“Arte poética” de António de Ataíde
Transcrição
“Arte poética” de António de Ataíde
Actas del II Congreso Internacional SEEPLU - Difundir l/a Lusofonia Cáceres: SEEPLU / CILEM / LEPOLL, 2012. Observâncias sobre uma “Arte poética” de António de Ataíde (1564-1647) Adriano Milho Cordeiro Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra [email protected] Resumo A ARTE POÉTICA de D. António de Ataíde é de uma importância capital para o estudo e análise da Teoria Literária em geral. Na verdade é a primeira vez que a obra manuscrita e em vernáculo, intitulada Borrador de huma arte poética que se intentava escrever de D. António de Ataíde, General das Armadas do Reino, está a ser lida, revista e é objecto de transcrição1. A sua divulgação no futuro próximo será de extrema importância, pois prova que apesar de se tratar de um texto manuscrito, em género de ‘comentário’, o seu estudo e publicação serão extremamente importantes para a percepção da nossa História Literária da época clássica, a sua correlação com outras poéticas congéneres europeias e para a compreensão dos Clássicos Antigos e Modernos. Abstract ARTE POÉTICA written by D. António de Ataíde is an extremely important work for the study and analysis of the Literary Theory in general. In fact it’s the first time that the vernacular manuscript work, called Borrador de huma arte poética que se intentava escrever of D. António de Ataíde, General das Na verdade é a primeira vez que toda a obra manuscrita, em vernáculo e intitulada “Borrador de huma arte poética que se intentava escrever” de D. António de Ataíde, é objecto de leitura e transcrição, se revê e serve neste momento a um amplo estudo, objecto de uma tese de doutoramento que brevemente será apresentada na Universidade de Coimbra, sob orientação dos Professores Doutores José Augusto Cardoso Bernardes e Maria do Céu Zambujo Fialho. Este “Borrador” é no contexto luso do Humanismo português e europeu uma obra ímpar, de um valor incomensurável e de um grau de importância muito elevado. A sua divulgação, hermenêutica e estudo comparatista começa num âmbito mais alargado hic et nunc, feita de jure et de facto pela primeira vez fora do território português. 1 Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 177 Armadas do Reino, it’s being read, reviewed and object of transcription. The disclosure of the work in a nearby future will be of extreme importance because although it’s a manuscript text, as a “commentary”, its study and publication will be extremely important for the perception of our Literary History of the classic times, its interconnection with other similar european poetics and for the understanding of the Old and Modern Classics. 1. António de Ataíde, uma biografia e uma cultura …Nas tuas mãos, a Poética volta do seu exílio para junto da Filosofia, e parece aos jovens recta e nobre. Plutarco2 António de Ataíde, quinto conde da Castanheira e primeiro conde de Castro Daire, nasceu por volta de 1564 e morreu a 14 de Dezembro de 1647, tendo sido sepultado na capela-mor da igreja de S. Francisco de Lisboa. Foi terceiro filho do segundo casamento do segundo conde da Castanheira, também chamado D. António de Ataíde, falecido em 16033. Morto o Cardeal-Rei, na crise da Independência, tomou o partido do rei espanhol, fazendo parte da campanha do marquês de Santa Cruz contra a Ilha Terceira. Serviu sob as ordens de D. Martinho de Ribera, general das galés de Espanha, tendo prestado tamanhos serviços que foi nomeado sucessivamente capitão de cavalos, fronteiro-mor dos coutos de Alcobaça, General de uma Cf. Pereira (1998: 486). Era neto de D. Luís de Meneses e Vasconcelos e D. Branca de Vilhena por parte da sua mãe D. Maria de Vilhena. 