Samsara* ou
Transcrição
Samsara* ou
JOSÉ DA GRAÇA ANDRADE Samsara* ou Oxalá Picasso te pinte! 1 * Ciclo do nascimento e da morte. Tudo está ligado a tudo por fios invisíveis e tudo muda e se transforma sem cessar. 2 Saber que não se escreve para outro, saber que isto que vou escrever não me fará nunca ser amado por quem amo, saber que a escrita nada compensa, nada sublima, que está precisamente aí onde tu não estás – é o começo da escrita. Roland Barthes 3 4 A dívida (Breathe dos Bliss) O preço da catexia é a dor Fui casado durante 22 anos e do casamento retirei praticamente tudo aquilo que o caracteriza: um lar, algum património, sexo regular, as pequenas e grandes alegrias e chatices, de toda e qualquer família. Amei T., a minha mulher, minha colega de liceu e primeira namorada, tanto quanto se pode amar quando nos casamos aos vinte anos e, não por razões morais, religiosas ou culturais mas de uma forma natural, sempre lhe fui fiel. Nessa altura ainda ignorava que a fidelidade depende basicamente de razões biológicas e genéticas, ou seja, em linguagem científica, do maior ou menor comprimento do gene receptor da vasopressina que cada homem possui (atenção mulheres no vosso próprio interesse registem que o único comprimento que vale a pena conhecer dos homens é o do seu gene receptor da vasopressina). Um dia, por um acumular de razões penosas, nunca resolvidas e sempre agravadas, separámo-nos e fiquei a viver com as minhas três filhas. T. era uma mulher doentiamente ciumenta. Como não lhe dava motivos, fixava-se nas mulheres (miúdas, melhor dizendo, dada a nossa idade!) que eu tinha conhecido antes dela e a sua retroactiva imaginação produzia cenas terríveis que protagonizava na frente de quem quer que fosse porque como qualquer mulher ciumenta via sempre mais do que queria ver. Era também, embora não o admitisse, bipolar. Alternava momentos delirantes de entusiasmo e energia com momentos de profunda tristeza e abatimento. Vitimizavase sempre pelo que lhe acontecia, incluindo os seus próprios erros. Nunca assumia a responsabilidade por nada e culpabilizava todos por tudo. Ainda enquanto estudantes, sempre que pela manhã, transportados pelo 38, a carreira que fazia o percurso do Calvário a Santa Maria, iniciávamos a subida da alameda da Cidade Universitária, era frequente as lágrimas começarem a cair-lhe pelas faces, sem qualquer razão e quantas vezes, a meio das manhãs, me ia buscar à faculdade, quase me arrastando, só para conversar, rezar as suas lamentações do dia e comer tostas mistas no jardim do Campo Grande. 5 Ao longo do nosso casamento foi sempre uma consumidora compulsiva que gastava tudo o que tinha, o que não tinha e ainda o pouco que eu ia tendo. Desde os vulgares excessos com cartões de crédito até à contracção de empréstimos de quantias elevadas, em nome de ambos através da falsificação da minha assinatura, ela fez de tudo sentindo-se sempre no direito de o fazer. Depois, para ocultar os seus erros tinha necessidade de mentir, fazendo-o sem qualquer sentimento de culpa ou de remorso. Quem disse que “o casamento é uma dívida que contraímos quando jovens e que pagamos o resto das nossas vidas”? Enquanto as filhas foram pequenas T. foi uma mãe excelente. É verdade que sofreu um processo benigno de rejeição da primeira filha durante alguns meses, uma espécie de depressão pós-parto, que me obrigou a assumir mais algumas tarefas do que seria habitual, mas de resto, foi exemplar. Contudo, a partir de um certo momento, situado algures no início da adolescência delas, T. perdeu-se de nós e nunca mais nos encontrámos. Não tinha nem tenho do casamento uma concepção descartável e sentia-me na obrigação de ajudar a resolver os problemas em que continuamente se atolava, na esperança que a minha compreensão a levasse a mudar os seus comportamentos irresponsáveis. Mas cada dia era pior e a espiral de gravidade dos seus actos não parava de subir. O seu desejo de ser diferente daquilo que era estragava-lhe a vida. Naturalmente, tudo isto se reflectia na nossa vida familiar através de ausências, de falta de assistência às situações domésticas, de maus humores e conflitos permanentes, de atirar para cima de mim todas as despesas familiares como se apenas eu tivesse a responsabilidade e a obrigação de as pagar. As suas loucuras assumiram tais proporções, que até as minhas filhas tiveram de me chamar a atenção: Pai, isto não pode continuar, tens de fazer alguma coisa! Um dia, após uma discussão violenta com a filha mais velha, por uma questão insignificante, mas na qual tive que intervir, saiu de casa acusando-me de lhe ter batido e foi viver para casa de uma amiga. Uns meses depois divorciámo-nos. A separação provocou-me uma sensação fortíssima de liberdade e alívio, como se me tivesse desprendido de um lastro insustentável. Ao contrário de muitos homens, após a separação, não alterei as rotinas da minha vida, nem procurei substituir a mulher perdida. Para quê? Já tinha três mulheres em casa e muito fresca ainda, a marca dos dentes de vinte e dois anos de casamento, na pele da alma. 6 Alguém disse que com os filhos passamos a ter o coração fora de nós e eu concordo. Eduquei-as sem distinção de sexo, como faria se tivessem sido rapazes. Não consigo perceber qualquer tipo de descriminação educacional em função do sexo, a não ser por puro preconceito. Educar é sempre organizar o interdito e o interdito não tem género. Mas até na função educacional estava completamente só, pois a mãe continuava ausente, imersa nos problemas que ela própria criava onde quer que estivesse. Nada terminava deixando sempre tudo a meio. Vivia insatisfeita com o muito que já tinha e transportava dentro dela um inferno permanente. Nunca estava bem com nada e em lado nenhum (“Se estou só quero não estar/se não estou quero estar só/ enfim quero sempre estar/da maneira que não estou”). Embora do acordo de divórcio a sua responsabilidade se limitasse apenas ao pagamento das despesas escolares das filhas nem essas cumpriu e em nada contribuía para elas, nem sequer uma mesada lhes dava. Um telefonema de vez em quando e alguma roupa dela usada eram suficientes. Acabei por ter que ser pai e mãe e, talvez por isso, a nossa relação seja tão especial. Para elas escrevi este poema: As minhas filhas são estrelas pequeninas Nascidas da implosão do amor Cresceram ocupando o meu mundo Que à sua volta gravita Num eterno movimento de translação Junto delas sou completo e absoluto como um céu de Agosto Elas são o meu oposto não sendo o meu contrário E quando me olham sei porque me lembram o mel Com elas nunca estou só e juntos somos a multidão Que todos os dias se reúne na praça do meu carinho Cidade luz que me abriga iluminando-me todo Elas fazem-me sentir menino cavaleiro de mim Irmão mais velho que se ri da sua idade Às vezes dizem-me: pai, tens uns olhos lindos É verdade mas só porque reflectem a imagem delas 7 8 Antes de cobrar devemos saber quanto devemos (Explode coração cantada por Maria Bethãnia) Ter consciência é mais que ter cor? Cheguei à conclusão que tinha casado cedo demais quando era demasiado tarde, pois já tinha trinta e cinco anos, uma casa, um marido e três filhas. Z. foi o primeiro homem da minha vida. Conheci-o no liceu onde estudávamos. Ele era finalista e treinava uma equipa de futebol feminina da qual eu era uma das guarda-redes (como éramos fisicamente fraquinhas e um tanto ou quanto paradas, cada baliza era defendida por duas jogadoras). Casei com ele dois anos depois, tinha eu dezoito e ele vinte, naquilo a que tecnicamente se poderia chamar uma fuga para a frente. Não. Não casei por estar grávida mas para deixar de ouvir a minha mãe infernizar-me a vida com os seus medos, face à perspectiva de ambos estarmos sós, livres e soltos, em Lisboa. Miúdos, sobrevivendo com mesadas paternas, fomos viver para um quarto em casa dos meus avós maternos no Restelo. De lá nos aventurávamos todos os dias, sempre de mão dada, para as nossas faculdades de Letras e Direito, bem frente a frente, um do outro. Um ano depois, meti na cabeça que tínhamos de mudar de casa. Aquele quartinho com janela debruçada para a rua Bartolomeu Dias tornara-se claustrofóbico, o silvo rouco dos eléctricos insuportável e com a ajuda dos meus pais e de um empréstimo bancário que fomos pagando com “explicações” e aulas no Externato Português de Carcavelos, comprámos um apartamento em Oeiras. Os anos seguintes foram os mais felizes da minha vida. Ao longo deles fui crescendo a par das minhas filhas sob o olhar protector de Z., o pai de nós todas. Ainda dei aulas no Secundário, mas assim que tive uma oportunidade, comecei a trabalhar em empresas. E o stress começou a aumentar. Na casa que eu tanto desejara comecei a sentir-me emparedada. Os tectos baixavam assustadoramente e as paredes fechavam-se sobre mim prestes a esmagarem-me. 9 Sem que soubesse porquê comecei a gritar sem conseguir emitir qualquer som e ninguém me conseguia ouvir. Estava mesmo convencida que alguém, por maldade ou inveja, teria lançado um qualquer feitiço, contra mim e contra a minha casa. Iniciei nessa altura périplos por tudo quanto era bruxa ou vidente com os objectivos de desmontar os eventuais “trabalhos” lançados sobre mim e conseguir as mudanças para a minha vida que tanto desejava e não conseguia. Uma dessas mudanças teria de ser a mudança de casa. Demorei bastante mas consegui convencer Z. a mudar para um duplex em Cascais onde, pensava eu, seria de certeza mais feliz. Conseguia quase sempre convencer Z. a fazer o que eu queria. Considerava-o fraco e comecei a abusar. Por vezes, usava uma coisa feia mas eficaz, a chantagem emocional, a que ele, raramente, resistia. Aos poucos fuilhe perdendo o respeito e, naturalmente, deixei de o amar. Cada vez estava menos em casa, preferia ficar com as minhas amigas e com alguns amigos gay com os quais sempre adorei conversar. Daqui até ser-lhe infiel foi um passo de anão (para ser infiel o homem só precisa de um lugar e a mulher de um motivo). Comecei, nessa altura, a sentir a necessidade de sair de casa para adquirir maior liberdade e para poder viver tudo aquilo que um casamento precoce me havia impedido de viver. Um dia, a pretexto de uma estúpida e desnecessária discussão doméstica, saí de casa e não mais voltei. Passei alguns dos melhores anos da minha vida a tratar do meu marido, das minhas filhas e até dos filhos dos outros enquanto dei aulas, mas fiquei emocionalmente esgotada. As minhas filhas vieram muito cedo, mas também fui eu que assim o desejou. O Z. achava cedo demais mas eu impus-me pois necessitava de demonstrar a mim própria que não era estéril. A segunda, veio apenas dois anos após a primeira e foi tudo demasiado rápido (“com o primeiro filho a vida muda mas com o segundo a vida acaba”). Mas só à terceira filha me senti de facto bem preparada e amadurecida para ser mãe. Sempre tive muita energia mas reconheço que nem sempre a dirigi para fazer as coisas certas e talvez tenha cometido alguns erros. O maior de todos foi ter saído de casa. Quando quis emendar a mão e regressar, Z. já não me aceitou. Escusado será dizer que, nos últimos anos, tenho andado por aí, aos caídos e compreendo hoje, ter desejado as coisas erradas. Erros e erros uns atrás dos outros. Vivi na Lapa numa casa que não podia pagar, estive em Luanda onde passei fome e humilhações em casa de uma falsa amiga, enganei, menti e traí sempre que foi necessário. 10 Estou agora mais calma e muito arrependida. Se pudesse rebobinava toda a minha vida. Há uns tempos atrás, desesperada com o actual rumo da minha vida, escrevi uma longa carta e pedi à minha filha mais nova, e com quem mais me dou, para a entregar ao pai. Dias depois, foi-me devolvida sem sequer ter sido aberta. Cabrão! 11 PAPI (Your song de Elton John) Escrevo com a seriedade com que brinca uma criança Sabemos, desde pequeninas, que o pai é o homem mais importante das nossas vidas e não o dizemos por ser o nosso pai, mas porque é a mais pura das verdades. Não temos palavras para o descrever mas ele é um homem completo, compreensivo, justo, responsável, correcto, educado, teimoso, carinhoso, amigo, elegante, bonito, amoroso, poeta, sonhador, apaixonado, verdadeiro, transparente, corajoso, lutador, exigente, trabalhador, genuíno, calmo, talentoso, casmurro, paciente, descontraído. Habituámo-nos desde sempre a sentir nele o equilíbrio, a esperar dele a compreensão, a receber dele a atenção que ao longo da nossa vida temos sempre necessitado. Não nos recordamos de alguma vez ter estado ausente, tirando as suas viagens de trabalho, mas das quais nos trazia sempre alguma coisa nem que fossem apenas chocolates. De resto, as noites todas de todos os dias, eram nossas. Aprendemos de tal forma a respeitá-lo que não recordamos alguma vez ter contestado qualquer das suas decisões, se exceptuarmos as vezes em que ele tinha de arbitrar as nossas ridículas disputas infantis de irmãs. Quem perdia amuava, claro, encenando uma terrível tragédia que poucos minutos depois se desvanecia como fogo de palha. Mas mesmo quando nos contrariava, explicava sempre o porquê das suas decisões, ainda que muitas vezes não o percebêssemos ou nem sequer o ouvíssemos de tão furiosas que estávamos. Assistimos ao imenso sofrimento que a nossa mãe lhe causou nos últimos anos de casamento e embora tentássemos manter-nos neutrais sabíamos que a razão lhe assistia. Achamos mesmo que ele até terá sido demasiado brando e paciente com a loucura da nossa mãe. Para nós, foi sempre muito mais que um pai como o divórcio com a nossa mãe bem o prova ao colocar sempre os nossos interesses à frente dos dele. Um homem ficar com três filhas, é por si só estranho. Três filhas adolescentes, cheias de caprichos, exigências, teimosias e fonte de muitas, muitas despesas. 12 Se antes já o respeitávamos, amávamos e admirávamos muito, esses sentimentos aumentaram depois do divórcio para um patamar quase impossível de alcançar. O pai não ficou apenas com a nossa custódia, ficou com tudo o que connosco estava relacionado e em exclusividade. A educação, o carinho, as despesas, o amor, os miminhos, a atenção, ou seja, tudo. Tudo o que é suposto um pai e uma mãe fazerem em conjunto, ele assumiu, sem nunca se queixar, sem nunca pensar ou deixar transparecer que essa situação o prejudicava ou que não era justa. Sempre pronto a ajudar, até pessoas que mal conhecia, alunos, colegas, amigos dos nossos amigos, com dinheiro, (vimo-lo emprestar dinheiro sabendo que nunca o iria recuperar e só porque nós lhe pedimos que o fizesse) ou facilitando contactos de emprego ou simplesmente, com conselhos. A sua bondade é genuína e de família. A mãe dele, nossa avó, é igual. São pessoas que nos preenchem só de as conhecermos. Sofrem também as suas desilusões mas, como não guardam rancor de nada ou de ninguém, vivem felizes porque sabem que a própria vida, se encarregará de fazer a devida justiça. Sozinho, faz face a todas as despesas, nossas e da casa, poupando nas dele, desdobrando-se em trabalho todos os dias das oito à meia-noite, no escritório, em tribunais, dando aulas e escrevendo livros. Nunca se queixa, sempre com um sorriso nos lábios, agradece tudo o que a vida lhe dá. Um exemplo: Sempre tivemos cães em casa que ao longo dos anos, destruíram muita coisa, mas o feitio fácil e paciente do pai sempre aceitou o prejuízo. Quando às vezes lhe telefonamos a contar que eles destruíram qualquer coisa ou fizeram um buraco na parede, ele responde com esta sabedoria e simplicidade: Então só temos que o tapar. O último a entrar em casa foi o Brutus, um pitbull preto. A entrar em casa naquele dia entregamos-lhe um bilhete manuscrito onde havíamos escrito: Esta casa está triste, precisa de mais vida e alegria. Ficaremos encarregues de tudo, dar-lhe comida, banhos, levá-lo à rua a qualquer hora. Não é preciso gastar dinheiro pois já tem vacinas, vitaminas, cálcio, coleira, trela, colete e bonecos. Nas férias ficará sempre connosco. Merecemos pelas boas notas que temos. É um cão alegre, meigo, brincalhão e muito esperto. Não larga pêlo e é muito dedicado aos seus donos e será uma companhia para todos nós e para o Hamlet. E estava ele ainda sem perceber muito bem o que se passava quando a T. surgiu com o Brutus ao colo. E foi logo amor à primeira vista. Muito mais fácil do que pensávamos. O nosso pai tem um coração maior que o corpo. 13 Também nós lhe agradecemos por tudo o que somos e temos. Bem sabemos ser função dos pais proporcionarem tudo aos filhos, mas a verdade é que o nosso pai sempre nos deu tirando de si e continua a tirar de si para nos dar a nós afirmando que já tem tudo e até mais do que necessita. Para ele estamos sempre em primeiro lugar e se cada uma de nós percorre hoje o caminho profissional que desejou, a ele o devemos. Paga-nos os cursos superiores que escolhemos nunca nos pressionando e nada esperando para além da nossa entrega e dedicação e está sempre disponível para tudo o que lhe pedimos. Temos uma relação muito especial confiando incondicionalmente nele e ele em nós. Foi com ele que primeiro falámos sobre sexo. Aceitou bem os nossos namorados, comprava-nos a pílula e criou sempre condições para nos facilitar essa difícil aprendizagem. E foi connosco que ele falou, tendo até a humildade de nos pedir conselhos quando conheceu as duas mulheres por quem se apaixonou depois da nossa mãe. Ambas mais novas, lindíssimas e interessantes mas muito complicadas que não o amaram como ele merecia. Há já dois anos que está só e não conseguimos compreender porquê. Talvez porque não procure e espere que aconteça. Apesar dos seus 50 anos, tem um ar jovem, uns olhos ora verdes ora azuis, cabelo grisalho muito curto máquina três, continua elegante e charmoso, com uma mente jovem e um espírito novinho em folha. Oh! Mulheres deste país, onde têm os olhos? Nós e quem o conhece não pode deixar de o admirar por tudo o que ele é e faz. O seu exemplo (que nem sempre conseguimos seguir, tal como, o de fazer a cama e ter sempre o quarto arrumado) corresponde para nós a muitas lições de vida. Com ele aprendemos a dar tudo sem esperar nada em troca, a não guardar ressentimentos, porque os sentimentos negativos viramse contra quem os sente e não contra quem são sentidos, a darmos tudo o que tivermos sem esperar reconhecimento dos outros, no fundo, a sermos sempre verdadeiros para nós próprios (“Para ser grande, sê inteiro/ nada teu exagera ou exclui/ sê todo em cada coisa/põe quanto és no mínimo que fazes/ assim em cada lago a lua toda brilha/porque alta vive”). São poucas as pessoas cujas palavras correspondem por completo à realidade das suas vidas. O nosso pai é uma delas. Hoje, somos já maiores de idade, temos os nossos namorados e as nossas vidas mas continuamos a viver juntos, não conseguindo conceber a nossa vida sem ele ao nosso lado. Só mortas, sairemos de casa! 14 MATER FAMILIAS (You are the first, my last, my everything de Barry White) Todos os que passam por nós deixam um pouco de si e levam um pouco de nós Quando os meus pais me fizeram já se amavam muito e esse amor, continuei sempre a testemunhá-lo, até aos dias de hoje. Recordo-me, ainda muito pequeno, de os ouvir fazer amor, numas férias, em Vila Real de Santo António, em que dormi no mesmo quarto, numa caminha ao lado da cama deles e, muitos anos mais tarde, ao entrar em casa inesperadamente, de os surpreender em circunstâncias inequívocas, que obviamente, tentaram disfarçar. O meu pai viveu sempre dedicado ao trabalho fora de casa e à família e a minha mãe à família e ao trabalho dentro de casa. Vivíamos de forma simples e comedida, sempre em contenção de gastos e nada desperdiçando porque como dizia o meu pai: quem guarda, tem. Poupávamos nas coisas mais incríveis e que podem parecer ridículas mas era mesmo assim (por exemplo, nos banhos o esquentador desligava-se a meio do duche acabando-se este com a água quente que ainda restava nos canos) O meu pai era um homem autoritário que com a idade foi amaciando a sua maneira de ser. Não admitia ser contrariado nem queria saber a opinião de ninguém, muito menos de nós. O que decidia estava decidido ainda que só por ele. Eu, por detestar o seu feitio, estava frequentemente em desacordo e amiúde em conflito aberto. A nossa relação só não se agravou mais, porque entretanto, saí de casa para estudar em Lisboa. A minha mãe, ao contrário, era um espírito doce e bondoso, cheia de compreensão e paciência, para com tudo e com todos. E um espírito poético também. Tem mais de mil poemas escritos quase todos em forma de quadras irregulares e sobre os assuntos mais díspares desde a Amália Rodrigues até aos animais de estimação. Num dos últimos poemas intitulado Eu sou assim, a minha mãe auto-retrata-se: 15 Sou uma pessoa simples Sou uma pessoa modesta Se tenho os filhos comigo Para mim é uma festa Sou meiga por natureza Não sei maltratar ninguém Ajudo sempre que posso Comigo todos estão bem Não quero ser diferente Mas sou mesmo assim Não digo mal de ninguém Espero que não digam de mim Sou sincera sou leal Isto e muito mais Honesta para comigo Tudo herdei de meus pais Tentei passar aos meus filhos Todos estes predicados E acho que consegui São simples e educados Sou o tudo e o nada Sou tímida e extrovertida Sou triste e sou alegre Carinhosa e convencida Não sou rica não sou pobre E tenho os cinco sentidos Estou velha e tenho idade Mas feliz por ter nascido Sou o princípio e o fim De uma bela meada E quem a souber dobar Terá sempre uma aliada E é assim que me vejo Tal como eu descrevi Já escrevi sobre outros temas Mas adoro falar de mim 16 Uma vocação tardia e só possível, quando começou a ter mais tempo para si, os filhos longe e o trabalho doméstico menos intenso. Foi sempre uma mulher alegre e feliz, embora se queixasse permanentemente de dores (talvez por se chamar Mariana das Dores) e estivesse convencida que iria morrer cedo. Lembro as vezes que passávamos de mão dada, em frente ao Liceu, teria eu quatro ou cinco anos, e ela invariavelmente me dizer: Filho, nunca chegarei a ver-te estudar aqui. Viveu grande parte da sua vida com uma mágoa profunda que testemunhei, o desgosto de não viver numa casa sua pois vivíamos com uns tios do meu pai em casa deles. Só muitos anos depois o meu pai lhe fez essa vontade comprando um andar no mesmo prédio. Quatro anos depois de mim nasceu o meu irmão F., um verdadeiro Adónis e o único artista da família. Ainda na barriga da minha mãe, e numa antecipação dos seus futuros movimentos em palco, já ele fazia os pinos, os mortais e as espargatas que o viriam a notabilizar, anos mais tarde no bailado. Era um atleta completo, um autodidacta do corpo. Em crianças, dormíamos no mesmo quarto e o nosso desporto favorito era lançarmonos, em queda livre, de cima do guarda-fato para as camas, nelas aterrando com glória e estrondo mas sem nunca as quebrarmos nem nos partirmos. Ambos saímos muito cedo de casa dos nossos pais e nunca mais voltámos, a não ser de forma esporádica e de curta duração, tipo visita de médico. Também ele casou cedo, tem duas filhas lindíssimas e ainda continua casado com a mulher certa. Depois de uma carreira brilhante na dança reformou-se aos quarenta anos e é, agora, pintor. No meu quarto, debruçado em jeito de cabeceira da minha cama, um enorme díptico dele espalha, numa profusa orgia de cores, a sua imensa presença de artista. 17 Os filhos não devem morrer antes dos pais (Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler) Tu és o arco a partir do qual são disparados os teus filhos como setas vivas Das minhas manas sou a do meio mas casei primeiro e tive dois filhos que nunca me deram canseiras apesar do nascimento do meu primeiro filho Z. me ter rasgado toda, abrindo-me quase as portas da morte. Durante semanas uma febre estranha prendeu-me à cama num delírio inconsequente e pré-mortal. Mas eu, após já ter perdido duas meninas, desejava tanto aquele filho que me agarrei toda a ele e à vida. E consegui ficar com ambos. Depois de recuperada, pessoas antigas disseram-me que para o menino não ter lua, eu devia, numa noite de luar, pegar nele e olhando a Lua bem nos olhos dizer: Lua, Lua, aqui está o meu filho, ajuda-me a criá-lo. Eu sou mãe, tu és ama, cria-o tu que eu lhe dou mama. Assim o fiz e lhe dei de mamar, tão bom, até aos sete meses. Depois é que foi um problema para comer. Chegava a fazer-lhe várias papinhas diferentes e de seguida mas, mesmo assim, só comia quando o enganava com a chupeta. Fingia que lha ia pôr, ele abria então a boquinha e eu enfiava-lhe finalmente a colher de papa. Mais tarde chegava a ter que o levar para o telhado pois só sentado nas telhas comia alguma coisa. O meu filho Z. foi precoce no andar mas atrasado no falar, tendo começado a gatinhar logo aos quatro meses. E eu (talvez por nunca ter tido, em criança, uma boneca) era a única que lhe dava banho, lhe mudava as fraldas, lhe dava de comer, não permitindo que mais ninguém o fizesse, não por recear que o fizessem mal, mas porque o prazer era tanto que o meu egoísmo de mãe não me permitia partilhá-lo Tirei-lhe tantas fotografias engraçadas, ora sentado numa cadeirinha alentejana com duas agulhas a fazer malha, ora com o bacio na cabeça a fazer de chapéu ou no galinheiro correndo atrás das galinhas, tudo me servia de pretexto para fixar esses momentos que me punham babada de enlevo e admiração. E o dia em que a nossa empregada Ana estava em cima de um escadote e ele se pôs a olhar por baixo das saias saindo-se com esta: boa perna tem a Ana! Anos depois, quando a Ana casou, saiu vestida de noiva da nossa casa e foi ele quem lhe entregou o ramo de flores. 