A “Questão da Terra” na Irlanda: uma ilustração da importância da
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A “Questão da Terra” na Irlanda: uma ilustração da importância da
A “Questão da Terra” na Irlanda: uma ilustração da importância da história no pensamento de J.S.Mill Laura Valladão de Mattos Departamento de Economia da FEA-USP Resumo: O artigo tem como objetivo enfatizar a importância que a história assume nas reflexões econômicas de J.S.Mill. Com o objetivo de ilustrar essa dimensão do seu pensamento, é analisada a sua posição no debate que se travou no século XIX sobre qual deveria ser a forma de apropriação da terra na Irlanda – um país com características culturais, econômicas e sociais muito diferentes daquelas existentes na Inglaterra. Argumenta-se que J.S.Mill posiciona-se contra a tendência dos economistas da época de transporem para o país vizinho leis e instituições que foram bem sucedidas na Inglaterra, sem atentar para as especificidades locais. Argumenta-se, ainda, que a defesa que faz da pequena propriedade camponesas vis-à-vis a adoção do modelo inglês de cultivo capitalista da terra está fundamentada na visão de que esta instituição seria mais compatível com as particularidades históricas da Irlanda e que seria, portanto, mais adequada para resolver os graves problemas econômicos, sociais e políticos existentes no país. Palavras-chave: J.S.Mill, Irlanda, propriedade da terra, instituições, história. Abstract: This paper aims at emphasizing the relevance of history in J.S.Mill’s economic thought. The opinions he expressed in the debate over the ‘land question’ in Ireland – a country with economic, social e cultural characteristics very different from those prevailing in England – are analyzed as a means to illustrate the historical dimension of his work. It is argued that he criticizes the prevalent tendency of the contemporary political economists to transpose the laws and institutions that were successful in England to Ireland, without attending to Irish particularities. It is also argued that Mill’s defense of small peasant property against the establishment of the ‘English model’ of capitalist culture, was based on the view that this institution was more compatible with the historical specificities of Ireland and, for that reason, more adequate to solve her serious economic, social and political problems. Key-words: J.S.Mill, Ireland, land property, institutions, history. Código JEL– B12 1 A “Questão da Terra” na Irlanda: uma ilustração da importância da história no pensamento de J.S.Mill I. Introdução: Um dos aspectos mais conhecidos e discutidos das contribuições de J.S.Mill entre os economistas é a sua defesa de uma metodologia dedutiva e abstrata para a ciência da Economia Política (MILL,[1836], 1967). Aquele que não conhece mais nada da obra do autor, fica com a impressão de que ele ignora a importância dos fatores históricos e culturais em seus trabalhos sobre economia. No artigo visa-se argumentar, ao contrário, que as reflexões econômicas de Mill envolvem uma dimensão histórica importante, nem sempre devidamente enfatizada pela literatura. Essa dimensão do pensamento do autor se revela de forma clara no debate que se travou ao longo do século XIX sobre qual deveria ser a forma de apropriação da terra na Irlanda. Nessa discussão, Mill faz uma veemente defesa da substituição do sistema existente de Cottier pela pequena propriedade camponesa (ou por contratos nos quais a renda fosse fixa e a permanência no solo garantida) – se contrapondo aos que propunham implantar naquele país um sistema de cultivo similar ao existente na Inglaterra.1 Argumenta-se no artigo que o fato de a Irlanda ser um país com características econômicas, institucionais e culturais muito diferentes daquelas observadas na Inglaterra fez com que Mill questionasse a tendência prevalecente entre os economistas da época de tomar as instituições inglesas como modelo para a intervenção outras localidades. O caso da Irlanda forneceria, no seu entender, um bom exemplo da falácia desse tipo de procedimento. A adoção nesse país da forma de propriedade da terra típica da Inglaterra – que envolvia grandes proprietários de terras com poder absoluto para decidir como dispor delas – teria engendrado consequências devastadoras no contexto irlandês, por ser inadequada ao nível de desenvolvimento social e econômico observado no país, e por ser incompatível com a herança histórica e com as tradições irlandesas. Argumenta-se ainda que o autor fundamenta a sua defesa da pequena propriedade em uma análise cuidadosa das peculiaridades culturais, econômicas, sociais e políticas da Irlanda. Dados o nível de desenvolvimento moral e intelectual da população e as características econômicas e políticas vigentes, ele conclui que a introdução dessa instituição seria o melhor caminho para resolver os problemas prevalecentes, por ser mais adequada do que as alternativas ao contexto e às necessidades do país. O artigo será estruturado da seguinte forma: Na seção II será apresentado um panorama geral sobre qual seria a ‘questão da terra’ na Irlanda e sobre a posição predominante entre os economistas políticos no que concerne a esse problema. Na seção 1 J.S.Mill foi um dos protagonistas do debate sobre a questão da terra na Irlanda, tendo discutido o problema longo de mais de duas décadas. Ele entra no debate em meados da década de 1840 devido à calamidade da fome na Irlanda e escreve 43 artigos no Morning Chronicle defendendo mudanças significativas na ocupação das terras do país. Os argumentos apresentados nesses artigos foram em parte incorporados aos Princípios de Economia Política, onde apresenta uma extensa discussão sobre as bases de defesa da propriedade do solo e sobre as diferentes formas existentes de propriedade da terra. No final da década de 1860 se elege parlamentar e, nessa função, tenta influenciar diretamente as políticas da Inglaterra em relação à Irlanda - sempre ressaltando a necessidade de se modificar as leis de apropriação da terra do país. Em 1868 publica o importante artigo England and Ireland, no qual defendeu ideias bem radicais para a época. Já no início da década de 1870, ainda mobilizado em relação a esse tema, ele escreve uma resenha favorável sobre o livro do economista historicista irlandês Cliffe Leslie sobre a questão da terra – texto no qual revela posições metodológicas bastante interessantes sobre a aplicação da economia política a contextos diferentes do inglês. 2 III exporemos as premissas de Mill ao entrar no debate. Na seção IV analisaremos os argumentos utilizados pelo autor na sua defesa da adoção da pequena propriedade camponesa como substituta do Cottier – enfatizando os impactos positivos que a introdução dessa forma de apropriação da terra teria no contexto específico da Irlanda. E, por fim, na seção V apresentaremos algumas considerações finais sobre o papel das variáveis históricas no pensamento de Mill. II. A forma típica de ocupação da terra na Irlanda e os termos do debate sobre a ‘Questão da terra’ II.1. O sistema de Cottier: Segundo Collinson Black (1968:323), o sistema de ocupação de terras vigente na Irlanda antes do domínio inglês era em grande medida fundado em status definido por meio de costumes. Os ingleses teriam tentado substituir esse sistema informal por um sistema de leis parecidas com o de seu país, julgando que os mesmos resultados decorreriam. No entanto, não foi isso que se observou: […] by the beginning of the nineteenth century Irish land law, outside Ulster at least, was ostensibly the same as English although recollection among the people of an older and different system had by no means disappeared. Whatever the ostensible similarities, by the end of the Napoleonic Wars subdivision, subletting, tenancy-at-will, and absentee landlords had produced a situation in Ireland which was patently different from that in England […].(COLLISON BLACK, 1968: 323).2 A região de Ulster constituía uma exceção, pois nela a renda da terra continuou a ser regulada pelo costume, de forma que não era socialmente aceitável que os donos das terras as elevassem. Assim, os interesses dos agricultores rurais dessa região foram preservados – mesmo que não garantidos pela lei (MILL, [1871], 1965: 316). No entanto, no resto do país passou a vigorar o que ficou conhecido como o sistema de cottier – e essa era forma típica de apropriação da terra na Irlanda quando Mill entrou no debate sobre a terra em meados da década de 1840. Nesse sistema, o contrato de arrendamento era firmado diretamente entre o proprietário da terra e o agricultor, e o valor da renda era totalmente determinado pela concorrência pela terra – sem a influência moderadora da lei ou dos costumes (MILL [1871], 1965: 313). E o resultado do funcionamento dessa forma de apropriação da terra no contexto específico da Irlanda foi, no entender de Mill, desastroso em termos econômicos, sociais e políticos. Ele descreve em termos dramáticos as condições dos pequenos arrendatários das terras, que viviam à mercê dos proprietários, sem a menor garantia de permanência na terra: In Ireland alone the whole agricultural population can be evicted by mere will of the landlord, either at the expiration of a lease, or, in the far commoner case of their having no lease, at six months’ notice […] while the sole outlet for the dispossessed cultivators, or for those whose competition raises the rents against the cultivators, is expatriation. So long as they remain in the country of their birth, their support must be drawn from a source for the permanence of which 2 Tenancy-at-will descreve uma situação na qual não há contrato formal de arrendamento – o que permite ao proprietário requisitar a qualquer momento a terra. 