2 3 Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 178 armada da costa, coronel de Infantaria, capitão-mor das naus da Índia, General das armadas de Portugal4. Filipe III de Portugal mostrou o real apreço que tinha por ele, nomeando-o gentil-homem de sua Câmara, mordomo-mor da Rainha D. Isabel, conselheiro de Estado do Conselho de Portugal, presidente do Conselho de Aragão. Foi por essa época enviado à Alemanha como embaixador extraordinário ao imperador Fernando II. O título de conde de Castro Daire lhe foi concedido por alvará de 30 de abril de 1625, assinado em Aranjuez por Filipe III. Sucedeu D. António de Ataíde ao sobrinho D. João de Ataíde e por isso veio a ser quinto conde da Castanheira5. Em 1631 foi nomeado governador de Portugal com o conde de Vale dos Reis. Afirma Barbosa Machado (1956-57) que D. António foi depois presidente da Mesa da Consciência onde practicou a rectidão, que sempre exercitara servindo-lhe de degráos para subir a tantos lugares as suas virtudes como eloquentemente escreveo Rodrigo Mendes Sylva no Cathalog. Real de Espanha fol. Mihi 112. v.º Varon señalado por su gran talento, y partes naturales, y adquiridas, y por los supremos lugares, que occupo en la Monarchia, ascendiendo a ellos graduadamente más a fuerça de méritos, que de fortuna. Na revolução de 1640, pôs-se ao lado do duque de Bragança. Casou com D. Maria de Lima, filha e herdeira de D. António de Lima, Para além de ter ocupado cargos políticos de alto-relevo, D. António foi uma das mais importantes figuras da História Naval e Marítima portuguesa dos finais do século XVI e inícios do século XVII. 5 Por este título teve a alcaidaria de Colares e as comendas Longroiva, S. Salvador de Valorco e Santa Maria de Satam, na ordem de Cristo, e pelo condado de Castro Daire a alcaidaria-mor de Guimarães e os Senhorios de Paiva, Baltar e Cabril. 4 Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 179 senhor de Castro Daire, e de Dona Maria de Vilhena. Foram pais de D. Jerónimo de Ataíde, que sucedeu ao pai como segundo conde de Castro Daire e sexto conde da Castanheira6. D. António de Ataíde foi homem muito culto e amante das letras e das humanidades. A propósito do valor literário do 1.º Conde de Castro Daire, Barbosa Machado declara: Ninguem explicou mayor elegância os singulares dotes do corpo, e do espírito deste Cavalhero, do que o Principe da Poesia Castelhana Lope de Vega Carpio quando fallando delle ainda na sua idade juvenil lhe consagrou este elogio transcripto pela penna de D. Jozé Pellizer, y Tovar na Espistol. Dedicatoria affirma allegada. El gallardo D. António de Attaide sabia bien quan versado era vuestra Excellencia, y artes liberales, quan dedicado, y elegante en Poesia, como uno delos primeros de su siglo, y quan diestro en las aplicaciones, y acciones publicas de Cavallero entendido, cortes, valiente, y com todas las partes, y prendas que componen un verdadero Principe Portugues, que esta es la mayor fineza, y ultima línea dela alabança. Varon al fin superior a toda fortuna, y embidia, pues a su pezar hà prevalecido V. Excellencia com mayores realces de su valor. O saber enciclopédico e a erudita cultura clássica de D. António encontram-se bem espelhados na sua obra intitulada Borrador de hua arte poética que se intentava escrever. A respeito desta Arte Poética D. Barbosa Machado declara que dela “se lembra Manoel de Faria, e Sousa na Cathal. Dos AA. Portuguezes que tinha prompto para a impressaõ, o qual examinamos, e era Original escrito da sua propria Foi como o seu antecessor um erudito homem de letras. Os condes de Castro Daire e da Castanheira, provenientes de D. António de Ataíde e D. Ana de Lima, extinguiram-se na varonia, passando a casa para os marqueses de Cascais, e destes para os de Niza. 6 Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 180 maõ.”7 Borrador de huma arte poética que se intentava escrever é um documento manuscrito crítico-literário excepcional e uma das primeiras obras deste género a serem escritas de forma tão completa no contexto ibérico. Depois das reflexões literárias italianas dos finais do século XV e de todo o século XVI acerca da Poética, esta obra de Ataíde é um ‘tesouro’ que de certa forma antecede de forma tão completa, comentários espanhóis e franceses da mesma índole8. Digno de realce é ainda o trabalho manuscrito intitulado “Discurso da jornada que fiz para Valhadolid levando em minha