A VOZ DOS CATADORES DE LIXO EM SUA LUTA
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A VOZ DOS CATADORES DE LIXO EM SUA LUTA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ RÚBIA CRISTINA MARTINS GONÇALVES A VOZ DOS CATADORES DE LIXO EM SUA LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA FORTALEZA – CEARÁ 2005 2 Universidade Estadual do Ceará Rúbia Cristina Martins Gonçalves A VOZ DOS CATADORES DE LIXO EM SUA LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Políticas Públicas. Orientadora: Profa. Dra. Maria Barbosa Dias FORTALEZA – CEARÁ 2005 3 Universidade Estadual do Ceará Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade Título do trabalho: A voz dos catadores de lixo em sua luta pela sobrevivência. Autora: Rúbia Cristina Martins Gonçalves Defesa em: 13/10/2005 Conceito obtido: Satisfatório Banca Examinadora ____________________________ Maria Barbosa Dias, Profa. Dra. Orientadora ______________________________________ Gisafran Nazareno Mota Jucá, Prof. Dr. _______________________________________ Lídia Valesca B. Pimentel Rodrigues Profa. Dra. 4 DEDICATÓRIA Aos catadores da Acores e do Parque Santa Rosa, razão de ser deste trabalho, pela inestimável colaboração e grande lição de vida. A Maria Esther Barbosa Dias, amiga, grande colaboradora, pela abertura e rigor na orientação e constante estímulo. 5 AGRADECIMENTOS Este trabalho foi concretizado graças à colaboração direta e indireta de um grande número de pessoas. Um número considerável para ser mencionado nominalmente. A todos, meus mais sinceros agradecimentos. Aos meus pais Irani e Rita e às minhas irmãs Andréa, Iraniza e Kísia pela alegria do convívio familiar, além da força e compreensão, mesmo estando distantes. A minha sobrinha Talita cujo nascimento renovou minhas esperanças e fortaleceu meu desejo de colaborar na construção um mundo diferente: justo, democrático e eqüitativo. Ao meu amado Marcel, companheiro de todas as horas, pelo amor, carinho e atenção, mas também por suas críticas. Além do estímulo constante e o esmero exercício de revisão do texto. E a sua filha Mariana pela amizade. Aos meus sogros José Lemos e Vilma Alves pelo apoio constante. As amigas de profissão Rejane, Rosiane, Gilda e Nicole pelo exercício constante da solidariedade uma com as outras e pelo espaço de florescimento da amizade num ambiente profissional. Aos professores Gisafran Jucá, Renato Pequeno e Lídia Valesca pelas valiosas sugestões. Aos colegas dos dois grupos de pesquisas, Políticas Públicas e Exclusão Social e Oralidade, Cultura e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará, pelas discussões teórico-medológicas e colaboração na execução desta pesquisa. Aos professores e professoras do Curso de Serviço Social da UECE e do MAPPS por contribuírem com seu conhecimento para minha construção pessoal e profissional. 6 RESUMO O lixo, nomeado tecnicamente de resíduo sólido, destaca-se no cenário nacional e local como um campo de trabalho e sobrevivência das camadas mais pobres, mas também de acréscimo dos lucros e redução dos gastos dos empresários. Através da metodologia da história oral os catadores de materiais recicláveis, mais conhecidos por catadores de lixo, narram suas trajetórias de vida. As entrevistas dos nove catadores de lixo foram transcritas na íntegra. Nos relatos cedidos encontram-se registradas a vida pessoal; a atividade de catação e a organização dos catadores. Embora imersos num processo de exclusão, os catadores ao recriarem suas histórias e ao participarem ativamente do processo de reprodução do capital, por meio da reciclagem, inserem-se economicamente no mercado capitalista. Apesar das péssimas condições de trabalho, o catador vem garantido sua sobrevivência material e sua auto-estima. A análise dos dados qualitativos da pesquisa a partir das categorias estudadas (lixo, exclusão social e participação) sinaliza que uma participação autêntica em grupos organizados, acrescida de uma intervenção do poder público é imprescindível para a superação da condição de exclusão. 7 ABSTRACT Technically appointed as solid residue, garbage introduces itself as a way of working and survival for the poorest society stratum, locally or nationally speaking. Moreover, working on garbage results in profits rising and in expenses reductions for the businessmen. Making use of Oral History methodology, the recycled material collectors tell us about their trajectory in life. All the nine interviews were completely transcribed. Their narrative speaks of their lives, activities and organization as recycled material collectors. Despite of immersed in an exclusion process, those collectors insert themselves in the capitalist market by participating actively in the capital reproduction mechanism and by reinventing their own personal history. Notwithstanding the very bad working conditions, those collectors guarantee their survival and their self-respect. By studying three categories (garbage, social exclusion and participation), this research indicates that real participation in organized groups (united to a public power intervention) is indispensable to overcome the social standing exclusion. 8 SUMÁRIO Lista de abreviaturas........................................................................................ 09 Lista de tabelas, figura e quadros.................................................................... 10 Introdução........................................................................................................ 12 1. No lixo a luta pela sobrevivência.................................................................. 34 1.1. Falando sobre o lixo.......................................................................... 34 1.2. O caminho percorrido por alguns excluídos: o lixo........................... 43 1.3. A construção da participação............................................................ 52 2. Os catadores e suas trajetórias.................................................................... 62 2.1. Fórum Lixo & Cidadania: expressão dos catadores.......................... 63 2.2. Conhecendo os grupos de catadores............................................... 67 2.2.1. Parque Santa Rosa................................................................ 68 2.2.2. ACORES................................................................................ 70 2.3. A fala dos catadores de lixo.............................................................. 73 3. Vidas e lixo: uma reflexão........................................................................... 91 3.1. Como o lixo é tratado?...................................................................... 92 3.2. Laboratório da participação: outras experiências.............................. 100 3.3. Relatos orais sobre a vida e a participação dos catadores............... 