18 Tenho essa fotografia e muitas mais bem guardadas num álbum e no coração. A primeira vez que os avós o levaram de férias para as Caldas da Rainha chorei três dias consecutivos mas, já adolescente, a primeira vez que saiu sozinho apenas com amigos, tive um desgosto devastador aliado ao medo doentio de que algo lhe pudesse acontecer e eu não estivesse lá. Pedi-lhe que me escrevesse todos os dias um postal de correio nem que fosse apenas para dizer: mamã, estou bem. E ele, obediente, escreveu. Já quando era pequenino todas as tardes depois do banho, vestia-lhe um daqueles bibinhos que se usavam naquele tempo, sentava-o numa cadeirinha ou no poial da porta da rua e dizia-lhe: agora o meu menino vai ficar aqui sentadinho e não se vai embora, está bem? E ele ficava entretido a brincar sozinho até o ir lá buscar. Apesar de recordar com muita saudade as suas infâncias, sinto hoje que gozei pouco os meus filhos porque ambos saíram de casa muito cedo para estudar, trabalhar e casar. E ambos casaram muito novinhos. O meu filho Z. adorava-me e dizia muitas vezes que só casaria com uma mulher igual à mãe. Afinal, veio a casar com uma pessoa que era o meu oposto em todos os sentidos. Hoje está divorciado e só demorou vinte e dois anos a perceber as diferenças. Mas de parvo não tem nada. Sempre gostou muito de ler ainda pequenino, desde histórias aos quadradinhos até a grandes calhamaços com centenas de páginas só com letras. Em casa ou na biblioteca municipal estava de manhã à noite agarrado a livros incluindo as próprias férias. Às vezes, nas tardes de Inverno fazia-lhe umas torradinhas com chá pois ele adorava comer e ler ao mesmo tempo. Nos estudos também nunca falhou, passando sempre todos os anos, desde a primária até ao dia em que se licenciou em Direito. Recordo as vezes, ainda no Liceu, em que se levantava, em manhãs frias de Inverno, às cinco da manhã para estudar, sentado numa mesa-de-estufa com braseira de carvão, enrolado numa mantinha, até à hora de ir para os testes. Eu com pena dele também me levantava e ficava por perto fazendo outras coisas. Ao menos fazia-lhe companhia. Depois quando foi estudar para Lisboa, continuou a ser auto-suficiente nunca necessitando que eu ou o pai lhe tivéssemos que resolver quaisquer problemas. Bastava-nos enviar-lhe a mesada, que para pouco mais lhe dava do que para as refeições e os transportes, que ele orientava-se e fazia todo o resto. Contudo, no primeiro ano em que esteve em Lisboa, entusiasmou-se demasiado na Feira do Livro e gastou num só dia toda a mesada do mês. 19 No resto do mês, foi obrigado a comer apenas sopa e as chamadas “repetições” na cantina da Faculdade e acabou por adoecer com hepatite. Só uma única vez me lembra de nos pedir mais dinheiro. Tinham-lhe roubado a carteira com todo a mesada e claro que lho demos sem quaisquer perguntas. O meu Z. nunca nos mentiu. Nem sequer quando estivemos quase a perde-lo. Depois das doenças infantis como o sarampo e a papeira, de uma penosa colite húmida aos 6 anos que o obrigava a passar dias inteiros na sanita com dores e espasmos horríveis, de uma intoxicação com gás do esquentador durante um duche na casa-de-banho da nossa casa em que até desmaiou, de uma estúpida hepatite aos dezoito anos, que o manteve na cama durante um mês a comer os grelhados e cozidos que eu lhe fazia com extremo cuidado e carinho, há uns anos atrás, detectou-se-lhe num exame de rotina, um cancro na bexiga. Foi, de imediato, operado e até hoje tem estado bem. Nem quero pensar no desgosto que teria se tivesse corrido mal. Os filhos não devem morrer antes dos pais. 20 Ah! CANITA… (Os Teus Olhos Castanhos cantada por Francisco José) Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira Comecei a trabalhar era ainda uma criança. Aos doze anos já carregava caixotes de enchidos e sebos, ajudava nas matanças e acompanhava o meu tio às feiras para comprar gado. Também já me punham atrás do balcão do talho a aviar as clientes que me achavam muita graça e faziam festas na cabeça elogiando-me a atitude profissional e o sorriso maroto. Habituei-me a levantarme de madrugada para ter tudo preparado no talho do meu tio, no mercado municipal antes da sua abertura às seis da manhã. Lá permanecia toda a manhã e as tardes passava-as no Matadouro Municipal onde matava desviscerava e desmanchava os animais que no dia seguinte venderia ao quilo e ao balcão do talho. Não é que tivesse um particular prazer em matar mas o momento de espetar aquela faca de lâmina fina e pontiaguda no cachaço das vacas e novilhos e eles como que fulminados abriam as quatro patas e ficavam com aquele imenso corpanzil estatelado no chão de pedra, era um verdadeiro momento de poder sobre a vida e a morte. Sentia-me como uma espécie de sacerdote dos tempos antigos sacrificando diariamente animais aos novos deuses do consumo. Depois abria com um corte cirúrgico, de cima a baixo, os seus enormes ventres donde lhes extraia todas as vísceras e em seguida a pele que ia despegando lentamente da carne, e só depois já em carcaça, iniciava a desmancha. Estive naquele matadouro mais de trinta anos mas nunca me consegui habituar, e hoje ainda me parece por vezes senti-lo, àquele execrável e enjoativo cheiro, oriundo da sala de lavagens das fressuras e das dobradas, que se colava à pele e nem o banho o tirava. À noite, ia para os trapinhos, que é como quem diz, para a cama, logo após o jantar porque às três da madrugada era hora de levantar e voltar ao talho para preparar tudo antes da abertura ao público. Além desta rotina diária e permanente também tinha de ir aos mercados comprar os animais, arrendar as pastagens para os engordar e tratar de todos os pagamentos ao pessoal. Era uma preocupação constante e permanente que nunca me permitiu tirar férias. 21 Só descansava aos domingos em que no Inverno ia ao futebol e no Verão ia à praia a Sines ou a São Torpes. Às 6 da manhã acordava os miúdos acendendo-lhes a luz do quarto com o grito: Toca a levantar, já são horas! Já perto da praia parávamos na estrada para matar o bicho com umas almôndegas ou pataniscas de bacalhau e um vinho tinto. Depois da manhã de praia procurávamos um local no pinhal e aquilo é que era comer e beber antes de dormir a sesta. Na verdade, o que eu sempre mais gostei na vida foi de comer e de beber. A ninguém admirará o cansaço acumulado e a saturação do corpo e da cabeça que me levaram a uma reforma prematura mas da qual nunca me arrependi. Todos aqueles anos de sacrifícios haviam-me permitido amealhar o suficiente para garantir uma reforma modesta mas digna. Mas a mais forte razão pela qual me desgostei daquela vida foi a prisão. Uma brigada da fiscalização sanitária foi um dia ao talho, encontrou umas peças que considerou impróprias para consumo e levantou-me um processo-crime onde fui condenado a uns meses de prisão ou a uma multa. Teimoso como sou e considerando não ser culpado não aceitei pagar a multa e preferi cumprir a pena. Reconheço hoje não ter valido a pena essa pequena avareza tendo sido uma opção errada. Ao contrário, a mais sábia decisão da minha vida foi ter casado com a melhor mulher do mundo, uma espécie de madre Teresa sem hábito mas muito mais bonita. Quando a conheci, tinha ela dezasseis anos, era já uma mulher feita, mais alta que eu, com um peito e um pernão mesmo como eu gostava. Comecei logo a rondar a rua dela mas foi num bailarico a primeira vez que a apertei nos meus braços depois de, à distância, lhe ter feito sinal rodopiando com sensualidade e atrevimento o dedo indicador na sua direcção. E ela disse que sim e lá fui eu. Ah! Canita! Como nessa altura ainda estava na tropa, íamos namorar para o jardim público ao lado do quartel ou encontrávamo-nos no inicio da noite na casa dos seus pais, eu em baixo na rua e ela debruçada à janela. No dia do casamento, saí do talho ao meio-dia, fui a casa tomar banho e mudar de roupa antes de dizer o sim de que nunca me arrependi. É uma fala-barato que não consegue estar um segundo calada mas no primeiro momento em que a vi soube logo que tinha encontrado a mulher da minha vida. Acho que a conquistei definitivamente quando um dia lhe cantei, com uma voz melosa e quente, Teus Olhos Castanhos, uma canção famosa na época. 22 Era assim: Teus olhos castanhos/de encantos tamanhos/são pecados meus/são estrelas fulgente/brilhantes e luzentes/caídas do céu/Teus olhos castanhos são mundos são sonhos/ são a minha cruz/ Teus olhos castanhos de encantos tamanhos/são raios de luz/ Olhos azuis são ciúme/de nada valem para mim/olhos negros são queixume/de uma tristeza sem fim/olhos verdes são traição/são cruéis como punhais/olhos bons como o coração/os teus, castanho leais. Hoje, com quase oitenta anos de idade e mais de cinquenta de casamento, não consigo compreender como ela conseguiu suportar-me tanto tempo. Tenho um feitio difícil e sou de ideias fixas. As coisas fazem-se como eu quero ou não se fazem. Estou convencido que paciência desta mulher deve ser infinita. Além dos trabalhos domésticos nos quais é perfeita, nos últimos anos deu-lhe para escrever. Passa os dias enchendo folhas e folhas de cadernos com quadras, estórias e até, desafiada por um dos filhos, já escreveu as memórias. Para além de tudo isto, deu-me dois filhos muito melhores do que eu e, quando assim é, um pai só pode sentir orgulho e vaidade. E ainda bem que não tive filhas. Tenho umas ideias um pouco antiquadas sobre as mulheres, a sua educação e o seu papel na sociedade pelo que teria sido um grande problema para mim e principalmente para elas. Ainda recentemente a minha neta mais velha me pediu para passar com o namorado um fim-de-semana na minha casa do Algarve. Claro que sim, disse-lhe, mas como não são casados o rapaz terá de dormir noutro sítio. Acabaram por ir ficar no parque de campismo. O pai dela, o meu mais velho, ainda me telefonou tentando convencer-me a mudar de ideias. Como não conseguiu demover-me, acusou-me de o ter desiludido muito pois já me pensava mais aberto e sensível aos novos tempos. Filho, eu sou assim, o que é que tu queres, um pouco rígido talvez mas tenho as minhas ideias e não consigo mudar. O outro meu filho, o mais novo, diz que eu tenho uma personalidade primitiva e machista mas ele pode dizer o que quiser, não me importo. Acho que também tenho sido um bom marido. Pelo menos é o que ela diz. Nunca fumei nem bebi (só não dispenso o vinho às refeições), nunca perdi dinheiro ao jogo nem tive amantes como os homens da minha geração costumavam ter. Desde que me reformei com pouco mais de quarenta anos nunca mais fiz nada. Não leio, faz-me doer a vista, não ouço música, é só barulho, só saio de casa para ir às compras, mas gosto de comer e de ver televisão de manhã à noite. 23 Também gosto de poupar. Em tudo. Como estou sempre a dizer: quem poupa tem! À minha mulher, por exemplo, estou-lhe sempre a desligar o forno para poupar energia, e por vezes lá fica o bacalhau um pouco cru ou a perna de peru ainda em sangue, mas não me importo. Aliás, para mim tudo o que a minha mulher cozinha está sempre bem e com o sou de boa boca gosto de tudo. Também desligo sempre o esquentador antes de terminar os duches pois não é conveniente fechar a torneira e a água quente permanecer nos canos. Estraga-os. Todos os dias muito cedo ando de bicicleta e faço musculação com uns pesos artesanais que eu próprio fiz com umas garrafas de plástico engordadas por areia da praia. Consigo assim manter-me em forma e, até ao momento, cheio de saúde. Mas às vezes sinto tonturas e tenho medo, medo não, pavor da morte. Gosto demasiado da vida para a perder. 24 A INICIAÇÃO DO AMOR (Whatever will be will be, cantada por Doris Day) Gosto mais de ti que do sol do sal ou de mim Enquanto adolescente a minha primeira e única paixão, assolapada mas platónica, chamou-se Maria José. Era linda, de pele muito branca e olhos de um verde mais claro que as águas de um lago pouco profundo. Era amiga de uma prima minha que a conhecera num acampamento de férias onde haviam cimentado uma daquelas amizades adolescentes que se julgam profundas como o mar e eternas como o tempo. Não admira que tenham desde logo concordado em prolongar aquela relação estival para o resto do ano combinando passar o resto do Verão na cidade da nossa infância. Foi aí que a conheci. Nunca até então, e eu já tinha treze anos, qualquer rapariga me havia despertado da infantil letargia do bibe e do calção que inibe os rapazes de constatarem que o mundo se encontra dividido em masculino e feminino. Bom, talvez esteja a exagerar. O que eu quero dizer é que até esse momento nenhuma outra rapariga me havia impressionado ao ponto de provocar aquela aceleração do coração que nos faz fazer figuras de parvo diante de uma mulher. Nessas alturas, não sabemos o que dizer, onde enfiar as mãos, para onde olhar e sempre que lhe falamos as palavras parecem sair arrastadas, moles e sem nexo. Para um rapaz da minha idade, estava até convencido de possuir um grau elevado de maturidade, fruto muito cultivado da minha paixão pelos livros que desde criança devorava compulsivamente. Essa febre livrofágica permitira-me, assim o julgava, ter adquirido um capital de vivências sentimentais e um alargado espectro de experiências alheias geradoras de um conhecimento profundo das realidades da vida. Pura ilusão! Não passara da sua película mais superficial (“há que procurar para além da superfície e mergulhar no oceano profundo da vida. Só assim haverá alguma esperança”). Porém, esse saber de leituras feito fazia-me sentir uma agradável presunção de superioridade que, enganadoramente, me fazia pairar nas alturas sobre os 25 comuns mortais da minha idade e me punha a coberto das suas infantilidades. Confundia assim a verdadeira timidez e a efectiva insegurança que sentia com um estado de espírito superior, naturalmente, falso e aparente. Digamos que era uma defesa como outra qualquer! Mas disso só tive consciência no dia em que a Maria José olhou para mim e não me viu. Naquela altura eu era mais um adolescente sem graça, entornado para dentro de mim próprio. Baixinho, com cabelinho curto e espetado, movimentos desajeitados, roupa e corpo em desalinho, infiel às modas juvenis do meu tempo, a minha capacidade de atracção era igual a zero. A Maria José, pelo contrário, já pintava os olhos e punha rímel nas pestanas, nos lábios não precisava de nada porque já eram doces e cor de sangria, o seu corpo era um poema mais belo que qualquer um dos que eu nesse tempo escrevia, e as únicas roupas que lhe conheci eram calções muito justos e tops que lhe espalmavam o peito quase inexistente. Talvez por ser filha única de pais separados, dos rapazes, o que ela apenas pretendia, era que a fizessem rir e a divertissem e o meu ar sério e embaraçado, por certo, a aborrecia. Escrevi-lhe poemas que ela nunca leu porque não lhos mostrei, sonhei passeios de aventura para os quais nunca a convidei, fantasiei cenas de amor em que nenhum de nós participou, imaginei o meu futuro com ela, sem conseguir sequer ser, o seu presente. Nos bailes de garagem organizados pela miudagem ficava a vê-la dançar com outros, lançando-lhe olhares tristes e pesarosos de amante rejeitado. Fingia, entretanto, divertir-me perdidamente, falando alto e rindo com um riso cujo som mais parecia o de um animal ferido ou moribundo. Por vezes pedia-lhe para dançar, ela dizia que sim, mas eu tremia o tempo todo e as músicas que nesses momentos eram tocadas, (o samba pa ti de Carlos Santana, a whiter shade of pale dos Procol Harum ou o will shall dance de Demis Roussos) tornavam-se hinos que, à noite ouvia, em discos de vinil, no meu quarto, de olhos fechados, rendido e maravilhado. Um dia, num desses bailes, disse-lhe ao ouvido baixinho: Quero confessar-te uma coisa. Não quero ser só teu amigo. Amo-te um bocadinho. Pondo as mãos no meu peito a Maria José olhou-me de lado com um riso gargalhado e disse-me: Não estás bom da cabeça! E deixou-me a dançar sozinho. Envergonhado, não mais apareci à sua frente. Uns dias depois foi-se embora de regresso a casa e até hoje não a voltei a ver. 26 Há dias contei esta história a uma das minhas filhas que me disse: Deixa lá pai, nem ela sabe o que perdeu. Como sabe bem ouvir estas coisas. Uns anos depois, após um brevíssimo entusiasmo que o meu pai, numa atitude que teve tanto de sábia quanto de autoritária, acabaria por terminantemente proibir e, mais uma vez no Algarve, durante umas férias de Verão, tive a minha verdadeira iniciação sexual. Na praia, ao luar, depois de te sido engatado num bar, perdi a minha virgindade com uma estudante de medicina, ninfomaníaca e sem vergonha. Depois dessa noite, seguiram-se duas semanas loucas de sexo puro e duro mas desajeitado e sem pinga de amor, de parte a parte. Na última dessas noites, entrou-me na cama às seis da manhã a tresandar a sexo. Confessou-me não ter resistido a experimentar com um amigo gay, só para saber como era! Mais depressa do que entrou saiu e nunca mais soube nada dela. 27 OH! AMIGOS MEUS… (The thrill is gone de B.B. King em dueto com Eric Clapton) Sou inocente. Confio. Tenho o maior poder do mundo. Nunca na minha vida tive muitos amigos, daqueles com os quais sentimos uma espécie de corrente eléctrica que nos faz aceitar tudo o que se diz, se faz ou se quer fazer, mas sei muito bem o que é a amizade. Aquela amizade quimicamente pura, de amor sem sexo, de osmose dos pensamentos, de expressão de vontades a uma só voz. Destes amigos e desta amizade, numa vida inteira, nunca encontramos mais do que dois ou três. Eu acho que tive três que conheci na Universidade (a tropa também os faz mas eu nunca a fiz) e enquanto a vida nos deixou fomos unhas com carne. O A. era natural de Matosinhos, alto, moreno e forte, jogava andebol aos fins-de-semana num clube lá da terra. Era de nós todos o mais calado mas quando se ria o seu riso contagiava quem o ouvisse. Era o único que já namorava embora a namorada estudasse no Porto e o seu ar sisudo, por incrível que pareça, despertava sentimentos, mais ou menos maternais, nas mulheres que ele, obviamente, não rejeitava. As nossas conversas, os momentos de estudo, as refeições na cantina eram tão gratificantes e afiguravamse-me de uma importância tão transcendente que me faziam sentir um privilegiado por ter um amigo assim tão fantástico e único. Todas as tardes, depois das aulas e do estudo, descíamos em direcção aos Restauradores e íamos ao cinema no Palácio Foz, ver ciclos completos das obras de Antonioni, Bergman, Renoir, Truffaut e tantos outros monstros da realização. Nessa altura o cinema era de autor e não de actores como é hoje. O N. viera de Angola, fugido com a família das consequências excessivas da Independência. O seu cabelo comprido e loiro, cai-lhe nos ombros e uma barba esparsa e reles de poeta parisiense quebrava-lhe o tom feminino do rosto. Era vaidoso e não tinha vergonha. Os seus olhos verdes e as suas palavras atrevidas permitiam-lhe mudar de namorada como quem muda de peúgas. Tinha sempre programas e nos intervalos abria os livros, embora rapidamente os fechasse. 28 A sua especialidade eram as festas orgiásticas que dava na sua casa onde reunia os seus amigos e principalmente as amigas de Angola, lá tentando repetir o ambiente encantado e sensual das festas africanas. Gabarola como era, não se escusava de me pintar, com traços fortes e cores quentes, descrições mais ou menos fantasiosas do que por lá se passava. O R. era o político que tinha vindo do Alentejo onde tinha tribuna debaixo das arcadas da praça do Giraldo. Tinha cabelos castanho compridos e uma barba revolucionária e como todos os alentejanos era também poeta e pintor, declamando, amiúde e em quaisquer circunstâncias, entre muitos outros, António Maria Lisboa, Mário Cesariny, Alexandre O’Neil, Fernando Pessoa (e Álvaro de Campos), Eugénio de Andrade, Herberto Hélder e Ramos Rosa. Muitas noites passámos juntos, lendo em voz alta e empolgada, um ao outro, estes e outros poetas, Rimbaud e Baudelaire, Ginsberg e Yeats ao som da música de Bob Dylan, Van Morrison, Patty Smith e Frank Zappa. Como só eu possuía carta de condução era a mim que cabia conduzir-nos por aí sem destino, no velho carro da mãe dele, um Datsun SSS, mais maluco e potente que qualquer um de nós naquela idade. Várias vezes, servi de motorista dele e das suas muitas namoradas, e enquanto conduzia ouvia-os, embrulhados no banco de trás, numa sonoplastia de beijos, murmúrios e gemidos. Nessa altura fumávamos e tivemos algumas vezes que fugir à Judiciária tremendo com medo de sermos apanhados na posse de umas míseras gramas de erva ou haxe. Vivíamos numas águas furtadas de uma casa senhorial na Rua da Madalena e foi lá que pela primeira vez senti aquela sensação de violentação quando somos roubados. Havia recebido há pouco tempo a minha mesada, apenas trezentos euros na moeda de hoje mas que muitos sacrifícios custavam aos meus pais e que eu tinha de esticar até ao limite do impossível durante um longo mês. Coloquei, à vontade como sempre fazia, a carteira na cómoda ao lado da minha cama e já não sei o que fui fazer. O que sei é que quando regressei ao quarto a carteira tinha desaparecido. Estava sem dinheiro e sem documentos. Fui obrigado a ter de pedir aos meus pais nova mesada. Combinámos encontrarnos em Setúbal, onde o Benfica jogava nesse domingo. Apareci-lhes de sandálias indianas, calças de bombazina gastas e desbotadas, uma camisola interior branca de lã grossa das antigas e por cima de tudo isto, um sobretudo castanho, comprido e encardido que havia pertencido ao avô de um colega. 29 Quando me viu, perante o meu aspecto, o meu pai até chorou. Ainda hoje quando recordamos esse momento ele fica emocionado. Uns dias depois a carteira reapareceu em cima do telhado com os documentos mas, obviamente, sem o dinheiro. Vi-a pela janela da mansarda, subi ao telhado, recuperei-a e sentado nas telhas olhando o perfil mágico e triste de Lisboa, perplexo e atónito, compreendi que também existem ladrões que são amigos. 30 31 VÊEM AÍ OS VIKINGS! (Trust in Me de Susheela Raman) Gémeos idênticos não têm o mesmo futuro (Pitágoras) O meu amigo J. gostava de parafrasear Pessoa dizendo que havia chegado aos 50 anos sem nada ter feito na vida, na ciência ou na sua própria individualidade. Era o meu amigo mais antigo dos tempos do Liceu e era o maior bicho-do-mato que alguma vez conheci. Não tinha vícios. Não bebia, não fumava e não fodia. Nunca o vi com uma namorada nem alguma vez suspeitei que estivesse apaixonado. Passa, ou melhor arrasta, como ele diz com exagerado ênfase, os seus dias entre o quarto alugado em Lisboa, o seu gabinete de professor catedrático no Técnico e a sua verdadeira casa na província alentejana. Éramos inseparáveis enquanto estudantes no Liceu mas depois a vida separou-nos e só muitos anos depois nos voltámos a encontrar. Telefonoume uma tarde e combinámos encontrar-nos ao final do dia. Fartámo-nos de falar fazendo um ponto de situação da nossa vida sem interesse até ao momento em que com surpresa o ouvi confessar-me que só desejava morrer. Mas porquê? Perguntei-lhe. Isto não vale a pena, respondeu. Não tenho estrutura para viver e quanto mais cedo morrer melhor. A que conduz a solidão? À iluminação ou à aniquilação? Perguntei a mim próprio. Eu sei que a vida tem o seu quê de criminoso e ninguém está inocente. Mas não estás a ser demasiado pessimista e radical? Já te interrogaste, pergunta-me ele esfregando o olho por dentro dos óculos, qual é o sentido da vida? Haverá outra maneira de pensar, no sentido da vida em que a morte tem sempre a última palavra, que não no seu absurdo, considerando-se o absurdo, na sua acepção existencialista, como o confronto entre a razão humana e a indiferença do Universo? É verdade, respondo, mas como defendia Camus, se não nos podemos revoltar contra o absurdo, podemos sempre rirnos dele. E mais, acrescento ainda eu tentando reforçar a ideia, acredito mesmo que podemos viver sem a esperança de sermos recompensados pelo que fazemos, conscientes que só os nossos comportamentos e atitudes, ao lutarmos pelos nossos objectivos, poderão fazer a diferença e criar uma vida com sentido através das escolhas que vamos fazendo. Do fundo do seu olhar míope J. e abrindo os dedos das duas mãos num gesto muito seu para dar mais ênfase às palavras, É bem 32 bonito o que dizes mas o maior falhanço de uma pessoa é quando vive uma mentira e se engana a si própria. Ora, ora, e mudando de assunto para desdramatizar, Falaste há pouco de existencialismo. Curioso há anos que não ouvia essa palavra! Quando tinha vinte anos fartei-me de ler Sartre. Virá talvez desses tempos a minha convicção que é da responsabilidade de cada indivíduo determinar o sentido da sua própria vida e ser responsável pelos seus actos. Devemos viver o momento presente e esforçar-nos para conseguir entender, enfrentar e viver com os factos da vida. Ouve, diz ele, Eu sei perfeitamente que não existindo um sentido préestabelecido da vida, o sentido da nossa própria vida só pode decorrer das escolhas reais que fazemos. E as minhas foram certamente erradas. Sim, sim, achei dever precisar, embora para essas escolhas existam condicionalismos de ordem genética e cultural que as podem afectar. Mas não te compreendo, és um cientista, tens uma carreira académica e reconhecimento profissional, estabilidade económica… Z, diz ele ajeitando os óculos num gesto que nele significava fatalidade, A ciência dá respostas mas não ensina a viver e a capacidade económica pode fornecer-nos os recursos que necessitamos para viver mas não é suficiente para nos proporcionar uma vida realizada. Ora aí está, por isso mesmo a criação de uma vida com significado é semelhante à criação de uma obra de arte, como se déssemos um estilo ao nosso próprio carácter. Não me digas que deste agora para filosofar? Eu? Não. Toda a gente sabe que a filosofia é uma espécie de comédia absurda mas sem piada. Nietzsche disse um dia que não queria decepcionar ninguém, nem mesmo a ele próprio mas eu sinto que, ao contrário, decepcionei toda agente começando por mim. Não acredito. Soam-me a falso essas palavras. Acredita sim porque nada há de mais verdadeiro que uma calúnia sincera. Afinal quem é que está a filosofar? Perguntei tentando levantar-lhe o ânimo, Lembras-te daquele filme dos Monthy Pynthon, o Sentido da Vida, em que na cena final uma das personagens diz que vai finalmente anunciar o sentido da vida e, abrindo um envelope, lê: “Bem, não é nada de especial. Tentem ser bons uns para os outros, evitem comer gorduras, leiam um bom livro de vez em quando, dêem uns passeios e tentem viver em paz e harmonia com as pessoas de todos os credos e nações”. Parece simples, não é? E porque é que não é? É simples, sim, as pessoas é que complicam tudo. Deixame recordar-te mais uma vez os Malucos do Circo naquele episódio que decorre num cenário de talk-show 33 com vários convidados já cadáveres imóveis nos seus lugares. Lembras-te? O apresentador pergunta: -Meus senhores, há ou não vida depois da morte? -Sir Brian?...(silêncio); Professor?...(silêncio); Padre?...(silêncio) Muito bem, aqui está, os três acham que não. Rimo-nos à brava, claro. 