companhia meu filho D. João Pedro Borges Francisco Cabral, Diogo Alfaia com os quaes me parti de Lisboa quarta feira 16 de Outubro 1602 com o favor de Deos”. Não sabemos se D. António de Ataíde terá frequentado a universidade. O seu saber plurifacetado – matemático, náutico, bélico, literário – cria em nós a ideia de que terá tido uma educação esmerada e de acordo com as regras da sua época. O primeiro conde de Castro Daire viveu uma longa vida, assistindo ao trânsito do Renascimento para o maneirismo e ao triunfo do barroco. Foi coevo de Luís de Camões, de Diogo do Couto, 7 Reitere-se: trata-se de um texto de grande valor e a sua publicação é de extrema importância, pois, apesar de se tratar de um manuscrito, em género de ‘comentário’ é uma obra preciosa para melhor apreender a História Literária Lusa da época clássica. Borrador de hua arte poética é trabalho de uma importância capital que deve ser estudado em correlação com outras poéticas congéneres, escritas no velho continente. A partir do manuscrito de Ataíde é possível compreender melhor a observância que existia nos séculos XVI e XVII dos Clássicos Antigos e Modernos. Como poucos do seu tempo, D. António mostra na sua Arte Poética uma vasta erudição literária e um domínio do latim, do grego, de várias línguas vernáculas e respectivas culturas. 8 Barbosa Machado afirma que D. António de Ataíde foi também tradutor de uma obra intitulada Tratado de Séneca e autor de vários trabalhos dos quais destacamos de uma “Carta Latina muito elegante em reposta da Dedicatoria, que ao seu nome consagrou Francisco de Fontes in libello apologético pro Justo Lypsio, et Erycio Puteano”. Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 181 António Vieira, Fernão Mendes Pinto, Cervantes, Gongora, El Greco, Lope de Vega, Calderon de la Barca, Shakespeare entre tantos outros. Que contactos reais terá vivido? Com quem terá trocado ideias? Só uma mente brilhante como D. António de Ataíde poderia apresentar-se tão diversificado. Ao quinto conde de Castanheira devemos a única Arte Poética ainda do século XVI, escrita em vernáculo. Na nossa opinião, a Arte Poética é de um mesmo punho, tirando a indicação no fólio inicial da autoria, assinada por J. B. de Castro – eventualmente, João Baptista de Castro, autor do “Mappa de Portugal, antigo e moderno”9. 2. Sobre «Borrador de huma arte poética que se intentava escrever» É a primeira vez, na verdade que toda a obra manuscrita, em vernáculo e intitulada “Borrador de huma arte poética que se intentava escrever”10 de D. António de Ataíde, primeiro Conde de Castro Daire é lido, revisto e serve de base a uma hermenêutica mais alargada. A divulgação da “Poética” de António Ataíde é de extrema importância, pois, até hoje, apenas foram editadas pelo estudioso Aníbal Pinto de Castro algumas linhas dos fls. 15, 39v. e 17 do “Borrador de huma arte poética (…)”11. Cf. Correia (1994). Os apontamentos reunidos neste manuscrito existente na Biblioteca da Ajuda, cód. 46-VIII-37 devem datar dos últimos anos do século XVI ou primeiros do seguinte, visto que no fl. 48 há uma nota da mão de qualquer oficial da casa do autor, que declara ter feito entregas de dinheiro em 28-X-1601. Nasceu em 1564 e faleceu a 14XII-1647 (cf. Machado (1956-57: 211-213) e Braamcamp Freire (1974: 104-105). Cf. ainda Pinto de Castro (1984: 28). 11 Sobre este assunto veja-se Pinto de Castro (1984: 28-29). Na página 28 da separata apresentam-se seis linhas do fol. 15; na 29, três linhas do fol. 39v.; na página 31 três 9 10 Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 182 Quando, nos finais do Quattrocento, vem à luz a Poética de Aristóteles, num ambiente dominado pelos textos da tradição medieval, logo se estabeleceram semelhanças e se realizaram convergências interpretativas, de tal maneira que foi possível determinar que o texto horaciano era, na verdade uma tradução retoricizada da Poética (Soares: 1996: 128). No seu comentário De arte poetica de 1498, J. Badio Ascencio reduz a obra do Venusino12 a um número exacto de regulae que poderiam de igual