último latão de Peacock:
110 contos. Um latão de 20 litros, 110 contos, na época. Agora, se fores comprar
um anti-vegetativo bom, pagas aí 8, 10 contos; 50, 60, 80 Euros por um quilo de
Peacock.
MS – Muito bem. Alguma coisa para terminar?
JM – Só agradecer a disponibilidade.
FOTOS DE MODELO DE BARCO
Modelo de barco, pormenor. Autor: José Maria. Fotografia de João Fernandes.
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Modelo de barco, pormenor. Autor: José Maria
Modelo de barco, pormenor. Autor: José Maria. Fotografia de João Fernandes.
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Modelo de barco, pormenor. Autor: José Maria. Fotografia de João Fernandes.
Modelo de barco, pormenor. Autor: José Maria. Fotografia de João Fernandes.
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MEMÓRIAS DA PESCA
ENTREVISTA AO SR. JOÃO COMBOIO [JOÃO PACHECO LEITÃO]53
JF – Hoje começamos com uma entrevista a um pescador, pescador e armador
mais conhecido por João Comboio, que nos vai contar experiências de pesca, experiências de vida, relativas essencialmente à pesca da sardinha.
MS – Muito bem.
JC – Começo por me apresentar. Já está dito o meu nome. Fiz a 4.ª classe, naquela altura era o exame de admissão, era para ir para a Escola Comercial e Industrial
de Peniche. Naquela altura já tinha o bichinho do mar e então, com onze anos, fui
trabalhar com o meu pai, que já tinha uma traineira. Comecei no armazém das redes, em 1956, com 11 anos, pois os jovens, naquela altura, iniciavam-se assim: ou
iam para os armazéns das redes, ou para as oficinas, ou para os estaleiros ou para
as fábricas. O barco era de família, pertencia metade ao meu pai e a outra a um tio,
irmão da minha mãe, por isso o bichinho de ir para o mar era muito forte. Comecei
como ajudante de motorista e os primeiros dias foram uma tristeza e uma esperança,
pois queria sair lá de baixo, onde o cheiro a gasóleo era muito forte. Havia então
os camaradas, que recebiam uma parte e os moços, que recebiam uma parte e meia,
como agora. Assim que surgiu uma vaga, passei de ajudante de motorista a moço.
Depois de um ano surgiu a oportunidade de mudar para o Gamboa, e por convite de
um primo, que tinha como contramestre um cunhado, tornei-me contramestre aos
15 anos. Eu por exemplo tive quase efectivos, perto de 45 anos de mar e tive aí três
ou quatro anos em que não fui encarregado. Comecei logo com15 anos a governar
barcos.
A presente entrevista foi realizada no porto de pesca de Peniche e o armazém de João Comboio, no dia ���������
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de novembro de 2013, e conta com três intervenientes: o Sr. João Pacheco Leitão, mestre e proprietário de barco, daqui em
diante assinalado no texto com as iniciais JC [João Comboio] e os professores João Fernandes (JF) e Miguel Santos
(MS), professores da Escola Secundária de Peniche.
53
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
MS – E quais eram as funções do contramestre?
JC - O contramestre é quem governa o barco. O mestre dá as ordens, ele é quem
leva o barco, traz o barco, é quem governa o leme, é abaixo do mestre, chama-se
contramestre. Entretanto, como o meu pai que Deus tem tinha a traineira, o meu
tio adoeceu, meu primo já tinha sido contramestre, e o meu irmão também foi ser
contramestre. Mas o meu irmão queira mais. Tinha um tio na Ericeira que tinha um
arrastão e o meu irmão que Deus tem foi logo ser mestre de redes, com 17 anos, de
um arrastão. Entretanto eu fui ser contramestre do meu pai que Deus tem, andei ali
sete ou oito meses, foi uma história engraçada porque eu saí do meu primo, como
contramestre. É engraçado porque a gente hoje fala no respeito mas eu, naquela altura, tinha lá homens que tinham idade para ser meus avós e respeitava todos. Mas
eu não gostava de ver pessoas ladrões. O que são ladrões? É estar a cegar os outros,
é estar a roubar o peixe. Isto explica porque é que eu saí do meu primo que Deus
tem. Uma vez na Ericeira apanhámos dez ou doze cabazes de lulas, misturadas com
sardinha, chegámos à terra o meu primo disse «olha, depois as lulas é para dividir
pela companha toda». Mas o homem que estava nas cavernas, tinha um cesto muito
grande, e timba, timba, encheu o cesto e conseguiu passar para terra, mas eu não vi
nada. Mas um camarada veio ter comigo e disse-me: «João olha que fulano assim e
assim, olha que não faças conta com o quinhão para ele, olha que o cesto dele levou
ali mais de 20 quilos de lulas, e já passou o cesto». Entretanto, fez-se a descarga,
distribuiu-se as lulas todas e o colega «então e o meu quinhão?» - «O quinhão, caraças, então você não tem vergonha, já levou?». - «Quem foi que disse?» - «Não
interessa. Onde é que está o seu cesto? O seu cesto já leva». O homem tinha idade
para ser meu avô e quase nos pegámos um ao outro, mas disse: «Não façam quinhão
para ele». Descarregámos e fui para casa e disse para a minha mãe que Deus tem: «olha já não vou ao mar». - «Então?» - «Passou-se isto assim e assim, não. Já viste
agora aturar isto? Para ganhar um pão, ganho em qualquer lado». O meu primo que
Deus tem perguntou-me e eu contei-lhe o que se passou e disse-lhe que já não ia para
o mar. Foi então que fui ser contramestre do meu pai que Deus tem.
O meu pai que Deus tem foi sempre uma pessoa sem dinheiro, mas de ideias, a
ver futuro, para amanhã, e conseguiu fazer uma traineira nova sem dinheiro, de 5
metros. Entretanto o 5 metros fez-se para o lugar da Praia Formosa, mas ele não
vendeu o Praia Formosa, foi para a rede a pescada. O barco era para os filhos, o
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
meu irmão era mais velho do que eu dois anos, fazíamos anos de diferença de dois
dias. Andámos muitos anos a fazer anos no mesmo dia mas era mentira. Foi a minha
irmã que Deus tem, de certeza, que no dia 8 de junho, pôs 6, andei até no bilhete
de identidade com o dia 6. Até que uns anos mais tarde quando foi para casar, «ah,
não você faz anos no dia 8». No bilhete de identidade, ainda hoje está, no nome da
minha mãe – é uma história engraçada que não tem nada a ver com a pesca, mas é
um parêntesis – o pai do Octávio chama-se Joaquim Leitão Farto, e as minhas irmãs
são Maria Guilhermina, Maria do Rosário Farto Leitão, e como o meu irmão que
Deus tem ficava Joaquim Farto Leitão «ah, os nomes são iguais» e então o que é que
puseram? Pacheco. Joaquim Pacheco Leitão e eu nasci João Pacheco Leitão mas a
minha mãe chama-se Lídia Farto. Ainda hoje o meu bilhete de identidade tem Lídia
Pacheco e o nome da minha mãe é Lídia Farto. É uma estória engraçada que me
lembrou neste momento.
Mas entretanto, o barco do mau pai que Deus tem, era em 1966, dizendo que era o
barco para os filhos, mas ele ainda era um homem novo, tinha 56 anos, ainda queria
experimentar. E como eu não podia ir para o mar, eu perceba bem disto, como um
homem que é acostumado nisto, nas redes, e então eu fiquei a ganhar um quinhão e
meio. Fazia as duas coisas: chamava a companha e era atador. Ganhava quinhão e
meio. Entretanto aquilo correu mal ao meu pai que Deus tem, e o meu irmão ficou
como mestre e eu contramestre. Entretanto o meu pai, antes do 25 de abril, isto em
1972, talvez, 71 ou 72, comprou, não comprou, havia uma abertura para fazer barcos
e fez o barco Papôa. Chamava-se Papôa. E disse assim: «Bem, um fica para o meu
Xico governar, e o outro para o João. Para os meus filhos». Entretanto ele, coitado,
faleceu, o barco estava pronto, só faltavam uns acabamentos, o dinheiro fazia a gente
naquela altura, veio o 25 de abril, as cooperativas. O barco tinha gasto na altura mil e
tal euros, ou mil e tal contos, as cooperativas eram quatro mil contos, «eh, quatro mil
contos é um problema». O meu pai já tinha falecido, os meus cunhados…., vendeuse o barco, ficámos sem ele. Olhe morreu nos Açores, esse barco morreu nos Açores.
Entretanto nessa altura ficámos com o 5 metros, apanhei uma doença que me impedia de andar, ficava parado, de uma perna. Fiquei em terra, fui ao médico, fui operado às amígdalas, lá em Lisboa, porque me disseram que a inflamação das amígdalas não era bom para a coluna. Entretanto os médicos disseram-me «você tem lá uma
coisa boa na sua terra, vai apanhar uns banhos de sol na coluna, experimente. Ora fui
apanhar uns banhos de sol para a coluna e o que é que a companha disse? Nessa altu159
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
ra, ganhávamos todos uns para os outos e quando alguém estava doente ganhávamos
… E os meus camaradas: «então ele anda com a toalha às costas». Mas só deus sabe
como eu andava, às vezes queria-me levantar e não conseguia, mas pronto fazia o
que o médico mandou. O meu irmão chamou-me um dia e disse-me «passa-se isto
assim e assim». E eu – «não há problema, eu saio do barco e depois quando estiver
bom…» E pronto, saí do barco, na altura em que eu mais precisava, ainda parece
que estou a ver pelo Natal desse ano, tinha tanto dinheiro como está aqui [estende
a mão vazia]. Queríamos dar uma prenda à minha filha, que é casa com o professor
Mário, e lá conseguimos arranjar para dar um bonequinho esse ano. Estou a contar
esta estória porque ela tem influência no que se passa… já lá vou [João comboio foi
curado por um médico na Ericeira].
Entretanto depois já não fui para o barco. Apareceu-me um armador para ir governar um barco, tinha 26 anos, e fui governar o Napoleão. Ela daquelas coisas
antigas, fracote, eu estava acostumado ao 5 metros, não tinha as condições, e eu
gostava muito de trabalhar e via que aquilo não tinha condições. Entretanto entreguei o porque não tinha condições financeiras. Tinha vindo, entretanto, um barco da
Figueira, que era o Mestre de Avis, o homem veio ter comigo e fui governar o barco.
Aquele tinha peso a mais, ao contrário. Como eu estava acostumado a trabalhar no
5 metros, com 14, 15 braças, escapava sempre do fundo, porque não havia os aparelhos de fundo nas redes como há hoje, para acusar onde está a rede; vou largar a
rede cá fora, na Ericeira, a terceira viagem, ou a quarta, Mestre de Avis, perto de
40 braças de água, que andam à volta de sessenta e tal metros, setenta metros, eu
estava a fechar a rede devagarinho, o rapaz que era motorista na altura, tinha estado
na Figueira, diz-me, «João», estava calminha branca, «estás a fechar a rede muito
devagar, olha que a rede vai até ao fundo…». – «oh, pá, não me digas, num altura
destas… e estava a rede no fundo, ficámos sem alguns doze talhões de chumbo. Fui
ter com o homem, «oh senhor António, desculpe lá, mas não sei trabalhar…já viu,
com quarenta braças de água…não consigo fazer a vida a que estava acostumado
com uma rede destas…». - «Você fique lá com o barco, arranje um mestre». E saí
do barco.