34 DEUS? O QUE É QUE SE PASSA? (You Know I’m not Good de Amy Winehouse) Se Deus existe espero que Ele tenha uma boa desculpa (Woody Allen) Mas J. estava mesmo virado do avesso e não se deixou desarmar facilmente. Já faltava que chamasses à colação a religião. Sabes bem que a fé religiosa é filha da ignorância e do medo e as religiões surgem num período da pré-história humana em que ninguém fazia a mínima ideia do que estava a acontecer. A fé religiosa fundamenta-se em mitos e pensamentos ilusórios, é resultado e causa da repressão sexual, falseia a origem do homem e do cosmos e nem sequer contribui para melhorar o relacionamento social porque a ética e a moral são independentes da fé e dela não derivam. A fasquia da conversa subira subitamente. Não podia deixar de lhe dar luta e respondi categoricamente, As religiões e a fé que delas emana são, obviamente, produções humanas com todas as características da sua natureza. Não foi um deus que criou o homem à sua imagem e semelhança, mas sim o homem que criou primeiro vários e depois um deus à sua imagem e semelhança. Por isso, nenhuma religião se contenta apenas com as suas certezas sublimes e vai interferindo nas vidas dos não crentes ou dos adeptos de outras crenças, por isso não têm confiança em si próprias e se pudessem até aniquilariam as suas concorrentes. Assino por baixo, condescendeu, E mais, as religiões não só são criadas pelo homem como, e exactamente por isso, são fundamentalmente masculinas na medida em que diminuem a mulher reduzindo-a a quase nada. Sabias que no livro sagrado Talmude ordena-se ao crente que agradeça todos os dias ao criador por não ter nascido mulher e que no Antigo Testamento se afirma que a mulher foi criada do homem para seu uso e consolo? É verdade, reconheci e acrescentei, e não é só nas religiões cristãs porque no Alcorão a par das numerosas e rígidas proibições ao sexo existem promessas de eterno deboche com virgens, no paraíso, após a morte. Já há muito havíamos passado o Técnico onde me encontrara com ele no seu gabinete. E que gabinete!! Indescritível. Era o caos sem teoria. Nele se misturavam 35 no chão, na secretária, nos armários, no parapeito da janela desde livros a papéis, relatórios, produtos de higiene, bolachas e pó de baratas. Quando estupefacto lhe perguntei porque não dava uma arrumação respondeu-me que não tinha espaço. OK. Entretanto, estávamos quase a chegar à Espiral e a fome apertava mas ainda tive forças para avançar na conversa. Só mesmo o argumento de fé, disse-lhe, permite acreditar que o Alcorão, foi ditado por um anjo, em suratas e versículos que plagiam mitos judeus e cristãos, a um mercador analfabeto que depois os transmitiu oralmente em árabe língua que por sua vez só foi uniformizada no final do século IX. -Mas não te esqueças, responde-me ele, que o Islão nasce da inveja pois os árabes desse tempo estavam ressentidos por deus ter aparecido aos Judeus e aos Cristãos mas não ter enviado aos árabes nenhum profeta nem revelado nenhuma escritura em árabe. Vai daí, um dia em que Maomé se encontrava retirado numa gruta, no meio do deserto, em pleno mês quente ou Ramadão, provavelmente a dormir ou em transe, ouviu a voz do arcanjo Gabriel a ordenar-lhe que lesse. Ele ainda respondeu por duas vezes que não sabia ler mas por três vezes lhe repetiram a ordem. Tendo ainda questionado o que deveria ler foi-lhe apenas dito que lesse e que seria o mensageiro de Alá. A conversa fez-me recuar no tempo, até àqueles anos em que adolescentes, passeávamos pelas ruas estreitas da cidade antiga, à volta do castelo, pela noite fora dentro do seu silêncio. J. era de uma aguda inteligência e um conversador estimulante e já tinha saudades destes nossos debates. -Tal como os evangelhos que integram a Bíblia foram escritos muitas dezenas de anos depois da morte de Cristo e seleccionados e compilados em livro conforme os interesses e as conveniências de quem a efectuou seiscentos anos depois, na época de Constantino também os relatos que descrevem os actos e as palavras de Maomé só foram reunidos 120 anos depois da sua morte, desconhece-se como é que os seus seguidores reuniram os textos de conselhos, aforismos e adágios que constituem o Alcorão. Entretanto, já havíamos escolhido o guisado de tofu e a empada de cogumelos que fumegavam nas bandejas e enquanto enchíamos de água os copos, J. acrescentou, Em 2005, na Nigéria, um grupo de personalidades religiosas emitiu uma norma (fatwa) que declarava que a vacina da poliomielite fazia parte de uma conspiração genocida dos EUA contra a fé muçulmana e que se destinava a esterilizar os crentes 36 Então, respondi eu enquanto procurava uma mesa livre, e as declarações de responsáveis católicos sobre os preservativos? Não são elas de tal forma absurdas e irresponsáveis desde afirmarem que os preservativos transmitiam a sida até à de que as mulheres mortas pela Sida, por se recusarem a usar preservativo, deviam ser consideradas como mártires. - É só hipocrisia. Vê o caso do Islão que proíbe a prostituição. No entanto, existem casamentos temporários, cujos certificados, emitidos por mullahs, são válidos apenas por algumas horas, findas as quais se entrega uma certidão de divórcio. E no Irão, onde os fundamentalistas xiitas reduziram para nove anos a idade de casamento inspirados porventura pela idade da esposa mais jovem de Maomé. Aqui, parámos a pensar em como será casar com uma CRIANÇA DE NOVE ANOS e durante alguns minutos só nos ouvimos a mastigar! Até que J. não se contendo e retirando com o dedo indicador um grão de arroz do canto da boca quase que grita, porque é que os dez mandamentos nada dizem sobre a protecção das crianças, violação, escravatura ou genocídio? E, pelo contrário, no 2º versículo do capítulo seguinte, “Deus” explica a Moisés quais as condições que deve o seu povo observar para comprar ou vender escravos e quais as regras para a venda das suas próprias filhas. J., digo eu com a assertividade própria das grandes verdades irrefutáveis, Todas as religiões estão esgotadas nos seus pressupostos e desacreditadas face ao conhecimento dos tempos actuais. O telescópio e o microscópio substituíram as religiões no seu papel de explicação do mundo. Quem é que ainda acreditará que se cortarmos os nossos prepúcios em pequeninos, se rezarmos na direcção certa várias vezes ao dia ou se engolirmos diariamente pequenas bolachas de pão, seremos salvos? Essa é muito boa, Z., e sabias que os Talibãs proibiram recentemente o papel reciclado porque pode conter na sua composição fragmentos de algum Alcorão abandonado? Isso é apenas ignorância. Mas, no fundo, as pessoas ainda têm medo das forças que afectam a sua vida mas que estão para lá do seu controlo. Chamam Deus a essas forças e procuram apaziguá-las através da devoção religiosa. Já dizia S. Anselmo que Deus era aquele ser em relação ao qual nenhum ser superior podia conceber-se. E o que é que isso significa? 37 Não faço a mínima ideia. Mas pelo sim pelo não aconselho-te a rezares a oração do capelão da escola dos Monthy Python: “Oh senhor, ooooh, Tu és tão grande. Tão absolutamente enorme. Caramba, estamos todos impressionados cá em baixo, garanto-te. Perdoa-nos senhor, por esta terrível bajulação. E descarada lisonja. Mas tu és tão forte e, enfim, tão super. Fantástico. Ámen.” 38 O renascer interdito (Hide in your shell dos Supertramp) A única flor que tem asas é a borboleta Uns meses após a separação de T., apaixonei-me quase sem querer (o amor não se procura, encontra-se). Conheci B. na praia. Estava sentado na areia, num fim de tarde, a ler. Ao levantar os olhos do livro vi passar uma mulher, molhada e nua, com o sol a brilhar nas gotas de água coladas ao corpo, iluminando-lhe a pele como chamas fugazes. Ao fim de umas semanas de discreta e silenciosa contemplação, enchi-me de coragem e ofereci-lhe um poema. Num poema é tão difícil captar o instante como evocar a eternidade mas este poema teve o condão de lhe despertar por mim, senão o interesse, pelo menos a curiosidade. Mas nada mais que isso. Era fotógrafa e pintora, coleccionadora da luz e de cores. Possuía raízes cabo-verdianas e era tão simples e desprendida de modas que só gostava de vestir calças e calçar ténis. Vivia nas águas furtadas de um prédio pombalino, ao Chiado, com uma filha adolescente tão bonita quanto ela. Gostava tanto daquela casa que até lhe escrevi este poema: A tua casa é um oásis de amor à beira-mar do desejo onde os nossos corpos nus escalam montanhas de seda e se abrem como veias. A tua casa é uma veia de amor aberta onde oásis de desejos se escalam como montanhas nuas e se abrem à beira-mar como a seda dos corpos. A tua casa é um corpo nu de amor e desejo onde nos abrimos como uma montanha de veias à beira-mar de oásis de seda. A tua casa é um desejo de seda à beira-mar onde oásis de corpos se abrem escalando nus amores de montanhas e veias. 39 A tua casa é uma montanha de desejo onde os nossos corpos de seda se abrem de amor escalando oásis de veias e desejos nus à beira-mar. A tua casa é uma seda onde montanhas de oásis se abrem aos desejos de amor como veias à beira-mar dos corpos escalados e nus. O seu casamento pouco durara e depois tivera mais dois relacionamentos igualmente curtos. O primeiro com outro fotógrafo e artista, obcecado pelo seu trabalho, embora o que nele mais se destacasse, não fosse a sua obra, mas um sexo descomunal que mais parecia um braço de criança pendurado entre as pernas. O segundo fora com um bailarino tão feio quanto vaidoso e sedutor que se gabava de ter dormido com mais de duzentas e cinquenta mulheres. Um verdadeiro Don Juan dos nossos dias mas sem criado para lhe registar as conquistas. B. era uma mulher Isolada na alma e viciada em solidão. Fazia lembrar um satélite solitário, prisioneira da sua cápsula de solidão, a navegar em órbita fechada no seu céu. Gostava de mim mas não me amava. Nem uma só vez me disse: amo-te. Acho que ela apenas se deixou amar! (“Saber amar é saber deixar-se amar”). Será mesmo? B. não se conseguia entregar a ninguém e evidenciava uma insegurança ou timidez que a impedia de manifestar as suas emoções ou afectos. Que eu me lembre nunca tomou a iniciativa de me abraçar ou beijar e quando eu o fazia, quase sempre subtilmente, me afastava e raramente retribuía. Era assim arisca talvez por ter sido a mais nova de sete irmãos que lhe fizeram o ego em papas ou pela figura tutelar da mãe, pessoa excelente, mas uma espécie de marechal de saias. (Aliás, a história dos seus pais é admirável: O pai, um cabo-verdiano de uma família com posses, não se podendo casar com a mulher que amava por esta estar noiva de outro homem, jurou-lhe que havia de casar com a primeira das suas filhas. Esperou vinte anos e casou mesmo!) Durante três anos, vivi uma paixão singular, não retribuída na mesma e exacta medida, mas vivida por mim como se o fosse (“a única medida do amor é o amor sem medida”). Perdi a conta aos poemas que lhe escrevi e às mensagens que lhe enviei. E o dia para mim só terminava com o telefonema da meia-noite que eu antegozava muitas horas antes ao longo do dia. Passávamos juntos todos os fins-de-semana no Meco, que amávamos com devoção, passeando de mãos 40 dadas pela praia e pelos pinhais, cozinhando em casa petiscos alentejanos e provando muitos, muitos vinhos. E não se passava um dia sem irmos à praia, fizesse chuva, vento ou sol. Éramos naturistas na melhor e mais democrática praia do mundo, o Rio da Prata, verdadeiramente, única. Contrariamente à maioria das outras praias naturistas fora de Portugal, que são exclusivistas e não permitem o acesso dos “têxteis”, no Rio da Prata, a superioridade moral e a generosidade dos “nus” permite que todos nela possam estar tranquilamente. Por isso lá se vêem famílias ou grupos, em que cada um está como quer, uns vestidos outros despidos e ninguém incomoda nem se sente incomodado (Nus ao lado de nus /estranhos entre si/ mostrando-se aparentemente desinteressados/ pretendendo não reparar em nada/ para manter a ilusão/ de não serem observados). Nela, sentíamo-nos totalmente em liberdade e naquele mar e naquele areal, éramos capazes de passar horas e horas sem fim. Aliás, o fascínio daquela praia começa logo pelos caminhos de acesso, envolvidos por pinheiros semeados de matas de urze e zimbros. Depois, já na areia da falésia começa a descobrir-se o azul, não se distinguindo se é do mar ou se é do céu e, em certos dias, quase dá a impressão que se levantássemos os braços conseguiríamos tocar as nuvens. Um pouco antes de chegar ao trilho de descida da falésia vislumbra-se a primeira nesga de praia e a linha das ondas e o coração bate mais rápido seduzido por aquela beleza. A descida é um pouco perigosa mas num instante aterramos no imenso areal e depois é só procurar a melhor duna, o mais perto possível da rebentação. Era para mim, indescritível, a alegria que sentia e a música que dentro de mim ouvia quando, de mãos dadas, percorria com B. aqueles caminhos mágicos em direcção à praia. Ainda hoje continuo a sentir a presença de B. em todos estes locais, no meu coração e sempre, sempre na minha cabeça (e na minha cabeça passam-se tantas coisas que de muitas delas nem chego a tomar conhecimento). Talvez a amasse não tanto pelo que ela era mas mais pelo que eu era e sentia quando estava com ela. Quando nos apaixonamos provocamos sempre um colapso temporário e parcial das fronteiras do nosso ego, expandimos o nosso eu, o que nos dá uma sensação de absoluta plenitude, de entrega total, com a poesia sempre presente. O deslumbramento. 41 Nunca antes sentira esta força, esta alegria, este entusiasmo como se tivesse deuses loucos de desejo pulando dentro de mim (“amamos mais o desejo do que o ser desejado”). A necessidade de estar com ela e o prazer que retirava da sua presença era pior (ou melhor?) que uma droga da qual tivesse criado uma fatal dependência porque os processos químicos desencadeados são similares, uma vez que os circuitos cerebrais activados no amor são os mesmos que funcionam nos toxicómanos em estado de necessidade. Não é por acaso que o amor-paixão é um sentimento tão exacerbador de emoções que nos torna irracionais e ilógicos de um modo involuntário e incontrolado. Os processos cerebrais de precaução e o pensamento racional desligam-se e ficamos totalmente expostos e desprevenidos porque demasiado confiantes. Mas estar apaixonado requer a criação, tanto no cérebro como na vida, de um espaço para o ser amado, incorporando-o na nossa própria imagem. E aí a nossa relação falhava pois, B. não tinha espaço na sua vida para mim. E sendo o amor uma rua de dois sentidos, a rua do nosso tinha apenas um. A propensão básica para o envolvimento romântico de B. não existia. Sabe-se hoje que a disponibilidade de cada pessoa para se apaixonar e envolver em termos emocionais está programada no seu cérebro, sendo afectada pelas respectivas experiências e condições hormonais. Algo no seu passado, porventura os laços afectivos estabelecidos com as suas figuras familiares de referência ou as suas primeiras experiências de iniciação sexual, ter-lhe-ão marcado indelevelmente a formação dos seus circuitos cerebrais de confiança, impedindo-a, sem que ela sequer suspeitasse, de confiar e se entregar. Ora eu, ao não encaixar na forma como a sua cabeça estava programada, também não despoletava o indispensável fluxo das substâncias necessárias para a atordoar e focalizar em mim, de modo a criar nela aquele estado a que vulgarmente chamamos de amor ou paixão. Esta reacção química, entre duas pessoas, pode parecer acidental, mas a verdade é que estamos ancestralmente programados para que ela aconteça ou não aconteça, independentemente da nossa vontade (“Padrões definidos há milhares de anos, uma espécie de herança genética da raça humana, determinam as nossas escolhas amorosas”). 42 Pela parte de B. nunca aconteceu, como aliás, ela muito bem intuía, pois frequentemente me atirava, com uma pontaria que me atingia directamente no coração, esta farpa terrível e fatal: entre nós, não há química. Da minha parte sei que havia e muita mas não era suficiente para compensar a que faltava nela (“os homens amam as mulheres que desejam e as mulheres desejam os homens que amam”). Um dia, cansado de carregar o piano da relação, embora sentido estar a amputar uma parte de mim, cortei definitivamente. Platão tinha razão: “O amor está em quem ama e não em quem é amado”. 43 44 A deusa saída das águas (The blower’s daughter de Damien Rice ) O luar não molha nem agita o mar Foi totalmente inesperado. Ao levantar os olhos do livro, numa pausa de virar de folha, vi-a saindo do mar, molhada e nua, cabelos escorrendo em catarata, corpo vestido de lágrimas faiscando ao sol. Cego pela sua luz imensa não fui capaz de pensar em mais nada. Como um poderoso íman aquela imagem levava-me os olhos atrás para onde quer que fosse e para onde quer que olhar eu quisesse, uma força estranha e poderosa me fizera os olhos prisioneiros de um único norte. (O sol era seu escravo/ A água seu elemento/ As ondas no seu rebentamento/ Lançavam-lhe pétalas de gotas/ E a areia levantava-se/ Ficando suspensa no ar/ Em nuvens de apoteose/ Eu fiquei então a saber/ Que chegara uma sereia/ E a praia se tornara uma tela/ Onde com todas as cores/ a tua presença se exprimia) No resto desse dia e nos restantes, aquela mulher sol tornou-se o único horizonte onde o meu olhar se perdia e o coração se encontrava (and so it is, I can’t take my eyes of you, eu não sei parar de te olhar, eu não vou parar de te olhar). Comecei a escrever. Li, rescrevi, voltei a ler, escrevi ainda mais num processo de escrita lenta, dorida e arrebatadora, numa necessidade quase física, esculpindo em texto, anos de solidão e de espera. Lavrava em mim um incêndio poético ateado por uma desconhecida, mas não escrevia só para ela, escrevia através dela para a mulher em abstracto, aquela por quem há muito esperava e esperaria, a única que visse para dentro e para além de mim e que juntos, num olhar duplo e raro, admirássemos tudo, não nos admirando de nada. Estava apaixonado. Era a verdade pura e simples. Mas, como a verdade nunca é pura e raramente é simples, esta convicção poderia ser um perfeito disparate. Um homem apaixona-se pelo quê? E se, após cinco minutos de conversa, a sua voz começasse a ser um ruído incómodo e insuportável? 45 E se, as suas palavras ou pensamentos me maçassem até ao bocejo? E se, o seu corpo não fosse senão um belo invólucro cheio de nada, continuaria apaixonado? Tantas perguntas sem resposta. Mas enquanto não conseguisse falar-lhe até essa simples pretensão configurava perigosos riscos. A abordagem directa seria inadequada e contraproducente porque poderia ser entendida como parola e alarve. Um contacto indirecto estava fora de causa porque dela nada sabia, nem sequer o nome, a morada, o número de telefone de casa ou do trabalho e locais comuns não frequentávamos, com excepção daquela praia. Julho passou e Agosto aproximava-se do fim. Eu continuava como no princípio, perdido, ferido de amor pela beleza daquela visão litúrgica de inquietação e desassossego que se apresentava sob a forma de mulher. (Amo uma mulher que fala com as árvores/ e as abraça em afagos de ninho/ Amo uma mulher que escuta os sons do vento/ e os entende com um dom divino/ Amo uma mulher que toca nas pedras/ e as faz vibrar em cristais de cor/ Amo uma mulher que nasceu do mar/ Seu corpo é água que lava os sentidos) As flores rubras desta obsessão estival continuavam abertas em todo o seu doloroso esplendor impregnandome do perfumado aroma de desejos ainda por estrear. Se calhar não fui feito para o amor, chegava a pensar desesperado. Não surgira uma só oportunidade (ou eu não a criara) de lhe falar e dar a conhecer o poema. Os dias sucediam-se e os olhares também. Mas nada mais. As marés todos os dias subiam e a febre da minha escrita não dava sinais de baixar. A minha solidão continuava maior que o oceano que todos os dias observava o meu desespero com a mais profunda das indiferenças. Eu sabia que, quando o Outono respondesse ao apelo dos últimos dias de Verão, tudo iria acabar sem nunca sequer ter começado. E se assim fosse nunca me perdoaria. Eu tinha apenas que dar o primeiro passo, não precisava de subir a escadaria toda. Necessitava de fazer contas à vida e tirar a prova dos nove de mim próprio, logo eu que nunca fora bom em matemática. Mas tinha que ser e o que tem que ser, como se diz, tem muita força. A minha timidez infantil não podia impedir-me de avançar. Lembrava-me até daquele velho slogan maoísta dos meus tempos de faculdade Ousar Lutar, Ousar Vencer (“e aqueles que dizem que há coisas impossíveis de alcançar não devem impedir os outros de tentar”). 46 Sentia que nada tinha a perder porque nada ainda tinha ganho. A ideia acabou, no entanto, por me surgir simples e vinda do nada. Apelaria, em simultâneo, à sensibilidade romântica e à curiosidade feminina, mediria o seu grau de interesse e disponibilidade, esperando não a assustar. Se não resultasse nenhum de nós ficaria muito magoado. Comecei então a dobrar a folha de papel em quatro (“o que somos é o resultado do que pensamos”). 47 48 Jogo de espelhos (Wise up de Aimee Mann) É impossível não acabar sendo como as outras pessoas pensam que somos Sou uma mulher de quarenta anos, feitos dias antes de partir para aquelas férias no local de sempre, uma praia que amava há muito, com a qual mantinha uma relação de rotina já desgastada pela roda dos anos e por memórias que lembrar já nem sabia. A novidade é que me sentia diferente por não ser a mesma. Tinha saído do casulo e entregar-me à vida não me fazia medo. Tirava agora prazer de cada momento porque cada momento, inteiro na sua nudez, era único e perfeito. Procurava o nada. Queria tudo. Sentia-me feliz. Amava o mar. Adorava estender-me languidamente na areia, respirar o sol e o vento com todos os poros do meu corpo. Idolatrava a natureza porque nela me podia diluir (“perder-me para me encontrar”) na totalidade de tudo o que existe como uma libertação! Suspirei e pensei: Quarenta anos! É uma vida. Mas sentia-me renascida e a iniciar agora, como cantava o Sérgio, “o primeiro ano do resto da minha vida”. Tudo iria ser diferente, tinha a certeza. Não sentia medo, nem dor, nem angústia, nem o quebranto dos sentimentos. Estava segura, forte, tranquila e acima de tudo, sentia-me bem comigo própria e com os outros. Aos quarenta anos começava a amar a vida, a apreciar o pouco ou o muito que ela me dava. Pela primeira vez em tantos anos sentia-me grande e cheia do que é essencial: A paz, o amor, a tranquilidade. Despojada do supérfluo das ambições e dos desejos podia agora respirar a plenos pulmões uma liberdade total e absoluta. Conseguira a muito custo desprender-me da teia de sentimentos contraditórios e afectos desencontrados que sempre me haviam puxado para os mais profundos abismos da minha alma. Sentia-me feliz mas no fundo de mim mesma sabia que algo me faltava. Ainda. Algo que me faria, por fim, ficar completa e insuperável. Algo que desde sempre procurava e nunca verdadeiramente encontrara. Sabia-o agora. Alguns anos antes, alguém mo dissera e eu repetia-o vezes sem conta dentro de mim. Deus ou o Destino, como lhe quisermos chamar, 49 envia-nos por vezes estranhos mensageiros para nos darem a conhecer as mensagens mais simples. Desta vez através de um poema. O amor é uma fatalidade, digam o que disserem. E desta vez não iria resistir, nem negar, nem fugir. Agora estava preparada. Finalmente, estava convencida que iria amar e ser amada. Por isso escrevi: Cheia de espanto num jogo de reversos descubro-me a mergulhar na onda de sentimentos e emoções jogados para cima e para dentro de mim. Não conseguia dormir agora que sabia que estavas por aí. Sentia urgência em despir-me ainda do medo de ser aquilo que realmente sou. Nunca fui um ser de sentimentos tranquilos, arrumados, ordenados como livros nas prateleiras da minha consciência. As emoções sempre me tomaram apoderando-se de todas as razões que a Inteligência ou a Divina Vontade pudessem ter. Era constantemente tomada de assalto, surpreendida por emoções desconhecidas que teimavam em viver por si mesmas. Adquiri assim o hábito secreto de as afogar no mar da consciência, passando-as para o mundo das sombras como farrapos esquecidos ou perdidos de mim. E como não podia parar os movimentos da vida neste percurso de me despir, de me pôr totalmente nua, fui dolorosamente deixando cair a máscara de indiferença onde envolvia esses vórtices de energia, ultrapassando devagar o medo de enfrentar a eterna e assustadora desconhecida que ainda sou. E como não bastava exporme ao mundo nua, descubro-te por aí espiando, despindo-me também a alma, interpretando magistralmente pequenos gestos de todos os dias, pintando com palavras lindas um retrato quase perfeito e descobrindo os vestidos escondidos no mais recôndito canto do meu armário de cristal. Sempre me fascinaram as pessoas capazes de assumir o que sentem com franqueza e frontalidade (talvez porque para mim fosse tão difícil) e como agora sei que também estás por aí queria saber escrever uma estória de encontros e desencontros. (este é o único texto conhecido de B.) 50 O poema (Bachiana brasileira nº 5 de Heitor Villa-Lobos) Não sou nada do que esperas mas serei muito mais do que imaginas Virando-me ligeiramente de lado, retirei de uma pequena mochila verde uma folha de papel dobrada em quatro. A simples visão do pequeno quadrado branco fez-me recordar a surpresa que sentira quando, uns dias antes, no regresso de um curto passeio à beira-mar, o vira pela primeira vez assim, já dobrado em quatro, sobre o meu pano de praia. Segurei-o nas mãos e, pela milionésima vez nos últimos dias, cuidada e muito lentamente como que para não o ferir, desdobrei-o fazendo surgir as palavras que nele estavam escritas. Era um poema. Tal como nas outras vezes, um frémito de agitação subiu-me no peito e o bater do coração à cabeça. Repentina e inconscientemente lancei os olhos à volta procurando no ar um sinal ou uma presença e recomecei a ler: Desces pelas sombras das nuvens o trilho de argila seca da falésia castanha do sol olhar aberto sobre a distância brilho de lua Num gesto felino de água em passos dançantes de onda Mão dada com o céu sorriso brando de duna A musicalidade daquelas palavras, sobrepondo-se ao som do mar, ameaçou-me com uma ligeira vertigem. Ardendo na chama negra duma beleza adulta Entras nas vagas da minha melancolia molhada e nua E caminhas à beira mar da minha solidão de areia Eternizando num simples olhar fugaz o tempo o ar E o mar - espelho gelado do céu - da praia dos meus sentidos A inesperada força das imagens feria-me, rasgando-me a intimidade mais secreta, violando-me pela garganta. 