A VOZ DOS CATADORES DE LIXO EM SUA LUTA

Transcrição

A VOZ DOS CATADORES DE LIXO EM SUA LUTA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
RÚBIA CRISTINA MARTINS GONÇALVES
A VOZ DOS CATADORES DE LIXO EM SUA LUTA
PELA SOBREVIVÊNCIA
FORTALEZA – CEARÁ
2005
2
Universidade Estadual do Ceará
Rúbia Cristina Martins Gonçalves
A VOZ DOS CATADORES DE LIXO EM SUA LUTA
PELA SOBREVIVÊNCIA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em
Políticas Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do
Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre
em Políticas Públicas.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Barbosa Dias
FORTALEZA – CEARÁ
2005
3
Universidade Estadual do Ceará
Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade
Título do trabalho: A voz dos catadores de lixo em sua luta pela sobrevivência.
Autora: Rúbia Cristina Martins Gonçalves
Defesa em: 13/10/2005
Conceito obtido: Satisfatório
Banca Examinadora
____________________________
Maria Barbosa Dias, Profa. Dra.
Orientadora
______________________________________
Gisafran Nazareno Mota Jucá, Prof. Dr.
_______________________________________
Lídia Valesca B. Pimentel Rodrigues Profa. Dra.
4
DEDICATÓRIA
Aos catadores da Acores e do Parque Santa Rosa,
razão de ser deste trabalho,
pela inestimável colaboração
e grande lição de vida.
A Maria Esther Barbosa Dias,
amiga, grande colaboradora,
pela abertura e rigor na orientação
e constante estímulo.
5
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi concretizado graças à colaboração direta e indireta de um grande
número de pessoas. Um número considerável para ser mencionado nominalmente. A
todos, meus mais sinceros agradecimentos.
Aos meus pais Irani e Rita e às minhas irmãs Andréa, Iraniza e Kísia pela alegria do
convívio familiar, além da força e compreensão, mesmo estando distantes.
A minha sobrinha Talita cujo nascimento renovou minhas esperanças e fortaleceu meu
desejo de colaborar na construção um mundo diferente: justo, democrático e eqüitativo.
Ao meu amado Marcel, companheiro de todas as horas, pelo amor, carinho e atenção,
mas também por suas críticas. Além do estímulo constante e o esmero exercício de
revisão do texto. E a sua filha Mariana pela amizade.
Aos meus sogros José Lemos e Vilma Alves pelo apoio constante.
As amigas de profissão Rejane, Rosiane, Gilda e Nicole pelo exercício constante da
solidariedade uma com as outras e pelo espaço de florescimento da amizade num
ambiente profissional.
Aos professores Gisafran Jucá, Renato Pequeno e Lídia Valesca pelas valiosas
sugestões.
Aos colegas dos dois grupos de pesquisas, Políticas Públicas e Exclusão Social e
Oralidade, Cultura e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará, pelas discussões
teórico-medológicas e colaboração na execução desta pesquisa.
Aos professores e professoras do Curso de Serviço Social da UECE e do MAPPS por
contribuírem com seu conhecimento para minha construção pessoal e profissional.
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RESUMO
O lixo, nomeado tecnicamente de resíduo sólido, destaca-se no cenário nacional e local
como um campo de trabalho e sobrevivência das camadas mais pobres, mas também
de acréscimo dos lucros e redução dos gastos dos empresários. Através da
metodologia da história oral os catadores de materiais recicláveis, mais conhecidos por
catadores de lixo, narram suas trajetórias de vida. As entrevistas dos nove catadores de
lixo foram transcritas na íntegra. Nos relatos cedidos encontram-se registradas a vida
pessoal; a atividade de catação e a organização dos catadores. Embora imersos num
processo de exclusão, os catadores ao recriarem suas histórias e ao participarem
ativamente do processo de reprodução do capital, por meio da reciclagem, inserem-se
economicamente no mercado capitalista. Apesar das péssimas condições de trabalho,
o catador vem garantido sua sobrevivência material e sua auto-estima. A análise dos
dados qualitativos da pesquisa a partir das categorias estudadas (lixo, exclusão social e
participação) sinaliza que uma participação autêntica em grupos organizados, acrescida
de uma intervenção do poder público é imprescindível para a superação da condição de
exclusão.
7
ABSTRACT
Technically appointed as solid residue, garbage introduces itself as a way of working
and survival for the poorest society stratum, locally or nationally speaking. Moreover,
working on garbage results in profits rising and in expenses reductions for the
businessmen. Making use of Oral History methodology, the recycled material collectors
tell us about their trajectory in life. All the nine interviews were completely transcribed.
Their narrative speaks of their lives, activities and organization as recycled material
collectors. Despite of immersed in an exclusion process, those collectors insert
themselves in the capitalist market by participating actively in the capital reproduction
mechanism and by reinventing their own personal history. Notwithstanding the very bad
working conditions, those collectors guarantee their survival and their self-respect. By
studying three categories (garbage, social exclusion and participation), this research
indicates that real participation in organized groups (united to a public power
intervention) is indispensable to overcome the social standing exclusion.
8
SUMÁRIO
Lista de abreviaturas........................................................................................ 09
Lista de tabelas, figura e quadros.................................................................... 10
Introdução........................................................................................................ 12
1. No lixo a luta pela sobrevivência.................................................................. 34
1.1. Falando sobre o lixo.......................................................................... 34
1.2. O caminho percorrido por alguns excluídos: o lixo........................... 43
1.3. A construção da participação............................................................ 52
2. Os catadores e suas trajetórias.................................................................... 62
2.1. Fórum Lixo & Cidadania: expressão dos catadores.......................... 63
2.2. Conhecendo os grupos de catadores............................................... 67
2.2.1. Parque Santa Rosa................................................................ 68
2.2.2. ACORES................................................................................ 70
2.3. A fala dos catadores de lixo.............................................................. 73
3. Vidas e lixo: uma reflexão...........................................................................
91
3.1. Como o lixo é tratado?...................................................................... 92
3.2. Laboratório da participação: outras experiências.............................. 100
3.3. Relatos orais sobre a vida e a participação dos catadores............... 105
4. Considerações finais.................................................................................... 117
Bibliografia........................................................................................................ 124
Anexos............................................................................................................
128
9
Lista de abreviaturas
ABHO – Associação Brasileira de História Oral.
ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas.
ACORES – Associação Ecológica dos Coletores de Materiais Recicláveis da
Serrinha e Adjacências.
ASMARE
–
Associação
dos
Catadores
de
Papel,
Papelão
e
Material
Reaproveitável.
ASMOC – Aterro Sanitário Metropolitano Oeste de Caucaia.
ASMOCI – Associação dos Moradores do Conjunto Industrial de Maracanau.
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
CEMPRE – Compromisso Empresarial para a Reciclagem.
CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente.
COOMVIDA – Cooperativa de Produção dos Catadores do Conjunto Vida Nova.
COOPAMARE – Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Papelão, Aparas
e Material Reaproveitável.
COOPERAV – Cooperativa de Agentes ambientais Rosa Virgínia.
COOPREMACE – Cooperativa Pré-beneficiamento de Materiais Recicláveis do
Ceará.
COOSELC – Cooperativa dos Trabalhadores Autônomos da Seleção e Coleta de
Material Reciclável Ltda.
CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil.
DTU – Departamento Técnico de Urbanização.
EMLURB – Empresa Municipal de Limpeza e Urbanismo.
FEL&C – Fórum Estadual Lixo e Cidadania.
FL&C – Fórum Lixo e Cidadania
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano.
NBR – Norma Brasileira Registrada.
SER – Secretaria Executiva Regional.
SOCRELP – Sociedade Comunitária de Reciclagem de Lixo do Pirambu.
10
Lista de tabelas, figuras e quadros
Tabela 1 – Código de cores para diferentes tipos de resíduos.......................................39
Tabela 2 – Disposição final de lixo nos municípios brasileiros 1991 e 2000...................40
Tabela 3 – Índice de exclusão social de alguns municípios do Brasil, 2000...................45
Tabela 4 – Porcentagem da renda apropriada por extratos da população 1991
e 2000.............................................................................................................47
Quadro1 – Da não-participação à participação autêntica:uma escala de avaliação.......53
11
Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos...
Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...
O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...
Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...
(Quintana, 1997, p.04).
12
INTRODUÇÃO
No percurso da pesquisa com os catadores de lixo da cidade de Fortaleza busquei aliar
os sentimentos às analises teóricas. Confesso que a travessia foi difícil, mas ao mesmo
tempo prazerosa. A alternância de alegria contagiante e profunda tristeza perpassaram
meus sentimentos. Alegria pela esperança e disposição à luta e ao trabalho dos
catadores, como também pela presença de pessoas comprometidas com a causa dos
catadores.
Tristeza e indignação pela situação de extrema pobreza vivida pelos
moradores das periferias.
No cenário atual, o lixo ganha força como campo de trabalho. A presente pesquisa tem
como sujeito de investigação os trabalhadores do lixo, também conhecidos como
catadores de lixo, mais especificamente aqueles que participam da Associação
Ecológica dos Coletores de Materiais Recicláveis da Serrinha e Adjacência – ACORES
e da Organização dos Catadores do Parque Santa Rosa. Os dois grupos estão
localizados na cidade de Fortaleza e participam do Fórum Estadual Lixo & Cidadania.
Os catadores são personagens, como o poeta, que vagueiam nas ruas dos centros
urbanos, principalmente à noite. No entanto, mesmo não sendo tão leves os seus
passos, os moradores "oficiais" da cidade não os escutam. Caminhantes que, de tanto
cansaço e fadiga, pelo longo percurso andado e o peso levado nos carrinhos
improvisados, parecem até assombração.
As inquietações, em torno dos catadores de lixo, aguçaram-se com o visível aumento
do número dessas pessoas, transitando pela cidade, com seus carros, muitas vezes
reaproveitados, de material de sucata. A motivação foi reforçada através de visitas às
associações e cooperativas de reciclagem de lixo. E mais ainda pela participação nos
encontros do Fórum Estadual Lixo & Cidadania e da incipiente Pastoral do Povo de
Rua, ambos ligados à Igreja Católica. E, anteriormente, como membro do grupo de
pesquisa, Políticas Públicas e Exclusão social do curso de Serviço Social - UECE,
inscrito no CNPq, na linha de pesquisa “Rural e Urbano: cultura, linguagem,
13
comunicação e patrimônio”. Como participante desse grupo de pesquisa acompanhei
eventualmente os trabalhos da entidade filantrópica Casa da Sopa, grupo espírita que
realiza atividades com os moradores de rua do centro da cidade. Sobretudo, tive
acesso a uma enorme literatura sobre moradores de rua.
No período da graduação em Serviço Social, como bolsista de iniciação científica,
realizei uma pesquisa com o título “Ocupações Urbanas: alternativa de moradia”
(Gonçalves, 2001), em uma das ocupações de terra denominada Nossa Senhora da
Penha, localizada no bairro da Bela Vista. Essa experiência de diagnosticar e analisar a
pobreza urbana transformou minha vida. O processo que exigiu o “exercício de olhar”
para as condições de vida da parcela menos favorecida da cidade de Fortaleza tornoume mais sensível, humana e solidária, como também direcionou o caminho das futuras
investigações e da intervenção profissional para essa parcela dos moradores das
cidades, cidadãos que vivem excluídos dos seus direitos.
Detectei na pesquisa citada acima, no que se refere às profissões dos chefes de
família, que elas ficavam subordinadas às oportunidades de sobrevivência, ao baixo
nível de escolaridade e à ausência de qualificação para o trabalho. Desta forma, o
trabalhador ausenta-se do mundo do trabalho oficial, ou melhor, ele é excluído,
reproduzindo assim o ciclo da pobreza.
Nos becos da ocupação, em frente de algumas casas, já visualizava carrinhos
confeccionados com material de geladeira. Naquele momento, não percebi a catação
como um trabalho com possibilidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Primeiro, porque as pessoas faziam de suas casas um depósito, aumentando a
insalubridade do ambiente. O espaço ínfimo da casa, construído em lotes que
possuíam em média entre 27 e 36m2, não era adequado nem para a convivência de
uma família nem muito menos ao acondicionamento do lixo coletado no espaço
doméstico. Segundo, pela falta de higiene das pessoas no manuseio do lixo com seu
próprio corpo e com os utensílios domésticos, acrescendo os riscos de doenças e
contaminações principalmente nas crianças. Naquele momento, algumas indagações
14
sobre lixo e sobre as pessoas que catavam o lixo aguçaram minha curiosidade.
Entretanto, na ocasião não tive a oportunidade de conhecer mais acuradamente essa
realidade. Contudo o desejo ficou incubado e só agora, na pesquisa de dissertação, tive
o ensejo de debruçar-me sobre a problemática do catador.
O projeto de pesquisa apresentado à seleção do Mestrado em Políticas Públicas e
Sociedade, intitulado Andarilhos da cidade de Fortaleza: os moradores de rua, cujo
objetivo central era pesquisar o que é próprio da vida dos moradores de rua, suas
trajetórias e analisar os elementos dos processos excludentes, foi abandonado por
questões pessoais e estruturais.
Ao iniciar a pesquisa com os moradores de rua senti muitas dificuldades, uma delas foi
minha resistência em começar efetivamente o trabalho de campo, ou seja, ir para a rua.
Outro problema foi o medo e a discordância dos meus familiares em aceitar a execução
da pesquisa devido ao aumento da violência. Na preparação do projeto de pesquisa
acompanhei o grupo da Casa da Sopa pelas ruas do centro de Fortaleza, geralmente
das 21h às 2h da madrugada, mas sempre acompanhada com outra pesquisadora. A
amplitude da temática, moradores de rua, e a dificuldade do encontro com essa
população levaram-me a mudar de problemática. Aqui, a Banca de Qualificação teve
um papel primordial na compreensão do novo tema de pesquisa: o catador de lixo.
No final do ano de 2003 comecei a participar das reuniões do FEL&C do Ceará
realizadas nas últimas quartas-feiras de cada mês no Seminário da Prainha, como
também participei das reuniões da incipiente Pastoral da Rua, realizadas no mesmo
local. Pelo fato de ter me apaixonado pela temática dos Catadores de Lixo participo até
hoje deste Fórum, inclusive como representante da instituição UECE.
A partir do Fórum descortinou-se um universo de possibilidades e de descobertas.
Conheci vários grupos de catadores como: ASMOCI, no município de Maracanau;
SOCRELP, no bairro do Pirambu; ACORES, no bairro da Serrinha; COOSELC, no
bairro Barroso; COOPERAV, no bairro Parque Santa Rosa; ASMOCI, Conjunto
15
Industrial; COOMVIDA, no Mutirão Vida Nova de Maracanau; os catadores da Praia do
Futuro, através do Projeto Hora de Reciclar; catadores da Aldeota, através do Centro
Comunitário Dom Lustosa; os catadores do Genibaú, através do Centro Comunitário
Dom Hélder Câmara; os catadores da Pajuçara, através do Movimento EMAUS; os
catadores de Caucaia, através da Prefeitura Municipal. A dificuldade era conter tantas
curiosidades e delimitar qual assunto investigar referente ao catador de lixo.
Diante da nova problemática tomei como objetivo principal compreender a dinâmica que
envolve o catador de material reciclável na cidade de Fortaleza. Conhecer o
relacionamento do catador com o poder público, com a sociedade e com os próprios
colegas de catação. Com os objetivos específicos: procurei descobrir a situação de
moradia e instrução dos catadores e como se deu sua inserção no mundo do trabalho;
comecei a investigar a participação dos catadores nas organizações; discorri sobre o
nível de satisfação desse profissional e o tratamento que lhe é dado pelos moradores
da cidade; enfim, busquei conhecer o conceito do lixo, suas implicações e tratamento.
A ocupação de catador de material reciclável, popularmente conhecida por catador de
lixo, foi incluída, no ano de 2002, na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO,
cabendo a esse profissional: catar, selecionar e vender materiais, como papel, papelão
e vidro, bem como, materiais ferrosos e não-ferrosos e outros materiais reaproveitáveis.
Entretanto, para a sociedade o lixo é considerado inútil, indesejável e desnecessário,
assim também aqueles que trabalham com o lixo são associados a sua matéria prima e
recebem, também, os seus estigmas. As denominações desses trabalhadores variam
de local para local: ”Zabbaleen” no Cairo; recicladores na Colômbia; “badameiros” em
Salvador; catadores de papel em Belo Horizonte1. Mas no Brasil tem uma maior
representatividade na figura do “velho garrafeiro”.
Em 1857, um poema chamado “O vinho dos trapeiros”, de Charles Baudelaire,
já fazia referência à atividade do catador. No Brasil, é a figura do “velho
garrafeiro”, do começo do século XX, que põe em evidencia tal atividade, que
se expande com o desenvolvimento da sociedade industrial e vai criando novos
1
Cf. www.asmare.org.br
16
personagens: o(a) catador(a) de rua, o(a) catador(a) de depósitos e aterros,
os(as) cooperados(as). (Juncá, 2001, p.62)
O catador de lixo não é um novo personagem nas ruas das cidades brasileiras, o novo,
aqui, é a elevação do número de catadores. Esses profissionais, através da catação
informal de papéis e outros materiais encontrados nas ruas ou lixões, sustentam a
indústria de reciclagem do Brasil. Eles não são mendigos, mas desempregados que
devido à crise econômica, nos últimos anos, foram expulsos do mercado oficial de
trabalho.
No trabalho de Bastos (2003, p.28) os catadores de materiais recicláveis, segmento que
sobrevive da coleta de materiais recicláveis, subdivide-se em dois grupos: os catadores
que trabalham nas ruas e os que trabalham nos lixões. O foco dessa pesquisa
encontra-se no trabalho desenvolvido por catadores que trabalham nas ruas e que
participam de alguma organização.
Os cenários da pesquisa são os espaços onde os catadores de lixo se reúnem, ou seja,
as organizações das quais fazem parte e cuja finalidade é servir de ponto de
segurança, cooperação, descanso e garantia de uma renda melhor para o catador.
Imersa na problemática do lixo, ou melhor, do catador do lixo, segui o caminho tomado
por Jules Michelet:
O escritor solitário voltou a emergir-se na multidão, escutou seus ruídos, tomou
nota de suas vozes. (...) Fui consultar os homens, escutá-los falar de sua sorte,
ouvir de seus próprios lábios o que não se encontra freqüentemente nos
escritores de maior brilho: palavras cheias de sentido comum. (Michelet apud
Gattaz, 1996, p. 237).
Como Jules Michelet pretendo emergir-me na multidão, aqui, nas organizações dos
catadores, para escutar seus lamentos, seus sonhos e tomar nota de suas vozes e
assim construir, pelo caminho da história oral, a história de grupos excluídos que, na
maioria das vezes, são abandonados a sua própria sorte.
Os pobres das cidades não encontrando espaços para se vincularem ao mundo do
trabalho oficial, inventam, criativamente, estratégias de sobrevivências, criando
17
maneiras para desenvolverem seu métier. Uma das estratégias de sobrevivência é o
trabalho de reciclagem de papel, papelão e outros materiais. E embora incomodada, a
sociedade não pode impedi-los de lutar pela sobrevivência, pelo direito à vida. Sposati
(1997, p.18) ressalta que sobreviver é direito; se o cidadão tem trabalho sobrevive,
senão morre.
Hoje, no espaço urbano, a rua tornou-se um ambiente onde se pode encontrar serviços,
principalmente pelas pessoas que não têm qualificação profissional. Inúmeras pessoas
em Fortaleza sobrevivem efetivamente da rua: camelôs, prostitutas, travestis,
mendigos, flanelinhas, vendedores ambulantes, catadores de materiais recicláveis e
outros.
A partir dos anos 90, o contingente de pessoas nas ruas, por razões sócio-econômicas,
aumentou consideravelmente. Bursztyn (2000, p.206) nomeia esse contingente de
“perambulantes”, pessoas desterradas, sem vínculos empregatícios e locais fixos. A
presença de pessoas exercendo alguma atividade nas ruas é cada vez mais visível,
seja andando como os catadores de lixo e pedintes, ou nos sinais como os flanelinhas e
os vendedores ambulantes, ou mesmo nas calçadas como os vendedores que armam
suas barracas e aqueles que vigiam os carros. Todos inseridos na paisagem urbana,
mas sem qualquer perspectiva de inserção na vida da cidade legal. Os catadores de
lixo são exemplos claros de um desses grupos de perambulantes que vivem se
deslocando nos centros urbanos, numa quantidade cada vez maior, tornando-se
imprescindível a análise desse fenômeno para a construção de efetivas e eficientes
políticas públicas.
Cavalcante (2000, p.60) descreve a rua como um local que “alimenta, dá abrigo, mas
também sacrifica e mata. Não há proteção para os ‘passageiros da agonia’”. O catador
João Batista da Silva Souza, de 27 anos, quando voltava de Fortaleza com o seu
carrinho de lixo pela BR-222, próximo ao antigo Frigorífico de Fortaleza, foi atropelado e
teve morte instantânea2. O suor e o sangue dos catadores são derramados
2
Notícia do Diário do Nordeste, 25 de outubro de 2003.
18
cotidianamente nas ruas de nossas cidades.
Pesavento (1996) produz um belo trabalho, demonstrando a rua como espaço de
transformação e teatro da vida. Essa produção apresenta a sociedade das ruas através
de fotos. Antigamente, as ruas davam um sentido à cidade. Tratava-se de uma época
em que todos se conheciam e em que os nomes eram um ponto de referência. Com o
aburguesamento da cidade e a consolidação de uma nova ordem foi imposta uma
redefinição do solo urbano e de sua ocupação pelos indivíduos, com diferentes
exigências, valores e critérios. Dentre essas transformações, a cidade empreendeu a
tarefa “de destruição dos becos e cortiços, declarando guerra às tavernas, bordéis e
casas de jogos, numa cruzada moral, sanitária e urbanística, de destruição e
reconstrução, em meio a uma especulação imobiliária que refletia a elevação do preço
do solo urbano” (p.39).
Pesavento (1996), através de fotos, mostra o contraste da rua, espaço para a burguesia
passear e desfrutar de lojas, cinemas, teatros etc. e ao mesmo tempo local de trabalho
e sobrevivência dos pobres:
A rua é também de vida, onde cangueiros, biscateiros e vendedores
ambulantes transitam diariamente, entrecruzando-se com carroceiros,
motoristas, motorneiros e free-lancers de toda ordem. Neste sentido, a rua é do
povo, onde se misturam operários, professores, caixeiros de loja, bancários,
negociantes, e [...] porque não dizer, vagabundos, desocupados e larápios.
(Pesavento, 1996, p. 64).
Nas ruas, os catadores de lixo constroem suas histórias, lutam contra a precariedade
econômica e perambulam selecionando as sobras da sociedade consumista. Eles se
juntam a outros catadores para resistir a fragilidade relacional, criando associações e
cooperativas para garantir o respeito aos seus direitos, e por que não dizer, para
garantir a vida.
Os catadores de lixo representam um segmento da população à margem da sociedade
e sobrevivem da venda do lixo, material rejeitado pela sociedade. Catar o lixo, além de
ser uma alternativa de renda para quem é desempregado e tem baixo nível de
escolaridade, também é uma prestação de serviço em benefício ao meio ambiente.
19
Diariamente, esses homens, mulheres e até crianças colaboram no processo da
limpeza urbana, interceptando materiais que seriam levados aos lixões ou aos aterros.
Vale lembrar da importância do tema lixo como meio propício para favorecer também a
reflexão sobre a relação saudável dos cidadãos com o seu ambiente.
Lixo é designado como todo material inútil, descartável que se “joga fora”, geralmente,
posto em lugar público, por isso pode-se dizer que é um material “mal-amado”,
dispensável. Todos desejam descartar-se do lixo; seu fedor e aspecto incomodam.
Desta forma, o lixo passa por um processo de exclusão. Existem pessoas que até
pagam para dele se verem livres. Na abordagem da primeira dupla de catadores em
visita de campo a Socrelp fui informada que alguns donos de boates do centro de
Fortaleza pagam, a catadores previamente escolhidos, a retirada do lixo logo na
madrugada. Devido a falta de instrumentos apropriados para o trabalho e o manuseio
com material cortante, no caso garrafas de bebidas alcoólicas, a dupla de catadores
estava com as mãos e os pés cortados.
O lixo pode ser composto por: material orgânico (sobras de comidas), o que representa
cerca de 65% a 70% do total do lixo produzido nos países chamados de Terceiro
Mundo; rejeitos (lixo de banheiro, pilhas, lâmpadas) que perfazem apenas cerca de 5%
da massa total dos resíduos, isto é, o lixo propriamente dito que não é passível de
reciclagem, reuso ou compostagem; e materiais recicláveis (plásticos, papéis, metais e
vidros),que compõem aproximadamente 25% a 30% do peso total do lixo, mas que
representa a maior parcela em volume (Abreu, 2001, p.26). Quando o lixo não é tratado
adequadamente pode ser altamente poluente e afetar diretamente a saúde pública.
A legislação brasileira estabelece que o lixo doméstico é propriedade da prefeitura,
cumprindo-lhe a missão de assegurar sua coleta e disposição final. Calderoni (2003, p.
51) entende lixo domiciliar como todo material sólido ao qual seu proprietário ou
possuidor não atribui mais valor e dele deseja descartar-se, atribuindo ao poder público
a responsabilidade pela sua disposição final. O descaso dos órgãos públicos com a
educação, saúde, moradia e outros é repetido, e em maior grau, com o lixo. Segundo
20
pesquisa da UNICEF de 2000, menos de 100 prefeituras declararam ter programas de
coleta seletiva (Abreu, 2001, p.33).
A Associação Brasileira de Normas e Técnicas – ABNT define Coleta Seletiva como a
coleta que remove os resíduos previamente separados pelo gerador, tais como, latas,
vidros e outros. Calderoni (2003) adota o termo reciclagem para designar o processo
sistemático de transformação do lixo sólido tipicamente domiciliar em novos produtos.
Através da reciclagem é possível o reprocessamento de materiais permitindo
novamente sua utilização: “... reciclar é ‘ressuscitar’ materiais, permitir que outra vez
sejam reaproveitáveis” (p. 52).
Os catadores de lixo são responsáveis por praticamente todo material reciclado nas
indústrias brasileiras, colocando o Brasil como um dos maiores países recicladores de
alumínio do mundo. Apesar de todas as dificuldades do trabalho, sem apoio do poder
público e com o preconceito da sociedade, esses trabalhadores informais,
criativamente, conseguem sobreviver e ao mesmo tempo cuidar do meio ambiente, ou
seja, da nossa "casa" comum: a terra. Diante do exposto, podemos denominar os
catadores de lixo como agentes ambientais e econômicos, ou melhor, como
trabalhadores.
Constitui objeto fundamental do trabalho de Sabetai Calderoni, Os bilhões perdidos no
lixo (2003), mostrar que a reciclagem do lixo justifica-se em termos econômicos. Os
dados quantitativos de sua pesquisa indicam a visibilidade econômica da reciclagem e
da coleta seletiva de resíduos. O autor demonstra também ser a reciclagem uma
alternativa de mudança do modelo de desenvolvimento no sentido de torná-la
compatível com os interesses da preservação ambiental, da justiça social e da
sustentabilidade econômica.
A reciclagem pode aumentar também a vida útil dos aterros que já são diminutos no
Ceará. Dos 184 municípios desse Estado, somente nove contam com a presença de
aterros sanitários: Caucaia, Aquiraz, Eusébio, Iguatu, Sobral, Quixadá, Quixeramobim,
21
Pacatuba e Jaguaruana. Nos restantes dos municípios o lixo é colocado em lixões sem
respeitar as normas ambientais e de segurança à saúde.
A ausência de uma disposição final adequada do lixo resulta numa acelerada
degradação dos recursos naturais que compromete a qualidade de vida das atuais e
futuras gerações. Cada brasileiro produz aproximadamente um quilo de lixo por dia,
sendo a maior parte de matéria orgânica3.
O catador de lixo, mesmo desvinculado do mundo contratual do trabalho e não sendo
assimilado pelo mundo oficial, encontra brechas na sociedade capitalista para
sobreviver. Em todo o país, e especificamente em Fortaleza, observamos um
reconhecimento da dimensão do trabalho de catar papel, papelão e outros materiais
recicláveis através da organização de catadores em associações e cooperativas. Um
processo no qual Regina Manoel4 denominou de desclassificação e reclassificação, ou
seja, de catador de lixo - uma situação de horror e desclassificação - esse sujeito
transformou-se em catador de material reciclável – um trabalhador -, assim portador de
direitos trabalhistas. Essa reclassificação possibilitou o aumento de sua auto-estima e o
respeito da sociedade.
O aumento dos catadores de lixo coincide com o crescimento da indústria de
reciclagem que demanda uma força desqualificada de trabalho. O catador de lixo
garante o reaproveitamento do produto reciclável, cujo aumento ocorreu devido ao
crescimento do setor de serviços e do comércio e ao uso abundante de papel com o
advento da informática. Outro motivo do aumento dos recicláveis foi a mudança de
hábito de consumo da população, avolumando produtos descartáveis. Esta forma de
configuração da cidade tornou necessária a vida na rua.
A vida na rua é uma forma aguda de desigualdade gerada na sociedade capitalista que
fundamenta, hoje, a exclusão. A exclusão social para Singer (1999) pode ser vista
3
Dado retirado do Jornal Diário do Nordeste, 14 de março de 2004.
4
Manoel apud Mota, 2003, p. 29.
22
como uma soma de várias exclusões habitualmente inter-relacionadas. Entretanto, é
sem dúvida incomum uma pessoa estar completamente excluída ou incluída no tecido
social. Por isso, a exclusão social deve ser encarada como uma questão de grau. Mas
Singer lembra que no Terceiro Mundo existe uma forma de exclusão social que é
fundamental: a exclusão econômica.
A exclusão social para Maricato (1994) envolve uma situação complexa que abrange a
informalidade, a irregularidade, a ilegalidade, a pobreza, a baixa escolaridade, o
oficioso, a raça, o sexo, a origem e, principalmente, a falta de voz. Ainda para essa
autora a exclusão social tem sua expressão mais concreta na segregação espacial ou
ambiental. Os catadores encontrados no centro ou nas zonas nobres de Fortaleza, na
sua maioria, residem nas periferias, nos bairros pobres.
Compreendemos como Castel (1997) que os excluídos são desfiliados cuja trajetória é
feita de uma série de rupturas em relação a estados ou equilíbrios anteriores mais ou
menos estáveis, ou instáveis. Os excluídos povoam a zona mais periférica,
caracterizada pela perda do trabalho e pelo isolamento social. No entanto, tanto Castel
como Maricato(1994) destacam que é impossível traçar fronteiras nítidas entre
“excluídos” e “incluídos”.
