“Arte poética” de António de Ataíde

Transcrição

“Arte poética” de António de Ataíde
 Actas del II Congreso Internacional SEEPLU - Difundir l/a Lusofonia
Cáceres: SEEPLU / CILEM / LEPOLL, 2012.
Observâncias sobre uma “Arte poética” de
António de Ataíde (1564-1647)
Adriano Milho Cordeiro
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
[email protected]
Resumo
A ARTE POÉTICA de D. António de Ataíde é de uma importância capital
para o estudo e análise da Teoria Literária em geral. Na verdade é a primeira
vez que a obra manuscrita e em vernáculo, intitulada Borrador de huma arte
poética que se intentava escrever de D. António de Ataíde, General das
Armadas do Reino, está a ser lida, revista e é objecto de transcrição1. A sua
divulgação no futuro próximo será de extrema importância, pois prova que
apesar de se tratar de um texto manuscrito, em género de ‘comentário’, o seu
estudo e publicação serão extremamente importantes para a percepção da
nossa História Literária da época clássica, a sua correlação com outras
poéticas congéneres europeias e para a compreensão dos Clássicos Antigos e
Modernos.
Abstract
ARTE POÉTICA written by D. António de Ataíde is an extremely important
work for the study and analysis of the Literary Theory in general. In fact it’s
the first time that the vernacular manuscript work, called Borrador de huma
arte poética que se intentava escrever of D. António de Ataíde, General das
Na verdade é a primeira vez que toda a obra manuscrita, em vernáculo e intitulada
“Borrador de huma arte poética que se intentava escrever” de D. António de Ataíde, é
objecto de leitura e transcrição, se revê e serve neste momento a um amplo estudo,
objecto de uma tese de doutoramento que brevemente será apresentada na
Universidade de Coimbra, sob orientação dos Professores Doutores José Augusto
Cardoso Bernardes e Maria do Céu Zambujo Fialho. Este “Borrador” é no contexto
luso do Humanismo português e europeu uma obra ímpar, de um valor
incomensurável e de um grau de importância muito elevado. A sua divulgação,
hermenêutica e estudo comparatista começa num âmbito mais alargado hic et nunc,
feita de jure et de facto pela primeira vez fora do território português.
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Armadas do Reino, it’s being read, reviewed and object of transcription. The
disclosure of the work in a nearby future will be of extreme importance
because although it’s a manuscript text, as a “commentary”, its study and
publication will be extremely important for the perception of our Literary
History of the classic times, its interconnection with other similar european
poetics and for the understanding of the Old and Modern Classics.
1. António de Ataíde, uma biografia e uma cultura
…Nas tuas mãos, a Poética volta do seu exílio para junto da Filosofia,
e parece aos jovens recta e nobre.
Plutarco2
António de Ataíde, quinto conde da Castanheira e primeiro
conde de Castro Daire, nasceu por volta de 1564 e morreu a 14 de
Dezembro de 1647, tendo sido sepultado na capela-mor da igreja de
S. Francisco de Lisboa.
Foi terceiro filho do segundo casamento do segundo conde da
Castanheira, também chamado D. António de Ataíde, falecido em
16033. Morto o Cardeal-Rei, na crise da Independência, tomou o
partido do rei espanhol, fazendo parte da campanha do marquês de
Santa Cruz contra a Ilha Terceira. Serviu sob as ordens de D.
Martinho de Ribera, general das galés de Espanha, tendo prestado
tamanhos serviços que foi nomeado sucessivamente capitão de
cavalos, fronteiro-mor dos coutos de Alcobaça, General de uma
Cf. Pereira (1998: 486).
Era neto de D. Luís de Meneses e Vasconcelos e D. Branca de Vilhena por parte da
sua mãe D. Maria de Vilhena.
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armada da costa, coronel de Infantaria, capitão-mor das naus da
Índia, General das armadas de Portugal4.
Filipe III de Portugal mostrou o real apreço que tinha por ele,
nomeando-o gentil-homem de sua Câmara, mordomo-mor da Rainha
D. Isabel, conselheiro de Estado do Conselho de Portugal, presidente
do Conselho de Aragão. Foi por essa época enviado à Alemanha
como embaixador extraordinário ao imperador Fernando II.