Entretanto no 25 de abril os mestres ganhavam quatro quinhões, o contramestre
dois, o motorista dois e meio, os moços parte e meia e os camaradas um quinhão.
Isto é assim como os jogadores de futebol, há sempre quem ganhe mais e quem
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ganhe menos. O meu irmão que Deus tem disse, «eu fico no barco…». Ele ganhava
quatro e ficava a ganhar cinco, foram ter com ele para fazer sociedade, «mas hão de
me dar mais um quinhão». Os meus cunhados disseram que cada devia ganhar aquilo a que tinha direito e ele foi-se embora. Foi quando apareceu o António Gaivota
e ele foi governar o Intrujão. Fui eu governar o barco, o 5 metros e revolução. Foi
logo ali em 15 dias, 15 dias a andar ao mar, os companha «não pode ser, os mestres
devem baixar para três quinhões», os barcos todos parados. Um dia estava em casa,
fui lá… aquelas coisas dos sindicatos e disse «podem dizer lá que se a nossa companha quiser ir para o mar eu vou por três quinhões, queiram-se matar os mestres:
«Estás parvo…». Veio cá não sei que jornal foi, que ainda lá tenho em casa, foram
com a gente de manhã e apanhamos 300 cabazes de sardinha. A partir daí foi toda a
gente para o mar ganhar três quinhões. Entretanto o cinco metros precisava de um
arranjo grande também, demos a parte aos meus cunhados e o barco ficou para mim
só e para o meu irmão que Deus tem. O barco tinha uma avaria grande, precisava
de um arranjo grande e os estaleiros, naquela altura estavam a fazer-se as cooperativas, não tinham mãos a medir. Então falei com o meu irmão e vendi-lhe a minha
parte do 5 metros e fiz uma sociedade com o António Gaivota, um cunhado dele, o
meu irmão e eu. O barco era o S. Julião, um dos melhores barcos da altura e a coisa
correu sempre bem.
Ao fim de alguns anos, uns seis ou sete, tive um azar, as febres de malta, estive
a morrer, o contramestre foi para o mar e perdeu meia rede… a empresa estava tão
boa, ficou…, a empresa, como outros sócios, tinha mais dois barcos e aquilo não
tinha condições. Fizemos uma reunião e o António disse «João temos que vender
o barco, o barco não tem condições para se manter…». Só havia uma maneira de
manter o barco e eu andar já andava devagarinho, mas para subir…. Eu tinha estado
na Cruz Vermelha, se não tivesse lá tinha morrido. Ali o Mário, que me emprestou
400 contos, não era nada à minha filha, sem o pai e a mãe saber, era o dinheiro que
ele tinha no banco. A minha mulher pediu aqui e acolá, 1200 contos, e foram dois
meses e tal que eu lá estive. Eu ainda devia 80 contos para acabar aquela casa que
estava a fazer na Atouguia. A Mila vai ao Banco Ultramarino que lhe diz que não
pode ser…ela lá conseguiu, ao irmão, à prima, ao futuro genro, ela lá conseguiu
arranjar o dinheiro. E eu estou aqui.
Aquilo só havia uma solução. Saíram dois homens, o barco não andava a pescar
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nada, as partes que se dava à companha, fazem-se as mesmas e as duas revertem a
favor do patrão a ver se a gente alivia isto. Pronto é uma ajuda e vamos experimentar
assim. Fez-se uma reunião no armazém, o nosso escrivão era o Carlos Chicharrinho,
tudo muito bem, era uma ajuda para a empresa. Dois saíram do armazém e começaram logo com o sindicato «eh pá você não faça uma coisa dessas». Eu não sei o
que faria no lugar deles, não condeno ninguém. O António Gaivota disse no outro
dia o que se passou e eu disse que o melhor era parar o barco. Parámos o barco,
perguntaram-me se eu queria ficar com ele, mas este devia sete mil e tal contos e eu
ainda estava empenhado. Apesar das dificuldades, fui para o mar. Tinham que me
carregar para subir e para descer do barco. Ainda andei durante três semanas assim.
Mas estávamos a pescar tão bem e fazíamos a apresentação de contas de dois em
dois meses.
Agora um parenteses. Uma vez a minha filha foi à pesca numa lancha, tinha doze
anos, pesca à murraça, só mais tarde é que vieram os geradores e aquilo ficava ali
durante a noite. Ia juntando a comedoria e puxava cá acima, o peixe vinha cá acima e era assim que se trabalhava. Mas numa das noites, estávamos ali, lua brada,
com lua era mais difícil vir cá acima, estava calminha branca e eu não tinha sonar,
deixei a lancha ancorada. No dia anterior, estávamos quatro barcos, os outros três
apanharam cherne e eu não apanhei nada. «Ah sim, não vais à terra». Mandámos
vir pão, enviámos chicharro a um barco para fazer caldeirada, e ficámos lá. Estava
calminha branca, uma hora depois do sol se pôr, fui dar uma volta com a sonda, naquela altura não havia sonar, e assim por fora da bardada, os barcos estavam todos
ancorados pela bardada, ainda havia uma série de barcos, marcou-me um traço de
peixe, um traço de 10 braças, e eu disse «sim senhora, calminha branca, os barcos
parados e eu vim para aqui largar rede e nem um peixe, não sei que qualidade de
peixe […] quando de repente, isto é cavala, cavala moura, e enchemos o barco de
cavala. Quando começamos e encher começou uma aragenzinha de norte e os barcos
começaram todos a arrancar para a terra depois cada vez mais vento, mais vento, o
barco estava assim um bocadinho caído a estibordo e eu mandei meter dois xalavares e foi a nossa sorte, o barco tinha 500 cavalos mas não saía do mesmo sítio, e eu
«ai nossa senhora», o peixe todo a desenvasar e eu «ai nossa senhora»; o começou
depois a virar para bombardo e a malta aflita queria atirar-se ao mar e eu sem saber
como chegar à lancha, mandei a malta para estibordo e o barco endireitou um bocado. Como o barco estava assim a bombordo, comecei a por a chata dentro, para
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
o barco ficar direito. «e agora a lancha, como é que vou chegar à lancha?» o rapaz
[da lanha] achou estranho e começou a remar por aí a baixo mas nunca mais chegava, «temos que ir apanhar a lancha». Lá consegui dar a volta e andar devagarinho,
devagarinho, demorámos mais de meia hora para ir buscar a lancha, ele para cá a
remar e nós para lá devagarinho. Apanhámos a lancha, atámos o cabo à mura da ré,
o rapaz saltou para dentro, mas o barco não conseguia fazer rumo direito a Peniche,
o mar passava por cima, e não conseguia: «faz rumo a Santa Cruz, olha». Mas na
parte terra do cerco, chama-se o sarangue, aquilo faz ali uma côncava, e passando ali
pronto. O contramestre estava muito preocupado, […] eu comecei a dar um pouco
mais de força e de repente avistámos a Areia Branca, meti no remanso das Berlengas
e percebi que não havia problema. Ainda assim apanhámos 1700 cabazes de cavala,
devíamos ter tido mais de dois mil. Esta é uma passagem, e eu tive várias, que ilustra
as dificuldades encontradas, em especial para entrar e sair em algumas barras. Mas
o que eu tinha mais medo no mar era o nevoeiro.
MS – Há alguma história assim fantástica….mais grave.
JC – A barra da Figueira, vai lá vai. Uma vez, tive um problema na barra da Figueira da Foz. Antigamente usavam-se redes de algodão e fazia-se a muda das redes
mais ou menos de três em três semanas, por isso é que havia sete ou oito rapazitos
no armazém com os atadores a aprender a atar rede. A rede era atada à mão depois
era encascada e posta ao sol, onde agora é o Pingo Doce, na época era um juncal. E
então, naquela altura era o senhor Rui Ramos que levava as redes para a Figueira da
Foz, parece que a estou a ver, em frente ao tribunal, e a rede foi colocada no barco
à força toda. Os barcos saíam na zona de Buarcos e ficavam à cala, na calma à espera, só para não sair na baixa-mar, que o mar não deixava. A saída do rio fazia ali
um embate. Entretanto, os homens da Estrela do Ocidente chegaram ao pé do meu
pai dizendo que tinham ficado em terra, se podiam ir connosco. O meu pai disselhes «saltem». Chegámos à entrada da barra, está vem está, buuumm, a gente ali a
aguentar mares partidos. A maré como estava a vazar, o barco sem querer ia sempre
um bocadinho descaído para o rebentar. O meu pai disse ao contramestre, que era o
Joaquim, o pai dele era o Octávio, «volta para dentro» e quando ele ia a dar a volta
formou-se uma volta de mar, o barco ficou cheio de água e a nossa sorte foi que o
meu primo deu força e o barco saiu, saiu e aguentou o embate do mar. Quando veio
o outro mar já não rebentou. Ficou tudo parvo, a olhar uns para os outros, fomos
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devagarinho, ninguém era capaz de se mexer, o meu pai que Deus tem…. eu estava
armado em parvo com uma navalha na mão, uma navalha de cortar boça da chata.
Era eu de um lado e o Guilherme de Ávila do outro lado, para cortarmos as boças
da chata e nos agarrarmos à chata. Deitámos a chata ao mar, que era para pôr os homens do Estrela do Ocidente, que estava lá ancorado, e estivemos ali uns seis ou sete
minutos que os homens não conseguiam saltar. Há tantos anos que andamos aqui e
nunca apanhámos um susto maior na nossa vida. Os homens queriam saltar para a
chata e não eram capazes. São passagens, não é. Indo ao resto, que era…
JF- O nevoreiro.
JC – O nevoeiro. O meu irmão que Deus tem foi sempre um bocado atrevido,
eu não tinha nada a ver com ele em questão de atrevimento, largar à borda de água
com folas, com nevoeiro e sempre à força. Uma vez, já no Cinco Netos, vínhamos
da Ericeira, tínhamos radar mas estava avariado, a gente sai do porto, hoje também
se faz, olha para o relógio – naquela altura fazia-se mais – abria-se a sonda, para
a gente conhecer o fundo, víamos onde se largava a rede para saber o tempo que
levava a contar; e havia nevoeiro, e tal. A certa altura disse para o meu irmão que
Deus tem: «olha que estamos quase a chegar a terra, não queres pôr mais devagar?»
Falar com ele era a mesma coisa que falar para uma parede, deu-lhe mais força, e de
repente gritámos «Ah, a fortaleza!», conforme ia avante pôs à ré, não saltou o tubo
de escape porque não calhou.
JF – E era a fortaleza.
JC - E era a fortaleza. Isto também vai daquelas pessoas que são afoitas. Lembrome de uma passagem que o meu primo contava, foi na Praia Formosa, vinham da
Nazaré e iam para a Ericeira – já naquela altura passavam aqui duas carreiras de
navios entre as Berlengas e o Cabo Carvoeiro, e por fora passavam mais duas ou
três – o meu primo vinha ao leme, topezinho aceso, sentado, e quando ele olha assim para o lado vê um navio passar, diz ele a quê, a seis ou sete metros. Diz que não
morreu porque não calhou.
O nevoeiro para mim foi sempre das coisas… pois… Eu quando passei a ter os
aparelhos bons, primeiro radar e depois o GPS, estava nevoeiro e ninguém ia para o
mar, o que é que largava a rede em fundos à vontade, não largava em cima da pedra,
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largava a rede e a cortiça, largava a chata e ia a ver a chata e a cortiça, ia a ver tudo,
era um espectáculo de radar. Uma vez, no tempo da lula, vínhamos do Porto Novo,
com sardinha, e aqui mais ou menos perto da Consolação, estava nevoeiro, eu vinha
ao radar, e aquilo marcava tudo, até marcava as bóias, eu não ia sempre a olhar, esperava um bocadinho e depois olhava outra vez [para o radar] e não marcou nada.