A era do neoliberalismo desenvolve um quadro de desemprego, precarização do
emprego e informalização das relações de trabalho. As cooperativas e associações
surgem como alternativas de inserção dos excluídos no mundo do trabalho, tendo em
vista a geração de trabalho e renda. Duas experiências vitoriosas de trabalho com
catadores de lixo são exemplos dessa alternativa: a Associação dos Catadores de
Papel, Papelão e Material Reaproveitável (Asmare) em Belo Horizonte e Cooperativa de
Catadores de Papelão (Coopamare) em São Paulo.
23
Nos últimos anos, a sociedade civil5 brasileira vem se organizando em associações,
cooperativas, fóruns e conselhos. As cooperativas e associações constituem exemplos
de iniciativas que propiciam a criação de trabalho e, ao mesmo tempo, o fortalecimento
de valores como autonomia, solidariedade, cooperação, auto-estima e organização dos
trabalhadores, além da geração de renda e alternativa à política neoliberal. Nesta
perspectiva, a “economia solidária” (ou “economia popular”) propõe a criação de
cooperativas como caminho possível para a garantia dos direitos daqueles que estão
excluídos do mercado formal de trabalho.
Paul Singer (2003, p.13) define economia solidária como um modo de produção
constituído por trabalhadores associados, que possuem em comum o capital que
utilizam, formada sobretudo por cooperativas que deveriam ser auto-gestionárias. Para
esse autor, a economia solidária tende a desconcentrar a propriedade e a renda. A
autogestão contém um novo conceito no modelo: uma gestão participativa, que elimina
os papéis de patrão e empregado, de trabalhador e de não-trabalhador dirigente. É
interessante destacar que os princípios do cooperativismo são: adesão voluntária;
gestão
democrática;
participação
econômica
dos
membros;
autonomia
e
independência; educação, formação e informação; intercooperação e interesse pela
comunidade.
Compreender a luta da população pobre por direito e dignidade, ou seja, por sua
"inclusão" na sociedade, remete a categoria participação. Souza (2004, p. 334)
considera a participação um direito inalienável. Ele destaca a importância da
participação para minimizar certas fontes de distorção e para comprometer o cidadão
nos resultados das políticas públicas.
Ainda segundo Souza (op. Cit) é possível verificar o grau de participação utilizando uma
escala de participação diferenciando o que é participação autêntica, pseudoparticipação e não-participação através de oito categorias distintas: autogestão;
5
Entendemos por organização da sociedade civil a capacidade histórica de a sociedade assumir formas conscientes
e políticas de organização. (Demo, 1996, p.27)
24
delegação de poder; parceria; cooptação; consulta; informação; manipulação e
coerção.
Ammann (1978, p.61) compreende participação como "o processo mediante o qual as
diversas camadas sociais tomam parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens
de uma sociedade historicamente determinada". Desta forma, para existir a participação
são imprescindíveis os três componentes básicos: a produção, a gestão e o usufruto
dos bens da sociedade.
Participação é conquista (Demo, 1996), ou seja, um processo. A participação é em
essência autopromoção e existe enquanto conquista processual. As camadas
populares têm o direito de participar; direito que necessita ser conquistado e não
entendido como dádiva, concessão ou algo pré-existente. Nos capítulos que virão
narrarei o ensejo das associações de conquistar e atingir a autopromoção, e não
somente promoção consentida, conduzida, concedida.
“O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes.”6 Parafraseando
Drummond, busco compreender a realidade do catador no tempo presente. Nessa
pesquisa pretendo conhecer e narrar a trajetória de vida dos catadores de lixo de
Fortaleza que participam da associação ACORES e da organização dos Catadores do
Parque Santa Rosa; socializar as vozes desses peregrinos que caminham sem parar,
presentes na história dessa cidade, mas que vivem exclusos dos benefícios que ela
oferece.
As entrevistas foram organizadas em três blocos de perguntas (verificar o Roteiro de
Entrevista no anexo I):
- o primeiro bloco indaga: sobre a vida pessoal englobando informações sobre nome,
data de nascimento, escolaridade, estado civil e profissão;
- o segundo bloco investiga: a atividade de catação; como se enveredou na catação; há
quanto tempo é catador de lixo; quais os bairros que percorre, horário de permanecia
6
Poesia de Carlos Drummond de Andrade, “Mãos dadas”.
25
nas ruas; quanto recebe pelo trabalho; como é trabalhar na rua e se gosta do que faz;
- o terceiro bloco visa compreender: como se deu a organização dos catadores, as
mudanças nas condições de trabalho depois da organização e o funcionamento da
associação com destaque a questão da participação.
Além da pesquisa bibliográfica, com a leitura de vários livros e textos e levantamento
documental de fontes primárias e secundárias, dei destaque à pesquisa in loco. O
primordial foi escutar o que os catadores de lixo tinham a dizer e estar presente no seu
cotidiano. Nesse sentido encontro reforço no pensamento de Adriana Mota:
O conhecimento acadêmico é importante, mas por si só não basta, precisando
ser nutrido pelo saber de algo feito, vivido, experimentado. É o trabalho direto
com a população que nos permite ampliar nosso conhecimento. (2003, p. 32)
Ao ingressar no Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade engajei-me no
grupo de pesquisa denominado Oralidade, Cultura e Sociedade, coordenado pelo
professor Gisafran Nazareno Mota Jucá que segue a linha de investigação do mestrado
intitulada “Rural e urbano: cultura, linguagem, comunicação e patrimônio”, ou seja, a
mesma linha de investigação do grupo de pesquisa que participo desde a graduação,
ou seja, Políticas Públicas e Exclusão Social. Os dois grupos são registrados no CNPq.
Inquieta quanto a minha opção metodológica, resolvi participar desse novo grupo de
pesquisa. Iniciado esse percurso, minha pesquisa tomou outro rumo: agora para um
mar revolto.
O desenvolvimento da investigação se deu a partir do enfoque qualitativo baseado na
metodologia de história oral, embora englobe outros procedimentos: observação
simples; registro de informações; participação em eventos, assembléias e reuniões de
catadores; entrevista a técnicos sociais da SAS e SETE; levantamento de dados na
SEMACE, IBGE e outras instituições.
A metodologia escolhida para tal empreendimento, história oral, é um “recurso moderno
usado para a elaboração de documentos, arquivamento e estudos referentes à
experiência social de pessoas e de grupos” (Meihy, 2000, p.25). É também um “método
de pesquisa que utiliza a técnica da entrevista e outros procedimentos articulados entre
26
si, no registro de narrativas das experiências humanas” (Freitas, 2002, p.18). A história
oral possibilita, assim, a elaboração de uma versão do tempo vivido no presente; ela
fornece um documento diferente, vivo, onde os sujeitos reconstroem o passado recente.
Ao aproximarem-se do cotidiano, do homem comum, os oralistas valorizam o indivíduo
como sujeito histórico. Para Freitas (2002) essa metodologia abre novas perspectivas
para o entendimento do passado recente, pois amplifica vozes que, de outra forma, não
se fariam ouvir.
O que me atraiu na história oral foi o fascínio de construir uma história viva, recente,
que possibilitasse a compreensão ou uma identificação, por parte de um grande grupo
da sociedade, com o texto produzido (ao invés de ser uma produção acadêmica que
servisse apenas para ser julgada e depositada na academia). Minha intenção é que os
catadores se identifiquem e compreendam esse trabalho e, sobretudo, que o mesmo
possa tornar mais visível ainda a presença deles na cidade.
Historicamente, o relato oral constituiu-se na maior fonte de conservação e difusão do
saber da humanidade, possibilitando, inclusive, a formação da sociedade humana. A
cultura escrita só apareceu muito depois do surgimento do homem. “O homo sapiens
existe há cerca de 30.000-50.000 anos. O mais antigo registro escrito data de apenas
6.000 anos atrás” (Ong, 1998, p.10). Na atualidade, o advento da tecnologia, a exemplo
do gravador, contribuiu para reavivar no meio acadêmico a utilização do relato oral.
Muitas vezes, o pesquisador, imerso na cultura escrita, encontra dificuldade em
compreender um universo oral da comunicação ou do pensamento. No entanto, tornase urgente superar os preconceitos e abrir novos caminhos ao conhecimento e à
compreensão desse universo oral. Aposto que a história oral será muito útil nesse
caminho.
Nos anos 40 do século XX, com o grande desenvolvimento das técnicas estatísticas, o
questionário foi utilizado como a técnica mais adequada de se obter dados
inquestionavelmente objetivos. Com o discurso da objetividade e neutralidade, os
27
relatos orais foram excluídos do meio acadêmico. No entanto, a superação dessa
concepção foi percebida logo que “valores e emoções permaneciam escondidos nos
próprios dados estatísticos, já que as definições das finalidades da pesquisa e a
formulação das perguntas estavam ligadas à maneira de pensar e de sentir do
pesquisador” (Queiroz, 1988, p. 15).
A história acadêmica e científica e, por isso mesmo, a oficial, fazia-se quase
exclusivamente com base nos documentos escritos. Só na escrita e nos dados
estatísticos havia validade e confiança, esquecendo-se que também nesses
documentos permanecem escondidos valores e emoções. Por isso, a metodologia da
história oral foi duramente criticada por aqueles que julgavam as fontes orais
“distorcidas” ou mesmo “falsas”, devido ao fato de permanecerem imersos no fetichismo
do documento escrito. Assim, eles ignoravam qualquer evidência baseada na oralidade
e esqueciam a premissa de que a história não traduz toda a realidade, mas uma
versão, ou seja, uma faceta daquela. Os resultados encontrados pelos pesquisadores,
tanto através dos documentos escritos quanto dos orais, são apenas versões
aproximadas da realidade.
Para Ong (1988) a escrita é espacialização da palavra, e nunca pode prescindir da
oralidade, pois a expressão oral pode existir sem qualquer escrita, mas nunca a escrita
sem a oralidade. Além da escrita, a impressão e o computador são todos meios de
tecnologizar a palavra. Através da história oral acredito na aproximação da academia
com a sociedade, do pesquisador com o homem comum.
Oficialmente, a história oral começou com o uso do gravador; sua base é o depoimento
gravado, ou seja, o registro efetivo da voz. O marco de criação desta metodologia
manifestou-se nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, precisamente no
ano de 1948, com as gravações do professor Allan Nevis sobre as histórias de vida de
norte-americanos famosos. Ele oficializou o termo The Oral History Project, na
Universidade de Colúmbia, em Nova Yorque, onde criou o primeiro centro de História
Oral do mundo.
28
Na academia existem posicionamentos diferentes acerca do status da história oral, mas
é possível reduzir a três as principais posturas. A primeira define a história oral como
uma técnica; a segunda, como uma disciplina; e a terceira, como uma metodologia. Os
defensores da primeira postura utilizam a entrevista como uma fonte de informação
complementar às fontes escritas. Os que postulam o status de disciplina partem da
idéia fundamental de que a história oral inaugurou técnicas específicas de pesquisa,
procedimentos metodológicos singulares e um conjunto próprio de conceitos. Ian Mikka
é um dos teóricos que contundentemente defende o status de disciplina para história
oral (Ferreira, 2002, p. xiii). Os autores cujos trabalhos são produzidos com um enfoque
na história oral assumem, na sua maioria, como uma metodologia de pesquisa que
ultrapassa uma concepção somente de técnica. Nessas produções, as entrevistas não
são complemento, mas o cerne em torno do qual giram os desdobramentos
historiográficos. Partilho dessa concepção de história oral entendida como metodologia
e, portanto, funcionando como ponte entre teoria e prática. Na história oral há três
modos de construí-la a partir da escolha de trabalhar com base em uma pessoa, em
algumas ou em um conjunto de entrevistas. Essas modalidades são nomeadas de
história oral de vida; história oral temática; e tradição oral. Na pesquisa realizada com
os catadores elegi a história oral temática.
Para a coleta dos dados utilizei gravador e máquina fotográfica. Na construção do
documento oral tudo é gravado e preservado. Após a transcrição de cada entrevista
optei pela reorganização cronológica e lógica do texto. A entrevista transcrita, em sua
versão final, foi entregue para ser autorizado pelo entrevistado mediante a Carta de
Cessão (Cf. anexo II), seguindo assim as diretrizes éticas para proteger os
entrevistados contra a manipulação, por parte do entrevistador, como também uma
proteção do pesquisador contra reivindicações dos entrevistados.
Na reflexão de Whitaker (1995), quando o entrevistado pertence a camadas
pauperizadas, o pesquisador, sob o pretexto de respeitar-lhe a cultura, confunde
ortografia com fonética a ponto de cometer barbaridades ortográficas reproduzindo
apenas a caricatura de sua pronúncia. Para a autora, os pesquisadores enganam-se ao
29
transcrever erros ortográficos com a justificativa de reproduzir uma pronúncia original.
Além de truncar a leitura do texto, comprometendo sua fluência e compreensão, gera
desrespeito em vez de respeitar a fala do outro.
No momento em que se transformam elementos auditivos em visuais, as mudanças do
documento oral para o documento escrito são inevitáveis. As regras desses
documentos são distintas. Sem falar que a palavra escrita já é uma reinterpretação do
relato oral. A maioria das pessoas que terão acesso a leitura desse trabalho pertence
ao grupo letrado e, portanto, algumas regras do documento escrito são indispensáveis,
como a inserção de sinais de pontuação.
Outro motivo que me levou a optar pela modificação do texto transcrito foi a leitura de
alguns trabalhos com a transcrição das entrevistas na íntegra, a leitura ficou de difícil
compreensão e cansativa com as constantes repetições. A falta de cronologia e de
lógica do texto atrapalharam na apreensão das idéias dos narradores. Torna-se,
inclusive, necessário colocar um glossário no final do trabalho, para facilitar a leitura das
narrativas pelos leitores. Desta forma, optei por modificar a transcrição com o intuito de
tornar a leitura mais fácil e amena por parte do leitor, evitando assim o glossário.
Visitei várias organizações dos catadores concomitantemente. Minha primeira opção de
trabalho de campo foi a cooperativa COOSELC e a associação SOCRELP. Entretanto
suas realidades eram tão distintas que dificultaria a análise e, por conseguinte
retardaria a conclusão dessa dissertação. Na COOSELP os catadores trabalhavam na
Usina de Reciclagem onde funcionava o antigo lixão. Os conflitos internos estavam
intensos como também as disputas políticas, pois o período das visitas de campo foi no
ano eleitoral (2004). A intervenção do poder público e o jogo político eram maiores na
cooperativa. Os catadores da SOCRELP trabalhavam nas ruas, em condições muito
mais adversas. A associação desenvolvia vários projetos interessantes para a
comunidade do Pirambu; o empreendimento na reciclagem apresentava bons
resultados econômicos; alguns associados eram responsáveis em reciclar papel e criar
belíssimos trabalhos manuais. Entretanto o foco principal não era o catador. O catador
30
tinha um papel de co-adjunvante e raros foram os meus encontros com eles. Por causa
das dificuldades citadas não realizei a pesquisa nessas duas instituições.
Mas os
contatos com esses dois grupos clarearam minha opção em trabalhar com os catadores
que trabalham nas ruas.
Resolvida a opção de trabalhar com o grupo dos catadores que trabalham no espaço
da rua, recomecei minha pesquisa de campo na Associação ACORES e na
organização dos catadores do Parque Santa Rosa que se prepara para formalizar uma
cooperativa nomeada COOPERAV – Cooperativa de Agentes Ambientais Rosa
Virgínia.
A amostra representativa consta de um universo de nove catadores de lixo: cinco
representantes da associação ACORES – três catadores e dois ex-catadores – do
universo de cinco catadores que, atualmente, participam da associação; e quatro
representantes do Parque Santa Rosa que contava, até no momento das entrevistas,
com a presença de quase vinte catadores. A escolha dos entrevistados não seguiu
critérios rígidos, senão que constasse representação masculina e feminina. Todos os
catadores quiseram relatar seus depoimentos na própria sede da associação. Uns
porque consideraram o ambiente do galpão mais apropriado para a entrevista, outros
porque já moravam na própria associação. Seguindo a orientação dos autores lidos, a
transcrição foi feita por mim que elaborei o projeto de pesquisa, para que os dados não
fossem desvirtuados de sua proposta inicial e para evitar erros de ordem interpretativa.
Apresento, de agora em diante, a estruturação da dissertação. O trabalho foi dividido
em três capítulos onde são abordadas as seguintes questões; 1) as categorias centrais
que envolvem o trabalho dos catadores de lixo; 2) os espaços de atuação dos
catadores e os depoimentos relatados nas entrevistas; 3) as análises das políticas
públicas dirigidas a esse segmento, como também dos relatos orais.
No capítulo I, intitulado No lixo a luta pela sobrevivência, descrevo a matéria prima dos
catadores: o lixo. Trago a discussão sobre os caminhos que o lixo leva uma parcela da
31
população a transitar da pobreza à exclusão, e da exclusão a possibilidade de
construção da participação. Apresento como os catadores chegaram ao lixo e as
condições que os impulsionaram a organização. Exponho alguns conceitos de
participação.
Apresento no capítulo II a pesquisa de campo, o ambiente em que os catadores estão
inseridos, ou seja, o apanhado de grupos e atores sociais envolvidos, na cidade de
Fortaleza, com a problemática do lixo. Neste capítulo central estão as narrações das
trajetórias de vida dos catadores de lixo da ACORES e do Parque Santa Rosa. Aqui os
próprios catadores, através da metodologia da História Oral, contarão suas histórias,
suas lutas, e porque não dizer suas vidas.
No último capítulo, Vidas e lixo: uma reflexão, trago discussões em torno das políticas
públicas estaduais e municipais, e das alternativas oferecidas pelos setores não
governamentais, direcionadas a temática do lixo e dos catadores. As análises das
histórias de vidas ligando as experiências desses catadores de lixo com a organização
desse grupo e a própria construção da sua história com vitórias e derrotas. Aqui se
torna possível refletir sobre a visão que esse segmento tem das suas vidas e do mundo
ao redor.
A dissertação apresentada, certamente, é uma versão inacabada, com lacunas abertas
e campos poucos explorados de pesquisa. Creio que as contribuições da Banca
Examinadora serão valiosas para a construção do conhecimento, da compreensão da
realidade do catador, com também de novas possibilidades de ampliação da temática
pesquisada em futuros estudos.
32
Catação feita por crianças (Avenida do bairro Parque Santa Rosa)
Catadores separando o material para reciclagem (Galpão da ACORES)
33
Já não ignoramos, não podemos ignorar que ao horror nada é impossível, que
não há limites para as decisões humanas. Da exploração à exclusão, da
exclusão à eliminação, ou até mesmo a algumas inéditas explorações
desastrosas, será que essa seqüência é impensável?
(Viviane Forrester)
Estamos longe do verdadeiro desenvolvimento, que só ocorre quando
beneficia a sociedade.
(Celso Furtado)
Sem utopia satisfazemo-nos com as mediocridades das dominações
corriqueiras e nos curvamos às desigualdades vigentes.
(Pedro Demo)
34
CAPÍTULO I
NO LIXO A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA
No presente capítulo ponho-me a caminho da categoria central lixo, tecnicamente
nomeada resíduos sólidos, para chegar em duas outras: exclusão e participação.
Embora lixo e resíduos sólidos sejam a mesma coisa, faço a opção, neste trabalho, pela
nomenclatura lixo por ser um termo mais usado por toda a população.
Por que partir do lixo? Analiso, aqui, que a aproximação da população pobre com o lixo
é resultado de um processo próprio da sociedade capitalista que é eminentemente
excludente. Entretanto, não esqueçamos que a luta pela sobrevivência persegue o ser
humano desde os primórdios, ou melhor, está no seu instinto, e que a atividade de
catação é fundamentalmente gregária. Esses dois fatores, a sobrevivência e a união,
favorecem o florescimento da participação nesta atividade de catar o lixo. Assim, no lixo
visualizo ao mesmo tempo a exclusão e a participação.
1.1. Falando sobre o lixo.
A Associação Brasileira de Normas e Técnicas – ABNT – através da Norma Brasileira
Registrada 10004 denomina o comumente conhecido lixo de resíduos sólidos. Nesta
norma encontra-se a classificação e definição de resíduos sólidos.
Na presente
pesquisa adotarei a definição de lixo, proposta por essa associação, como sendo:
Resíduos nos estado sólido e semi-sólido, que resultam de atividades da
comunidade de origem: industrial, doméstico, hospitalar, comercial, agrícola, de
serviço e de varrição. Ficam incluídos nesta definição os lodos provenientes de
sistemas de tratamento de água, aqueles gerados em equipamentos e
instalações de controle de poluição, bem como determinados líquidos cujas
particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos
ou corpos de água, ou exijam para isso soluções técnicas e economicamente
inviáveis em face à melhor tecnologia disponível.
Segundo a CEMPRE (1995), existem várias formas possíveis de se classificar o lixo:
por sua natureza física (seco e molhado); por sua composição química (matéria
35
orgânica e matéria inorgânica); pelos riscos potenciais ao meio ambiente (perigosos,
não-inertes e inertes).
A última forma citada acima é encontrada detalhadamente na NBR 10004. Nesta norma
o lixo é classificado em:
Resíduos Classe I – perigosos, ou seja, são aqueles resíduos que apresentam risco à
saúde pública e ao meio ambiente e que apresentam uma das seguintes característica:
inflamabilidade, corrosividade, reatividade, toxicidade, patogenicidade;
Resíduos Classe II – não-inertes, esses resíduos apresentam propriedades, tais como:
combustibilidade, biodegradabilidade ou solubilidade em água;
Resíduos Classe III – inertes. Quaisquer resíduos que não tiverem nenhum de seus
constituintes solubilizados a concentrações superiores aos padrões de potabilidade de
água. Em outras palavras, são materiais que não são facilmente decompostos a
exemplo das rochas, vidros e certos tipos de borrachas e plásticos.
O Manual de Impactos Ambientais produzido pelo Banco do Nordeste define o termo
lixo como tudo aquilo que deixa de ter utilidade, é jogado fora e que se apresenta no
estado sólido ou semi-sólido. O lixo ainda pode ser classificado de acordo com a origem
em:
Resíduos urbanos: compreende os domiciliares ou domésticos, comerciais e públicos. A
responsabilidade de coletar, transportar, tratar e dar disposição final dos resíduos
sólidos urbanos é do município, exceto o lixo comercial que ultrapassar, geralmente, o
peso de 50kg;
Resíduos industriais: provenientes de atividades industriais. Nesta categoria inclui-se a
maior parte dos resíduos tóxicos. O gerador desse tipo de resíduo é responsável pelo
armazenamento, tratamento e disposição final adequada;
Resíduos dos serviços de saúde: conhecido como lixo hospitalar. Contém, em geral,
resíduos sépticos que compreendem: agulhas, seringas, gases, bandagens, luvas
descartáveis, órgãos e tecidos removidos, etc. Mas também os assépticos como papéis
e restos alimentares. Os geradores são também responsáveis sobre o seu manuseio,
acondicionamento, transporte, tratamento e disposição final;
36
Resíduos especiais: apresentam grandes volumes ou toxicidade. Esses resíduos
necessitam de coleta especial.
O lixo é produzido praticamente em todas as atividades humanas e composto por uma
grande diversidade de substâncias. Nesta pesquisa tratarei do lixo urbano,
especificamente o que é constituído pelos lixos domiciliares, oriundos das residências,
e pelos lixos comerciais originados de atividades realizadas em escritórios, hotéis, lojas,
cinemas, teatros, mercados, terminais etc. Portanto, quando cito o termo lixo refiro-me
ao lixo domiciliar e comercial.
Esse tipo de lixo, classificado de resíduos urbanos, é chamado também de lixo
municipal pelo fato da execução dos serviços de limpeza pública urbana constituir um
dos poucos serviços públicos de competência exclusiva do poder municipal.
O lixo domiciliar ou doméstico é constituído basicamente por: embalagens plásticas, de
metal, de vidro, de papel e de papelão; jornais, revistas; restos de alimentos; produtos
deteriorados e uma grande variedade de outros itens. O lixo comercial por: papel,
papelão e embalagens em geral. A partir desses geradores o lixo se transforma em
matéria-prima para os catadores, protagonistas deste trabalho.
Os catadores de lixo procuram por todas as ruas da cidade de Fortaleza, durante os
três turnos, manhã, tarde e noite, materiais que lhes interessem para uma posterior
comercialização. Mas é principalmente à noite que esses trabalhadores informais são
visualizados. A coleta regular é realizada, na maioria das vezes, no horário da noite e a
população é educada a colocar o lixo somente nesse horário quando passa o caminhão
do lixo. Desta forma a matéria-prima do catador está disponível principalmente à noite.
Outro motivo da catação noturna seria o clima agradável que ameniza o desgaste físico
e a diminuição do fluxo de carros evitando acidentes.
A partir dos restos de várias atividades, considerados pelos geradores como inúteis,
indesejáveis ou descartáveis, os catadores de lixo conseguem sobreviver. No Brasil, há
37
anos que a reciclagem é sustentada através da catação informal de papéis e outros
materiais achados nas ruas e nos lixões. O benefício que os catadores de lixo trazem
para a limpeza urbana é considerável, pois ao recolherem o material antes do caminhão
da coleta passar reduzem os gastos com a limpeza pública7, além de fornecerem
matéria-prima para as indústrias de reciclagens, gerando possibilidade de maiores
lucros para os empresários.
O faturamento das empresas que utilizam material reciclado é ampliado com a redução
dos custos na confecção de “novos materiais” que não é repassada para os
consumidores. Rodrigues (1998, p. 158), a partir de reportagens da Folha de São Paulo
e Gazeta Mercantil, cita exemplo do faturamento de várias empresas que ampliaram
seus lucros com a reciclagem. Destaco alguns:
A reciclagem de latas de alumínio, que começou em 1991 como um lance de
marketing da Latasa, transformou-se neste ano(1994) num negócio lucrativo
para a empresa que consegue redução de 8% a 14% no preço da chapa de
alumínio feita com material reutilizado...
8
Com a nova tecnologia, a CST já conseguir economizar US$2,5 milhões a
partir de um investimento inicial de US$816,5 mil...
Para a autora citada, independente da origem, o lixo se tornou “mercadoria” com um
“novo” valor de troca. “Mercadoria que alguns ‘pagam’ para se verem livres e outros
‘cobram’ para livrar os outros e com isso têm lucro”(1998, p 147). Até os desastres
ambientais acabam também se tornando “mercadorias”. Essa mercadoria tem valor
real, pois está no circuito produtivo, como também um valor simbólico, pois é importante
para a preservação da natureza. Independente do valor produtivo o maior
beneficiamento é a redução crescente do impacto ambiental.
A gestão do lixo deve estar orientada à proteção da saúde humana, manutenção da
qualidade de vida e melhoria das condições ambientais e conservação dos recursos
naturais. No incentivo ao processo de reciclagem, é necessário pensar na preservação
7
Essa redução dos gastos não é possível na cidade de Fortaleza. Na gestão do prefeito Juraci Magalhães, foi
acordado com a empresa Ecofor um piso fixo para a coleta do lixo, independente da quantidade do peso do lixo e
dos dias úteis trabalhados. Esse contrato terá vigência de 20 anos.
8
CTS – Companhia Siderúrgica de Tubarão.
38
de recursos naturais e viabilização de melhores condições de trabalho das pessoas
envolvidas nessa atividade, como os catadores.
Em relação ao destino final dos resíduos sólidos a nova ordem mundial, pelo menos no
papel, é minimizar o lixo, como o princípio dos 3Rs: reduzir - que consiste em diminuir a
quantidade de lixo produzido, desperdiçar menos e consumir só o necessário; reutilizar
- dar nova utilidade a materiais que na maioria das vezes são considerados inúteis e
jogados no lixo; reciclar - cujo processo possibilita “nova vida” a materiais a partir da
reutilização de sua matéria-prima para fabricar novos produtos (FEAM, 2002).
Esses princípios permanecem no campo teórico das intenções, pois a todo instante são
alimentados e encorajados os hábitos de consumo indiscriminados, veiculados
especialmente pelos meios de comunicação de massa, com elevado potencial de
impacto em toda a sociedade. O crescimento da população, juntamente com o aumento
das aglomerações urbanas alteram a quantidade do lixo produzido. O aumento do
volume do lixo, aliado a durabilidade dos materiais da sociedade do descartável,
resultam numa diminuição de áreas disponíveis para a destinação dos resíduos
gerados principalmente nas grandes cidades. O lixo de Fortaleza já é depositado num
aterro localizado no município de Caucaia, região metropolitana.
Nos últimos anos o princípio da reciclagem vem recebendo uma atenção maior devido
ao fator econômico. Hoje, o meio ambiente é considerado não só uma vertente
ecológica, mas também uma variável econômica identificada dentre os fatores de
competitividade e oportunidade de negócios. Desta forma, como constatou Rodrigues
(1998, p.161), a reciclagem converteu o lixo numa “nova” mercadoria onde a questão
ambiental é transformada em “gestão ambiental”.
No processo da reciclagem é imprescindível a coleta seletiva que pressupõe a
separação dos materiais recicláveis como papel, vidros, plásticos e metais do restante
do lixo, nas próprias fontes geradoras. A segregação do lixo na fonte, evita que os
resíduos infectantes sejam misturados aos demais, contaminando os passíveis de
reciclagens e encarecendo tanto a coleta, com o aumento do volume, como a
39
disposição final, pois os resíduos gerados necessitarão de tratamento especial. Com a
ausência da coleta seletiva, o país, desperdiça através do lixo, milhões de toneladas de
produtos recicláveis.
O CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente – estabelece, através da resolução
No 275, um código de cores para os diferentes tipos de lixo, a ser adotado na
identificação de coletores e transportadores, bem como nas campanhas informativas
para a coleta seletiva. Tal iniciativa pública objetiva incentivar, facilitar e expandir a
reciclagem no país. A tabela a seguir trata do código das cores.
Tabela 1
CÓDIGO DE CORES PARA DIFERENTES TIPOS DE RESÍDUOS
PADRÃO DE CORES
MATERIAIS
Azul
Papel / Papelão
Vermelho
Plástico
Verde
Vidro
amarelo
Metal
Preto
Madeira
Laranja
Resíduos Perigosos
Branco
Resíduos Ambulatoriais e de Serviços de Saúde
Roxo
Resíduos Radioativos
Marrom
Resíduos Orgânicos
Cinza
Resíduo geral não reciclável ou misturado
Fonte: CONAMA, 2001.
A coleta seletiva poderá reduzir o volume e peso do lixo coletado numa cidade
proporcionando o aumento da vida útil dos aterros, a otimização na operação de
sistema de compostagem, a economia e proteção de recursos naturais e a economia
energética.