105 4. Considerações finais.................................................................................... 117 Bibliografia........................................................................................................ 124 Anexos............................................................................................................ 128 9 Lista de abreviaturas ABHO – Associação Brasileira de História Oral. ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. ACORES – Associação Ecológica dos Coletores de Materiais Recicláveis da Serrinha e Adjacências. ASMARE – Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável. ASMOC – Aterro Sanitário Metropolitano Oeste de Caucaia. ASMOCI – Associação dos Moradores do Conjunto Industrial de Maracanau. BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. CEMPRE – Compromisso Empresarial para a Reciclagem. CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente. COOMVIDA – Cooperativa de Produção dos Catadores do Conjunto Vida Nova. COOPAMARE – Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Papelão, Aparas e Material Reaproveitável. COOPERAV – Cooperativa de Agentes ambientais Rosa Virgínia. COOPREMACE – Cooperativa Pré-beneficiamento de Materiais Recicláveis do Ceará. COOSELC – Cooperativa dos Trabalhadores Autônomos da Seleção e Coleta de Material Reciclável Ltda. CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. DTU – Departamento Técnico de Urbanização. EMLURB – Empresa Municipal de Limpeza e Urbanismo. FEL&C – Fórum Estadual Lixo e Cidadania. FL&C – Fórum Lixo e Cidadania IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IDH – Índice de Desenvolvimento Humano. NBR – Norma Brasileira Registrada. SER – Secretaria Executiva Regional. SOCRELP – Sociedade Comunitária de Reciclagem de Lixo do Pirambu. 10 Lista de tabelas, figuras e quadros Tabela 1 – Código de cores para diferentes tipos de resíduos.......................................39 Tabela 2 – Disposição final de lixo nos municípios brasileiros 1991 e 2000...................40 Tabela 3 – Índice de exclusão social de alguns municípios do Brasil, 2000...................45 Tabela 4 – Porcentagem da renda apropriada por extratos da população 1991 e 2000.............................................................................................................47 Quadro1 – Da não-participação à participação autêntica:uma escala de avaliação.......53 11 Dorme, ruazinha... É tudo escuro... E os meus passos, quem é que pode ouvi-los? Dorme o teu sono sossegado e puro, Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos... Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro... Nem guardas para acaso persegui-los... Na noite alta, como sobre um muro, As estrelinhas cantam como grilos... O vento está dormindo na calçada, O vento enovelou-se como um cão... Dorme, ruazinha... Não há nada... Só os meus passos... Mas tão leves são Que até parecem, pela madrugada, Os da minha futura assombração... (Quintana, 1997, p.04). 12 INTRODUÇÃO No percurso da pesquisa com os catadores de lixo da cidade de Fortaleza busquei aliar os sentimentos às analises teóricas. Confesso que a travessia foi difícil, mas ao mesmo tempo prazerosa. A alternância de alegria contagiante e profunda tristeza perpassaram meus sentimentos. Alegria pela esperança e disposição à luta e ao trabalho dos catadores, como também pela presença de pessoas comprometidas com a causa dos catadores. Tristeza e indignação pela situação de extrema pobreza vivida pelos moradores das periferias. No cenário atual, o lixo ganha força como campo de trabalho. A presente pesquisa tem como sujeito de investigação os trabalhadores do lixo, também conhecidos como catadores de lixo, mais especificamente aqueles que participam da Associação Ecológica dos Coletores de Materiais Recicláveis da Serrinha e Adjacência – ACORES e da Organização dos Catadores do Parque Santa Rosa. Os dois grupos estão localizados na cidade de Fortaleza e participam do Fórum Estadual Lixo & Cidadania. Os catadores são personagens, como o poeta, que vagueiam nas ruas dos centros urbanos, principalmente à noite. No entanto, mesmo não sendo tão leves os seus passos, os moradores "oficiais" da cidade não os escutam. Caminhantes que, de tanto cansaço e fadiga, pelo longo percurso andado e o peso levado nos carrinhos improvisados, parecem até assombração. As inquietações, em torno dos catadores de lixo, aguçaram-se com o visível aumento do número dessas pessoas, transitando pela cidade, com seus carros, muitas vezes reaproveitados, de material de sucata. A motivação foi reforçada através de visitas às associações e cooperativas de reciclagem de lixo. E mais ainda pela participação nos encontros do Fórum Estadual Lixo & Cidadania e da incipiente Pastoral do Povo de Rua, ambos ligados à Igreja Católica. E, anteriormente, como membro do grupo de pesquisa, Políticas Públicas e Exclusão social do curso de Serviço Social - UECE, inscrito no CNPq, na linha de pesquisa “Rural e Urbano: cultura, linguagem, 13 comunicação e patrimônio”. Como participante desse grupo de pesquisa acompanhei eventualmente os trabalhos da entidade filantrópica Casa da Sopa, grupo espírita que realiza atividades com os moradores de rua do centro da cidade. Sobretudo, tive acesso a uma enorme literatura sobre moradores de rua. No período da graduação em Serviço Social, como bolsista de iniciação científica, realizei uma pesquisa com o título “Ocupações Urbanas: alternativa de moradia” (Gonçalves, 2001), em uma das ocupações de terra denominada Nossa Senhora da Penha, localizada no bairro da Bela Vista. Essa experiência de diagnosticar e analisar a pobreza urbana transformou minha vida. O processo que exigiu o “exercício de olhar” para as condições de vida da parcela menos favorecida da cidade de Fortaleza tornoume mais sensível, humana e solidária, como também direcionou o caminho das futuras investigações e da intervenção profissional para essa parcela dos moradores das cidades, cidadãos que vivem excluídos dos seus direitos. Detectei na pesquisa citada acima, no que se refere às profissões dos chefes de família, que elas ficavam subordinadas às oportunidades de sobrevivência, ao baixo nível de escolaridade e à ausência de qualificação para o trabalho. Desta forma, o trabalhador ausenta-se do mundo do trabalho oficial, ou melhor, ele é excluído, reproduzindo assim o ciclo da pobreza. Nos becos da ocupação, em frente de algumas casas, já visualizava carrinhos confeccionados com material de geladeira. Naquele momento, não percebi a catação como um trabalho com possibilidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas. Primeiro, porque as pessoas faziam de suas casas um depósito, aumentando a insalubridade do ambiente. O espaço ínfimo da casa, construído