3 they have no guarantee […] (MILL, [1868], 1982:515). Apesar de ter direito à propriedade absoluta das terras, a maior parte da classe proprietária Irlandesa (diferentemente da inglesa) era ausente e não efetuava melhoramentos no solo. Com raras exceções, o seu interesse era apenas drenar o máximo possível do solo (MILL, 1871, 1965: 229/30).3 Por outro lado, como inexistiam garantias de permanência na terra, também os arrendatários não tinham qualquer incentivo em aplicar seus recursos ao melhoramento da terra, uma vez que isso provavelmente se reverteria em uma elevação da renda no futuro, quando essas melhorias rendessem os seus frutos (MILL, 1871, 1965:315) – o que fazia com que a terra fosse sistematicamente cultivada com quantidade insuficiente de capital. Além disso, como indicam Collison Black (1953:28) e Sullivan (1983:616), essa forma de apropriação da terra, no contexto irlandês de forte aumento da população e de ausência de outras formas de ocupação econômica, teria levado a uma competição feroz pelas terras existentes, a uma subdivisão excessiva das propriedades e à cobrança de rendas exorbitantes totalmente incompatíveis com a produtividade da terra. Nessas circunstâncias, tudo além do mínimo necessário para a subsistência do agricultor e sua família acabava por ser transferido para o proprietário da terra na forma de pagamento de renda.4 Sob a égide dessa instituição, criou-se, então, uma situação na qual o arrendatário cottier não tinha qualquer estímulo a se esforçar no trabalho: If he were industrious or prudent, nobody but his landlord would gain; if he is lazy or intemperate, it is at his landlord’s expense. A situation more devoid of motives to either labour or self-command, imagination itself cannot conceive. (MILL, [1871], 1965: 318/9). Dadas essas circunstâncias, seria surpreendente se os agricultores não fossem improdutivos e displicentes no cultivo da terra – e era de fato o que se observava. No entanto, Mill rejeita a ideia, corrente na época, de que a situação calamitosa do país era se devida a características inatas (raciais) dos irlandeses – que seriam, por natureza, preguiçosos, indisciplinados, displicentes, irresponsáveis e ineficientes. A esse respeito ele afirma: Of all vulgar modes of escaping from the consideration of the effect of social and moral influences on the human mind, the most vulgar is that of attributing the diversities of conduct and character to inherent natural differences […] No labourers work harder, in England or America, than the Irish; but not under the cottier system.” (MILL, 1871, 1965:319). 3 No 4º ensaio da série “The Condition of Ireland” no Morning Chronicle, Mill compara a atitude dos proprietarios de terra Ingleses (que Mill certamente não tem em alto apreço) e Irlandeses: “[...] even the landlord in England gives for the rent some equivalent to the farmer – he gives the land, enriched by former expenditure of capital – the landlord's own, or that of previous farmers. But what does the Irish landlord give? […] as a general fact, the Irish landlord gives no equivalent for his rent; he takes and appropriates it, not because he has done anything for the land, but because his ancestor seized it […]. The right of the Irish landlord to his rent is only that of prescription[...]”(MILL [1846/1847], 1986: 892) 4 Para Mill, essa seria a consequência a ser esperada quando a renda é determinada pela competição em um país com população excessiva: “[...] rent, being regulated by competition, depends upon the relation between the demand for land and the supply for it. The demand for land depends on the number of competitors, and the competitors are the whole rural population […] unless something checks that increase [of population], the competition for land soon forces up rent to the highest point consistent with keeping the population alive.” (MILL, [1871], 1965: 314). 4 Para ele, na raiz do problema estava a vigência de uma forma de apropriação da terra totalmente inadequada à realidade econômica e social da Irlanda. Ele até admite que o sistema de Cottier, se adotado por uma população moralmente desenvolvida e capaz de refrear os seus instintos de reprodução, poderia engendrar (teoricamente) bons resultados. No entanto, em uma condição de atraso similar à da Irlanda, a sua existência seria “[...] um obstáculo quase insuperável para sair dela” (MILL, 1871, 1965: 317). Essa forma extremamente improdutiva de cultivo – seja pela ausência de incentivo a investir, seja pela falta de empenho em trabalhar – acoplado a quebras de safras teria engendrado a dramática situação da fome (famine) irlandesa na década de 1840. A dimensão dessa enorme calamidade social não deve ser subestimada. Na descrição de Steele: […] hundreds of thousands of the rural population died of starvation and concomitant disease; or were forced to seek survival in flight; or if they stayed, were kept alive by generous help from outside. (STEELE, 1970: 221). Foi devido a essa catástrofe que o debate sobre a questão da terra na Irlanda entrou na ordem do dia, e foi por conta dela que Mill se engajou nessa discussão em meados da década de 1840.5 II.2. Os termos do debate sobre a ‘questão da terra’ na Irlanda Como indica Winch (2013:4), o debate sobre a questão da ocupação da terra na Irlanda esteve no centro das relações entre Inglaterra e esse país desde a época da grande fome de 1845/6 até a implementação dos Irish Land Acts em 1870 e 1881. Todavia, mesmo antes desse episódio dramático havia a percepção de que existia um problema sério na agricultura do país, e que medidas deveriam ser tomadas para modificar a situação.6 No entanto, é importante notar, era de entendimento geral (pelo menos na Inglaterra) que qualquer solução precisaria respeitar os direitos dos donos de terra. A propriedade da terra, tal como qualquer outra propriedade, era vista como inviolável. Como afirma Platteau, “[...] o princípio de propriedade privada absoluta da terra era um postulado básico que a maior parte da tradição clássica aceitava.” (PLATTEAU, 1983: 438). Collison Black vai mais longe ao afirmar: The fact is that most economists down to the time of John Stuart Mill accepted as one of the basic postulates of their theory not only private property in land but also a landlord system […] (COLLISON BLACK, 1953:33). Essa concepção generalizada limitava o campo aceitável de reformas, uma vez que excluía não somente a expropriação pura e simples dos proprietários ou a instauração da pequena propriedade camponesa, mas também soluções que envolvessem 5 Ele descreve na Autobiografia que dada a gravidade da situação, decidiu deixar de lado por um tempo a confecção dos Princípios para se dedicar à discussão sobre a Irlanda: “This was during the winter of 1846/47, the period of the famine, when the stern necessities of the time seemed to afford a chance of attracting attention to what appeared to me the only mode of combining relief to the immediate destitution with a permanent improvement of the social and economical condition of the Irish people.” (MILL, [1873], 1981: 242). Datam dessa época os artigos no Morning Chronicle. 6 Como mostra Collison Black, já no início do século XIX a visão passou a ser de que alguns defeitos precisariam ser corrigidos, no entanto considerava-se que não havia necessidade de adoção de reformas radicais. Ele cita entre as medidas que foram tomadas nesse sentido o Sub-letting Act de 1826 – que visava substituir o conjunto de pequenos arrendatários, originados pelo processo de sublocação, por fazendeiros capitalistas que empregariam trabalhadores assalariados (COLLISON BLACK, 1968:323) 5 contratos com renda fixa, contratos em perpetuidade ou outros arranjos que fornecessem garantias aos arrendatários contra o interesse dos proprietários de elevarem a renda ou de rescindirem o contrato de forma a alugar a terra em termos mais favoráveis a outros agricultores.7 No entanto, a resistência a qualquer violação dos princípios (sagrados) da propriedade privada da terra não era a única razão para explicar a rejeição dos economistas da época à pequena propriedade camponesa ou à contratos em que a renda era fixa. O diagnóstico desses economistas era o de que, dada a sublocação generalizada, as terras arrendadas teriam se tornado pequenas demais para um cultivo eficiente, além de existir um problema crônico de insuficiência de capital. Julgava-se, portanto, necessário aumentar o tamanho das fazendas e capitalizar a agricultura, o que fazia com que se opusessem à pequena propriedade camponesa. Eles defendiam, assim, replicar na Irlanda o modelo inglês, que envolvia grandes proprietários que arrendariam extensas faixas de terra a empresários capitalistas, que as cultivariam com base em mão de obra assalariada. A introdução dessa forma de ocupação do solo supostamente teria várias vantagens: resolveria o problema do tamanho diminuto das fazendas, capitalizaria o campo e, acima de tudo, não violaria qualquer direito dos proprietários da terra. Como bem resume Koot (1975): Between 1815 and 1870 the orthodox solution offered by most English economists to the problems of Ireland was to impose the English agricultural system upon Ireland, through the consolidation of landholdings and the application of capital to the land. (KOOT, 1975: 320).8 Essa consolidação das fazendas envolveria a expulsão de muitos pequenos arrendatários cottiers, uma vez que não seria possível reempregar todos os agricultores como trabalhadores assalariados. Todavia, os defensores dessa saída argumentavam que “[...] aqueles que não fossem reempregados deveriam contar com ajuda para emigrar, e assistência à pobreza deveria ser dada a eles nesse ínterim.”