O título de conde de Castro Daire lhe foi concedido por alvará
de 30 de abril de 1625, assinado em Aranjuez por Filipe III. Sucedeu
D. António de Ataíde ao sobrinho D. João de Ataíde e por isso veio a
ser quinto conde da Castanheira5. Em 1631 foi nomeado governador
de Portugal com o conde de Vale dos Reis. Afirma Barbosa Machado
(1956-57) que D. António foi depois presidente da Mesa da
Consciência
onde practicou a rectidão, que sempre exercitara servindo-lhe de
degráos para subir a tantos lugares as suas virtudes como
eloquentemente escreveo Rodrigo Mendes Sylva no Cathalog. Real
de Espanha fol. Mihi 112. v.º Varon señalado por su gran talento, y
partes naturales, y adquiridas, y por los supremos lugares, que occupo
en la Monarchia, ascendiendo a ellos graduadamente más a fuerça de
méritos, que de fortuna.
Na revolução de 1640, pôs-se ao lado do duque de Bragança.
Casou com D. Maria de Lima, filha e herdeira de D. António de Lima,
Para além de ter ocupado cargos políticos de alto-relevo, D. António foi uma das
mais importantes figuras da História Naval e Marítima portuguesa dos finais do
século XVI e inícios do século XVII.
5 Por este título teve a alcaidaria de Colares e as comendas Longroiva, S. Salvador de
Valorco e Santa Maria de Satam, na ordem de Cristo, e pelo condado de Castro Daire
a alcaidaria-mor de Guimarães e os Senhorios de Paiva, Baltar e Cabril.
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senhor de Castro Daire, e de Dona Maria de Vilhena. Foram pais de
D. Jerónimo de Ataíde, que sucedeu ao pai como segundo conde de
Castro Daire e sexto conde da Castanheira6. D. António de Ataíde foi
homem muito culto e amante das letras e das humanidades. A
propósito do valor literário do 1.º Conde de Castro Daire, Barbosa
Machado declara:
Ninguem explicou mayor elegância os singulares dotes do
corpo, e do espírito deste Cavalhero, do que o Principe da
Poesia Castelhana Lope de Vega Carpio quando fallando delle
ainda na sua idade juvenil lhe consagrou este elogio transcripto
pela penna de D. Jozé Pellizer, y Tovar na Espistol. Dedicatoria
affirma allegada. El gallardo D. António de Attaide sabia bien quan
versado era vuestra Excellencia, y artes liberales, quan dedicado, y
elegante en Poesia, como uno delos primeros de su siglo, y quan
diestro en las aplicaciones, y acciones publicas de Cavallero entendido,
cortes, valiente, y com todas las partes, y prendas que componen un
verdadero Principe Portugues, que esta es la mayor fineza, y ultima
línea dela alabança. Varon al fin superior a toda fortuna, y embidia,
pues a su pezar hà prevalecido V. Excellencia com mayores realces de
su valor.
O saber enciclopédico e a erudita cultura clássica de D. António
encontram-se bem espelhados na sua obra intitulada Borrador de hua
arte poética que se intentava escrever. A respeito desta Arte Poética D.
Barbosa Machado declara que dela “se lembra Manoel de Faria, e
Sousa na Cathal. Dos AA. Portuguezes que tinha prompto para a
impressaõ, o qual examinamos, e era Original escrito da sua propria
Foi como o seu antecessor um erudito homem de letras. Os condes de Castro Daire
e da Castanheira, provenientes de D. António de Ataíde e D. Ana de Lima,
extinguiram-se na varonia, passando a casa para os marqueses de Cascais, e destes
para os de Niza.
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maõ.”7 Borrador de huma arte poética que se intentava escrever é um
documento manuscrito crítico-literário excepcional e uma das
primeiras obras deste género a serem escritas de forma tão completa
no contexto ibérico. Depois das reflexões literárias italianas dos finais
do século XV e de todo o século XVI acerca da Poética, esta obra de
Ataíde é um ‘tesouro’ que de certa forma antecede de forma tão
completa, comentários espanhóis e franceses da mesma índole8.