em lotes que possuíam em média entre 27 e 36m2, não era adequado nem para a convivência de uma família nem muito menos ao acondicionamento do lixo coletado no espaço doméstico. Segundo, pela falta de higiene das pessoas no manuseio do lixo com seu próprio corpo e com os utensílios domésticos, acrescendo os riscos de doenças e contaminações principalmente nas crianças. Naquele momento, algumas indagações 14 sobre lixo e sobre as pessoas que catavam o lixo aguçaram minha curiosidade. Entretanto, na ocasião não tive a oportunidade de conhecer mais acuradamente essa realidade. Contudo o desejo ficou incubado e só agora, na pesquisa de dissertação, tive o ensejo de debruçar-me sobre a problemática do catador. O projeto de pesquisa apresentado à seleção do Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade, intitulado Andarilhos da cidade de Fortaleza: os moradores de rua, cujo objetivo central era pesquisar o que é próprio da vida dos moradores de rua, suas trajetórias e analisar os elementos dos processos excludentes, foi abandonado por questões pessoais e estruturais. Ao iniciar a pesquisa com os moradores de rua senti muitas dificuldades, uma delas foi minha resistência em começar efetivamente o trabalho de campo, ou seja, ir para a rua. Outro problema foi o medo e a discordância dos meus familiares em aceitar a execução da pesquisa devido ao aumento da violência. Na preparação do projeto de pesquisa acompanhei o grupo da Casa da Sopa pelas ruas do centro de Fortaleza, geralmente das 21h às 2h da madrugada, mas sempre acompanhada com outra pesquisadora. A amplitude da temática, moradores de rua, e a dificuldade do encontro com essa população levaram-me a mudar de problemática. Aqui, a Banca de Qualificação teve um papel primordial na compreensão do novo tema de pesquisa: o catador de lixo. No final do ano de 2003 comecei a participar das reuniões do FEL&C do Ceará realizadas nas últimas quartas-feiras de cada mês no Seminário da Prainha, como também participei das reuniões da incipiente Pastoral da Rua, realizadas no mesmo local. Pelo fato de ter me apaixonado pela temática dos Catadores de Lixo participo até hoje deste Fórum, inclusive como representante da instituição UECE. A partir do Fórum descortinou-se um universo de possibilidades e de descobertas. Conheci vários grupos de catadores como: ASMOCI, no município de Maracanau; SOCRELP, no bairro do Pirambu; ACORES, no bairro da Serrinha; COOSELC, no bairro Barroso; COOPERAV, no bairro Parque Santa Rosa; ASMOCI, Conjunto 15 Industrial; COOMVIDA, no Mutirão Vida Nova de Maracanau; os catadores da Praia do Futuro, através do Projeto Hora de Reciclar; catadores da Aldeota, através do Centro Comunitário Dom Lustosa; os catadores do Genibaú, através do Centro Comunitário Dom Hélder Câmara; os catadores da Pajuçara, através do Movimento EMAUS; os catadores de Caucaia, através da Prefeitura Municipal. A dificuldade era conter tantas curiosidades e delimitar qual assunto investigar referente ao catador de lixo. Diante da nova problemática tomei como objetivo principal compreender a dinâmica que envolve o catador de material reciclável na cidade de Fortaleza. Conhecer o relacionamento do catador com o poder público, com a sociedade e com os próprios colegas de catação. Com os objetivos específicos: procurei descobrir a situação de moradia e instrução dos catadores e como se deu sua inserção no mundo do trabalho; comecei a investigar a participação dos catadores nas organizações; discorri sobre o nível de satisfação desse profissional e o tratamento que lhe é dado pelos moradores da cidade; enfim, busquei conhecer o conceito do lixo, suas implicações e tratamento. A ocupação de catador de material reciclável, popularmente conhecida por catador de lixo, foi incluída, no ano de 2002, na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, cabendo a esse profissional: catar, selecionar e vender materiais, como papel, papelão e vidro, bem como, materiais ferrosos e não-ferrosos e outros materiais reaproveitáveis. Entretanto, para a sociedade o lixo é considerado inútil, indesejável e desnecessário, assim também aqueles que trabalham com o lixo são associados a sua matéria prima e recebem, também, os seus estigmas. As denominações desses trabalhadores variam de local para local: ”Zabbaleen” no Cairo; recicladores na Colômbia; “badameiros” em Salvador; catadores de papel em Belo Horizonte1. Mas no Brasil tem uma maior representatividade na figura do “velho garrafeiro”. Em 1857, um poema chamado “O vinho dos trapeiros”, de Charles Baudelaire, já fazia referência à atividade do catador. No Brasil, é a figura do “velho garrafeiro”, do começo do século XX, que põe em evidencia tal atividade, que se expande com o desenvolvimento da sociedade industrial e vai criando novos 1 Cf. www.asmare.org.br 16 personagens: o(a) catador(a) de rua, o(a) catador(a) de depósitos e aterros, os(as) cooperados(as). (Juncá, 2001, p.62) O catador de lixo não é um novo personagem nas ruas das cidades brasileiras, o novo, aqui, é a elevação do número de catadores. Esses profissionais, através da catação informal de papéis e outros materiais encontrados nas ruas ou lixões, sustentam a indústria de reciclagem do Brasil. Eles não são mendigos, mas desempregados que devido à crise econômica, nos últimos anos, foram expulsos do mercado oficial de trabalho. No trabalho de Bastos (2003, p.28) os catadores de materiais recicláveis, segmento que sobrevive da coleta de materiais recicláveis, subdivide-se em dois grupos: os catadores que trabalham nas ruas e os que trabalham nos lixões. O foco dessa pesquisa encontra-se no trabalho desenvolvido por catadores que trabalham nas ruas e que participam de alguma organização. Os cenários da pesquisa são os espaços onde os catadores de lixo se reúnem, ou seja, as organizações das quais fazem parte e cuja finalidade é servir de ponto de segurança, cooperação, descanso e garantia de uma renda melhor para o catador. Imersa na problemática do lixo, ou melhor, do catador do lixo, segui o caminho tomado por Jules Michelet: O escritor solitário voltou a emergir-se na multidão, escutou seus ruídos, tomou nota de suas vozes. (...) Fui consultar os homens, escutá-los falar de sua sorte, ouvir de seus próprios lábios o que não se encontra freqüentemente nos escritores de maior brilho: palavras cheias de sentido comum. (Michelet apud Gattaz, 1996, p. 237). Como Jules Michelet pretendo emergir-me na multidão, aqui, nas organizações dos catadores, para escutar seus lamentos, seus sonhos e tomar nota de suas vozes e assim construir, pelo caminho da história oral, a história de grupos excluídos que, na maioria das vezes, são abandonados a sua própria sorte. Os pobres das cidades não encontrando espaços para se vincularem ao mundo do trabalho