modo reconhecer-se na obra de Aristóteles obra fundamental, a que toda a teoria literária afinal ascende13. Além desta, várias edições, comentários e traduções das obras de Horácio e Aristóteles surgiram nos finais do século XV e durante todo o século XVI14. Poucas obras terão tido uma transmissão tão acidentada como a Poética. Possivelmente conhecida e preservada em Bizâncio, o primeiro texto de que há notícia é, contudo, uma versão siríaca, feita talvez no final do século IX, versão da qual, se conhece apenas o capítulo 6. Terá sido traduzida para árabe por Abu Bisr, na primeira linhas do fol. 18. Na História Crítica da Literatura Portuguesa, Maneirismo e Barroco, (2001: 83-84) é publicado o fol. 17. 12 Quinto Horácio Flaco (latim: Quintus Horatius Flaccus), nasceu em Venúsia a 8 de Dezembro de 65 a.C. e daí, ser conhecido como Venusino, tendo morrido em Roma a 27 de Novembro de 8 a.C. Foi um poeta lírico e satírico romano, além de filósofo. É conhecido por ser um dos maiores vates da Roma antiga. 13 Sobre a tentativa de os autores do Renascimento ligarem o pensamento de Horácio com o do filósofo grego, veja-se Weineberg (1961: 561). 14A primeira edição da tradução latina de Averróis, paráfrase da Poética de Aristóteles, surge em 1481. Em 1482, é publicado o comentário de Cristo Foro Landino, De arte poética de Horácio; em 1498 a tradução latina da Poética de Aristóteles feita por Giorgio Valla e o comentário De arte poética de Horácio por I. Badio Ascencio. Só no século XVI vem a lume a edição princeps da Poética e da Retórica de Aristóteles e da obra De elocutione de Demétrio Falereu. Sobre este assunto veja-se Soares (1996: 128). Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 183 metade do século X, desenvolvendo-se assim o denominado “Aristotelismo islâmico”, que, viria a ser uma via fundamental de difusão do saber grego no Ocidente europeu. Dentro deste contexto a Poética Aristóteles foi conhecida no velho continente durante largo período por meio da paráfrase comentada do filósofo árabe Averróis (1126-1198)15, comentário esse que viria a ser traduzido para latim por Hermannus Alemannus16, em 1256. Surge uma nova versão latina, desta feita a partir do grego, por Guilherme de Moerbeke17, no ano de 1278, mas que só em 1930 veio a ser redescoberta. O facto da versão de Averróis, ainda por cima em tradução latina se ter tornado no quase absoluto breviário do mais marcante tratado de poética da Antiguidade durante uma boa parte da centúria de Quinhentos, é aos 15 Alves (2001: 81) diz-nos a este respeito que “A Poética de Aristóteles foi conhecida na Europa durante muito tempo através da paráfrase comentada do filósofo árabe Averróis (1126-1198), traduzida para o latim desde o século XIII. De facto, apesar das traduções directas do grego para o latim por Guilherme de Moerbeke (1278) e pelos renascentistas Giorgio Valla (1498) e Alessandro de’ Pazzi (1536), as versões latinas do original árabe, quer a mais antiga de Hermannus Alemanus, quer as duas quinhentistas que se fizeram sobre uma tradução hebraica do texto de Averróis, não deixaram de exercer grande influência no século XVI. O texto de Hermannus foi a primeira versão da Poética aristotélica a ser editada (1482)”. 16 Alves (2001: 81), diz-nos, na nota 1 do capítulo 5, intitulado “A repercussão da Poética de Aristóteles e o predomínio da teoria retórico-horaciana” o seguinte: “Entre (Weinberg 1961: 352 e Hardison 1962: 35) podemos enumerar umas sete publicações, que incluíam versões latinas do comentário de Averróis, em 1515, 1522, 1525, 1550, 1560, 1562 e 1574”. 17 Guilherme de Moerbeke foi um frade dominicano dos Países Baixos que viveu no século XIII. Foi integrado na província da Grécia e aplicou-se no conhecimento do latim, grego e árabe. Por volta de 1263, era capelão e penitenciário na Cúria papal, quando Fr. Tomás de Aquino lhe pediu uma nova tradução em latim de Aristóteles, o mais fiel e exacta possível, tarefa cumprida por Guilherme de Moerbeke com notável êxito. Traduziu de grego para latim os trabalhos de Aristóteles e outras de Simplício, Proclo, Galeno, Hipócrates e o Tractatus de arte et scientia Geometricae. Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 184 nossos olhos, algo de mordaz e irónico, uma vez que os teorizadores do Renascimento encaravam-se como ‘aristotélicos’18. Contudo, outras vias se tinham encetado à preservação do inserto original da Poética. É que, entre o séc. X e XI, fora copiado um manuscrito grego, o cod. Parisinus 1741, vindo de Bizâncio, que acabaria por ser reconhecido como o de maior valor para a reconstituição do texto no séc. XIX (T. Vahlen, 1784 e 1885). É dele que dependem os numerosos códices do séc. XV e XVI e nele que se baseia a melhor edição crítica moderna, a de R. Kassel, Aristotelis de Arte Liber, Oxford, 1965. A reconhecida influência da Poética no mundo ocidental recomeçou a partir das versões latinas feitas em Itália nos séculos XV e XVI, a primeira das quais foi a de Giorgio Valla (1498), e a que mais se difundiu a Alessandro de’ Pazzi, publicada na edição aldina (1536). Das muitas que se seguiram, mencionaremos apenas a tradução italiana de Castelvetro (1570), não só pela divulgação que conheceu, como por ter sido esta a que se tornou responsável pela chamada ‘Lei das três unidades’ (de acção, de tempo e de lugar), ao proclamá-las erradamente - preceito fundamental a observar na composição de uma tragédia. Volvida em lei inviolável durante o Renascimento, e o 18 Na opinião de Alves (2001: 82-83) “[…] o primeiro elemento do comentário de Averróis que se destaca claramente do espírito e da letra do original é o da própria definição e carácter essenciais da poesia. Se, tanto no texto quanto na paráfrase, a poesia é imitação ou representação, Averróis acrescenta à definição de Aristóteles uma finalidade pedagógica, se não mesmo política, de estimular a virtude e desencorajar o vício”. Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 185 Neoclassicismo, será Lessing um dos primeiros a considerar que só o texto relativo à unidade de acção era determinante19. Na década de quarenta do século XVI e na senda de um grande esforço filológico sobre o texto aristotélico, quer sobre traduções directas do grego, quer sobre o texto original, não há dúvida de que o comentário de Averróis continuava a ser lido e correspondia em larga medida, às expectativas teórico-literárias dos homens que primeiro procuraram explicar um texto fiável da Poética20. Merecem uma referência especial a tradução italiana da Arte poética de Horácio por Lodovico Dolce; a edição greco-latina da Poetica de Aristóteles feita por Alessandro de’ Pazzi em 1537; a primeira tradução italiana com comentário da obra do Estagirita, Rettorica et Poética d’ Aristotele de Bernardo Segni de 154921. Verifica-se assim que o trabalho dos teorizadores e dos poetas forjou no decurso do século XVI, um corpo de doutrina que, pelas características socioculturais da nossa vida colectiva, encontrou 19 A unidade de acção é efectivamente preceituada no cap. 8, especialmente em 1451a 16-19. A de tempo foi deduzida do trecho do cap. 5 em que se compara a ausência de limitações dessa ordem na epopeia com as da tragédia (1449b 12-14). A única possível alusão à unidade de lugar estaria no cap. 24 (1459b 24-26). São numerosos os estudos sobre a transmissão do texto e sobre comentários da Poética. O essencial encontra-se na introdução à edição comentada por Lucas (1968: XXII-XXIV). Sobre a recepção da obra, veja-se em especial o livro de St. Halliwell. (1986). Aristotle’s Poetics. London, cap X. 20 Sobre a repercussão da Poética de Aristóteles veja-se ainda Alves (2001). 21 Os comentários maiores da Poética aristotélica só aparecem impressos pela primeira vez a partir de meados do século XVI. Salientam-se os de Francesco Robortello que publica a primeira explicação integral e pormenorizada da Poética, em 1548. De notar são também os comentos de Vicenzo Maggi ou Madius e de Bartolomeo Lombardi de 1550, Pier Vettori ou Petrus Victorius de 1560, Ludovico Castelvetro de 1570, Alessandro Piccolomini de 1575 e António Riccolini de 1582. Estes são textos básicos da teoria poética, em geral, produzidos no século XVI. Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 186 expressão num conjunto de textos de carácter normativo ou paraliterário (Castro 1984: 5). Esses materiais foram propagados pelo ensino, pelo livro ou compêndio de teoria e pela própria produção poética22. Tendo em conta a paulatina, porém, progressiva divulgação da cultura humanística italiana em Portugal e na Europa, não é de espantar que a matriz principal do código poético renascentista tenha sido formada pelas obras consagradas dos teorizadores greco-latinos, em particular as ‘Poéticas’ de Horácio e de Aristóteles, actualizadas e divulgadas por toda o velho continente, mas principalmente na Itália como se pode observar pelo supra exposto. O contacto de portugueses com os trabalhos de comentadores mais ou menos coevos sobre as Poéticas levou a que Aquiles Estaço e Tomé Correia em latim (Santos 1961), D. António de Ataíde em vernáculo, dedicassem profundos trabalhos sobre a teorização poética23. Também o grande escritor luso António Ferreira formulará No ensino e pelo livro o exemplo chegava-nos de Espanha, onde, já em 1481, António de Nebrija incluíra nas suas Introductiones in latinam grammaticen todo um volume – o quinto – que tratava de quantitate syllabarum metris et accent. Pelo livro também o português André de Resende, na sua Oratio pro rostris, comete à Gramática o papel de habilitar quem a estudasse bem, a fim de interpretar os poetas. Pelo compêndio de teoria temos o caso agora em estudo de D. António de Ataíde e o seu “Borrador de huma arte poética que se intentava escrever”. Pela própria produção poética foi António Ferreira, teorizador, exemplo máximo em Portugal como se pode verificar pela obra de Spina (1967). 23 Coevo de D. António de Ataíde, temos o notável humanista da Extramadura espanhola, Francisco Sánchez “el Brocense” (1523-1601) que, segundo García Berrio, escreveu, como apêndice a um tratado de retórica, o comentário da Ars Poetica de Horácio. Na opinião de García Berrio (1980: 53) trata-se do mais profundo e original comentário realizado na Europa do século XV ao XVII à Arte Poética do venusino. Apesar da notoriedade da obra de Sánchez pensamos, todavia, que um certo excès de zele não estará ausente do juízo de García Berrio. 22 Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 187 na sua obra, um conjunto de preceitos acerca da missão pedagógica da poesia e afirmar-se-á como um teórico da estética clássica (Spina 1967: 7 e ss.). Formado esteticamente de acordo com os cânones do equilíbrio renascentista, anotou Ataíde no seu borrão, com claro intuito condenatório, as transgressões que por todo o lado via aparecer em relação a eles, principalmente no que ao género dramático dizia respeito: (…) Fora precisamente o desejo de obstar à decadência que verificava em poesia uma das causas principais que o haviam levado a reunir as notas para a sua inclusa ‘Arte Poética’ (…) o código estético-literário estava, pois, no seu tempo já profundamente alterado. (…) Não levou D. António a bom termo o seu projecto, mas, ainda que tal tivesse acontecido, não lograria naturalmente travar um processo evolutivo que ele próprio, apesar de o condenar, verificava e refletia. (Castro 1984) Aliás, as modificações aferidas no código renascentista alimentaram as condições para que o desenvolvimento poético do período seguinte, o barroco, se pudesse fundamentar, já de forma mais segura, numa teoria estruturada e sistematizada, que iria permitir uma prolongada duração à poesia barroca lato sensu, em Portugal (Castro 1984: 30-31). Começa o manuscrito da forma que se apresenta: Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 188 “Biblioteca da Ajuda, Cód. 46-VIII-37” “[fl. A] Borrador de huma arte poetica que se intenta/ua escreuer / 42/26 // [fl. B24] Este manuscripto he de D. Antonio de Ataide / Conde de Castro daire, e he da sua propria letra. / a) J. B. de Castro [?] // [fl. Bv] Index / Dois Capitulos de que consta / 1. Da Tragedia folio 1 / [2.] Da