Digno de realce é ainda o trabalho manuscrito intitulado
“Discurso da jornada que fiz para Valhadolid levando em minha companhia
meu filho D. João Pedro Borges Francisco Cabral, Diogo Alfaia com os quaes
me parti de Lisboa quarta feira 16 de Outubro 1602 com o favor de Deos”.
Não sabemos se D. António de Ataíde terá frequentado a
universidade. O seu saber plurifacetado – matemático, náutico,
bélico, literário – cria em nós a ideia de que terá tido uma educação
esmerada e de acordo com as regras da sua época.
O primeiro conde de Castro Daire viveu uma longa vida,
assistindo ao trânsito do Renascimento para o maneirismo e ao
triunfo do barroco. Foi coevo de Luís de Camões, de Diogo do Couto,
7 Reitere-se: trata-se de um texto de grande valor e a sua publicação é de extrema
importância, pois, apesar de se tratar de um manuscrito, em género de ‘comentário’ é
uma obra preciosa para melhor apreender a História Literária Lusa da época clássica.
Borrador de hua arte poética é trabalho de uma importância capital que deve ser
estudado em correlação com outras poéticas congéneres, escritas no velho continente.
A partir do manuscrito de Ataíde é possível compreender melhor a observância que
existia nos séculos XVI e XVII dos Clássicos Antigos e Modernos. Como poucos do
seu tempo, D. António mostra na sua Arte Poética uma vasta erudição literária e um
domínio do latim, do grego, de várias línguas vernáculas e respectivas culturas.
8 Barbosa Machado afirma que D. António de Ataíde foi também tradutor de uma
obra intitulada Tratado de Séneca e autor de vários trabalhos dos quais destacamos de
uma “Carta Latina muito elegante em reposta da Dedicatoria, que ao seu nome
consagrou Francisco de Fontes in libello apologético pro Justo Lypsio, et Erycio Puteano”.
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António Vieira, Fernão Mendes Pinto, Cervantes, Gongora, El Greco,
Lope de Vega, Calderon de la Barca, Shakespeare entre tantos outros.
Que contactos reais terá vivido? Com quem terá trocado ideias?
Só uma mente brilhante como D. António de Ataíde poderia
apresentar-se tão diversificado. Ao quinto conde de Castanheira
devemos a única Arte Poética ainda do século XVI, escrita em
vernáculo. Na nossa opinião, a Arte Poética é de um mesmo punho,
tirando a indicação no fólio inicial da autoria, assinada por J. B. de
Castro – eventualmente, João Baptista de Castro, autor do “Mappa de
Portugal, antigo e moderno”9.
2. Sobre «Borrador de huma arte poética que se intentava escrever»
É a primeira vez, na verdade que toda a obra manuscrita, em
vernáculo e intitulada “Borrador de huma arte poética que se
intentava escrever”10 de D. António de Ataíde, primeiro Conde de
Castro Daire é lido, revisto e serve de base a uma hermenêutica mais
alargada. A divulgação da “Poética” de António Ataíde é de extrema
importância, pois, até hoje, apenas foram editadas pelo estudioso
Aníbal Pinto de Castro algumas linhas dos fls. 15, 39v. e 17 do
“Borrador de huma arte poética (…)”11.
Cf. Correia (1994).
Os apontamentos reunidos neste manuscrito existente na Biblioteca da Ajuda, cód.
46-VIII-37 devem datar dos últimos anos do século XVI ou primeiros do seguinte,
visto que no fl. 48 há uma nota da mão de qualquer oficial da casa do autor, que
declara ter feito entregas de dinheiro em 28-X-1601. Nasceu em 1564 e faleceu a 14XII-1647 (cf. Machado (1956-57: 211-213) e Braamcamp Freire (1974: 104-105). Cf.
ainda Pinto de Castro (1984: 28).