oficial, inventam, criativamente, estratégias de sobrevivências, criando 17 maneiras para desenvolverem seu métier. Uma das estratégias de sobrevivência é o trabalho de reciclagem de papel, papelão e outros materiais. E embora incomodada, a sociedade não pode impedi-los de lutar pela sobrevivência, pelo direito à vida. Sposati (1997, p.18) ressalta que sobreviver é direito; se o cidadão tem trabalho sobrevive, senão morre. Hoje, no espaço urbano, a rua tornou-se um ambiente onde se pode encontrar serviços, principalmente pelas pessoas que não têm qualificação profissional. Inúmeras pessoas em Fortaleza sobrevivem efetivamente da rua: camelôs, prostitutas, travestis, mendigos, flanelinhas, vendedores ambulantes, catadores de materiais recicláveis e outros. A partir dos anos 90, o contingente de pessoas nas ruas, por razões sócio-econômicas, aumentou consideravelmente. Bursztyn (2000, p.206) nomeia esse contingente de “perambulantes”, pessoas desterradas, sem vínculos empregatícios e locais fixos. A presença de pessoas exercendo alguma atividade nas ruas é cada vez mais visível, seja andando como os catadores de lixo e pedintes, ou nos sinais como os flanelinhas e os vendedores ambulantes, ou mesmo nas calçadas como os vendedores que armam suas barracas e aqueles que vigiam os carros. Todos inseridos na paisagem urbana, mas sem qualquer perspectiva de inserção na vida da cidade legal. Os catadores de lixo são exemplos claros de um desses grupos de perambulantes que vivem se deslocando nos centros urbanos, numa quantidade cada vez maior, tornando-se imprescindível a análise desse fenômeno para a construção de efetivas e eficientes políticas públicas. Cavalcante (2000, p.60) descreve a rua como um local que “alimenta, dá abrigo, mas também sacrifica e mata. Não há proteção para os ‘passageiros da agonia’”. O catador João Batista da Silva Souza, de 27 anos, quando voltava de Fortaleza com o seu carrinho de lixo pela BR-222, próximo ao antigo Frigorífico de Fortaleza, foi atropelado e teve morte instantânea2. O suor e o sangue dos catadores são derramados 2 Notícia do Diário do Nordeste, 25 de outubro de 2003. 18 cotidianamente nas ruas de nossas cidades. Pesavento (1996) produz um belo trabalho, demonstrando a rua como espaço de transformação e teatro da vida. Essa produção apresenta a sociedade das ruas através de fotos. Antigamente, as ruas davam um sentido à cidade. Tratava-se de uma época em que todos se conheciam e em que os nomes eram um ponto de referência. Com o aburguesamento da cidade e a consolidação de uma nova ordem foi imposta uma redefinição do solo urbano e de sua ocupação pelos indivíduos, com diferentes exigências, valores e critérios. Dentre essas transformações, a cidade empreendeu a tarefa “de destruição dos becos e cortiços, declarando guerra às tavernas, bordéis e casas de jogos, numa cruzada moral, sanitária e urbanística, de destruição e reconstrução, em meio a uma especulação imobiliária que refletia a elevação do preço do solo urbano” (p.39). Pesavento (1996), através de fotos, mostra o contraste da rua, espaço para a burguesia passear e desfrutar de lojas, cinemas, teatros etc. e ao mesmo tempo local de trabalho e sobrevivência dos pobres: A rua é também de vida, onde cangueiros, biscateiros e vendedores ambulantes transitam diariamente, entrecruzando-se com carroceiros, motoristas, motorneiros e free-lancers de toda ordem. Neste sentido, a rua é do povo, onde se misturam operários, professores, caixeiros de loja, bancários, negociantes, e [...] porque não dizer, vagabundos, desocupados e larápios. (Pesavento, 1996, p. 64). Nas ruas, os catadores de lixo constroem suas histórias, lutam contra a precariedade econômica e perambulam selecionando as sobras da sociedade consumista. Eles se juntam a outros catadores para resistir a fragilidade relacional, criando associações e cooperativas para garantir o respeito aos seus direitos, e por que não dizer, para garantir a vida. Os catadores de lixo representam um segmento da população à margem da sociedade e sobrevivem da venda do lixo, material rejeitado pela sociedade. Catar o lixo, além de ser uma alternativa de renda para quem é desempregado e tem baixo nível de escolaridade, também é uma prestação de serviço em benefício ao meio ambiente. 19 Diariamente, esses homens, mulheres e até crianças colaboram no processo da limpeza urbana, interceptando materiais que seriam levados aos lixões ou aos aterros. Vale lembrar da importância do tema lixo como meio propício para favorecer também a reflexão sobre a relação saudável dos cidadãos com o seu ambiente. Lixo é designado como todo material inútil, descartável que se “joga fora”, geralmente, posto em lugar público, por isso pode-se dizer que é um material “mal-amado”, dispensável. Todos desejam descartar-se do lixo; seu fedor e aspecto incomodam. Desta forma, o lixo passa por um processo de exclusão. Existem pessoas que até pagam para dele se verem livres. Na abordagem da primeira dupla de catadores em visita de campo a Socrelp fui informada que alguns donos de boates do centro de Fortaleza pagam, a catadores previamente escolhidos, a retirada do lixo logo na madrugada. Devido a falta de instrumentos apropriados para o trabalho e o manuseio com material cortante, no caso garrafas de bebidas alcoólicas, a dupla de catadores estava com as mãos e os pés cortados. O lixo pode ser composto por: material orgânico (sobras de comidas), o que representa cerca de 65% a 70% do total do lixo produzido nos países chamados de Terceiro Mundo; rejeitos (lixo de banheiro, pilhas, lâmpadas) que perfazem apenas cerca de 5% da massa total dos resíduos, isto é, o lixo propriamente dito que não é passível de reciclagem, reuso ou compostagem; e materiais recicláveis (plásticos, papéis, metais e vidros),que compõem aproximadamente 25% a 30% do peso total do lixo, mas que representa a maior parcela em volume (Abreu, 2001, p.26). Quando o lixo não é tratado adequadamente pode ser altamente poluente e afetar diretamente a saúde pública. A legislação brasileira estabelece que o lixo doméstico é propriedade da prefeitura, cumprindo-lhe a missão de assegurar sua coleta e disposição final. Calderoni (2003, p. 51) entende lixo domiciliar como todo material sólido ao qual seu proprietário ou possuidor não atribui mais valor e dele deseja descartar-se, atribuindo ao poder público a responsabilidade pela sua disposição final. O descaso dos órgãos públicos com a educação, saúde, moradia e outros é repetido, e em maior grau, com o lixo. Segundo 20 pesquisa da UNICEF de 2000, menos de 100 prefeituras declararam ter programas de coleta seletiva (Abreu, 2001, p.33). A Associação Brasileira de Normas e Técnicas – ABNT define Coleta Seletiva como a coleta que remove os resíduos previamente separados pelo gerador, tais como, latas, vidros