(COLLISON BLACK, 1953:33). Veremos que Mill apresenta nesse debate outras premissas. Ele rejeita a ideia de inviolabilidade da propriedade da terra, questiona a pretensão de transpor as leis e formas institucionais inglesas para o contexto (muito diferente) da Irlanda, e combate o preconceito dos economistas contra o pequeno cultivo. E, com isso, dada a sua autoridade no campo da Economia Política, adiciona novos elementos e muda os termos do debate. 7 No 34º artigo da série “The Condition of Ireland” que Mill escreve no Morning Chronicles, ele afirma que a questão da propriedade da terra era algo como uma superstição entre os ingleses: “[…] the idea of property, especially landed property, calls up associations in many minds which partake of the solemnity of a religious feeling, and quite come up to the most superstitious forms of religion in the incapacity of reasoning which they generate. (MILL, [1846- 1847], 1986: 1003). No 42o artigo da mesma série ele afirma: “Can we be surprised that men should be found who passionately reject and denounce the principle of property, when we see into what a base superstition the worship of it has grown--how it deadens men's minds to the ends for which property exists, erecting property itself into an end--and how intellects fit for better things areheld in bondage by the mere name, though the idea which it ought to represent be absent! (idem: 1031). Ele afirma que a propriedade se tornou “ 8 Na mesma linha Collison Black afirma: “[…] those economists had tended to think that the solution of the question lay in the assimilation of Irish institutions to the English model”(COLLISON BLACK, 1953:36). 6 III. As premissas de J.S.Mill: as críticas à propriedade absoluta da terra e à ideia de transpor o ‘sistema inglês’ para a Irlanda III.1. A função social da terra A posição de Mill em relação à propriedade, e em especial à propriedade da terra, diferia daquela da maior parte dos economistas ingleses de sua época que, como vimos, partiam do princípio de que esta seria inviolável. Ele estava bastante disposto a por em questão os direitos de propriedade vigentes – e não só os relativos à terra –, pois acreditava que as leis que versavam sobre esse assunto nem sempre eram compatíveis com os princípios que fundamentam a propriedade privada (MILL, [1871], 1965: 207). Esse seria o caso das leis que tornaram o próprio homem objeto de propriedade, das leis de herança e, caso que nos interessa aqui, das leis que asseguravam propriedade absoluta do solo. Para o autor, o argumento de garantir às pessoas a propriedade daquilo que elas produziram por meio de seu trabalho, ou acumularam por meio de sua abstinência não poderia ser aplicado ao caso da terra (MILL, [1871], 1965: 227). Nos Princípios, Mill faz questão de diferenciar a propriedade da terra de outros tipos de propriedade: When the ‘sacredness of property’ is talked of, it should always be remembered, that any such sacredness does not belong in the same degree to landed property. No man made land. It is the original inheritance of the whole species. Its appropriation is wholly a question of general expediency (MILL, [1871], 1965: 230). Assim, no entender do autor, seria errôneo permitir a propriedade privada desse bem que pertencia à coletividade de forma independente das consequências que esse arranjo para a sociedade.9 No entanto, apesar de se posicionar contra a propriedade absoluta da terra, Mill considerava defensável a sua propriedade qualificada, pois mesmo a terra não sendo produto do esforço de ninguém, “[...] a maior parte das suas qualidades valiosas o é” (MILL, [1871], 1965: 227). O capital e o trabalho aplicados à terra a tornariam muito mais produtiva – o que certamente interessaria à sociedade uma vez que aumentaria a disponibilidade de alimentos e matérias primas. Todavia, como melhoramentos na terra levam tempo para renderem resultados, ninguém os empreenderia caso não houvesse garantias de que poderia desfrutar deles por um longo período de tempo – garantias fornecidas pela propriedade da terra. Desta forma, existiriam razões econômicas que justificariam a atribuição da propriedade do solo a alguns indivíduos, no entanto, essa propriedade deveria ser condicionada ao melhoramento da terra.10E quando esse não é o caso, esta deixa de ter legitimidade: Whenever, in any country, the proprietor [...] ceases to be the improver, political economy has nothing to say in defence of landed property, as there established. (MILL, [1871], 1965: 228). 9 A crítica à ideia de propriedade absoluta da terra aparece em vários textos. Entre eles podemos citar: Mill [1846-1847], 1986, Mill [1871], 1965; Mill [1870] 1967; Mill [1868], 1982. E em todos o autor se refere à Irlanda como um exemplo emblemático do mau uso da propriedade privada da terra. 10 E, nesse caso não haveria uma mão invisível ‘amarrando’ o interesse individual ao coletivo. Como o caso da Irlanda ilustrava de forma muito clara “[...] o autointeresse dos donos de terra está longe de ser garantia suficiente de que a terra será aproveitada de forma adequada” (MILL, [1870], 1967: 673) 7 Em resposta àqueles que apelavam para a Economia Política para sustentar a posição de que direito à propriedade do solo seria inviolável, ele afirma: “O poder absoluto dos donos de terra sobre o solo é o que a economia política verdadeiramente condena.” (MILL, [1870], 1967:674/5). E completa dizendo que ‘[n]enhuma teoria razoável de propriedade privada jamais defendeu que o proprietário da terra deveria ser apenas um sinecurista alojado sobre ela [sinecurist quartered on it]” (MILL, [1871], 1965: 228). Para Mill, a sociedade poderia, sem incorrer em injustiças, variar a forma de propriedade, até mesmo expropriar os atuais proprietários caso julgasse desejável.11 Os proprietários teriam, no caso de a sociedade requerer as suas terras, o direito a uma indenização adequada, mas não a manter as terras (MILL, [1871], 1965: 230). Respeitadas essa condição, nenhum direito de propriedade seria violado. E, como diferentes sociedades teriam hábitos, necessidades, e níveis de desenvolvimento moral, intelectual e econômico diversos, a forma de propriedade que levaria ao melhor aproveitamento dos recursos naturais poderia também diferir. Mill rejeita, assim, o que ele considera denomina de “[…] noção arrogante de melhoramento agrícola como necessariamente igual em qualquer diversidade de circunstâncias” (MILL, [1871], 1965: 768) e defende diferentes tipos de ocupação da terra para diferentes sociedades. Foi com essas premissas em mente que Mill entrou no debate sobre a forma de apropriação da terra na Irlanda. Para ele, esse país seria um exemplo emblemático de propriedade injusta e ilegítima da terra, uma vez que, com poucas exceções, ela não estava cumprindo a sua função social. Como vimos, os seus proprietários em geral eram ausentes, não investiam no melhoramento da terra, e nem tampouco davam condições para que os arrendatários o fizessem – o que resultava em um cultivo extremamente improdutivo. Na Irlanda, na avaliação de Mill, “[…] o maior ‘fardo da terra’ é o dono de terra” (MILL, [1871], 1965: 229). Diante dessa situação, não é de se espantar que ele tenha defendido mudanças drásticas na sua forma de propriedade: When landed property has placed itself upon this footing, ceases to be defensible, and the time has come for making some new arrangements of the matter (MILL, [1871], 1965: 230). No entanto, não foi somente nesse aspecto que Mill discordava da opinião prevalecente na época entre os políticos e os economistas. Ele rejeita também a ideia de que seria adequado usar as instituições inglesas como modelo para a intervenção na Irlanda – questão que será discutida a seguir. III.2. A inadequação de aplicar as leis e instituições inglesas à Irlanda A resistência dos ingleses em aceitarem qualquer solução que alterasse as relações de propriedade da terra decorreria, segundo Mill, de uma a tendência de considerar instituições típicas da Inglaterra, tais como a como a propriedade absoluta da terra, a liberdade de contratos e o livre comércio, como universalmente válidas e benéficas, independentemente das circunstâncias específicas da sociedade em questão. Mill descreve a atitude geral dos seus compatriotas no que concerne às leis de propriedade da terra como sendo a de achar que “[o] que não é ruim para a nós, deve 11 Ele afirma:“[...] the tenure of land might be varied in any manner considered desirable, all the land might be declared the property of the State, without interfering with the right of property in anything which is the product of human labour and abstinence [...].