51 Mulher só sentada frente a um mar de chamas súbitas Cabeça entre joelhos procurando no areal com a alma nos dedos Tesouros ocultos amores escondidos um pedaço de mim? Criança madura brincando na espuma do fim da tarde Corpo a fazer de dique por onde perdido o meu olhar escorre Que idade tens? As deusas não têm idade Alguém me observara e descrevia momentos que eu julgava só meus. E talvez não seja ainda tarde para gritar por esse corpo De mulher sem género feminino teu poema sem palavras Para prender o meu olhar de sal no mistério dos teus cabelos E neles esconder o espanto dos meus olhos cheios da luz irreverente da tua pele para onde ilusões antigas se precipitam esquecidas E a felicidade (ou dela o desejo) se escreve numa página em branco O precipitado ímpeto de raiva começava a desaparecer ainda mais rápido do que chegara e sentia agora um calor que não era do sol e arrepios que não eram de frio, subindo e descendo e voltando a subir e a descer pelo centro do meu corpo. Nada sei de ti nem sequer o rio do teu nome As letras que por ele correm o som da sua pronúncia És bela e chocaste contra mim como um oceano Quando sorris iluminas o quarto escuro da minha vida E sinto como se ouvisse a secreta respiração de um sonho Sentia o coração a crescer tanto que ameaçava explodirme na boca, sufocando-me de estilhaços de nervos e pranto. Os meus olhos, antes escancarados de espanto fecharam-se, por breves momentos, como se desse modo pudessem parar o tempo. Lindo…, murmurei, em sopro, por entre os lábios do pensamento. Voltei depois a ler, mais demoradamente, aquelas palavras quentes, doces, aguçadas como facas que 52 entravam por mim adentro sem pedirem licença mas com destino certo. Levantei a cabeça e olhei de novo à minha volta. Quem quer que fosse devia estar ali, talvez deitado na areia, olhar disfarçado, violando a reserva do meu espaço. Sentia-me lisonjeada e não ofendida. Um poema é uma expressão de amor, um acto de adoração. Quem teria eu impressionado com tal intensidade? Quem teria sentido a necessidade de expressar naquele mar de palavras os seus sentimentos? Por mim, uma mulher com quarenta anos feitos?! Quem quer que fosse possuía uma extrema sensibilidade para ler e interpretar as linhas simples do meu corpo, os meus gestos mais vulgares e a normalidade do meu comportamento, de uma forma bela e profunda que tocava fundo na minha alma de mulher, fazendo-me estalar o coração em pedaços de lágrimas (Quando sorris iluminas o quarto escuro da minha vida) e obrigando-me a sentir o prazer bruto da surpresa (És bela e chocaste contra mim como um oceano). A primeira reacção de fúria magoada tinha-se diluído, ficando apenas um fio de prazer e curiosa ternura pela anónima criatura, poliedricamente nua que de certeza ali estaria. Parecia-me agora límpido que aquele poema abandonado sobre a toalha era uma misteriosa mensagem, uma forma de abordagem perturbadora, uma declaração de amor calma e profunda, uma confissão silenciosa, a expressão tímida da invisibilidade de quem queria gritar alto mas sem se fazer ouvir. Quem quer que fosse possuía a rara e tocante ternura de quem se expõe sem alarde, de quem se quer dar a conhecer sem se apresentar. Fiquei o resto da tarde apenas a olhar o mar mas sem nada ver. Nos dias seguintes, com uma atenção discreta, procurei identificá-lo através de um processo de eliminação selectiva. Comecei por eliminar os homens integrados em casais e em famílias, depois os mais velhos ou mais rapazes. De todos, só restou um homem feito. Analisei-o ao detalhe. As atitudes e os olhares, a maneira de nadar e de se deitar na areia, as figuradas maneiras de ser e de estar. Só podia ser aquele. Estava sempre a ler e a escrever. Hoje iria confirmar. Já sabia como fazer. Só havia uma maneira. Tinha que resultar. 53 54 Quem espera desespera (She de Charles Aznavour cantada por Elvis Costello ) Não saberás muito bem o que fazer, mas fá-lo-ás! Agora restava-me esperar, embora ignorasse em absoluto, o que esperava. Esperei. Sentei-me, tentei ler, deitei-me, levantei-me, fui à beira-mar onde, mais uma vez, me sentei. Deitei-me e tornei-me a levantar. De vez em quando, atrevia-me a olhar na sua direcção e via-a imóvel, posição de estátua, cabeça entre os joelhos, olhando ora o céu ora o mar, ora o infinito. Fui à água e voltei. E ela lá continuava debaixo do seu toldo azul. Tinha lido o poema. Tinha a certeza. Mas já se haviam passado duas horas e começava a arrefecer. Um frio gelado tinha-se também instalado em mim. Não sabia o que pensar. Melhor, sempre pensara que para a mulher o mais importante fosse o amor e que, pelo amor ou para o amor, qualquer mulher estivesse disposta a tudo. Estava errado. Não era a primeira nem seria a última vez a enganar-me. Tinha avançado um peão para a minha rainha e esta dera-me o xeque-mate do silêncio. Depois desta, qualquer outra forma de abordagem seria ridícula e humilhante. A resposta dela era límpida e não deixava margem para dúvidas. Esperara qualquer reacção menos a indiferença. És bela e chocaste contra mim como um oceano, repeti mentalmente o que escrevera. Não, devia antes ter escrito És bela e chocaste contra mim como um iceberg. Teria sido menos poético mas mais realista. Não era possível que o poema não a tivesse tocado. Mas por outro lado, também não podia esperar que, de imediato e na volta do correio, ela me caísse nos braços. Seria natural estar confusa e perplexa com o que lhe acontecera, não sabendo o que pensar, muito menos o que fazer e porventura assustada. Talvez no dia seguinte algo acontecesse. Mas vários dias se passaram e nada aconteceu. O frágil filamento de resignada esperança apagava-se e um fio de desespero começava a escorrer como um ácido corrosivo por dentro de mim. 55 O contacto havia sido estabelecido mas o encontro não se dera, facto que parecia provar que são os desencontros, ainda que nem sempre tenhamos deles conhecimento ou consciência, os momentos mais marcantes e decisivos das nossas vidas. Mas pensemos um minuto: como nos poderíamos encontrar, se também ela nada de mim sabia? Nem sequer quem eu era. E mesmo que intuitivamente me identificasse, o que é que havia em mim que pudesse despertar nela qualquer interesse? Não era alto, nem belo, nem jovem e começava a aperceber-me que as mulheres com menos de quarenta anos já raramente me olhavam pela segunda vez e muitas nem sequer pela primeira. Estava a ser ingénuo e convencido! Pensaria eu que ela teria estado uma vida inteira à minha espera sem lastro de marido, amarras de família e teias de amigos!? Que não tivesse uma vida própria, feita também de perplexidades e problemas, se calhar sem espaço para ninguém mais? Que não amasse outro homem ou, pelo menos, não o sonhasse? Eu sabia, com um saber de experiências feito, que as mulheres eram uma inesgotável fonte de problemas e conflitos. Mas aquela mulher mexera comigo. Profundamente. Como Jacob, os dias, na esperança de um só dia passava, contentando-me com vê-la, mas perante aquela indiferença começava a adquirir consciência de ter contraído a forma mais perigosa de amor: o amor-ilusão. Intuía agora a mais profunda das contradições do amor, a de que o amor não existe se não for recíproco, pois ninguém pode amar sozinho e o amor não correspondido só gera dor e desilusão. Valia bem mais a ilusão do amor, ao menos essa, fazia sonhar. E assim, de dia, caminhava à beira-mar, nu e só, a metáfora perfeita da solidão, mas que sentia ser a metáfora imperfeita da minha vida. E, à noite, na quase madrugada, quando arrumava os óculos, dobrava um livro, matava a luz e me estendia na cama, braços abertos como Cristo, o meu último pensamento ao fechar os olhos, dirigia-se sempre para aquela mulher de quem nada sabia, de quem tudo queria conhecer e que me preenchia os sonhos todos. Observara-a minuciosamente em cada dia. Como se sentava frente ao mar, braços atando as pernas, olhar perdido no horizonte. Como mergulhava na água, de repente, depois de demoradamente estudar as ondas. Nesse momento ouvi um ligeiro resfolegar de passos na areia. A tentação de olhar doía-me mas consegui manter 56 os olhos grudados no livro onde as palavras queriam fugir, desnorteadas, pelas páginas entreabertas. Diálogo de surdos (A whiter shade of pale dos Procol Harum) A cada pergunta que te façam responde no limite do seu oposto Decidida levantei-me e rapidamente me aproximei do meu vizinho de praia, o único, aliás, que passava os dias a ler. Caminhava lenta e surpreendentemente tranquila, sentindo, contudo, o aguilhão da tentação de voltar atrás e desistir. Por sorte, ele continuava mergulhado num livro. Num fôlego disse-lhe: Bom dia. Gostaria de falar consigo. Posso sentar-me? Não me considere impertinente mas queria pedir-lhe que me lesse este poema. E estendi-lhe um papel dobrado em quatro. Tendo-me escutado num silêncio tranquilo, o homem fechou o livro e olhando-me profundamente perguntou: Porquê? E eu respondi: Porque gostaria de o ouvir lido por si. Mas, Insistiu ele, porquê eu? Por nenhuma razão ou se calhar por todas, respondi. Um pedido insólito e uma resposta enigmática. Você é sempre assim? Pergunta ele de novo. Não, respondi levando a coisa para a brincadeira: Só quando estou nua, na praia, pedindo a homens que não conheço que me leiam poemas. Mas eu não sei ler poesia, argumentou ele ainda. Raio de homem, com tantas perguntas! Não importa basta que saiba ler, rematei, definitiva, a conversa. Ele sorriu e lentamente começou a desdobrar o papel. Como quer que leia? Perguntou. Com os olhos da alma e a voz do coração, disse eu repetindo uma frase vulgar mas adequada às circunstâncias. É você a autora? Não, respondi, deve ter sido um homem. E esse homem tem nome? Insistiu ele. Deve ter mas não sei qual é, respondi com voz insegura. Já percebi, tem um admirador secreto disse ele sorrindo em tom de gozo. Admirador sim, secreto talvez já não, atrevi-me a dizer. Ele voltou a sorrir e fixando os olhos no pedaço de papel começou a ler, em silêncio, como se fosse só para ele. Quando terminou perguntou: É dirigido a si? Não sei, respondi exasperada e quase a gritar, mas pode ler em voz alta, por favor? 57 Comecei então a ouvir uma voz quente, ligeiramente enrouquecida mas profunda, que me atirava palavras perdidas e esquecidas, como dedos meigos e saltitantes a abrirem-me feridas de emoções perturbantes, multiplicando por mil o assombro da primeira vez. Só agora percebia algumas das estranhas imagens e o significado que elas escondiam. Era um poema ainda mais profundo do que parecia e mais belo do que julgara e, ainda o seu eco mágico não se perdera, já eu lançava a única pergunta que me interessava e da qual receava a resposta: Foi você que o escreveu? Um grande silêncio fez-se até que o homem respondeu: Não. Olhámo-nos, perdendo-nos demoradamente, nas profundezas um do outro. Uma eternidade depois, recolhi a folha de papel, e dobrando-a lentamente, pedaço a pedaço, levantei-me dizendo: Obrigada. Poucos metros me afastara quando subitamente as águas se me rebentaram por detrás dos olhos. Atrás de mim uma voz dizia: Nada sei de ti nem sequer o rio do teu nome/ As letras que por ele correm o som da sua pronúncia/ És bela e chocaste contra mim como um oceano/ Quando sorris iluminas o quarto escuro da minha vida/ E sinto como se ouvisse a secreta respiração de um sonho Depois foi assim: acho que já nos amávamos antes de nos conhecermos, embora ainda não o soubéssemos e quando naquele dia nos encontrámos, o amor cresceu por dentro de nós e elevou-nos como uma montanha de fogo mais brilhante que o sol. Ele escrevia-me poemas cantando-me o rosto, o riso e o corpo e eu tirava-lhe fotos fixando-lhe a alma, o olhar e a expressão. Passávamos assim os dias fechando as mãos nas mãos em geometrias de amor, entrelaçando os olhos assomados de luz pelo brilho puro da paixão e bebendo água de beijos nas fontes frescas das nossas bocas. Em nós não se distinguia a linguagem do diálogo e a do silêncio porque comunicávamos em ambientes de palavras e pausas, olhos e mãos, risos e gargalhadas e à noite cavalgávamos um no outro, desenhando à luz das velas, chamas de sombras no suor dos corpos. Às vezes, uma sombra de medo ou tristeza pesava nos nossos olhos: e se nos perdermos…? Mas nenhum de nós dizia nada. Era, apenas, a nuvem negra de um vago pensamento, que não chegava a chover. E quando tínhamos de nos separar, chorávamos por dentro a forçada perspectiva da ausência como se sentíssemos a perda irreparável desses momentos e 58 mesmo ainda juntos, logo começávamos a sentir-nos feridos de saudades. Por isso, nos últimos instantes, ele decorava-me o rosto, gravando as minhas expressões para depois, dizia ele, se iluminar todo no escuro da solidão. Quando ele me dizia, e estava sempre a dizer: És tão linda! Eu baixava os olhos e, tímida como sou, sorria como recusando acreditar no que ouvia. Outras vezes, passeando-me a mão pela cabeça com os seus dedos a despentear-me os caracóis dos meus cabelos africanos, segredava-me baixinho: Amo-te mais que à vida! Ao que eu respondia tentando parecer pouco convencida: As coisas que tu dizes… A felicidade não era para nós apenas um prazer, era mais um estado de ser que nos saía em sons pelos lábios em murmúrios de canções só de nós conhecidas e ouvidas. Então, ele pegava-me na mão e colocando-a no lado esquerdo do seu peito perguntava-me: Sentes o meu coração? Só bate por ti. E eu fazendo pequenas ondas na enseada da testa e fixando-lhe os olhos como se contemplasse pedras preciosas dizia-lhe: És terrível… (Tive medo sim Das tuas palavras que me escreviam os dias E me oferecias para saborear como doces Quis esconder-me Dos teus olhares que me desvendavam segredos E se me abriam por dentro como flores Mas tu vieste como um sol Envolveste-me como um mar Abraçaste-me como uma onda E deixaste-me na pele um rasto de sal) 59 60 O maior dos enigmas do Universo (Woman de John Lennon) O que somos nunca muda mas quem somos está sempre a mudar Mas afinal resisti…neguei… e novamente fugi. Mais uma vez não consegui entregar-me. Não havia química entre nós, pelo menos não a sentia em mim. É evidente que o poema e as suas circunstâncias me atraíram. Na primeira vez em que saímos juntos, indo ao cinema, Z. foi encantadoramente tímido e não me beijou. Na primeira vez que o fez perguntou-me antes se o podia fazer. Ri-me, claro e o beijo… nem o senti. Devo confessar em abono da verdade que desde criança não gosto de beijar nem ser beijada. Aquela sensação húmida e pegajosa, às vezes até nojenta… (algures na minha infância deverá haver uma razão para esta repulsa mas não a conheço) A primeira vez na cama foi também desastrosa e “nunca há uma segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão”. Mais parecia um troglodita do que um homem sensível e romântico. Limitou-se a esvaziar dentro de mim todo o esperma acumulado ao longo de meses de forçada abstinência, por três vezes e em menos de meia hora. Estava ávido de mulher. Nas vezes seguintes continuou a revelar-se um amante terno mas péssimo. Ter sido casado mais de vinte anos com a mesma mulher não o preparara devidamente para mim. Embora fosse um homem calmo, na cama sentia-o sempre tenso e preocupado. Não me sabia tocar em parte nenhuma do corpo. Tive que lhe ensinar tudo mas acho que ele nada aprendeu. Claro que a evidência da minha falta de prazer em nada ajudava, mas não conseguia fingir e por vezes sei que era demasiado glaciar nas atitudes e nas palavras. Uma vez, num hotel do Porto, preparava-se para me penetrar quando comecei a rir sem qualquer razão. Na primeira e única noite de passagem de ano em que estivemos juntos numa festa de amigos (em todas as outras estive a trabalhar e ele passou-as sozinho), chegados a casa e perante a sua expressão perplexa, entrei na cama vestida e enrolada num cobertor, exigindo-lhe ostensivamente que não me tocasse e assim fiquei toda a noite até de manhã. 61 Z. não o sabia, mas nessa noite, na festa de passagem de ano, estava lá aquele que havia sido o meu grande amor e paixão de adolescente aos dezasseis anos. Vê-lo agora casado com outra, com um bebé, fez-me sucumbir. Juro que não sei explicar de outra forma aquela tão estranha reacção. Nessas duas vezes, nas manhãs seguintes e por minha iniciativa, rompemos a nossa relação. Nessas duas vezes, dias depois e por minha iniciativa, reatámos a nossa relação (“a mulher é o maior dos enigmas do universo”). Z. adorava-me mesmo. Quase todos os dias me escrevia e oferecia um poema. Tenho-os todos comigo mas nunca os releio. Passávamos os fins-de-semana no Meco e frequentemente ele também ficava, de um dia para o outro, na minha casa. Nos restantes dias, à noite, falávamos ao telefone. Aliás, o meu primeiro telemóvel foi-me oferecido por ele. Foi a primeira de muitas prendas que me deu durante o tempo em que estivemos juntos. Tudo e nada serviam de pretexto para uma flor, para um livro, para um CD, para um qualquer objecto ou peça destinado à casa ou a mim própria. E todas com um significado que ele lhes atribuía e fazia questão de me explicar. Tinha prazer em oferecer. E não era só o que oferecia mas a maneira como encenava, usando sempre o factor surpresa, a sua entrega. Dizia ele que quanto mais dava mais recebia. Mas comigo essa afirmação estava longe de ser comprovada. Num Dia dos Namorados, por exemplo, Z. ofereceu-me, além de um poema, cinco prendas diferentes, uma por cada um dos cinco sentidos e em cinco momentos diferentes desse dia. Eu oferecilhe umas cuecas. Está visto que não consigo dar-me em nada e a ninguém (também é verdade que após os quarenta anos comecei a sentir sintomas da perimenopausa e fiquei terrivelmente assustada. Mas só isso não explica o meu comportamento egoísta, abúlico e indiferente para com Z). Não estranhei assim aquela primeira noite em que não aconteceu o ritual do seu telefonema. Nem nas noites seguintes essa falta me incomodou minimamente, pelo contrário, sentia até um certo alívio da obrigação que era atender sempre aquela chamada. Nem sequer me passou pela cabeça a ideia de ser eu a ligar para saber dele ou o que se passava. Quase dois meses depois, sem nos vermos nem falarmos, uma amiga da minha filha que conhecia a nossa relação, com um mal disfarçado embaraço, disseme tê-lo visto, numa tarde de Primavera, passeando á beira-mar, de mão dada com outra mulher. 62 Curiosamente, depois do afastamento de Z. comecei a pensar mais nele e a sentir a sua falta. Não sei bem porquê mas ficara sentida por saber que me substituíra, assim sem mais nem menos. Uma das minhas irmãs disse-me que o merecera, pois apenas me tinha deixado amar e nada dera a quem, de uma forma apaixonada e verdadeira, tanto me deu. Certo. Então, fechei-me ainda mais dentro da minha concha. Nunca mais voltei ao Meco (demasiadas recordações…) e substitui-o por Aberta-a-Nova, em Melides, na Costa Alentejana, onde arrendei uma casa com um enorme alpendre virado para a estrada e rodeada por um jardim. Meses depois, ainda nesse ano da separação, convidei Z. e outros amigos para o meu aniversário que celebrei na nova casa. Gostei de o ver mas ostensivamente exibi uma alegria um pouco exagerada para que ele visse como estava feliz. Nessa noite, na varanda, Z. segredoume ao ouvido: Quero dormir contigo. Sorri, mas não lhe respondi. Pouco depois fui para o meu quarto, à cautela fechei a porta à chave e deitei-me mas não consegui dormir. Sei que ele também não pregou olho. No dia seguinte, na despedida, Z. disse-me que nunca mais cá voltaria. Perguntei-lhe porquê, ao que ele respondeu: não sou masoquista. 63 64 OXALÁ PICASSO TE PINTE! (Paloma Negra cantada por Chavela Vargas) O sofrimento é a única fonte de consciência Cena única: Um quarto. Uma janela. Um quadro. Uma cama desfeita. Ao lado da janela, na parede principal, um quadro domina, a mulher fragmentada, de Picasso. Um homem e uma mulher deitados. Corpos movendo-se lentamente debaixo dos lençóis. Silêncio entrelaçado de sons de amor. De súbito, um grito abafado! Mulher: Pára! Pára... Já te disse! Homem: O que foi, amor? Mulher: Não consigo! Deixa-me...Tens as mãos frias. Homem (após um silêncio prolongado): Não são as minhas mãos... é o teu coração! E afastando as roupas da cama levanta-se subitamente e caminha até à janela onde fica de pé e nu, olhando através dela. Homem (com raiva de ciúme): Não consegues esquecê-lo! Continuamos a dormir os três na mesma cama com ele no meio. Mulher: Tu não sabes! Não me sabes tocar. Não sabes como me despertar… Homem: Não! Tu é que estás bloqueada por um sem número de ideias feitas. Estás completamente fechada em de ti própria. 65 Mulher: As coisas não fluem entre nós. Não há química! Não te sinto… Homem: E como queres sentir-me se o teu pensamento e o teu coração estão algures por aí perdidos no tempo… Mulher: Desculpa, mas isso são lugares comuns e eu sou eu e o meu passado… Homem: Pois eu queria que fossemos capazes de voltar a ser como crianças, esquecidos de tudo o que aprendemos ou vivemos até agora para começarmos de novo como virgens aos quarenta anos! Mulher: Isso é impossível! Como queres que esqueça as minhas vivências? Os homens que entraram por mim adentro e me fizeram ouvir os meus próprios gritos… que me fizeram sentir cheia, possuída e vencida… como queres que troque essas memórias pelas tuas que não tenho porque nunca mas destes? As tuas carícias ou me arranham ou nem sequer as sinto… Homem: Diminuis-me com essa brutal subtileza de que só as mulheres são capazes. Esqueces que és tu que entras na cama completamente vestida e te apagas… Mulher: Sim! Não suporto o contacto da tua pele nem as tuas mãos a escorrer-me pelo corpo. O único desejo que sinto é fechar os olhos e ficar muito quieta abraçada ao teu calor de forno mas nada mais que isso… não quero fazer amor… não te desejo… o meu corpo não te reconhece…não me apetece! Homem: Não sei se é o teu corpo ou se é a tua cabeça que não me reconhece. Mulher: Talvez. E se for? 66 Homem: Estou a sentir-me ridículo! Olha, volta para os teus homens ou mata-os de vez. Eles não podem continuar a dormir entre nós… como posso eu competir com a memória de dois homens excepcionais, um dotado de um sexo monstruoso e o outro que fodia como um deus… Mulher: Desculpa, amor, mas é o que sinto. Tenho tanta pena… Homem: Eu dou-te tudo… como posso aceitar menos? Esta tua indiferença falta-me ao respeito, mutila o meu amorpróprio. Como pode um homem continuar a encarar-se quando a mulher que ama não sente com ele prazer? Mulher: Não é verdade! Sabes bem que adorava que me tocasses. Mas só às vezes… Homem: Lembras-te daquele texto que te escrevi: Nua pareces uma mancha negra de prazer no lençol branco da cama onde te possuo com o azul dos meus olhos… “ Mulher: … E onde é que isso já vai… Homem: Eu sei que não sou, nem nunca fui o teu sonho…. Sinto que vou morrer às tuas mãos na praia do meu desejo incontido. Que se passa comigo? Desejo mas não dou prazer, quero amar e não consigo. Mulher: Não te martirizes mais. Não falamos a mesma linguagem sexual. Ponto. Homem (exasperado e fora de si, lança-lhe a pior praga que conhece): Oxalá Picasso te pinte! 67 68 O homem que amou demais (Eu sei que vou te amar cantada por Caetano Veloso) Deus está dentro de nós Amor de todas as minhas vidas o teu sorriso persegue o verão no céu de espelhos das nossas bocas ainda húmidas das últimas chuvas és horizonte a que nunca mais chego barco ou ponte ave tímida sobre mim a pique tinta da minha escrita visão única e breve como a serra de Sintra quando as nuvens parecem neve meu amor deusa maior no altar dos meus sentidos nascer do sol em fogo no meu horizonte longínquo és gota de chuva na terra quente da minha língua milagre de dias há muito apetecidos doce sabor de uva a morar na boca alegria de encontrar sonhos perdidos cada dia sem ti é um peso morto que arrasto como pesado lastro um trapo velho que cobre e descobre o meu mundo veneno suave que bebo com as duas mãos juntas neste mar onde tudo é deserto ponho a minha vida a teus pés o ar cheira a laranjais suspensos e fecho os olhos para poder ver tudo tu vens em transparências de mascara bela e misteriosa como um arco-iriado que estranho paladar tem a dor do amor desprezado o vestígio de uma mentira maior onde em reflexo me vejo como o amante que nunca chega a tempo e quer ser grande em tudo mas a vida é um buraco de desejo uma rosa negra de fogo. Escrevo como se pintasse um quadro e te desenhasse de um só traço com medo que desaparecesses pois a vida troca as voltas aos amantes inseguros como um olhar que se debruça sobre um rio de memória nele se demorando pego na tua imagem pela mão sinto a vida a tremer ouço ao longe um solo de saxofone e o tempo passa com a força de um mar bravio procuro abrigo no sonho como alguém que planta flores no deserto julgo ver-te nas sombras da noite e espero que algo aconteça a tua presença ou uma verdade por revelar só me resta a esperança mas sinto ter ainda tudo e o meu amor é um sentimento feminino de uma pureza branca como uma paisagem de neve ou uma torre transparente. No meio do mar procuras na noite a estrela da manhã em busca do teu norte e quando falas os longos dedos da tua voz tocam harpa na minha alma não digas nada deixa-me só olhar-te como se fosse a última vontade de um condenado a amar-te agora olha tu para mim vê como estou alegremente triste tão perto das lágrimas não 69 te importes sei cada vez melhor como sofrer como aguentar os dias um a um quando quiseres vem ter comigo estarei à tua espera tudo se há-de resolver e se quiseres toma o meu corpo para fazer parte das tuas mãos. Abres o silêncio numa respiração de água e dizes que se fosses amada nada mais importava a alegria estaria sempre primeiro e o Verão seria logo em Janeiro as flores nunca murchavam a tua voz não se calava e o riso seria luz na tua face se fosses amada não haveria noites só madrugadas as flores seriam prata e o teu coração estaria sempre em viagem todos os ruídos soariam música o coração seria riso e sempre que chovesse seria prata se fosses amada todas as vozes seriam música o coração seria a tua face e o riso estaria sempre em viagem o Verão seria prata não haveria ruídos só madrugadas e a alegria não se calava se fosses amada o teu coração teria só madrugadas todos os ruídos seriam prata e sempre que chovesse soaria música o verão não se calava o coração seria luz na tua face e a alegria nunca murchava se fosses amada as flores seriam a tua face o coração soaria música e a alegria seria logo em Janeiro o Verão nunca murchava e nada mais importava se fosses amada. A noite vestiu-se da tua pele para amar as estrelas para nos amarmos à sua luz de vela negra e luzidia de olhos bem fechados num esgar dos sentidos renascemos em luz imitando o dia o amor soltou seu nocturno grito chamando os corpos dos amantes adormecidos e a noite escondeu o tempo nos anéis do teu cabelo anoitecido que véu é esse de tristeza tecido como que do céu caído do teu olhar se desprende que vê o teu coração adivinho no fundo do horizonte lágrimas dor e sangue alegria pão e vinho a vida em ti existe tu a criaste não desafies o destino não lhe chames má sorte fiquei só dentro de ti quando me amaste vou apertar-te nos meus braços quero com as mãos tocar-te a alma beijar-te o coração no meio dos lábios desconhecendo se já é dia Maio ou Verão ou se irei nascer a teu lado. O silêncio cala o sentir deste olhar estranho cálida borboleta esvoaçando de mim a fugir entre palavras de amor ferido a noite apaga o rosto deste sorriso triste anjo caído inerte espelhando o desgosto do segundo sentido da morte irradias a paz da lua quando meditas no vazio em que estás não estando quando falas calando na alma um vago grito em que pensas sonhando e apagas brilhando meu ser clandestino que passa ficando quando chegas saindo em corpo e em espírito e te esqueces 70 lembrando que me amas sorrindo