11 Sobre este assunto veja-se Pinto de Castro (1984: 28-29). Na página 28 da separata
apresentam-se seis linhas do fol. 15; na 29, três linhas do fol. 39v.; na página 31 três
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Quando, nos finais do Quattrocento, vem à luz a Poética de
Aristóteles, num ambiente dominado pelos textos da tradição
medieval, logo se estabeleceram semelhanças e se realizaram
convergências interpretativas, de tal maneira que foi possível
determinar que o texto horaciano era, na verdade uma tradução
retoricizada da Poética (Soares: 1996: 128). No seu comentário De arte
poetica de 1498, J. Badio Ascencio reduz a obra do Venusino12 a um
número exacto de regulae que poderiam de igual modo reconhecer-se
na obra de Aristóteles obra fundamental, a que toda a teoria literária
afinal ascende13. Além desta, várias edições, comentários e traduções
das obras de Horácio e Aristóteles surgiram nos finais do século XV e
durante todo o século XVI14.
Poucas obras terão tido uma transmissão tão acidentada como a
Poética. Possivelmente conhecida e preservada em Bizâncio, o
primeiro texto de que há notícia é, contudo, uma versão siríaca, feita
talvez no final do século IX, versão da qual, se conhece apenas o
capítulo 6. Terá sido traduzida para árabe por Abu Bisr, na primeira
linhas do fol. 18. Na História Crítica da Literatura Portuguesa, Maneirismo e Barroco,
(2001: 83-84) é publicado o fol. 17.
12 Quinto Horácio Flaco (latim: Quintus Horatius Flaccus), nasceu em Venúsia a 8 de
Dezembro de 65 a.C. e daí, ser conhecido como Venusino, tendo morrido em Roma a
27 de Novembro de 8 a.C. Foi um poeta lírico e satírico romano, além de filósofo. É
conhecido por ser um dos maiores vates da Roma antiga.
13 Sobre a tentativa de os autores do Renascimento ligarem o pensamento de Horácio
com o do filósofo grego, veja-se Weineberg (1961: 561).
14A primeira edição da tradução latina de Averróis, paráfrase da Poética de
Aristóteles, surge em 1481. Em 1482, é publicado o comentário de Cristo Foro
Landino, De arte poética de Horácio; em 1498 a tradução latina da Poética de
Aristóteles feita por Giorgio Valla e o comentário De arte poética de Horácio por I.
Badio Ascencio. Só no século XVI vem a lume a edição princeps da Poética e da
Retórica de Aristóteles e da obra De elocutione de Demétrio Falereu. Sobre este assunto
veja-se Soares (1996: 128).
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metade do século X, desenvolvendo-se assim o denominado
“Aristotelismo islâmico”, que, viria a ser uma via fundamental de
difusão do saber grego no Ocidente europeu. Dentro deste contexto a
Poética Aristóteles foi conhecida no velho continente durante largo
período por meio da paráfrase comentada do filósofo árabe Averróis
(1126-1198)15, comentário esse que viria a ser traduzido para latim por
Hermannus Alemannus16, em 1256. Surge uma nova versão latina,
desta feita a partir do grego, por Guilherme de Moerbeke17, no ano de
1278, mas que só em 1930 veio a ser redescoberta. O facto da versão
de Averróis, ainda por cima em tradução latina se ter tornado no
quase absoluto breviário do mais marcante tratado de poética da
Antiguidade durante uma boa parte da centúria de Quinhentos, é aos
15 Alves (2001: 81) diz-nos a este respeito que “A Poética de Aristóteles foi conhecida
na Europa durante muito tempo através da paráfrase comentada do filósofo árabe
Averróis (1126-1198), traduzida para o latim desde o século XIII. De facto, apesar das
traduções directas do grego para o latim por Guilherme de Moerbeke (1278) e pelos
renascentistas Giorgio Valla (1498) e Alessandro de’ Pazzi (1536), as versões latinas
do original árabe, quer a mais antiga de Hermannus Alemanus, quer as duas
quinhentistas que se fizeram sobre uma tradução hebraica do texto de Averróis, não
deixaram de exercer grande influência no século XVI. O texto de Hermannus foi a
primeira versão da Poética aristotélica a ser editada (1482)”.