Em relação à destinação final do lixo o mais utilizado é a disposição no solo. Essa
disposição no solo é feito em lixões, aterro sanitário e aterro controlado. Outras técnicas
40
para tratamentos do lixo são a compostagem e a incineração. Como técnica de
reaproveitamento, inclui-se também no tratamento do lixo a reciclagem.
A tabela a seguir dispõe sobre os dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico,
realizada pelo IBGE e editada nos anos de 1991 e 2000 que trata da disposição final de
lixo nos municípios brasileiros.
Tabela 2
DISPOSIÇÃO FINAL DE LIXO NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS
1991 e 2000
Disposição Final
ANO
1991
2000
Lixões
76%
64%
Aterros Sanitários
10%
14%
Aterros Controlados
13%
17%
Outros
01%
05%
Total
100%
100%
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 1991 e 2000.
Embora o resultado em número de municípios não seja favorável, pois a maioria das
cidades destina o seu lixo de forma inadequada, ou seja, nos lixões, é notória uma
tendência de melhora da situação da disposição final do lixo no Brasil, nos últimos
anos, principalmente se indicar a situação de destinação final do lixo coletado no país
em peso: 47,1% em aterros sanitários, 22,3% em aterros controlados e apenas 30,5%
em lixões, ou seja, mais de 69% de todo o lixo coletado no Brasil estaria tendo um
destino adequado (IBGE, 2000).
O lixão, tratamento dado pela maioria dos municípios brasileiro ao lixo, é uma forma
inadequada de disposição final de lixo, que se caracteriza pela simples descarga sobre
o solo, a céu aberto, sem medida de proteção ao meio ambiente ou à saúde pública. Na
cidade de Fortaleza, até o ano de 1996, o lixo era depositado no lixão do Jangurussu
onde mais de mil pessoas sobreviviam da catação.
41
O aterro sanitário é um processo que permite o confinamento seguro em termos de
controle de poluição, fundamentado em critérios de engenharia e normas operacionais
específicas. Já o aterro controlado utiliza alguns princípios da engenharia, mas é inferior
ao aterro sanitário. Ele assemelha-se aos lixões por causar danos ao meio ambiente
comprometendo a qualidade das águas subterrâneas e do ar. Ainda em relação a
disposição final de lixo existe o tratamento da compostagem que se fundamenta na
estabilização da matéria orgânica, por meio de processo biológico. O produto obtido é
um material livre de agentes patogênicos, chamado composto orgânico, e pode ser
utilizado na agricultura como fertilizante. A incineração, que é um processo de
combustão controlada do lixo, é aplicada na destruição de resíduos perigosos, porém
com alto custo e com risco de contaminar o ar (Banco do Nordeste, 1999).
O lixo, quando não é tratado adequadamente, constitui uma permanente ameaça à
saúde publica e ao meio ambiente. Os recursos naturais que mais sofrem efeitos
negativos da disposição inadequada do lixo são os solos, águas (subterrâneas e
superficiais) e o ar. Tanto nos “lixões” quanto nos aterros sanitários, quando não
atendidas as condições técnicas para construção, manutenção e operação, os solos
podem ser contaminados por microrganismos patogênicos, metais pesados, sais e
hidrocarbonetos clorados, contidos no “chorume” (líquido resultante da decomposição
do lixo).
Fortaleza, como a maioria das cidades brasileiras, depositou por um longo tempo seu
resíduo sólido nos lixões. Esse tratamento de disposição final do lixo durou até o ano de
1996. A taxa de urbanização registra 100% desde o ano de 1991. Com o crescimento
da cidade, esgotou-se assim o espaço físico para o mato, lagoas e principalmente para
depositar o lixo. Hoje o lixo da cidade é levado para o município de Caucaia,
especificamente para o Aterro Sanitário Metropolitano Oeste de Caucaia (Asmoc).
A cidade de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, está delimitada ao Norte com o
Oceano Atlântico, ao Sul com os municípios de Itaitinga e Eusébio, a porção Ocidental
com o Oceano Atlântico e porção Oriental com o município de Caucaia. Conta ainda
42
com uma população de 2.141.402 habitantes numa área de 313,8 km2. Em 2000, a
população representava 28,82 % da população do Estado (IBGE, 2000).
Segundo ainda dados do IBGE o acesso ao serviço básico da coleta de lixo dos
domicílios urbanos, na cidade de Fortaleza, subiu de 84,7% no ano de 1991 para 95,1%
no ano de 2000. Portanto, o incremento desse serviço, possibilitou que grande parte da
população tivesse seu lixo coletado reduzindo assim pontos de lixos. Para a coleta
regular dos resíduos sólidos Fortaleza foi dividida em três grandes áreas e subdividida
em 24 ZGL’s – Zonas Geradoras de Lixo para o gerenciamento dos serviços de limpeza
da cidade. Em cada ZGL encontra-se um gerente setorial responsável em distribuir as
equipe de garis e deslocar caçambas para desenvolverem trabalhos de varrição,
pintura, capinação entre outros.
A partir da matéria publicada no Diário do Nordeste (19/06/2005) relato aqui o caminho
do lixo. Nessa reportagem o engenheiro Francisco Helano Menezes Brilhante enumera
a existência de cinco lixões na cidade: do João Lopes; da Barra do Ceará; do Buraco da
Gia; do Henrique Jorge; e por último o do Jangurussu. Segundo ainda os funcionários
da limpeza urbana o lixão mais antigo foi o Lixão do João Lopes, localizado no bairro do
Monte Castelo, entre os anos de 1956 a 1960. A coleta desse lixo era realizada por
carroças movidas por tração animal e caminhões abertos.
O próximo destino do lixo foi o Lixão da Barra do Ceará, entre os anos de 1961 a 1965.
Nessa época, a coleta já era feita com caçambas, carros com carrocerias e tratores
com pneu puxando carroças e não mais animais. Registra-se, nesse intervalo, a
presença de catadores nas ruas da cidade. Por um período de apenas dois anos (1966
a 1967), o lixo foi depositado no Lixão do Buraco da Gia, por trás da fábrica de
beneficiamento de castanhas Cione, para em seguida ser depositado no Bairro de
Henrique Jorge, entre 1968 e 1977. Nessa época surgiram os coletores compactadores.
O Lixão do Jangurussu começou a operar em fevereiro de 1978 às margens do Rio
Cocó e foi desativo em 1996. O lixo chegou a uma altura de 42 metros de altura, com
área de 20 mil metros quadrados.
43
Após a desativação do Lixão do Jangurussu o lixo de Fortaleza passou a ser
depositado no Asmoc, exatamente no ano de 1997. A reportagem sugeriu que os lixões
ficaram no passado, mas em minhas visitas pelos bairros da periferia, entre eles, Santa
Rosa, Serrinha, Quintino Cunha, Tancredo Neves e Barroso, observei a existência de
vários depósitos de lixo que lembram verdadeiros lixões.
1.2. O caminho percorrido por alguns excluídos: o lixo.
A acumulação capitalista de um grupo minoritário tem como contradição a acumulação
de miséria e perdas da maioria da população. O Brasil é um dos campeões mundiais
em concentração de renda e, no período da intensificação do capitalismo industrial, a
concentração das riquezas acentuou-se exageradamente, perpetuando o problema da
exclusão social no Brasil. Esta questão tem forte conotação regional.
A pobreza se instala na América Latina de forma peculiar. As favelas se multiplicam. No
Brasil elas abrigam cerca 6,5 milhões de pessoas. Mais da metade dos 400 milhões de
latino-americanos não consegue satisfazer suas necessidades básicas e existem 102
milhões de indigentes que nem sequer conseguem alimentar seus filhos9. Desta forma,
famílias inteiras, vidas humanas são “jogadas ao léu”, “jogadas ao lixo”, pois muitos
procuram alimentos no lixo.
Os catadores de lixo por estarem em condições de inferioridade na hierarquia social
são, muitas vezes, tratados e considerados como “não-semelhantes”. Cristóvam
Buarque propôs o termo apartação social como sendo o fenômeno de separar o outro,
não mais considerado como humano. Ou seja, a exclusão social torna-se apartação
quando o outro não é apenas desigual ou diferente, mas quando o outro é considerado
como "não-semelhante", um ser expulso, não dos meios modernos de consumo, mas
do gênero humano. (Nascimento, 1995, p.25).
9
Dados coletados do jornal Diário do Nordeste, 13 de junho de 2004.
44
A apartação proposta por Buarque é visualizada em algumas produções acadêmicas.
Exemplo desse resultado é o Atlas da Exclusão Social no Brasil, que ajuda na
compreensão e visibilidade do quadro de diferenciações sociais e regionais no país.
Pochmann (2003, p.9) busca melhor compreender o fenômeno da exclusão social que
pode ser “interpretada como um processo de natureza transdisciplinar, capaz de
envolver diferentes componentes analíticos”. A produção do Atlas resultou na
localização geográfica das regiões relativamente mais excluídas do país e na
identificação de algumas das suas principais carências. Metaforicamente é fotografada
a exclusão social no Brasil.
A pesquisa de Pochmann ensejou apurar nos 5.507 municípios brasileiros, em 2000, o
Índice de Exclusão Social. O resultado dependeria do valor encontrado do índice que
variava de zero a um em cada município. Os valores próximos a zero equivaleriam às
piores condições de vida, enquanto os próximos de um às melhores situações sociais.
Nesta pesquisa apurou-se que:
... nada menos que 41,6% das cidades do Brasil apresentam os piores
resultados neste indicador, quase todas situadas nas regiões Norte e Nordeste.
Mais uma vez, isso reforça a constatação de que a “selva” de exclusão mostrase aí intensa e generalizada, com poucos “acampamentos” de inclusão social,
pontuando uma realidade marcada pela pobreza e pela fome, que atingem
famílias extensas, população pouco instruída e sem experiência assalariada
formal (Pochmann, 2003, p.25).
O número de cidades com elevado índice de Exclusão Social chega a 41,6% (2.290) do
total de 5.507 municípios no território nacional. Índice alto que deveria causar
consternação, vergonha e desolação a toda população brasileira. Como nordestina que
sou a indignação é maior, pois dentre esses municípios de maior índice de exclusão a
maioria localiza-se na região Nordeste que é recordista, representando 72,1% (1.652).
Esses municípios encontram-se dentro da exclusão tradicional, ou seja, de famintos
que não garantem o simples critério de subsistência.
A região NE é formada, principalmente, por famílias vulnerabilizadas pela pobreza e
exclusão, inseridas num cenário de uma economia de mercado crescentemente
globalizado e assentado sobre a lógica da competitividade ilimitada. Nas regiões Norte
e Nordeste identificam-se vários baixos indicadores das condições de vida dessas
45
populações: escolaridade, alfabetização, desigualdade social, emprego formal,
concentração de jovens, violência. Muitos são os cidadãos que se encontram com
profundos problemas de desemprego, condições precárias de moradia, analfabetismo.
No próximo capítulo veremos que o perfil dos catadores de lixo, foco central do
presente estudo, confirma os baixos indicadores.
Conforme os dados, acima, detectou-se que existem ao longo do território brasileiro,
quinto maior país do mundo, “acampamentos” de inclusão social em meio a uma ampla
“selva” de exclusão, que se estende por praticamente todo o espaço brasileiro,
mormente nas regiões geográficas do Norte e Nordeste. Essa desigualdade entre os
“incluídos” e “excluídos” revelou-se por meio de oito indicadores: participação de
cidadãos com até 19 anos de idade no total da população; existência de analfabetismo;
nível de instrução do chefe; participação dos assalariados em ocupações formais no
total da população em idade ativa; violência; pobreza; desigualdade; exclusão social. O
último indicador, exclusão social, representa uma síntese de todos os indicadores. Para
uma melhor análise dos dados dessa pesquisa exponho a seguir os índices de
exclusão social de algumas das maiores cidades do país.
Tabela 3
ÍNDICE DE EXCULSÃO SOCIAL DE ALGUNS MUNICÍPIOS DO BRASIL, 2000
CIDADE
Pobreza
Juventude
Alfabetização
Escolaridade
Emprego
Formal
Violência
Desigualdade
Exclusão
social
Fortaleza
0,579
0,657
0,838
0,671
0,239
0,913
0,235
0,552
Recife
Brasília
São
Paulo
Belo
Horizonte
0,587
0,784
0,803
0,747
0,680
0,792
0,851
0,902
0,911
0,751
0,816
0,777
0,383
0,490
0,368
0,747
0,872
0,743
0,331
0,597
0,485
0,594
0,708
0,667
0,764
0,769
0,921
0,813
0,486
0,913
0,475
0,710
Belém
Porto
Alegre
Curitiba
0,617
0,829
0,666
0,839
0,894
0,927
0,738
0,911
0,252
0,478
0,945
0,904
0,232
0,618
0,576
0,761
0,845
0,788
0,936
0,872
0,428
0,914
0,537
0,730
Fonte: Atlas da Exclusão Social no Brasil, 2003.
46
Observando a tabela 3, os índices da desigualdade (0,235) e do emprego formal
(0,239) estão quase na extremidade do pior índice (zero). A metrópole cearense em
relação aos maiores centros do país teve a pior performance no que se refere ao Índice
de Exclusão social (0,552). A cidade teve, também, todos os índices, com a exceção do
índice violência, abaixo das demais metrópoles. Os indicadores apresentados sinalizam
uma realidade social interna de grande desigualdade na Cidade da Luz.
Os dados do IBGE também confirmam que a desigualdade cresceu em Fortaleza. O
índice de Gini, que indica a desigualdade, passou de 0,65 em 1991 para 0,66 em 2000.
A desigualdade é alimentada com o tipo de desenvolvimento econômico impulsionado
no Estado que favorece a concentração de renda. Na próxima tabela (número 4)
exporei quão grande é o fosso que separa os extratos mais ricos dos mais pobres em
questão da renda na “Fortaleza bela”. Os 20% mais ricos detêm, nada menos que,
70,2% da renda da Metrópole. Enquanto os 20% mais pobres ficam com migalhas de
1,9%. Até parece que no Brasil a história não muda: “os ricos ficam cada vez mais ricos
e o pobre cada vez mais pobre”.
Fortaleza insere-se numa colocação razoável na classificação do Índice de Exclusão
Social. Sua posição no ranking a partir da melhor situação social é de 644a. A cidade
também ocupa uma boa posição no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, a
896a posição. Em relação aos outros municípios do Estado, Fortaleza ocupa a 1a
posição10. No ano de 2000, o IDH-M de Fortaleza foi de 0,786, considerado assim de
médio desenvolvimento humano pelo PNUD. A capital do Estado do Ceará, onde se
concentra a riqueza e as exigências dos mercados, teve uma boa colocação nessas
pesquisas graças ao elevado valor em alguns índices como juventude, alfabetização,
escolaridade e violência. Em relação ao IDH a contribuição para o crescimento foi da
educação(48,8%), longevidade(29,8%) e renda(21,5%). A elevação dos índices ocorreu
naqueles itens considerados da exclusão tradicional.
10
Os dados sobre o IDH-M foram coletados no IBGE no Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2000.
47
Tabela 4
PORCENTAGEM DA RENDA APROPRIADA POR EXTRATOS DA POPULAÇÃO 1991
e 2000
1991
2000
20% mais pobres
2,3
1,9
40% mais pobres
7,1
6,5
60% mais pobres
15,3
14,6
80% mais pobres
30,7
29,8
20% mais ricos
69,3
70,2
Fonte: IBGE, Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2000
Os números não alcançam a vida, nem o sofrimento que cada indivíduo passa nesta
cidade. Muito menos, as minhas palavras, secas e sem poesia, poderiam transcrever
para um papel os sentimentos experienciados por esses cidadãos, especificamente os
catadores de lixo, que além de não ter os meios materiais necessários para uma
vivência digna, são insultados, ultrajados e transfigurados pelo suor, peso e sujidade.
As dores narradas pelos catadores e as experiências vividas no campo deixaram em
mim marcas profundas e pensamentos nebulosos. Sentimentos de impotência e
indignação estão presentes no processo de redação desse texto.
As porcentagens apresentadas apontam que a cidade fortalezense enquadra-se numa
forma nova e peculiar de exclusão social como os grandes centros urbanos. Exemplo
disso seria o elevado número de indivíduos que, apesar da escolarização, da
experiência de assalariamento formal e da composição de famílias pouco numerosas,
encontram-se em situação de desemprego e insuficiência de renda.
No crescimento de Fortaleza, observa-se uma divisão no plano espacial entre
leste/sudeste e oeste/sudoeste. A primeira parte, predominantemente habitada pela
população de padrão médio e alto de renda (cujas “casas e mansões ostentam riqueza
e suntuosidade em suas fachadas e luxo nos seus interiores”) é onde também se
concentram os serviços de infra-estrutura e melhor qualidade de vida. Já a segunda é
48
habitada, sobretudo, pelas camadas de baixa renda: “operários, trabalhadores de
baixos salários e aqueles cuja informalidade no mundo do trabalho impõe, muitas
vezes, uma situação de miséria”. Nas zonas oeste e sudoeste reúnem-se a indústria, o
pequeno comércio, o aterro sanitário e os serviços de infra-estrutura realizados de
modo precário (Braga, 1995, p.116). Povoam, também, nessas zonas os catadores de
lixo investigados nesta pesquisa. Esses catadores desenvolvem várias e engenhosas
alternativas para garantirem o nível mínimo de sobrevivência.
O trabalho de catação desenvolve-se principalmente nas grandes cidades. O processo
de urbanização brasileira se deu com o crescimento econômico, mas sem uma
distribuição de renda eqüitativa, o que favoreceu a desigualdade e o surgimento da
cidade-paralela (a cidade “ilegal”, “espoliada”, “clandestina”), sem acesso aos direitos
urbanos e fora dos padrões de legitimidade da legislação urbanística. Aqui, é flagrante
que a remuneração da imensa maioria dos assalariados não acompanhou o aumento
da produtividade do trabalho, havendo uma deterioração dos rendimentos reais até nos
momentos de expansão econômica.
O Brasil iniciou o século XXI com aproximadamente 82% da sua população vivendo no
cenário urbano. A desigualdade no espaço urbano é um dado estarrecedor. Fortaleza,
com o índice de desigualdade igual a 0,235, comprova essa constatação.
As cidades
convivem hoje com um número crescente de favelas, cortiços e ocupações urbanas que
se estabelecem aparentemente sem uma estratégia mais global, simplesmente
respondendo a demanda pela terra para habitação, necessidade inadiável de um país
que está longe de promover uma efetiva reforma urbana, em razão do monopólio da
terra por indivíduos e empresas, em grande processo especulativo.
O que predomina no país, de forma absoluta, são os interesses empresariais por lucros,
acompanhado de um crescimento econômico feito à custa da superexploração dos
trabalhadores. Configura-se, assim, um cenário de expressão da pobreza onde não é
possível estabelecer um limite entre "incluído" e "excluído". No tocante a exclusão
social Maricato (1994, p.51) assim se expressa:
49
Não se trata de conceitos mensuráveis, mas de uma situação complexa que
envolve a informalidade, a irregularidade, a pobreza, a baixa escolaridade, o
oficioso, a raça, o sexo, a origem e principalmente a falta de voz.
Entretanto nas sociedades mais pobres e/ou desiguais, a exclusão social talvez possa
ser mais facilmente observada, sobretudo na relação entre os bem-alimentados e os
famintos. Mas à medida que as sociedades vão incorporando novas realidades nascem
necessidades adicionais de vida digna, para além do simples critério de subsistência.
Além da indicação quantitativa para a definição de exclusão, ou não, ao acesso à
educação, ao trabalho, à renda, à moradia, ao transporte e à informação, entre outros,
cresce de importância a noção de qualidade (Pochmann, 2003, p.10).
Para Escorel (1999, p.12) a exclusão social resultaria do crescimento demográfico e da
condução histórica do capitalismo que levou uma multidão sem precedentes de seres
humanos a não fazer parte da partilha dos bens sociais e da riqueza gerada pelo
desenvolvimento econômico, tecnológico e científico. A autora denomina exclusão
social a magnitude desse fenômeno.
Para Nascimento (1995), o termo exclusão social ganhou notoriedade no final da
década de 80, a partir da literatura francesa com a obra de Lenoir Les Exclues em
meados dos anos 70. No trabalho deste autor, os excluídos são os deserdados
temporários do progresso. Entretanto, os excluídos, na terminologia da última década
do século passado, não são residuais nem temporais, mas contingentes populacionais
crescentes que não encontram espaço no mercado e vagueiam pela cidade sem
emprego e muitos sem teto.
Para Virgínia Pontes (1995) o diferencial da exclusão contemporânea é a possibilidade
de criar, internacionalmente, indivíduos desnecessários à produção econômica. Para
eles não haveria, aparentemente, mais possibilidades de integração ou reintegração no
mundo do trabalho e da alta tecnologia.
Forrester (1997) constata que o trabalho está desaparecendo, perecendo. Aqueles que
poderiam distribuir o emprego consideram-no, hoje, um fator negativo, de alto preço,
50
inutilizável, nocivo ao lucro. Além de ser, também, um fator arcaico, fonte de prejuízos e
de déficits financeiros. Os malefícios dos empregos seriam tantos que sua supressão
tornou-se um dos modos de administração mais em voga, um agente essencial do
lucro. O “pensamento único”, religiosamente pregado, é centrado sobre o lucro. Os
especialistas, inclusive, garantem que nada é mais vantajoso para os negócios do que
as demissões em massa.
Na lógica capitalista prioriza-se a expansão dos negócios em detrimento da vida de
muitas pessoas, que sem função, não encontram lugar neste mundo. Os seres
humanos são classificados de supérfluos, desnecessários e até nocivos. E por essa
razão, Forrester (1997) conclui que essas pessoas seriam passíveis de extermínio, pois
uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno
número que molda a economia e detém o poder. A eliminação reduziria os custos e
aumentaria os benefícios para os balanços de governos e empresas.
Houve, sem dúvida, tempos de angústia mais amarga, de miséria mais acerba,
de atrocidades sem medidas, de crueldades infinitamente mais ostensivas;
mas jamais houve outro tempo tão frio, geral e radicalmente perigoso. (...)
Jamais o conjunto dos seres humanos foi tão ameaçado na sua sobrevivência
(Forrester, 1997, p.136).
Forrester (1997) compara, ainda, o desemprego a um fenômeno das tempestades,
ciclones e tornados, que não visam ninguém em particular, mas aos quais ninguém
pode resistir. A autora ressalta o nefasto sofrimento que o desemprego gera nos
desempregados, inclusive, pela culpabilização de sua própria situação.
Por exclusão nomeiam-se várias modalidades de miséria do mundo: o desemprego de
longa duração, o jovem da periferia, o sem domicílio e etc., ou seja, uma variedade de
situações. Nessa circunstância Castel (1997) alerta para o uso impreciso da palavra
exclusão, pois oculta e traduz, ao mesmo tempo, o estado atual da questão social. O
autor aponta os seguintes motivos da imprecisão do termo: heterogeneidade de seus
usos por designar um número imenso de situações diferentes; autonomização de
situações-limite que só têm sentido quando colocadas num processo; não se interroga
sobre os mecanismos que são responsáveis pelos desequilíbrios atuais; aplicação de
políticas de inserção pensadas como estratégias limitadas no tempo; focalização da
51
ação social; redução da questão social à questão da exclusão. Devido a essas
imprecisões Castel reforça o rigor e o controle do termo exclusão.
Os excluídos para Castel são os indivíduos que não participam de nenhuma maneira
nas relações de produção da riqueza e do reconhecimento social. O excluído é um
desfiliado cuja trajetória é feita de uma série de rupturas em relação a estados de
equilíbrios anteriores mais ou menos estáveis, ou instáveis (1997).
Castel, ao tentar melhor definir os conceitos de exclusão social, realiza na verdade um
meio termo entre as explicações tradicionais relativas ao uso do paradigma das classes
sociais e outras que saberiam apontar para a questão cultural e dos valores. Castel fala
de "desenraizamento" como fenômeno fundamental no começo do processo de
exclusão, na falta de acesso ao patrimônio e ao trabalho regulado.
O aumento da pobreza do conjunto da população vem contribuindo para o crescente
número de catadores em todo o país. O lixo tornou um caminho de sobrevivência para
os excluídos do mundo do trabalho. Em Fortaleza não é diferente. Entretanto, o
acréscimo desse segmento populacional vem contribuindo para organização dos
grupos de catadores e, por conseqüência, conquista de melhores condições de trabalho
e vida.
A precarização do trabalho para Singer (1999) engloba tanto a exclusão de uma
crescente massa de trabalhadores do gozo de seus direitos legais como a consolidação
de um ponderável exército de reserva e o agravamento de suas condições. Santos
(1999) afirma que o resultado do desemprego leva a uma flexibilização dos sistemas
jurídicos e das leis trabalhistas do Estado, permitindo novas relações de trabalho. A
autora reflete sobre as perspectiva de um mundo sem emprego.
Como podemos, diante do cenário atual, criar condições para estabelecer a igualdade
na sociedade? Efetivar a conquista da liberdade conciliada com a igualdade na
sociedade demanda, a meu ver, uma série de transformações nas políticas públicas:
52
políticas sociais universais; transparência no orçamento; estabelecimento de renda
mínima; e uma democracia participativa.
1.3. A construção da participação
Compreender a luta da população pobre por direito e dignidade, ou seja, por sua
"inclusão" na sociedade, remete ao estudo da categoria participação. Aqui, concebemos
como Ammann (1978) a participação social como um processo que resulta
fundamentalmente da ação das camadas sociais em três níveis diferenciados: a
produção de bens e serviços; a gestão da sociedade; o usufruto dos bens e serviços
produzidos e geridos nessa sociedade.
Os movimentos sociais urbanos têm sido uma das principais formas de organização da
população brasileira para a expansão de seus direitos sociais. Investigar a participação
popular na criação de novas alternativas de sobrevivência é um dos objetivos da
pesquisa.
Nos diversos discursos atuais nota-se uma tendência para intensificação dos processos
participativos, tanto nos setores progressistas, como nos setores tradicionais. A
participação, do ponto de vista dos progressistas, facilita o crescimento da consciência
crítica da população, fortalece seu poder de reivindicação e a prepara para adquirir
mais poder na sociedade. Já nos setores tradicionais ela mantém uma situação de
controle de muitos por alguns. Mas a participação vai além. Como afirma Bordenave,
ela está por natureza inseparavelmente ligada ao homem.
A participação é inerente à natureza social do homem, tendo acompanhado sua
evolução desde a tribo e o clã dos tempos primitivos, até as associações,
empresas e partidos políticos de hoje. Neste sentido, a frustração da
necessidade de participar
constitui uma
mutilação
do
homem
social.(Bordenave, 1992, p.17).
Para Souza (2004, p. 334) a participação é um direito inalienável. Ele destaca a
importância da participação: primeiro, porque uma ampla participação pode contribuir
para minimizar certas fontes de distorção (que inclusive no Brasil está insustentável
53
com o caso de denuncias de corrupção e mensalão praticados no governo); segundo,
pelo fato de que quando o cidadão participa de uma decisão, sente-se muito mais
responsável pelo seu resultado. Para o autor abrir mão desse direito é colocar-se numa
posição de tutela, como uma criança perante um adulto. A não participação seria
infantilizar o cidadão.
Marcelo Lopes Souza (2004, p.202) admite tratar o grau de abertura para com a
participação popular com o auxílio da escala de avaliação. Essa escala de avaliação foi
inspirada na clássica “escada da participação popular” de Sherry Arnstein (1969), com
suas oito categorias: parceria, poder delegado e controle cidadão; apaziguamento,
consulta e informação; manipulação e terapia. Entretanto, para o autor tornou-se
necessário modificar algumas categorias da classificação de Arnstein. As modificações
são apresentadas na figura abaixo.
Quadro 1
DA NÃO-PARTICIPAÇÃO À PARTICIPAÇÃO AUTÊNTICA: UMA ESCALA DE
AVALIAÇÃO
8
7
6
5
4
3
2
1
AUTOGESTÃO
DELEGAÇÃO DE PODER
PARCERIA
COOPTAÇÃO
CONSULTA
INFORMAÇÃO
MANIPULAÇÃO
COERÇÃO
Fonte: Souza, 2004, p.207.
A partir da escala de participação, citada acima, Souza estabelece uma diferenciação
do que é não-participação, pseudo-participação e participação autêntica, ou seja,
verdadeira, em oito categorias distintas. Observando o quadro 1 as categorias 1 e 2 se
enquadram em situações de não-participação, as de números 3, 4 e 5 são graus de
pseudo-participação, e finalmente as 6, 7 e 8 denotam graus de participação autêntica.
Para uma melhor compreensão dessa escala resumirei sinteticamente as definições
dadas por Souza (2004, p.203-5) para cada categoria:
54
1. Coerção: situações de clara coerção serão encontradas, normalmente, em regimes
de exceção como os ditatoriais ou totalitários, nas quais a própria democracia
representativa não existe ou deixou de existir;
2. Manipulação: corresponde a situações nas quais a população envolvida é induzida a
aceitar uma intervenção, mediante, por exemplo, o uso maciço da propaganda ou de
outros mecanismos;
3. Informação: neste caso, o Estado disponibiliza informações sobre as intervenções
planejadas, mas dependendo de fatores como cultura, política e grau de transparência
do jogo político, as informações serão menos ou mais completas, menos ou mais
”ideologizadas”.
4. Consulta: o Estado não se limita a permitir o acesso a informações relevantes, sendo
a própria população consultada. O problema é que não há qualquer garantia de que as
opiniões da população serão, de fato, incorporadas. Argumentos técnicos são muitas
vezes invocados para justificar a não incorporação das sugestões da população;
5. Cooptação: a cooptação de uma coletividade pode se dar de várias formas. Em
sentido mais específico, deseja-se fazer referência, aqui, à cooptação de indivíduos
(líderes populares, pessoas-chave) ou dos segmentos mais ativos (ativistas),
convidados para integrarem postos na administração ou para aderirem a um
determinado “canal participativo” ou uma determinada “instância participativa”. A
diferença em relação à consulta é que, nesse caso, instâncias permanentes são
criadas. O grande risco dessa categoria, classificada de pseudo-participação, é o de
domesticação e desmobilização ainda maiores da sociedade civil;
6. Parceria: Estado e sociedade civil organizada colaboram, em um ambiente de
dialogo e razoável transparência, para a implementação de uma política púbica ou
viabilização de uma intervenção;
7. Delegação de poder: vai além da parceria, pois aqui o Estado abdica de toda uma
gama de atribuições, antes vistas como sua prerrogativa exclusiva, em favor da
sociedade civil. A parceira e a delegação de poder consistem em situações de cogestão entre Estado e sociedade civil;
8. Autogestão: na prática, a delegação de poder é o nível mais elevado que se pode
alcançar nos marcos do binômio capitalismo e democracia representativa. Lograr a
55
autogestão pressupõe, a rigor, um macrocontexto social diferente em que a sociedade
seja regida com autonomia por seus cidadãos.