Aquilo foi Deus que não quis, um cocozinho, com um homenzito lá dentro, que era
o homenzito que ajudava o Joaquim Trator, esse homenzinho, o queixo da proa fezlhe assim [a desviar-se do barco] e foi por pouco, eu disse-lhe «então você não tem
vergonha, com um coizinho, vá lá não virou, vem para aqui!....». As pessoas não se
apercebem. Eu não tenho medo, mas não se brinca com o mar.
JF – Eu não tenho medo do mar, eu respeito é o mar. a história é um bocado essa.
O meu pai dizia, «eu não tenho medo do mar, tem é que se ter respeito. No mar não
se pode brincar. Nem se pode fechar o olho. O meu avô dizia ao meu pai: «o homem
que dorme no mar quer morrer».
JC - Fez-me a pergunta sobre o haver menos sardinhas e menos peixe. Eu voulhe dizer uma coisa. As pessoas quando veem estas aparelhagens, estas modificações, dizem que agora é que é tudo bom, porque antigamente era tudo manual, levar
a rede à mão, para a gente não se aperceber que aquilo custava tanto, havia um que
dava ao ponto, e começava «Ai leva ou leva»; e os outros respondiam «Ai leva ou
leva»; depois de uma hora e tal, na hora de levar o peixe, tinha de se levar o peixe à
vara, em bordões, enfiados em cabazes, era tudo manual; as redes ao sol… mas nessa altura havia muito peixe, graças a Deus, dava para todos. Entretanto, eu o que eu
estava a contar, era uma reserva que faziam, aproveitavam quando a sardinha estava
ovada para desovar naquele espaço de tempo enquanto se faziam as reparações aos
barcos e as fábricas também faziam as reparações. Eu lembro-me que quando eu ia
para a zona de Matosinhos, na Praia Formosa, naquela altura havia naquela zona
perto de 400 fábricas de conserva. E se calhar hoje há lá uma. Uma ou duas.
Entretanto as coisas foram modificando, as novas aparelhagens, foi havendo menos peixe. Mas há aí peixe para dar e vender. Começou-se a ir ao mar sempre, apanhar sardinha, ovada, desovada, apanha-se tudo; outros dizem que as águas agora
estão contaminadas, por causa dos esgotos, etc. Os antigos diziam assim «ano de
chuva, ano de sardinha», vinham aquelas coisas, naturais, que eram postas nas fazendas, os estrumes, limbos, pilados. Entretanto as coisas estão diferentes, com os
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pesticidas, e essas coisas todas que metem. Pode ter um bocadinho de influência,
mas também não é toda. Também tem influência o que vem lá de cima cá para
baixo. Eu lembro-me que a nossa costa portuguesa estava cheia de limo de correia,
por todo o lado. E isso despareceu a nível nacional. Agora a sardinha, uma opinião
minha, como isto está, e aos anos que nós temos tido aqui o decréscimo de sardinha,
nós precisávamos agora aqui de pelo menos dois anos sem apanhar sardinha, aqui
na nossa costa. Que esta sardinha, eu cheguei a fazer oito dias no barco que faz a
pesquisa da sardinha, e onde foram encontrar a encontrar a sardinha, a sardinha com
mais idade, na Noruega. Encontraram sardinha aqui na nossa zona com cinco, seis
anos, e eles diziam que esta sardinha era criada aqui e morria aqui. Esta sardinha
fazia o percurso entre o norte da Ericeira e o cabo Carvoeiro, encostava-se à costa,
porque a nossa costa tem muita pedra e era ali que ia fazer o abrigozinho dela. Ora
a gente se quisesse ter sardinha dessa, estou a falar em dois anos, ainda se podia
matar aquela que temos agora, que nesta altura está toda ovada. As paragens deviam
ser feitas por pessoas que têm conhecimentos, mas nesta altura eu já não sei dizer
nada, porque há tão pouca sardinha. Qualquer sardinha que apareça, não interessa
se é ovada ou desovada, as pessoas precisam e apanham tudo. Agora era uma boa
altura para fazer o defeso. Porque a desova não é toda igual na costa portuguesa, na
mesma altura, no Algarve é mais cedo e no centro e norte é depois. Agora no algarve
não se apanha, durante mês, mês e meio, sardinha, para a desova. Depois no centro
e no norte, sucessivamente.
MS – Voltando umas décadas para trás, que peixes é que pescavam em maior
quantidade?
JC - Quando fui para o mar, o peixe que se pescava em maior quantidade era o
chicharro. Chamavam-lhe o peixe dos pobres. Aquilo era impressionante, ganhavase muito poucochinho. Chegava-se a trazer 700, 800 cabazes de chicharro só por
conta do carreto. Por cada cabaz ganhava-se um x, que agora não me lembro, e
aquilo era dividido pelos dias. Em Peniche havia muitas tabernas e geralmente dividiam o dinheiro nessas tabernas. Chegava a vender-se o cabaz de chicharro a dois e
meio, três escudos e, não tenho bem a certeza, mas creio que o carreto era 15 tostões
por cabaz e muitas famílias viviam com esse rendimento. Na detecção do chicharro
usava-se a sonda, mas sabíamos que no mês de novembro ele vinha mais para a
terra. Uma vez, estava muito vento, era o dia da Nossa senhora da Conceição, e o
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meu pai que Deus tem deu ordens de ir para o mar, eram quatro homens – eu tinha
a procissão e fiquei em terra – e já fora da baía largaram a rede. Diz que nunca viram chicharro assim. Sé em pescadas eram 70 ou 80, estavam a boiar, e puseram 70
cabazes de chicharro dentro. O peixe partiu a rede toda, que naquela altura era mais
fraca, quando vinham à cava viram-se e desejaram-se para chegar a terra. Se têm
posto o peixe todo, morriam todos, iam para o fundo. Foi a setenta escudos o cabaz,
nunca mais me pode esquecer. Era muito dinheiro naquele tempo. Mas a maior
força do chicharro que se apanhava era com as luas. Quanto à sardinha, naquela
altura tínhamos sardinha até à festa da Nossa Senhora da Boa Viagem. Depois vinham aqueles corsos, aquilo era impressionante. Como é que 400 traineiras, aquilo
largava tudo, e havia peixe para carregar os barcos todos. Vinham aqueles corsos do
cabo norte, da França, depois pela Espanha, era matemático, todos os anos, e depois
deixou de haver. Depois ficavam estes restos todos pela nossa costa toda. Depois
deixou de acontecer isso. Porque aconteceu isso? Aquilo antes era como as estações:
Primavera, Verão, Outono e Inverno. As estações eram matemáticas, não falhavam.
Hoje só há duas: é Inverno e Verão. Eu cheguei uma vez a ver em filme a passagem
da sardinha, o combate que levavam com aqueles peixes grandes, era tanto peixe
que não tínhamos rede para trabalhar ao pé dos homens. Naquela altura tínhamos
40 homens, naquelas traineiras, e tínhamos redes que faziam três das nossas, três.
JF- Qual é o tamanho, o perímetro que as redes, estas normais, fazem?
JC - Estes barcos grandes têm redes com 24 talhões vezes 20, têm perto de mil
metros de perímetro, a cortiça, e depois por baixo tem mais, o talhão tem duas varas
de chumbo a mais…
JF – Faz uma semiesfera e por baixo é mais larga..
JC – Tem mais rabo para cair mais, tem mais que é para fazer a rabeira para ir
lá abaixo. E de altura devem ter aí, sei lá, há quem tenha aí de 130, 140 metros de
altura.
JF – E o que é a Pina? É uma das coisas que ainda me faz confusão, não sei distinguir entre rede de cerco e rede de pina, rede das rapas… Qual é a diferença?
JC – A pina, eles antigamente chamavam os barcos da rapa, antigamente os bar167
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cos da rapa não podiam apanhar sardinha, só faziam aquele tempo ali nas pedras.
Quando o meu irmão que Deus tem….entretanto saiu uma lei e já se podia apanhar
sardinha. Já havia o Sol Neve que andava aqui só à sardinha. Quando o meu irmão
comprou o Anacleto começou a fazer a vida da sardinha também aqui. Entretanto,
passado um ano, comprei o Poema do Mar e só quando não havia sardinha é que
ia lá fora. A pina era uma licença que permitia aos barcos ir ao aparelho, licença de
redes de malhar e licença de cerco.
JF – E as redes, o tamanho delas era de acordo com os barcos.
JC – Exactamente. Podem fazer aquilo que fazes: agora meto a rede em terra e
vou ao aparelho.
JF – E isso era uma licença a que chamavam a pina.
JC – Exacto.
JF – Nós chamamos rapa porque normalmente só andam ao cerco. Não fazem as
três áreas.
JC – Nós começamos a chamar rapa porquê? o que é uma rapa?
JF – Rapar é ir aos cantinhos.
JC – Exactamente, por isso tem que ter uma rede pequenininha, para rapar, por
isso é que tem o nome rapa. Antigamente acontecia apanharem aqueles robalos e
aqueles peixes que estavam naqueles cantinhos, e iam lá com a ratinha, «a rede cabe
aqui para trabalhar», rapa, 10, 12 cavados. Por isso é que tem o nome de rapa. Uma
rede de traineira, está bem está…
JF- As jogadas que vocês fazem, vamos chamar-lhe jogadas, a forma de trabalhar. Estão três ou quatro traineiras, todas elas marcam o peixe, aquilo quem larga
primeiro a chata tem preferência sobre o outro?
JC – Aquilo, antigamente havia setenta e tal traineiras, quando eu fui ser mestre, e quando nós íamos em cima do carapau, por exemplo, o carapau é engraçado,
porque andava agarrado ao fundo. Mas havia uma hora, um momento, em que ele
subia um bocadinho, e o primeiro que acendesse a largada era o primeiro. Se outro
avançasse, mostrávamos a largada acesa e às vezes cercávamos o barco.
JF- E passarem por cima das redes uns dos outros, isso acontecia com alguma
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frequência…
JC - Quando era contramestre do meu pai, uma vez, parece mentira como é que
eu cortei a rede do Berbicacho, o chicharrinho que Deus tem, de dia, na Ericeira. O
homem tinha uma rede de um barcalhão enorme, o saco que a rede fazia estava a
mais de 30 metros, a planagem da cortiça estava a mais de trinta metros, o fundo era
baixinho, e eu vou a passar, que é isto? e fomos a reboque dela, como a rede tinha
muita folga e eu passei ali… depois queriam-me matar…
MS - As políticas europeias para as pescas, nomeadamente os benefícios financeiros para abate de barcos, em Portugal, isso notou-se aqui em Peniche?
JC - Vou-lhe dizer uma coisa que é verdadeira: o Estado estragou metade disto
tudo. As fábricas não tinham condições para receber tanto peixe e então chegava-se
aqui e mandava-se peixe fora. Vínhamos com o barco cheio de sardinha e chegávamos ao molhe e mandava-se ao mar. E o Estado pagava uma percentagem sobre
aquilo. Mas nós entidades patronais evitávamos isso porque só recebíamos esse dinheiro ao fim de um ano. A Nicopesca, por exemplo, recebia à quinzena. Havia um
barco, que não interessa identificar, que todos os dias vendia cem cabazes e mais
nada. Eu disse-lhe uma vez que se estava a fazer um crime, que se ameaçava o futuro
dos nossos filhos. O proprietário disse-me «quem vier que feche a porta». Isto porque o Estado estava a dar dinheiro para ele se matar. Em vez do abate devia fazer-se
o defeso. Eu fui 20 anos vice-presidente da ANOP, e uma vez fomos visitados por
técnicos da pesca que, durante um almoço, sugeriam investimentos em novas tecnologias. Eu disse-lhes então que se estava a querer construir a casa pelo telhado, pois
antes de mais devíamos formar jovens para o mar. Nessa altura já se tinham tirado
quinhentas e tal cédulas e tinham ido par o mar um ou dois.