e outros. Calderoni (2003) adota o termo reciclagem para designar o processo sistemático de transformação do lixo sólido tipicamente domiciliar em novos produtos. Através da reciclagem é possível o reprocessamento de materiais permitindo novamente sua utilização: “... reciclar é ‘ressuscitar’ materiais, permitir que outra vez sejam reaproveitáveis” (p. 52). Os catadores de lixo são responsáveis por praticamente todo material reciclado nas indústrias brasileiras, colocando o Brasil como um dos maiores países recicladores de alumínio do mundo. Apesar de todas as dificuldades do trabalho, sem apoio do poder público e com o preconceito da sociedade, esses trabalhadores informais, criativamente, conseguem sobreviver e ao mesmo tempo cuidar do meio ambiente, ou seja, da nossa "casa" comum: a terra. Diante do exposto, podemos denominar os catadores de lixo como agentes ambientais e econômicos, ou melhor, como trabalhadores. Constitui objeto fundamental do trabalho de Sabetai Calderoni, Os bilhões perdidos no lixo (2003), mostrar que a reciclagem do lixo justifica-se em termos econômicos. Os dados quantitativos de sua pesquisa indicam a visibilidade econômica da reciclagem e da coleta seletiva de resíduos. O autor demonstra também ser a reciclagem uma alternativa de mudança do modelo de desenvolvimento no sentido de torná-la compatível com os interesses da preservação ambiental, da justiça social e da sustentabilidade econômica. A reciclagem pode aumentar também a vida útil dos aterros que já são diminutos no Ceará. Dos 184 municípios desse Estado, somente nove contam com a presença de aterros sanitários: Caucaia, Aquiraz, Eusébio, Iguatu, Sobral, Quixadá, Quixeramobim, 21 Pacatuba e Jaguaruana. Nos restantes dos municípios o lixo é colocado em lixões sem respeitar as normas ambientais e de segurança à saúde. A ausência de uma disposição final adequada do lixo resulta numa acelerada degradação dos recursos naturais que compromete a qualidade de vida das atuais e futuras gerações. Cada brasileiro produz aproximadamente um quilo de lixo por dia, sendo a maior parte de matéria orgânica3. O catador de lixo, mesmo desvinculado do mundo contratual do trabalho e não sendo assimilado pelo mundo oficial, encontra brechas na sociedade capitalista para sobreviver. Em todo o país, e especificamente em Fortaleza, observamos um reconhecimento da dimensão do trabalho de catar papel, papelão e outros materiais recicláveis através da organização de catadores em associações e cooperativas. Um processo no qual Regina Manoel4 denominou de desclassificação e reclassificação, ou seja, de catador de lixo - uma situação de horror e desclassificação - esse sujeito transformou-se em catador de material reciclável – um trabalhador -, assim portador de direitos trabalhistas. Essa reclassificação possibilitou o aumento de sua auto-estima e o respeito da sociedade. O aumento dos catadores de lixo coincide com o crescimento da indústria de reciclagem que demanda uma força desqualificada de trabalho. O catador de lixo garante o reaproveitamento do produto reciclável, cujo aumento ocorreu devido ao crescimento do setor de serviços e do comércio e ao uso abundante de papel com o advento da informática. Outro motivo do aumento dos recicláveis foi a mudança de hábito de consumo da população, avolumando produtos descartáveis. Esta forma de configuração da cidade tornou necessária a vida na rua. A vida na rua é uma forma aguda de desigualdade gerada na sociedade capitalista que fundamenta, hoje, a exclusão. A exclusão social para Singer (1999) pode ser vista 3 Dado retirado do Jornal Diário do Nordeste, 14 de março de 2004. 4 Manoel apud Mota, 2003, p. 29. 22 como uma soma de várias exclusões habitualmente inter-relacionadas. Entretanto, é sem dúvida incomum uma pessoa estar completamente excluída ou incluída no tecido social. Por isso, a exclusão social deve ser encarada como uma questão de grau. Mas Singer lembra que no Terceiro Mundo existe uma forma de exclusão social que é fundamental: a exclusão econômica. A exclusão social para Maricato (1994) envolve uma situação complexa que abrange a informalidade, a irregularidade, a ilegalidade, a pobreza, a baixa escolaridade, o oficioso, a raça, o sexo, a origem e, principalmente, a falta de voz. Ainda para essa autora a exclusão social tem sua expressão mais concreta na segregação espacial ou ambiental. Os catadores encontrados no centro ou nas zonas nobres de Fortaleza, na sua maioria, residem nas periferias, nos bairros pobres. Compreendemos como Castel (1997) que os excluídos são desfiliados cuja trajetória é feita de uma série de rupturas em relação a estados ou equilíbrios anteriores mais ou menos estáveis, ou instáveis. Os excluídos povoam a zona mais periférica, caracterizada pela perda do trabalho e pelo isolamento social. No entanto, tanto Castel como Maricato(1994) destacam que é impossível traçar fronteiras nítidas entre “excluídos” e “incluídos”. A era do neoliberalismo desenvolve um quadro de desemprego, precarização do emprego e informalização das relações de trabalho. As cooperativas e associações surgem como alternativas de inserção dos excluídos no mundo do trabalho, tendo em vista a geração de trabalho e renda. Duas experiências vitoriosas de trabalho com catadores de lixo são exemplos dessa alternativa: a Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável (Asmare) em Belo Horizonte e Cooperativa de Catadores de Papelão (Coopamare) em São Paulo. 23 Nos últimos anos, a sociedade civil5 brasileira vem se organizando em associações, cooperativas, fóruns e conselhos. As cooperativas e associações constituem exemplos de iniciativas que propiciam a criação de trabalho e, ao mesmo tempo, o fortalecimento de valores como autonomia, solidariedade, cooperação, auto-estima e organização dos trabalhadores, além da geração de renda e alternativa à política neoliberal. Nesta perspectiva, a “economia solidária” (ou “economia popular”) propõe a criação de cooperativas como caminho possível para a garantia dos direitos daqueles que estão excluídos do mercado formal de trabalho. Paul Singer (2003, p.13) define economia solidária como um modo de produção constituído por trabalhadores associados, que possuem em comum o capital que utilizam, formada sobretudo por cooperativas que deveriam ser auto-gestionárias. Para esse autor, a economia solidária tende a desconcentrar a propriedade e a renda. A autogestão contém um novo conceito no modelo: uma gestão participativa, que elimina os papéis de patrão e empregado, de trabalhador e de não-trabalhador dirigente. É interessante destacar que os princípios do cooperativismo são: adesão voluntária; gestão democrática; participação econômica dos membros; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação e interesse pela comunidade. Compreender