A palavra autonomia que vem do grego autonomia que significa “dar-se a si próprio a
sua própria lei”. Para Souza (2004, p.175) uma sociedade autônoma significa uma
sociedade na qual a separação institucionalizada entre dirigentes e dirigidos foi abolida,
com isso dando-se a oportunidade de surgimento de uma esfera pública datada de
vitalidade e animada por cidadãos conscientes, responsáveis e participantes.
Bordenave (1992), assim como Souza, considera a autogestão o grau mais alto de
participação. Nesse processo o grupo determina seus objetivos, escolhe seus meios e
estabelece os controles pertinentes sem referência a uma autoridade externa.
É importante observar a influência da estrutura social sobre a participação. O fato de
nossa sociedade estar estratificada em classes sociais e com interesses antagônicos,
leva-nos a questionar se uma estrutura como a nossa favorece a participação, partindo
do pressuposto, que só se participa realmente quando se está entre iguais. Desta
forma, a participação será sempre uma guerra a ser travada para vencer a resistência
dos detentores de privilégios.
Schumpeter (1979), na defesa da democracia no liberalismo propõe uma teoria da
democracia que prima pela supremacia da competição, entre as pessoas, pela
liderança política, e não mais nas decisões tomadas pelo eleitorado. O autor discorre
uma série de implicações para distanciar a participação popular: ausência de um bem
comum, ao fato de diferentes indivíduos e grupos darem uma significação diferente ao
que é bem comum; inexistência do consenso; presença de elementos extra-racionais e
irracionais no comportamento humano sob influência da aglomeração. Neste modelo o
povo apenas elege um governo:
... assumimos agora a visão de que o papel do povo é produzir um governo, ou
melhor, um corpo intermediário que, por sua vez, produzirá um governo ou um
executivo nacional. E definimos: o método democrático é aquele acordo
institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos
56
adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da
população. (Schumpeter, 1979, 337)
O autor destaca, através dos estudos sobre a psicologia social, comportamentos que
evidenciam na democracia da doutrina clássica a presença de elementos extraracionais e irracionais. O comportamento humano sob influência da aglomeração
assume características de “reduzido senso de responsabilidade, um nível mais baixo de
energia de pensamento e uma sensibilidade maior às influências não-lógicas”.
Desta forma, na democracia liberal o cidadão é “nocivo”, “perigoso” ao processo político
interno e externo devido ao reduzido senso de responsabilidade e à ausência de desejo
efetivo explicados pela ignorância do cidadão comum e sua falta de discernimento
nessas questões.
Diferentemente do autor anterior, Borja, tem a seguinte definição: "A participação é um
método de governo, em estilo de fazer política no Estado e na sociedade, que supõe
cumprir previamente ou ao mesmo tempo todo o conjunto de requisitos, especialmente
a racionalização e a descentralização do Estado."(1988, p.15)
A participação dos cidadãos, diferentemente da adotada na democracia liberal, não
pode se limitar às eleições e à relação com os partidos, seu objetivo principal é o de
facilitar, tornar mais direto e mais cotidiano o contato entre os cidadãos e as diversas
instituições do Estado. Possibilitar, também, que as instituições levem mais em conta os
interesses e opiniões daqueles antes de tomar decisões ou de executá-las. A
participação se baseia em uma cidadania ativa e na existência de uma rede o mais
densa possível de organizações sociais de todo o tipo.
Borja (1988) aborda que a não participação social dos cidadãos é motivada, muitas
vezes, pelo fato dos mesmos não saberem como, onde ou para quê participar. É
motivada também pela falta de confiança da sociedade nas instâncias públicas já que a
participação requer uma tripla credibilidade do Estado: que seja considerado
democrático, honesto
e eficaz,
isto é, representativo em todos os níveis,
57
descentralizado e defensor das liberdades. A desinformação e a falta de credibilidade
no Estado, por parte da sociedade, alimentam situações de não participação.
Gondim (1990), apoiando-se em Borja, considera que o sistema eleitoral não garante
nem a representatividade social imediata, nem a competência funcional dos eleitos, e
ainda estabelece uma grande distância entre estes e os eleitores. Para a autora, no
Brasil, o debate sobre a participação popular na Administração Pública acompanhou o
processo de "abertura" do sistema político, iniciado em fins da década de 70. A
tendência predominante, pelo menos em nível de discurso, tem sido reconhecer a
necessidade de promover a participação política direta dos cidadãos como condição
para se chegar a uma sociedade verdadeiramente democrática. Contudo, pouco se tem
avançado quando se trata de definir como essa participação deve se dar, isto é, através
de que mecanismos e sob que condições. Assim, um entrave do discurso é
operacionalizar a participação.
Não basta à sociedade prover a existência de mecanismos tais como o voto, a
representatividade, o plebiscito, a associação etc. Urge que a população esteja
informada, (...) Somente informada pode uma população fazer julgamento claro
sobre a validade das oportunidades e dos instrumentos postos à sua
disposição, utilizá-los, ou, inclusive, rejeitá-los, se os considera ineficientes ou
inadequados (Ammann, 1978, p.25).
Nos estudo de Souza (2004) e de Ellen Wood (2003), ambos para discutem a categoria
participação retornam a reflexão sobre a democracia, ou seja, sobre as diferenças entre
democracia representativa e democracia direta. Embora com suas peculiaridades os
autores sugerem, ao meu ver, que participação de fato só se efetivaria numa
democracia direta.
Souza (2004, p 327) afirma que a representação, diferentemente da delegação,
significa alienar poder decisório em favor de outrem, seria como entregar um cheque
em branco assinado para algum desconhecido, a não ser pelo nome, número de
candidatura e algumas intenções ditas em palanques. O autor parafraseia Rousseau
acerca da liberdade dos ingleses: a representação equivale a uma liberdade fugaz,
exercida um dia a cada quatro anos. Ele ainda afirma que as objeções contra a
democracia teriam juízo de valor elitista e antipático ao envolvimento dos “de baixo”.
58
Ainda que os discursos atuais não desqualifiquem a democracia direta, argumenta-se
que ela é inviável e elaboram uma lista interminável de justificativas.11
Eleen Wood (2003) é mais radical ao propor que a democracia não é possível numa
sociedade capitalista. A autora critica a democracia dos modernos, inglesa e americana,
em que a desigualdade e a exploração socioeconômica coexistem com a liberdade e a
igualdade cívica. E conclui que talvez seja o senhorio e não a cidadania o conceito
constitutivo da democracia moderna. Desta forma, para a autora a democracia não
encontrou raízes no capitalismo moderno. Nem no parlamentarismo inglês, nem no
presidencialismo americano. A burguesia defende a propriedade privada e qualifica
quem é o cidadão: o proprietário. Assim, a democracia torna-se antítese do capitalismo.
Com o sufrágio universal, após a Segunda Guerra Mundial, desvalorizou-se mais a
condição da cidadania. As próprias constituições tornam-se mais institucionais do que
democráticas. Seu maior objetivo é controlar a sociedade. Wood (2003) exemplifica a
Constituição dos Estados Unidos que “[...] não foi um documento de um demos livre,
mas dos próprios senhores que afirmaram privilégios feudais e a liberdade da
aristocracia tanto contra a coroa quanto a multidão popular”. Na definição americana de
democracia o fortalecimento do governo central, concomitante a diluição do poder
popular, é a principal característica.
Ellen Wood (2003), representante da democracia na nova esquerda12, defende a
democracia como um “caminho” para diminuir as desigualdades. “A democracia contra
o capitalismo” superaria a desigualdade e a exploração. Essa utopia supera a análise
de luta de classe e propõe uma democracia participativa e solidária, ou seja, uma
democracia direta. Democracia na qual a sociedade seja construída por cidadãos
11
Ver Souza, 2004, p. 328-330.
A teoria da democracia, na nova esquerda, inicia-se na década de 60 e se consagra na década de 70. Uma
esquerda diferente, não mais operária, mas acadêmica. Ela questiona algumas teorias marxistas. Althusser, um dos
seus mentores, é denominado no meio acadêmico de marxista político, por acreditar que a partir da participação
consegue-se transformar a sociedade.
12
59
conscientes, responsáveis e participantes. Sociedade utópica vislumbrada na
sociedade hipotética de Souza (2004, p.332):
Em uma hipotética sociedade autônoma, autogestionária, a idéia de
participação popular mudam os próprios sentidos de “povo” e “participação”. O
povo não é mais aquilo que, se ideologicamente abrange todos os que vivem
dentro de um território, especialmente os nacionais de um dado país,
politicamente se contrapõe a uma elite dirigente: não havendo mais assimetrias
estruturais de poder e instituições garantidoras dessas assimetrias, “povo”
passará a significar a totalidade do corpo de cidadãos, sem a distinção entre
“cidadãos de primeira classe” e cidadãos de “segunda” ou de “terceira”.
Alcançar uma sociedade autônoma demanda luta, esforço e experiências. Daí a
Importância de se valorizar também as pequenas conquistas ensejadas pelos grupos
populares nas associações e cooperativas. Na pesquisa com os catadores demonstro
que a participação e cooperação dos grupos é um exercício de autonomia, como
também, uma alternativa ao mundo sem emprego. Como diz Santos (1999) um mundo
sem empregos não necessariamente significa um mundo sem trabalhadores.
No Brasil, a situação sócio-econômica é marcada pelo desemprego e sobretudo pelo
subemprego e exclusão. Enquanto a política é marcada por corrupções, fraudes e
incapacidade de solucionar os graves problemas da população. A participação, ao meu
ver, é um “caminho” para garantir melhores condições de vida. No setor econômico
Santos (1999) evidencia que uma cooperativa de trabalho, se construída dentro dos
preceitos cooperativistas, pode tornar-se uma alternativa viável e flexível social e
economicamente, dando sobrevida ao trabalhador e/ou empresário frente à lógica
perversa do mercado.
No próximo capítulo discorrerei sobre as conquistas alcançadas pelos grupos de
catadores que tentam se organizar através da autogestão na cidade de Fortaleza. A
divulgação das atividades em torno dos catadores nesta dissertação é minha forma de
valorizar a organização popular.
60
Galpão dos catadores da ACORES (Serrinha).
Galpão dos catadores do Parque Santa Rosa.
Pesquisadora ao lado de uma entrevistada.
61
E a História humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos
gabinetes presidenciais.
Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de
subúrbios, nas casas de jogos, nos colégios, nos prostíbulos, nas usinas, nos
namoros de esquina. Disso eu quis fazer minha poesia, dessa matéria humilde
e humilhada de vida obscura e injustiçada.
Porque o canto não pode ser uma traição à vida. E só é justo cantar se o nosso
canto arrasta consigo as pessoas e coisas que não tem voz.
(Ferreira Gullar)
62
CAPÍTULO II
OS CATADORES E SUAS TRAJETÓRIAS
Como resultado de uma emocionante e enriquecedora experiência apresento, neste
capítulo, um breve relato das organizações envolvidas com a problemática do lixo e um
conjunto de entrevistas sobre a história de vida dos catadores. Depoimentos que
constituem além da trajetória de vida o exercício da participação na autogestão de dois
grupos de catadores: ACORES e Parque Santa Rosa.
Na caminhada de pesquisadora iniciei meu trajeto no Fórum Lixo & Cidadania do
Ceará, hoje, o maior espaço de discussão da problemática do lixo da sociedade civil de
Fortaleza, por essa razão explano um breve histórico desse fórum. Dedicar-me-ei, no
segundo ponto, ao processo de gestação dos dois grupos acompanhados durante todo
o período da pesquisa. No último tópico chegarei nas falas, nas narrações dos próprios
catadores de lixo sobre seu cotidiano nas ruas da cidade e no grupo que participa.
O universo das entrevistas foi composto por três catadores da ACORES, dois catadores
de depósitos - que já participaram da ACORES - e quatro do Parque Santa Rosa. Nas
reuniões mensais do Fórum Lixo e Cidadania do Ceará estabeleci o primeiro contato
com os catadores. Após minha apresentação comecei as visitas in loco, cujo objetivo
era intensificar os contatos com os catadores na sua área de convivência e, assim,
vencer aquela fase que podemos chamá-la de estranhamento. Essa etapa é de suma
importância tanto no sentido da minha aceitação por parte dos catadores, como
também de uma experiência mais próxima do cotidiano dos entrevistados.
A pesquisa oportunizará aos catadores de lixo falar sobre si mesmos, como eles
encaram a sociedade e a visão que têm de sua participação como sujeitos. As
entrevistas, em sua versão transcrita, apresentarão elementos básicos para a
compreensão do agir-pensar-sentir do catador.
63
2.1. Fórum Lixo & Cidadania: expressão dos catadores.
Os Fóruns, na sociedade brasileira, vêm se constituindo em espaços de experiências
participativas da sociedade civil. As estruturas menos formalizadas e mais abrangentes
possibilitam uma abertura à participação popular. Para Alba Pinho Carvalho (2001, p.
12) os Fóruns são espaços de construção de esfera pública e instrumentos efetivos de
democratização. A autora os definem como:
Espaços específicos, peculiares da sociedade civil onde se constroem
estratégias de luta, onde se constroem alianças em torno de pautas coletivas;
[...] momento de auto-crítica da sociedade civil quanto a sua participação;
espaço de construção da participação da sociedade civil para dar concretude ao
que foi legalmente conquistado.
O Fórum Lixo & Cidadania do Ceará, desde o ano de 2001, funciona como um espaço
de discussão envolvendo dezenove entidades não governamentais, treze instituições
governamentais, quatro instituições empresariais, quatro fóruns e três universidades,
ligadas à problemática do lixo, em especial, nos aspectos ambientais, educacionais,
organizacionais e do desenvolvimento da cidadania.
O Fórum recebeu e recebe um apoio vital da Igreja Católica através da Cáritas
Arquidiocesana de Fortaleza13, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil – CNBB. A presidência do Fórum é dirigida pela representante da Cáritas Cristina
França. Tanto a Cáritas como o Fórum funcionam na mesma sede localizada na rua
Sobral, sem número, no sub-solo da Catedral Metropolitana de Fortaleza.
A Igreja Católica começou a engajar-se nas lutas populares de Fortaleza com mais
intensidade a partir do golpe militar de 1964. A intervenção militar desmobilizou o
movimento popular, e a Igreja, através das CEB's e de outros setores pastorais como
Pastoral Urbana, Cáritas, passou a atuar de forma mais organizada nos bairros da
periferia da cidade.
13
A Cáritas tem a missão de promover e animar o serviço de solidariedade. A entidade, através de suas linhas de
ação, promove diversificados programas para consolidação da democracia, resgate da cidadania, efetivação da
participação popular e organização de grupos. Cito os atuais Programas executados: Geração de Trabalho e Renda,
Segurança Alimentar; Criança e Adolescente, Catadores(as) de Resíduos Sólidos; Gestão Institucional, Cultura da
Solidariedade, Formação de Agentes de Cáritas e Lideranças Comunitárias.
64
No final da década de 70, o movimento de bairro na cidade de Fortaleza conquistou,
paulatinamente, um papel destacado no seio do movimento popular. Os processos de
organização e luta que realizavam, praticamente isolados, nesse período, vão
adquirindo, além de um certo nível de articulação, a presença de vários setores da
sociedade civil. Os movimentos de bairro em Fortaleza se identificavam, principalmente,
por três eixos aglutinadores: Federação de Associações de Bairros e Favelas de
Fortaleza (FBFF), sob a força hegemônica do Partido Comunista do Brasil (PC do B);
União das Comunidades da Grande Fortaleza (UCGF), as quais se relacionavam
politicamente com o Partido Revolucionário Operário (PRO) e com segmentos do PT;
Comunidades Eclesiais de Base (CEB's), que articulam o conjunto das CEB's existentes
nos bairros periféricos da cidade (BRAGA, 1995).
A participação das CEB’s nos movimentos de bairros corroborou a articulação de vários
movimentos isolados. As CEB’s, entretanto se diferenciavam dos dois movimentos
citados acima. Sua ação se pautava na fé.
A ação das CEB's constituía um trabalho educativo baseado na fé que estava
marcado por uma prática sistemática nas comunidades, onde o processo de
conscientização e reflexão era definido a partir da “cultura do povo”. (Braga,
1995, p.145-6).
A Igreja Católica do Ceará, inserida no meio popular, cria em 1979 a Pastoral Urbana
como uma ação ante as injustiças sociais do contexto urbano. Numa mesma ação de
assessoria e assistência jurídica a grupos e pessoas com problemas relativos à terra, a
Igreja cria o CDPDH - Cento de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos. A Cáritas
Diocesana também cumpriu um papel importante na luta pela moradia nesse período,
com recursos financeiros das Igrejas da Alemanha e Suíça, assim como da Cáritas
Brasileira.
Embora no período atual a Igreja Católica tenha se voltado mais para o aspecto
doutrinário, alguns grupos continuam fomentando a organização popular. Um exemplo
dessa atuação é a Cáritas Arquidiocesana que preside e articula o Fórum Estadual Lixo
&
Cidadania
cujos
objetivos
constados
no
regimento
interno
são:
discutir
permanentemente a temática dos resíduos sólidos, meio ambiente e cidadania;
65
estimular e apoiar a organização dos catadores; apresentar sugestões, críticas e
denúncias relacionadas às políticas de gestão dos resíduos sólidos. Atualmente o
objetivo mais perseguido é o incentivo à formação de associações e/ou cooperativas
junto aos grupos de catadores. Para alcançar esse objetivo o Fórum organizou um
curso para formar cooperativas com os catadores. Os encontros são semanais e
acontecem no Seminário da Prainha. O custo das passagens e do lanche é
disponibilizado pela Cáritas.
Entretanto, desde a sua organização, o FEL&C do Ceará busca fomentar a organização
dos catadores em grupos. Nesse intuito acompanha dezesseis grupos de catadores
localizados nos municípios de Fortaleza, Caucaia e Maracanaú: catadores da Serrinha,
através da ACORES; catadores do Parque Santa Rosa, através da Irmandade do Bom
Pastor e Paróquia do Mondubim; catadores da Praia do Futuro, através do Projeto Hora
de Reciclar; catadores do Pirambu, através da SOCRELP; catadores da Aldeota,
através do Centro Comunitário Dom Lustosa; catadores do Genibau, através do Centro
Comunitário Dom Helder Câmara; catadores do Conjunto Industrial, através da
ASMOCI; catadores do Mutirão Vida Nova, através da COOMVIDA; catadores da
Pajuçara, através do Movimento EMAUS; catadores de Caucaia, através da Prefeitura
Municipal; catadores do Quintino Cunha, através da congregação religiosa da Paróquia
São Pedro e São Paulo; catadores do Tancredo Neves, através da Pastoral Social;
catadores do Bonsucesso, através da Associação Santa Edwirges; catadores do Otávio
Bonfim, através da paróquia Nossa Senhora das Dores; catadores do Barroso, através
da Pastoral Povo da Rua; catadores da Usina de Triagem do Jangurussu.
O FEL&C reúne-se regularmente às últimas quartas-feiras de cada mês no Seminário
da Prainha, situado no Centro, avenida D. Manoel número 01. Além das reuniões
mensais com as entidades, o Fórum realiza as plenárias mensais itinerantes que
acontecem a cada mês em um dos bairros em que se concentram os catadores. As
plenárias têm possibilitado o fortalecimento dos grupos, a elevação da auto-estima dos
catadores de lixo e a valorização da categoria pela sociedade. Uma das maiores
novidades das plenárias foi a construção de uma bolsa de valores para os diferentes
66
materiais e a divulgação entre os grupos das melhores oportunidades de negócios.
Desta forma, o Fórum vem se consolidando como espaço de organização e
protagonismo dos trabalhadores do lixo.
O poder público municipal de Fortaleza na gestão do antigo prefeito, o Sr. Juraci
Magalhães, foi totalmente omisso no trato com catadores de lixo de Fortaleza (assunto
do próximo capítulo). O descaso é tanto que se desconhece o número preciso de
catadores da cidade, mas percebe-se que esse número aumenta a cada dia. Embora
não existam dados oficiais sobre o número de catadores, o FEL&C, infere que mais de
5.000 pessoas tem a catação como a principal atividade profissional.
O Fórum também é um espaço de pressão sistemática da sociedade civil sobre o poder
público. No ano passado (2004), ano eleitoral, o Fórum proporcionou debates com
alguns candidatos à prefeitura de Fortaleza: Luizianne Lins (PT), Inácio Arruda (PCdoB)
e Marcelo Silva (PV). Uma carta de reivindicações foi entregue aos candidatos citados.
Dentre algumas propostas destaco duas: que a Prefeitura Municipal implante
progressivamente a coleta seletiva porta a porta, tendo como ponto de partida que cada
regional conte com uma área piloto; que o destino a ser dado a estes materiais seja a
doação às cooperativas e associações de catadores existentes ou que venham a se
formar.
O Fórum juntamente com a Cáritas trava uma luta para a organização dos catadores de
Fortaleza com efetiva participação.
Na proposta conceitual de Ammann (1978) as
associações representam um instrumento que pode ou não viabilizar a participação.
Outro fator que facilita a participação social registra-se na razão direta da autonomia e
na razão inversa da dependência de uma dada sociedade. A autonomia dos catadores,
em relação aos sucateiros, poderia oferecer melhores condições à efetivação da
participação, ao permitir que o planejamento e as resoluções das atividades sejam
definidos pelos seus membros.
67
O apoio de entidades não-governamentais e governamentais é imprescindível à
organizações de grupos populares em associações, logo que, existe uma gama de
critérios formais e políticos para efetivar uma associação. Pedro Demo (1996, p.117)
descortina pelo menos quatro critérios de qualidade política de associação:
representatividade, legitimidade, participação da base, auto-sustentação. A associação
só existirá efetivamente se contar com esses critérios. Para o autor, ser membro de
uma associação significa genuinamente ser cidadão.
Demo (1996) discorre sobre a constituição de associação: uma que começa no centro,
reunindo um pequeno grupo já consciente e decretando o surgimento de uma
associação, que apressadamente se define como representativa de toda a classe.
Depois, convida algumas pessoas para ser membros da associação, que facilmente
não passarão de meros sócios. Outra que nasce da união de um grupo pequeno com
interesses comuns, relativamente homogêneo, organizado, e politicamente consciente,
onde se exerce um estilo participativo de poder. Na criação desta última associação o
processo de construção possuiria características comunitárias.
O FEL&C, no intuito de incentivar e formalizar a união de grupos pequenos, apóia com
assessoria e recursos financeiros, advindo de projetos, a formação de associações e
cooperativas. Como já relatei acompanho as reuniões do Fórum, desde o final do ano
de 2003. Durante esse período observei que o catador aproveita o espaço das reuniões
como canal de expressão dos seus sentimentos e reivindicações. No tópico seguinte
mostro dois desses grupos que são acompanhados pelo Fórum.
2.2. Conhecendo os grupos de catadores.
Fortaleza, a quinta cidade mais povoada do país, está dividida em seis áreas
administrativas que têm a denominação de Secretarias Executivas Regionais (SERs).
A associação ACORES situa-se na SER IV, no bairro da Serrinha, rua Frei Alemão,
número 210. A organização dos catadores do Parque Santa Rosa, localiza-se na SER
V, rua 7, s/n, loteamento Santa Terezinha, no bairro Santa Rosa. O IDH dos dois bairros
68
é um dos mais baixos de Fortaleza. Não é fora de contexto que as associações estejam
localizadas no lado oeste/sudeste da cidade.
2.2.1. Parque Santa Rosa
No limiar do ano 2000 um grupo numeroso de mulheres do bairro Parque Santa Rosa
vivia nas piores condições de vida possíveis: catavam o lixo e o vendiam a preços
baixíssimos aos “deposeiros”14 ou sucateiros. O subemprego predomina na maioria dos
catadores que são visualizados nas ruas das cidades. O “deposeiro” fornece o carrinho
para a catação e os catadores são obrigados a venderem todo o material para ele ao
preço que lhe convém.
A organização dos Catadores Parque Santa Rosa teve início a partir da união de um
grupo de mulheres catadoras, que há quatro anos se reúne, semanalmente, neste
bairro, incentivado pela pastoral da Igreja Católica do Mondubim. A organização partiu
da religiosa Elizabeth que faz parte da Congregação do Bom Pastor, cujo alvo de suas
ações pastorais é o trabalho com mulheres. A freira atormentava-se com a situação de
algumas mulheres que participavam da Igreja e viviam numa extrema pobreza,
obrigadas a trabalharem na catação. Uma vida muito sofrida, mormente pela idade
avançada.
As reuniões semanais aconteciam no espaço da Igreja do Mondubim, entre o período
de 2000 a 2003. Das mulheres que iniciaram, algumas permanecem no grupo: Lourdes,
Chaguinha, Melândia, Elza... No início, o objetivo maior era trabalhar a evangelização,
mas com a socialização das experiências relatadas pelas participantes foi descortinado
um universo de ações para a equipe organizadora. Os encontros aconteciam todas as
quartas-feiras no salão paroquial.
14
Os catadores denominam deposeiros os donos de depósitos que compram, guardam e depois vendem para a
indústria de material reciclável.
69
Durante três anos o número de membros sempre oscilava, mas a solidez era verificada
através do envolvimento dos participantes e das conquistas alcançadas. O grupo
ampliou-se ao acolher homens e por ter representação no Fórum Lixo & Cidadania do
Ceará. O catador, Evandro, membro desse grupo, foi o primeiro a participar de um
grande evento nacional, o Congresso Nacional dos Catadores em Brasília, em 2001.
A Cáritas Arquidiocesana de Fortaleza fomentou a produção dos catadores
colaborando com a sobrevivência material, mas principalmente incentivando a
participação, possibilitando a consolidação da organização de um grupo imerso num
“mar” de exclusão. O primeiro passo foi ceder oito carrinhos feitos de geladeira para os
catadores do Parque Santa Rosa conseguirem sua autonomia. O grupo, juntamente
com a Cáritas Arquidiocena e a Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro do
Mondubim, organizou também um “livro de ouro” que passou pela Assembléia
Legislativa, mas o apurado foi muito baixo. A maior colaboração financeira veio da
aprovação de dois projetos enviados ao Banco BNB e à Província da Companhia de
Jesus Centro Leste. Com o financiamento foi possível comprar o terreno, construir o
galpão, adquirir os equipamentos necessários e possuir um pequeno capital de giro.
No percurso de trabalho e organização muitos desanimaram, outros se desentenderam,
mas aqueles que perseveravam, fortaleceram o grupo, lutaram e o resultado foi a
concretização do sonho: a construção de um galpão “um cantinho onde eles mesmos
pudessem pegar o material, juntar e vender para ganhar um pouquinho melhor”15. No
dia 15 de março de 2004 os catadores começaram a trabalhar efetivamente no Galpão.
Além da construção do espaço para o armazenamento do material reciclável, os
catadores compraram, também, carrinhos novos e equipamentos como balança e
prensa.
Antes da construção do galpão os catadores realizaram um mutirão para a limpeza do
terreno. Este espaço foi nomeado de Galpão de Estocagem e Seleção de Materiais
Recicláveis, inaugurado no dia 24 de abril de 2004. As reuniões semanais acontecem,
15
Comentário da Sra. Musa, administradora do Galpão em entrevista cedida no dia 25/11/04.
70
agora, no espaço próprio dos catadores. Quem visita o galpão é surpreendido com a
limpeza e organização do espaço (Cf anexo III). Uma vez por semana eles realizam o
mutirão da limpeza. Foram organizados dois grupos, de forma que cada grupo passa
quinze dias entre um mutirão e outro.
Os catadores deliberaram, ainda, uma nova nomenclatura para o grupo: Agentes
Ambientais do Parque Santa Rosa. Um processo no qual Regina Manoel16 denominou
reclassificação, ou seja, esse sujeito transformou-se de catador de lixo em catador de
material reciclável – um trabalhador. Essa reclassificação possibilitou o aumento da sua
auto-estima e o respeito da sociedade.
Hoje o grupo prepara-se para uma nova fase, uma nova conquista, a formalização da
cooperativa. Durante todo o primeiro semestre de 2005 foi discutido e votado o estatuto.
Contatou-se com vários profissionais, advogados, contadores e sociólogo para
assessoria técnica. Muitos catadores tiveram que tirar documentos tais como:
identidade, CPF, título de eleitor e carteira de reservista.
Novos membros foram
integrados ao grupo, que recebeu também nova nomenclatura, COOPERAV –
Cooperativa de Agentes Ambientais Rosa Vírginia. Vinte catadores compõem essa
nova cooperativa que realizou sua primeira eleição no dia 01 de julho de 2005 para os
cargos de presidente, tesoureiro, fiscal e suplente.
As mudanças e os desafios atravessados pelo grupo na formação da cooperativa - seja
na intensificação dos conflitos, devido ao processo eleitoral, seja no aumento das novas
dificuldades financeiras, pois todos catadores terão que pagar o INSS -, não esmoreceu
nos catadores o sonho e o desejo de que a vida vai melhorar.
2.2.2. Associação ACORES
O mesmo processo de reclassificação foi verificado com os catadores da Serrinha. Na
reclassificação eles se nomearam de Coletores. Entretanto a construção da entidade foi
16
Manoel apud Mota, 2003, p. 29.
71
muito diferente. A senhora Nilda, no final da década de 1990, foi presidente de uma
associação dos moradores do bairro. No ano de 2000 ela foi convidada, enquanto líder
comunitária, a participar de uma reunião sobre reciclagem realizada no Centro
Comunitário Dias Macedo.
Na ocasião da reunião, a Sra. Nilda comunicou que trabalhava com reciclagem,
juntamente com os seus filhos. Ela foi informada da proibição do trabalho infantil e
convidada para uma reunião na sede da Secretaria do Trabalho e Ação Social do
Estado, sobre o Projeto Cooperar. A partir do incentivo do poder público ela formou um
grupo de cinco pessoas. Como ela mesma diz “eu acatei essa idéia e trouxe pra cá”.
No dia 21 de fevereiro de 2002 começou a funcionar a Associação Ecológica dos
Coletores de Material Reciclável da Serrinha e Adjacências (ACORES). Através da
parceria com o governo estadual, a associação recebeu uma verba de 24 mil reais para
comprar o terreno e construir o espaço físico. Receberam, também, os carrinhos e
fardamentos. Neste período foram beneficiados dez catadores.
A mudança na equipe do governo no ano de 2002 trouxe conseqüências desastrosas
para a associação. Sem o apoio do Estado a associação ficou sem o capital de giro.