JF- O marítimo vive sempre na incerteza, das dificuldades do ambiente, dos ganhos e a própria vivência no mar não é agradável. É uma vida complicada e difícil.
Eu lembro-me dos pescadores irem para o mar de botas de alças, as condições nos
barcos eram completamente diferentes. Hoje vão quase de fato e gravata e chegam
lá, têm o seu cacifo, tiram o seu impermeável, calçam as suas botas, é tudo diferente.
JC- Por isso é que eu considero que o homem do mar tem de ser um homem de
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fé. Os antigos ensinaram a gente a viver, nós é que estragámos isto tudo. Quando
se fazia o defeso, antes do barco começar a faina, fazia-se uma missa de companha
com as famílias para pedir a Deus que nos ajudasse a ter um anozinho bom de pesca.
Hoje, há uns anos para cá, ninguém faz isso. Hoje, é como tu dizes, o pescador é um
doutor. Não lhe falta nada. Os barcos grandes têm chuveiros a bordo. Vão para o
mar em calções. Mas o pescador esquece-se de Deus e o homem do mar, para mim,
tem que ser um homem de fé. Tem que ser um homem de fé em todos os momentos,
num vendaval…
JF- não é só a fé de ir apanhar, mas está aí uma ligação.
JC - Eu tive uma vez uma passagem, apanhei duzentos e tal cabazes de lata, tratam mal da pesca, já tinham apanhado seis ou sete barcos e eu fui dos primeiros a ir
para a linha. A gente não sabe o que é melhor para a gente, Deus é que sabe. Podem
dizer que aconteceu por acaso. Começou o barco a andar à banda e credo… Isto tem
alguma coisa a ver? Para mim tem, para outras pessoas foi por acaso. Já tenho dito
que hoje não conseguia ser encarregado e fui encarregado quarenta anos, desde que
fui contramestre, porque hoje há uma falta de respeito muito grande.
MS- Quando é que deixou de ser encarregado? Quando é que se reformou? Deixou de ir ao mar?
JC- Há nove anos. Actualmente não vou ao mar, estou apenas no armazém. Há
um ano atrás regressei ao mar, durante um mês, porque o contramestre foi operado.
MS- Pescador uma vez, pescador toda a vida.
JF- Ter alguém no armazém que saiba preparar uma arte é uma grande estrada
para que o mestre do barco consiga fazer uma boa figura, digamos assim.
JC- Como em tudo na vida. E nós tivemos a prova com os barcos que mais pescavam. Só não tivemos a prova com as cooperativas. É uma tristeza muito grande.
As pessoas são todas iguais por fora. O meu irmão que Deus tem, o Alfredo, ambos
falecidos, e eu tínhamos um aparelho e só nós os três é que falávamos. Tínhamos
um canal e só nós é que falávamos. Porquê, porque tínhamos uma maneira diferente
de trabalhar. Nós acabávamos de descarregar e combinávamos ir até à Ericeira ou à
Nazaré. Os barcos estavam na bóia e de repente apareciam ao pé de nós. Como era
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possível, se tínhamos um aparelho só para nós? Às vezes acontecia o barco estar
sobre a Ericeira, de madrugada, e lá vinha eu a esgalhar, vinha aqui já a Sul do cabo,
os barcos a saírem. Vinham atrás de nós. Colocavam o projector e diziam «vai aqui
o senhor Simões». Estão a dormir quando nós andamos toda a noite à procura de
peixe e depois aproveitavam. Alguém tinha melhores condições que aqueles barcos?
Barcos novos, redes novas, se fizessem pela vida pescavam como nós. Admite-se ao
fim do ano fazerem metade daquilo que nós fazíamos? Tem que se fazer pela vida.
Como hoje, tem que se fazer pela vida.
JF- Eu lembro-me de uma história, a propósito do chegar ali ao cabo e virar para
fora, o Santana chegava a ir de luzes apagadas.
JC- Eu aprendi a passar algumas rasteiras com os mestres… As pessoas hoje não
sabem dar valor ao que têm. Na descarga, nós tínhamos um cantinho para setenta e
tal traineiras, e um bocadinho de rampa. O que a gente sofria ali. Hoje têm aqui um
hotel de estrelas, para a descarga.
JF- O porto não tinha condições nenhumas. Quando havia um vendaval era uma
tragédia. As traineiras davam à costa aqui na praia. Isto aqui [na zona dos armazéns]
era uma praia. Eu cheguei a ver 17 ou 18 barcos em seco, encalhados na praia.
JC- Antigamente tirava-se o limo com os picoques e isso fazia-se na praia. A
propósito de vendavais, eu lembro-me de estar três e quatro dias a bordo do barco,
como moço, dentro do bradal, com ferro, e comia-se a bordo do barco, motorista,
contramestre e moços. Estávamos três e quatro dias sem vir a terra, o mar passava
por cima do molhe e não fazia caso de ninguém.
JF- Não havia horários de trabalho….
JC- Antes íamos para o mar todos os dias, sábados e domingos e não havia horário de trabalho. Mais tarde deu bronca quando se começou a ir ao mar ao domingo,
à tarde, depois da bola, do futebol; depois passou para as dez da noite e depois para
a meia-noite. Houve uma altura em que foram três ou quatro presos por causa da
PIDE, dizendo que para o mar só iam na segunda-feira. O zé Pata foi um dos que
defenderam a segunda-feira.
Quando foi a segunda fase do molho leste, perguntaram se alguém do mar queria
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
dar um parecer, e o Zé Pata foi e, numa reunião, tentou explicar que «isto vai partir aqui», e apontou para a maquete. Responderam-lhe: «Ó mestre Zé, engenheiros
temos cá». O homem levantou-se e foi-se embora. Pediram a opinião e não o deixaram abrir a boca. E onde ele disse que ia partir, partiu. A experiência do homem não
prestou para nada.
JF- O mesmo acontece com os homens que estão nos gabinetes e hoje governam
as pescas em Portugal.
JC- Eu lembro-me que quando andávamos no armazém, a aprender a deitar rede,
quando o barco apanhava peixe ganhava-se um cisco de peixe; mais tarde começouse a ganhar meio cabaz; quando já sabíamos trabalhar mais ou menos ganhava-se
um quarto, depois meio quinhão, depois três quartos para chegar ao quinhão. E
era a própria companha que dizia quanto ganhávamos, que via o nosso trabalho. O
quinhão era a parte do rendimento do peixe que era dividida por todos. Ganhava-se
por exemplo 100 contos e dividia-se, por exemplo, o mestre ganhava quatro partes e
assim até ao quinhão. Às vezes queríamos cinco tostões, dez tostões, e o barco não
apanhava nada, vínhamos cá baixo, uma rasa de chicharros, havia aqueles putos que
andavam a roubar o chicharro, malta que andava com um pauzinho na mão, e íamos
vender chicharro a tostão.
MS- E no inverno, como se ocupavam os pescadores?
JC- No Inverno, não tínhamos dinheiro, cá em Peniche, mas tínhamos o melhor
vinho de Portugal, íamos para o Manuel Viela e uma lata de conserva dava para dez
ou doze. E jogava-se futebol em frente à escola secundária. E íamos ao futebol aos
domingos, antes de voltar ao mar.
Voltando às pescas, nós trabalhávamos muito no ensejo, aquele período antes do
sol nascer, entre acabar a noite e começar o dia, nós chamamos «o ensejo estica», a
água fica cega, a gente larga a rede e o peixe não vê a rede. E à tarde a mesma coisa,
quando o sol se está a meter e vira a noite, a água começa a picar, chama-se a isso
os iças.
JF- Antigamente apanhava-se peixe à hora do ensejo e hoje apanha-se sardinha
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
às duas da tarde…
JC- Uma rede de hoje faz dez daquelas antigas. Uma rede antiga tinha cento e
tal braças, cerca de duzentos metros, com vinte braças de altura. Hoje têm cerca de
um quilómetro e cerca de 120, 140 braças de altura. Por isso é que apanham muito
peixe… Esses barcos que andam à cavala, andam de dia, estão sempre com o sonar
dentro da rede, estão sempre a ver o peixe. Quando ele vem direito às abertas para
fugir, eles têm ali sempre uma dorna de pedra e estão sempre sete ou oito homens
a largar pedra para o peixe fugir. Porque eles hoje estão sempre a ver o peixe. Antigamente não tínhamos aparelho para ver isso e eles hoje estão sempre a ver o peixe
dentro da rede.
JF- Eu realmente lembro-me de ver as chatas irem ao Porto da Areia carregar
pedra e eu achava estranho e afinal era para fazer uma cortina.
JC- Antigamente, na pesca da sardinha iam três traineiras, era uma ao lado da
cornuda, uma à proa e outra à ré. O mestre, como só tinha sonda, mandava largar os
piparotes, umas coisas em cimento e argola, com sete a oito braças, que se utilizavam para fazer o peixe voltar para trás. O peixe andava à volta da rede.
MS- a pesca era especializada ou os barcos pescavam o que encontravam?
JC- Havia aqueles barcos mais afoitos a pescar nos fundos. Naquela época, o peixe mais caro era o carapau. Não o chicharro, o carapau. Iam para a zona da Foz do
Arelho, dos Farilhões, Santa Cruz, Canele, que realmente tinham sempre carapaus,
mas quando não havia nada apanhavam outros peixes. Hoje que é que fazem as
traineiras? Ali há sardinha e vão todas para lá. Antigamente havia quem desgarrasse
mais facilmente e fugisse da confusão. Mas também havia mais peixe para apanhar.
Hoje vão as traineiras todas para o cerco à sardinha e por vezes ninguém apanha
nada. Antigamente não. Não sei se alguma vez aconteceu o porto de Peniche não ter
peixe um dia. Hoje acontece muitas vezes porque vão todos para o mesmo sítio e
quando um não apanha os outros não apanham. E hoje têm meios que nós não tínhamos. O sonar pode apanhar cerca de 400 metros, duzentos para cada lado. Como vão
todos juntos, basta um abrir o sonar. A exploração de hoje não tem nada a ver com a
daquele tempo. Naquele tempo o que dava mais dinheiro é que se procurava. Se um
dia dava o chicharro, apanhava-se chicharro, outra dia cavala.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
JF- E também havia zonas do mar onde era mais provável apanhar carapau, outras cavala, e outras sardinha. E apanhava-se tudo com a mesma rede. Hoje não é
assim. Antigamente apanhava-se cavala na borda de água, hoje não é assim.
JC- Hoje, se não houver sardinha, os barcos também vão lá. Mas hoje é diferente
por causa das comedorias. Em cima da pedra está o cril, o alimento dos peixes, como
o camarãozinho, e esse alimento é o forte da cavala, do carapau e do chicharro. Enquanto a Sardinha se alimenta de plâncton, é diferente. A alimentação tem muito a
ver com as zonas de peixe. Esse Plâncton, em forma de granulado, acumulava-se nos
limos de correia. Infelizmente, esses limos desapareceram, pois alimentavam vários
peixes, para além da sardinha, como os sarrões e as margotas. Com uma caninha, à
borda da água, toda agente apanhava dez, doze sarrões, gostava tanto daquilo frito.