Comedia //” Ao recuperarmos um autor e uma das suas obras do ‘pó’ dos tempos “Borrador de huma arte poética que se intentava escrever” pretendemos a curto prazo e em relação à Poética portuguesa do Renascimento, mudar alguns conceitos há muito estereotipados e cristalizados25. O fascinante texto de António de Ataíde é perceptivo e modelar. Encantadora a sua idiossincrasia para escrever sobre O fólio Av encontra-se em branco. Segundo Gallagher / Greenblatt (2000: 21 e ss), “(…) realizações que pareciam monumentos inteiramente isolados passam por remanejamento a fim de apresentar uma inter-relação mais complexa com outros textos de autores ‘menores’. O novo historicismo ajuda a levantar questões sobre a originalidade na arte, o status do’génio’ como termo explicativo e a natureza da distinção entre ‘maior’ e ‘menor’. O processo pelo qual uma obra se tornou clássica pode ser reexaminado. Na análise do campo cultural mais amplo, as obras de arte canónicas são relacionadas não apenas com trabalhos ditos menores, mas também com textos que ninguém considera literários. Semelhante conjunção pode produzir um espanto quase surrealista, pela revelação de uma dimensão estética insuspeitada em objectos sem pretensões à beleza.” 24 25 Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 189 ‘Poética’, as comparações e as premissas que estabelece com tanta propriedade sobre o assunto, afirmando a dada altura e em jeito de sinopse: Parece que fica neste capitulo huma duvida o que he necesario satisfazer pera (…) conforme ao alegado parece infrutuoso trabalho este que tomo e o que tomavão os que escreverão antes de mim ao que respondo que a poesia que se não aprende he aquela vea e aquele furor em que o entendimento comete a escrever e a saber as cousas que he o primeiro paso e fundamento poetico, mas ordenar esas mesmas cousas e saber em que estilo e com que figuras se am de escrever isso depende da arte e pera isso se faz esta e se fizerão todas as artes poéticas.26 Sulquemos então a vastidão literária das palavras como D. Antónjo de Ataíde e demos a conhecer uma obra há tanto olvidada pelo fatum. Cronos permitirá – assim os esperamos e desejamos – que dentro em pouco a nossa tese sobre “Borrador de huma arte poética que se intentava escrever” de D. António de Ataíde fique concluída. De qualquer forma este trabalho ou essoutro de maior fôlego são apenas o início das nossas observâncias já vastas sobre uma ‘Poética’ em Língua Portuguesa. A qualidade e a erudição de D. António de Ataíde apresentam-se-nos excepcionais. Olvidá-lo para sempre seria o mesmo que praticar um agravo contra a cultura portuguesa, ibérica, latina e universal. 26 Deverá ser efectuado um estudo comparativo entre a ‘Poética’ de Ataíde e outras obras coevas da mesma índole, bem como a influência que esses pensamentos e opiniões apresentaram na sua contemporaneidade e na teoria literária posterior. Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”. Actas del II Congreso Internacional SEEPLU, 2012, pp. 177-192 190 Bibliografia Alves, H. J. S. (2001). Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Por ordem da Universidade. Castro, A. Pinto de (1984). “Os códigos poéticos em Portugal do Renascimento ao Barroco: seus fundamentos, seus conteúdos, sua evolução” in Revista Univ. de Coimbra, 31, Coimbra: Coimbra Editora, pp. Cordeiro, A. M. (2008). Registos sobre um Borrador de huma arte poética que se intentava escrever. Torres Novas: Gráfica Almondina. Cordeiro, A. M. (2009). “Percursos e apontamentos sobre um olvidado “Borrador de huma arte poética que se intentava escrever” de D. António de Ataíde – (1564-15647)” in VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono Comemorativo das Vanguardas – Universidade do Minho 2009/2010. [Disponível em http://ceh.ilch.uminho.pt/pub_adriano_cordeiro.pdf - última consulta: 01/10/2011]. Correia, F. (1994). “Compilação de Fontes Manuscritas da BN para a História Económica Portuguesa: Séculos XII a XVI” in Revista da Biblioteca Nacional. 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