Por causa da fragilidade relacional do grupo a rotatividade dos catadores é intensa.
Durante o trabalho de campo era verificado, em todas as visitas, um número diferente
de catadores, o que dificultou muito o levantamento do perfil e a realização de
entrevistas.
Independente da intenção do grupo e da sua líder, a intervenção do Estado, na criação
e composição da associação, propiciou uma alienação detectada também no trabalho
de Dias (1982, p. 91) “O caráter histórico da chamada alienação demonstra com grande
eloqüência, a ‘necessidade’ da figura do ‘chefe’ em contraponto à assunção plena da
prática coletiva no processo de tomada de decisões”. A ação do Estado na ACORES
instituiu uma forma de participação quase que imposta à comunidade, repetindo assim
sua tentativa histórica de despolitizar a vida cotidiana.
72
Embora existam as dificuldades específicas de cada grupo, a organização popular, seja
por meio de uma associação ou cooperativa, é o caminho mais viável para uma
sobrevivência digna numa conjuntura de desemprego e exclusão social. A associação
ou cooperativa pode conter o germe da transformação pois "a arte consiste em unir
sabiamente produção e participação, porque matamos com uma cajadada pelo menos
dois coelhos: a sobrevivência material e a consolidação da cidadania" (Demo, 1996, p.
126). Essas entidades possuem uma estratégia fundamental que é unir o político com o
econômico.
A ACORES, como já comentei, passa por uma intensa rotatividade de catadores, mas
nos últimos contatos permaneceu o número de cinco catadores. O reduzido número de
catadores, na associação, intensifica a comercialização de material reciclável comprado
da comunidade. Nas visitas de campo presenciei, em alguns momentos, mulheres e
crianças vendendo alumínio, plásticos e outros materiais a essa organização. Dois
episódios de venda desses materiais atormentaram-me profundamente. Uma mulher
magricela, de olhos esbugalhados, cabelos despenteados e rijos com aspecto de fome
e loucura chegou à Associação balbuciando algumas palavras inaudíveis, mas o gesto
de estender a mão segurando uma panela de pressão revelou o que a mulher queria:
vender o utensílio. Noutro momento, uma criança de aproximadamente dez anos,
pequena e raquítica, aproximou-se da Associação com um carrinho de lixo, adaptado
para o seu tamanho, carregado de material reciclável para vender.
Inúmeras são as pessoas que participam da ACORES indiretamente. Talvez a
associação ainda exista devido a esta relação com a comunidade. Entretanto, a
conseqüência deste tipo de relação foi a desorganização e o enfraquecimento dos laços
de grupo e coletividade da associação. Os princípios associativos foram postos em
questão.
Conhecida a associação dos catadores, apresentarei no próximo tópico as entrevistas
cedidas pelos catadores dos grupos citados. Uma viagem impressionante e dolorosa.
Por várias vezes pensei que não resistiria. Momentos de desânimo e tristeza quase me
73
fizeram desistir da pesquisa. Ver e ouvir os sofrimentos dessa parcela excluída da
sociedade foi uma experiência indescritível e inenarrável. Entretanto, espero contribuir,
de alguma forma, para a conquista de melhores condições de vida dos catadores a
partir da discussão e divulgação da presente pesquisa.
2.3. A fala dos catadores de lixo
Parafraseando o poeta Ferreira Gullar só é justo pesquisar se a nossa pesquisa arrasta
consigo as pessoas e coisas que não têm voz. Eu arrasto para a dissertação as vozes
dos catadores de lixo que cotidianamente escrevem suas vidas com suor e sangue nas
páginas da História de Fortaleza.
Fala dos catadores do Parque Santa Rosa.
Entrevista realizada com o Senhor João no Galpão dos catadores no dia 17 de
dezembro de 2004.
Meu nome é João Nascimento de Souza. Quando nasci fui morar com minha avó. Aos doze anos voltei a
morar com minha mãe. Quando cheguei em sua casa tive dificuldades em conviver com meus outros
irmãos. Aí comecei a andar pelo mundo. Só voltei de novo pra lá quando fiz vinte anos. Mas comecei a
trabalhar desde os oito anos de idade; quebrava pedra pra fazer cal. Aos doze anos colocava saca de
sessenta e setenta quilos em cima dos carros pra poder viver. Ainda menino fazia e vendia carrinhos de
brinquedo na feira. Nunca gostei de brincadeira. Meu estudo foi até a oitava.
A mulher com a qual me juntei e depois me casei era uma viúva com três crianças que não tinha para
onde ir. Nós éramos da mesma igreja: a igreja dos crentes. Eu perguntei se ela queria ir para o interior
morar com a mãe ou se queria se juntar. Então consegui alugar uma casa na Jurema pra ela e as
crianças morarem comigo. Nessa época eu trabalhava num colégio no Quintino Cunha e saía sempre
altas horas da noite. Um dia eu fui assaltado na linha do trem da Jurema, quase morri. Por isso nos anos
70 fui morar de novo no Quintino Cunha. Hoje as crianças já tão criadas, já são donos de si, mas ainda
estou na batalha.
Hoje dentro de casa ainda moram cinco: os quatro que são meus mesmo, um rapaz de 19 anos, um de
18 e o outro 17 anos e a menina de 12; e uma moça que eu crio desde seis meses de nascida. Mas ela é
74
registrada como minha filha. Os quatros filhos do primeiro casamento da minha mulher também são
registrados como meus. Eles já são todos casados, não moram mais aqui. Mas se eles souberem que
uma pessoa disse alguma coisa comigo... Ave-Maria.
Houve um tempo em que fui desenganado pelos médicos. Fui operado do coração muito novo no
Hospital de Messejana. Minha mãe me deu muito apoio. Nessa época eu morava num quartinho por trás
da casa da mamãe. E graças a Deus estou bom. Graças a Deus e a minha mãe.
Ainda nos anos 70, comecei a trabalhar para o depósito, do seu Alfredo Targino, juntando sucata dentro
de um saco e carregando nos ombros na Bela Vista, no Rodolfo Teófilo e na Parquelândia. Tudo ali eu
conheço graças a Deus. Na época seu Targino encomendou uns carrinhos para quem trabalhava. Ele
comprou por 40 mil réis e toda a semana nós pagávamos dois mil réis para ele até pagar os quarenta. De
lá pra cá já tive meu próprio depósito. Mas houve uma vez, há dezessete anos, que sofri um acidente.
Sofri muito, acabei com o que eu tinha de novo. Aí fui embora do novo para Cascavel com minha família.
Lá não me dei bem e então voltei pra cá. Quando eu cheguei aqui com pouco dinheiro e uma televisão
negociei com um rapaz a compra de um quarto na beira do rio e um carrinho e aí eu comecei a trabalhar
na sucata de novo.
Vou contar meu acidente. Um dia saí para trabalhar com uma carroça. Saí com quatro meninos em cima
da carroça debaixo de uma chuva muito forte. Aí eu me encostei perto do Center Box, lá na Bezerra de
Menezes, para esperar a chuva passar. Mas como a chuva não passava disse para os meus filhos pra
gente vir embora. Quando eu cheguei pertinho do terminal da Antonio Bezerra, eu só escutei a pancada
na traseira da carroça: Bah! Em seguida me esfreguei no chão, parando longe com a carroça caindo em
cima de mim. Aí quebrou toda a minha cabeça, a minha visão afundou. Aí eu ouvi muito bem quando um
menino gritou: morreu, morreu papai, morreu. Aí eu não vi mais nada. Quando eu tornei de mim tava num
hospital, eu num hospital e o menino de lado com a perna quebrada e eu com isso aqui todo engessado.
Eu me lembro quando eu tornei que tava no hospital. Chegou um cara. Aí só fez dizer assim: Como é que
ele está? Como é que ele está? Eu me lembro disso aí. Aí o doutor disse: Está bom. Aí pegou um cheque
de vinte e cinco e disse: tome aqui pra você comer e comprar as coisas dentro de casa. Aí eu fui e
entreguei pra mulher. Aí pronto, eu fiquei em casa doente, doente, sofrendo. Agradeço também mamãe
por que todo o sofrimento que os meus irmãos fazia comigo, mas mamãe nunca me abandonou, os meus
pais nunca me abandonaram, graças a Deus. Acabei o que eu tinha, passei um ano no fundo de uma
cama acabando o que eu tinha.
Quando eu fiquei melhor, podia andar, fui atrás do carro que me acidentou. No período do acidente duas
pessoas anotaram a placa do carro. Mas quando eu cheguei no departamento para receber informação
sobre o carro, só tive dados errados. Primeiro que era um carro grande, depois que era um gol branco,
em seguida uma moto e por fim um bugre. Com raiva eu só disse para moça: Doutora isso daí não é
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nada não, isso daí é o homem que tem dinheiro e eu não tenho dinheiro. Ele já comprou a Senhora.
Estou com um ano doente e sofrendo, mas o homem já comprou a senhora.
Desesperado fui bater na Clínica Leiria de Andrade. Quando eu cheguei lá encontrei um doutor muito
bom. Deus é muito bom pra mim. Quando eu cheguei lá encontrei um doutor que me examinou e disse:
tua visão tem jeito, mas é um tratamento passando de um ano. Você vai ficar dentro de casa se tratando.
Mas eu vou lhe dá um atestado que você é cego para conseguir sua aposentadoria. Depois fui bater no
INSS, eu tinha trinta e cinco anos. A assistente social do INSS se sensibilizou com minha situação,
organizou a documentação, mas tive que ir atrás também de um delegado para assinar. E assim o fiz. Aí
consegui um benefício pelo INSS. Eu tenho todos os documentos guardados lá em casa. Uma vez uma
pessoa me disse que um processo vale até vinte anos. Se eu quisesse ainda reivindicar os meus direitos,
eu resolvia. Mas é preciso um advogado bom pra poder resolver e eu nunca arrumei.
Apesar do beneficio continuo trabalhando com sucata, pois só o colírio pra essa visão custa oitenta e
cinco reais e tem os meus filhos. Quem escapa com um salário? A sucata piorou nesse dois últimos
anos. Primeiro porque o nosso prefeito modificou o horário dos carros do lixo. Eles, agora passam
durante a noite e as pessoas só colocam o lixo nas calçada no horário do caminhão. No horário da noite
as pessoas têm medo dos sucateiros. Logo que hoje tem muita violência no mundo. Existe muito
sucateiro bom, mas também tem os mal intencionados. Eu não vou mentir. Uns dizem que são sucateiro
e chega na casa pra fazer... Mas nem todos são iguais.
O lixo diminuiu muito. Os prefeitos passados recolhiam o lixo nas caçambas e colocavam no meio da rua.
Os sucateiros vinham e o tiravam. Mas agora piorou para o sucateiro. Piorou porque esse prefeito assim
que entrou no poder era bom. Mas depois começou a fazer ruindade com as pessoas, ou melhor, com os
pobres. No passado eu conseguia dois ou três carrinhos por dias, hoje eu só consigo um e com muita
dificuldade. O dinheiro também diminuiu, o menos que eu ganhava na reciclagem era vinte, trinta ou
quarenta reais por dia. Hoje esse mesmo valor é apurado na semana.
A reciclagem piorou também porque as pessoas não ajudam. Nós trabalhamos no meio da rua, sofrendo,
passando perigo e as pessoas ainda não tem respeito por nós. Vou contar um exemplo: um dia desse eu
cheguei numa casa, a minha mulher foi tirar um lixo da calçada. Quando ela pegou no saco um homem
saiu da casa com muita raiva e disse: “Hei! Não tira esse lixo daí”. Minha mulher muito ignorante
respondeu: “Por que eu não posso tirar esse lixo daqui, por acaso eu estou roubando? Você está vendo
eu roubando alguma coisa sua? Você está vendo eu apenas tirar do lixo uma garrafa, uma lata. Porque
se você não quer que ninguém mecha deixe dentro de casa ou se não coma!” Mas eu acalmei a mulher.
O pessoal fala com a gente como nem sei o que... Mas estamos com uma fé muito grande, porque a
prefeita garantiu apoiar aqueles que trabalham na reciclagem. Ela vai organizar a coleta seletiva. Assim
as pessoas entregam o material pra nós.
76
Passado um tempo, eu estava em casa quando chegou uma mulher falando de umas irmãs que estavam
colocando um depósito de reciclagem e que precisavam de apoio. Aí fui pra lá. Graças a Deus que eu me
apeguei a essas irmãs. As irmãs me deram apóio e graças a Deus já estou há quatro anos com elas.
Inclusive quem toma conta da chave do depósito sou eu. Eu e o meu filho temos muito cuidado e
responsabilidade com todas coisas. Elas dizem que o depósito é nosso porque somos nós que tomamos
de conta dele. A cáritas também nos apóia, basta dizer que não pagamos nada para participar das
reuniões, nem o ônibus. A Dona Cristina e as outras são pessoas muito boas. Até parece que vieram do
céu. Elas querem ver nossa melhora.
Com o apoio das irmãs eu consegui uma operação de vista. Naquele tempo a operação custou dois mil e
quinhentos reais. E as irmãs adquiriram essa operação. Como eu morava na beira do rio – no tempo do
inverno era melhor está no meio da rua do que dentro de casa – as irmãs juntamente com o padre da
Paróquia compraram, por três mil e quinhentos reais, essa casa que eu moro. Elas me deram quando eu
estava operado. Enquanto eu morava na beira do rio elas me davam os meus remédios. Mas depois que
compraram a casa o dinheiro teve que sair do meu bolso.
Depois da operação, com cinco dias, eu estava enxergando tudo. Comecei a andar pelas ruas alegre e
satisfeito. A operação aconteceu no primeiro jogo do Brasil na copa do mundo, há mais ou menos três ou
quatro anos. Mas sou um homem teimoso comecei a trabalhar cedo, com um mês e quinze dias, e
também não usava os óculos. Assim, voltei a não enxergar.
Nunca ando só. Eu só ando mais o menino. Quando eu saio o menino vai segurando no braço do carro.
Mas tem muita gente que se admira quando sabe que eu sou cego. Meu trabalho é sempre no dia do lixo:
terça-feira, quinta-feira e sábado. Os bairros dependem com quem eu ando, se ando com a mulher é só o
Conjunto Esperança, o Canindezinho, se ando mais os meninos vou mais longe, Amadeu Furtado... até o
mercado São Sebastião. Graças a Deus está aumentando as pessoas que doam material para o
depósito. Logo nós fazemos campanhas de doação nas igrejas. A gente é quem fala. E está dando certo.
Algumas pessoas combinam comigo pra eu pegar as sucatas. Dando o endereço eu vou buscar onde
tiver. Deixo o material na minha casa. Entrego o material só no final de semana. Se eu entregar a coleta
todo dia eu recebo R$ 5,00 por dia e aí num instante eu me perco sem saber como usei o dinheiro. Mas
entregando por semana eu recebo R$ 30, 00, R$ 40,00 ou R$ 50,00 e aí dá pra saber como usar.
Eu peço muito a Deus e a vocês que estão me ouvindo: ajude a nós! Porque tem muito pai de família
atrás de ganhar o pão. Não tem emprego. A gente só pode viver dessa sucata. Deixem a gente juntar
esse lixo no meio da rua. Nós queremos trabalhar e assim ganhar o pão de cada dia. Nós estamos nesse
galpão, como outros por aí, vamos trabalhar fardados. Eu mesmo que sou sucateiro tenho pena dos
pobres. Tenham compaixão desse pessoal. Cada vez mais ajude o pessoal da sucata. Os donos de
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mercantil, não façam isso: não peguem seu material, esse lixo, esse papelão pra vender. Doe pro pai de
família que se acaba esse negócio de marginal.
Entrevista realizada com o jovem Keké no galpão dos catadores no dia 23 de junho de
2005.
Meu nome é Francisco de Sousa Nascimento, mas todos me chamam de Keké. Completarei 20 anos no
dia 25 de setembro. Sou solteiro e estudei apenas a primeira série. Leio muito pouco. Nunca trabalhei, só
vivia mais em casa. Quando era menino saía com meu pai para todo canto. Depois que cresci ele me
deixou de lado e agora o meu irmão mais novo é quem o acompanha. Depois que construíram esse
galpão meu pai me botou aqui.
Aos treze anos já caçava o lixo com o meu pai. Como não tinha outro meio de vida fiquei trabalhando na
reciclagem. Só tem esse mesmo. Faz seis meses que o grupo decidiu me colocar pra trabalhar só dentro
do galpão. No momento não estou na catação. Mas quando vou pra rua ando somente por perto: Parque
Santa Rosa, Conjunto Esperança e Aracapé. Geralmente eu saía nas quintas-feiras, sextas-feiras e
sábado. Das seis horas da manha até quatro horas da tarde. Ao chegar no galpão o lixo era separado e
pesado.
Nunca recebi doação, catava o lixo nas ruas abrindo os sacos que ficavam nas calçadas. Às vezes as
mulheres me davam carão. Eu amarrava a sacola de lixo e ia embora. Nunca tive vergonha de catar. Mas
o meu irmão morre de vergonha. Nesse trabalho recebia entre quarenta a cinqüenta reais por semana.
Por mim eu voltaria a catar, mas o pessoal não me deixa sair do serviço interno do galpão. Na rua eu
achava muita coisa funcionando: rádio, relógio... Mas aqui dentro não acho nada.
Espero completar meus 20 anos... Pretendo ajudar a Musa no que for possível. Alguns catadores não
estão botando muita fé na cooperativa. Meu pai é um deles. Se a cooperativa não funcionar ele sai do
grupo. Mas eu fico pra ajudar a Musa e organizar o galpão.
O nosso grupo está bom. Não tem desunião e nem carão como acontece nos depósitos. Se você não
chegar na hora certa o dono do depósito lhe repreende. Aqui a gente chega na hora que quiser. A Musa
sempre atende muito bem.
Com a organização as coisas melhoraram. O material não fica mais jogado. Antes era muito difícil. O
padre Fayos, o Padre Junior e a irmã Elizabeth deram muito apoio ao nosso grupo. Agora a maior
dificuldade é o transporte para entregar o material. Aqui e acolá o Padre Júnior disponibiliza o carro para
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vender o material. Como a Musa precisa de dinheiro todos os dias para pagar o material, muitas vezes
vendemos a reciclagem por um preço mais barato.
Com a cooperativa eu acredito que as coisas irão melhorar. Até meus documentos estou tirando. Já tirei
a identidade, mas ainda falta é muito. Para formar uma cooperativa as pessoas precisam de documentos
por isso todos estão tirando.
Entrevista realizada com a Senhora Chaguinha no galpão dos catadores no dia 23 de
junho de 2005.
Meu nome é Francisca das Chagas da Silva Sousa, mas gosto que me chamem de Chaguinha. Tenho 51
anos. Sou casada e nunca tive tempo pra estudar. Trabalhei em casa de família como doméstica, mas
era muito cansativo. Aí eu resolvi entrar na catação que é o trabalho aonde eu tenho minha fonte de
renda. Mesmo quando meu esposo estava trabalhando não desisti de trabalhar na catação. Ele recebia o
dinheiro por mês e, às vezes, quando faltava o café, o açúcar... nós íamos vender minhas coisas para
comprar o que faltava. O dinheiro não dava pra sobreviver e comprar muita coisa, mas remediava a
situação. O pouco que ganho Jesus me abençoa e eu toco o barco pra frente.
Faz um bom tempo que cato. Mais de vinte anos. Primeiro foi na Serrinha, depois me mudei pra cá e
continuei. Aqui eu estou com quatro anos. Antes existiam poucos catadores e as coisas valiam mais.
Hoje em dia tem muitos catadores e as coisas são difícil de encontrar. Mas é só o que eu seu fazer.
Porque já estou velha e ninguém quer me dar um emprego. O povo me manda trabalhar se eu for pedir
esmola. Então eu vou logo trabalhar. Eu só ando no Parque Santa Rosa e no Conjunto Esperança,
durante três vezes por semana: terça-feira, quinta-feira e sábado. Nesses dias saio duas vezes de casa:
oito horas da manhã e uma hora da tarde. Retorno para casa ao meio dia para almoçar. Termino o
trabalho seis horas da noite. Ultimamente volto pra casa com pouca coisa, mas abençoada por Deus.
Eu saio catando sozinha nas ruas. Abro os sacos. E ao chegar em casa separo todo o material e guardo
no quintal. Geralmente vendo o material por quinzena, mas depende da quantidade. Porque não tem
futuro eu vir toda vez vender e só apurar três reais. Embora o material fique na minha casa apertada com
quintal pequeno. Se eu trouxer 50kg de papel branco já é uma benção. A coisa mais difícil desse mundo
é achar papel branco. No antigo trabalho do meu esposo as pessoas doavam material bom. Lá eu
apurava de R$ 90,00 a R$ 120,00 por puxada. Agora recebo somente R$ 55,00 por mês. O catador não
ganha nem um salário por mais que ele trabalhe.
Ainda não recebo nenhuma doação. Aliás, muitas pessoas fazem é reclamar: “Diabo desse catador vem
mexer no meu lixo”; “Hei lixeira”. O povo não dá um copo d’água a gente. Mesmo as pessoas dizendo as
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coisas com a gente, nós passamos e vamos embora. Eu não tenho vergonha do que faço. Gosto de
trabalhar. Porque a Bíblia diz que todos devem viver do seu suor, do seu salário. Através do trabalho da
catação vivem muitos por aqui. É o único trabalho da gente. Ele é muito cansativo.
O nosso grupo de catadores foi organizado pela irmã Elizabeth. Todas as quartas-feiras os catadores
participavam de reuniões no salão da paróquia. A irmã sempre convidava a gente, porém muitos
desistiram, achavam que nunca ia pra frente. Com seis meses de luta a gente conseguiu oito carrinhos
de geladeira. Enquanto o galpão não era construído a gente vendia nosso material para os depósitos.
Aos poucos a irmã também comprou o terreno. Ela então recorreu ao padre da Paróquia, padre Fayros,
e os dois conseguiram dinheiro para a construção do galpão. Faz um ano que nós estamos aqui. Aqueles
que perseveraram como eu, a Lúcia, a Melândia, o Marcos meu filho vimos muitas conquistas. Apesar de
muita luta estamos aqui e agora vamos formar uma cooperativa. Creio que vai melhorar com a nossa
união e com o registro do grupo.
Antes a gente fazia só catar. Não era acompanhado por ninguém. Hoje conhecemos muitas pessoas. Ás
vezes eu e a Huga viajamos pra muitos cantos. Nas viagens as pessoas tratam a gente bem. Nos
encontros o povo acha o nosso trabalho muito importante. As pessoas dizem que é um emprego digno e
que somos guerreiras porque é um trabalho muito cansativo.
A Dona Cristina da Cáritas pagou um curso sobre cooperativa pra gente. A mulher vem, explica tudo
direitinho e todos entendem, quando ela sai começa uma confusão porque alguns não querem entender.
É um pouco difícil a organização. Mas aqui a maioria é quem manda. Por exemplo, se a maioria disser
que a cadeira muda de canto, ela muda, se a maioria disser que não ela volta.
Tudo no galpão é sustentado por nós: água, luz, telefone, limpeza e manutenção. Portanto, em cada
quilo que vendemos nós deixamos dois centavos, cinco centavos para pagar as despesas. Com a
construção do galpão as coisas pouco melhoraram. O material baixou de preço e muitos comerciantes
não fazem mais doações. Agora os comerciantes querem também vender o material pra aumentar o seu
dinheiro. Aqueles que já têm não querem ajudar a gente.
Nos últimos anos melhorou, pelo menos, na moradia. Nós viemos morar aqui num terreno invadido. Na
época, o Ciro Gomes tinha entrado na política. Então, ele comprou o terreno que invadimos, depois
desapropriou e deu pra gente. Além de desapropriar ele deu material pra quem tinha casa de taipa fazer
de tijolo. Minha casa é de tijolo: tem três vão, um banheiro e um quintalzinho.
Meu marido não acredita que aqui dê certo. Ele sempre diz para eu desistir. Mas eu não desisto. Ele não
consegue entender o trabalho do mutirão. Pra ele o mutirão teria que ser pago. Para o mutirão o grupo foi
dividido pela metade e de quinze em quinze dias cada parte vem juntar o papelão, fazer a limpeza e o
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que precisar. Isso é importante. Quando não posso vir eu mando a minha menina. Se as pessoas não
podem vir e nem mandar alguém tem que justificar a falta. Eu acho que é uma cosia boa. No mutirão
conheci outras famílias.
Meu desejo é permanecer aqui até me aposentar. Junto com os meus companheiros. O dia da manhã
não pertence a nós. Não sei por quanto tempo eu vou viver. Eu desejo que o nosso ganho melhore e que
entre doações de material no galpão, pra gente catar aqui e não nas ruas. Eu acho que vindo muito
material a tendência é formar a cooperativa. Nós ainda temos poucos catadores, nem vinte. Precisamos
de mais gente, mas o grupo está com medo de trazer novas pessoas.
Entrevista realizada com a Senhora Huga no galpão dos catadores no dia 28 de junho
de 2005.
Meu nome é Francisca Huga da Silva. Tenho 59 anos. Sou casada mas... Estudei até a quinta série.
Antes trabalhava de arrumadeira em hotel ou motel. Na época que estava no Hotel San Diego levei uma
queda da escada e passei algum tempo sem andar com por causa da coluna. Por trabalhar avulso não
tive nenhum direito. Hoje esse hotel fechou depois que a dona se acidentou.
Eu comecei a observar as pessoas juntando as coisas, achei bonito. Na minha casa iniciei separando as
coisas e doava para os meus vizinhos que trabalhavam catando. Depois pensei comigo: sabe de uma
coisa vou pegar um carrinho! Fui no depósito do seu Marrera Enestino, levei minha identidade e ele me
cedeu um carro pra trabalhar. Nesse depósito passei sete anos.
Um dia recebi na minha casa a visita da irmã Elizabeth me convidando para participar de um grupo de
catadoras. Ela é nosso anjo da guarda esteja onde estiver. Sempre lutou para o nosso bem. Então eu vim
conhecer o grupo, gostei e fiquei. O padre Junior também me visitou várias vezes. Eles viram minha
situação sem marido morando numa casinha à beira do rio, numa área de risco mesmo e começaram a
me ajudar.
Todos os dias eu trabalho. Nas segunda, quarta e sexta ando na Osório de Paiva na altura do Center Box
rodeando até o Terminal do Siqueira; nas terça, quinta e sábado é no Monbudim. Saio de casa às seis
horas da manhã e retorno às onze horas pra arrumar as coisas e as crianças. À tarde vou para o galpão
separar e vender as coisas. Já estou acostumada com a rotina. Eu acho é bom! Acho bom porque o
pessoal, graças a Deus, tem muita amizade. O pessoal me trata bem. Logo no começo era diferente. A
gente agüentava muito abuso. As pessoas reclamavam porque a gente rasgava a sacola do lixo. Elas,
depois de um logo tempo, começaram a me conhecer e vê o meu sistema de trabalho. Hoje elas juntam
as coisas pra mim e temos até uma amizade, graças a Deus. Ao chegar nas casas as meninas me
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oferece água, merenda... Mas é de mim mesmo não comer na rua. Às vezes aceito um cafezinho e o pão
elas mandam eu levar pros meninos.
Eu gosto desse trabalho. Graças a Deus e ao meu trabalho não falta nada. A gente trabalha igualmente
as outras pessoas que vivem em firma. Nós fazemos a limpeza da cidade e ajudamos os outros
catadores também. Muitas vezes eu ensino aos catadores como tirar as coisas da sacola, o tipo e valor
do material. No meu carro sempre tem uma vassoura. Com ela eu ajunto e apanho o lixo derramado.
Nesse grupo, também, tenho aprendido muita coisa boa. Nos encontros e viagens que fazemos a gente
aprende sobre os direitos, sobre como conviver com as pessoas. Assim a gente leva tudo na
tranqüilidade, sem se afobar. Com as reuniões o entendimento entre as pessoas melhorou. Eu gosto do
grupo, pelo menos, me entendo bem com a Musa, graças a Deus.
A irmã Elizabeth antes de viajar orientou a Musa a comprar as coisas dos catadores de acordo com preço
que conseguisse vender. Para pagar as despesas ela tirasse dois, cinco porcento de cada venda. Não
era pra explorar. Por isso eu acho que esse depósito veio em boa hora pra nós.
A Cristina e outras pessoas da Cáritas são uma benção com a gente. Se não fossem elas nós não
tínhamos conhecido e aprendido tantas coisas. Toda a viagem que eu já fiz pra Brasília, pra Crateús,
Porto Alegre foi graças a Cáritas. Eu aprendi muita coisa e conheci muita gente diferente. Na cidade de
Porto Alegre falei com a ministra Marina Silva, pessoa muito boa. Eu sei que foi bom demais!
A nossa renda é boa. Muita gente reclama dos outros depósitos. O dinheiro que os catadores dos outros
depósitos apuram é a metade do que eu consigo aqui com a mesma quantidade de material. Nossa
maior dificuldade, hoje, é o transporte. A gente fica com muito material pra vender e não tem condição de
transportar. Ainda bem que tem esse reboque. Aqui tudo é conversado e controlado por nós. Tudo
depende de acordo. Os planos são feitos em conversa. Graças a Deus. Eu me entendo muito bem com a
Lourdes, com a dona Socorro, com todas. Elas são legais comigo.
Agora eu tinha muita vontade de conseguir minha aposentadoria. Mas não consegui. Só se eu fosse pro
interior, mas minha família já não vive lá e eu não teria nada pra fazer na minha terra. Agora esse plano
da cooperativa me interessa porque quero me aposentar. Se Deus quiser a gente leva a cooperativa pra
frente. Muito obrigado pelo seu interesse.
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Fala dos ex-catadores e catadores da ACORES.
Entrevista com o jovem Glaudinei, ex-catador da Acores, na sede da associação no dia
17 de junho de 2005.
Meu nome é Glaudinei Calu Melo. Tenho 26 anos e sou solteiro. Moro sozinho em minha própria casa.
Estudei até a quinta série. Trabalhava em uma capotaria, mas há quatro anos mexo com reciclagem.
Acho a catação melhor porque não estou sendo mandado por ninguém.
Passo a semana toda saindo pra trabalhar. Eu acho uma maravilha, a gente conhece muitas pessoas e
faz muita amizade. É como se fosse um pássaro. Sai sem destino. Ando pelo Montese, pelo Centro, pelo
Bom Sucesso e pela Aldeota. Saio às onze e meia e retorno às nove da noite. Tiro uma parte das
manhãs para separar as coisas para poder vender aos sábados no depósito da Dona Jane. Os preços
são tabelados, ou seja, são iguais em todos os depósitos. Foi um acordo entre os donos de depósito da
Serrinha. O carrinho que uso é dela, mas quando puder vou conseguir meu próprio carrinho pra então
trabalhar tanto pra Dona Jane como pra mim.