MS- Ouvi dizer que faz uns versos, umas quadras. Podíamos terminar com umas
quadras.
No mar comecei com treze anos
Desde então sempre muito gostei
É uma profissão sempre em risco
Que hoje na reforma sempre adorei
Com os colegas, bons e maus momentos passámos
É uma profissão sempre em risco
Trabalho rude e por vezes nos chateámos
Pouco tempo passado estava tudo bem, tudo visto
Ao senhor pedia sempre
Boa viagem e peixinho
Pois hoje ainda me lembro
Como eu pedia com fé e carinho
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Em momentos de temporal
No meio da imensidão do mar
Fazia da casa do leme uma catedral
Janela aberta, olhando o céu onde entrava o ar
Quantas vezes acontecia
Dois e três dias sem pescarmos
Mas lá vinha uma que valia
Pelo sofrimento que passámos
JOÃO COMBOIO
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
HÁ MAR E MAR HÁ VIR E FICAR
Rural da montanha na raia interior, vivo agora no litoral, junto ao mar que
distou quase sempre uma eternidade do meu quotidiano.
De tal modo que, das primeiras experiências pessoais de mar, restam-me
pouco mais do que fotografias e um insuspeito testemunho recebido da minha
mãe.
Aconteceram na chiquérrima praia da Figueira da Foz, em 1936 e 1937,
no passado século, tinha eu entre dois e três anos, incompletos, de existência. O
meu companheiro desses folguedos balneares, que viria a ser o prestigiado historiador Oliveira Marques -nessa época o Tó Rico, de António Henrique-, voltou
para junto do mar, aqui no Oeste, com umas boas décadas de avanço sobre mim.
De facto, pelo início dos anos 70, já ele assinava alguns prefácios de reedições
de obras na sua casa de Serra d’El Rei. Entretanto, morreu.
Depois, esfumou-se-me por alguns anos a vaga e residual memória do
mar. Foi então o tempo da escola e dos primeiros contactos com a cultura organizada onde a temática marítima abundava. E falo tanto da cultura oficial como
da clandestina. Aprendíamos na escola os hinos regulamentares: o Nacional, o
da Mocidade Portuguesa e o da Restauração. Desde os heróis do mar até às armas sobre o dito, apontava-nos o primeiro deles o nosso passado, talvez como
profecia para um inevitável destino ainda por cumprir... A verdade é que vibrávamos, a sério, nessas infantis marés de nacionalismo.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
mar! Mar! mar! Mar! - em página inteira, tal bradava um gaiato no alto
da falésia, de braços erguidos em saudação e espanto, perante o tranquilo mar
azul com barcos e gente sobre a praia. E era assim, logo no início da alfabetização, que o livro único nos ensinava ortografia e paisagística. Na página seguinte,
logo ali ao lado, um pescador, de remos ao ombro, conduzia os filhos (ou seriam
os netos!?) a caminho do seu batel, todos descalços e trajados a tradicional e
folclórico rigor, à moda nazarena: a maré, ir ao mar e remar, remar!
Porém, não era aquilo um mar de rosas. Mais adiante, já nos textos corridos, sabíamos que a Mãe tem chorado hoje muito. Às vezes, ri-se para mim, mas
eu vejo que ela anda aflita. Bem sei. O Paizinho saiu há três dias para a pesca, no
mar alto, e ainda não voltou. Tem estado tanto vento, as ondas vão tão alto!
Ainda hoje não sei como terminou aquela dramática expectativa, que então solidariamente nos fazia sofrer. O texto O Pescador era sádico, pois deixavanos num intolerável “suspense”: Se ele morre, quem me há-de dar o pão e a roupa, os livros e os brinquedos?!
Seguindo pela escolaridade adiante, a nossa colectiva iniciação ao mar
ganhava contornos poéticos e patrióticos, entre os obrigatórios manuais de leitura e de história. Os poetas oficiosos do regime, António Correia de Oliveira,
Afonso Lopes Vieira, Moreira da Neves, Adolfo Portela e outros, diziam-nos coisas melodramáticas e messiânicas sobre os desafios oceânicos. Por outro lado,
era Tomás de Barros, cronista oficial da corte de então, quem nos apresentava
os heróis das descobertas de quinhentos, com o Infante de Sagres à cabeça, rodeado de datas e de navegadores, ondas e marés, padrões, adamastores, bússolas e sextantes, sítios, naufrágios, missionários, mapas e tempestades, gengibre,
canela e demais especiarias incluindo a pimenta, em épicas viagens trágicomarítimas, transatlânticas, transíndicas, transpacíficas...
A Nau Catrineta, paradigmática lengalenga que chegávamos então a dizer
de cor e salteado, era para nós uma simples historieta, de aventuras pelo mar
afora. Creio hoje que é muito mais do que isso, na sua dramática descrição de
tentações entre Deus e o Diabo, entre o Céu e o Inferno, tradução trágico-marítima da nossa realidade, sempre balanceada entre o ir e o ficar, entre o querer e
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
o odiar, entre a certeza absoluta e a dúvida sistemática. É afinal, perdido e logo
achado, um retrato a la minuta do Portugal eterno.
A clandestinidade do tempo era a dos “censuráveis” e mesmo proibidos
quadradinhos, que a sabedoria familiar nunca me furtou, bem pelo contrário. E
aí encontrei um mar muito mais atraente que o dos enfadonhos livros escolares, nele vivendo fascinantes aventuras, com o Tintin mais o capitão Haddock,
o Gavião dos Mares e as fantásticas adaptações em banda desenhada de obras
de Júlio Verne e de Emílio Salgari, onde os oceanos eram cenário privilegiado
para a evasão e o sonho. No Diabrete e n’O Mosquito aprendi mais sobre o mar
que nas páginas dos manuais -confesso!- em companhia do Capitão Morgan e
do Sandokan, piratas avant la lettre em relação aos etíopes, do Capitão Nemo,
cientista, ou dos pequenos náufragos dos Dois Anos de Férias. Ah! já quase esquecia o Robinson Crusoé e o Sexta-Feira!
Nunca mais perdi a grata memória da obra máxima nessa temática, O
Caminho do Oriente, n’O Mosquito, pela inspiração de Eduardo Teixeira Coelho
-desenho- e de Raúl Correia -texto-, onde nos foi relatada, durante dois anos
bem contados (de 1946 a 1948), a primeira viagem de Vasco da Gama à Índia.
Assente no Roteiro de Álvaro Velho e protagonizada por um puto como nós, o
irrequieto Simão Infante, aquela gesta revelava-nos, semana a semana, sucessivos episódios vividos num mar calmo ou violento, em oceanos sulcados pelas
caravelas e dominados pelos anónimos marujos de quinhentos, ali quase de
carne e osso, de sangue e raiva.
O meu regresso efectivo ao mar aconteceu pelos 13 anos. Foi durante as
férias passadas em casa de uma tia-avó, junto ao Porto, que fui em certo dia
de Agosto à Foz do Douro. Daqui, tenho não só uma efectiva e viva lembrança,
como também um concreto “certificado” na pequena cicatriz que a base do polegar da mão esquerda ostentará para sempre. Incauto “caçador” de renitentes
lapas e ignorante das normas básicas de segurança, calculei mal o uso do canivete, cuja lâmina ficaria ali cravada...
A idade do Liceu acarretou-me uma nova dimensão de mar, quer pela literatura oficial, na exacta medida do alargamento das propostas curriculares,
quer pela literatura dos lazeres, na irresistível atracção dos grandes clássicos.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Dali ficaram-me as histórias trágico-marítimas e o imortal poema de Camões,
embora neste a implacável divisão das orações, saltitando estrofes, ou a charadística classificação conjuncional dos ques e dos porques submergissem a épica
narrativa, ainda por cima expurgada do seu “inconveniente” Canto Nono. Mas
ainda de Os Lusíadas sobrariam suficiente mar e o Adamastor, mostrengo que
Fernando Pessoa se encarregaria de reforçar no nosso assombrado imaginário.
Li então tudo quanto pude e o mar também aí estava, inundando de sal
as páginas dos grandes clássicos. Resisto à tentação de uma longa lista e reduzo-a a dois títulos carismáticos nessa imensa panóplia então “devorada”: Mau
Tempo no Canal, do inspirado ilhéu Vitorino Nemésio e O Velho e o Mar, desse
trota-mundos que se chamou Ernest Hemingway. De ambas as obras me surgiram, bem distintos mas incontornáveis, os mares deste universo e do outro, o
nacional e o das estranjas.
As veleidades culturais da juventude do meu tempo não se limitaram à
literatura. Com a malta do inesquecível grupo juvenil portalegrense Amicitia
também me interessaram outras sabedorias, onde aprendi passos essenciais
da música, do cinema e da pintura. E estava também aí o mar. O Couraçado Potemkin, um eterno clássico, ou Revolta na Bounty mostravam-no como contexto
de outros dramas, na tela; da galeria dos sons feitos arte ficaram-me sobretudo
os Interlúdios de Benjamin Britten mais a fabulosa e onomatopaica sinfonia La
Mer, de Claude Débussy; entre os traços e as manchas coloridas organizados
sobre telas destacaram-se as delicadas e românticas paisagens marinhas de
William Turner ou -nunca mais a esqueci- a dramática e teatral interpretação
plástica que Géricault nos deixou do histórico naufrágio da real fragata Medusa.
A tropa levar-me-ia depois para junto de um mar distante, ainda não carregado da sua posterior e fortíssima atracção turística, nos Algarves. Por caminhos entre salinas, nessa Tavira mourisca de meados dos anos cinquenta,
chegávamos até ao mar e à ilha. Mas não dava então para os gozar, mar e ilha,
porque as marchas mais a carreira de tiro ou os penosos obstáculos a cumprir
sobrepunham-se-lhes. Por obrigatória ordem de serviço.
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Gozei-os mais tarde, já casado e com filhos, quando em cada Verão percor-
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
ríamos as intermináveis estradas pré-comunitárias que nos separavam dessas
praias do Sul e do Sol, para sucessivas e cíclicas temporadas balneares.
Aprofundavam-se em mim, então, as preocupações e ocupações culturais,
tornadas mais adultas nas suas opções, incluindo as “marítimas”. Simbolicamente, de forma abrangente, posso contê-las na passagem de Haddock, patético e velho lobo do mar, para o jovem e aventuroso marinheiro Corto Maltese,
na mudança dos tranquilos mares de Carvão no Porão para a agitada Balada do
Mar Salgado.
Outra fase posterior -ainda mais interessante e pragmática- do meu contacto pessoal com o mar é a das vivências turísticas, pelo mundo fora. De algum
modo, com uma inegável carga simbólica, aconteceram-me algumas “reconstituições” de passados marítimos virtuais, quando numa ida a Cuba consegui “reencontrar” o velho pescador de Hemingway nos mares caribenhos (ainda que
sem o espadarte), quando por diversas vezes, entre o Faial e o Pico, naveguei
pelo canal de Nemésio. Sempre com bom tempo, anote-se!