a luta da população pobre por direito e dignidade, ou seja, por sua "inclusão" na sociedade, remete a categoria participação. Souza (2004, p. 334) considera a participação um direito inalienável. Ele destaca a importância da participação para minimizar certas fontes de distorção e para comprometer o cidadão nos resultados das políticas públicas. Ainda segundo Souza (op. Cit) é possível verificar o grau de participação utilizando uma escala de participação diferenciando o que é participação autêntica, pseudoparticipação e não-participação através de oito categorias distintas: autogestão; 5 Entendemos por organização da sociedade civil a capacidade histórica de a sociedade assumir formas conscientes e políticas de organização. (Demo, 1996, p.27) 24 delegação de poder; parceria; cooptação; consulta; informação; manipulação e coerção. Ammann (1978, p.61) compreende participação como "o processo mediante o qual as diversas camadas sociais tomam parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens de uma sociedade historicamente determinada". Desta forma, para existir a participação são imprescindíveis os três componentes básicos: a produção, a gestão e o usufruto dos bens da sociedade. Participação é conquista (Demo, 1996), ou seja, um processo. A participação é em essência autopromoção e existe enquanto conquista processual. As camadas populares têm o direito de participar; direito que necessita ser conquistado e não entendido como dádiva, concessão ou algo pré-existente. Nos capítulos que virão narrarei o ensejo das associações de conquistar e atingir a autopromoção, e não somente promoção consentida, conduzida, concedida. “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes.”6 Parafraseando Drummond, busco compreender a realidade do catador no tempo presente. Nessa pesquisa pretendo conhecer e narrar a trajetória de vida dos catadores de lixo de Fortaleza que participam da associação ACORES e da organização dos Catadores do Parque Santa Rosa; socializar as vozes desses peregrinos que caminham sem parar, presentes na história dessa cidade, mas que vivem exclusos dos benefícios que ela oferece. As entrevistas foram organizadas em três blocos de perguntas (verificar o Roteiro de Entrevista no anexo I): - o primeiro bloco indaga: sobre a vida pessoal englobando informações sobre nome, data de nascimento, escolaridade, estado civil e profissão; - o segundo bloco investiga: a atividade de catação; como se enveredou na catação; há quanto tempo é catador de lixo; quais os bairros que percorre, horário de permanecia 6 Poesia de Carlos Drummond de Andrade, “Mãos dadas”. 25 nas ruas; quanto recebe pelo trabalho; como é trabalhar na rua e se gosta do que faz; - o terceiro bloco visa compreender: como se deu a organização dos catadores, as mudanças nas condições de trabalho depois da organização e o funcionamento da associação com destaque a questão da participação. Além da pesquisa bibliográfica, com a leitura de vários livros e textos e levantamento documental de fontes primárias e secundárias, dei destaque à pesquisa in loco. O primordial foi escutar o que os catadores de lixo tinham a dizer e estar presente no seu cotidiano. Nesse sentido encontro reforço no pensamento de Adriana Mota: O conhecimento acadêmico é importante, mas por si só não basta, precisando ser nutrido pelo saber de algo feito, vivido, experimentado. É o trabalho direto com a população que nos permite ampliar nosso conhecimento. (2003, p. 32) Ao ingressar no Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade engajei-me no grupo de pesquisa denominado Oralidade, Cultura e Sociedade, coordenado pelo professor Gisafran Nazareno Mota Jucá que segue a linha de investigação do mestrado intitulada “Rural e urbano: cultura, linguagem, comunicação e patrimônio”, ou seja, a mesma linha de investigação do grupo de pesquisa que participo desde a graduação, ou seja, Políticas Públicas e Exclusão Social. Os dois grupos são registrados no CNPq. Inquieta quanto a minha opção metodológica, resolvi participar desse novo grupo de pesquisa. Iniciado esse percurso, minha pesquisa tomou outro rumo: agora para um mar revolto. O desenvolvimento da investigação se deu a partir do enfoque qualitativo baseado na metodologia de história oral, embora englobe outros procedimentos: observação simples; registro de informações; participação em eventos, assembléias e reuniões de catadores; entrevista a técnicos sociais da SAS e SETE; levantamento de dados na SEMACE, IBGE e outras instituições. A metodologia escolhida para tal empreendimento, história oral, é um “recurso moderno usado para a elaboração de documentos, arquivamento e estudos referentes à experiência social de pessoas e de grupos” (Meihy, 2000, p.25). É também um “método de pesquisa que utiliza a técnica da entrevista e outros procedimentos articulados entre 26 si, no registro de narrativas das experiências humanas” (Freitas, 2002, p.18). A história oral possibilita, assim, a elaboração de uma versão do tempo vivido no presente; ela fornece um documento diferente, vivo, onde os sujeitos reconstroem o passado recente. Ao aproximarem-se do cotidiano, do homem comum, os oralistas valorizam o indivíduo como sujeito histórico. Para Freitas (2002) essa metodologia abre novas perspectivas para o entendimento do passado recente, pois amplifica vozes que, de outra forma, não se fariam ouvir. O que me atraiu na história oral foi o fascínio de construir uma história viva, recente, que possibilitasse a compreensão ou uma identificação, por parte de um grande grupo da sociedade, com o texto produzido (ao invés de ser uma produção acadêmica que servisse apenas para ser julgada e depositada na academia). Minha intenção é que os catadores se identifiquem e compreendam esse trabalho e, sobretudo, que o mesmo possa tornar mais visível ainda a presença deles na cidade. Historicamente, o relato oral constituiu-se na maior fonte de conservação e difusão do saber da humanidade, possibilitando, inclusive, a formação da sociedade humana. A cultura escrita só apareceu muito depois do surgimento do homem. “O homo sapiens existe há cerca de 30.000-50.000 anos. O mais antigo registro escrito data de apenas 6.000 anos atrás” (Ong, 1998, p.10). Na atualidade, o advento da tecnologia, a exemplo do gravador, contribuiu para reavivar no meio acadêmico a utilização do relato oral. Muitas vezes, o pesquisador, imerso na cultura escrita, encontra dificuldade em compreender um universo oral da comunicação ou do pensamento. No entanto, tornase urgente superar os preconceitos e abrir novos caminhos ao conhecimento e à compreensão desse universo oral. Aposto que a história oral será muito útil nesse caminho. Nos anos 40 do século XX, com o grande desenvolvimento das técnicas estatísticas, o questionário foi utilizado