(MILL, [1879], 1967:736). 8 ser bom o suficiente para a Irlanda.” (MILL [1868], 1982:511).12 E ele criticou duramente o dogmatismo dessa posição e a falta de sensibilidade às diferenças existentes entre as duas sociedades por parte de seus defensores. A esse respeito ele afirma: The founders of Political Economy have left two sorts of disciples: those who have inherited their methods, and those who have stopped short at their phrases[…]The former follow the example of their teachers in endeavoring to discern what principles are applicable to a particular case, by analyzing its circumstances; the latter believe themselves to be provided with a set of catch words, which they mistake for principles – free trade, freedom of contract, competition, demand and supply, the wage funds, individual interest, desire of wealth, &c. – which supersede analysis, and are applicable 13 to every variety of cases, without the trouble of thought.” (MILL, [1870], 1967:670). Assim, a crítica que Mill apresenta à ideia de transpor as instituições inglesas para Irlanda é em grande medida metodológica. O que ele questiona é a possibilidade de aplicar sem mediações os princípios desenvolvidos para a Inglaterra a um país com cultura, tradições e níveis de desenvolvimento significativamente distintos. O que era bom para a Inglaterra não necessariamente seria bom para a Irlanda. Muito pelo contrário, ele considerava que o fracasso (retumbante) dos ingleses nesse país teria relação justamente com esse hábito de tentar adotar as suas instituições e políticas, sem atentar minimamente para as dessemelhanças culturais existentes. No seu entender, seria errôneo esperar que resultados idênticos resultassem da implantação instituições iguais em circunstâncias históricas diferentes. Assim, no caso específico da terra, seria necessário avaliar se a organização social, as características econômicas e os hábitos e sentimentos da população seriam suficientemente próximos daqueles existentes na Inglaterra para justificar a crença de que estas – em especial a propriedade privada absoluta da terra por parte de grandes proprietários – poderiam funcionar bem na Irlanda (MILL, [1868], 1982: 514). E ele concluiu que não eram. No quesito econômico, ele ressalta que os dois países diferiam enormemente. Na Inglaterra nem um terço da população subsistia da agricultura, na Irlanda, por sua vez, quase totalidade da população era agrícola. No que concerne à forma de arrendamento do solo, as diferenças também eram enormes. No caso da Inglaterra a terra era cultivada por empresários capitalistas, e na Irlanda por trabalhadores manuais ou pequenos agricultores. Na verdade, a única semelhança importante seria o fato de suas terras serem de propriedade de um pequeno número de famílias que detinham extensas faixas de terra (MILL, [1868], 1982: 514/515). E, segundo o autor, essas disparidades econômicas faziam toda a diferença em termos do funcionamento dessa forma de apropriação da terra e dos seus impactos econômicos e sociais. Na Inglaterra os arrendatários capitalistas eram capazes de cuidar de seus interesses, e podiam se deslocar para outras atividades no caso de o proprietário exagerar nas suas demandas. Na Irlanda, ao contrário, não havia alternativas para o agricultor ou trabalhador manual a não ser se submeter às condições exigidas: The capitalist has not to choose between the possession of a farm or destitution; 12 Mill caracteriza a postura (equivocada) dos ingleses em relação à Irlanda nos seguintes termos: “We [England] had got a set of institutions of our own, which we thought suited us […] we, or our ruling class, thought, that there could be no boon to any country equal to that of imparting these institutions to her […] Ireland, is seemed, could have nothing more to desire.” (MILL [1868], 1982:511). 13 Sobre esse segundo tipo de economista ele afirma: “[…] [they] share a common infirmity of liking to get their thinking done once and for all, and be saved all further trouble except that of referring to a formula.”(MILL, [1870], 1967:670). 9 the labourer has. This element subverts the whole basis on which the letting of farms, as a business transaction, and the foundation of a national economy, requires to rest. The capitalist will beware of offering a rent that will leave him no profit; the peasant farmer will promise any amount of rent, whether he can pay it or not. (MILL, [1868], 1982:515/6) Além disso, a própria organização da sociedade inglesa – que contava com uma opinião pública poderosa – restringia a capacidade do proprietário de terra de impor o seu autointeresse quando este conflitava com o do restante da sociedade (MILL, 1868, 1982: 517). Na Irlanda, por sua vez não existiam tais elementos moderadores e, como vimos, o agricultor ficava absolutamente a mercê das arbitrariedades dos proprietários (idem: 516)– redundando em uma situação intolerável (MILL, 1868, 1982: 517). 14 Outra diferença significativa ressaltada por Mill dizia respeito às tradições e sentimentos dos dois povos. Os ingleses, por conta de seu passado feudal e de suas tradições viam o fato de a terra caber a poucas famílias de grandes proprietários como algo natural.15 No entanto, a ideia de a terra pertencer a pessoas que não a cultivavam ofendia as tradições, a cultura e o sentimento de justiça irlandês16: Before the Conquest, the Irish people knew nothing of absolute property in land. The land virtually belonged to the entire sept […]The feudal idea, which views all rights as emanating from a head landlord, came in with the conquest, was associated with foreign domination, and never to this day been recognised by the moral sentiments of the people. […] In the moral feelings of the Irish people, the right to hold the land goes, as it did in the beginning, with the right to till it. (MILL, [1868], 1982:513).17 Mill chama a atenção igualmente para as diferenças no que concerne ao caráter dos dois povos. Eles seriam, no entender do autor, quase opostos nos seus predicados. Não havia nada mais distante da indolência, emotividade e indisciplina típicas dos trabalhadores irlandeses da época do que o caráter predominante na população inglesa – 14 Nos dois casos a lei que garante a propriedade absoluta da terra dá um poder enorme aos donos de terra, mas em um caso (Irlanda) esse poder é utilizado ao seu limite e no outro (Inglaterra) não. Nesse sentido, Mill afirma: “What signifies it that the law is the same, if opinion and the social circumstances of the country are better than the law, and prevent the oppression which the law permits? It is bad that one can be robbed in due course of law, but it is greatly worse when one actually is.”(MILL, 1868, 1982:517). 15 Mill faz referência ao Henry Maine quando discute a noção de propriedade privada da terra para argumentar que esta não era universalmente aceita e que, mesmo na Inglaterra, essa noção só teria sido adquirida há relativamente pouco tempo. Para Mill, o autor mostrou que: “[...] the idea of landed property as commonly conceived in England, is both modern as to time and partial as to place” (MILL, [1871], 1990: 216). 16 Por conta do fato de Mill apelar para argumentos ligados à tradição e aos costumes – que foram retirados do seu contato com historicistas como Maine e Leslie – na discussão da propriedade privada da terra, Lipkes diz que ele acaba por lançar mão argumentos totalmente estranhos à visão ricardiana que fundamentava a sua teoria econômica: “[...] he goes on to consider the conditions on which private property in land depended: these are cultural, ‘rooted in the traditions in the oldest recollections of the people.” (LIPKES, 1999, 60). 17 No 8º ensaio sobre “The Condition of Ireland” no Morning Chronicles, Mill já ressalta essa questão de que a ideia de propriedade privada da terra por parte de um grande e ausente dono não tem fundamento nos sentimentos dos irlandeses e alerta para a possibilidade de conflitos maiores se nada for feito: “Unless those who have influence in Parliament and in the public can find another remedy [diferente de fixity of tenure] , and apply it too, they will not long persuade an uneducated peasantry, who have never yet seen a friend in the law, to respect the proprietary rights which the law gives, when those rights have no sanction in their own feelings; and the choice may soon lie between a real confiscation and a second Cromwellian conquest.” (MILL, [1846-1847], 1986: 906). 10 que teria uma persistente tenacidade no trabalho: Other nations will work as hard, but it must be for a strong motive: in England the work itself might almost seem to be the motive. We are not sure that it would be doing the Irish a service to make them Englishmen; but we are sure that they are not Englishmen, and cannot, by any device of ours, be made so. (MILL, [1846-1847], 1986: 916) Dadas todas essas diferenças sociais, econômicas, históricas e culturais, Mill considerava extremamente inadequado utilizar a experiência e instituições inglesas como modelo para a Irlanda. No contexto totalmente diverso do país vizinho, seria de se esperar que as instituições que funcionavam relativamente bem no país de origem gerassem (como estavam gerando) consequências calamitosas para a sociedade: 18 [...] There is no other civilized nation which is so far apart from Ireland in the character of its history, or so unlike it in the whole constitution of its social economy [than England]; and none, therefore, which if it applies to Ireland the modes of thinking and maxims of government which have grown up within itself, is so certain to go wrong.”