penso em ti luz do céu amor estrangeiro fresca cascata clareira bosque jardim e quando te vejo vejo-te sempre com o assombro da primeira vez o deslumbrado clarão que nos deixam as coisas simples e belas o mar o sol quando nasce ou um fresco dia de Primavera algo na melodia dos dias cinzentos me lembra mares de Inverno um disco de Kitaro os mistérios longínquos do Oriente ou a cor escondida do céu na nostalgia do poente ligados num invisível fio que nos chama sem chamar onde falamos sem falar num sinal sem voz num quieto olhar de silêncio que vemos sem nos vermos e as tuas palavras tão reais que me dizes sem dizer que ouço sem ouvir num espaço iluminado num leve brilho acetinado que nos toca sem tocar onde só o silêncio é oração o amor tempestade e a poesia religião em que repito o teu nome como um mantra vivo como se fosses todo o meu mundo a minha única realidade na qual desapareço sem mais saber quem sou para reaparecer cem anos depois como se tivesse estado fechado na cela do meu corpo e vagueasse agora em labirintos de solidão buscando a luz escondida das estrelas na palma da tua mão já nem sei onde habito meu amor antigo minha fortaleza de luz se ao menos a dúvida me restasse se ao menos o teu olhar ilusionista continuasse a fazer magias no meu coração fecho os olhos infantilmente voltas quando eu tiver contado até vinte? No meu amor por ti há um pássaro que esvoaça sem ninho nem céu por abrigo ou destino e antes que o apanhes na mão dos teus olhos longínquos admira-lhe o voo um rasto colorido de penas caídas como folhas no chão ó meu amor no meio dos desertos no secreto poço de mim tens tanta água para beberes e quando quiseres pintar eu serei a cor impossível que hás-de inventar em cada recomeço em cada instante o mar nasce doce da tua boca como um rio perdido como um raio de luz nas nossas mãos aquecido um pássaro voa dócil dos teus lábios como um canto vivo como um rasto de céu nos nossos olhos escondido em cada instante o dia cai quente dos teus braços como um orvalho delicado como um manto de cores nos nossos ombros esquecido em cada instante o amor se ergue grande do teu corpo como uma pálpebra fechada como um mastro de água nos nossos sexos metido existo quando me sonhas quando sou o braço invisível nos teus ombros a musica inaudível que só tu ouves quando sou todas as cores das pedras que descobres ou das flores que à noite se abrem nos teus sonhos é calmo o teu respirar silêncio barco à vela a partir lento passar do tempo leve sentir do vento lavra-me 71 na pele um fogo de verão chamas de vento ar do deserto as tuas mãos são cisnes amando-se na calma de um lago delírios de seiva escadas para o céu os teus lábios rios correndo negros no teatro da noite guerra de mundos ondas de mistério os teus cabelos murmúrios de água em brilho de pedras luz de fogueiras estrada lisa de seda a tua pele é alma nua bebendo a frescura de um bosque passagem breve delicado toque a tua língua belos jardins árabes ocultos por muros de céu anjos nus maviosos véus os teus olhos neles assentam mundos e se movem flores e pétalas são terra benta os teus pés. Prostrado sob o pálio da tua imagem me resigno é tão frágil esta altivez de totem índio à volta do qual dançam os meus medos e depois os poemas que te dei deixasteos estragar no esquecimento de uma prateleira cheia de livros eu sei por isso o meu corpo traça o coração da noite a lápis de gemidos não silvestres não pacíficos em tantos riscos tantos riscos rubescentes por toda esta cidade de Lisboa nuvem na palma da mão das colinas marca de água na paisagem com o céu ao fundo lugar onde rios inclinados de ruas desaguam no mais belo dos aquedutos há em ti Lisboa um mar branco arquejante numa paz de sono fora nada existe só a margem entre o azul e o verde és a minha raiz quadrada de tudo onde vagueio em gerúndio onde ouço o mar quando me falas quando os teus longos dedos de água me escorrem pela alma nua ficando no chão uma poça onde medos e silêncios se vislumbram e na boca a aridez de um sabor sem nome e nos olhos a cor da noite minha dor incógnita a chamar pelo teu nome num murmúrio branco e doce de criança cega olhos presos ao céu como duas lâmpadas sem luz acesas ininterruptas meu amor queria ser chuva se fosses terra sangue nas veias a correr-te frio ou neve se lã fosses o mais suave pincel se fosses tela seria até mosca se fosses teia ou vela se te acendesses chama os dentes do teu riso ou pégada se fosses lama mel seria se fosses favo ou manta da tua cama anão palhaço no teu circo folha voando se fosses vento ávida boca se pão fosses anel enroscado nos teus dedos água se fosses areia ou lenço aconchegando os teus cabelos seria ainda e mais coisas estranhas os teus pés se fosses meia ou até espanhol se fosses Espanha! Amor de todas as minhas vidas está tudo tão claro devia ser fogo e não água devia ser riso e não mágoa serei talvez a pálida macieza da neve em vão esperei à esquina das palavras pondo ordem no meu desejo digo que te quero mas sem incêndios nas veias o teu corpo não me ouve e arde-me o sangue na agonia da 72 impaciência fujo à solidão inevitável da paisagem dos corpos juntos colhidos do frio de um inexplicável atrito quando as tuas palavras se desprendem e como chuva de folhas secas cobrem meu coração aflito no silêncio nupcial da madrugada onde a memória do teu corpo em vão se demora nas noites dos meus dias e eu digo devíamos ser capazes de voltar a ser como crianças esquecidas de tudo e começar de novo como virgens vou tirar de ti o sentido este amor não tem futuro nem presente só tem passado este amor não é nosso é só meu sinto-o quando vejo os teus olhos cobrirem-se de mantos súbitos de tristeza ou quando eu digo amo-te e tu respondes também eu a minha poesia não escancarou a porta do teu amor só entreabriu uma fresta por onde a curiosidade espreitou sei que tentaste amar-me mas as almas livres não se entregam facilmente a alguém como eu e o desencanto desta realidade desabou inteiro sobre mim como um universo de pesadelo alimentei a ilusão deste amor como quem atira miolo de pão aos cisnes de um lago e regresso agora à minha solidão como quem após uma longa viagem volta a casa e a reencontra intacta a deusa alada na minha mesa pousada sorri beatificamente com as duas mãos juntas parece orar talvez por mim no meu quarto o frio cheira pior que a morte dispo-me lentamente o meu corpo magro e nu estremece falta-me o teu riso quente o teu olhar de fogo a tua alegria ardente e o verão ainda tão distante do inverno do meu presente não tremes nos meus braços a tua água apaga o meu fogo mil labaredas de mágoa incendeiam-me de tristeza na combustão de mim num frio de mortalha sem fim num calor de vida inventada vou esquecer apagar o coração em chamas lançar as cinzas ao vento quero aprender com a eternidade das marés aceitar o amor como um mistério lamber a dor aceitar o facto de não ser amado os porquês não importam nenhum deus os conhece vou lembrar-me apenas e sempre de mim apagar dos olhos a luz e oferecer o clarão ao tempo transcender a realidade viver sem desejos renunciar aos sonhos para não sofrer talvez eu não seja o teu sonho a paisagem que vês quando olhas o horizonte a alma do homem que ames acima de tudo talvez eu seja o sino de uma torre caída suspenso na varanda de um céu nocturno a luz de um candeeiro apagado e soturno talvez eu seja um véu transparente e obscuro cobrindo a fugaz sombra de um fraco vulto pouco mais que nada muito menos que tudo. 73 74 A princesa (Dance me to the end of love de Leonard Cohen) O desejo é aquele deus que faz estremecer até os pequenos pássaros Nesse Verão, também por um acaso, conheci uma princesa: a minha X. De novo “à primeira vista”, (“os homens são menos cautelosos e desenvolvem nos seus cérebros conexões visuais exacerbadas que facilitam o apaixonarem-se à primeira vista”) voltei a apaixonar-me mas desta vez era retribuído e por uma mulher muito mais nova. Quando a vi estava ela a passear com a filha num fim de tarde, usando um vestido tão simples e tão curto que, do que ele não escondia, o meu olhar se fez, de livre vontade, cativo, pelo resto da noite. Conversámos muito. Ela estava fascinada pelas minhas ideias e palavras (“os homens apaixonam-se pelo que vêem e as mulheres pelo que ouvem”). Umas semanas depois de nos conhecermos ofereceu-me um pequeno íman onde estava escrito esta frase: Há pessoas que tornam o mundo melhor apenas com a sua presença. X. era uma mulher fabulosa, como aliás o são, todas as mulheres profundamente apaixonadas. Tudo aquilo que integra as fantasias eróticas masculinas: o amor – esse sentimento feminino impiedoso de olhar assustado -, a excitação – esse momento incandescente -, o prazer – essa ponte entre o céu e a terra -, ela me deu. Era incrível a paixão com que se entregava e demonstrava que me amava! Com ela tive a sensação única, provavelmente irrepetível, de me sentir um deus na cama a fazer amor com uma deusa. A fusão total. A força da sua excitação e a facilidade do seu orgasmo dispensava os necessários e longos preliminares (“que para as mulheres é tudo aquilo que acontece nas vinte e quatro horas antes da penetração e para os homens os três minutos que a antecedem”). Diz-se que Eros não escolhe os parceiros, e que o universo pertence aos bailarinos. X. era bailarina. 75 Possuía uma rara beleza, herdada de mãe goesa e pai africano branco. Tinha cabelos africanos, olhos orientais, um rosto europeu e lábios sul-americanos (Linda, você é linda sim, onda do mar do amor que bateu em mim). Os colegas chamavam-lhe POCAHONTAS tais eram as parecenças físicas. Uns olhos negros rasgados, um sorriso doce, infantil, a pele só muito ligeiramente tisnada, os cabelos uma longa crina de azeviche caída pelas costas, e as pernas esculpidas e perfeitas terminavam num rabinho de comer à colher. Num pequeno poema descrevi-a assim: Vivem em ti mulheres/ de todas as raças/ numa subtil aliança /entre mãe e cortesã/ que escondes e disfarças/ no teu sorriso de criança/ no teu corpo de garça. E depois assim: Náufrago, no mar dos teus olhos me sinto, mas não perdido antes vento de Verão acariciando a rosa vermelha e bailarina da tua boca Com 33 anos era uma espécie de menina, aparentemente ingénua, toda entregue desde a infância à dança. Vivia ainda em casa dos pais com os quais mantinha uma relação de total e recíproca dependência e de um mega temor reverencial. O que os pais diziam era lei. Casara-se tarde pois havia-se guardado para um príncipe encantado que depois não virou apenas sapo, virou monstro. Desse casamento, destruído ao longo de um ano, ficara uma filha. Sentia-se perseguida e ameaçada. Vivia no pânico de perder a filha num processo judicial de atribuição do poder paternal, penoso e tumultuoso, que se arrastava sem fim. O sonho dela era impedir para sempre o ex-marido de ver a filha. Estava obsessivamente convencida que ele, depois de a maltratar a ela, maltratava agora a menina, psicológica e sexualmente. Um caso muito complicado com queixascrime recíprocas, exames médicos e periciais, investigações policiais, sessões de tribunal e a menina no meio de todo aquele impressionante braço-de-ferro. X., naturalmente, tudo fazia para a proteger com uma dedicação feita de força de vontade e paixão. Tentei ajudá-la em tudo quanto pude e ser o amparo forte que ela tanto necessitava. Cheguei a propor que nos casássemos para que desse modo e com uma nova família a questão mais facilmente se resolvesse. Mas acho que não me levou a sério. 76 (Nunca lho disse mas cheguei mesmo a fantasiar casarmos na praia do Meco ou na fortaleza do Guincho, apenas entre pais e amigos íntimos, com ela vestida, não de noiva mas daquilo que ela era, uma princesa índia. E, no momento do juramento, em lugar da gasta e superficial fórmula, sonhei que diríamos um ao outro: “meu bem amado quero fazer de um juramento uma canção/ eu prometo por toda a minha vida/ ser somente teu e adorar-te/ como nunca ninguém jamais amou ninguém”. Mas a voz do sangue e o instinto maternal de fêmea a proteger a cria, falaram mais alto. E quem consegue competir com uma criança, ainda por cima, nestas circunstâncias? Sei que X. me amava porque o amor não se consegue fingir mas, entre o amante e a filha, ela não teve dúvidas e sinto que fui, no altar das suas inseguranças, sacrificado. Como se o problema da filha não bastasse, sem que nada o fizesse prever, o céu caiu-lhe em cima com a extinção da companhia de ballet onde trabalhava. De um momento para o outro, o palco onde o mais importante de toda a sua vida se passava, foi-lhe retirado debaixo dos pés sem uma única explicação nem um simples agradecimento por tantos sacrifícios e anos de dedicação (Já não há aplausos nem flores/ e há muito que não agradeces / com vénias à boca de cena/ mas não deixes cair o pano/ na tua vida ou sobre ti/ a plateia não te agradece/ nem na tua dor se reconhece/ eu serei sempre o teu maior admirador/ que te enaltece e envaidece/ com palavras simples de amor). De todas as humilhações que X. sofreu, para ser e continuar sendo bailarina, esta foi-lhe fatal. Recordo-lhe o sorriso triste quando me dizia que era a única bailarina a não ter sido promovida, tendo mantido sempre a categoria de corpo de baile com que havia ingressado na companhia dezassete anos antes ou quando, ao meu lado na cama me confessava que, em tournée, ficava sempre sozinha num quarto porque nenhuma das colegas queria ficar com ela. Como qualquer boa bailarina vivia na dor, à qual havia habituado o corpo e a mente, interiorizando-a ao ponto de a ignorar. Vivíamos uma espécie de relação clandestina pois, com excepção dos pais, ela não queria que ninguém mais soubesse. Víamo-nos também muito pouco, numa média de duas noites por semana. Aos fins-de-semana ela ficava sempre com a menina. Eu passava-os a sós comigo mesmo pensando nela (“amar uma mulher é odiar a vida?”) Nos outros dias, chegava à minha casa já de noite (depois de adormecer a menina) e saía ainda de madrugada (para acordar a menina). 77 O mínimo pedido da filha era uma ordem e as suas tropelias ou birras nunca eram castigadas porque não se podia magoar a menina e a mãe era ainda pior, muitas vezes desautorizando-a mesmo diante da miúda. Era uma espécie de escrava da filha e, em função dela vivia, como se a quisesse compensar pelo desastroso pai que lhe arranjara. Provavelmente, estará a criar um monstrinho ou um futuro adulto egoísta e dependente. Mas, nos intervalos dos pais e da filha, existia eu, e os poucos momentos que em estávamos juntos eram uma verdadeira bênção. Obrigado, amor. (“que estúpida coisa é o amor! Sugere-nos coisas que não acontecem, fazendo-nos acreditar que são verdadeiras”). 78 Poema aos amores não correspondidos (Bolero de Ravel) Nunca podemos saber ao certo que não estamos a sonhar Nua pareces uma mancha negra de prazer no lençol branco da cama onde te possuo com o azul dos meus olhos começo por esmagar suavemente a tua boca onde as línguas crescem mornas e imprevistas resvalo depois para o pescoço e nele abro por entre as veias sulcos sinuosos de saliva entretanto fechas os olhos sentes a pele levantada enquanto prossigo a perigosa descida travada pelos bicos firmes dos teus seios de rapariga que sorvo pelo céu-da-boca até ao coração empurrada por um gemido viras-te convidando-me a descer com a língua a longa escadaria das tuas vértebras uma a uma até ao sítio em que a mulher é mais criança para trás deixo as concavidades entre os braços e por detrás dos joelhos onde a pele é mais branca mais para baixo perseguindo as mãos deslizam os lábios procurando os outros que entre os sobressaltos das ancas mais a sul os aguardam como guardas de um templo entre colunas escondido para o beijo fatal e húmido de duas diferentes bocas abres os olhos e o teu corpo oscila como barco à deriva em alto mar ou flecha tensa de arco inglês pronta a disparar é nesse momento que me vês crescer para ti tapando-te como um cobertor de pele e nos fundimos com as tuas pernas esguias e altas querendo tocar o céu e tu dizes quero que desças a partir da boca e da garganta e me lambas os bicos dos peitos e depois voltes a descer pela frente até ao umbigo mas não pares vai vai-me até ao sexo aperta-o suavemente abre-lhe os lábios molha-os de saliva passeia-lhe os dedos ternamente se quiseres podes enfiá-los fundo e também afastar-me por dentro as pernas devagar deixando na pele um rasto lento e quente desejo tanto que o metas mas não ainda não volta-me ao contrário beija-me os ombros e o pescoço marca-o com os dentes segue até ao fim pelas costas morde-me as nádegas aperta-as ora suave ora com força quero sentir o calor dessa mão tão 79 boa a respiração da tua boca e depois mete sim mete-me a língua macia pelo meio das coxas e faz faz-me senti-la como se ma metesses na boca e eu digo vem partamos em viagem colemos os corpos num só corpo todo de fúria feito sente o mastro do meu barco navegar-te por cima e por baixo toca-me com a macia suavidade das penas todas as minhas partes vou incendiar-te a pele assistir ao nascer do desejo no crepúsculo de medo do prazer que mereces e queres mais até do que eu vamos trocar de pernas inverter os braços inventar gestos e mexer os sexos como cordas de guitarra dedilhadas em excesso ou estrelas a riscar o céu vem-te e tal como eu sente fugir o instante da morte breve do clarão inocente do aguilhão de prazer que desaparece em lava quente por dentro de nós e tu dizes vem façamos a viagem o sinal de partida são teus olhos que eu amo depois as mãos a boca o teu cheiro estranho vais andar e parar em mim várias vezes nos contornos do pescoço nas curvas dos ombros nos montes do peito ou de Vénus nas planícies do tronco no lago do umbigo vão os teus dedos escrever-me na pele palavras ilegíveis pinturas sem tinta que leio sem voz desenho sem ver que só as sinto em arrepios e só as ouço em gemidos vou aquecer as mãos no fogo do teu sexo lamber-lhe as chamas de modo lento espreitar-lhe o desejo fazê-lo crescer por mim a dentro vens-te mas sou eu que grito ao te sentir irromper num esgar aflito e então sorrindo acredito que tua alma ascendeu linda ao meu céu. 80 E o teu olhar era de adeus (Ne me quitte pas de Jacques Brel) O mundo não é verdadeiro mas é real Num Sábado de sol, em Maio, X. veio ter comigo ao Meco. Era meio-dia, estava a cozinhar e não dei pelo carro chegar só me apercebendo da sua presença quando assomou à porta. Abri a minha boca de espanto e logo a fechei na sua. Depois, sentados na relva com as nossas mãos entrelaçadas, disse-me que não conseguia aguentar mais a pressão, pediu-me tempo, deu-me um beijo e com um olhar triste desapareceu. Até hoje. (“Quando olhaste bem nos olhos meus e o teu olhar era de adeus…”) Desapareceste-me! Não sei porque razão tenho de continuar a viver sem ti!. (“Ne me quittes pas, moi je t’offrirai perles de pluie, venu d’un pays où il ne pleut pas … ) A tua ausência dói-me tanto… (“a rejeição é tão penosa quanto as dores físicas porque activa as mesmas zonas do cérebro”). As minhas filhas para me consolar dizem-me que ela agiu assim por amor. Por não me poder dar o que eu queria, ou seja, vivermos juntos reconstituindo uma nova família. Por medo de me arrastar e envolver na relação tumultuosa com o seu ex e de este me poder fazer algum mal. Por pânico de perder a tutela da filha por ordem judicial. Claro que não acredito a cem por cento nestas versões piedosas e um facto inegável é que X. me apagou da sua vida como se eu fosse uma luz. Não sei o quê mas algo em mim a terá desencantado. Terão sido, talvez, as minhas tentativas de desdramatização do caso da filha ou as minhas insistências para não continuarmos em encontros esporádicos, breves, tardios e noctívagos e passarmos mais tempo juntos? Não sei. Não sei mesmo o que terá acontecido! E ainda hoje me custa acreditar que acabou. Acho que o amor de X. por mim, tendo nascido das palavras, acabou por morrer dos factos. Quando se foi embora, levou apenas consigo as chaves da minha casa deixando tudo o mais atrás de si. Roupa, sapatos, brinquedos da filha e um rasto sem fim de saudades. Não sei se o terá feito por extremo cansaço e pressa de se evadir ou se, por pensar que um dia poderia voltar. Eu enlutei a minha cama com lençóis negros, forrei a casa de banho de toalhas pretas retintas incluindo papel higiénico preto. Decorei o meu quarto em tons brancos e pretos, excepto uma das paredes que pintei de vermelho 81 nirvana para simbolizar a ferida ainda aberta do meu coração e a meio coloquei um quadro pintado por mim com uma só cor: preta. Numa das outras paredes escrevi em caracteres japoneses este poema simples e belo: Nana korobi ya oki (sete vezes caímos e oito nos levantamos). Recordando porém, tudo o que aconteceu, reparo agora ter havido um afastamento lento e manso ao longo dos últimos meses. Terá começado no dia em que os pais dela (e não ela) me disseram que, por prevenção, a menina deixaria de vir à minha casa. Tal como já havia deixado de ir, aos fins-de-semana, ao Meco, (onde passeávamos os três de mão dada, a menina sempre no meio, a suplicar que a levantássemos ao mesmo tempo e fizéssemos baloiço!) Receavam, não sei se por excesso de imaginação ou de cuidado, que eu e as minhas filhas fossemos envolvidos, por suspeição, nos processos ou acabássemos sendo vitimas de retaliação do louco que havia casado com a filha. Por vezes, já de noite à sua espera, telefonava-me a dizer que estava a ser seguida, que tinha medo e ia regressar a casa. Noutras dizia necessitar de recolher elementos que os advogados lhe haviam solicitado para o processo. Até chegou a dar a entender que, quando à noite se dirigia para minha casa, se sentia como uma puta a visitar um cliente. E em algumas dessas noites chegava junto a mim muito nervosa, com os olhos húmidos de quem teria estado a chorar e depois, não se continha e chorava mesmo à minha frente. Tenho pensado muito nisto e chego à conclusão que os pais deviam exercer sobre ela uma grande pressão, semelhante à que fizeram naquela incrível manhã, na minha casa do Meco, na primeira noite em que ela lá ficou comigo. Com uma grande diferença: agora, não estava eu lá para a apoiar e argumentar em sua defesa. Nunca mais falámos nem nos encontrámos. De vez em quando, demasiado frequentemente, (como agora) as lágrimas soltam-se, só me parando nos lábios e uma tristeza profunda garrotame a garganta como uma corda de enforcado. Os olhos fazem-se mar e a vista neblina. Eu sei que não devo chorar porque acabou, mas sorrir porque aconteceu. Mas não consigo e choro porque não compreendo. (“A infelicidade ou a felicidade não está no que nos acontece mas no que fica em nós depois de acontecer…”) No meu quarto, por masoquismo, esperança ou saudade, ainda conservo um dos seus retratos, aquele em que ela me olha um pouco de lado, suavemente oblíqua. A sua face lisa repousa no verso da sua mão direita, enquanto os dedos longos se estendem, juntos e alinhados, pela linha do pescoço. 82 Os seus olhos parecem lagos tranquilos perdidos no infinito. Ela continua a ser ainda a última coisa em que penso e a primeira que me vem sempre à cabeça... (e o que pensará ela? O que pensas quando fechas os olhos e a noite se faz dia dentro de ti? Como se sentirá? Do que recordará de nós? Será que também chora? A cabeça de uma mulher, por vezes, pode ser a rocha mais dura ao cimo da terra!) (No meu quarto o frio cheira pior que a morte dispo-me lentamente o meu corpo magro e nu estremece falta-me o teu riso quente o teu olhar de fogo a tua alegria ardente e o Verão ainda tão distante do Inverno do meu presente) Não sei precisar bem quando é que a saudade ou a nostalgia começaram de mansinho a penetrar-me os poros da alma e com elas, o sofrimento (“dias há que na alma se me tem posto/ um não sei quê que nasce não sei onde/ vem não sei como e dói não sei porquê”). Primeiro, uma ferroada traiçoeira da memória, depois um súbito aperto na garganta e uma furtiva lágrima até chegar a pranto de soluços e tudo. Não sendo masoquista esta situação só era possível porque o assunto com X. estava mal resolvido. Pensei: Chega! Não passa de hoje! E hoje era o seu aniversário. Envieilhe mensagens e fiz-lhe telefonemas sem fumo de resposta. Liguei à mãe e foi remédio santo. Nesse mesmo dia, estava na FNAC ouvindo os Portishead quando atendi o seu telefonema. Pediu desculpa por me não ter respondido logo, mas estava a dar aulas, só agora tinha visto as mensagens (está bem abelha!) e sugeria um encontro em casa do meu irmão (queria testemunhas!). Está bem, respondi, aceitando as suas condições. À hora combinada lá estava eu com o meu irmão e a minha cunhada quando ela chegou… acompanhada pela mãe (vá lá… não vinham de mão dada nem ela de bibe!). Se esta muleta significava insegurança não a deixou transparecer no que me disse. Recusando falar a sós comigo e diante de todos, Informou-me do que eu já sabia. A sua tese era não ser justo continuarmos, naquelas circunstâncias, a prenderme a uma relação impossível. Que eu merecia ser feliz e não podia ficar eternamente retido neste impasse. Deixou-me um saco de plástico com coisas minhas e pediu-me que desse as dela aos pobres. Não bem o que disse mas a calma com que o fez, surpreendeu-me de verdade. A voz não lhe tremeu, aos olhos não assomou sequer um brilho de lágrima. Foi firme e decidida em todos os momentos. Pouco depois, alegando já ser tarde e nada mais a dizer, em primeiro lugar ela e depois a mãe, levantaram-se e saíram. (Não digas nada, deixa-me só olhar-te, é a última vontade de um condenado a amar83 te). Na despedida como à chegada, beijámo-nos nas faces como conhecidos que não se viam há muito tempo, desejando-nos, recíproca e civilizadamente, felicidades. Nessa noite, deitado na cama do meu luto, trocámos estas mensagens: Eu: Apagaste-me da tua vida como a uma luz. Mas eu compreendo-te. Tinhas de salvar a tua filha. Responde-me só a uma pergunta: Ainda me amas e pensas em mim? Ela: Só penso na minha filha como te disse várias vezes hoje. É a única coisa que interessa. Eu: Responde-me, por favor, à pergunta que te fiz. Ela: Não penso em ti. Eu: Pois eu penso e muito em ti. Agradeço o amor que me deste ainda que por pouco tempo e amar-te-ei sempre. Na noite seguinte, tentando de novo estabelecer contacto, enviei-lhe outra mensagem: Eu: Compreendo e respeito a tua atitude mas não vou desistir de ti e por ti vou esperar Ela: ( ) Silêncio. Insisti com uma pergunta: Eu: O teu coração é assim tão pequeno que nele não caibam ao mesmo tempo um criança e eu? Ela: ( ) De novo o silêncio. Voltei a insistir: Eu: Não podemos ao menos trocar mensagens? Mais uma vez, o silêncio como inequívoca declaração de intenção, foi a única resposta que obtive. Sem conseguir controlar uma maldita lágrima de raiva e pena, escrevilhe com ingenuidade: 84 Eu: Talvez esteja a aborrecer-te com estas mensagens mas apetecia-me falar contigo. Dizer-te que a minha filha passou de ano e está feliz como há muitos anos não a via. Descrever-te as mudanças que fiz no meu quarto. Contar-te todas as pequenas e grandes coisas que fiz hoje. Do outro lado, o grande silêncio manteve-se. Nessa noite, no pequeno diário que guardo à cabeceira da minha cama, escrevi este pensamento: Só podemos dar o nosso amor. Não podemos obrigar ninguém a aceitá-lo. 85 86 Como num filme de Almodôvar (Eu não existo sem você de Vinicius e Jobim cantada por Rosa Passos) A arte é a confissão que a vida não basta Quando conheci o Z. pensava já não ser possível voltar a amar, tão desiludida e aterrorizada me sentia, com a experiência de casamento que vivera durante uns longos doze meses. De homens não queria saber e deles nada esperava. Esperara tanto por um e para quê? Casara pressionada por mim própria, pois já tinha ultrapassado os trinta anos e queria conhecer o amor, ser amada, ter filhos e família. De tudo o que queria ficou-me apenas uma filha. Era com ela que passeava, naquele fim de tarde numa praça de uma terra do Algarve, onde passava uns dias de férias com os meus pais e o meu irmão, quando o vi. Era o irmão mais velho de um colega meu da companhia e estavam juntos em férias. Pouco minutos depois de o conhecer, desapareceu-me com a minha filha, reaparecendo pouco depois com ela e com uma prenda: uma pequena placa de porcelana com a inscrição do seu pequeno nome: Maria. Sem saber bem o que fazer, encenei uma pequena festa com a miúda. Não consegui olhar para ele, nem sequer lhe agradeci mas fiquei logo de quatro. Nos dias seguintes fui-o descobrindo devagar e aos poucos, nas entrelinhas das conversas que ia ouvindo com o irmão e com os amigos, na forma doce e experiente como se relacionava com a minha filha, na simpatia que se desprendia das suas atitudes e palavras para com os meus pais e para comigo, sempre com um atencioso sentido de equilíbrio que me desvanecia. Eu bebia as suas palavras quase com devoção. No dia em que uma das suas amigas ou namoradas o veio visitar, deliberadamente quis mostrar-me, insinueime entre eles e, para minha surpresa (ou talvez não) fui eu quem recebeu mais atenção. Mas a prova de fogo só aconteceu na noite do último dia, uma directa passada em grupo na praia, com direito a fogueira e banho nocturno e muitas, muitas conversas, estórias e gargalhadas. 