como a técnica mais adequada de se obter dados inquestionavelmente objetivos. Com o discurso da objetividade e neutralidade, os 27 relatos orais foram excluídos do meio acadêmico. No entanto, a superação dessa concepção foi percebida logo que “valores e emoções permaneciam escondidos nos próprios dados estatísticos, já que as definições das finalidades da pesquisa e a formulação das perguntas estavam ligadas à maneira de pensar e de sentir do pesquisador” (Queiroz, 1988, p. 15). A história acadêmica e científica e, por isso mesmo, a oficial, fazia-se quase exclusivamente com base nos documentos escritos. Só na escrita e nos dados estatísticos havia validade e confiança, esquecendo-se que também nesses documentos permanecem escondidos valores e emoções. Por isso, a metodologia da história oral foi duramente criticada por aqueles que julgavam as fontes orais “distorcidas” ou mesmo “falsas”, devido ao fato de permanecerem imersos no fetichismo do documento escrito. Assim, eles ignoravam qualquer evidência baseada na oralidade e esqueciam a premissa de que a história não traduz toda a realidade, mas uma versão, ou seja, uma faceta daquela. Os resultados encontrados pelos pesquisadores, tanto através dos documentos escritos quanto dos orais, são apenas versões aproximadas da realidade. Para Ong (1988) a escrita é espacialização da palavra, e nunca pode prescindir da oralidade, pois a expressão oral pode existir sem qualquer escrita, mas nunca a escrita sem a oralidade. Além da escrita, a impressão e o computador são todos meios de tecnologizar a palavra. Através da história oral acredito na aproximação da academia com a sociedade, do pesquisador com o homem comum. Oficialmente, a história oral começou com o uso do gravador; sua base é o depoimento gravado, ou seja, o registro efetivo da voz. O marco de criação desta metodologia manifestou-se nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, precisamente no ano de 1948, com as gravações do professor Allan Nevis sobre as histórias de vida de norte-americanos famosos. Ele oficializou o termo The Oral History Project, na Universidade de Colúmbia, em Nova Yorque, onde criou o primeiro centro de História Oral do mundo. 28 Na academia existem posicionamentos diferentes acerca do status da história oral, mas é possível reduzir a três as principais posturas. A primeira define a história oral como uma técnica; a segunda, como uma disciplina; e a terceira, como uma metodologia. Os defensores da primeira postura utilizam a entrevista como uma fonte de informação complementar às fontes escritas. Os que postulam o status de disciplina partem da idéia fundamental de que a história oral inaugurou técnicas específicas de pesquisa, procedimentos metodológicos singulares e um conjunto próprio de conceitos. Ian Mikka é um dos teóricos que contundentemente defende o status de disciplina para história oral (Ferreira, 2002, p. xiii). Os autores cujos trabalhos são produzidos com um enfoque na história oral assumem, na sua maioria, como uma metodologia de pesquisa que ultrapassa uma concepção somente de técnica. Nessas produções, as entrevistas não são complemento, mas o cerne em torno do qual giram os desdobramentos historiográficos. Partilho dessa concepção de história oral entendida como metodologia e, portanto, funcionando como ponte entre teoria e prática. Na história oral há três modos de construí-la a partir da escolha de trabalhar com base em uma pessoa, em algumas ou em um conjunto de entrevistas. Essas modalidades são nomeadas de história oral de vida; história oral temática; e tradição oral. Na pesquisa realizada com os catadores elegi a história oral temática. Para a coleta dos dados utilizei gravador e máquina fotográfica. Na construção do documento oral tudo é gravado e preservado. Após a transcrição de cada entrevista optei pela reorganização cronológica e lógica do texto. A entrevista transcrita, em sua versão final, foi entregue para ser autorizado pelo entrevistado mediante a Carta de Cessão (Cf. anexo II), seguindo assim as diretrizes éticas para proteger os entrevistados contra a manipulação, por parte do entrevistador, como também uma proteção do pesquisador contra reivindicações dos entrevistados. Na reflexão de Whitaker (1995), quando o entrevistado pertence a camadas pauperizadas, o pesquisador, sob o pretexto de respeitar-lhe a cultura, confunde ortografia com fonética a ponto de cometer barbaridades ortográficas reproduzindo apenas a caricatura de sua pronúncia. Para a autora, os pesquisadores enganam-se ao 29 transcrever erros ortográficos com a justificativa de reproduzir uma pronúncia original. Além de truncar a leitura do texto, comprometendo sua fluência e compreensão, gera desrespeito em vez de respeitar a fala do outro. No momento em que se transformam elementos auditivos em visuais, as mudanças do documento oral para o documento escrito são inevitáveis. As regras desses documentos são distintas. Sem falar que a palavra escrita já é uma reinterpretação do relato oral. A maioria das pessoas que terão acesso a leitura desse trabalho pertence ao grupo letrado e, portanto, algumas regras do documento escrito são indispensáveis, como a inserção de sinais de pontuação. Outro motivo que me levou a optar pela modificação do texto transcrito foi a leitura de alguns trabalhos com a transcrição das entrevistas na íntegra, a leitura ficou de difícil compreensão e cansativa com as constantes repetições. A falta de cronologia e de lógica do texto atrapalharam na apreensão das idéias dos narradores. Torna-se, inclusive, necessário colocar um glossário no final do trabalho, para facilitar a leitura das narrativas pelos leitores. Desta forma, optei por modificar a transcrição com o intuito de tornar a leitura mais fácil e amena por parte do leitor, evitando assim o glossário. Visitei várias organizações dos catadores concomitantemente. Minha primeira opção de trabalho de campo foi a cooperativa COOSELC e a associação SOCRELP. Entretanto suas realidades eram tão distintas que dificultaria a análise e, por conseguinte retardaria a conclusão dessa dissertação. Na COOSELP os catadores trabalhavam na Usina de Reciclagem onde funcionava o antigo lixão. Os conflitos internos estavam intensos como também as disputas políticas, pois o período das visitas de campo foi no ano eleitoral (2004). A intervenção do poder público e o jogo político eram maiores na cooperativa. Os catadores da SOCRELP trabalhavam nas ruas, em condições muito mais adversas. A associação desenvolvia vários projetos interessantes para a comunidade do Pirambu; o empreendimento na reciclagem apresentava bons resultados econômicos; alguns associados eram responsáveis em reciclar papel e criar belíssimos trabalhos manuais. Entretanto o foco principal não era o catador. O catador 30 tinha