(MILL, [1868],1982: 511). Os ingleses teriam errado, portanto, ao imporem as suas leis de propriedade aos irlandeses – erro que teria resultado no (perverso) sistema de cottier. E erravam novamente, segundo Mill, ao propor a substituição desse sistema pelo o cultivo capitalista em larga escala, típico do sistema inglês, ao invés de aceitarem saídas – como a pequena propriedade camponesa – mais compatíveis com a realidade irlandesa.19 Mill não nega que a implantação em larga escala do sistema inglês de cultivo aumentaria a produtividade da agricultura irlandesa, mas engendraria outro problema importante ao expulsar da terra um enorme contingente de pequenos agricultores, que não encontraria emprego nem nas fazendas capitalistas, nem em qualquer outro setor da economia. Isso representaria um custo social alto demais: The introduction of English farming is another word for the clearing system. It must begin by ejecting the peasantry of a tract of country from the land they occupy, and handing it over en bloc to a capitalist-farmer. The number of those whom he would require to retain as labourers would be far short of the number he displaced […] Ireland has little besides agricultural labour, and the displaced cottiers are capable of no other. (MILL, [1846-1847], 1986: 894) E se coloca sem qualquer ambiguidade contra essa situação: 18 Em outro texto, Mill dá a entender que vários problemas resultaram dessa postura de transpor indevidamente à Irlanda instituições incompatíveis com a sua história: “The Irish land difficulty having shown, by painful experience, that there is at least one nation […] which cannot and will not bear to have its agricultural economy ruled by the universal maxims which some of our political economists challenge all mankind do disobey at their peril; it has begun to dawn upon an increasing number of understandings that some of these universal maxims are perhaps not universal at all, but merely English customs.” (MILL, [1870], 1967:671). 19 Sobre a relutância de os ingleses em aceitarem alterativas não usuais no país Mill afirma: “Unhappily there is an obstacle to good, almost as strong and far more universal than selfishness – the spirit of routine […]. Men are not easily induced to submit to be cured, and still less to cure others, by remedies which are not upon their list. It is thus with the remedy for Ireland. A peasant proprietary, as a cure for popular indigence, has not the honour of being in the Pharmacopoeia Londinensis (.(MILL, [1846-1847], 1986: 949/50). 11 We shall here state at once our opinion, in plain terms, respecting this clearing system, by which a population, which has for generations lived and multiplied on the land, is, on the plea of legal rights, suddenly turned adrift without a provision, to find a living – where there is no living to be found. It is a thing which no pretence of private right or public utility ought to induce society to 20 tolerate for a moment. (MILL, [1846-1847], 1986: 894). Além de injusta, Mill entendia que essa solução não levaria à necessária regeneração moral da população irlandesa. Os impactos, mesmo sobre aqueles que conseguissem manter-se nas terras, não seriam muito positivos e certamente seriam insuficientes para resgatar a população irlandesa da letargia e indolência, improvidência e falta de iniciativa que a caracterizava na época. Para ele, “[o] status de trabalhador assalariado [day-labourer] não possui a mágica de infundir previdência, frugalidade ou autocontrole em um povo que é não tem esses traços […]” (MILL, [1871], 1965: 327).21 Assim, Mill acreditava que essa não era a melhor maneira de fazer a Irlanda progredir, e representaria mais uma tentativa de transpor um modelo que funcionou na Inglaterra para um contexto social, cultural e econômico muito diferente. Para ele, a solução para o problema irlandês teria que ser pensada tendo em vista o contexto histórico específico vigente no país na época. E, para esse contexto, a formação de uma classe de pequenos proprietários de terra lhe parecia bem mais adequada. IV. As propostas de Mill para a Irlanda: a defesa da pequena propriedade camponesa. Mill apresenta as suas primeiras propostas para a Irlanda nos 43 artigos que escreve no Morning Chronicle entre 5 de outubro de 1846 e 7 de janeiro de 1847. Ele tinha um duplo objetivo nesses artigos. O primeiro era o de defender a utilização das Waste Lands – pântanos e outras terras improdutivas que poderiam ser preparadas para o cultivo por meio de grandes investimentos – para assentar pequenos proprietários camponeses.22E o segundo era o de combater as outras propostas que eram apresentadas (ou estavam sendo implantadas) na época para resolver o problema premente da fome na Irlanda.23 20 Sobre esse assunto Zastoupil afirma: “Mill criticized the scheme for introducing into Ireland the British farming system of landlords, capitalists farmers ,and hired workers, mostly for the wholesale expropriation of the tenants which such would require. The costs to Ireland were simply too great.” (ZASTOUPIL, 1983: 708). 21 Ele afirma algo semelhante no 11º ensaio sobre “The Condition of Ireland” a respeito da ideia de implantar o sistema capitalista na Irlanda: “What is there in this change of condition to regenerate their character? What is there to make their slack labour vigorous, to convert their listlessness into activity, their careless self-indulgence into forethought and prudence? Nowhere have such a virtue been found to reside in labour for hire […] as the permanent condition of the whole laboring class” (MILL, [18461847], 1986: 916). 22 No “The Condition of Ireland” [22], Mill apresenta uma estimativa de que as terras recuperáveis para o cultivo somariam por volta de um milhão e meio de acres (MILL, [1846-1847], 1986: 963). 23 Uma proposta que ele combate com especial energia é a que estava sendo adotada de dar auxílio aos pobres na forma de emprego em obras públicas (ou seja, outdoor relief para homens sadios). Em vários dos artigos (“The Condition of Ireland” [2, 14, 18, 27, 31, 35]) ele argumenta que esta solução implicava em um gasto maior do que seria gasto para assentar camponeses nas waste lands, que ela estava levando os irlandeses a largarem os seus empregos em outras atividades (inclusive a agrícola) para serem empregado do Estado (onde o trabalho era apenas nominal). E, pior de tudo, esta forma de auxilio estava reforçando os traços perversos do caráter do povo – imprevidência, indolência, falta de responsabilidade reprodutiva – que o Cottier havia criado, e que era tão importante modificar. Além disso, ele combate nesses artigos a solução de patrocinar a emigração em massa (“The Condition of Ireland” [11, 25]), e as 12 A sua proposta era que o Estado deveria desapropriar essas terras improdutivas – pagando uma indenização justa a seu proprietário (de forma a não violar os seus direitos) – drena-las e fazer aqueles melhoramentos que necessitavam de altos investimentos ou ação coordenada. Depois de preparada a terra, a sua propriedade deveria ser repassada a pequenos agricultores, que em troca repagariam ao Estado, na forma de uma renda, o que foi gasto para tornar as terras cultiváveis. Na sua estimativa, essa solução poderia transformar entre um quarto e um terço da população agrícola da Irlanda em pequenos proprietários camponeses (MILL, [18461847], 1986: 900) – o que beneficiaria não só os agricultores contemplados, mas também o restante da população: The residuary population would not be too numerous to be supported, in comparative comfort, yet leaving a large rent for the landlord; and English capital and English farming might then be introduced with advantage to all, because the cottier population would no longer exceed the numbers who could, with benefit to the farmer, be retained on the land as labourers […](MILL, [18461847], 1986: 901). E mais, esses trabalhadores remanescentes teriam a esperança de também se tornarem um dia proprietários – o que os faria mais industriosos e previdentes. (MILL, [1846-1847], 1986: 916). Nessa época, Mill chega a discutir a ideia, defendida por alguns irlandeses, de fixar de forma permanente no valor atual as rendas pagas aos proprietários (fixity in tenure), mas ele não optou por essa solução. Em sua opinião, a proposta significaria uma espoliação da propriedade, uma vez que não garantia ao seu dono uma compensação pelo aumento que certamente ocorreria na renda da terra por conta do desenvolvimento da nação. Todavia, mesmo se esse problema fosse contornado, e uma remuneração justa fosse garantida ao dono da terra, ele não a considerava adequada uma vez que existiriam soluções menos traumáticas à disposição. Ele afirma: […] this measure would be a revolution in itself, and would require for its justification that which justifies a revolution – a state of extreme misgovernment and suffering, otherwise incurable. The first condition is fully realised in Ireland, but the second is not. Milder remedies are possible. (MILL, [1846-1847], 1986: 906) Essa primeira incursão pública na discussão sobre as soluções para a Irlanda é descrita por ele na Autobiografia como um tendo sido um “fracasso total” uma vez que ele não conseguiu convencer as autoridades a adotarem o seu esquema. Ao invés de assentar camponeses nas Waste Lands, o Parlamento preferiu a saída, tão criticada por Mill, de conceder auxílio aos pobres (MILL ,[1873], 1991: 243). Muitas das ideias externadas nesses artigos de jornal foram incorporadas à 1ª edição dos Princípios (1848), onde o autor adota o mesmo tom de urgência observado nos artigos. Nas edições seguintes, no entanto, esse tom foi sendo amenizado, uma vez que ele passou a avaliar que a emigração espontânea e outras mudanças na realidade Irlandesa tinham reduzido significativamente o problema, dando esperanças de que soluções voluntárias pudessem ser adotadas. No entanto, os fatos políticos relacionados aos atos terroristas fenianos na década de 1860 fizeram com que Mill modificasse propostas de o Estado tornar as Waste Lands cultiváveis e depois devolvê-las aos proprietários das terras, ao invés de entregá-las aos camponeses ou outras medidas que só beneficiariam a classe proprietária (“The Condition of Ireland” [7, 12, 15, 21, 41,42, 43]). 