87 Ao amanhecer, dançámos uma morna cabo-verdiana (aquela que, coreografada por Pina Bausch no bailado Masurca Fogo, integra a banda sonora de um filme de Almodóvar) e no final, ao desprender-se, beijou-me levemente no pescoço. Desmoronei, implodindo por dentro. No regresso, fiz questão de voltar com uma amiga. Sabia que se entrasse no seu carro, a sós, tudo se aceleraria. Não responderia por mim porque só me apetecia, confesso, saltar-lhe para cima. No dia seguinte, Z. regressou a Lisboa e eu senti-me perdida. Mas com um alento e coragem que ignorava possuir liguei-lhe para o telemóvel, já nem sei bem o que disse e combinámos encontrar-nos no dia seguinte na casa dele no Meco. Quando lá cheguei ele esperava-me e a primeira coisa que fez foi beijar-me suave e timidamente como se eu fosse de vidro e tivesse medo de me partir. Nos primeiros meses, eu que só bebo água, senti-me permanentemente embriagada e tonta de emoção. Nem precisávamos de nos tocar, bastava olharmo-nos, para as hormonas se descontrolarem e tudo mexer e crescer, literalmente, por dentro e para fora de nós. Sentia-me não apenas mulher mas uma fêmea em cio. Fazíamos amor onde calhasse, sôfregos mas sábios e sem pressas. Aliás, Z. conseguia controlar-se de tal forma que passava semanas sem se vir enquanto eu me perdia na minha conta pessoal. Já ouviram falar em sexo tântrico? Mas a inquietação dos meus pais, carregada pelo lastro do meu recente passado de casada, inquinou desde o início, a nossa relação. Na minha primeira noite passada fora de casa, os meus pais e o meu irmão apareceram de madrugada, no Meco, em casa do Z, onde calcularam que eu estaria. Esperaram do lado de fora o momento em que nos levantássemos, batendo de quando em quando palmas, para assinalarem a sua presença. Sem imaginar quem seria, Z. levantou-se e abriu a porta. Depois, ensonado e de troco nu, mas cheio de paciência, com todos sentados à mesa, por baixo do alpendre de madeira e buganvílias, sentindo a aragem matinal ainda impregnada do cheiro doce das damas-da-noite, recebeu-os ouviu-os e pacificou-os. Eu não necessitei sequer de abrir a boca e ainda o fiquei a admirar e amar mais (“se eu não te amasse tanto assim/ talvez perdesse os sonhos dentro de mim/ e vivesse na escuridão/ Se eu não te amasse tanto assim/ talvez não visse flores por onde eu vim/ dentro do meu coração”). Mas esse foi apenas o primeiro acto de uma resistência surda e subterrânea que se viria a revelar eficaz. Acho que os meus pais desde logo se aperceberam da intensidade deste amor e recearam que a minha relação com Z. pudesse conduzir novamente à minha saída de casa. 88 E, talvez, não tanto por mim, mas mais pela neta que era a luz mais brilhante das suas vidas, essa perspectiva era-lhes insuportável. Começaram a agitar o papão do meu ex. e do que ele poderia fazer para me tirar a guarda da menina. Recordaram os erros do meu casamento e as suas consequências. O meu regresso a casa sem nada e com uma filha, mais todas as despesas e preocupações que ambas lhes estávamos a dar. E eu, confesso, fui-me deixando minar. Pressionada, deixei de levar a menina comigo aos finsde-semana para o Meco porque ela podia falar no Z. e dizer em tribunal que via a mãe, outras mulheres e outros homens, nus na praia. Depois, deixei eu mesma de ir aos fins-de-semana ao Meco porque a menina tinha uma mãe e não podiam ser apenas os avós a ficarem com a criança e a tratarem dela. Depois, deixei também de a levar para casa de Cascais, porque receavam que o meu ex-marido pudesse elidir a sua responsabilidade, imputando ao Z. as práticas abusivas e criminosas sobre a menina de que o acusávamos. Depois, comecei a ir a Cascais apenas à noite, uma ou duas vezes por semana, após adormecer a menina, já cheia de sono e sem vontade para nada. Por fim, extenuada por este ritmo infernal de desgaste físico e emocional mantido durante tantos meses e, sem gota de paciência para continuar a ouvir os medos verbalizados dos meus pais, comecei a arranjar desculpas e mais desculpas até que deixei definitivamente de ir ter com ele. Espero que me tenha perdoado e que possa refazer a sua vida, liberto do lastro da minha. Sei bem o que perdi. Já não há homens assim. 89 90 Se eu quisesse enlouquecia (I will survive cantada por Gloria Gaynor) O sofrimento é uma dor a que nos agarramos O casamento, já o disse, foi o maior erro da minha vida. Mas como poderia adivinhar tudo o que iria acontecer? Estava apaixonada pela primeira vez e não via nada. O dia do casamento foi logo trágico. Casei pela Igreja e ainda no altar o meu marido recusou-me ostensivamente o beijo da praxe. No copo-de-água, embebedou-se com os amigos, tornando a minha noite de núpcias no pior dos nightmares de qualquer noiva. Durante a minha gravidez, a pretexto de me massajar para aliviar as dores e tensões, magoava-me seriamente. Quando me queixava das nódoas negras dizia que eram das quedas que eu dava durante os ensaios. Até que um dia, em férias no Algarve, tinha a minha filha poucos meses, simulou (ou terá mesmo tentado) matar-me, apertandome a garganta até me obrigar a gritar. No dia seguinte, respondendo ao apelo que lhes fiz, os meus pais foramnos buscar. O meu casamento, ou o meu sonho, terminou ali e um impensável pesadelo começou. Perseguições, ameaças, insultos, quase agressões, de tudo houve um pouco. Mas o pior era o que ele fazia à minha filha. Só por isso me apetecia matá-lo (“raios partam a vida e quem lá ande!”). Z. era o oposto. Um poeta. Não só porque a escrevia mas porque a sua visão das coisas e o seu discurso eram poéticos. Frequentemente, dizia de memória extractos ou poemas completos de Pessoa, Sofia, Eugénio, Herberto e, naturalmente, dele próprio. Para Z. dizer poesia era uma forma de dizer a vida com palavras que a não dizem, era sentir e ouvir a voz dos outros dentro dele. (És meu poeta e porto seguro/ abrigo que me protege a alma/ só com o calor das mãos/ És meu amigo e estrela do norte/ farol que me guia o caminho/ só com o clarão dos sentidos/ És meu amor e tranquila paixão/ sol que me ilumina a vida/ só com a luz dos olhos) Para mim escreveu também alguns poemas mas poucos. Antes de me conhecer, tinha tido uma grande paixão que 91 quase lhe esgotara a força criadora. Eu não tinha ciúmes porque ele embora não escrevesse poesia com tanta intensidade, vivia-a comigo, entregava-se-me todo e era só meu. E queria casar comigo… (no dia do terceiro aniversário da minha filha alguém nos tirou uma foto, a branco e preto, onde estamos todos a rir. Ele ao centro, com a minha filha, de dedinho na boca, toda derretida, ao seu colo – ela chamava-lhe o meu amigo Z. - eu ao seu lado encostando ligeiramente a cabeça no seu ombro com um ar sonhador e os dentes todos a rirem, enquanto as outras três filhas dele nos envolviam com poses e sorrisos). Sei que era esta era a visão que ele tinha do nosso futuro. Sei que ele seria o melhor pai que poderia desejar para a minha filha. Mas também sabia que não podia ter os dois ao mesmo tempo na minha vida. Primeiro tinha que salvar a minha filha. Depois logo se veria. A equação dos afectos nem sempre dá certa e a vida acaba por se tornar um conjunto de somas e subtracções cujo resto é quase sempre igual a zero. Como podia eu pensar em reconstituir uma nova família? Ir viver para casa dele tal como tinha ido viver para a casa do outro? E se, novamente, não desse certo, repetiria o regresso com a filha nos braços à casa paterna? Alguém imagina a humilhação que sofri ao ter que pedir aos meus pais (que nunca foram favoráveis ao meu casamento e até à última me tentaram dissuadir), para me irem buscar e acolher novamente em sua casa? (“a sedução e o abandono por parte dos homens são práticas que remontam aos primórdios da espécie”) Sim, eu sei que Z. era muito diferente. Um homem estruturado e maduro, honesto consigo e com os outros, de vida aberta e transparente em todas as suas vertentes e que me amava, tenho a certeza, via-lhe esse amor nos olhos e nas atitudes, ouvia-o das suas palavras sempre doces. Doce, é! Doce era a palavra que melhor traduzia a sua maneira de ser, de estar e de amar. Com ele podia ter sido feliz! Mas a minha filha era o principio e o fim de tudo, a partida e a meta da minha vida e por ela tive que me sacrificar e esquecer a sensação de transcendência que o amor de Z. me dava (“a meio do nevoeiro não se pode voltar atrás”). Naquele dia no Meco senti-me a morrer devagarinho. Apareci-lhe num sábado à hora de almoço. Ele cozinhava e vi-lhe o espanto do inesperado nos olhos. Terá pensado que iria passar, finalmente, um fim-desemana com ele. Deixou o que estava a fazer em lume brando e, a meu pedido, fomos conversar. Nunca esquecerei a nobreza triste dos seus olhos enquanto me ouvia dizer-lhe que o meu coração e a minha cabeça não eram suficientemente grandes para, 92 ao mesmo tempo, o albergar a ele e à minha filha (“o mínimo da dignidade é levar porrada como se a déssemos”). Que a pressão sentida nos últimos meses, pelos meus pais e também por ele, se tornara intolerável e me sentia a perder o juízo, o discernimento e as forças. Que não me sentia capaz de lhe dar o que ele necessitava nem sequer via possibilidade de as coisas, com brevidade, mudarem para melhor. Que já não me sentia mulher, mas apenas mãe e filha, tentando responder, o melhor que podia e sabia, às mil obrigações inerentes. E foi tudo! No carro, de regresso, só via à frente dos olhos, a sua mão acenando num gesto de adeus que apenas eu sabia ser até nunca. Ano e meio depois, o reencontro mais temido aconteceu. No dia em que fiz trinta e seis anos, e como não lhe respondia às mensagens, Z. ligou à minha mãe, deixando-me sem alternativa. Consegui conduzir o encontro para terreno neutro (a casa do seu irmão e meu ex-colega) e, como medida de segurança, levei comigo a minha mãe. Após as sempre necessárias e apaziguadoras palavras de circunstância, frente a todos, disse-lhe tão firme e serena quanto fui capaz, o que já lhe havia dito antes, mas agora de forma mais definitiva. Devolvi-lhe, num pequeno saco de plástico azul, as chaves de casa, o telemóvel e o anel de ouro branco e amarelo que ele me oferecera no nosso primeiro aniversário e que eu adorava (a minha mãe, coitada, tirou-me a respiração ao deixar escapar, em voz alta, o comentário de que aquela cena lhe partia o coração…) Tudo isto, sem perder atitude, sem soluçar uma só vez, de olhos límpidos e desertos. Tendo sido sempre bailarina desta vez fui actriz (“se eu quisesse enlouquecia…”) Z. tudo ouviu, sem desviar um segundo sequer os seus olhos dos meus, procurando descobrir através deles, a verdade das minhas palavras e a sua real correspondência com os meus sentimentos. Lia-lhe nos olhos todas as perguntas que não lhe dei oportunidade de me fazer. Aparentou sempre uma tranquilidade resignada mas eu sabia que lhe estava a partir o coração e que a sua vontade era confrontar-me com o amor que tantas vezes eu lhe jurara e perguntar-me porque havia desaparecido, porque estava a dizer aquelas coisas? Eu sabia que a sua vontade era levantar-se, agarrar-me pelos ombros, calar-me de vez com um beijo e levar-me dali para fazermos amor, com carácter de urgência, no primeiro sítio que encontrássemos. Mas não lhe dei qualquer hipótese e tal como entrei, saí. 93 Sem vida, é verdade, mas com dignidade. Sabia bem que se permitisse um momento a sós com ele toda a minha pose se desmoronaria com consequências, para todos, imprevisíveis. Fiz o que tinha que ser feito. (“Tenho de continuar. Não posso continuar. Vou continuar”.) 94 FOODAA-SSSEE!!! (I Gotcha de Joe Tex) Adoro falar sobre nada. É a única coisa de que percebo muito. Claro que fiquei chateado! Senti-me mesmo como marido traído, duplamente enganado, por aquela família filha-daputa! Quando conheci X., aquele ar de parvinha que ela tinha, fez-me pensar que seriam favas contadas e uma mera questão de tempo, para chegar aonde eu queria, mas afinal não foi bem assim. Durante três anos foramme iludindo com as frequentes referências aos bens que possuíam em Goa, as jóias, as casas e até uma praia. Tudo treta! Eu devia ter desconfiado porque se tivessem tudo o que diziam não necessitavam de viver num andar minúsculo em Massamá. Mas eu também andava um pouco cego e a pensar demasiado com a cabeça de baixo porque na verdade ela também tinha coisas boas… umas mamas pequeninas é certo mas o corpo perfeito umas pernas…!!! Mas depois veio a menina e mais do que enganado, senti-me encornado! Sendo ela quase preta e eu bem moreno como é que a miúda me sai branquinha, cabelos loiros e olhos verdes? A gaja enrolou-se de certeza com algum daqueles maricas dos colegas e depois queria fazer-me passar por parvo. Foda-se! A minha mãe já me tinha avisado que naqueles meios artísticos são todas umas putas e galdérias. E tudo o que a minha mãe diz ou faz para mim é sagrado. Amo-a e odeio-a e ao mesmo tempo. Tenho-lhe um medo de morte. Basta ela abrir-me os olhos e nem sei onde me esconder. Em criança davame tareias de cinto e fivela e depois enquanto eu chorava de dor e de raiva, abria a blusa e metia-me a cabeça nas suas mamas enormes e quentes repetindo com voz esganiçada mas meiga: A mamã é boazinha, tu é que és um menino mau! De resto nunca me deu um beijo ou um abraço. Com o meu pai era a mesma coisa. Dava-lhe com cada murro nas costas que o desgraçado até ajoelhava. Mas ele desculpava-a sempre justificando os maus humores e a agressividade com o ciclo menstrual. Apesar disto tudo a minha mãe seria a única mulher com quem eu me casaria por verdadeiro amor. 95 Quanto à outra, cedo comecei a fazer-lhe a vida negra com ameaças e tanta porrada que às vezes até dava para jogar às damas no corpo dela. Não sei porquê mas desde miúdo que gosto de ver e de fazer sofrer, principalmente as mulheres. Quando deixei de poder fazer sofrer X., porque a gaja me fugiu de casa, comecei a fazê-lo com a putinha da filha. Era cá um gozo… Nos dias em que ficava com ela, depois de a arrancar dos braços do avô e de aproveitar nas escadas para, entre dentes, o insultar devidamente, levava-a para a minha casa, despi-a devagarinho, dando-lhe muitos beijinhos naquele corpinho ainda a cheirar a leite e metia-me com ela na banheira. Sou um pai muito moderno, caralho! Depois, de pau teso, dizendo-lhe com uma vozinha cómica que o papá estava a brincar com ela, ia-o esfregando pelo rego do rabinho e da ratinha, (sem nunca a penetrar, claro) até me vir todo na água. Depois era a minha vez de lhe pedir que desse beijinhos no “ursinho” do papá e ela dava. E ela achava graça e se calhar até gostava. Mas depois aqueles cabrões, desconfiando de alguma coisa, começaram a inventar desculpas e a impedir-me de levar a menina comigo aos fins-de-semana. Fizeram queixa de mim à polícia e meteram-me em tribunal. Mas eu também fiz queixa deles, alegando violação dos meus direitos de pai e levantando as suspeitas para cima do velho. Uma figura caricata aquele velho de barbas e cabelos brancos tipo neve. Já viram o Pai Natal? Era tal e qual, igual e cuspido. O que eu me divertia a aterrorizálos, a ele e à velha, quando os perseguia e lhes atirava com o meu Range Rover para cima. Que gozo! E no casamento? Até parecia um filme cómico. Muito tive eu que beber para esquecer a merda que estava a fazer. Aquele sim quero, diante do senhor Padre, custou-me mesmo a sair. Foda-se!! No fim não via já nada à minha frente e no fim do copo-de-água quase ia atropelando o preto do irmão dela. O escarumba ainda quis tirar satisfações mas mandei-o logo à merda e tinha-lhe ido aos cornos se os meus amigos não me tivessem agarrado. Mas o que eu gostei mais foi quando os meus convidados começaram a fazer bolinhas de miolo de pão e a atirá-las como berlindes para cima dos convidados deles. Íamo-nos mijando a rir com as caras que eles faziam. Nós uns trastes e eles uns tristes! Mas não posso dizer que tenha sido só tempo perdido aquele ano do meu casamento. Além de ter vivido à custa dela, a comer e a beber, sem fazer nada, e de lhe ter ficado com todo o dinheirinho que ela possuía no Banco numa conta conjunta, as tardes que passávamos até às tantas deitados numa manta no 96 chão, a ver televisão e vídeos pornográficos, foram mesmo muito bem passadas. Foi com esses filmes educativos que ela aprendeu a chupar-me a vida por dentro. A boca em oval perfeito, a língua solta, a mão trabalhando bem e, de quando em quando, de soslaio, lançando-me olhares gulosos para aferir o meu grau de gozo e se excitar ainda mais. Foda-se, Caralho! Era mesmo uma brasa! Porra! Que saudades… E agora há meses que nem sequer vejo a miúda! Que merda, pá! 97 98 ACTO DE MISERICÓRDIA (Sufre como yo de Alberto Pla ) A água demasiado pura não tem peixe Não estou nada arrependida. Matei-o como a um cão danado e vi-o sangrar até morrer. Estou agora presa mas salvei a minha filha. O julgamento foi mais uma farsa como haviam sido todos os outros em que participei contra ele como autora ou como ré. Fiquei tão farta que já não posso ver juízes, nem advogados, nem testemunhas á minha frente. Como nunca consegui fazer a prova dos factos que alegava acabei por perder todas as acções que intentei desde a de ofensas corporais até á acção principal do poder paternal. Nunca poderia aceitar que me tirassem a minha menina. Preferia matar alguém e foi isso que fiz. Matei-o a ele. Toda a minha vida viajei numa diáspora familiar, primeiro por Angola, depois Goa, Brasil e por fim Portugal. Pouco me lembro de Luanda e de Goa mas do Brasil, de S.Paulo lembro-me de tudo e como adorei lá ter estado. Nasci lá para a dança que acabaria por ser toda a minha vida nunca sendo o meu futuro. Recordo nitidamente as minhas amiguinhas brasileiras da escola pública e do bailado e as conversas e as descobertas, inclusive sexuais, que fizemos e partilhámos sem qualquer pudor. Z. dizia muitas vezes que eu era uma mulher de várias raças e tinha razão pois era assim que eu me sentia principalmente quando fazia amor e me transfigurava num ser selvagem possuído por aquele instinto básico e antigo que deu origem à vida. Quando conheci o meu ex-marido pensei ter encontrado o homem da minha vida. Era massagista num clube de futebol de Lisboa e as suas mãos moldaram-me o coração que começou a bater só por ele. Como foi possível, pergunto-me agora, mas não consigo encontrar resposta. O amor é cego, verdade? Não, não é verdade mas isso agora não interessa. O que interessa aconteceu assim: Estacionei o meu carro numa rua adjacente à casa dele, liguei o rádio na Antena 3 e aguardei. Ele chegou por volta das nove da noite. 99 Estacionou sobre o passeio como sempre me lembro de o ver fazer e saiu assobiando feliz a atravessar a rua em direcção à casa onde vivia ainda com os pais. Nessa altura acelerei a minha raiva a fundo e o seu olhar de espanto antecedeu o brutal embate que o elevou no ar, sem um único grito, em direcção aos infernos. Travei mais à frente e meti a marcha atrás. Nem olhei mas o salto que senti o carro dar comprovava que mais uma vez não falhara. Saí do carro com os faróis nos máximos, servindo de holofote, iluminando a cena. Tombado no asfalto e enrolado sobre si, com o rosto emborcado no seu próprio sangue, o animal estava finalmente morto. Senti então uma sensação visceral de prazer. Foi um momento perfeito. Infelizmente, todos os momentos perfeitos contêm em si o seu próprio fim. 100 Interlúdio (Boa sorte e Good luck cantada por Vanessa da Mata e Ben Harper) Se nada há a fazer então um beijo e adeus Depois da ruptura com B. e antes de conhecer X. encontrei Pat. Uma reunião, um almoço de trabalho no qual, em resposta à referência de ter passado sozinho a meia-noite de 31 de Dezembro, ela comentou em surdina: Que desperdício! Fiz de conta que não ouvi mas registei. Umas semanas depois, enviei-lhe um email, convidando-a para uma night at the opera que, naturalmente, aceitou. Nessa noite, saídos do S. Carlos, fomos jantar ao bairro Alto e no regresso ao carro, em plena rua, beijou-me. Verdadeiramente admirável e surpreendente. É tão raro, uma mulher ter a ousadia de tomar a iniciativa… (Neste dia irrompeu em ti um mar de lava barro ou estanho ou seria nos teus olhos o abrir do castanho a colorir o sorriso de teu nariz levantino) Depois desse beijo demorou ainda algum tempo até fazermos amor pois ela queria criar o ambiente próprio para se entregar e necessitava de algum tempo para recomeçar a tomar a pílula. Quando achou que estava pronta, fomos jantar ao Pinóquio, ela vestida de vermelho com uma saia curtíssima, exuberante e sedutora, onde comemos marisco e bebemos um bom vinho branco. Nessa noite, fizemos amor de uma forma desesperada e pela primeira vez na minha vida senti que estava a ser violado por alguém ainda mais carente do que eu. Pat era divorciada, tinha dois filhos ainda pequenos, e o que mais nela me atraiu foram os lábios vermelhos e carnudos como frutos do bosque e verdadeiramente divinos a beijar. Mas eu não estava apaixonado e foi agora a minha vez de me deixar amar. Pat reconcilioume com a minha auto-estima sexual tão abalada com B. e preparou-me fisicamente para o que viria a seguir com X. Mas só deixei Pat porque entretanto conheci X. e o universo reconstituiu-se perfeito dentro de mim. Um amigo disse-me uma vez que depois de um desgosto de amor acabamos por inconscientemente nos vingarmos na pessoa que vier a seguir. Depois de B. e do que ela me fez sofrer, ter-me-ei vingado em Pat? 101 Não creio, pois sempre fui honesto ao ponto de nunca lhe ter dito estar apaixonado, o que muito a surpreendia pois estava habituada à situação oposta e, só depois de acabar com ela, senti a liberdade necessária para me assumir perante X. Entretanto, nos intervalos destas ligações passaram fugazes, outras mulheres pela minha vida, quase perfazendo um alfabeto inteiro de falsas partidas. C., por exemplo, tinha uns olhos tão lindos e azuis que lhe escrevi e enviei por mail este poema que merecia melhor sorte. Sei que ela o leu mas nem sequer agradeceu: Já tinha visto os teus olhos nas asas das borboletas que perseguia em criança Os teus olhos cantam o nascimento das cores que vivem no grande silêncio da terra quando vista do espaço É uma cor feita de água debruçada nas tuas pálpebras lentas onde a beleza adormece ao som de cânticos Abraço a nudez desse olhar e quase morro só de o contemplar Conheci M. num blind date arranjado por uma das minhas filhas e durante umas semanas encontrámo-nos regulamente mas eu continuava a chorar por X. e não só o admitia como o demonstrava e ela naturalmente não aceitou esse facto. (Ao encontro cego te entregaste / fosse o que fosse / viesse o que viesse, pensaste/ não sei o que achaste / talvez estranhando gostasses /do sabor da poesia / do calor das palavras sussurradas/ do som da lareira feito maresia/ das caminhadas ou do vento quente que soprava / mas não penses sente/ se pudesse pensar o coração parava) De J. e L. nem vale a pena falar. Nem sequer as conheci no sentido bíblico. Estes relacionamentos breves fizeram-me pensar que nos puzzles das nossas vidas, podemos tentar manipular as peças, de modo a conseguir encaixá-las com mais facilidade mas o que resulta nunca nos dá a imagem completa nem verdadeira. 102 A dança dos ventos dos céus (Atrás da porta de Chico Buarque) É mais fácil viver com Deus do que com outro ser humano Nunca vivi com nenhuma das duas mulheres que amei nem qualquer delas o desejava. Tinham as suas maneiras de viver muito próprias, as suas idiossincrasias, e refazerem comigo uma família não fazia parte dos seus projectos de vida. É agora evidente que não olhávamos na mesma direcção… Porque será que o amor não chega? B. podia ter ficado comigo mas não quis e X. queria ter ficado comigo mas não podia. Mas eu adorei-as e ainda as amo, no sentido mais translato do termo, tal como amo os meus amigos, as minhas filhas ou os meus pais. Possuíam as qualidades que para mim são mais admiráveis numa mulher: a simplicidade, a sensibilidade, a sensualidade e a simpatia, e ainda como extra, esse Sol do rosto a que chamamos sorriso, que nelas era fácil e verdadeiramente luminoso. (“A beleza, só por si, não é importante, apenas provoca o medo de a perder, pois que fique para os homens sem imaginação”). Nunca precisavam de nada e para elas estava sempre tudo bem. Não eram consumistas nem sequer gostavam de gastar dinheiro, características raras nas mulheres e que eu admirava por razões óbvias. Ouvíamos a mesma música, líamos os mesmos livros e gostávamos das mesmas coisas. Eram lindas, sem necessidade de pinturas nem nuances no cabelo (não me lembro de alguma vez terem ido ao cabeleireiro) e tinham corpos sublimes. Ambas tinham seios pequenos como maçãs, raramente escondidos por sutiãs, e que eu adorava guardar no côncavo das minhas mãos. Riamos muito e de tudo! Nunca discutíamos, não nos zangávamos, nem amuávamos. Havia espaço nas nossas relações e “os ventos dos céus dançavam entre nós”. É frequente ouvir as mulheres dizerem que o sonho delas é encontrar um homem sensível e verdadeiro. Como se vê as mulheres dizem sempre o contrário do que pensam. Curiosamente, depois de mim nenhuma delas voltou a amar e continuam, ainda hoje, sós. Ambas consideram que neste momento o amor de um homem não lhes acrescentaria qualquer valor às suas vidas e que, pelo contrário, seria mesmo um obstáculo aos seus propósitos mais próximos. 