Fora isso, pude viver andanças pelos sete mares, em diversos continentes,
de Talin a Helsínquia, num ferry, de Macau a Hong Kong, num turbojet, de São
Vicente a Santo Antão, num cargueiro, pelas dunas e ondas de Genipabu, em
Natal, num buggy. Tudo mais ou menos calmo, sem sobressaltos de maior, apesar da tempestade desfeita em pleno Báltico, do nevoeiro cerradíssimo sobre
os mares da China, dos ameaços de enjoo nas tranquilas águas de Cabo Verde,
ou das velocidades e da força centrífuga nas praias e espumas do Rio Grande
do Norte. Porém, a minha mais saudosa e épica travessia dos mares aconteceu
num turístico cruzeiro de não sei já quantos intermináveis dias, entre Lisboa e
Recife, com escalas pela Madeira, Canárias e Cabo Verde, e depois por Salvador
da Baía, Rio de Janeiro e Santos. Consolou-me saber que muito mais tempo tinham demorado Cabral e os seus marinheiros a percorrer rotas semelhantes. E
em muito maior risco, sem motores a bordo.
[prefiro aqui passar em claro a passagem pessoal pelo impávido Mar Morto, porque o mar por definição está vivo, e bem vivo, passando e perpassando
sem cessar, apenas salgado q.b. e não em excesso]
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Tenho portanto uma conta pessoal de mar bastante preenchida, sem ser
marinheiro nem sequer possuir para tanto qualquer especial vocação.
A actualização que o mar me merece é sobretudo mediática, na impressionante qualidade -e quantidade!- dos efeitos especiais, para além de toda a
verosimilhança, que o cinema moderno nos oferece, em filmes como Tubarão,
Tempestade Perfeita, Titanic, O Pirata das Caraíbas (outro!), A História de Pi...
E poderia nesta oportunidade esquecer as sugestivas interpretações do
mar, na bela poesia contada e cantada pelo Fausto Bordalo Dias ou pelo Pedro
Barroso?
Ao vivo, e desde há um quarto de século, descobri algumas das melhores praias deste mundo, aqui em Peniche, onde coloco -sem qualquer favor- o
Baleal à cabeça. Corrijo assim, e de forma implacável, um tal Ramalho Ortigão
que em 1876 desta se esqueceu, entre a Ericeira e a Nazareth, no seu Guia do
Banhista e do Viajante intitulado As Praias de Portugal.
*
Quando abro agora a minha varanda penichense, em terra firme, não encontro a acácia de Régio nem a cidade cercada de serras, ventos, penhascos,
oliveiras e sobreiros. Destes atributos só reconheço o vento, e redobrado, centuplicado, salgado e húmido. Em troca, tenho a amplidão de um horizonte sem
obstáculos, feito de imenso céu e de mar sem fim.
O mar é um fascínio, sempre foi, para o rural montanhês da raia interior
que incontornavelmente sou e serei.
A familiar moldura da minha montanha natal era mais conservadora. E
mais estática. Apenas mudava ao sabor das horas que a iluminavam e sombreavam de diversos ângulos ou ao ritmo das estações do ano que lhe retocavam,
apenas um pouco, as cores dominantes.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Aqui, o mar é mais dinâmico pois, embora mudando com os horários e as
estações (parece um manual de instruções ferroviárias!), altera-se sobretudo
em função dos seus próprios e imprevisíveis caprichos. Orla-se de arrendada
espuma (não são daqui os bilros?) ou carrega-se de impetuosas vagas, entre
transparentes tons de azul celeste ou quase negros e densos verdes profundos.
Faz soar uma lenta cadência de suaves ritmos ou atroa os ares, poderoso e cavo,
lembrando monstros de tenebrosas e antigas lendas. Como as do Adamastor.
Alimenta e devora os seus servidores, em cruel ritual que se repete. Desde sempre. Para sempre.
Mas eu, que corri os sete mares, nunca fui à Berlenga!
Pecado maior, e talvez mortal, enquanto o não redimir em gostosa penitência cuja oportunidade aguardo com alguma ansiedade. Provavelmente para
depois a repetir, em cíclica peregrinação, como por promessa nunca cumprida
ou por dever de gratidão jamais retribuída em plenitude.
É que aqui há mar e, apesar da saudade, eu vim para ficar.
António Martinó de Azevedo Coutinho
Peniche, no Inverno de 2014
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CONTO
A Filha do Polícia, Paula Rego
PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
A vida é como um abajur
Era uma vez uma rapariga, com pouco mais de 8 anos, que vivia infeliz,
não por lhe faltar comida na mesa, ou por não ter um teto onde se abrigar, ou
uma cama confortável onde descansar, mas infeliz pois o seu pai, que era polícia, não lhe dava muita atenção devido ao trabalho que ocupava maior parte
do seu tempo. Ela nunca havia conhecido a sua mãe, uma vez que esta fugira,
deixando-a encarregue ao pai.
Maria era o nome da rapariga infeliz, com olhos castanhos, cabelo escuro, quase que parecia preto, apesar de não o ser, mas o que mais se destacava
no seu rosto era o seu olhar triste de quem já passara por muita coisa, apesar
da sua idade.
Num dia chuvoso de inverno, enquanto o seu pai estava, como era habitual, a trabalhar, ela decidiu fugir de casa e procurar alguém que lhe desse
aquilo que ela mais queria e que não tinha: amor e carinho. E assim foi, pegou
nas botas que o pai tinha deixado em casa e saiu de casa sem olhar para trás.
No seu caminho, Maria, cruzou-se com várias pessoas e todas lhe perguntavam o porquê de ela ter abandonado o pai, quando esta lhes contava a
sua história, pois ninguém percebia porque é que tendo tudo aquilo que muitos
não tinham possibilidades de comprar tomou aquela atitude. Quando lhe perguntavam isto, Maria não conseguia responder e limitava-se a ficar em silêncio,
evitando estabelecer contacto visual com quem quer que fosse.
Ainda na sua busca por alguém que lhe desse atenção, a rapariga cada
vez mais infeliz, encontrou um gato completamente preto, a não ser os olhos
que eram brancos como a neve. O gato seguia-a para onde quer que ela fosse
e assim foi durante os 12 anos que a menina caminhou em busca de amor e
atenção.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Já com 20 anos, a Maria arranjou um emprego que, tal como o emprego
do pai, lhe ocupava grande parte do tempo, e juntou dinheiro suficiente para
poder comprar uma casa, sem grandes luxos, onde vivia apenas com o gato.
Nada sabia acerca do pai, e julgando-o morto, Maria chorou rios de lágrimas, porque agora percebia que o pai apenas queria dar-lhe tudo aquilo que
ele não tivera e por isso trabalhava para que ela pudesse ter uma vida melhor.
O gato era como um filho para Maria, e apesar de terem passado tanto tempo
juntos, o gato passava agora os dias sozinho, tal como ela passava os dias sozinha quando vivia com o pai.
Arrependida da decisão que tomou ao abandonar o pai e sentindo a falta
deste, sem nunca ter tido a oportunidade de se despedir, todas as noites quando chegava do trabalho, Maria sentava-se na cozinha, à janela, com o seu gato
que olhava o luar, e limpava a única recordação que tinha do pai, as botas.
Maria aprendeu a dar valor às coisas que tinha, por muito insignificantes
que essas coisas pudessem parecer, pois ela aprendeu que devemos dar valor e
aproveitar aquilo que temos porque um dia pode já ser tarde de mais.
Alberto Rodrigues, 10º CT1
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Um mergulho de sonho
A notícia atingira-o como um murro no estômago e André, apanhado de
surpresa, nem acreditava.
Um barco de pesca, daqueles que encalham na prainha do Baleal, tinha-se
virado no mar e diziam que um homem havia morrido. Afogado.
Que cena, meu, no Baleal? Ali onde ele e os amigos iam apanhar umas ondas quando o mar de Peniche de Cima, o seu lugar habitual de aventuras, estava
flat, um morto?, e as histórias sucediam-se, contadas por um aqui, outro ali, e
cada uma acrescentava mais pormenores, alguns contraditórios…, o que seria
verdade em tudo aquilo?
Era um dia de Outono, e o vento, violento, agitava as árvores todas do parque em frente à escola secundária, que nem apetecia andar por ali com o skate,
nem nada, muito menos fazer-se às ondas.
E aqueles, lá no Baleal, a fazerem-se ao mar, com aquele tempo, deviam
era ser malucos.
André, já fora ao mar umas quantas vezes, no barco em que andava o primo. O mestre até o deixara ir ao leme; bué da fixe, o mestre, se bem que um
bocado bruto com os camaradas.
Mas com ele, o miúdo, como ele dizia, era bacano o velho, e o André, todo
importante, na casa do leme, sentia-se a comandar a corveta da marinha que
vem todos os anos à festa.
Mas isso era com bom tempo, nas férias do Verão, e o miúdo já não era miúdo, andava no 9º ano; qualquer dia ia começar a trabalhar, só não sabia o que
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
queria ser; andar ao mar, talvez, como o primo, o pai, o avô, todos a dar opiniões
sobre o que ele deveria ser.
O que André queria mesmo era andar ao limo, lá é que se ganhava bom
dinheiro, mas era só no Verão. Então vestia o fato de surf e de espingarda ia
apanhar um choco em Peniche de Cima e deixava para mais tarde estas preocupações todas que realmente pouco o preocupavam.
Nessa noite, ao jantar, a conversa começara sobre o Baleal, e o pai e o avô
recordavam histórias de antigamente; e falavam do afundamento do “Trinitá”
que estava a pescar ao aparelho lá para as bandas do Porto Santo, na Madeira;
tinha sido em 2006 e havia morrido um homem.
Os camaradas refugiaram-se numa balsa salva-vidas e transidos de medos e de frio esperaram que o socorro chegasse; o patrulha da Marinha e um
avião já andavam à sua procura e lá foram recolhidos, os que se salvaram; o
pobre do Ludgero, esse é que ainda era recordado com saudade por todos eles.
É dura, mesmo, a vida do mar, dizia o avô, mas a gente só dá conta disso
quando nos bate à porta a desgraça.
Então e quando o “Benito” encalhou, disse o avô, isso é que foi um caso
sério, mesmo muito sério, que os rapazes da sua idade nunca esqueceriam. Os
rapazes que andavam agora pelos 60 ou 70 anos de idade, os reformados que
há muito não iam ao mar e saíam nas suas lanchinhas de vez em quando, para ir
à lula e pouco mais; que agora já nem temos o portinho do revés para amarrar
a lancha, lamentava o avô…
Mas não era tempo de falar disso.
Avô e pai recordavam histórias passadas e André bebia as suas palavras
que traziam memórias de velhos tempos.
Entretanto, sem deixar de ouvir os velhos, sacou do computador e foi ao
Google buscar naufrágios, peniche, benito... e foi isco que apanhou peixe, havia
coisas do tal “Benito” na net.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
“Vai para 32 anos, naquela noite de nevoeiro de 30 de Setembro de 1977”,
ora deixa cá ver, em 2014, fazia as contas André: 36 anos!
“pelas 22 horas, o Benito vinha com peixe, as buzinas do Cabo estavam
avariadas, quando se aperceberam, estavam em frente das rochas da Sª dos Remédios, foi uma noite de aflição, lembro-me muito bem, recordava o narrador
do blog.
Deste naufrágio, dos 18 homens que compunham a tripulação, 7 perderam a vida.
Vicente Cativo, António Serpa, Laureano Serpa, Joaquim Borrego, Antonio
Batista, Felix Azevedo e Américo Pedro.”
Olha, se queres saber mais do encalhe do “Benito”, disse-lhe o pai, porque
não passas amanhã pela biblioteca e procuras na “Voz do mar”, de certeza que
vais encontrar a notícia.