13 novamente a sua posição e passasse a exigir reformas mais radicais do que as sugeridas na década de 1840 para resolver não só os problemas econômicos e sociais, mas também as complicações políticas que deles decorriam. O texto mais representativo deste último período é o England and Ireland (1868). 24 Apesar de as propostas concretas que Mill sugere se alterarem ao longo do tempo, existe um elemento que está sempre presente e dá unidade a seus escritos sobre a Irlanda: a ideia de que a única solução definitiva para as mazelas (econômicas, morais e políticas) do país seria a criação de uma classe de pequenos proprietários camponeses. 25 No entanto, vimos que essa instituição não contava com a simpatia da maior parte dos economistas políticos ortodoxos. Havia entre eles uma noção generalizada de que o pequeno cultivo era pouco produtivo, e de que parte do problema da Irlanda era justamente o tamanho reduzido das terras cultivadas sob o sistema de cottier. Assim, para dar sustentação à sua posição Mill se mobiliza no sentido defender o pequeno visà-vis ao cultivo de larga escala.26 Nos Princípios ele argumenta que as vantagens da grande produção em relação à pequena não estão tão estabelecidas no que concerne à agricultura quanto estão no que se refere às manufaturas (MILL,[1871], 1965: 142). A estratégia adotada ao longo de toda a discussão que faz sobre o assunto é a de apontar os problemas em geral associados ao pequeno cultivo, para depois minimizálos. Nesse sentido, ele indica que as vantagens da larga escala na indústria estão associadas a um melhor aproveitamento da divisão do trabalho, mas argumenta que a possibilidade de divisão de trabalho é reduzida na agricultura, sendo geralmente viável aproveitá-la ao máximo contando apenas com os membros da família. Ele admite que o tamanho diminuto da terra poderia ser um problema, mas afirma que isso só ocorreria se a propriedade for pequena a ponto de seu cultivo não ocupar integralmente o tempo dos membros da família – requisito em geral cumprido com uma dimensão bem reduzida de terra (MILL, [1871], 1965: 142-143). Mill reconhece que a grande cultura em geral utiliza mais equipamentos e implementos agrícolas, no entanto, argumenta que pequenos produtores podem se unir e partilhar máquinas. Ele nota que, em geral, os grandes fazendeiros têm acesso maior ao conhecimento e às técnicas modernas e são mais propensos a inovar, mas pondera que isso pode ser contrabalançado pela sabedoria prática dos pequenos agricultores – que conhecem o seu ofício nos mínimos detalhes – e que os camponeses podem assimilar as inovações feitas na agricultura de larga escala. Ele afirma, ainda, que o cultivo em larga escala apresentaria vantagens em relação aos seus custos, seja de transporte, seja nas 24 . Cabe notar que, apesar de eu não explorar no artigo as alterações que feitas nas edições dos Princípios, elas refletem a preocupação do autor em definir políticas de acordo com cada momento histórico vivido pela Irlanda – o que só fortalece o argumento do artigo no que concerne à importância da história nas suas reflexões. Para relatos detalhados sobre a evolução do pensamento de Mill a respeito da Irlanda ver Steel (1970a e 1970b). 25 É importante explicitar que o uso do termo propriedade no contexto dessa discussão é relativamente amplo: “The idea of property does not, however, necessarily imply that there should be no rent, any more than there should be no taxes. It merely implies that the rent should be a fixed charge, not liable to be raised against the possessor by his own improvements, or by the will of a landlord. A tenant at a quit-rent is, to all intents and purposes, a proprietor […] What is wanted is a permanent possession on fixed terms” (MILL,[1871], 1965: 164). Os efeitos de atribuir a propriedade efetiva ou um interesse permanente no solo seriam idênticos. 26 A defesa da viabilidade econômica da pequena propriedade camponesa já está presente nos artigos do Morning Chronicle (ver, por exemplo, “The Condition of Ireland” [20, 24, 26,29 e 30]). Neles, Mill discute (e cita longamente) trabalhos e relatos de viagem de uma grande variedade de autores ingleses e do Continente, que atestavam o sucesso da pequena propriedade camponesa em diversos países da Europa. Essas evidências reaparecem em todas as edições dos Princípios. 14 suas compras, mas, em seguida, alega que a importância desses elementos não deve ser determinante (MILL, [1871], 1965: 143-146). Depois de minimizar as deficiências da pequena vis-à-vis a grande propriedade nesses diversos quesitos, Mill aponta que existiria uma vantagem quando o agricultor é dono da terra (ou tem um contrato de arrendamento permanente com termos fixos), que, em geral, seria mais do que suficiente para compensar as possíveis desvantagens relacionadas ao pequeno cultivo: “[…] um fervor industrioso que não tem paralelo em qualquer outra condição de agricultura.” (MILL, [1871], 1965: 147). Essa dedicação faria com que o produto bruto obtido por esses pequenos agricultores (se de posse de igual conhecimento e técnicas) fosse maior do que aquele obtido em grandes fazendas com cultivo capitalista.27 E no que se refere ao produto liquido ele afirma: […] the comparative merits of the grande and the petite culture, especially when the small farmer is also the proprietor, cannot be looked upon as decided (MILL, [1871], 1965: 150). Vale ressaltar que, mesmo na discussão que faz da pequena agricultura no âmbito da produção, Mill apela basicamente para material empírico e não para os princípios abstratos da ciência da Economia Política.28 Ele tem uma enorme preocupação em mostrar aos seus compatriotas que grande parte da rejeição que apresentavam à pequena propriedade camponesa decorria da falta de conhecimento sobre como outros países cultivavam as suas terras.29 No intuito de esclarecê-los cita casos bem sucedidos desse tipo de cultivos em países tão diferentes como a Suíça, a Noruega, a Alemanha, a Bélgica, a França (MILL, [1871], 1965: 253-273). Com base em nessa multiplicidade de exemplos de sucesso da pequena agricultura camponesa nesses países conclui: […] we have surely now heard the last of the incompatibility of small properties and small farms with agricultural improvement. (MILL, [1871], 1965: 152). Assim, ele busca fundamentar em termos empíricos a viabilidade da pequena propriedade camponesa, contra alegações teóricas de que seriam necessariamente mais improdutivas e ineficientes do que o grande cultivo. E essas evidências são apresentadas no sentido de fornecer legitimidade científica para as sua propostas de reformas na ocupação da terra. 30 27 Segundo Mill: “Land occupied by a large farmer is not, in one sense of the word, farmed so highly. There is not nearly so much labour expended on it. This is not on account of any economy arising from combination of labour, but because, by employing less, a greater return is obtained in proportion to the outlay. It does not answer to any one to pay others for exerting all the labour which the peasant, or even the allotment-holder, gladly undergoes when the fruits are to be wholly reaped by himself”.(MILL, [1871], 1965: 148). 28 Lipkes,enfatiza esse ponto e diz que Mill tenta rebate as críticas teóricas dos economistas políticos “[...] on empirical grounds” (LIPKES, 1999: 57). Todavia o comentador considera o tipo de evidência empírica utilizada por Mill “[..] less than convincing” (idem:62). 29 Ele diz: “The general system, however, of English cultivation, affording no experience to render the nature and operation of peasant properties familiar, and Englishmen being in general profoundly ignorant of the agricultural economy of other countries, the very idea of peasant proprietors is strange to the English mind, and does not easily find access to it. Even the forms of language stand in the way: the familiar designation for owners of land being "landlords," a term to which "tenants" is always understood as a correlative. (MILL, [1871], 1965:253). 