103 B. começou a estudar medicinas alternativas com um espírito militante de missão, andando permanente e obsessivamente ocupada a estudar para os exames nos quais, aliás, consegue notas excelentes. Embora este curso fosse um antigo sonho, acho que ela entrou nele como antigamente algumas mulheres entravam nos conventos: para esquecerem o passado, fugirem de si próprias e se esconderem da vida. Por sua vez, X. continua na sua rotina de dedicação exclusiva à filha e aos pais, vinte e quatro horas por dia, com total abdicação dela própria. Nenhuma delas tem espaço nas suas vidas para amar alguém. Irão envelhecer sozinhas e um dia, talvez se arrependam. Será minha a culpa? Serei uma espécie de eucalipto emocional que seca a vida afectiva das mulheres que amo? Algumas diferenças, contudo, existiam entre elas: o nível de entrega e partilha, a forma como se relacionavam com as suas famílias e o modo como se comportavam comigo na cama. B. pouco ou nada falava de si e dos seus problemas, era muito ciosa das suas coisas, nunca me deu a chave de sua casa, nem sequer me deixava conduzir o seu Jeep. X. expunha-se toda e tudo partilhava, entregava-me tudo, o seu carro, o seu corpo e o seu coração. B. havia saído cedo de casa e era totalmente independente e autónoma face à sua família, vivendo desde sempre com a sua filha em casa própria e raramente se encontrava com a mãe e os irmãos. Pelo contrário, X. o único período que viveu fora de casa dos pais foi a eternidade daquele ano em que esteve casada e dos pais era ultra dependente e subserviente. Estou mesmo convencido que enquanto os pais forem vivos nunca esta situação se modificará Quanto ao sexo, B. sentia um pavor frio que se lhe via nos olhos e se lhe lia nas atitudes, quando a hora de ir para a cama se aproximava. Parecia uma ave assustada. Nunca me abraçava e dormia sempre afastada porque me achava muito quente e tinha sempre muito calor. Nunca tinha vontade de começar (a maior parte das mulheres é mesmo assim) e dizia, frequentemente, que para ela, fazer amor uma vez por mês era mais que suficiente. Talvez os seus níveis de testosterona tivessem descido muito abaixo do normal e estivesse a perder o interesse pelo sexo. Seria? O certo é que a mulher necessita de criar previamente disposição para o sexo e B. nunca a tinha, nem sentia aquele impulso neuroquímico a que chamamos desejo. (“Ironicamente, a activação sexual feminina só começa com o desligar do cérebro”). 104 Qualquer pequena coisa da minha parte, um movimento desajeitado, uma palavra errada, uma expressão menos feliz podia por termo ao já de si difícil inicio e desenvolvimento do seu prazer. Também poderia ser uma qualquer recordação desagradável do seu passado, a induzir sentimentos como a vergonha, a insegurança ou o medo e a conduzir ao mesmo resultado (“as hormonas influenciam a configuração dos desejos, dos valores e da própria percepção da realidade”). Ao invés, X. estava sempre pronta e nunca satisfeita. Agarrava-se a mim como se quisesse colar para sempre os nossos corpos. Tinha ainda a felicidade rara de ser multiorgásmica. Nela, as constelações de estrelas neuroquímicas estavam sempre em conjugação. (“O orgasmo é um processo delicado. Os nervos da extremidade do clítoris comunicam directamente com o centro de prazer do cérebro feminino. Quando esses nervos são estimulados desencadeiam uma actividade electroquímica até alcançar um certo limiar em que ocorrem uma série de impulsos e a libertação de substâncias químicas neurológicas afectivas e de bemestar como a dopamina, a oxitocina e as endorfinas. O clímax!”.) Recebia e dava prazer generosamente. A sua respiração, expressões e palavras (vira-me! faz-me! Estou tão lá em cima!) ficaram-me para sempre gravadas nos sentidos. Eram diferentes na cama porque uma estava apaixonada e a outra não. Paradoxalmente (ou talvez não) também eu era o oposto. Com B., mais vezes do que seria aceitável, poucos minutos após a penetração, ejaculava incontida e desastradamente, aumentando a frustração de ambos. Com X. eram horas e horas de puro êxtase recíproco, sempre nas alturas, só me vindo mesmo quando queria ou quando ela me pedia. Que absurdo! Será que a única forma de coerência é sermos uma coisa e o seu contrário ao mesmo tempo? (“Não sei se, como dizem os budistas, o mundo não será um deus a brincar às escondidas consigo próprio”) Todos vivemos alternadamente entre montanhas e vales. B. foi um vale. X. foi uma montanha. Talvez por isso não consigo suportar a ideia de que nunca mais a irei ver. Que nunca mais a irei ter. Que nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Nunca Mais. Nunca Mais. Nunca mais (em cada Natal que passa o seu retorno à minha vida é o único pedido que faço ao menino Jesus mas nunca é atendido). Mas NUNCA MAIS é muito tempo. E não importa em quantos bocados ficou partido o meu coração, o mundo não pára para que eu o conserte 105 Agora atravesso novamente um vale, cavado, inóspito e deserto. Durante quanto tempo? Quando voltarei a atingir as alturas da montanha? A nossa vida é mesmo assim, vem em ondas. Como o mar, a vida dá-nos e tira-nos. Volta a dar-nos e, de novo, nos volta a tirar. Os extremos tocaram-me. Quando nos apaixonamos ficamos sempre a um pequeno passo da psicose. E não vale a pena lutar porque contra nós próprios nunca há vencedores. (“Nas tuas mãos repousa a minha vida/Falta-me um gesto teu para acordar/ Pássaro triste asa enfraquecida/Sem o teu corpo o céu para voar/ Nas tuas mãos deixei a minha vida parar”) 106 Olhar o mar é tudo (Why should I care de Diana Krall) A simplicidade é a maior das sofisticações Desde o divórcio que vivo com as minhas filhas que, sendo agora adultas, têm naturalmente a sua própria vida. (“Os teus filhos não são teus filhos/ São filhos e filhas do desejo da vida/ Vêm através de ti mas não de ti/ E embora estejam contigo, não te pertencem.”) As minhas filhas são as outras mulheres da minha vida. Vivo com elas desde o dia em que nasceram. Fui o primeiro a vê-las assomar ao mundo rompendo pelas entranhas da mãe e fotografei esses momentos gravando-os no tempo. A L., a mais velha, é inteligente e sonhadora, toda sensibilidade no seu estado quimicamente mais puro mas teimosa que nem uma burra. Saiu-me a mim. A R., é a energia e a realidade personificadas e vencerá, faça o que fizer. A T. é o equilíbrio tranquilo e sábio. Nem se dá por ela mas faz tudo bem feito. Mudei-lhes as fraldas, dei-lhes papinhas, adormeci-as com histórias e canções de embalar. Acompanhei-as em todas as horas, minutos e segundos das suas vidas e mesmo quando ausente estava sempre presente dentro delas. Ainda hoje, sou pai para toda a obra. De motorista a fiador, de cozinheiro dos seus pratos preferidos a paitrocinador, faço de tudo um pouco. A minha vida para elas é transparente, de mim tudo sabem, de tudo lhes falo e lhes confidencio. Depois de mim elas são sempre as primeiras a saber tudo o que me acontece. Nada lhes escondo e nunca lhes minto (“quem busca a verdade só pode começar essa busca dentro de si”). Aliás, estou convencido que as únicas coisas verdadeiramente importantes que podemos deixar aos nossos filhos são os valores, como os da verdade, da bondade, da honestidade e do trabalho que o exemplo da nossa vida lhes pode dar. Foi esta a única herança que recebi dos meus pais e será a mesma que deixarei para as minhas filhas. O dinheiro não é realmente importante e só me interessa na medida em que possua o suficiente para não ter que pensar nele. Talvez por isso não o acumule nem procure obter mais do que já tenho. 107 Aliás, sempre que por vezes necessito de mais algum para fazer face a uma despesa inesperada, ele apareceme nem sei como. Comigo, não gasto muito, trapos só os indispensáveis, mas perco a cabeça com livros e discos e as filhas dão-me as despesas normais mas que multiplicadas por três doem muito (“Estão comigo mas não me pertencem, dou-lhes o meu amor mas não os meus pensamento”). Aos fins-de-semana, quero estar a sós com a minha solidão e refugio-me, feito eremita de mim mesmo, na simplicidade da minha casa do Meco, o meu espaço de liberdade perto do mar (a praia que eu mais gosto em todo o mundo é esta ampla aberta e nua onde um dia minha alma deserta se enamorou para sempre da tua) onde a paisagem é um silêncio com forma (no silêncio da luz dormem as cores e a noite é um silêncio negro/ o silêncio é o espaço entre nós e a morte é o silêncio no corpo todo/ as palavras têm o seu próprio silêncio e o perfume é o silêncio das flores.) Costumo pensar na minha casa do Meco como um ninho de águia onde voo solitário e mais alto. É uma casa que repousa distraída na paisagem dos pinheiros só se dando por ela quando lá chegamos. Harmonia pura. (“Lá imito o Olimpo no meu coração e sou selvagem entre árvores e esquecimentos”). Lá vagueio, folheando em mim o livro dos meus momentos mais íntimos, escrevendo no ar com a pena dos pensamentos e, sempre extasiado, contemplo o mar. Adoro olhar o mar porque olhar o mar é olhar tudo. Também, as ondas, na sua eterna repetição, me dão sempre a sensação de renovação e a esperança de que tudo pode voltar a acontecer. Diz-se que a esperança deve ser a última coisa a morrer porque quando ela se perde morre-se sem se saber. Sinto, diante do mar, a analogia rítmica das nossas vidas com as ondas e uma voz interior que me diz: Calma, espera. Vais voltar a amar… e amarás como se nunca ninguém te tivesse feito sofrer. (Olhando a linha fina do horizonte/ frente ao mar/espero por ti/ como o dia/ espera a noite/ como o viajante aguarda um porto/ numa espera feita onda/ de um mar que não existe) Nesses momentos, sinto a vida como se ela fosse a tal Divina Melodia de que Osho fala e eu tento praticar (em tuas palavras o silêncio fala, nos teus olhos o universo nos vê/ És uma flauta nos lábios do infinito). Vivo o aqui e agora. Transformo os venenos em mel. Compartilho a positividade. E tento ser… nada (“Não sou nada/não quero ser nada/nunca hei-de ser nada/à parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo”). 108 Leio, escrevo e ouço música. São momentos formidáveis, logo pela manhã, a caminho da praia por entre o ondular elegante e fresco dos pinheiros, ouvir a Pastoral de Beethoven ou à noite, sozinho na estrada de terra batida, coberto pelo negro cósmico do universo realçando o pálido branco da lua, a vibrar com A Valquíria de Wagner. Também trato da casa, do jardim e brinco com os bandos de pássaros que como doidos felizes não param um segundo nos arbustos e nas árvores. Sempre só. (“Senta-te, descansa, trabalha. Só contigo mesmo. Na orla da floresta vive feliz, sem desejo”) Quanto a afectos que mais posso esperar da vida? Não tenho o instinto predador e macho da espécie e sem pretender ser sarcástico ou redutor, todos os dias constato que o universo feminino se reduziu para mim a dois grandes grupos: as mulheres que acham que já passei o prazo de validade e aquelas que eu acho que já o passaram (“Para saber envelhecer é preciso aceitar que as oportunidades diminuem e a vida se torna num funil cada vez mais estreito…”). OK. Concordo. Por isso questiono-me: Que probabilidade terá um homem de se apaixonar à primeira vista, na mesma vida, duas vezes seguidas, sendo retribuído, como eu fui? Mas não haverá mesmo duas sem três? Não esqueço que o passado é memória, o futuro imaginação e só o presente é eterno. Assim tento viver cada dia com se fosse o último (um dia acabarei por acertar). Sei perfeitamente que para sonhar é preciso não ter ilusões. Mas sei lá porquê, o meu sonho continua sendo, amar e ser amado. Quando será? Amanhã? Às vezes quase me sinto uma espécie de versão masculina da carochinha, debruçado numa janela qualquer sobre o mundo cantando “ Quem quer namorar com o Zézinho, que está disponível e é tão bom mocinho”. Outras vezes tenho vontade de pôr um anúncio como este num jornal qualquer: Cúmplice procura-se para uma vida a dois de entrega, de partilha e de atenções Mas o pior de tudo (e que dói mesmo) é a falta de sexo. Embora o sexo só pelo sexo não me interesse, nem relações rápidas e muito menos, rapidinhas. Na verdade, o que eu queria mesmo era viver histórias de amor. 109 Mas como a acção faz o órgão, receio o dia, em que sem dar por isso, ele me caia no chão, morto de inacção. Aprendo agora a viver sem sexo. Há quase dois anos que os meus únicos gemidos de prazer acontecem apenas debaixo da água quente do meu duche matinal que todos os dias me acorda para a vida. É mais uma aprendizagem feminina pois as mulheres conseguem lidar melhor com a abstinência sexual que os homens. Um dia, devia estar mesmo mal, o desespero ditou-me este poema (“Será a poesia mais real que a verdade dos sentidos”?): : Apaguem as velas de todos os altares Que as crianças não cresçam e o seu riso se cale Fechem as portas e janelas de todos os andares Que o sol nunca mais nasça e a sua luz se apague Pisem as flores de todos os jardins Que o seu perfume comece a cheirar mal Fiquem todas as gaivotas em terra Que a maior das sedes seque os mares Que as mais ferozes epidemias recrudesçam E as piores doenças dizimem a humanidade Que mais nenhuma música se ouça E os instrumentos desafinem e emudeçam Cortem-me os dedos que lhe afagavam o cabelo Tapem-me a boca que lhe beijava as mãos Ceguem-me os olhos que me alimentavam o sonho Queimem-me o corpo e arranquem-me o coração O meu amor partiu e não mais o verei O meu amor deixou-me e só eu fiquei O meu amor morreu e com ele morri eu 110 ENTROU NA MINHA VIDA UMA LOUCURA BRANDA Todas as idades se submetem ao amor, ária da ópera Eugene Oneguin de Tchaikovsky Se um dia amasse não seria amado Filipa, Sei que a vi pela primeira vez nas escadas ou num dos corredores da escola. Nesse momento, lembro-me que trocámos olhares tão súbitos quanto curiosos. Você tinha algo de tão evanescente como o ar de uma manhã no campo. Calculei que fosse aluna e imaginei que um dia talvez tivéssemos oportunidade de nos conhecermos. Ainda demorou alguns meses a acontecer. Mas no primeiro dia de aulas do segundo semestre, entrei na sala e vi-a sentada na primeira carteira da segunda fila. A partir desse dia, cada aula foi para mim um prazer e uma dor. Estar ali, de pé, de um lado para o outro, a falar sem parar, lutando contra a obsessão de olhá-la nos olhos para avaliar o impacto das palavras que ia atirando para o ar e que em nada correspondiam às palavras que na realidade gostaria de lhe dizer. E o que, gostaria de lhe ter dito desde a primeira vez que a vi era que a Filipa é a mulher mais bela que já vi em toda a minha vida. A frase é vulgar, eu sei, mas é o que sinto. Outras vezes muito resisti para não lhe dizer, mesmo diante de todos, este poema que escrevi para si: Posso chamar-te sem voz pois sei que me ouves Imaginar-te tão só pois sei que me sentes sem que o saibas de verdade Posso ver-te de olhos fechados, sentir-te sem te tocar e passar por diante de ti sem que o saibas na realidade Posso renunciar ao teu amor adolescente pôr o meu ar mais sério e desistir de mim sem que saibas a verdade Posso ser tudo o que quiseres como o pai a quem dares a mão o brilho do teu olhar ou o teu animal de estimação Posso ser ainda mais e porque não o sopro do teu coração a linha do teu horizonte ou o teu professor de Distribuição 111 É muito estranho para mim sentir esta atracção por uma mulher da idade das minhas filhas. Sei que um abismo de tempo nos separa. Um abismo de anos, de vivências e de sonhos. Toda uma distância feita de uma ou duas gerações que só um sonhador romântico como eu acreditaria ser capaz de ultrapassar. Há dois ou três anos, uma aluna no meio de uma aula perguntou-me em tom de desafio: e o amor, professor? Fiquei sem palavras. A pergunta entrou como um míssil por mim a dentro sem pedir licença. Não me recordo que facto a poderia ter suscitado porque, como é habitual nas minhas aulas, costumo fazer frequentes associações de temas e de ideias abrindo extensos parêntesis, onde conto estórias, episódios vividos, faço citações e até digo poesia. Talvez tenha referido a necessidade de trabalhar muito e cada vez mais neste mundo competitivo e exigente onde vivemos e no qual a velocidade da nossa corrida pode fazer toda a diferença entre o êxito e o fracasso (embora a vida não seja uma corrida mas uma viagem). Talvez lhes tenha mesmo contado a minha metáfora preferida sobre concorrência, a tal do tapete rolante no qual, ao se entrar nele no sentido contrário ao do seu movimento, se ficarmos parados andamos para trás, se caminharmos não passaremos do mesmo sítio e somente conseguiremos avançar se corrermos. Ou então talvez tivesse falado sobre… sim acho que foi isso, sobre a felicidade. Do alto da minha idade falando a jovens de vinte e poucos, terei feito uma incursão pessoal chamando-me a mim mesmo à colação e dito que ainda tinha os meus pais vivos, que as minhas filhas me amavam e viviam comigo, que os amigos me respeitavam, os colegas me admiravam, que não tendo fortuna pessoal tinha o necessário para viver bem e fechei a evocação com a sacramental pergunta, que mais posso desejar? É aí que a sua colega me atinge com a farpa da pergunta, e o amor, professor, que lugar ocupa na sua vida? Após longos segundos de estupefacção, respondilhe com meras evasivas e mudei de assunto, o que é um privilégio de quem dá aulas. Indiciaria porventura aquela pergunta mais que mera curiosidade mas nunca levei muito a sério as manifestações de admiração ou de interesse recebidas das minhas alunas pois sempre as considerei território proibido por onde nunca ousei avançar com passos de sedução. Talvez por ter sempre tido o coração ocupado e indisponível. Mas agora, sem ninguém há vários anos, espaço em mim não falta e a natureza, como se sabe, tem horror ao vazio. 112 Talvez por isso, e pela primeira vez na minha já longa vida de professor, tenha tido, não sei se a coragem se a loucura, de me expor desta maneira perante uma aluna com o objectivo de render uma simples homenagem à mulher bela e inteligente que você é (e, ao mesmo tempo agradecer a permanente atenção dedicada às minhas aulas que tanto me compensava por ter que aturar aqueles tontos infantis dos seus colegas). Filipa, você possui as qualidades que para mim são mais admiráveis numa mulher: a simplicidade, a sensibilidade, a sensualidade, a simpatia, e como extra, brilha-lhe sempre esse Sol do rosto chamado sorriso. Não tenho a vã ilusão de pensar que a minha admiração por si possa ser correspondida mas tinha a obrigação de lha manifestar e nada neste mundo me teria impedido de o fazer. Sou um homem tranquilo e independente, nada receio nem sequer o ridículo, e nunca se é ridículo por se obedecer à lei do amor, sendo completamente indiferente às opiniões dos outros. Também não desejo causar-lhe qualquer perturbação na sua vida e muito menos ofender os seus sentimentos. Mas, se calhar, a culpa é do seu nome Ana. É também o nome das minhas três filhas e sei há muito, que seria o nome a dar a uma quarta filha se a tivesse tido… Ana Filipa (nesta altura você levanta os olhos do computador, suspende a leitura, estupefacta, e pensa para si: o homem endoideceu!). Não endoideci, não, simplesmente sei que não podemos escolher as pessoas por quem nos apaixonamos e que nos iluminam por dentro. O amor não se explica nem precisa de explicações mas terá o amor de ser sempre um malentendido? Teria preferido dizer-lhe tudo isto pessoalmente, iluminado pelo brilho dos seus olhos, mas as circunstâncias não mo permitiram. Gostaria, naturalmente, de receber uma resposta sua, fosse qual fosse o conteúdo, mas sei não ser fácil fazêlo. E, quando assim é, a melhor resposta é o silêncio que compreendo e aceito. Mas quem sabe talvez as palavras que acabou de ler fiquem guardadas num recanto do seu coração e num dia que faça chuva e frio na sua vida, talvez o calor desta recordação possa servir ao menos para lhe aquecer a alma. Os homens e mulheres da Antiga Índia chamavam ao amor a eterna dança do Universo. Espero que esses ventos dos céus dancem sempre consigo no seu coração. 113 114 O AMOR NÃO É PARA VELHOS (Rosa, de Rodrigo Leão, cantada por Rosa Passos) Filipa, Desculpe, se me apaixonei por si. Não tinha essa intenção mas o brilho único do seu olhar cegou-me a razão. E afinal parece que a ofendi com umas simples palavras de admiração e elogio que fariam qualquer mulher sentir-se lisonjeada e especial. Mas você não! Respondeu à minha carta com um silêncio ruidoso, aliás já esperado, mas o que mais me surpreendeu e magoou, aconteceu no outro dia, ao nos cruzarmos na escola, você baixou os olhos e desviou-se ostensivamente de mim. Na sua expressão senti vergonha e porventura medo na atitude. Mas medo de quê? De mim? De si? Da vida? Do amor? Medo do amor manifestado, não por um velho, mas por um homem, apenas mais velho? Eu não me limitei a abrir-lhe o coração, eu abri as minhas veias diante de si sendo autêntico e espontâneo nas minhas emoções. Depreendo, porém, da sua atitude, considerar que a minha idade não me daria o direito de sentir amor e muito menos de o manifestar. É muito nova ainda mas saiba que o direito a amar não prescreve com a idade. No fundo, sinto ter traído a sua confiança e acredito que tenha ficado realmente assustada! Sei-o só agora após ter falado com a minha filha mais nova. Mostrei-lhe o e.mail e contei-lhe o sucedido. Ela respondeu-me que se fosse com ela teria ficado em pânico e nunca mais poderia encarar o professor. Ainda pior foi a reacção de outra das minhas filhas, não só se recusou a ler o mail como me assegurou nunca poder aceitar uma minha namorada mais nova que ela... Devo reconhecer, ser para si impensável, enamorar-se ou andar de mão na mão com um homem da idade do seu pai. Imagino o pesadelo que seria apresentar-me às suas amigas ou o embaraço de o fazer à sua família porque o lugar-comum tem sempre razão. Peço-lhe, de novo, desculpa. A forma como lidei com a situação não foi apenas resultante de um erro de cálculo, difícil pela minha parte de evitar, foi a prova da minha incapacidade de compreender os estados mentais, os desejos e a intenções dos outros, principalmente, se o outro é uma miúda de vinte anos a desejar, naturalmente, o mundo. 115 E como poderia eu competir com o mundo? O delírio nunca tem explicação! De todas as alunas que já tive, porventura mais de mil, a única por quem me deixei deslumbrar foi por si. Foi mesmo pontaria. No dia do exame tive muito tempo para a observar bem e tudo me encantava. Debruçada sobre a folha escrevias. Rápida. A cabeça oblíqua quase tocando o tampo da carteira assentava por momentos na curvatura do antebraço esquerdo o qual, suavemente, abraçava o enunciado. De vez em quando passeavas os dedos pela testa e assim ficavas contemplando as últimas linhas do que acabaras de escrever. De repente uma das mãos saltava num gesto incontido agarrando levemente o pequeno lóbulo de uma das orelhas e lá ficava parecendo esquecida. O cabelo apanhado ainda fazia parecer maior a testa que num momento de impaciência as duas mãos por vezes escondiam. Azar meu. Julguei-a uma mulher adulta mas afinal não passa de uma criança medrosa e insegura que provavelmente não perderá ainda nenhum episódio dos Morangos com Açúcar revendo-se em todas aquelas personagens adolescentes. A crua realidade é que o seu campeonato ainda é o de juniors, enquanto o meu, nem sequer é o de seniors mas já o das velhas-guardas. Isso explica que tendo batido à porta da sua vida, indignada me tenha dado com a porta na cara. A nossa bioquímica será seguramente diferente e os nossos mapas de amor, ou seja, os gráficos psicológicos esculpidos pela nossa bioquímica e experiências pessoais desde a infância, que são subtis, difíceis de ler e quase sempre inconscientes, também serão, porventura indecifráveis, para cada um de nós. Mas o que é o amor? A magia capaz de fazer enlouquecer o mais lúcido dos homens como escreveu Homero ou uma necessidade, um impulso, um anseio que nos encharca de substâncias químicas? Parece-me evidente que, tal como temos necessidade de comer, de beber também temos necessidade de amar e de ser amados. E quando o amor acontece a nossa consciência muda e toda a realidade se altera. Focamo-nos de forma total e por vezes obsessiva no ser amado, enaltecendolhe todas as qualidades e ignorando os seus defeitos, sentindo-nos vazios e incompletos na sua ausência, mudando as nossas prioridades e deixando-nos ficar face a ele emocionalmente dependentes, senão mesmo indigentes como dizia Sócrates. Aliás os Gregos antigos reconheciam existir muitos e diferentes tipos de amor, desde o Eros até ao Mania ou ao Ágape, ou seja, o amor é uma sinfonia de sentimentos de muitas notas e acordes por vezes até dissonantes. 116 Mas a maior parte das pessoas não sabe amar nem ser amada, porque é necessário ter muita coragem para se amar incondicionalmente. Têm medo de se entregar e de se revelarem ao outro. Eu não tenho. Mas a natureza não é exacta e numa perspectiva menos poética mas mais científica, o amor é um sistema primário de motivação do cérebro destinado a criar o impulso fundamental de acasalamento do ser humano. O espelho químico manda e você não se revendo em mim, não sendo eu, naturalmente, o macho jovem e certo para acasalar, rejeitou-me. E a rejeição (se bem que você ainda não o saiba) é tudo o que precisamos de saber sobre o inferno. 