16 Alves (2001: 81), diz-nos, na nota 1 do capítulo 5, intitulado “A repercussão da
Poética de Aristóteles e o predomínio da teoria retórico-horaciana” o seguinte: “Entre
(Weinberg 1961: 352 e Hardison 1962: 35) podemos enumerar umas sete publicações,
que incluíam versões latinas do comentário de Averróis, em 1515, 1522, 1525, 1550,
1560, 1562 e 1574”.
17 Guilherme de Moerbeke foi um frade dominicano dos Países Baixos que viveu no
século XIII. Foi integrado na província da Grécia e aplicou-se no conhecimento do
latim, grego e árabe. Por volta de 1263, era capelão e penitenciário na Cúria papal,
quando Fr. Tomás de Aquino lhe pediu uma nova tradução em latim de Aristóteles,
o mais fiel e exacta possível, tarefa cumprida por Guilherme de Moerbeke com
notável êxito. Traduziu de grego para latim os trabalhos de Aristóteles e outras de
Simplício, Proclo, Galeno, Hipócrates e o Tractatus de arte et scientia Geometricae.
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nossos olhos, algo de mordaz e irónico, uma vez que os teorizadores
do Renascimento encaravam-se como ‘aristotélicos’18.
Contudo, outras vias se tinham encetado à preservação do
inserto original da Poética. É que, entre o séc. X e XI, fora copiado um
manuscrito grego, o cod. Parisinus 1741, vindo de Bizâncio, que
acabaria por ser reconhecido como o de maior valor para a
reconstituição do texto no séc. XIX (T. Vahlen, 1784 e 1885). É dele
que dependem os numerosos códices do séc. XV e XVI e nele que se
baseia a melhor edição crítica moderna, a de R. Kassel, Aristotelis de
Arte Liber, Oxford, 1965.
A reconhecida influência da Poética no mundo ocidental
recomeçou a partir das versões latinas feitas em Itália nos séculos XV
e XVI, a primeira das quais foi a de Giorgio Valla (1498), e a que mais
se difundiu a Alessandro de’ Pazzi, publicada na edição aldina
(1536).
Das muitas que se seguiram, mencionaremos apenas a tradução
italiana de Castelvetro (1570), não só pela divulgação que conheceu,
como por ter sido esta a que se tornou responsável pela chamada ‘Lei
das três unidades’ (de acção, de tempo e de lugar), ao proclamá-las erradamente - preceito fundamental a observar na composição de
uma tragédia. Volvida em lei inviolável durante o Renascimento, e o
18 Na opinião de Alves (2001: 82-83) “[…] o primeiro elemento do comentário de
Averróis que se destaca claramente do espírito e da letra do original é o da própria
definição e carácter essenciais da poesia. Se, tanto no texto quanto na paráfrase, a
poesia é imitação ou representação, Averróis acrescenta à definição de Aristóteles
uma finalidade pedagógica, se não mesmo política, de estimular a virtude e
desencorajar o vício”.
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Neoclassicismo, será Lessing um dos primeiros a considerar que só o
texto relativo à unidade de acção era determinante19.
Na década de quarenta do século XVI e na senda de um grande
esforço filológico sobre o texto aristotélico, quer sobre traduções
directas do grego, quer sobre o texto original, não há dúvida de que o
comentário de Averróis continuava a ser lido e correspondia em larga
medida, às expectativas teórico-literárias dos homens que primeiro
procuraram explicar um texto fiável da Poética20. Merecem uma
referência especial a tradução italiana da Arte poética de Horácio por
Lodovico Dolce; a edição greco-latina da Poetica de Aristóteles feita
por Alessandro de’ Pazzi em 1537; a primeira tradução italiana com
comentário da obra do Estagirita, Rettorica et Poética d’ Aristotele de
Bernardo Segni de 154921.
Verifica-se assim que o trabalho dos teorizadores e dos poetas
forjou no decurso do século XVI, um corpo de doutrina que, pelas
características socioculturais da nossa vida colectiva, encontrou
19 A unidade de acção é efectivamente preceituada no cap. 8, especialmente em 1451a
16-19. A de tempo foi deduzida do trecho do cap. 5 em que se compara a ausência de
limitações dessa ordem na epopeia com as da tragédia (1449b 12-14). A única
possível alusão à unidade de lugar estaria no cap. 24 (1459b 24-26).