30 Lipkes (1999) questiona a coerência do procedimento de Mill. Ao apelar para a experiência de outros países muito diferentes da Irlanda para justificar a sua defesa da pequena propriedade nesse país, sem 15 Apesar de ardoroso defensor da pequena propriedade camponesa na Irlanda, Mill não fez uma defesa ‘universalista’ dessa instituição. Ele não via vantagens, por exemplo, na sua implantação generalizada na Inglaterra. Ao contrário, dado o nível de progresso econômico, social e cultural já alcançado por seu país, isso representaria, segundo a sua avaliação, um retrocesso econômico e moral – a organização em cooperativas lhe parecia um caminho bem mais promissor para garantir o progresso (MILL, [1871], 1965: 281/2 e 768/9, MATTOS, 2008:309/310). Na Irlanda, no entanto, a criação de uma classe de pequenos proprietários era tida como crucial. E argumentaremos que a defesa que faz da pequena propriedade camponesa toma como ponto de partida os problemas específicos deste país, e está calcada em uma análise cuidadosa de como a sua introdução poderia contribuir para solucioná-los. Como foi visto, para Mill, o sistema de cottier teria engendrado consequências econômicas, sociais e políticas muito ruins. Em termos econômicos, resultou em um cultivo improdutivo e ineficiente – que redundou na década de 1840 na grande fome e na posterior emigração em massa da população. Em termos de caráter humano, criou uma população displicente, preguiçosa e irresponsável em termos reprodutivos. E, em termos políticos, gerou um sentimento generalizado de injustiça – que culminou, na década de 1860, nos atentados do movimento separatista feniano. No seu entender, a forma institucional a ser escolhida para resolver o problema da terra deveria ser capaz de atacar simultaneamente todos esses problemas – e, na opinião de Mill, somente a atribuição da propriedade da terra àquele que a semeia levaria a progressos em todas essas dimensões. Em termos estritamente econômicos, a introdução da pequena propriedade camponesa (ou de outras formas que garantissem ao agricultor um interesse permanente no solo) seria um enorme avanço em relação à situação vigente sob o sistema de cottier. Seguidamente Mill faz referência ao ‘milagre’ que a ideia de propriedade (ou mesmo a mera esperança de obtê-la) produz sobre a disposição ao trabalho e à abstinência.31 E no caso de Irlanda esse incentivo da propriedade seria fundamental para aumentar a produção agrícola: A people who in industry and providence have everything to learn – who are confessedly among the most backward European populations in the industrial virtues – require for their regeneration the most powerful incitements by which those virtues can be stimulated: and there is no stimulus as yet comparable to levar as diferenças de hábitos, história, clima etc., ele estaria adotando o mesmo tipo de atitude que criticava nos seus conterrâneos: “[...] his argument that the success of small-scale farming in Belgium is relevant to the situation of Ireland necessitates the same kind of mechanistic reasoning he deploys […] Mill’s political predispositions, and his cast of mind, enabled him to embrace the conclusions while only incompletely appropriating the methodology of his anti-Ricardian allies” (LIPKES, 1999:64). 31 O argumento de que a propriedade tem efeitos ‘milagrosos’ sobre a industriosidade humana aparece em quase todos os artigos no Morning Chronicle e ressurge com toda força nos Principios. Mill afirma, por exemplo, a esse respeito : “There is as little doubt among observers, with what feature in the condition of the peasantry this pre-eminent industry is connected. It is the ‘magic of property which, in the words of Arthur Young, ‘turns sand into gold.’.[…] ‘Give a man the secure possession of a bleak rock, and he will turn it into a garden; give him a nine years' lease of a garden, and he will convert it into a desert."”(MILL,[1871, 1965:278). No mesmo sentido afirma que o pequeno proprietário utiliza: “[…] thousand devices […] for making every superfluous hour and odd moment instrumental to some in respecting the far larger gross produce which, with anything like parity of agricultural knowledge, is obtained from the same quality of soil on small farms, at least when they are the property of the cultivator. (idem 278/9). 16 property in land. A permanent interest in the soil to those who till it, is almost a 32 guarantee for the most unwearied laboriousness (MILL [1871], 1965: 327). No entanto, esse não seria o único efeito positivo de se atribuir a propriedade da terra a quem a cultiva. Ele acreditava que as instituições sociais desempenhavam um papel fundamental na educação popular, sendo essencial na determinação do seu caráter (MILL, [1871] 1965:281). Os impactos da pequena propriedade camponesa seriam, no seu entender, no sentido de cultivar várias qualidades morais e intelectuais valorizadas por Mill: […] no other existing state of agricultural economy has so beneficial an effect on the industry, the intelligence, the frugality, and prudence of the population, nor tends on the whole so much to discourage an improvident increase of their numbers […] (MILL, [1871] 1965:296/7). E o desenvolvimento dessas qualidades seria, segundo Mill, essencial para resgatar a população do estado moral e intelectualmente degradado no qual se encontrava devido ao funcionamento do sistema de cottier. E, como enfatiza Zastoupil (1983), essa era uma dimensão que interessava sobremaneira ao autor.33 No entender de Mill, o sucesso de qualquer plano requereria que as mazelas econômicas e morais da Irlanda fossem atacadas simultaneamente: Without the moral change, the greatest economical improvement will last no longer than a prodigal's bounty; without the economical change, the moral improvement will not be attained at all. (MILL, [1846-1847], 1986:907). Como argumentado anteriormente, a adoção do ‘modelo inglês’ de cultivo em substituição do cottier certamente elevaria a produtividade (resolvendo o problema de econômico), mas, como vimos, não elevaria o caráter da população. A pequena propriedade camponesa, por sua vez, resolveria os dois problemas. E, em grande medida por conta disso, Mill dá preferência a essa saída: In a backward state of industrial improvement, as in Ireland, I should urge its [peasant property] introduction in preference to an exclusive system of hired workers; as a more powerful instrument for raising a population from a semisavage listlessness and recklessness, to a persevering industry and prudent calculation (MILL, [1871], 1965: 768). Essa instituição seria igualmente mais adequada para por fim ao clima de insatisfação política que vigorava no país. Mill atribuía fortalecimento do movimento feniano na década de 1860 à inabilidade (ou a falta de vontade) da Inglaterra em dar uma solução adequada à questão da terra. A sua insistência em manter as terras nas 32 . A ideia de que os irlandeses precisam desse grande incentivo para se esforçar no trabalho já aparece na década de 1840. Nesse sentido, Mill afirma no artigo “The Condition of Ireland [11]: “To make them work, they must have what makes their Celtic brethren, the French peasantry, work, and those of Tuscany, of the self-indulgent and luxurious south. They must work, not for employers, but for themselves. Their labour must not be for wages only, it must be a labour of love--the love which the peasant feels for the spot of land from which no man's pleasure can expel him, which makes him a free and independent citizen of the world, and in which every improvement which his labour can effect belongs to his family as their permanent inheritance”( (MILL, [1846-1847], 1986: 916). 33 Segundo Mill a Inglaterra devia isso aos irlandeses. Como aponta Zastoupil: “The Irish had been barbarized by the English; the first step for reversing that would be the regeneration of Irish moral character by means of needed agrarian reforms.” (ZASTOUPIL, 1983: 712). 