Acho muito interessante meu trabalho, porque tanto a gente ganha como dá lucro pro dono do depósito.
Consigo fazer em torno de setenta reais por semana porque o preço do material caiu um pouco. Quando
eu era assalariado o dinheiro só dava pra pagar dívidas e ficar com mais dívida. Mas já a gente que
trabalha nesse ramo de reciclagem sempre sobra um pouco. Passa um pouco a mais. E acho que a
tendência é melhorar ainda mais. Antes eu tinha vergonha. Mas uma vez um colega meu da Acores
chegou e me chamou à noite pra fazer catação. Então fui com ele e vi como era o movimento, como eram
as coisas, como separava, o que comprava e o que não comprava, o que era mais caro e o que era
barato. Acabei aprovando. Gostei e fui fazendo clientela rapidamente. Tem gente que me ajuda
combinando comigo o dia e o local para pegar o material. Quando adoeço, aviso pra eles, e então
guardam as coisas pra quando eu puder pegar. Quando não vou, eles até se preocupam em saber por
que não fui trabalhar. Só acho ruim quando alguns motoristas botam os carros pra cima da gente. Mas a
gente leva na brincadeira e eles deixam por menos.
No dia-a-dia eu não gosto de sair com ninguém. Porque hoje em dia algumas pessoas tão vendo a gente
com outros olhos. Quando vêem duas pessoas juntas puxando o carrinho já vão pensando que a gente
vai roubar algo. Então prefiro sair só pra não ter problema nem com os outros nem com a polícia. A única
dificuldade é quando o carro da um prego na estrada.
83
Entrevista com o Senhor José, ex-catador da Acores, na sede da associação no dia 15
de junho de 2005.
Meu nome é José Pinheiro de Sousa. Tenho 38 anos. Não sou casado, mas sou junto e moro aqui no
depósito. Parei de estudar na quinta série. Posso dizer que não tenho profissão, mas faço tudo. Trabalho
com animal na carroça, com reciclagem, com carvão. O que aparecer eu faço.
Hoje eu não trabalho na reciclagem, mas eu disse pra Nilda que assim que consertar esses carros eu
volto. Faz muito tempo que eu trabalho na reciclagem, nem me lembro mais. Uns vinte anos. Eu e a Nilda
começamos a trabalhar na casa do nosso pai. O material ficava praticamente no meio da rua, porque não
tinha local pra guardá-lo. Eu só trabalhava a noite, nos bairros Montese e Aldeota. Saia às duas horas da
tarde e voltava onze ou doze horas da noite, às vezes só chegava de manhã.
Depois de algum tempo iniciou o projeto. Nós juntávamos o material e quando tinha muito volume nós
levávamos para o Centro de Triagem do Tancredo Neves. Às vezes passávamos o dia todo carregando.
Nesse projeto eu trabalhei dois anos. A Nilda batalhou muito por esse terreno e pela construção do
ponto.
Nós éramos uma equipe de 20 catadores. No horário da tarde todos saíam. Eu gostava do trabalho. Não
sentia vergonha de catar lixo ou pegar em saco de lixo, porque trabalhar é honra. Esse trabalho não é pra
todo mundo, é pra quem tem coragem. Coragem de andar.
Todos os sucateiros do início do projeto saíram. Só eu fiquei. O sucateiro gosta de receber o dinheiro na
hora que entrega o material. Aqui tem muito pai de família que precisa dá de comer aos filhos. Mas a
Nilda não tinha condições de pagar o material todo dia. Ela foi perdendo um por um. O problema foi a
falta de dinheiro. Eu também parei. Parei porque o tempo piorou, a produção caiu, o preço caiu. Na
época eu tirava uns R$ 200,00 ou R$ 250,00 com facilidade. Hoje como o preço baixou tem que trabalhar
muito pra tirar esse mesmo valor.
Nós lutamos muito com a Nilda para conseguir esse ponto e os carrinhos que, foram trazidos um em cima
do outro, a pé, do Tancredo Neves. Nós não trabalhávamos quando tinha plenária. A gente ia com Nilda
para as reuniões. O povo exigia que levasse todos os sucateiros. No início a gente acreditava que as
coisas iriam melhorar, mas depois vimos só conversa e promessa que não cumpria.
Eu não sei do meu futuro, se a Nilda conseguir ajeitar esses carros eu posso voltar a trabalhar com eles.
O ruim é que os carros não agüentam peso, nem seque duzentos quilos. Eu só gosto de trazer carrada,
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entre duzentos e duzentos e cinqüenta quilos. Uma carrada pra ganhar um dinheirinho bom. Hoje os
carros estão todos quebrados. Só tem três rodando e a gente não tem verba para ajeitar.
Entrevista com a jovem Edilene, catadora da Acores, na sede da associação no dia 16
de junho de 2005.
Meu nome é Francisca Edilene Silva Sousa. Tenho 28 anos, sou solteira e só estudei até a oitava série.
Tenho só um filho. Ele passa o dia na creche enquanto eu trabalho. Minha família mora distante. Não
conto com eles. Só primeiramente com Deus e a Nilda e força e coragem que Deus me dá para puxar
esse carrinho. A família do meu pai mora toda no Bom Jardim e no Pio XII e o resto é tudo em capitais de
outros Estados.
Moro aqui mesmo na reciclagem. Antes eu trabalhava pra Jane, depósito de reciclagem. Então a Nilda
me viu trabalhando com ela. A Nilda também cansou de trabalhar com a Jane, aí me chamou pra
trabalhar nos carrinhos dela. Aí decidi ir pra Nilda porque o ganho era melhor do que na Jane. Lá, a gente
era mandada. Tinha que trabalhar todo dia. Aqui na Nilda não, a gente trabalha o dia que a gente quer.
Antigamente o trabalho na reciclagem era bom, dava pra gente se manter, pagar o aluguel. Agora não, as
coisas tão baixando, tem muito catador. Aí não tenho condição de pagar o aluguel. Aí a Nilda me
ofereceu um quartinho na reciclagem pra eu morar. Aliás, nunca ninguém me deu apoio além dela
mesmo. Ela me ajudou muito e até hoje ela me ajuda muito.
Comecei trabalhando como malabarista do Circo Escola do Bom Jardim, mas depois que minha mãe
faleceu achei melhor trabalhar na reciclagem porque ninguém quer dá emprego a quem não tem
documento. Há dez anos trabalho na catação. Mas na ACORES trabalho há quase quatro. Lá tem união.
Por causa dos carrinhos muitos saíram. Agora só tem umas dez pessoas trabalhando. No começo eu
tinha vergonha. Só queria caçar nos cantos onde ninguém me conhecesse. Hoje não. Eu não deixo esse
meu trabalho por carteira assinada de jeito nenhum. Gosto do que faço porque a gente conhece pessoas
novas e, além disso, se eu trabalhar a semana toda tiro mais que um salário. Vai depender do material
que trago. Geralmente ando três dias por semana. Nesses dias saio às seis da manhã e volto por volta
das quatro horas da tarde. Algumas pessoas pegam confiança na gente e tem amizade e a gente já vai
naquele recurso de pegar aquele material que a pessoa separa.
Ando bastante. Percorro os bairros Montese e Vila Betânia. Às vezes vou ao Parque Dois Irmãos, ao
Centro, a Aldeota e a Beira-Mar. Eu gosto de ir ao Centro quando tenho um parceiro para ir junto. Não
gosto de ir só. Nos bairros mais próximos eu ando só. Quando é bairro longe eu ando com o parceiro.
85
Quando eu saio sozinha tem aonde eu me alimentar. Tem uma mulher no Montese que marca um horário
de eu chegar pra merenda. Á vezes quando eu saio daqui sem merendar, eu merendo na casa dela.
Quando eu venho voltando perto da hora do almoço ela guarda minha alimentação e me dá.
Uma vez ia acontecendo um acidente comigo. Muitos motoristas não respeitam a gente. Mas os
motoristas de ônibus respeitam. Às vezes, eles deixam passar na frente deles. Os moradores não
colaboram. Eles dizem é coisa com a gente. Seria muito bom se o povo respeitasse mais a gente e que
nos ajudasse separando o material reciclável e marcasse um dia pra a gente ir pegar.
Já estou acostumada com meu serviço, pois comecei a trabalhar aos quatorze anos de idade, depois que
eu perdi minha mãe. No começo foi difícil, mas agora qualquer peso dá pra levar, porque estou
acostumada e nossos carros não são iguais aos carrinhos de geladeira. Às vezes eu trago cem, cento e
cinqüenta quilos num carrinho desses e não sinto nada. No momento estou parada por motivo de
doença, mas meus companheiros, especialmente a Nilda, me ajudam como podem.
Quando eu entrei na ACORES o grupo já era organizado. O prédio e os carrinhos já eram comprados.
Hoje a dificuldade maior com o trabalho é porque só tem quatro carrinhos, se um vai trabalhar o outro tem
que esperar para poder sair. Assim, quando é dia de coleta, às vezes, a gente perde o dia. Outro
problema aqui é pouco capital de giro para manter o catador. A gente trabalha porque precisa de dinheiro
pra viver. A Nilda não pode sempre ajudar a gente numa coisa e outra. Acho que é só isso mesmo.
Entrevista com o jovem Chichi, catador da Acores, na sede da associação no dia 16 de
junho de 2005.
Meu nome é Ântonio José Moreira da Silva e sou catador da ACORES. Todos me conhecem pelo apelido
de Chichi. Tenho 29 anos. Sou Solteiro. Nunca me interessei em estudar, meu negócio sempre foi
trabalhar. Fiz só a primeira série. Não sei ler, mas sei fazer meu nome tendo as letras.
Eu tinha treze anos quando comecei a trabalhar com reciclagem num sucateiro do bairro. De lá pra cá até
hoje, graças a Deus, estou aqui do mesmo jeito. Aqui e acolá o pessoal me chama pra trabalhar de
servente. Faço tudo: trabalho de eletricista, de carpinteiro, caçador da reciclagem. Agora mesmo faço o
serviço de reboco e piso aqui na reciclagem da Dona Nilda, a ACORES. Quando estou parado venho
ficar aqui porque às vezes as pessoas ligam pra entregar material. Então eu vou buscar.
Minha família é pequena: eu, minha mãe e uma irmã por parte de pai que mora na Vila União. A família
da mãe mora no interior, em Camocim. Às vezes eu moro aqui na reciclagem, outras vezes eu vou à casa
da mãe que fica no Riacho Doce. Não moro direto com ela por causa da bebida. Quando a mãe bebe não
deixa a gente dormir sossegado. A gente chega do trabalho cansado não pode nem se deitar um pedaço
e nem comer porque ela fica com zoada. Então eu saio de lá com raiva e venho pra cá. Eu já morei na
86
casa de Nilda quando tinha treze ou quatorze anos. O marido dela foi quem me ensinou a ser servente
de pedreiro.
Trabalho mais na reciclagem, porque aqui e acolá eu adoeço. Trabalho quatro noites e passo um mês
internado. Sempre me dá uma dor no corpo, uma fraqueza, dor de cabeça, febre e coisas piores... Mas a
Nilda me ajuda, me visita no hospital e me dá vale pra comprar os remédios. Graças a Deus estou
melhorando. Eu também gosto de trabalhar no carrinho, pelo menos, é melhor do que estar parado.
O ruim da reciclagem é que as pessoas chamam a gente de vagabundo, sem coragem de procurar um
emprego. Uma vez uma moça disse assim: “vichi, um rapaz tão novo caçando o lixo no meio da rua”. Mas
é melhor caçar lixo do que roubar. Eu trabalho muito, às vezes até, no domingo. Ando em muitos bairros:
Serrinha, Parque Dois Irmãos, Barroso, Centro e às vezes Praia do Futuro. Quando no Barroso não tem
material vou pro Conjunto Ceará, Jurema, Caucaia, por todo canto ando sozinho com Deus e o carrinho.
Não tenho hora para trabalhar. Às vezes saio sete da manhã e chego três ou quatro da tarde, outras
vezes, saio três da tarde e chego sete ou oito horas da noite. Quando a viagem é para o Centro prefiro
trabalhar à noite e só chego sete da manhã. Dependendo da coragem em trabalho três ou quatro dias.
Com este trabalho eu ganho uns R$ 150,00, R$ 200,00 ou R$ 250,00 por mês, dependo do material que
trouxer. Mas eu acredito em Deus que vou melhorar.
Antes de sair tomo um cafezinho e aqui e acolá alguém me oferece almoço. Quando o carrinho dá um
prego no meio do caminho eu chego morrendo de fome e sede. Graças a Deus nunca tive problemas
com os motoristas. Os moradores das casas são os que mais reclamam: “Fulano não espalha o lixo,
pode deixar!”. Então amarro o saco do mesmo jeito, saio e vou pra outro lugar. Os policiais também
pensam que a gente rouba os fios de telefone. Uma vez alguns policiais, do Parque Dois Irmãos, viraram
meu carro como não encontraram nada eles foram embora e eu coloquei os materiais de novo no
carrinho.
Graças a Deus e a Nilda estou melhorando e continuo aqui na ACORES. Já errei uma vez chegando
melado com uma carrada grande. Aqui não pode beber. Mas eu pedi desculpa e continuo aqui. A gente
tenta formar um grupo porque é melhor. Às vezes a gente ajuda e faz favor pra Nilda. Mas muitos
pensam que essa história de grupo não vai dar certo. Eles preferem o depósito porque lá não tem briga.
Graças a Deus até hoje trabalho aqui. O preço desse depósito é melhor do que os outros.
Sonho conversando com as meninas, me casando ou me juntando. Quando acordo fico triste porque não
tenho condições de casar. O meu ganho é pouco não dá pra comprar as coisas... pagar água, luz. Nem
para comprar comida direito o dinheiro dá. Meu consolo é uma cachacinha. Quando sobra dinheiro eu
tomo uma cachaça e vou pra casa dormir. Agora o salário vai melhorar porque tem gente nos ajudando.
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Entrevista com o jovem Glauber, catador da Acores, na sede da associação no dia 23
de junho de 2005.
Meu nome é Luís Cassiano Lopes, entretanto todos só me conhecem por Glauber. Tenho 29 anos. Sou
solteiro, mas já fui junto. Estudei até a sexta série. Meu primeiro trabalho foi com plantação de verdura.
Eu aguava e limpava uma horta. Depois trabalhei como gari na Marquise. Por fim vim ser coletor. Faz
mais ou menos quatro anos que trabalho na reciclagem. Logo emprego fixo não existe mais. Não
consegui outro emprego desde a saída da firma. Conheci a reciclagem na ocasião do serviço de pintura
que realizei na ACORES. Vi que era bom e comecei a gostar. Desde então não saí mais daqui.
No começo sentia uma vergonha muito grande, mas me acostumei. Fazer o quê? É melhor do que roubar
e mexer no que é alheio. A gente se diverte com os amigos que conhece. Meu percurso é no bairro de
Fátima, Piedade, Centro e Aldeota. Saio três vezes por semana nesses bairros atrás do material: terçafeira, quarta-feira e sexta-feira. Das seis e meia da manhã até seis da noite. Mas este trabalho é bom
porque a gente sai e chega na hora que quer. Não é mandado por ninguém. Tem dia que a gente pega
muito material. Tem dia que a gente pega pouco. Não tem quem aborreça. Quando o trabalho está bom
ganho setenta ou oitenta reais por semana; quando não, cinqüenta ou sessenta.
Algumas pessoas colaboraram outras não; enquanto umas criticam, outras valorizam o nosso trabalho e
reconhecem que a gente batalha muito, anda muito. Inclusive eu sempre recebo lanche pela manhã no
Centro, à tarde na Piedade e tem as onze meia da noite no Centro, perto da Igreja da Sé. E assim a
gente vai à luta. Às vezes arriscando até a vida pelas pistas com os carros quase batendo na gente.
Não penso no futuro. Até quando Deus quiser fico aqui. Comecei a trabalhar por conta própria e não
tenho mais vontade de trabalhar pra ninguém. A gente recebe muita ajuda da Cáritas. Nas reuniões
conhecemos outros grupos de coletores e novas pessoas. Mas tem coletor que não comparece às
reuniões. Logo as coisas não mudaram muito com essas reuniões. A renda pouco melhorou. Na época
do inverno, o preço dos materiais baixam.
Uma grande dificuldade da ACORES é que os coletores se afastam daqui. Eles trabalham um tempo, se
afastam e depois voltam. Eu mesmo já trabalhei em outro depósito. Lá eu recebia o dinheiro a toda hora.
Alias em qualquer depósito o pagamento é na hora. O problema daqui é que o dinheiro só sai com quinze
dias. Muitos recicladores não querem essa forma de pagamento. Comigo não tem problema porque eu
moro aqui. Tanto faz eu receber o dinheiro na hora como depois. Mas se todos se organizassem e
colocassem o material não faltava dinheiro. Depende dos recicladores se unir, se juntar e trabalhar pra
botar dinheiro aqui dentro. Porque só um, dois, três coletores, durante quinze dias, não consegue grande
quantidade de material. Hoje só tem quatro coletores trabalhando.
88
O meu intuito, na presente pesquisa foi dar voz a quem não tem. Por isso apresentei na
íntegra o resultado da entrevista. No próximo capítulo serão exibidos os demais atores
envolvidos com a temática do lixo na cidade de Fortaleza.
89
Reunião do FEL&C (Seminário da Prainha)
COOSELP (Antigo lixão do Jangurussu)
90
Eu peço muito a Deus e a vocês que estão me ouvindo: ajude a nós! Porque
tem muito pai de família atrás de ganhar o pão. Não tem emprego. A gente só
pode viver dessa sucata. Deixem a gente juntar esse lixo no meio da rua. Nós
queremos trabalhar e assim ganhar o pão de cada dia.
(João, Cooperav)
Um pobre e esplêndido poeta, o mais atroz dos desesperados, escreveu esta
profecia: “Ao amanhecer, amados de uma ardente paciência, entraremos nas
esplêndidas cidades”. Eu creio nessa profecia de Rimbaud... Sempre tive
confiança no homem. Não perdi jamais a esperança. Por isso talvez cheguei até
aqui com a minha poesia, e também com a minha bandeira. Em conclusão,
devo dizer aos homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que
todo o porvir foi expresso nessa frase de Rimbaud: só com uma ardente
paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade
a todos os homens. Assim a poesia não terá cantado em vão.
(Pablo Neruda)
91
CAPÍTULO III
VIDAS E LIXO: UMA REFLEXÃO
No último capítulo reflito sobre as políticas públicas do Município e do Estado
direcionadas a temática do lixo e dos catadores. Assim retomo a discussão sobre o
tratamento que a Prefeitura Municipal de Fortaleza tem dado ao seu lixo. Apresento,
também, algumas experiências concretas da sociedade civil relacionadas aos catadores
de lixo. E por fim, retorno aos depoimentos dos catadores de lixo sobre suas vidas e
suas experiências nos grupos dos quais participam, com a finalidade de produzir
algumas considerações frente a problemática do lixo e da participação dos catadores.
Retorno aos depoimentos e aos apelos dos catadores, como o citado na página que
antecede este capítulo, por direito ao acesso ao lixo. Aonde chegamos? E para onde
caminha essa sociedade que desfigura e ignora seus cidadãos? Como diz o poeta
Neruda “só com uma ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará
luz, justiça e dignidade a todos os homens”. Assim meu trabalho, também, não terá sido
em vão.
Para Cunha (2002) as políticas públicas envolvem conflitos de interesses entre
camadas e classes sociais, e as respostas do Estado para essas questões podem
atender a interesses de um em detrimento dos interesses de outros. Veremos que os
interesses dos grupos do setor industrial, do setor comercial ou empresarial sempre se
sobrepuseram sobre os interesses dos grupos dos catadores na cidade de Fortaleza.
Política pública pode ser entendida como:
...linha de ação coletiva que concretiza direitos sociais declarados e garantidos
em lei. É mediante as políticas públicas que são distribuídos bens e serviços
sociais, em resposta às demandas da sociedade. Por isso, o direito que as
fundamentam é um direito coletivo e não individual. (Pereira apud Degennszajh,
2000, p. 59)
Os pontos convergentes e divergentes da vida dos catadores e do tipo de organização
serão pontuados aqui. Como também outras experiências que acontecem no país e na
cidade como é caso da Asmare, Coopamare, Cooselc e Socrelp.
92
3.1. Como o lixo é tratado?
Uma das alternativas ecologicamente corretas, no tratamento do lixo, seria a da
reciclagem que desvia, do destino em aterros sanitários/controlados ou lixões, os
resíduos sólidos que poderiam ser reciclados, por meio da coleta seletiva. O processo
da reciclagem é o resultado de uma série de atividades através da qual materiais que
se tornariam lixo, ou estão no lixo, são coletados, separados e processados para serem
usados como matéria-prima na manufatura de bens. Assim, a reciclagem tem por
objetivo reaproveitar materiais já utilizados, reintroduzindo-os no processo produtivo e
economizando, desta forma, recursos naturais que deixam de ser extraídos para a
produção de novos materiais e áreas de disposição de resíduos, como aterros
sanitários, aumentando sua vida útil.
A coleta seletiva realizada de forma informal pelos catadores tem impacto direto na
qualidade ambiental e na composição dos materiais coletados pelo caminhão da coleta
regular nos municípios. A coleta dos materiais recicláveis antes da passagem do
caminhão reduz os gastos com a limpeza pública e prolonga a vida útil dos aterros.
Alem de contaminar menos o meio ambiente e diminuir a extração dos recursos
naturais.
No caso do lixão que é, muitas vezes, um fluxo importante de receitas para a
comunidade, os catadores obtêm a sua renda com a venda do material reciclável para
os sucateiros, ou atravessadores17, que por sua vez também lucram com essa
atividade. Geralmente nos lixões das principais cidades do país trabalham mais de mil
pessoas.
Nos países de Terceiro Mundo a catação de lixo representa a única fonte de renda de
setores totalmente excluídos da sociedade: os catadores de lixo. Em Fortaleza, por
exemplo, aproximadamente cinco mil catadores beneficiam-se deste trabalho, que
17
O atravessador é um intermediário entre os catadores e a indústria. Ele compra tudo dos catadores procurando
manipular os preços de compras e revende para a indústria de reciclagem.
93
representa não só uma fonte de renda, mas um possível caminho para a construção da
cidadania.
Em Fortaleza não existe coleta seletiva realizada pela Prefeitura Municipal, mas o
trabalho informal de muitos catadores alimenta as indústrias recicladoras. Na pesquisa
do professor Gradvohl (2001, p. 64) o setor industrial aceitou bem melhor a idéia de
implantação de um sistema de coleta seletiva, logo que, a indústria objetiva qualidade
nos resíduos. Já o setor comercial, cujos representantes são os donos de depósitos,
demonstrou preocupação com qualquer mudança do sistema. O objetivo principal do
último setor foi proteger sua atividade, por isso defendem a informalidade do trabalho
dos catadores.
No Brasil ainda não existe uma Política Pública Nacional de Resíduos Sólidos. Desde
longa data tramitam pelo Congresso dois projetos de leis: primeiramente o Projeto de
Lei No 3.333/92 do deputado Fábio Feldmann e o Projeto de Lei No 3.029/97 do
deputado Luciano Zica.
O Estado do Ceará através da Lei No 13.103, de 24 de janeiro de 2001, dispõe sobre a
Política Estadual de Resíduos Sólidos e dá providências correlatas. O Decreto No
26.604, de 16 de maio de 2002, regulamenta a Lei citada. A Lei No 13.10318 está em
consonância com as normas da Associação Brasileira de Normas e Técnicas (ABNT) e
com o CONAMA. Essa lei trata da recuperação da qualidade do meio ambiente e da
proteção da saúde pública. Seu objetivo principal é reduzir o montante de lixo nos
aterros e definir ações de gerenciamento e monitoramento dos resíduos. Entretanto,
não foi definido prazo para os municípios cearenses se adequarem às regras.
A Secretaria de Infra-Estrutura do Estado (Seinfra) elaborou e distribuiu em todas as
prefeituras do Ceará um manual para a implantação de aterro sanitário. Mas a
construção dos aterros não se efetivou. O técnico da Seinfra, numa reunião do FEL&C,
apontou o desinteresse dos prefeitos para o cumprimento da Lei. Já técnicos da ABES18
A Lei e os Decretos estão disponíveis no site www.semace.ce.gov.br/Bibliotecavirtual/Leis .
94
CE (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – seção Ceará)
destacaram a falta de condições financeiras e técnicas das prefeituras para a
construção e manutenção dos aterros.
A partir da Lei No 13.103 alguns eventos aconteceram no Estado como: workshops
sobre resíduos sólidos reunindo representantes da área de meio ambiente de diversos
municípios; confecção de material, exemplo citado no parágrafo anterior; em Fortaleza
destaque para o “Projeto Reciclando – Seja um Cidadão Ecológico” criado na extinta
Secretaria do Trabalho e Ação Social - Setas19 - em parceria com o Sebrae-CE.
O Estado, com a preocupação de incrementar a oferta de matérias primas para a
indústria de reciclagem, cria o Projeto Reciclando. Nesse projeto participaram dez
comunidades de Fortaleza localizadas em oitos Centros Comunitários – Dias Macedo,
Dom Lustosa, Farol, Goiabeiras, João XXIII, Santa Terezinha, São Francisco e
Tancredo Neves – e duas associações – Associação dos Micros e Pequenos
Empresários do Conjunto José Walter (AMPEJW) e Associação Ecológica dos
Coletores da Serrinha e Adjacências (ACORES). Nos Centros Comunitários foi
implantada uma infra-estrutura mínima composta de galpão, frota de carrinhos, de
balança, etc. Nesses dez grupos participavam no mínimo dez pessoas. Nos momentos
de menos mobilização o Reciclando reunia cem catadores, mas no auge do Projeto
participaram trezentos catadores.
O Reciclando foi construído como uma política pública de organização da cadeia
produtiva da reciclagem. O então titular da Setas, Azin, estabeleceu algumas
prioridades na secretaria. Dentre elas o apóio a economia solidária e o desenvolvimento
de projetos que tivessem uma capacidade de inclusão produtiva. Nessa estratégia de
inclusão produtiva nasce o Reciclando, apoiado na tese de mestrado do professor
Albert Gradvohl, titular da Secretaria da Ouvidoria Geral e do Meio Ambiente. O Projeto
19
Na atual gestão estadual a Setas foi dividida em duas secretarias: SETE (Secretaria do Trabalho e
Empreendedorismo) e SAS (Secretaria da Ação Social). Os dados sobre o Projeto Reciclando foram obtidos através
de duas entrevistas a dois técnicos de ambas secretarias: a socióloga Carla Costa Calvet da SAS e o gerente da
Célula de Incubação de Empreendimento Carlos Eduardo Franklin Bezerra. Como também de visita ao Centro de
Triagem do Tancredo Neves, ao Centro Comunitário São Francisco e ACORES.
95
se dividiu basicamente em duas frentes: uma para estimular e atrair investimentos de
indústrias recicladoras e outra para organizar a oferta de resíduos. Até então, no Ceará
não havia compradores significativos que pudessem realmente transformar a
reciclagem numa cadeia produtiva e organizada.
A ação de organização dos empresários redundou na criação de um sindicato: o
Sindiverde. Com essa organização o Estado implantou recursos e capitais nessa área.
Por conta dessa política existe no Estado um parque industrial de recicladores. Pelo
lado dos catadores a oferta foi organizada através dos Centros Comunitário da Ação
Social espalhados na cidade e localizados em regiões onde eles residiam.
O mercado da reciclagem reivindica para a sustentabilidade do setor a existência de
incentivos governamentais à atividade. Algumas ações já foram adotadas pelo Estado
cearense no sentido de minimizar a carga tributária do uso de sucata e materiais. O
Decreto 27.487, de junho de 2004, criou uma forma de incentivo para o setor com o
diferimento da cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS) de sucata e resíduo plástico para a ponta do mercado da reciclagem, ou seja, a
indústria recicladora. O novo Decreto 27.761, de abril de 2005, incluiu no diferimento da
cobrança do ICMS metais, papel, papelão, plástico, tecido, borracha, vidro e
congêneres. Além do adiamento do imposto, o novo Decreto estendeu o benefício para
praticamente todo o setor de reciclagem: indústria, sucateiros / donos de depósitos.
Na separação da Setas todos os programas de qualificação relacionados com a
questão do trabalho foram encaminhados para a Secretaria do Trabalho e
Empreendedorismo. O Projeto Reciclando, por ser um dos programas da política de
promoção do trabalho, foi para a nova secretaria. Mas um problema eminente
desestruturou os grupos de catadores: toda a infra-estrutura que havia nos Centros
Comunitários permaneceu na SAS. Além do problema físico, a nova Secretaria não
priorizou o Projeto e nem se articulou com a SAS para resolver o problema dos Centros
Comunitários. Equivocadamente o Governo Estadual assume o controle e monopólio
96
da comercialização dos recicláveis recolhidos pelos catadores repetindo o papel de
atravessador, tradicionalmente exercido pelos sucateiros.
Atualmente, o Projeto praticamente esvaeceu. Somente quatro grupos permanecem
ligados ao Projeto, mas sem acompanhamento técnico social efetivo. A SETE continua
mantendo o Centro de Triagem pagando água, luz, telefone, alguns funcionários: vigia,
motorista e o coordenador. O gerente de célula da SETE, em que o Reciclando está
ligado, não soube informar a quantidade de catadores que permanece no projeto, mas
disse ser um número muito reduzido. A falta de organização e articulação dos grupos,
aliada a desmotivação dos catadores sinalizam uma falência do Projeto. Os técnicos da
Secretaria também não conseguiram se articular com os catadores.
Uma das últimas ações de impacto do Estado, em relação ao lixo, foi o convênio com a
Espanha para o diagnóstico da destinação de resíduos. O Governo, através da
Secretaria de Infra-Estrutura do Estado (Seinfra) assinou em novembro de 2004 um
convênio de cooperação técnica com o Governo da Espanha para elaboração do
Programa de Tratamento e Disposição Final dos Resíduos Sólidos do Ceará. O recurso
previsto para a realização do estudo equivale a 271.965 Euros a fundo perdido, oriundo
de Linhas de Financiamento de Estudos de Viabilidade (FEV) da Espanha. A empresa
vencedora da licitação pública foi uma empresa espanhola Prointec. No dia 25 de maio
de 2005 esse Projeto foi apresentado ao FL&C por uma técnica da Prointec. Ela
informou que o Projeto estava na fase de realização de um questionário nos municípios
do Estado para saber como está o tratamento do lixo em cada município. Alguns
membros do Fórum, como os representantes do Instituto Ambiental Viramundo e
Emlurd, temem que as prefeituras não consigam nem sequer responder várias questões
do questionário por falta de dados relacionados ao lixo.