São numerosos os estudos sobre a transmissão do texto e sobre comentários da
Poética. O essencial encontra-se na introdução à edição comentada por Lucas (1968:
XXII-XXIV). Sobre a recepção da obra, veja-se em especial o livro de St. Halliwell.
(1986). Aristotle’s Poetics. London, cap X.
20 Sobre a repercussão da Poética de Aristóteles veja-se ainda Alves (2001).
21 Os comentários maiores da Poética aristotélica só aparecem impressos pela
primeira vez a partir de meados do século XVI. Salientam-se os de Francesco
Robortello que publica a primeira explicação integral e pormenorizada da Poética, em
1548. De notar são também os comentos de Vicenzo Maggi ou Madius e de
Bartolomeo Lombardi de 1550, Pier Vettori ou Petrus Victorius de 1560, Ludovico
Castelvetro de 1570, Alessandro Piccolomini de 1575 e António Riccolini de 1582.
Estes são textos básicos da teoria poética, em geral, produzidos no século XVI.
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expressão num conjunto de textos de carácter normativo ou
paraliterário (Castro 1984: 5). Esses materiais foram propagados pelo
ensino, pelo livro ou compêndio de teoria e pela própria produção
poética22.
Tendo em conta a paulatina, porém, progressiva divulgação da
cultura humanística italiana em Portugal e na Europa, não é de
espantar que a matriz principal do código poético renascentista tenha
sido formada pelas obras consagradas dos teorizadores greco-latinos,
em particular as ‘Poéticas’ de Horácio e de Aristóteles, actualizadas e
divulgadas por toda o velho continente, mas principalmente na Itália
como se pode observar pelo supra exposto.
O contacto de portugueses com os trabalhos de comentadores
mais ou menos coevos sobre as Poéticas levou a que Aquiles Estaço e
Tomé Correia em latim (Santos 1961), D. António de Ataíde em
vernáculo, dedicassem profundos trabalhos sobre a teorização
poética23. Também o grande escritor luso António Ferreira formulará
No ensino e pelo livro o exemplo chegava-nos de Espanha, onde, já em 1481,
António de Nebrija incluíra nas suas Introductiones in latinam grammaticen todo um
volume – o quinto – que tratava de quantitate syllabarum metris et accent. Pelo livro
também o português André de Resende, na sua Oratio pro rostris, comete à Gramática
o papel de habilitar quem a estudasse bem, a fim de interpretar os poetas. Pelo
compêndio de teoria temos o caso agora em estudo de D. António de Ataíde e o seu
“Borrador de huma arte poética que se intentava escrever”. Pela própria produção
poética foi António Ferreira, teorizador, exemplo máximo em Portugal como se pode
verificar pela obra de Spina (1967).
23 Coevo de D. António de Ataíde, temos o notável humanista da Extramadura
espanhola, Francisco Sánchez “el Brocense” (1523-1601) que, segundo García Berrio,
escreveu, como apêndice a um tratado de retórica, o comentário da Ars Poetica de
Horácio. Na opinião de García Berrio (1980: 53) trata-se do mais profundo e original
comentário realizado na Europa do século XV ao XVII à Arte Poética do venusino.
Apesar da notoriedade da obra de Sánchez pensamos, todavia, que um certo excès de
zele não estará ausente do juízo de García Berrio.
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na sua obra, um conjunto de preceitos acerca da missão pedagógica
da poesia e afirmar-se-á como um teórico da estética clássica (Spina
1967: 7 e ss.).