É isso, pai, é que vou mesmo, mas antes vasculho aqui na net, é que está
cá tudo, sabias?
Procura também na “Lenda de Peniche”, disse-lhe ainda o avô, vai lá buscá-lo à prateleira.
“Lenda de Peniche”, o que é isso?
O livro do Mariano Calado, então?, respondeu o velho, aborrecido com
a ignorância dos mais novos; estes miúdos andam na escola e não aprendem
nada, e arengava que no tempo dele, que mal fez a 4ª classe e sabia os rios e
as estações de comboio todas, apeadeiros e tudo, isto no tempo em que havia
comboios, que agora nem Linha do Oeste nem Mestre Combóio, a traineira que
encalhou ainda há poucos anos lá para a Consolação.
E riam a bom rir os três homens, com a graçola do avô.
Afinal não era nenhuma lenda de Peniche, era antes sim o “Peniche na
História e na Lenda” que o escritor e poeta Mariano Calado havia escrito e editado em 1962 e o avô, orgulhoso de ter uma primeira edição, que na altura
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
tinha sido vendida em fascículos, havia mais de 50 anos, passado todo este tempo, como quase toda a gente, ainda não atinava com o nome do livro que havia
ficado para sempre como “A lenda de Peniche”.
E lá, André, encontrou muitos mais naufrágios.
O “S. Pedro de Alcântara”, o “City of Dublin”, O “Roumania”, O “Dorunda”, o
“Cuiabá”, o “Fernando Ybarra”, estes eram alguns vapores que encontrou desfolhando ao acaso as páginas do velho livro.
E há ainda o “Inglandope”, um paquete enorme que encalhara no Farilhão
em 1930 que afinal era o navio “Highland Hope”, da Nelson Line, que com mais
de 500 pessoas a bordo, com mar chão e denso nevoeiro, veio a encalhar do
lado de fora do Farilhão Grande, num lugar que muito a propósito os pescadores conhecem como as “Bailadeiras”, pela agitação que o mar ali frequentemente tem e faz bailar os barcos, um lugar que é um verdadeiro cemitério de navios
e onde, para além do “Highland Hope”, ali ficaram para sempre o “El Dorado”,
O Cyprian Prince”, o “Cap Blanc”, e o “Rio Grande”, numa amálgama de ferros
retorcidos de navios em certos sítios sobrepostos uns em cima dos outros, em
que nem os mergulhadores que lá se aventuram conseguem distinguir onde
começa um e acaba o outro.
Quem sabia deles todos era o falecido Humberto das Cabacinhas que tinha uma taberna, hoje desaparecida, ali na rua 1º de Dezembro, disse o avô, e
também o Humberto Faustino, o “Bébé”, da “Electrónica Naval, que ainda hoje
existe.
Pois o Humberto Faustino, um dos precursores do mergulho desportivo
em Peniche, até havia fundado um grupo ligado ao Museu da Fortaleza, para
explorar esses navios todos, um velho sonho de visionário que ainda está por
realizar.
Nessa noite, André mal pregara olho.
Navios naufragados, tesouros perdidos, antigos registos escritos no balcão de uma taberna, ainda com nódoas de vinho tinto derramado, mergulhos
no fundo do mar, a Berlenga, os Farilhões, o mar enfim. a vida de André mudara
nesse dia.
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PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015)
Percebeu que o eco desses dias havia permanecido na memória dos mais
velhos, que de história em história, de avô para pai e de pai para filho, a recordação do passado perdurara, às vezes recordações que remontavam a décadas e séculos mesmo, como a do navio da armada espanhola, o “San Pedro
d’Alcantara” que naufragou na Papoa.
Vinha do Peru para Cadiz, carregado de preciosidades e encalhou mesmo
em frente ao Linho do Mar, na Papoa; uns mergulhadores arqueólogos tinham,
durante anos, andado a escavar o sítio e também num cemitério que se improvizou na época em frente à praia do Porto da Areia, para enterrar as dezenas de
mortos que haviam dado à costa naquela noite de 1786.
André começava a entender que o verdadeiro tesouro era a riqueza da
memória das gentes que viveram antes de nós; é graças a ela que somos hoje
o que somos, e se quisermos escavá-la temos de, primeiramente, ir falar com a
gente que se lembra desse passado, dessa memória colectiva a que chamamos
tradição oral, a documentação transmitida de avô para neto, como ele havia
experimentado naquele dia.
Mas também temos de ir às bibliotecas e aos arquivos buscar os outros
documentos, os escritos, que registaram os factos sucedidos.
E, é claro que também na net encontramos montes de informação. Encontramos sites especializados em naufrágios com muita informação de Peniche,
blogs de gente da terra desejosa de partilhar informação, páginas e páginas pdf,
relatórios, foruns, tudo ali, à nossa espera.
Finalmente, podemos também ir à procura do navio náufrago, que no fundo do mar, parece esperar que o vamos descobrir.
Disseram-lhe do navio que está afundado em frente à capelinha de Santo
Estevão, no Baleal, em frente à Casa das Marés, e André descobriu que era o
“Leven”, vapor inglês de 5000 toneladas, construído em 1889, pertencente ao
armador “C. Ropner and Company” de West Hartlepool, na Grã Bretanha, que
saía de Cardiff, carregado de carvão, com destino à Ilha de Malta, no Mediterrâneo; descobriu ainda que o capitão se chamava C. Hard e que o navio trazia
23 tripulantes e se salvaram todos porque o mar estava calmo e os escaleres
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os trouxeram a terra firme sem problema de maior, a não ser o grande susto
porque haviam passado.
Um dia, André pegou no fato de surf, nas barbatanas e na máscara e foi
até à praia dos barcos do Baleal, a tal onde encalhava a lanchinha que desencadeara tudo isto.
Entrou na água confiante. Ia ver o seu primeiro navio afundado.
Só então se lembrou que podia ter trazido a espingarda de caça submarina; mas também estava bem assim, que o peixe que ia visitar era bem maior, e
mais velho que qualquer sargo que apanhasse.
Peniche, Março 2014
Luís Fonseca e Susana Maia
[email protected]
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O BALEAL
54
É simples a vista da presente gravura, porque não avultam ali, com elegante
ou soberba perspectiva, fachadas de sumptuosos templos consagrados à di­
vindade pela fé; ou altas colunas de majestosos paços para morada de reis;
nem coroados frontões cortando a cimalha de extensos palácios, destinados
à nobreza ou à opulência pelo fausto luxuoso ou ja­ctancia vaidosa; por isso o
observador que a olhar unicamente como amador de arquitectura, não encon­
trará pedra ferida pelo gume do sopro, nem cimento modelado pela arte, que
represente alguma das suas ordens ou ornatos. Mas a todas essas vangloriosas
edificações, de que se nutre o orgulho dos homens, com que superioridades
In Archivo Pittoresco. Semanário Illustrado, nº 6, 1863, Lisboa, Editores proprietários Castro e Irmão, Cª, pp. 177179.
54
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se não avantajam as ondas que ali vemos na sua extensão e profundidade55,
e os alcantis e criptas dos rochedos, como porções da grande obra da criação,
instantaneamente formadas pelo Fial de Deus no meio das trevas56, onde as gran­
dezas se encerram na harmonia de imensas produções, que, já como segredos
vedados á compreensão humana, já como prodigiosas maravilhas que a exta­siam,
claramente lhe demonstram a omnipotência do seu autor!
Que de história não encerram essas pequenas ilhas, como paginas rasgadas
em eras que já vão longe, pela ígnea força das erupções, onde lemos a sucessão de
tantas vidas, de tantos acontecimentos belicosos e domésticos ali passados, que
nos provam bem quão impermanentes são as coisas do mundo.57
Deixarei agora os pontos mais distantes que vemos na estampa ergueremse através do horizonte, e que, separados pelo dedo de Deus58, me pareciam oscilar sobre as ondas quando as sulquei, para me ocupar do que mais próximo de
nós veio dar á costa59, e fazer o extremo do continente ocidental60.
Que lenda encontro nesta bronca penedia, ou que narração me faz em tácita linguagem analogiando o omnia possui do Criador? Dois factos respeitáveis
para o geógrafo e para o cristão: história e religião.
Será pois sob este aspecto que escreverei a crónica noticiosa da parte
principal da gravura.
Historia. A ilha do Baleal, como vulgarmente a denominam61, é uma península ao nordeste da praça de Peniche, d’onde, por uma praia semicircular,
distará 6 quilómetros.
O Oceano Atlântico é um dos maiores mares do globo. Entre Peniche e as Berlengas, onde chamam a meia-via,
foi-me dito pelos práticos dar a sonda 25 linhas, ou 1:400 metros de profundidade
55
56
Dirilque: Final firmamentum: el fercil Deus firmamentum. Et tenera erant super fariem abyssi. Genesis, cap. I.
Para corroborar o que acabo de dizer, citarei as eloquentes palavras de um dos mais nobres e respeitáveis
talentos da nossa tribuna parlamentar, o Sr. Casal Ribeiro, no discurso proferido em 3 de fevereiro último na
camara dos deputados «… do que valem na boca do homem esses jactanciosos para sempre!... Não, senhores:
não há para sempre no mundo. Para sempre só Deus.» Tomo VI 1812??
57
Quam videbo calos et terram opera digitorum tuorum. Pª. VIII. Il separa la lem e séche d’avec les eaux qui y
élvient melées.- Royammont.
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59
60
Estra frase de que me servi alude á nota 7, que vai adiante
Donde a terra se acaba e o mar começa. Camões cant. VIII.
Não será de todo impróprio chamar-lhe assim, porque, se não é ilha continuamente, é periodicamente, razão
pela qual com esse nome se vê em alguns mapas, como no Perrichon, no Theatrum Orlis Terrarum, e outros
61
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Esta península, como uma umbreira, deita-se sobre o mar com a extensão
de quase 2 quilómetros de norte a sul, e fica n’este lado presa ao continente por
um istmo que lhe dá ingresso com área de 300 passos em quadro; o qual istmo,
abaixando-se nas extremidades a pequena altura do nível do mar, é coberto
pelas ondas algumas vezes no ano, submersão de poucas horas, e que sucede
com mais frequência nos solstícios, em algumas conjunções lunares, e nas ocasiões de procelosas tempestades. O sítio do Baleal, assimilando a cumeeira de
uma serra, sobre a qual assenta uma planura de terra pouco funda, é formado
de uma massa compacta de pedra circundada da mais viva e escabrosa rocha;
estas pedras, compostas de Lages com diferentes grossuras, guardam singularmente suas dimensões regulares em toda a extensão da península, bem como
sua colocação vertical, com pouco pendor ao ocidente, posição muito geral nas
grandes serranias, observada por um célebre viajante. 62
Estas Lages, que a força indómita das ondas tem cortado em várias partes,
são de natureza calcares, de que muito abunda o nosso reino63; e em parte de
um amarelo pouco vivo (amarelo jalde), que em algumas superfícies ganha uma
cor alvacenta, e bastante rigidez.
Por entre estas camadas metem-se de permeio outras de natureza argilácea, cinzenta64, que se pulveriza com as emanações salinas e a acção atmosférica, deixando então aparecer naquelas um conjunto de litófitos, entre um
fibroso tecido de substâncias naturais e animaea, cujos dendrites, em partes
cristalizados, tornam duvidosa sua causa primitiva; junto d’estas transformações, salienta a concreção de diferentes crustáceos e cactáceos, que todavia, em
estado fóssil, entre alguns que o verdadeiro zoólogo conhecerá, muito perfeitamente se distinguem, o argonauta (nautile, voilier, et comètes ou trompetés de
mer et cornes d’Ammon); as estrelas (caput Médusa; étoile esculente de belon;
escargot raye); os berbigões e ameijoas (Boucardes) e outros65.