17 mãos de poucas famílias de grandes proprietários – forma de propriedade que, como vimos, era estranha às tradições e aos sentimentos de justiça dos irlandeses – teria gerado o rancor e a revolta que acabaram por se materializar na agitação separatista. Diante desse novo contexto político, Mill, que ao longo das décadas anteriores havia defendido reformas moderadas, radicalizou a sua posição no ensaio England and Ireland e passou a defender que soluções pontuais e paliativas não mais seriam suficientes para aplacar o descontentamento irlandês: 34 The distribution of the waste land in peasant properties might then have sufficed. Perhaps even such small measures as that of securing to tenants a moderate compensation, in money or by length of lease, for improvements actually made, and abolishing the unjust privilege of distraining for rent, might have appeased or postponed disaffection, and given to great-landlordism a fresh term of existence. But such reforms as these, granted at the last moment, would hardly give a week's respite from active disaffection. The Irish are no longer reduced to take anything they can get ( MILL [1868], 1965: 518). A manutenção do landlordism, como propunham os que defendiam a consolidação das fazendas e a adoção do ‘modelo inglês’, já não seria mais viável politicamente. Nada aquém da atribuição da propriedade da terra a quem de fato a cultiva iria mitigar o sentimento de injustiça e indignação dos irlandeses e o ressentimento que nutriam contra os ingleses– que já ameaçava a União entre os dois países.35E, nesse novo contexto, medidas antes rejeitadas como desnecessariamente revolucionárias passam a ser defendidas pelo autor: […] no accommodation is henceforth possible which does not give the Irish peasant all that he could gain by a revolution – a permanent possession of the land, subject to fixed burthens. Such a change may be revolutionary; but revolutionary measures are the thing now required ( MILL [1868], 1965: 518). Mas, coerentemente com a posição mantida desde a década de 1840, ele não prega expropriar pura e simplesmente os donos das terras – estes perderiam o direito de arbitrar sobre o uso da terra, mas não o direito a uma remuneração pecuniária justa (MILL [1868], 1965:519). Podemos ver, então, que a defesa que Mil faz da pequena propriedade camponesa, não é fundamentada em argumentos sobre os benefícios abstratos dessa instituição em qualquer situação. Ela está totalmente vinculada ao seu diagnóstico sobre quais eram os problemas específicos da Irlanda na época e à sua visão de que entre todas as alternativas institucionais que se apresentavam aquela de atribuir a propriedade da terra a quem de fato a cultiva seria a única capaz de superar os principais entraves (econômicos, morais e políticos) ao desenvolvimento da Irlanda. 34 Lipkes afirma que Collison Black o caracterizou esse ensaio “[…] probably as the most influential single contribution to the extended debate on Irish land problems which was carried between 1865 and 1870” (LIPKES, 1999:67). 35 Mill afirma a esse respeito: “The rule of Ireland now rightfully belongs to those who, by means consistent with justice, will make the cultivators of the soil of Ireland the owners of it; and the English nation has got to decide whether it will be that just ruler or not.” (MILL [1868], 1965: 519). Na interpretação de Steel (1970b), evitar essa ruptura com a Inglaterra era o verdadeiro objetivo de Mill. 18 V. Considerações finais: O debate sobre a forma de propriedade da terra na Irlanda se referia uma questão específica de política econômica, no entanto, ensejou uma discussão metodológica interessante a respeito da importância se levar em conta as particularidades históricas, culturais, econômicas e sociais dos países na reflexão econômica. Procurou-se mostrar que Mill divergia dos principais economistas da época e rechaçava a ideia de se aplicar a outros países as máximas econômicas desenvolvidas para a Inglaterra sem levar em conta contexto histórico específico em questão. Para o autor, o fato de os ingleses não conhecerem (e nem se preocuparem em conhecer) a realidade da Irlanda, e de considerarem as suas instituições como universalmente válidas, explicaria muitos dos equívocos praticados pelos ingleses na Irlanda. Explicaria, por exemplo, a atitude de imporem a esse país uma ideia de propriedade (absoluta) do solo que não tinha qualquer fundamento nas tradições e no sentimento irlandês. Explicaria, ainda, a sua resistência em aceitarem alternativas que envolvessem, em alguma medida, a alteração desses direitos absolutos de propriedade, seja, por meio de regulamentação dos contratos de arrendamento por parte do Estado, ou a requisição das waste lands para fins de cultivo por parte de pequenos proprietários (mesmo garantidas uma compensação pecuniária justa aos donos das terras). Estaria, igualmente, subjacente ao preconceito que tinham contra a pequena propriedade camponesa. E estaria, por fim, na base da insistência em transpor o modelo de cultivo capitalista da terra inglês à Irlanda, apesar de todas as diferenças culturais, sociais e econômicas existentes entre os dois países. Mill questiona essa atitude, relativiza as máximas inglesas tidas como sendo universalmente válidas, e enfatiza a necessidade da introdução de uma forma de propriedade da terra que fosse ao mesmo tempo compatível com as tradições e com a história do povo irlandês, e adequada para resolver os problemas econômicos, sociais e políticos que se colocavam concretamente na época. Esses problemas, no seu entender, decorriam, em grande medida, do sistema de cottier e poderiam ser resolvidos com a introdução de formas institucionais que fornecessem garantias àqueles que cultivam o solo – como a pequena propriedade camponesa ou os contratos permanentes com a renda fixadas por lei e não pela concorrência. Ao afirmar a necessidade de se conhecer as circunstâncias históricas, institucionais, culturais das sociedades antes de advogar políticas, o autor, em certa medida, antecipa alguns aspectos do methodenstreit britânico do final da década de 1870.36 E no que diz respeito a essa questão específica, Mill parece se situar mais próximo aos historicistas do que à Ricardo e seus seguidores mais ortodoxos. Isso talvez explique o fato de Cliffe Leslie, o ‘fundador’ da Escola Histórica Inglesa (Koot, 1975:314), ter sido muito mais condescendente com Mill do que com os demais economistas políticos ortodoxos ligados à Escola Clássica.37 36 Peart (2001:327), nota a importância do debate sobre a Irlanda para as discussões metodológicas que ocorreram ao final da década de 1870 sobre se os axiomas da Economia Política seriam universalmente aplicáveis, ou teriam uma aplicabilidade limitada à contextos similares aos da Inglaterra:“The Irish question formed a backdrop to these methodological debates throughout the decade [1870s], and issues of whether axioms of political economy were universally relevant or whether economic behavior could be studied in abstraction from the institutional (and as often they put it) ‘moral’ aspects of the economy, were often framed in terms of the Irish question […]” (PEART, 2001, 371). 37 Leslei se considerava em alguma medida um discípulo de Mill e defendia que este autor não teria conseguido escapar inteiramente das influências que sofreu na juventude (de James Mill, David Ricardo, Jeremy Bentham, e de Austin), mas que teria uma mente iminentemente histórica (Koot, 1975:318) 19 De toda forma, por ser o principal nome da Economia Política Clássica, a entrada de Mill no debate sobre a ‘questão da terra’ na Irlanda ajudou a modificar a atitude dos economistas em relação a esse país. Ajudou também a pavimentar o caminho para as reformas introduzidas pelos Land Reform Acts de 1870.38 Por fim, as suas colocações sobre a função social da propriedade da terra e a respeito das virtudes da pequena propriedade influenciaram toda uma geração de reformadores sociais no que tange à questão da terra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: COLLISON BLACK, R.D. The Classical Economist and the Irish Problem. In Oxford Economic Papers, New Series, vol. 5 n.1, 1953. ……. Economic Policy in Ireland and India in the Time of J.S.Mill. In The Economic History Review, New Series, Vol. 21, n.2, 1968. KOOT, G.M. T.E. Cliffe Leslie, Irish social reform, and the origins of the English historical school of economics. In History of Political Economy(HOPE), vol7, no.3, 1975. LIPKES, J. Politics, Religion and Classical Polítical Economy in Britain – John Stuart Mill and his followers. London: MacMillan and New York: St Martin’s Press, 1999. MATTOS, L.V. 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Explica também a admiração que Mill tinha pelo trabalho de Leslei, a quem considerava um dos maiores autores vivos de economia política aplicada (idem: 314). 38 Falando do impacto do ensaio England and Ireland, Lipkes afirma: “It is likely that the pamphlet contributed indirectly to the passage of the Irish Land Act of 1870, if only by holding out a far more radical option, and thus shifting the via medium leftwards.”(LIPKES, 1999: 67). 20 ……….. [1871] “Maine on Village Communities”. In Writings on India, CW XXX, University of Toronto Press, Toronto, 1990. ………. [1871] Principles of Political Economy with some of their Applications to Social Philosophy in CW II e III, University of Toronto Press, Toronto, 1965. ……… [1879]"Chapters on Socialism". In Essays on Economics and Society, part 2, CW V, University of Toronto Press, Toronto, 1967. ………. [1873] Autobiography. In Autobiography and Literary Essays. CW I, University of Toronto Press, Toronto, 1981. PEART, S. “Theory, Application and the Canon: The case of Mill and Jevons.” Reflections on the Classical Canon in Economics: Essays in Honor of Samuel Hollander. Ed. Evelyn L. Forget and Sandra Peart. London: Routledge, 2001.pp. 356-377, 2001. PLATTEAU, J.P. Classical Economics and Agrarian Reforms in Underdeveloped Areas: The Radical Views of the Two Mills. In The Journal of Development Studies, 1983, vol. 19, issue 4. STEELE, E.D. J.S. J.S.Mill and the Irish Question: The Principles of Political Economy, 1848-1865. In The Historical Journal, vol. 13 n.2, 1970a. ………… J.S.Mill and the Irish Question: Reform and the Integrity of the Empire, 1865-1870. In The Historical Journal, vol. 13 n.3, 1970b. WINCH, D. Land Reform and Popular Political Economy in Victorian Britain. Published in the Donald Winch Archive by the Institute of Intellectual History, University of St. Andrews. 2013. ZASTOUPIL, L. “Moral Government: J.S.Mill on Ireland.”. 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