O Ceará possui apenas nove cidades com aterros sanitários em operação: Caucaia;
Aquiraz; Maracanaú; Jaguaribara; Pacatuba; Sobral; Itapipoca; Camocim e Cascavel.
97
Os nove aterros atendem treze cidades do Estado o que corresponde ao atendimento
de cerca de 53% da população total.20
Fortaleza não tem mais espaço para a disposição final do seu lixo. Os resíduos sólidos
da capital são levados para o Aterro de Caucaia. O Asmoc – Aterro Sanitário
Metropolitano Oeste recebe 200 toneladas ao dia do próprio município, Caucaia, e
3.500 toneladas ao dia de Fortaleza sendo quase a sua totalidade formada por lixo
domiciliar, sabe-se que até 35% desse lixo coletado pode ser reciclado. O Asmoc está
em funcionamento desde 1994 e, segundo alguns especialistas, o aterro ainda tem uma
vida útil de aproximadamente cinco a seis anos se continuar com o mesmo ritmo de
recebimento de lixo.
Além da ausência do espaço físico na cidade, Fortaleza enfrenta a falta de políticas
públicas sobre o lixo. Neste contexto citadino a problemática dos trabalhadores
informais do lixo, os catadores, foi ampliada com total descaso e omissão do Poder
Público Municipal. A administração pública passada não realizou uma coleta seletiva
nem campanhas efetivas e eficazes que conscientizassem a população sobre lixo e sua
implicação ambiental. O lixo não era pensado sobre o ponto de vista ambiental e as
discussões, nos últimos anos, se reduziam em torno da tarifa do lixo, tão criticada e
rejeitada pela população.
A
Prefeitura
repassou
para
uma
empresa
privada,
Ecofor
Ambiental21,
a
responsabilidade de coletar o lixo e educar a população. Na época, o vereador Rogério
Pinheiro denunciou no FL&C algumas cláusulas do contrato: falta de especificação da
porcentagem a ser destinada para a educação ambiental; o aumento do valor da
tonelada do lixo; o valor fixo previsto no contrato para o pagamento da empresa.
As ações da prefeitura se reduziam a fazer trabalho de coleta seletiva de papel junto a
alguns órgãos públicos e campanhas educativas com ambulantes e permissionários do
20
Dados retirados do jornal O Povo, caderno Cotidiano, de 1 de dezembro de 2004.
A Ecofor Ambiental é uma empresa do mesmo grupo da Marquise. Ambas empresas se revezavam na coleta do
lixo.
21
98
Mercado Central e Beco da Poeira. A educação ambiental para a população, em geral,
era responsabilidade da Ecofor.
Na gestão passada os catadores eram completamente ignorados. Nos últimos anos o
único projeto de incentivo a coleta seletiva foi o Projeto Jovem Empreendedor, através
da Secretaria de Desenvolvimento Econômico – SDE. Durante o período de 2003 e
2004 a prefeitura contratou a Copaterce – Cooperativa de Prestação de Serviço e
Assistência Técnica do Ceará Ltda – para realizar o curso Empreendedorismo
Cooperativo de 219 horas/aulas com jovens da cidade com a finalidade capacitá-los
para trabalhar na reciclagem de forma associada. No período da capacitação eles
recebiam uma bolsa de R$ 50,00 por semana. Os jovens selecionados para o curso
nunca trabalharam com o lixo. Desse projeto nasce a Coopremarce.
A Coopremace – Cooperativa Pré-beneficiamento de Materiais Recicláveis do Ceará
ganhou toda uma infra-estrutura da prefeitura. O Galpão de Triagem de Materiais
Recicláveis funciona ao lado da Emlurb. A cooperativa, por intermédio da prefeitura,
conseguiu uma parceria com o grupo Pão de Açúcar que organizou estações de
reciclagem Pão de Açúcar Unilever. No ano de 2004, no início do projeto, foram criados
cinco Pontos de Entrega Voluntária (PEVs). Novos pontos foram criados no ano
corrente. Mas a cooperativa teve problemas internos entre os jovens e com questões
burocráticas que apontam para um eminente fracasso. Na visita, in loco, detectei a
permanência de apenas dez jovens na cooperativa: cinco trabalhando no galpão e
cinco nos postos do Pão de Açúcar.
No tocante a pesquisa verifiquei que o último relatório elaborado pelo poder público
municipal foi no ano de 1996, através EMLURB-DLU. O objetivo desse relatório foi
estudar a composição dos resíduos da cidade de Fortaleza e contribuir para o processo
de otimização do uso de serviço, pessoal, tempo, transporte, custos e principalmente do
destino final dos resíduos. A proposta inicial era a realização do estudo a cada ano.
Entretanto somente o primeiro aconteceu.
99
A gestão da Prefeita Luizianne Lins vem respondendo as reivindicações das
organizações da sociedade civil envolvidas com a temática do lixo. A primeira iniciativa
da Prefeitura foi criar um Grupo de Trabalho (GT) dos Catadores ligado diretamente ao
gabinete da prefeita. Esse GT é composto por sete representantes de OGs, sete de
ONGs ligadas ao FL&C e quatro de comitês. Alguns especialistas apontam para o início
das atividades com os catadores a realização de um amplo cadastro das pessoas que
vivem da catação e a criação de galpões em diferentes áreas das seis regionais, para
que o material seja depositado provisoriamente até seguir para um local adequado.
Vários órgãos da prefeitura estão envolvidos com a questão do lixo. Em março deste
ano, a Ettusa implantou, no Terminal do Siqueira, o projeto-piloto de coleta seletiva de
lixo, com quatro grupos de lixeiras22. O lixo coletado será destinado para comunidades
carentes do próprio bairro. A AMC realizou no mês de setembro junto ao Fórum a
Plenária Movimento dos Catadores com o objetivo de evitar acidente com os catadores,
através da educação de como conduzir os carrinhos nas vias públicas sem risco.
O compromisso da prefeita em inserir os catadores existentes na coleta seletiva
impulsionou o FL&C e os catadores a desenvolver um projeto de formação em
coopetativismo, bio-consciência, técnica e método em coleta seletiva ministrado pela
Cooperar. Essa ação acontece toda quarta-feira, à tarde, no seminário da Prainha.
Oitenta catadores participam desse processo de formação com representantes dos
quatorze grupos que freqüentam o Fórum.
A primeira aula aconteceu no dia 15 de junho de 2005. A estimativa é que,
provalvemente, em novembro ou dezembro, acontecerão assembléias de constituição
das seis cooperativas e a inauguração de uma Central que funcionará como um
escritório de comercialização dos produtos e agilização da rede. A idéia principal é que
essas cooperativas trabalhem em rede. Em cada regional será constituída uma
cooperativa a partir dos grupos já existentes. Cada cooperativa irá congregar e coletar
dentro da sua respectiva regional. Com o apóio da prefeitura a expectativa do Fórum e
22
Reportagem do jornal Diário do Nordeste, 04 de março de 2005.
100
dos catadores é que no ano de 2006 seja ofertado à cidade de Fortaleza um serviço
regular e eficiente de coleta seletiva.
3. 2. Laboratório da participação: outras experiências.
O exercício da cidadania vem avançando através de experiências de vários grupos da
sociedade civil. Destaco, aqui, algumas experiências que estimulam a formalização das
organizações dos catadores, fornecem apóio técnico e incorporam as associações de
catadores ao sistema público de coleta seletiva de lixo. Por meio dessas organizações
a coleta seletiva é viabilizada através de parcerias com estabelecimentos comerciais e
residenciais, instituições bancárias, bares, restaurantes e outros.
A Cooperativa dos Catadores Autônomos de Papel e Aparas de Materiais
Reaproveitáveis – COOPAMARE é um exemplo de sucesso de uma cooperativa de
catadores, no município de São Paulo. A criação da COOPAMARE encetou na segunda
metade dos anos 70 por uma iniciativa espontânea da Organização de Auxílio Fraterno
– OAF, entidade ligada à Igreja Católica dirigida para as populações de rua. A partir daí,
grupos de catadores passaram a se reunir no Centro Comunitário dos Sofredores de
Rua localizado no bairro do Glicério, onde começaram a construir carrinhos para
transportar o material reciclável até o local de venda. O trabalho desses grupos de
catadores assumiu um caráter profissional no ano de 1985, graças ao apoio financeiro
do BNDES que possibilitou o aluguel de uma casa, a compra de balança e de um
caminhão. Em 1995, o apoio do IAF – Interamerican Foundation, agência de
cooperação americana, permitiu a aquisição de uma camionete (Polis, 1998).
O referido grupo se estruturou como Associação dos Catadores de Papel em 1986 com
o objetivo de obter melhores preços no mercado. No ano de 1989 a associação se
transforma em cooperativa. Desta forma, oficialmente a Coopamare surge em 1989
como uma cooperativa sem fins lucrativos contando com a presença de vinte catadores.
Somente no ano de 1990 estreitou-se a relação da Cooperativa com a prefeitura
conseguindo a cessão de terreno embaixo do viaduto Paulo VI, região de Pinheiros,
101
onde os materiais recicláveis são estocados e beneficiados para a venda. Além da
cessão do espaço público a prefeitura promulgou o decreto que criou o estatuto de
categoria profissional, estabeleceu um convênio para o pagamento de serviços
prestados pela diretoria da cooperativa e financiou a capacitação dos catadores. Hoje a
Coopamare conta com 80 catadores, entre cooperados e associados, e com 120
catadores avulsos.23
A ASMARE24 é outro exemplo de organização bem sucedida, vivenciada na capital do
Estado de Minas Gerais, graças ao modelo inovador de uma gestão dos resíduos
sólidos. A coleta seletiva em Belo Horizonte faz parte do Programa de Manejo
Diferenciado de Resíduos Sólidos coordenado pela Superintendência de Limpeza
Urbana, autarquia municipal, que conta com a parceria de várias entidades da
sociedade civil: Pastoral da Rua e Cáritas, Associação Evangélica Brasileira,
Associação Brasileira das Industrias Automática de Vidro – Adividro, Companhia
Siderúrgica Belgo-Mineira, Organização das Nações Unidas, Santa Casa de
misericórdia e ASMARE.
A ASMARE é uma associação de catadores de papel, constituída de 380 catadores
associados que podem ser identificados pelo crachá, uniforme e carrinhos. Os
associados são capacitados pela prefeitura, Pastoral de Rua e CEMPRE –
Compromisso Empresarial para a Reciclagem –, que desenvolveu material didático de
apoio aos cursos de capacitação. A associação teve, também, apoio da Cáritas
Internacional.
Há mais de 50 anos os catadores de papel fazem parte da realidade de Belo Horizonte.
A falta de organização da categoria, no início dessa atividade, relegou-os ocupar um
espaço na economia de maneira excluída. A partir de 1987 a Pastoral de Rua apóia os
catadores na organização social e produtiva da atividade de reciclagem. Assim foi
possível fundar em 1990 a associação denominada ASMARE. No ano de 1993 a
23
Dados obtidos no site www.coopamare.com.br/Histórico acessado em 03 de junho de 2005.
Dados retirados do site www.asmare.org.br/ConheçaaAsmare/Histórico acessado em 03 de junho de
2005.
24
102
prefeitura de Belo Horizonte ao implantar a coleta seletiva opta em estabelecer uma
parceria com os catadores, reconhecendo-os como agentes ambientais prioritários na
execução desta política.
A ASMARE recolhe por mês cerca de 450 toneladas de lixo através do trabalho de
coleta realizado pelos catadores e da parceria junto a empresas, escolas, condomínios,
órgãos públicos, entre outros. 55% dos catadores são mulheres e 44% homens cuja
renda familiar varia de um a seis salários mínimos25.
Os catadores que participam diretamente de alguma organização recebem apoios
técnicos, sociais e assistenciais, desde aulas, cursos de capacitação à exigência da
manutenção dos filhos na escola. Os catadores, por intermédio das associações ou
cooperativas, vêm angariando importantes conquistas como o reconhecimento e a
valorização do trabalho do catador, a melhoria das condições de trabalho, o aumento
do valor de venda dos recicláveis que são repassados diretamente para a indústria,
quebrando a rede com o atravessador. A autonomia dos grupos reflete na melhoria da
renda do catador.
Apresentarei uma experiência em Fortaleza que teve insucesso pela falta de
participação e autonomia dos catadores. A Cooselc – Cooperativa dos Trabalhadores
Autônomos da Seleção e Coleta de Material Reciclável Ltda – funciona no antigo Aterro
do Jangurussu, Rua 11, Jadim Castelão, bairro Jangurussu. O aterro, mais conhecido
por Lixão do Jangurussu, funcionou por 20 anos às margens do Rio Cocó. O lixo
acumulado chegou a uma cota de 42 metros de altura. O Governo do Estado
pressionado por ambientalistas e moradores das adjacências foi impulsionado a buscar
recursos para a construção de aterros sanitários. O Banco Mundial, através do Projeto
Sanear financiou a construção de três aterros sanitários na Região Metropolitana de
Fortaleza, nos municípios de Caucaia, Aquiraz e Maracanaú.
Com a desativação do Lixão o problema ambiental foi parcialmente resolvido - o
25
Idem.
103
despejo de chorume, emanado da enorme massa de lixo continuou a escorrer sem
qualquer tratamento, diretamente para o Rio Cocó - mas o problema social permanecia.
Mais de mil pessoas sobreviviam do Lixão do Jangurussu. O Governo do Estado opta
por construir no mesmo local uma Usina de Triagem de resíduos. Através do convênio
com a Prefeitura Municipal de Fortaleza, o Estado transfere à prefeitura a gestão da
usina e todos os novos equipamentos. Por decreto cria-se a Cooselc, registrada em
outubro de 1998 com 360 vagas para os catadores do antigo lixão. Mas nem Estado e
nem Prefeitura preocuparam-se em adotar políticas públicas de reciclagem que viessem
a beneficiar os catadores.
Para a médica sanitarista Denise Cury, ex-coordenadora do FEL&C, a intervenção do
Estado e da Prefeitura foi desastrosa, do ponto de vista social. A intervenção levou os
catadores do Jangurussu a três diferentes destinos: parte ficou ligada à nova usina de
triagem (mulheres, jovens e idosos, em sua maioria); outros transformaram-se em
catadores de rua, principalmente os homens que por serem mais fortes, do ponto de
vista físico, tinham esperanças de melhores ganhos; finalmente algumas famílias
migraram para as imediações do novo aterro metropolitano em busca do lixo perdido.
Aos que permaneceram ligados à Usina de Triagem, muitas dificuldades foram
impostas, entre elas: a ausência de investimento na capacitação do grupo;
permanência do trabalho sobre o lixo domiciliar bruto da cidade, sem qualquer
segregação prévia de materiais; falta de equipamento para o catador como luvas,
máscaras e botas cano longo; redução do rendimento; alto custo da manutenção dos
equipamentos; a presença de catadores sem serem cooperados no pátio de baixo da
usina. No período que realizei visitas à cooperativa verifiquei quatro esteiras quebradas
do total de seis.
Fortaleza teve ainda a experiência de implantação da planta piloto de um consórcio26 do
lixo no bairro do Pirambu, iniciado em 05 de julho de 1996 e terminado em 30 de
26
Consórcio significa, do ponto de vista jurídico e etimológico, a união ou associação de dois ou mais entes da
mesma natureza. O consórcio não é um fim em si mesmo; constitui, sim, um instrumento, um meio, uma forma para a
resolução de problemas ou para alcançar objetivos comuns (Gradvohl, 2001, p.73).
104
agosto do mesmo ano, na Sociedade Comunitária de Reciclagem de Lixo do Pirambu –
Socrelp. O modelo de consórcio foi testado na comunidade Socrelp, organizada na
forma associativa desde 1994 e aproveitando todas as instalações físicas, tais como
galpão, pátios e máquinas do Projeto Sanear executado pela Secretaria do Meio
Ambiente do Estado.
O projeto inicial realizado na Socrelp se definia como um projeto de coleta seletiva, com
base na educação ambiental. A coleta se limitava ao bairro do Pirambu. Gradvohl
(2001, p.75) considerou utópica a experiência que pretendia direcionar de forma
voluntária 100% da oferta de recicláveis, ou seja, 60.116kg mensais desses materiais a
partir do conceito único de educação ambiental. O programa de educação ambiental
teve insucesso. O modelo do consórcio do lixo implantado em 1996 aproveitou toda
estrutura física e humana.
As ações para implantação do consórcio possibilitaram a Socrelp receber treinamento e
capacitação para a gestão da unidade produtiva, ensinando como selecionar, classificar
e tratar os resíduos para a comercialização de forma técnica, através do termo de
adesão entre o Sebrae/Ce e o Sistema Fiec – Federação das Indústrias do Estado do
Ceará. Como também desenvolver ações estratégias comerciais, que minimizassem a
atuação de atravessadores.
No começo do ano de 2004 realizei várias visitas de campo a Socrelp no período da
tarde. Entretanto, poucos foram os contatos com os catadores. Geralmente, os
catadores ao chegarem na Associação separavam e pesavam os materiais coletados
na rua, recebiam o dinheiro e logo iam embora. Eles sempre estavam apressados e
com muito trabalho. O presidente da associação me informou que no período da noite a
Associação recolhe no Centro da cidade os materiais recicláveis em um caminhão.
Assim, muitos catadores preferiam vender seus materiais no Centro. Os motivos acima
me fizeram abandonar a pesquisa na Socrelp.
105
Após uma breve apresentação de diversas experiências relacionadas a organização de
catadores, passarei, no próximo item a apresentar os relatos orais dos sujeitos da
minha pesquisa.
3.3. Relatos orais sobre a vida e a participação dos catadores.
Agora, passarei a trabalhar com os dados colhidos nas entrevistas que realizei com
nove catadores de Fortaleza visando refletir sobre as informações transmitidas nos
depoimentos. Iniciarei minha reflexão resgatando de onde partem os catadores da
pesquisa para a caminhada pelas ruas dos vários bairros de Fortaleza.
Na pesquisa de graduação (Gonçalves, 2001) detectei que, geralmente, são nas áreas
rejeitadas pelo mercado imobiliário privado ou nas áreas públicas situadas em regiões
desvalorizadas e de risco que segmentos da população, desprovidos de qualquer
direito, escolhem para se ajolar: beiras de rios, encostas dos morros, terrenos sujeitos a
enchente, sem saneamento, regiões poluídas ou até em áreas de proteção. Nesta
pesquisa, também, a falta de moradia é uma das carências que afeta os catadores. O
Senhor João e a Dona Huga se instalaram à beira do rio.
Quando eu cheguei aqui com pouco dinheiro e uma televisão negociei com um rapaz a compra de um
quarto na beira do rio e um carrinho e aí eu comecei a trabalhar na sucata de novo. [...] Como eu morava
na beira do rio – no tempo do inverno era melhor está no meio da rua do que dentro de casa – as irmãs
juntamente com o padre da Paróquia compraram, por três mil e quinhentos reais, essa casa que eu moro.
(João, Cooperav)
Eles viram minha situação sem marido morando numa casinha à beira do rio, numa área de risco mesmo
e começaram a me ajudar. (Huga, Cooperav)
As ocupações de terras surgem, também, como estratégia para solucionar o problema
da moradia nas cidades. As ocupações ocorrem em bloco, ou seja, um certo número de
famílias que não podem pagar aluguel ou comprar uma casa ou terreno procura
juntamente uma área para instalar-se no mesmo dia com todo o grupo. A catadora
Chaguinha sem poder pagar mais o aluguel recorre a essa alternativa.
Nós viemos morar aqui num terreno invadido. Na época o Ciro Gomes tinha entrado na política. Então,
ele comprou o terreno que invadimos, depois desapropriou e deu pra gente. (Chaguinha, Cooperav)
106
A problemática da habitação dos catadores da Acores é mais crítica: dos quatro
catadores que participam da Associação, três moram na própria sede. Inclusive um excatador também mora no espaço da Associação. Quatro famílias residem num mesmo
espaço, completamente impróprio à moradia. A situação de moradia desses catadores
da Acores demonstra que a habitação não pode ser tratada como mercadoria ou
produto lucrativo.
Moro aqui mesmo na reciclagem. Antigamente o trabalho na reciclagem era bom, dava pra gente se
manter, pagar o aluguel. Agora não, as coisas tão baixando, tem muito catador. Aí não tenho condição de
pagar o aluguel. Aí a Nilda me ofereceu um quartinho na reciclagem pra eu morar. (Edilene, Acores)
O problema daqui é que o dinheiro só sai com quinze dias. Muitos recicladores não querem essa forma
de pagamento. Comigo não tem problema porque eu moro aqui. Tanto faz eu receber o dinheiro na hora
como depois. (Glauber, Acores)
Moro aqui no depósito.(José, Acores)
Às vezes eu moro aqui na reciclagem, outras vezes eu vou à casa da mãe que fica no Riacho Doce. Não
moro direto com ela por causa da bebida. Sonho conversando com as meninas, me casando ou me
juntando. Quando acordo fico triste porque não tenho condições de casar. O meu ganho é pouco não dá
pra comprar as coisas... pagar água, luz. Nem para comprar comida direito o dinheiro dá. Meu consolo é
uma cachacinha. (Chichi, Acores)
A sede da Associação tornou-se um cortiço pela característica de várias famílias
utilizarem coletivamente os espaços: salas, banheiro, cozinha. Mas em momento algum
os catadores mencionaram pagar determinado valor por ocupar os espaços. Entretanto,
o dia do pagamento dos catadores é incerto.
As experiências relatadas acima representam um conjunto de situações denominado
por Kowarick (2000) de espoliação urbana que está intimamente ligada à acumulação
do capital e ao grau de pauperismo dela decorrente.
[...] espoliação urbana: é a somatória de extorsões que se opera pela
inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, que
juntamente ao acesso à terra e à moradia apresentam-se como socialmente
necessários para a reprodução dos trabalhadores e aguçam ainda mais a
dilapidação decorrente da exploração do trabalho ou, o que é pior, da falta
desta.(Kowarick, 2000, p. 22)
As experiências, também, nos remetem ao que Castel fala de "desenraizamento", ou
seja, do fenômeno fundamental no começo do processo de exclusão, na falta de
acesso ao patrimônio, aqui representada na casa, e ao trabalho regulado.
107
Os catadores de lixo são, muitas vezes, estigmatizados à rejeição e à inutilidade assim
como a matéria-prima do seu trabalho: o lixo. Eles são tratados e considerados como
“não-semelhantes”. A maneira que a sociedade trata os catadores, relatada pelos
entrevistados, enquadra-se no termo apartação social proposto por Cristóvam Buarque
(Nascimento, 1995, p.25). A apartação social seria o fenômeno de separar o outro, não
mais considerado como humano. Para o autor a exclusão social torna-se apartação
quando o outro não é apenas desigual ou diferente, mas quando o outro é considerado
como "não-semelhante", um ser expulso, não dos meios modernos de consumo, mas
do gênero humano. Nos depoimentos abaixo a discriminação ao catador é notória,
como também, a falta de informação e compromisso das pessoas com a preservação
do meio ambiente. Até o respeito é negado a esse segmento da população. Com a
palavra meus interlocutores:
A reciclagem piorou também porque as pessoas não ajudam. Nós trabalhamos no meio da rua, sofrendo,
passando perigo e as pessoas ainda não tem respeito por nós. (João, Cooperav)
Às vezes as mulheres me davam carão. Eu amarrava a sacola de lixo e ia embora. (Keké, Cooperav)
Ainda não recebo nenhuma doação. Aliás, muitas pessoas fazem é reclamar: “Diabo desse catador
vem mexer no meu lixo”; “Hei lixeira”. O povo não dá um copo d’água a gente. Mesmo as pessoas
dizendo as coisas com a gente, nós passamos e vamos embora. (Chaguinha, Cooperav)
Logo no começo era diferente. A gente agüentava muito abuso. As pessoas reclamavam porque a gente
rasgava a sacola do lixo. (Huga, Cooperav)
Os moradores não colaboram. Eles dizem é coisa com a gente. Seria muito bom se o povo respeitasse
mais a gente e que nos ajudasse separando o material reciclável e marcasse um dia pra a gente ir pegar.
(Edilene, Acores)
O ruim da reciclagem é que as pessoas chamam a gente de vagabundo, sem coragem de procurar um
emprego. Uma vez uma moça disse assim: “Vixi, um rapaz tão novo caçando o lixo no meio da rua”. Os
moradores das casas são os que mais reclamam: “Fulano não espalha o lixo, pode deixar!”. Então
amarro o saco do mesmo jeito, saio e vou pra outro lugar. Os policiais também pensam que a gente
rouba os fios de telefone. Uma vez alguns policiais, do Parque Dois Irmãos, viraram meu carro e como
não encontraram nada eles foram embora e eu coloquei os materiais de novo no carrinho. (Chichi,
Acores)
Ao lado da tendência geral de pobreza dos catadores, observou-se um baixo nível de
instrução. Nem um catador entrevistado concluiu o Ensino Fundamental II.
Constatamos que três, praticamente, não sabem ler. Cada um apresenta seu nível de
escolaridade:
108
João: meu estudo foi até a oitava; Keké: estudei apenas a primeira série; Chaguinha: nunca tive tempo
pra estudar; Huga: estudei até a quinta séria; Glaudinei: estudei até a quinta série; José: parei de estudar
na quinta série; Edilene: só estudei até a oitava série; Chichi: não sei lê, nunca me interessei em estudar,
meu negócio sempre foi trabalhar; Glauber: estudei até a sexta série.
O nível de educação escolar sinaliza quão baixo é o grau de escolaridade dos
catadores. O baixo nível educacional é um obstáculo para a inserção no programa de
modernidade do mercado de trabalho, onde se faz necessário a utilização de máquinas
e equipamentos que requerem leitura e interpretação de manuais. Assim como é
obstáculo para a autogestão das associações e cooperativas. Os catadores se acham
incapazes de coordenar o grupo.
Na eleição da Cooperav a presidente e a tesoureira eleitas não são catadoras, mas
colaboraram com a organização dos catadores desde a formação do grupo. A confiança
e o bom trabalho realizado pela Musa, acrescido ao sentimento de incapacidade dos
catadores fizeram com que esses trabalhadores não seguissem a orientação do FEL&C
e elegessem uma pessoa que não era catadora. Na Acores os catadores consideram a
presidente da Associação a dona do depósito. Analiso que as relações de necessidade
e troca de favores abafam as questões políticas referente à gestão da Associação. A
falta da leitura e das abstrações deixam ainda mais vulneráveis estas famílias que
vivem no limiar da pobreza e da miséria na cidade de Fortaleza.
A vulnerabilidade das famílias pobres faz com que os filhos abandonem ou nem mesmo
tenham acesso aos estudos para ingressarem no mundo do trabalho. A insuficiência de
renda faz com que todos os membros das famílias trabalhem. Isso implica em presença
de criança e adolescente no trabalho infantil. Na catação é visível a presença de
criança nessa atividade. A caminhada de alguns catadores é feita com filhos sempre ao
lado, ou melhor, dentro dos carrinhos quando crianças. No início da adolescência
algumas ganham carrinhos adaptados ao seu tamanho.
A inserção no mundo do trabalho na infância é realidade dos catadores entrevistados.
O trabalho e a responsabilidade pelo seu próprio sustento iniciam na infância ou
adolescência.
109
Mas comecei a trabalhar desde os oito anos de idade; quebrava pedra pra fazer cal. Aos doze anos
colocava saca de sessenta e setenta quilos em cima dos carros pra poder viver. Ainda menino fazia e
vendia carrinhos de brinquedo na feira. Nunca gostei de brincadeira. (João, Cooperav)
Quando era menino saía com meu pai para todo canto. [...] Aos treze anos já caçava o lixo com o meu
pai. (Keké, Cooperav)
Faz muito tempo que eu trabalho na reciclagem, nem me lembro mais. Uns vinte anos. Eu e a Nilda
começamos a trabalhar na casa do nosso pai. (José, Acores)
Comecei trabalhando como malabarista do circo escola do Bom Jardim, mas depois que minha mãe
faleceu achei melhor trabalhar na reciclagem porque ninguém quer dá emprego a quem não tem
documento. Já estou acostumada com meu serviço, pois comecei a trabalhar aos quatorze anos de
idade, depois que eu perdi minha mãe. (Edilene, Acores)
Eu tinha treze anos quando comecei a trabalhar com reciclagem num sucateiro do bairro. (Chichi, Acores)
O jovem Keké é inserido desde cedo pelo pai, o senhor João, no mundo do trabalho.
Deficiente visual e com uma renda do benefício insuficiente para manter a família, o
Senhor João, necessita dos filhos para desempenhar o papel de provedor. Além do
trabalho as crianças presenciam sofrimentos e dores. Cedo elas experimentam o
desespero. Os filhos do seu João presenciaram o acidente do pai.
Quando eu cheguei pertinho do terminal da Antonio Bezerra, eu só escutei a pancada na traseira da
carroça: Bah! Em seguida me esfreguei no chão, parando longe com a carroça caindo em cima de mim.
Aí quebrou toda a minha cabeça, a minha visão afundou. Aí eu ouvi muito bem quando um menino gritou,
quando um menino gritou: morreu, morreu papai, morreu. Aí eu não vi mais nada.
A presença de crianças no trabalho com lixo levou a sociedade civil a criar em 1998, o
Fórum Nacional Lixo e Cidadania que lançou em 1999 a campanha “Criança no Lixo
Nunca mais”, pela erradicação do trabalho infantil com o lixo. Para atingir esse objetivo,
o Fórum fixou como metas: colocar crianças e adolescentes, oriundos do trabalho com
o
lixo,
na
escola e
em
atividades
complementares;
inserir
socialmente
e
economicamente os catadores, preferencialmente em programas de coleta seletiva
municipais; erradicar os lixões. O Fórum, nos quatro anos de atuação, conseguiu tirar
30 mil crianças e adolescentes do trabalho com o lixo; o reconhecimento do trabalho
dos catadores pelo Ministério do Trabalho e Emprego; e o aumento dos investimentos
na área de resíduos sólidos por parte das instituições federais27.
27
Dados obtidos no jornal Diário do Nordeste, 12 de dezembro de 2002.
110
É sobre-humana a capacidade das pessoas pobres de sublimar as adversidades e
agruras humanas em momentos de felicidades. Na catação os entrevistados registram
suas satisfações no trabalho que realizam.