Não se encontra ali essa coquillage ou aglomeração de conchas, de que
tanto abundam as imediações de Lisboa e Outra-banda, e que se encontram até
62
Tournefort: Voyag. Au Levant, tom. M, liv. 19.
Um escritor francês, que historiou Geografia Física de Portugal, diz: «La pierre calcaire forme une suite de
montagnes entre Lisbonne et Coimbra: quoique sa couleur soit différente, il fait cependant partie des montagnes primitives et contient du schiste micacé.»
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65
Argila communis, coerulescens. Linneo.
Vid. Histoir. natur. Des pétrifications, par B…
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nas mais altas serras da Europa, como nos Alpes, Pireneus, Andas, Apeninos e
Araraltres66, que muitos escritores consideram como remoções ou produções
de antigos cataclismos por que o globo tem passado67.
Ora considerando estas rochas co-irmãs das do continente vizinho, deveríamos, na direcção que já atrás indiquei, achar vestígios da sua continuidade,
que já se não encontra, mas sim uma planície de 7 quilómetros até á antiga vila
da Atouguia, onde começam a aparecer alguns bancos de pedra, mas de natureza diferente; bem como as mais próximas e fronteiras ao sitio onde menos confraternidade se nota, por serem compostas de uma argila rubra, entre recifes de
pedra arenácea, humorosa e falcosa.
Falto de conhecimentos geológicos, mas pondo a par da historia geográfica as considerações que expus, nascidas de minhas observações, julgo o sitio
do Baleal estranho ao primitivo continente, ou que dele, como hoje, no fez parte
antigamente: n’esta hipótese, creio ali a sua colocação, como arremessado por
alguma d’essas erupções vulcânicas, de que falam antigos escritores68, e que
fez parte da antiga e grande ilha Eritrea, de que outros falam69, de cujos alguns
muito razoavelmente supõem como resto as Berlengas70.
Religião. A lenda religiosa do Baleal, que a tradição e alguns escritores
nos transmitiram71, é um d’esses padrões em que o crente apoia sua fé, sempre
recompensada pelo Filho da Virgem, quando Ela pede pelos pecadores72.
Tem o Baleal uma capelinha da invocação de N. S. das Mercês e Santo Estevão, cujas imagens, de sofrível escultura, formam um retábulo muito singelo.
Esta capella, de construção simples, não apresenta indícios de remota antiguidade, devido talvez à sua boa conservação; é interiormente revestida de azulejos; e no tecto de madeira, entre enramados traços no gosto do seculo XV,
figuram alguns emblemas com que a santa igreja louva a Virgem Maria, como o
sol, a lua, as estrelas, a torre, etc73.
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Vid. Obras de José António Sá.
Histoire des Revolutions de l’Orbe terrestre, cap.XXN.
Pomponio Mella Plinio, Estrabão, Ellenon, Ray, e outros.
Fr. Bernardino da Silva, o padre Marianno, José Joaquim Soares de Barros, etc.
And. Resen. Lib. 1º Historia dos Terremotos, pág. 7.
Fr. Agostinho de Santa Maria. O padre L. Cardoso
Sem os rogos de Maria, nada alcançam os mortais. S. Bernardo.
Sol justitiae, Pulchra est luna. Stella matutina, Turris eburnea, etc.
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Há na frente d’esta capela um cruzeiro, que, como folha enrugada e carcomida pelos anos, será o livro que traduza a sua edificação, e o sucesso que vou
narrar.
Conta-se que, em tempos antigos, um ermitão, a que a voz tradicional dá
o nome de Maruta, deixara o Ferrel, sua pátria, e para ali viera fazer vida penitente, n’uma casa junto à ermida, casa que ainda existe com a mesma aplicação.
Uma noite grande estrepito alterou o usual sossego daquele ermo. O anacoreta
acordou, e conhecendo ser na igreja, possui-se de medo, e foge para uma gruta
próxima às ondas, a qual ainda hoje conserva o nome de cova do ermitão. Ali
permaneceu até despontar a aurora; quando volta à capela para conhecer a
novidade, eis que vê pelo clarão espalhados os ornamentos do altar, e a santa
imagem roubada. Confuso, corre à capela sem a encontrar; busca-a até pelo exterior, quando, por acaso, olhando para o mar, vê um pequeno batel dirigir-se a
uma nau, que, ancorada, o espera e recolhe, conhecendo ser de moiros.
Volta inconsolável, chorando a falta da sua protectora companheira, julgando ter de chorar esta ausência o resto dos seus anos.
Passam dias que perfazem meses, quando, n’este espaço, um cativo em
Argel, filho de Peniche, vê chegar aquele presidio a embarcação que conduz a
roubada imagem por ele conhecida. Este homem, que então começava a respirar o ar da liberdade, propõe resgate da Virgem, que se lhe concede a peso de
prata; mas ele, que unicamente possuía uma pataca, sabendo que a imagem é
de mármore, e de três palmos de altura, conhece a impossibilidade de aceitar
contrato, e volta cheio de tristeza ao seu aposento, maldizendo a pobreza em
que se achava.
Passando a noite em pensativa vigília e atormentado, uma inspiração divina o resolve a ir reconhecer peso da imagem. Chega a tardia manhã, volta o
cativo a casa do senhor da preza, que mantem a sua palavra; pede-lhe que ponha a imagem n’uma balança, e deita na concha oposta a sua pataca, a qual imediatamente a rebaixa com peso superior, e grande admiração do infiel agareno.
Apossa-se do invariável tesouro, e prestes se embarca com ele para a sua
pátria. Logo que chega, a conduz à sua antiga capela, contando o prodigioso
acontecimento, que enche de assombro a todos os circunstantes.
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Esta lenda tem feito até ao presente o principal incentivo da devoção que
o povo tem naquela efigie da rainha do céu, com o título de Senhora das Mercês.
O Baleal, segundo conjeturo, é assim denominado, pela frequência com
que o mar tem arrojado às suas praias diferentes baleias, duas das quais em
poucos anos eu vi; ou daquela celebre e monstruosa que, em 1526, deu apelido
à vila da Atouguia.
Este sítio ainda há poucos anos apenas tinha duas barracas de pescadores, e hoje conta dezasseis moradas de famílias das circunvizinhanças, entre as
quais, as melhores, pertencem aos Srs. Pereira Caldas, das Caldas da Rainha;
Marques, da Atouguia; Pinto Ferreira, de Ferrel; Neves, do Peral; e Sequeira, de
Traz do Oiteiro: isto em consequência da bondade das suas águas para banhos
de mar, e pela excelente praia, que, sem exageração, será a melhor do nosso
reino, pela nivelação e solidez, rodando sobre ela um carro quase sem deixar
vestígios.
No mais alto dos rochedos, e onde na estampa se vê um ponto geodésico,
foi em 1808 edificado pelos franceses um pequeno forte, que está bastante deteriorado; e junto á praia da entrada se fez, há dois anos, um forno, que produz
sofrível cal.
Onde actualmente se acham as propriedades, e em suas imediações, encontram-se bastantes alicerces antigos, pelos quais se conjectura haver sido ali
o lugar de Ferrel, hoje pouco distante.
Não há aqui arbustos; é quase nula a vegetação; todavia o terreno dá saldanella, ou brazia marinha; jusquiamo, erva-divina, perrexil, e outras plantas
próprias das vizinhanças do mar74.
São estas praias abundantes de peixe e mariscos, e nelas se encontram
esponjas e coralina branca (musgo marinho), e há poucos anos uns pescadores
que ali há, tiraram do alto mar uma árvore de coral, como o melhor do porto de
Bone75.
74
Vid. Reflexos Metódico-Dotanicas, de fr. Cristóvão dos Reis
Fr. Cristóvão dos Reis, falando na citada obra sobre o coral, diz: Muitas vezes se tem este tirado do mar nas
costas de Setúbal e Peniche.
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Não tem este sítio água dentro em si, pelo que se vai buscar ao Camarção,
onde um benemérito cidadão, que de Lisboa ali foi a banhos com sua família,
mandou há dois anos fazer uma fonte76.
O sítio do Baleal é actualmente muito concorrido no tempo dos banhos,
onde mil coisas fazem os seus encantos e divertimentos; não esquecerei a passagem do mar sobre o istmo nas marés da canícula, tornando então o sitio um
arquipélago de cinco ilhéus agrupados: o embate das ondas sobre as rochas
que o cercam em forma de escadas, que ora fazem brancos lenções de espuma,
ora altas catadupas e elevadas colunas de água; o portinho que a natureza, providente, lhe fez no canto das penhas, para refúgio e estação dos barquinhos; os
búzios e delicadíssimas conchinhas de variegadas formas e cores; os corados e
finos liminhos; os polidos seixinhos, donde o ano passado eu trouxe uma sanguínea-amarela para um anel, a que os lapidários chamaram uma verdadeira
agatha.
Quem visitar o Baleal, conduzido por certo às situações mais favoritas e
concorridas, como o forte, a varanda dos namorados, o rasto de Neptuno, e as
pedras, achará fiel o quadro que tenho esboçado. No centro da gravura vê-se
ao longe a ilha das Berlengas com seu farol no cimo, da qual hei de falar em
artigo especial com estampa; à esquerda os últimos rochedos do norte da praça
de Peniche, antigo cabo Carvoeiro, onde, no século passado, naufragou a nau
de S. Pedro, ou dos Quintos, e com ela se perderam imensas riquezas; e onde
igual fim teve há poucos anos o vapor da carreira do Porto; e do lado direito os
pontiagudos farilhões, que parecem uma grande nau, no meio do vasto Oceano.
P. de C. e Sequeira.
76
O Sr. José Joaquim Soares de Faria
201
ÍNDICE
SANTOS, Miguel Dias, Apresentação......................................................................................5
CALADO, Mariano, Quando a terra galga o mar................................................................7
CUNHA, Ângela, et alli, O MAR E O ENSINO DAS CIÊNCIAS - atividades
laboratoriais, experimentais e de campo, NO ENSINO SECUNDÁRIO –
alguns exemplos................................................................................................................... 13
RIBEIRO, Élio, A pesca da sardinha em Peniche durante o séc. XX ......................... 33
LOURENÇO, Inês Grandela, A pesca em Peniche – impactos da adesão de
Portugal à CEE (1986-1996)....................................................................................... 69
RENDEIRO, Luís, A conservação de pescado através do sal
(Uma perspectiva diacrónica da realidade local)................................................ 81
CONSTANTINO, Adriano, Pescadores de Peniche em luta
- a greve de 1975 ............................................................................................................. 99
MOREIRA, João Luís, Os pescadores, de Raul Brandão
– etnografia e memória.............................................................................................. 113
MEMÓRIAS DA PESCA. Entrevista – sr. José Maria Malheiros Cativo................ 125
MEMÓRIAS DE PESCA . Entrevista - sr. João Comboio.
[joão pacheco leitão] ............................................................................................................. 157
COUTINHO, António Martinó de Azevedo, Há mar e mar há vir e ficar, .......... 177
RODRIGUES, Alberto, A vida é como um abajur.......................................................... 185
FONSECA, Luís, MAIA, Susana, Um mergulho de sonho........................................... 189
O Baleal......................................................................................................................................... 195

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