Formado esteticamente de acordo com os cânones do equilíbrio
renascentista, anotou Ataíde no seu borrão, com claro intuito
condenatório, as transgressões que por todo o lado via aparecer em
relação a eles, principalmente no que ao género dramático dizia
respeito:
(…) Fora precisamente o desejo de obstar à decadência que
verificava em poesia uma das causas principais que o haviam
levado a reunir as notas para a sua inclusa ‘Arte Poética’ (…) o
código estético-literário estava, pois, no seu tempo já
profundamente alterado. (…) Não levou D. António a bom termo
o seu projecto, mas, ainda que tal tivesse acontecido, não lograria
naturalmente travar um processo evolutivo que ele próprio,
apesar de o condenar, verificava e refletia. (Castro 1984)
Aliás, as modificações aferidas no código renascentista
alimentaram as condições para que o desenvolvimento poético do
período seguinte, o barroco, se pudesse fundamentar, já de forma
mais segura, numa teoria estruturada e sistematizada, que iria
permitir uma prolongada duração à poesia barroca lato sensu, em
Portugal (Castro 1984: 30-31). Começa o manuscrito da forma que se
apresenta:
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“Biblioteca da Ajuda, Cód. 46-VIII-37”
“[fl. A] Borrador de huma arte poetica que se intenta/ua escreuer /
42/26 //
[fl. B24] Este manuscripto he de D. Antonio de Ataide / Conde de Castro
daire, e he da sua propria letra. /
a) J. B. de Castro [?] //
[fl. Bv] Index /
Dois Capitulos de que consta /
1. Da Tragedia folio 1 /
[2.] Da Comedia //”
Ao recuperarmos um autor e uma das suas obras do ‘pó’ dos
tempos “Borrador de huma arte poética que se intentava escrever”
pretendemos a curto prazo e em relação à Poética portuguesa do
Renascimento, mudar alguns conceitos há muito estereotipados e
cristalizados25.
O fascinante texto de António de Ataíde é perceptivo e
modelar. Encantadora a sua idiossincrasia para escrever sobre
O fólio Av encontra-se em branco.
Segundo Gallagher / Greenblatt (2000: 21 e ss), “(…) realizações que pareciam
monumentos inteiramente isolados passam por remanejamento a fim de apresentar
uma inter-relação mais complexa com outros textos de autores ‘menores’. O novo
historicismo ajuda a levantar questões sobre a originalidade na arte, o status
do’génio’ como termo explicativo e a natureza da distinção entre ‘maior’ e ‘menor’. O
processo pelo qual uma obra se tornou clássica pode ser reexaminado.
Na análise do campo cultural mais amplo, as obras de arte canónicas são
relacionadas não apenas com trabalhos ditos menores, mas também com textos que
ninguém considera literários. Semelhante conjunção pode produzir um espanto
quase surrealista, pela revelação de uma dimensão estética insuspeitada em objectos
sem pretensões à beleza.”
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‘Poética’, as comparações e as premissas que estabelece com tanta
propriedade sobre o assunto, afirmando a dada altura e em jeito de
sinopse:
Parece que fica neste capitulo huma duvida o que he necesario
satisfazer pera (…) conforme ao alegado parece infrutuoso
trabalho este que tomo e o que tomavão os que escreverão antes
de mim ao que respondo que a poesia que se não aprende he
aquela vea e aquele furor em que o entendimento comete a
escrever e a saber as cousas que he o primeiro paso e fundamento
poetico, mas ordenar esas mesmas cousas e saber em que estilo e
com que figuras se am de escrever isso depende da arte e pera
isso se faz esta e se fizerão todas as artes poéticas.26
Sulquemos então a vastidão literária das palavras como D.
Antónjo de Ataíde e demos a conhecer uma obra há tanto olvidada
pelo fatum. Cronos permitirá – assim os esperamos e desejamos – que
dentro em pouco a nossa tese sobre “Borrador de huma arte poética
que se intentava escrever” de D. António de Ataíde fique concluída.
De qualquer forma este trabalho ou essoutro de maior fôlego são
apenas o início das nossas observâncias já vastas sobre uma ‘Poética’
em Língua Portuguesa. A qualidade e a erudição de D. António de
Ataíde apresentam-se-nos excepcionais.
Olvidá-lo para sempre seria o mesmo que praticar um agravo
contra a cultura portuguesa, ibérica, latina e universal.
26 Deverá ser efectuado um estudo comparativo entre a ‘Poética’ de Ataíde e outras
obras coevas da mesma índole, bem como a influência que esses pensamentos e
opiniões apresentaram na sua contemporaneidade e na teoria literária posterior.
Adriano Milho Cordeiro. “Observâncias sobre uma ‘Arte Poética’ de António de Ataíde”.
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