Acho a catação melhor porque não estou sendo mandado por ninguém. [...] Passo a semana toda saindo
pra trabalhar. Eu acho uma maravilha, a gente conhece muitas pessoas e faz muita amizade. É como se
fosse um pássaro. (Glaudinei, Acores)
Eu comecei a observar as pessoas juntando as coisas, achei bonito. Na minha casa iniciei separando as
coisas e doava para os meus vizinhos que trabalhavam catando. Depois pensei comigo: sabe de uma
coisa vou pegar um carrinho! (Huga, Cooperav)
Eu gosto desse trabalho. Graças a Deus e ao meu trabalho não falta nada. A gente trabalha igualmente
as outras pessoas que vivem em firma. Nós fazemos a limpeza da cidade e ajudamos os outros
catadores também. (Huga, Cooperav)
No começo eu tinha vergonha. Só queria caçar nos cantos onde ninguém me conhecesse. Hoje não. Eu
não deixo esse meu trabalho por carteira assinada de jeito nenhum. Gosto do que faço porque a gente
conhece pessoas novas e, além disso, se eu trabalhar a semana toda tiro mais que um salário. (Edilene,
Acores)
Mas a fatalidade também é registrada nessa atividade de catação. A dificuldade de
emprego, o baixo nível de escolaridade, a ausência de qualificação de trabalho
subordina a população pobre a apenas oportunidade de sobrevivência. Não existe
liberdade de escolhas ou aptidões para a execução de um trabalho ou outro. Os
catadores reconhecem essa situação:
Como não tinha outro meio de vida fiquei trabalhando na reciclagem. Só tem esse mesmo. [...] O nosso
grupo está bom. Não tem desunião e nem carão como acontece nos depósitos. Se você não chegar na
hora certa o dono do depósito lhe repreende. Aqui a gente chega na hora que quiser. A Musa sempre
atende muito bem. (Keké, Cooperav)
Hoje em dia tem muitos catadores e as coisas são difícil de encontrar. Mas é só o que eu seu fazer.
(Chaguinha, Cooperav)
Posso dizer que não tenho profissão, mas faço tudo. Trabalho com animal na carroça, com reciclagem,
com carvão. O que aparecer eu faço. (José, Acores)
Trabalho mais na reciclagem, porque aqui e acolá eu adoeço. Trabalho quatro noites e passo um mês
internado. Sempre me dá uma dor no corpo, uma fraqueza, dor de cabeça, febre e coisas piores... Mas a
Nilda me ajuda, me visita no hospital e de dá vale pra comprar os remédios. Graças a Deus estou
melhorando. Eu também gosto de trabalhar no carrinho, pelo menos, é melhor do que estar parado.
(Chichi, Acores)
No começo sentia uma vergonha muito grande, mas me acostumei. Fazer o quê? É melhor do que roubar
e mexer no que é alheio. (Glauber, Acores)
Os excluídos, na concepção de Castel, são ameaçados pela insuficiência de seus
recursos materiais e pela fragilidade em seu tecido relacional, ou seja, uma fragilidade
111
que tem como conseqüência o isolamento. Nas brechas do sistema capitalista os
catadores garantem seu sustento e desbravam um caminho de ruptura do isolamento
social com a organização de cooperativas e associações. Apesar das idas e vindas dos
catadores da Acores e das desistências e dificuldades dos Catadores da Cooperav
visualizo um gérmen de transformação e participação nessas organizações.
Na fala dos catadores da Cooperav registro o otimismo e a esperança com relação ao
futuro, à conquista de direitos e à melhoria econômica através da cooperativa.
A
organização favoreceu a conquista do direito mínimo de acesso aos documentos; a
oportunidade de conhecer outros catadores e grupos ligados à temática do lixo, como
também outras cidades; e o mais precioso no meu entendimento é a capacidade do
diálogo e do trabalho em grupo.
Com a cooperativa eu acredito que as coisas irão melhorar. Até meus documentos estou tirando. Já tirei
a identidade, mas ainda falta é muito. Para formar uma cooperativa as pessoas precisam de documentos
por isso todos estão tirando. (Keké, Cooperav)
Apesar de muita luta estamos aqui e agora vamos formar uma cooperativa. Creio que vai melhorar com a
nossa união e com o registro do grupo.[...] Antes a gente fazia só catar. Não era acompanhado por
ninguém. Hoje conhecemos muitas pessoas. Ás vezes eu e a Huga viajamos pra muitos cantos. Eu
desejo que o nosso ganho melhore e que entre doações de material no galpão, pra gente catar aqui e
não nas ruas. (Chaguinha, Cooperav)
Aqui tudo é conversado e controlado por nós. Tudo depende de acordo. Os planos são feitos em
conversa. (Huga, Cooperav)
Lembro-me então da reflexão do Pedro Demo ao discorrer que a fome não é maior que
a falta de cidadania “Ao lado das carências materiais, temos a precariedade da
cidadania. Uma não é maior ou pior que a outra. Condicionam-se mutuamente mas não
se reduzem uma à outra. O cerne da pobreza não está em não ter simplesmente, mas
em ser coibido de ter e de ser. Por isso pobreza é injustiça, e esta consciência é
decisiva para seu enfrentamento” (1996, p. 16). Para Demo o processo de organizar-se
para conquistar seu espaço, para gerir seu próprio destino, para ter vez e voz, é o
abecê da participação.
A partir dos depoimentos e das minhas observações nas entidades pesquisadas
utilizarei a escala de participação proposta por Marcelo Souza (2004) para verificar o
grau de participação dos catadores nas duas associações, ou seja, investigar se existe
112
nessas associações uma participação autêntica, pseudo-participação ou nãoparticipação.
Os catadores da Cooperav, desde longa data, mobilizam-se para concretizar um projeto
construído com organizações religiosas e sociedade civil. Embora a gratidão aos
fomentadores do movimento esteja presente nos discurso dos catadores, as conquistas
são reconhecidas como uma negociação travada dos próprios catadores com diferentes
grupos da sociedade e não como uma concessão ou boa vontade de alguém. O
conhecimento da história do grupo, o engajamento nas atividades proposta e a
esperança que a cooperativa melhore as condições de vida de todo o grupo
comprovam que uma participação autêntica está sendo testada nessa incipiente
cooperativa. Essa questão fica evidente nos depoimentos que se seguem:
O nosso grupo de catadores foi organizado pela irmã Elizabeth. Todas as quartas-feiras os catadores
participavam de reuniões no salão da paróquia. A irmã sempre convidava a gente, porém muitos
desistiram, achavam que nunca ia pra frente. Com seis meses de luta a gente conseguiu oito carrinhos
de geladeira. Enquanto o galpão não era construído a gente vendia nosso material para os depósitos.
Aos pouco a irmã também comprou o terreno. Ela então recorreu ao padre da Paróquia, padre Fayros, e
os dois conseguiram dinheiro para a construção do galpão. Faz um ano que nós estamos aqui. Aqueles
que perseveraram como eu, a Lúcia, a Melândia, o Marcos meu filho vimos muitas conquistas. A Dona
Cristina da Cáritas pagou um curso sobre cooperativa pra gente. [...] É um pouco difícil a organização.
Mas aqui a maioria é quem manda. (Chaguinha, Cooperav)
A Cristina e outras pessoas da Cáritas são uma benção com a gente. Se não fossem elas nós não
tínhamos conhecido e aprendido tantas coisas. Toda a viagem que eu já fiz pra Brasília, pra Crateús,
Porto Alegre foi graças a Cáritas. Eu aprendi muita coisa e conheci muita gente diferente. Na cidade de
Porto Alegre falei com a ministra Marina Silva, pessoa muito boa. Eu sei que foi bom demais! Nos
encontros e viagens que fazemos a gente aprende sobre os direitos, sobre como conviver com as
pessoas. (Huga, Cooperav)
As irmãs me deram apóio e graças a Deus [...] Elas dizem que o depósito é nosso porque somos nós que
tomamos de conta dele. A cáritas também nos apóia, basta dizer que não pagamos nada para participar
das reuniões, nem o ônibus. A Dona Cristina e as outras são pessoas muito boas. Até parece que vieram
do céu. (João, Cooperav)
O padre Fayos, o Padre Junior e a irmã Elizabeth deram muito apoio ao nosso grupo. (Keké, Cooperav)
Um dia recebi na minha casa a visita da irmã Elizabeth me convidando para participar de um grupo de
catadoras. Ela é nosso anjo da guarda esteja onde estiver. Sempre lutou para o nosso bem.(Huga,
Cooperav)
Dentre as oito categorias da escala da participação visualizo que a categoria parceria
está mais adequada para o atual estágio do grupo da Cooperav. A presidência da
113
cooperativa e os catadores colaboram, em um ambiente de diálogo e razoável
transparência, na elaboração dos projetos e implementação das decisões tomadas pela
maioria dos componentes.
Apesar dos limites e dificuldades, do grupo do Parque Santa Rosa, está sendo
construído na cooperativa um planejamento participativo contemplando os três
componentes básicos proposto por Demo (1996, p.42-48): formação da consciência
crítica e auto-crítica na comunidade; formulação de uma estratégia concreta de
enfrentamento dos problemas; necessidade de se organizar.
Na Acores o processo da participação autêntica não prevaleceu no grupo. Mas detectei
uma pseudo-participação alternando a categoria informação e consulta. Na postura do
Estado em relação ao grupo prevaleceu a informação: os catadores foram convidados
para formar uma associação; receberam informações sobre o projeto da Setas; foram
transferidos de uma secretaria para outra e por fim foram abandonados. Mas o espaço
de participação na esfera micro, ou seja, na associação foi criado. A presidente da
Acores é uma catadora e existe o espaço de diálogo entre eles, até por morarem de
forma coletiva. Os catadores sempre são consultados. Acredito que um técnico social
pudesse colaborar para a retomada do grupo, a falta de um mediador dos conflitos
levou alguns catadores ao julgamento equivocado que um depósito é melhor que uma
associação pela ausência do conflito. A falta de autonomia financeira também contribui
para a evasão dos catadores. Mas os catadores que permanecem acreditam que é
possível continuar. O catador Glauber arrisca na sugestão e dois outros catadores
emitem seus pareceres sobre a mesma questão:
Mas se todos se organizassem e colocassem o material não faltava dinheiro. Depende dos recicladores
se unir, se juntar e trabalhar pra botar dinheiro aqui dentro. Porque só um, dois, três coletores, durante
quinze dias, não consegue grande quantidade de material. Hoje só tem quatro coletores trabalhando.
(Glauber, Acores)
Mas muitos pensam que essa história de grupo não vai dar certo. Eles preferem o depósito porque lá não
tem briga. (Chichi, Acores)
Nós lutamos muito com a Nilda para conseguir esse ponto e os carrinhos que, foram trazidos um em cima
do outro, a pé, do Tancredo Neves. Nós não trabalhávamos quando tinha plenária. A gente ia com Nilda
114
para as reuniões. O povo exigia que levasse todos os sucateiros. No início a gente acreditava que as
coisas iriam melhorar, mas depois vimos só conversa e promessa que não cumpria.(José, Acores)
Todos catadores entrevistados relataram que o trabalho da catação passa por momento
de crise: tanto para encontrar material, pois a produção caiu, quanto a queda dos
preços. Não que o consumo tenha diminuído, mas foi a comercialização que aumentou.
Os empresários, desde os donos de um pequeno mercantil aos donos de rede de
supermercado, querem lucrar com a venda de seu lixo. Nem as escolas das periferias
doam mais o material reciclável. Os depoimentos que se seguem são bastante
elucidativos:
A sucata piorou nesse dois últimos. [...] O lixo diminuiu muito. [...] No passado eu conseguia dois ou três
carrinhos por dia, hoje eu só consigo um e com muita dificuldade. O dinheiro também diminuiu, o menos
que eu ganhava na reciclagem era vinte, trinta ou quarenta reais por dia. Hoje esse mesmo valor é
apurado na semana. (João, Cooperav)
O material baixou de preço e muitos comerciantes não fazem mais doações. Agora os comerciantes
querem também vender o material pra aumentar o seu dinheiro. Aqueles que já têm não querem ajudar a
gente. Hoje em dia tem muitos catadores e as coisas são difícil de encontrar. Mas é só o que eu seu
fazer. Porque já estou velha e ninguém que me dar um emprego. (Chaguinha, Cooperav)
Parei porque o tempo piorou, a produção caiu, o preço caiu. Na época eu tirava uns R$ 200,00 ou R$
250,00 com facilidade. Hoje como o preço baixou tem que trabalhar muito pra tirar esse mesmo valor
(José, Acores)
A queda dos preços dos materiais recicláveis é resultado da desvalorização do dólar.
Segundo o Informativo On-line FL&C ( 05 de agosto de 2005) não só os investidores e
exportadores ficam de olho na variação do dólar, mas os catadores de lixo também
fazem o mesmo. A maioria dos materiais recicláveis tem cotação internacional: latinhas,
garrafas, papel e papelão. O alumínio, por exemplo, tem cotação pela London Metals
Exchange e vale para todo o mundo. Nos últimos doze meses, no Brasil, o dólar
despencou 25%. A queda repercutiu logo no bolso dos catadores que viram seus
rendimentos diminuírem.
Nas associações identifiquei vários baixos indicadores das condições de vida dos
catadores: escolaridade, alfabetização, desigualdade social, emprego formal. Muitos
são os catadores que se encontram com profundos problemas financeiros, condições
precárias de moradia. Famílias inteiras dos catadores são vulnerabilizadas pela pobreza
115
e exclusão. Mas a catação organizada tem demonstrado ser um caminho possível para
a superação da exclusão e construção da cidadania.
116
Pesquisadora, Pe. da Paróquia e os catadores do Parque Santa Rosa
Se estamos aqui reunidos estou contente. Penso com alegria que tudo quanto
escrevi e vivi serviu para nos aproximar. É o primeiro dever do humanista e a
fundamental tarefa de inteligência assegurar o conhecimento e o entendimento
entre os homens. Bem vale haver vivido se o amor me acompanha.
(Pablo Neruda)
Aqui hoje terminam estas viagens nas quais me acompanhastes através da
noite e do dia e do mar e do homem. De tudo quanto vos disse vale muito mais
a vida.
(Pablo Neruda)
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É inenarrável a alegria que experimento com o final deste trabalho, final, entretanto que
aponta para uma nova partida. Afinal “o final é algo relativo, pode ser um ponto finito no
espaço, uma chegada, mas também o começo de uma jornada infinita – uma eterna
partida”. (Santos, 1999, p. 105)
Apesar das dificuldades vivenciadas e já comentadas nesse trabalho, a pesquisa me
proporcionou um aprendizado através do contato com os catadores de lixo. Às vezes
me questionava quem estava mais se beneficiando com a pesquisa: eu ou os
catadores? Uma outra pergunta, também, não saia do meu pensamento: qual a
aplicabilidade final da minha pesquisa? Compartilho com vocês que atravessei esse
caminho, como diz o poeta, acompanhada pelo amor e acreditando que “vale muito
mais a vida”. O respeito à vida e à condição humana balizaram este trabalho.
A escolha de colocar as fotos dos catadores em cada início de capítulo desta
dissertação é para lembrar que o ser humano, preferencialmente, o pobre, o excluído
deve ser o foco central das produções acadêmicas e do compromisso político. As
imagens retratam o sofrimento, a dor, a revolta, mas também a alegria, a esperança e
espírito de luta contidos nos semblantes dos catadores. Essa força transmitida pelos
sujeitos da pesquisa impulsiona-me a não considerar essa pesquisa encerrada.
Assinalo, aqui, o desejo de prosseguir ampliando e aprofundando o estudo em tela.
No primeiro contato com os catadores, no período da graduação, prevaleceu a noção
de um trabalho que desqualificava o indivíduo, associado a um ambiente de
“nocividade”. No decorrer da pesquisa com o conhecimento mais aprofundado, através
das leituras feitas e do contato com os catadores organizados, desmitifiquei essa idéia
inicial que prevalece, inclusive, como justificativa, dos gestores públicos, para
desconsiderarem esses trabalhadores. A prova é que nem Estado, nem Prefeitura
efetivaram políticas públicas para essa categoria profissional e ignoraram as
118
experiências da sociedade civil que contribuiriam para a ampliação da esfera pública na
cidade de Fortaleza.
Assim como nos trabalhos de Juncá (2001), Gonçalves (2005), Muñoz (2000), este
texto reflete que no trabalho com o lixo o catador(a) garante junto a sobrevivência física
a sobrevivência da identidade de trabalhador(a). Enquanto trabalhadores são
imprescindíveis na cadeia de reciclagem do país. As experiências aqui apresentadas
evidenciam a importância central do trabalho, não só no nível econômico, mas
sobretudo no nível simbólico.
Nos relatos dos catadores do Parque Santa Rosa
percebe-se a mudança da auto-estima após a inserção na cooperativa.
Segundo os depoimentos dos catadores os moradores da cidade têm a compreensão
que o catador(a) suja a rua. Essa idéia deve também ser desmitificada, pois ao
contrário do julgamento dos moradores da cidade, os catadores(as) são profissionais
que, limpam a rua e precisam ser apoiados com políticas públicas.
Nos anos 90, a desestruturação do mercado de trabalho é evidenciada pelas altas
taxas de desemprego e pela ampliação das ocupações não assalariadas. O cenário
atual é de um mundo sem emprego (Santos, 1999), de crise que pode se transformar
em tempo de integração através de iniciativas e movimentos populares que criem
espaços de autonomia onde seja possível pensar formas de transformação social
alternativas às do sistema capitalista, calcado na desigualdade social, no consumismo e
na destruição do meio ambiente.
As associações e cooperativas organizadas pelos catadores de lixo nos últimos anos no
Brasil constituem-se como exemplos de iniciativas que propiciam a criação de novas
alternativas de trabalho e, ao mesmo tempo, o fortalecimento de valores como:
autonomia, solidariedade, cooperação, auto-estima, organização destes trabalhadores.
Essas organizações apresentam várias vantagens, além do exercício da autonomia,
elas possuem uma estratégia fundamental de unir o político ao econômico.
119
A organização de alguns grupos na cidade de Fortaleza já alcança alguns resultados
positivos. Um deles é a difusão da problemática do lixo e do catador de lixo na
imprensa. Nos últimos anos o tema foi exposto, várias vezes, ao público nos jornais O
Povo e Diário do Nordeste e na arte, como foi o exemplo da exposição “Heróis do
Papelão” de Descartes Gadelha, no Centro Cultural Oboé, no mês de maio de 2004.
Mas a maior conquista foi o comprometimento da prefeita Luizianne Lins com as
reivindicações dos catadores. Graças à organização dos grupos e ao apoio de diversas
entidades que participam do Fórum, esses protagonistas do lixo estão conseguindo
algumas vitórias e suas dificuldades sendo discutidas na sociedade.
O fenômeno da catação não é recente, mas está em franco crescimento. As políticas,
até agora, implementadas em Fortaleza refletiram na valorização da reciclagem pela
indústria, mas na desvalorização do trabalho do catador. A desvalorização do ser
humano cria grupos de indivíduos excluídos da produção, da gestão e do usufruto dos
bens da sociedade e resulta num relaxamento em relação a determinados princípios
morais e éticos fundamentais para a regulação de uma sociedade que pretende garantir
aspectos básicos para uma vida cidadã. Por isso, assumo a postura de Santos (1999,
p. 108): “este é um compromisso mais que social é de resgate da compaixão perdida,
da solidariedade inexistente, de uma ética da vida, uma eco-ética” no apóio aos grupos
dos catadores.
O papel do Estado é fundamental na organização e financiamento dos grupos dos
catadores, como também na oferta dos demais serviços sociais, prestados por redes de
atenção e proteção social. Várias são as necessidades dos catadores: moradia,
escolaridade, acesso à justiça, etc. O nível de escolaridade dos catadores dificulta o
processo de aprendizagem de novos métodos e posturas e no gerenciamento das
associações/cooperativas. Detectou-se que a escolaridade é de suma importância para
formalização dos grupos, pois ao mesmo tempo em que o catador aprende a separar
melhor, a coletar melhor, a fazer cálculos de peso e preço, ele melhora o exercício da
profissão e do gerenciamento do seu empreendimento.
120
Gostaria de fazer uma observação em relação às visitas as associações dos(as)
catadores(as). Nessas visitas deparei-me com um grupo forte de mulheres na liderança:
Dona Isolina na ASMOCI, no município de Maracanau; Dona Nete na Sociedade
Comunitária de Reciclagem de Lixo do Pirambu - SOCRELP, no bairro do Pirambu;
Dona Nilda na Associação Ecológica dos Coletores de Materiais Recicláveis da
Serrinha e Adjacência – ACORES, no bairro da Serrinha; Dona Jucilene na Cooperativa
dos Trabalhadores Autônomos da Seleção e Coleta de Material Reciclável Ltda –
COOSELC, no bairro Barroso; Dona Musa na organização dos catadores de lixo no
bairro Parque Santa Rosa; Expedita no Centro Comunitário Dom Lustosa, no bairro da
Aldeota; Dona Rita no Centro Comunitário São Francisco, no Quintino Cunha. Talvez,
encontre-se, aqui, nessa observação um veio para futuros estudos.
As mulheres são minoria na categoria do trabalho com o lixo. Essa constatação é feita
numa simples vista nas ruas de Fortaleza. A presença masculina nessa atividade é
predominante, pois exige muita força e resistência. Entretanto, as mulheres são maioria
nos grupos organizados dos catadores. Na pesquisa pude confirmar uma idéia da
socióloga Carla Calvet – cedida numa entrevista no dia 08 de junho de 2005 – que a
ação de organização dos grupos dos(as) catadores(as) tem uma influência muito
grande de organizações religiosas como: Cáritas Diocesana, Congregações Religiosas,
Pastoral de Rua, Pastoral do Imigrante, Movimento Shalom, Centros Espíritas. Os
fomentadores das organizações, na maioria das vezes, são movidos por motivações de
solidariedade e religiosidade. Em se tratando de questões religiosas as mulheres
respondem bem mais a esses apelos do que os homens, o que favoreceu as catadoras
se organizarem com mais facilidade. Elas também são mais pacientes e raramente têm
problemas com bebidas. Acredito que o sucesso da Cooperav deve-se ao fato da
maioria do grupo ser formado por mulheres.
Geralmente os homens têm uma resistência à organização principalmente nessa
categoria. Eles se sentem livres nessa atividade sem os grilhões do dia, hora e lugar
marcado para o trabalho e de alguém mandando neles. Eles realizam o percurso que
querem. Embora a catação seja uma atividade desgastante fisicamente, ela
proporciona uma sensação de liberdade. Os homens também se disponibilizam menos
121
para as reuniões. Ou estão no trabalho, ou descansando da atividade, ou dormindo, ou
bebendo com os amigos. Talvez a maioria masculina na Acores favoreceu a falta de
êxito da associação. Claro que a presença de um técnico social facilitaria a promoção
de encontro e articulação dos grupos dos catadores. Não defendo que a feminilidade ou
masculinidade seja preponderante para o êxito dos grupos, apenas um facilitador.
No universo de cinco mil catadores em Fortaleza, a minoria deles está ligada à
associação de moradores ou cooperativa. A grande maioria vincula-se aos sucateiros,
chamados por eles de deposeiros, que cria um vínculo empregatício com os catadores
na maior parte das vezes, sem respeito nenhum a legislação do trabalho, explorando o
trabalho infantil e tolerando material advindo de roubo. Os interesse dos sucateiros são
distintos dos interesses dos catadores, por isso defendo a intervenção do poder público
junto aos catadores que tentam se congregar em associações ou cooperativas.
Contudo, embora formado por vários grupos, com suas diferenças e especificidades, os
catadores assemelham-se no desejo e na luta pela sobrevivência e cidadania.
O catador de lixo, sendo um colaborador tanto ambiental quanto econômico, deve ser
considerado como um trabalhador que precisa ser apoiado por políticas públicas e
reconhecido pela sociedade. Nesta conquista destaco a importância da participação na
construção da cidadania e de uma nova ordem societária a partir de pequenos grupos.
As associações e cooperativas têm sido uma forma de organização dos catadores de
lixo para a expansão de seus direitos sociais e para o exercício da participação. Nos
depoimentos percebe-se que o fato dos catadores participarem das decisões e da
delegação do poder na entidade, aumenta sua responsabilidade com o resultado
alçando pelo grupo. Os catadores que iniciaram na Acores tiveram receio com a
responsabilidade e não continuaram na empreitada. Já a maioria que iniciou na
Cooperav continua no grupo e atingiram resultados favoráveis. Nesta pesquisa não foi
possível investigar os reais motivos da desistência dos catadores da Acores. As
suposições apontadas sobre a desistência surgiram dos relatos dados pelos atuais
coletores.
122
Apesar de algumas derrotas descobertas nesses grupos, principalmente na Acores,
verifico que perpassam nesses espaços coletivos um grau de pseudo-participação e
participação autêntica (Souza, 2004). Na minha concepção esses grupos possibilitam,
através da conquista da autonomia, o surgimento de cidadãos conscientes,
responsáveis e participantes tanto numa esfera micro quanto numa esfera macro da
sociedade. Considero que a gestação dessas organizações é uma experiência da
participação no seu grau mais alto: na autogestão. Embora nem a Acores nem a
Cooperav tenha chegado a esse grau de participação, vislumbro que a capacitação dos
catadores, o financiamento inicial por parte do Estado e o apoio da sociedade civil
possibilitará um grau de participação autêntica, como nos moldes de Souza.
Para Rech (2000, p.69) a nossa cultura e especificamente a nossa legislação são muito
conservadoras no que se refere à experiência de produção coletiva. Prevalece no país
o princípio dos direitos e da propriedade privada individuais sobre os direitos da
coletividade. Somente as Cooperativas de Produção Agropecuária (CPAs), vinculada
ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), seria o modelo mais
próximo que existe no Brasil do que seria uma cooperativa autogestionária. As
iniciativas autogestionárias teriam as seguintes características:
...quem manda e viabiliza o que deve ser feito são as pessoas que também
realizam a atividade produtiva. O exercício do poder é igualizado e vinculado ao
direito de um voto por pessoa, independentemente do capital investido. [...] o
que pode ser arrendado é apenas o capital. Não há, em principio, arrendamento
de mão-de-obra. [...] os associados são responsáveis pelos riscos
solidariamente, mas o ganho é destinado às próprias pessoas que realizam a
atividade produtiva proporcionalmente ao seu trabalho. [...] o que ocorre é a
subordinação do capital ao benefício de todos os que estão envolvidos na
atividade produtiva. [...] a propriedade dos meios de produção é condominal
onde cada pessoal tem uma parcela ideal dos mesmos. [...] a posse dos meios
é também coletiva...
As experiências de iniciativas autogestionárias são escassas no Brasil, mas esses
modelos podem ser construídos aqui. Talvez nos grupos de catadores que se formam
em Fortaleza possam ser incentivadas essas experiências já que existe iniciativa de
organização por parte de alguns catadores.
Os gestores públicos devem seguir a Constituição Brasileira de 1988 que consagrou a
participação popular na “gestão” da coisa pública e construir políticas públicas que
123
todos os atores envolvidos participem de forma ativa. Num trabalho com os resíduos
sólidos, por exemplo, os catadores devem opinar e cooperar na construção das
propostas e das definições que dizem respeito ao seu ambiente de trabalho. Registro
que o FEL&C é um ator que permeia a luta por inclusão da questão do lixo e dos
catadores na agenda pública para assim, posteriormente, regulamentar como política
pública. Utopia que é almejada sem pestanejar.
O percurso realizado pelos catadores de lixo de Fortaleza e do Brasil aponta uma
projeção otimista com relação ao futuro. O reconhecimento profissional, o apoio da
sociedade civil e o envolvimento do poder público possibilitaram uma reclassificação do
significado do catador de lixo para trabalhador de materiais recicláveis.
A transformação da sociedade, a partir do cuidado com o meio ambiente e com o ser
humano, é responsabilidade de cada um de nós. Através da construção desta
dissertação sinto-me particularmente responsável pela luta dos catadores de Fortaleza
e convidada a aceitar o convite de Bandeira:
Meu nome Marcos Bandeira
Meu estado é o Ceará
Conjunto Palmeira o bairro
Sou artista popular
Eu não sou catador
Mais com eles eu estou
Pra luta continuar
Vamos juntos companheiros
Lutar contra a opressão
Combater os poderosos
Que se julgam cidadão
Na luta com opressores
Devemos ser catadores
A vitória é o coração
Concluindo meu cordel
Pois este é o segundo
Francisco do Jangurussu
Seu Assis e seu Raimundo
Dinha e também Bonfim,
O catador vence tudo.
(Trechos da Literatura de Cordel de Antonio Marcos Bandeira)
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128
ANEXOS
129
ANEXO I
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
DADOS PESSOAIS:
1. Nome:
2. Data de nascimento:
Idade:
Sexo:
3. Estado civil:
4. Escolaridade:
5. Profissão anterior:
CATAÇÃO:
1. Há quanto tempo você trabalha na catação / reciclagem?
2. Por que você foi trabalhar com a catação de lixo?
3. Quais os bairros que trabalha?
4. Quantos dias por semana e quantas horas por dia você dedica a essa atividade?
5. Quanto recebe por mês?
6. Como é trabalhar nas ruas? Os moradores colaboram? E os motoristas?
7. Você considera a catação um trabalho ou é apenas um passa tempo enquanto
está desempregado? Qual sua visão sobre a atividade de catar lixo?
8. Gosta do que faz? Sente vergonha ou se acha explorado?
9. Quais são seus desejos para o futuro?
PARTICIPAÇÃO/ ORGANIZAÇÃO
1. O que levou você a participar de um grupo de catadores?
2. Você acha importante participar do grupo?
3. O que você acha sobre a participação das pessoas no início do grupo e hoje?
4. Como se deu a organização dos catadores?
5. Houve alguma mudança nas condições de trabalho depois da organização?
Quais?
6. Melhorou a renda?
7. Você identificou alguma ajuda ou apoio de fora no momento da organização?
8. Quais as dificuldades encontradas para a organização do grupo?
130
ANEXO II
CARTA DE CESSÃO
Fortaleza, (data)
Destinatário,
Eu, (nome, estado civil, documento de identidade), declaro para os devido fins que
cedo os direitos de minha entrevista, transcrita e autorizada para leitura (data) para
que Rúbia Cristina Martins Gonçalves possa usá-la integralmente ou em partes, sem
restrições de prazos e citações, desde a presente data. Da mesma forma, autorizo o
uso de terceiros para ouvi-la e usar citações, ficando vinculado o controle à Rúbia
Cristina Martins Gonçalves, que tem sua guarda.
Abdicando de direitos meus e de meus descendentes, subscrevo a presente.
______________________________
Nome e assinatura do entrevistado
131
ANEXO III
Fotos dos catadores da Cooperav e do Galpão de Estocagem e Seleção de
Materiais Recicláveis do Parque Santa Rosa.

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