117 A VIDA NÃO TEM CURA (Uns Versos de Adriana Calcanhoto) Professor, Quando abri o seu mail e comecei a ler nem queria acreditar que aquela pessoa que aprendi a admirar me tivesse escrito uma declaração de amor. O senhor desiludiu-me profundamente. Por isso, não lhe respondi nem o consegui encarar quando depois nos vimos. As suas palavras não me deslumbraram nem me fizeram sentir lisonjeada como pretenderia, antes me fizeram corar de vergonha e pensar se algo no meu comportamento lhe teria dado motivo para pensar que sentiria por si mais que o respeito naturalmente devido a um professor. Gostava das suas aulas, ouvia-as atentamente e na última, até me despedi de si com um simpático: adeus professor, foi um prazer conhecê-lo. Mas como se atreveu a enviar-me aquele e.mail? E dizer-me aquelas coisas? Estaria por acaso convencido que lhe iria cair nos braços desvanecida pelo tom elogioso e quase baboso das suas palavras? Acha mesmo que basta coragem e palavras para seduzir uma mulher? Leu isso nalgum livro barato de auto-ajuda comportamental? Já reparou que tem idade para ser meu pai e quase meu avô? Não percebe que eu quero um homem novinho em folha e por estrear com zero quilómetros e sem “pneus”? As hormonas não são cegas e na minha idade só a juventude conta. E como sei que gosta de metáforas digo-lhe que para mim a vida é como uma maratona que pretendo correr com alguém que esteja ao meu lado na linha de partida e não com quem está quase a chegar à meta. Não se ofenda, mas só a ideia de me poder abraçar e beijar me repugna, seria quase como se fosse agarrada ou seduzida por um dos meus tios ou pelo meu pai! Por outro lado, sinceramente, acha mesmo que me iria impressionar com os seus patéticos arroubos sentimentais de velho carente? Ou que estaria interessada nas suas cenas com outras alunas ou que 118 me comoveria com a enternecedora referência às suas filhas? A beleza é uma força que possuo. Sei-o há muito e o senhor não foi a primeira nem será o último homem a senti-la. Aliás, a primeira vítima sou eu própria mas aprendi a defender-me. Sabe, por acaso, o que é ser incomodada, desde os meus doze anos, por homens que no comboio ou na rua, se colam a mim e me tentam apalpar ou me sussurram com palavras de mau hálito: Oh murcona, deixa-me ir-te ao sufixo! Não o comparo, claro, com esses idiotas mas não consigo deixar de me interrogar sobre o que terá passado pela sua cabeça para se me declarar? E se eu tivesse reencaminhado o seu e.mail pelos meus colegas ou pelos outros professores? E se me tivesse queixado de assédio à Direcção da escola? Mas pode estar tranquilo que não o fiz nem farei. Serei apenas eu, a única espectadora da comédia desta sua presunçosa e estúpida vaidade. De facto, a vida não tem cura. 119 EM SILÊNCIO E POESIA (A vanishing act de Lou Reed) Toda a minha escrita é um pedido de amor Estou na praia. Só. Tão só e em silêncio que até me ouço a pensar. Há já alguns anos que deixei de estar acompanhado nestas dunas onde o mar vem morrer devagarinho. Atrás de mim as falésias de argila exibem o seu recorte picotado na contraluz azul do céu. Alguns desses recortes, mais parecem sentinelas imóveis e atentas ao que se passa cá em baixo do que aquilo que na verdade são, meras excrescências de areia solidificada. Antes, com B. sentia-me o homem mais invejado do mundo, porque quem olhasse para nós pensaria: que sorte aquele gajo tem por estar com aquele pedaço de mulher… Hoje quem olhar para mim muito provavelmente pensará: mais um velho solitário que é gay ou vem ver mulheres sós e nuas e tentar a sua sorte. Nos momentos em que me sinto mais necessitado e desamparado, entro no mar e faço amor com as ondas. No seu ritmo lento, num vai e vem molhado, trocamos os nossos corpos e fluidos de vida entre espasmos de espuma. Quando estou só, na praia, não consigo deixar de me sentir, como escreveu Pessoa, uma “criança triste em que a vida bateu e a quem puseram num canto de onde se ouve brincar”. Talvez seja um reflexo Kármico. Tantas vezes me vangloriei que a solidão não me incomodava e até a desfrutava com prazer (parafraseando W. Allen, chegava a brincar dizendo que quando estava só, estava acompanhado pela pessoa que mais amava no mundo) que alguém me terá feito a vontade, e cá estou eu, só. (“cuidado com os desejos que expressamos, porque um dia, podem realizar-se”). À minha volta, casais e grupos de homens e mulheres, riem, trocam carícias, banham-se e aquecem-se juntos ao sol. E eu fico a vê-los viver. Leio, olho o mar e todos os dias penso nas últimas mulheres da minha vida, em B. e em X., e chego à conclusão que o sonho é a única realidade que me vale a pena viver. Por isso, sonho com elas sem a falsidade das percepções que não passam de meras somas dos nossos mal entendidos. Com elas sentia-me um jovem, todo iluminado por dentro, com a vida a revelar-se-me a todos os instantes numa perspectiva atemporal e quase irreal. 120 Com elas sentia a alquimia da vida, ou seja, a matéria bruta da minha natureza de chumbo transmutar-se em ouro num trabalho de laboratório no interior de mim. (“Cavalga a Ave da Vida, se queres saber. Abandona a tua vida, se queres viver. A não ser que ouças, não poderás ver. A não ser que vejas, não poderás ouvir”.) Não. Não quero ficar preso a momentos cujo tempo já passou mas por mais anos que viva nunca me esquecerei dos seus olhos e dos seus sorrisos, maravilhosos e singularmente divinos. À primeira vista os olhos delas pareciam castanhos, mas se o sol lhes dava ficavam da cor do mar num dia de tempestade e na cama, à luz das velas, ficavam mais negros que noites sem luar e, se excitadas, os seus olhos brilhavam mais que o mar sob um sol de fim de tarde. Os sorrisos, eram tantos e tão diversificados, que nem um catálogo de mil páginas os poderia conter a todos. Tinham o sorriso estremunhado da manhã quando acordavam ao meu lado e me diziam: bom dia!.e a manhã nascia dentro de mim. O sorriso de tímido prazer que faziam quando lhes dizia que as amava, e o sorriso das gargalhadas que soltavam quando riamos das nossas brincadeiras e das minhas parvoíces. Por incrível que possa parecer o sentimento que ainda hoje sinto por elas é amor, sem paixão é certo, mas amor sem qualquer dúvida. Agora, prosseguimos as nossas vidas, cada um por seu lado, em silêncio estendemos as mãos e não agarramos mais que o vazio daquilo que a vida nos foi tirando. (Queridas, o que pretendem fazer com o resto das vossas vidas?) Por mim, vivo a minha vida como um espectador de mim próprio e sinto a vossa falta nesta minha era de viuvez tentando conter, ao longo das madrugadas, os impulsos hidráulicos da minha anatomia. Ainda ontem á noite, vi numa série americana da RTP2, curiosamente chamada Erva, uma cena onde uma jovem viúva, visualizava um vídeo em que ela e o marido faziam amor de forma apaixonada e plena de prazer. Aquela personagem olhava as imagens, sem compreender porque razão, pertenciam ao seu passado e não ao seu presente. A sua expressão incrédula, de espanto triste, e as lágrimas que os seus olhos soltavam são também as minhas, chorando como se não tivéssemos ainda compreendido bem o que nos aconteceu. Sim, é verdade, um homem também chora. 121 Sinto-me cada vez mais um monge de espírito. Pratico o meu Yoga e o meu Zazen, a meditação na posição sentada, sem objectivos e em silêncio (shinkantaza). O Zen, é isso mesmo, silêncio e poesia Vivo no presente considerando-o como a parcela mais ínfima de tempo na intersecção entre o passado e o futuro. (O passado, o presente e o futuro existem em simultâneo no espaço e no tempo, a nossa posição como observadores é que muda e torna tudo diferente. Não há um tempo universal, nem um presente universal. O tempo passa a velocidades diferentes conforme a velocidade do movimento do espaço. Existe tanto espaço num cm2 como no Universo inteiro. Existe tanto tempo num segundo como em toda a eternidade). Sinto que viver no aqui e agora me tornou independente porque a minha vida deixou de ser marcada pelo ritmo da vida dos outros ou pelas suas opiniões. Também eliminei o sofrimento da minha vida (sei que é ousado afirmar isto mas é o que sinto) mas não as emoções que cultivo como flores (há uma razão para as flores serem bonitas) e tento harmonizar as minhas contradições e seguir o caminho universal do Zen que não é uma filosofia do pensamento mas uma filosofia da vida. Tento não desejar adquirir mais que o que já tenho (mushotoku) e não viver através dos meus pensamentos. Sei que a verdade reside na simplicidade. Se conseguir manter as minhas mãos sempre abertas, toda a areia da vida poderá passar através delas, ao passo que se as fechar com nada mais ficarei do que alguns grãos. Só com as mãos abertas se poderão agarrar todas as coisas. (“O dedo que mostra a lua não é a lua. Quando olhamos não vemos. Quando ouvimos não escutamos”.) Mas por mais que faça, e este é um dos meus dramas pessoais, não consigo deixar de ser romântico. E como romântico estou sempre à procura de encontrar a mulher dos meus sonhos. Um dia talvez a encontre. Mas essa mulher não estará necessariamente à minha espera nem disponível e, se calhar, nem sequer dará mim. Recomeço então nova procura ou nova espera e, sendo ingénuo, passe a redundância, ainda continuo a sonhar com essa mulher. Frente ao mar, na solidão do meu quarto ou, simplesmente, com os olhos no céu imagino como seriam as circunstâncias do nosso encontro, que palavras trocaríamos, o mistério do primeiro beijo, a magia da entrega recíproca. Mas a minha pior ingenuidade é pensar que a mulher dos meus sonhos também será romântica e que, como um espelho ou um universo paralelo, estará igualmente a sentir, a pensar e a agir como eu e por minha causa… 122 UM PAGÃO DA DECADÊNCIA (the story cantada por Brandi Carlile) Nos últimos tempos, olhando para dentro de mim com a máxima atenção, comecei a sentir-me, na curiosa acepção do Pessoa e do Almada, um tanto ou quanto sensacionista. Como eles também comecei a sentir mais e a pensar menos, a compreender mais e a ter menos ideias. Porque só sentir é compreender e quase sempre erramos quando pensamos. A sensação é tudo e o pensamento uma doença. Na verdade, os pensamentos envenenam a vida e matam o futuro. Eu nunca pensei muito no futuro. Dantes porque tinha ainda tudo para viver. Agora porque já vivi tudo. Há muito que me limito a viver o instante porque só quem vive o instante está tranquilo. Deve ser da idade. No seu último livro, Venenos de Deus e Remédios do Diabo, Mia Couto coloca na boca de um dos seus personagens, uma reflexão que só a idade podia produzir: “Aos 10 anos todos nos dizem que somos espertos, mas que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com ideias. Aos 30 anos pensamos que ninguém mais tem ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente sabedoria para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos ideias mas esquecemos do que já estávamos a pensar. Aos 70 só de pensar já nos faz dormir. Aos 80 só pensamos quando dormimos.” Por mim, há muitos anos que paciente mas sistematicamente tenho vindo a desconstruir o meu ego, desmaterializando a minha vida e desapegando-me dos desejos. Há uns tempos atrás recebi um e. mail com um alegado texto de Woody Allen que não conhecia, mas que sintetiza com humor e genialidade, aquilo que poderia ser o desejo secreto daqueles que como eu já viveram tudo mas gostariam de recomeçar de novo, embora de forma diferente: “A minha próxima vida quero vivê-la de trás para a frente. Começar morto para despachar logo o assunto. Depois acordar num lar de idosos e sentir-me melhor a cada dia que passar. Ser expulso do lar por estar demasiado saudável, ir receber a pensão e começar a trabalhar, recebendo logo um relógio de ouro no primeiro dia. 123 Trabalhar 40 anos até ser suficientemente novo para gozar a reforma. Divertir-me, embebedar-me, ser de uma forma geral promíscuo e depois entrar no liceu. Em seguida, fazer a primária, ficar criança e brincar. Não ter responsabilidades e ficar um bébé até nascer. Por fim, passar 9 meses a flutuar num spa de luxo com aquecimento central, serviço de quartos à descrição e um quarto maior de dia para dia. E depois Voila! Acabar com um orgasmo! “ Também eu voltei a ser bebé dando por mim a acariciarme sem pudor. A idade faz-nos descansar das mulheres e os orgasmos tornam-se uma agridoce recordação. Todas as noites ao deitar-me sou sistematicamente invadido por um pensamento recorrente: Mais uma! Mais uma noite sozinho. E farto-me de rir… para não chorar. Agora quando escrevo, procuro-me por toda a parte e visito-me solenemente para me salvar de mim. Eu aceito envelhecer mas recuso-me a ficar velho. Daí não procurar mas também não desisti de encontrar (os homens estão sempre à procura de uma mulher e as mulheres estão sempre a fugir de um homem). Se ao menos o coração dos velhos fosse de pedra! . 124 Um lugar carregado de cactos (Happy dreamer de Laidback) Nunca desejei ser o melhor em nada mas sempre quis ser bom em tudo Que mais dizer de mim? Que sou um sonhador à procura de uma mulher que não existe? Que sei amar, tenho prazer em viver e gosto de quem sou? Que faço Yoga e treino Aikido? Que já venci um cancro? Que sou um leitor ávido e compulsivo? Que me emociono, a ponto de lágrima, quando ouço certas óperas? Que sou um ser livre, independente e autónomo? (ainda bem que já não sou novo e nunca fui católico senão faria quase o pleno das universidades portuguesas) Que não tenho ídolos nem sigo modas? Que adoro dar aulas e conhecer todos os anos novos alunos? Que nasci no Alentejo, vivo em Lisboa, sou europeu, mas que me sinto um cidadão sem mundo? Que tenho o culto da verdade e abomino a mentira? Que se fosse música seria o andante do Concerto nº 2 para piano e orquestra de Shostakovich ou o andante do concerto para piano e orquestra número 21 de Mozart? Que não pretendendo ser melhor, sou de facto muito diferente dos outros homens (talvez por ter uma sensibilidade quase feminina)? Que não sinto a solidão porque tendo uma vida interior nunca me sinto só? Que sou um anarquista platónico e um optimista trágico? Que acabei de fazer cinquenta anos que não aparento (é o que me dizem!) nem sinto? Na verdade, por dentro não daria mim próprio mais de trinta. Sinto-me com aquela mistura certa e ideal, de juventude e maturidade, que só a patine do tempo pode dar. Porque os cinquenta anos, sendo sempre o princípio e o fim de alguma coisa, são uma nova medida do tempo. Nesta idade uma pessoa começa a tornar-se independente dos filhos e a deixar de lhes telefonar, a pensar que já sabe tudo e que não precisa de conselhos. Sinto que só tenho cinquenta anos e todos os sonhos intactos. Mas, seja qual for a nossa idade de bilhete de identidade, a nossa visão ou percepção da realidade, é como um mapa que temos de fazer e refazer permanentemente. 125 Há uns tempos atrás, um ex-aluno que ficou meu amigo, falava-me ao telefone sobre a namorada e eu, meio a sério meio a brincar, perguntei-lhe se a namorada não tinha amigas. Claro que tem amigas, respondeu-me ele, mas todas têm metade da tua idade. E o peso desta realidade esmagou-me, deixando-me sem palavras. Por isso, estou convencido que a essência do equilíbrio é saber prescindir ou renunciar, no momento certo à infância, à juventude, aos filhos, ao sexo e, por fim, à vida. Neste momento falta-me a última destas renúncias. Mas mesmo neste particular, sinto-me livre do medo da morte porque para mim a realidade é simples, com a morte voltamos ao que éramos antes de nascermos. Se, é verdade que se envelhece quando tomamos consciência que tudo se repete inexoravelmente, também é verdade que só morremos quando deixamos de saber porque acordamos. E eu, continuando a saber porque acordo e não receando a morte, não tenho medo de nada. (“Os medos, mesmo os pequenos, projectam sempre grandes sombras na nossa vida”.) Há uns anos atrás decidi fazer um exame à próstata pois desconfiava que algo não estava bem embora desconhecesse o que seria. Desse exame resultou um diagnóstico fatídico: cancro na bexiga. Quando o médico me leu esta sentença e me disse que teria de ser imediatamente operado, juro que a importância que lhe dei foi semelhante à que daria se ele me tivesse dito: tens um dente estragado e tens que o extrair. Saí do consultório, fumei a minha última cigarrilha no passeio e fiz-me de novo à vida. Uma semana depois fui operado e até hoje nunca mais tive qualquer problema. Não tive um único pensamento negro, ou seja, nem uma única vez pensei na morte ou nas suas consequências. Eu sabia que não ia morrer. Aliás, sei que quando esse momento chegar, haverá sinais que permitirão preparar-me para a sensação fantástica que deverá ser sentir a transição do último momento de vida para o primeiro momento da morte (“sabemos bem que um dia todos perderemos esta guerra mas o importante são as batalhas que vamos conseguindo ganhar”). Um dia, alguém irá dizer: O Z. morreu! E será naturalmente verdade. Uns dirão: Ainda tão novo… Outros pensarão: Já tinha uma certa idade… e ninguém é eterno. Alguns dirão coisas bonitas sobre mim daquelas que só se dizem quando morremos e já não podemos ouvir. Muitos sentirão no seu mais profundo íntimo a sorte de ter sido a minha vez e não a deles. 126 Depois, uns homens desajeitados vestindo fatos negros irão expor-me num caixão, com um lenço rendado cobrindo-me o rosto, já um pouco desfigurado, pela rigidez borbulhante da morte. Virão depois muitas pessoas com um ar mais ou menos pesaroso e sentido, perturbadas na tranquila rotina do seu dia-a-dia, dizer uma coisas simpáticas sobre mim às minhas filhas lamentando a minha inesperada morte. Era um homem bom, é a única coisa que espero que digam Cá por mim, já o disse, há muito que me libertei do medo da morte. Quero ser cremado e espalhado em cinzas num dia de vento pela areia e pelas ondas da praia do Rio da Prata, enquanto alguém for lendo em voz alta alguns dos meus poemas. Ficarei assim a fazer parte integrante do local da Terra com que me sinto mais identificado, solitário e perfeitamente discreto na paisagem, como sempre vivi. Ora, sendo a vida (“essa centelha de luz entre duas trevas”) uma espécie de montanha que todos subimos e descemos, na minha idade, sei que estou ainda no cimo mas sinto ter já iniciado a descida. Aliás, este sentimento reflecte-se no poema que escrevi por ocasião do meu primeiro meioséculo de vida: Abril, dezasseis, de dois mil e sete. Hoje, um milhão de milhões de galáxias, estão suspensas no universo. O sol brilha no céu há cinco mil milhões de anos e na terra a vida surgiu mil milhões de anos antes deste dia. O primeiro homem teria hoje mais de cem mil anos, Jesus Cristo dois mil e Portugal apenas mil E eu, que respiro, faz hoje apenas cinquenta anos, Sinto-me “um lugar carregado de cactos junto à água, um lugar que transborda”. Um lugar sem mundo definitivo Um espaço vazio de apátrida religioso Não crio expectativas e nada desejo e há muito sei que tudo é breve e relativo. Sei que todos estamos sós e no mais fundo de nós aguardamos um milagre que mude as nossas vidas. Somos os espectadores menos lúcidos de nós mesmos Só com perguntas e sem respostas 127 Sei que as coisas mais simples são as mais difíceis de conseguir que a vida é uma dádiva para ser vivida dia a dia que o amor é a maior mentira da vida e que a morte se move ágil e em profundidade E sei ainda como estamos perto de perder tudo a todo o instante: a vida, o luxo de acreditar ou a beleza, essa puta frágil. Escrevo hoje para cortar em paz as minhas veias com palavras fazer sangue até à extremidade dos dedos usando a linguagem da minha pele a tremer de desejo num rio de tempo a correr pela minha margem póstuma mas não é ainda tarde para saber que as diferenças entre a vida e a poesia são simples erros de forma. Aliás, como escreveu Pessoa, a vida pode ser comparada a um bordado. De início, vemo-la pelo lado do direito e no final pelo avesso que não sendo tão bonito é mais esclarecedor, pois deixa ver como são dados os pontos. (“Há metáforas que são mais reais que muita gente que anda na rua”.) Tenho os meus pais vivos, as minhas filhas adoram-me, os meus amigos admiram-me, os meus colegas respeitam-me, sinto-me, tanto quanto é possível sentir, realizado profissionalmente e, não sendo rico, vivo bem. Sou um homem tranquilo e feliz, sem que tal signifique uma vida isenta de problemas ou um quotidiano sem espinhos. Embora a idade não faça sábios mas velhos, tenho hoje a pretensão de pensar que adquiri um pouco de sabedoria, se considerarmos que a sabedoria é uma maneira de ser e de estar, temperada por uma humildade alegre e um êxtase calmo. Também tenho, naturalmente, os meus problemas, embora prefira pensar que não existem problemas mas apenas soluções. Para mal dos meus pecados tenho também que suportar muitos seres pequeninos, intoxicantes e patéticos. (“Onde acaba a solidão começa a praça pública, e onde começa a praça pública, começa o vozear dos grandes comediantes e o zumbido das moscas venenosas”) Mesmo assim que mais posso desejar? Como Neruda também poderia dizer: confesso que vivi. Conheci o amor-familia, o amor-paixão e o amor-sexo. Qualquer deles foi temporário. Mas o amor não é sempre a prazo? Sinto hoje (e ainda?) a falta de outra espécie de amor: O amor-harmonia. Seja o que for que isto signifique. 128 É uma vulgaridade o que vou dizer mas, digo-o na mesma, sinto-me incompleto. Falta-me uma parte qualquer de mim. E não me refiro à mítica alma gémea que é assim como que uma espécie de Unicórnio, um animal lindo mas que não existe para além dos nossos sonhos e imaginação. O que realmente importa é o nosso desenvolvimento espiritual que é e será sempre um processo individual que não depende de ninguém mais. Mas, talvez me falte mesmo uma mulher como a que descrevi neste poema: És selvagem e inocente como uma criança Passas como o vento foges como as nuvens Os rios gostariam de ser como tu libertos das suas margens Dentro de ti há um deus que ri e se passeia todo iluminado por dentro És frágil e humilde como uma flor exposta ao risco da beleza Simples e única como uma gota perdida num oceano de paz És mulher e és homem tal como eu a querer ser capaz De aprender a eterna geometria do amor És minha oração e minha prece minha Avé Maria Cheia de graça e única entre as mulheres És misteriosa e inacessível como um universo longínquo Esperarei sempre por ti, procurar-te-ei infinitamente Por outras palavras, (“sou razoável, quero o impossível”) procuro e desejo uma mulher que possua apenas estas dez características: 1) Goste de ouvir música clássica e ópera 2) Adore ler e escrever, de preferência, poesia 3) Aprecie a solidão a dois 4) Seja simples, sensível, sensual e simpática 5) Possua um sorriso bonito 6) Seja morena com um corpo atlético 7) Não seja muito alta, nem muito magra nem muito gorda 8) Saiba apreciar boa comida e bons vinhos 9) Goste de caminhar 10) Ame o sol, a areia e o mar Ou seja, o que eu queria mesmo era um Z. de saias! Mas, às mulheres, adapta-se na perfeição o Princípio da Incerteza da Física Quântica, ou seja, podemos saber com rigor o que uma mulher faz e o que uma mulher pensa mas nunca as duas coisas ao mesmo tempo. 129 Daí não ser possível prever as suas acções, daí a incerteza e imprevisibilidade do comportamento feminino. Talvez por isto, há uns tempos atrás, listei o que designei pelas 10 Razões para Não Amar Ninguém: 1- Não sofrer 2- Ser Livre 3- Poupar dinheiro 4- Ter paz 5- Dormir mais 6- Não mentir 7- Tomar decisões 8- Estar tranquilo 9- Não ser enganado 10- (a que vocês quiserem) Agora a sério, voltando ao princípio. O que me falta? Falta-me o AMOR (“I’m a dreamer, I believe in love”) porque um homem sem amor envelhece rapidamente. O AMOR na forma em que eu o entendo, de total, absoluta e recíproca partilha e entrega. Será que nunca o encontrarei? (“a esperança é a maior das torturas”). Não me resigno nem desisto de o viver a dois, mas também não procuro para o poder encontrar. O segredo da felicidade está em saber aceitar e agradecer o que a vida nos dá, seja muito, seja pouco, seja bom, seja mau, seja o que for… (“se não podemos ter o que amamos, temos que saber amar o que temos”.) Se pensarmos bem, a principal função do amor é fazer sonhar, porque o amor é um sentimento visionário, uma ilusão a querer ser realidade. O amor é uma forma de mentira escondida atrás da verdade e, por vezes, o gosto de mentir com a verdade. E a verdade, só se pode alcançar através da compreensão dos opostos. Por isso, de todos os afectos individuais, o amor é o mais vaidoso e, o amor correspondido é a suprema manifestação de uma contradição nos seus próprios termos. Tudo bem. O amor eterno e recíproco pode ser um mito (“o nada que é tudo”) mas será um mito pelo qual estarei sempre disposto a lutar (“por mais longa que seja a noite o dia acaba sempre por nascer”). Ouço agora, nem de propósito, em jeito de lamento final, a voz de Margaret Price, na canção de Amor e Morte da última cena de Tristão e Isolda, a perfumar o fim de tarde. 130 José da Graça Andrade nasceu num país europeu donde nunca saiu e jamais voltou. Tem vivido longos períodos no estrangeiro, sem profissão certa nem ocupação regular, limitando-se a viver a vida, sempre ao ritmo de um dia de cada vez. Como pessoa é desprendido de tudo excepto dos seus sonhos, não possuindo quase nada, nem sequer idade. É autor de uma vasta obra nunca publicada que abrange todos os formatos e géneros literários, desde listas de compras até textos científicos sobre a influência dos dezassete diferentes tamanhos do gene receptor da vasopressina na fidelidade masculina. Actualmente vive só, perto do mar, onde lê, escreve, ouve música e não faz mais nada. 131 È a idolatria que faz os deuses Todas as religiões se baseiam em rumores de rumores de rumores Nós não paramos de brincar porque envelhecemos mas envelhecemos porque paramos de brincar – Bernard Shaw Sabemos cada vez menos de mais coisas Morrerei, sem dúvida, do coração por ter amado demais Os velhos não precisam de amor precisam é de cuidados Uma vida sem sexo é para mim um território estrangeiro Estou cada vez mais selectivo e menos apetecível E como elas é que escolhem estou fodido A religião é mais um placebo que uma droga do povo O fundamentalismo religioso é uma forma de racismo ou de distúrbio mental A minha vida está saborosa como uma fatia de pata negra combinando o trabalho e o lazer Apóstata do amor Todas as noites ao me deitar sou sempre trespassado pelo mesmo pensamento: Mais uma! Mais uma noite sem ninguém. A aparência é a única coisa que não engana Uma maratona de solidão Sinto-me a ser gasto pelo tempo ou a ser ultrapassado pelo tempo As mulheres sabem sempre quando um homem está interessado nelas 132 O amor é uma fixação Silêncio carregado de significado A vida é drama, acção e paixão Ah quem me dera a juventude! Ah quem me dera a imortalidade (J.M. Coetzee) A vida está cheia de aparições e desaparições Não me limitei a deslizar pela vida acho que deixei algumas marcas Com a idade o nosso universo interior contrai-se depois de se expandir Um estúpido carneiro solitário, um solitário como um macho nobre Obrigação Confuciana de fazer o bem As sociedades são conduzidas por agitadores de sentimentos e não por agitadores de ideias 133 Chamo-me Raul e embora ainda não tenha sido referido por Z., serei hoje, porventura, o seu amigo mais íntimo. 134