um papel de co-adjunvante e raros foram os meus encontros com eles. Por causa das dificuldades citadas não realizei a pesquisa nessas duas instituições. Mas os contatos com esses dois grupos clarearam minha opção em trabalhar com os catadores que trabalham nas ruas. Resolvida a opção de trabalhar com o grupo dos catadores que trabalham no espaço da rua, recomecei minha pesquisa de campo na Associação ACORES e na organização dos catadores do Parque Santa Rosa que se prepara para formalizar uma cooperativa nomeada COOPERAV – Cooperativa de Agentes Ambientais Rosa Virgínia. A amostra representativa consta de um universo de nove catadores de lixo: cinco representantes da associação ACORES – três catadores e dois ex-catadores – do universo de cinco catadores que, atualmente, participam da associação; e quatro representantes do Parque Santa Rosa que contava, até no momento das entrevistas, com a presença de quase vinte catadores. A escolha dos entrevistados não seguiu critérios rígidos, senão que constasse representação masculina e feminina. Todos os catadores quiseram relatar seus depoimentos na própria sede da associação. Uns porque consideraram o ambiente do galpão mais apropriado para a entrevista, outros porque já moravam na própria associação. Seguindo a orientação dos autores lidos, a transcrição foi feita por mim que elaborei o projeto de pesquisa, para que os dados não fossem desvirtuados de sua proposta inicial e para evitar erros de ordem interpretativa. Apresento, de agora em diante, a estruturação da dissertação. O trabalho foi dividido em três capítulos onde são abordadas as seguintes questões; 1) as categorias centrais que envolvem o trabalho dos catadores de lixo; 2) os espaços de atuação dos catadores e os depoimentos relatados nas entrevistas; 3) as análises das políticas públicas dirigidas a esse segmento, como também dos relatos orais. No capítulo I, intitulado No lixo a luta pela sobrevivência, descrevo a matéria prima dos catadores: o lixo. Trago a discussão sobre os caminhos que o lixo leva uma parcela da 31 população a transitar da pobreza à exclusão, e da exclusão a possibilidade de construção da participação. Apresento como os catadores chegaram ao lixo e as condições que os impulsionaram a organização. Exponho alguns conceitos de participação. Apresento no capítulo II a pesquisa de campo, o ambiente em que os catadores estão inseridos, ou seja, o apanhado de grupos e atores sociais envolvidos, na cidade de Fortaleza, com a problemática do lixo. Neste capítulo central estão as narrações das trajetórias de vida dos catadores de lixo da ACORES e do Parque Santa Rosa. Aqui os próprios catadores, através da metodologia da História Oral, contarão suas histórias, suas lutas, e porque não dizer suas vidas. No último capítulo, Vidas e lixo: uma reflexão, trago discussões em torno das políticas públicas estaduais e municipais, e das alternativas oferecidas pelos setores não governamentais, direcionadas a temática do lixo e dos catadores. As análises das histórias de vidas ligando as experiências desses catadores de lixo com a organização desse grupo e a própria construção da sua história com vitórias e derrotas. Aqui se torna possível refletir sobre a visão que esse segmento tem das suas vidas e do mundo ao redor. A dissertação apresentada, certamente, é uma versão inacabada, com lacunas abertas e campos poucos explorados de pesquisa. Creio que as contribuições da Banca Examinadora serão valiosas para a construção do conhecimento, da compreensão da realidade do catador, com também de novas possibilidades de ampliação da temática pesquisada em futuros estudos. 32 Catação feita por crianças (Avenida do bairro Parque Santa Rosa) Catadores separando o material para reciclagem (Galpão da ACORES) 33 Já não ignoramos, não podemos ignorar que ao horror nada é impossível, que não há limites para as decisões humanas. Da exploração à exclusão, da exclusão à eliminação, ou até mesmo a algumas inéditas explorações desastrosas, será que essa seqüência é impensável? (Viviane Forrester) Estamos longe do verdadeiro desenvolvimento, que só ocorre quando beneficia a sociedade. (Celso Furtado) Sem utopia satisfazemo-nos com as mediocridades das dominações corriqueiras e nos curvamos às desigualdades vigentes. (Pedro Demo) 34 CAPÍTULO I NO LIXO A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA No presente capítulo ponho-me a caminho da categoria central lixo, tecnicamente nomeada resíduos sólidos, para chegar em duas outras: exclusão e participação. Embora lixo e resíduos sólidos sejam a mesma coisa, faço a opção, neste trabalho, pela nomenclatura lixo por ser um termo mais usado por toda a população. Por que partir do lixo? Analiso, aqui, que a aproximação da população pobre com o lixo é resultado de um processo próprio da sociedade capitalista que é eminentemente excludente. Entretanto, não esqueçamos que a luta pela sobrevivência persegue o ser humano desde os primórdios, ou melhor, está no seu instinto, e que a atividade de catação é fundamentalmente gregária. Esses dois fatores, a sobrevivência e a união, favorecem o florescimento da participação nesta atividade de catar o lixo. Assim, no lixo visualizo ao mesmo tempo a exclusão e a participação. 1.1. Falando sobre o lixo. A Associação Brasileira de Normas e Técnicas – ABNT – através da Norma Brasileira Registrada 10004 denomina o comumente conhecido lixo de resíduos sólidos. Nesta norma encontra-se a classificação e definição de resíduos sólidos. Na presente pesquisa adotarei a definição de lixo, proposta por essa associação, como sendo: Resíduos nos estado sólido e semi-sólido, que resultam de atividades da comunidade de origem: industrial, doméstico, hospitalar, comercial, agrícola, de serviço e de varrição. Ficam incluídos nesta definição os lodos provenientes de sistemas de tratamento de água, aqueles gerados em equipamentos e instalações de controle de poluição, bem como determinados líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou corpos de água, ou exijam para isso soluções técnicas e economicamente inviáveis em face à melhor tecnologia disponível. Segundo a CEMPRE (1995), existem várias formas possíveis de se classificar o lixo: por sua natureza física (seco e molhado); por sua composição química (matéria 35 orgânica e matéria inorgânica); pelos riscos potenciais ao meio ambiente (perigosos, não-inertes e inertes). A última forma citada acima é encontrada detalhadamente na NBR 10004. Nesta norma o lixo é classificado em: Resíduos Classe I – perigosos, ou seja, são aqueles resíduos que apresentam risco à saúde pública e ao meio ambiente e que apresentam uma das seguintes característica: inflamabilidade, corrosividade, reatividade, toxicidade, patogenicidade; Resíduos Classe II – não-inertes, esses resíduos apresentam propriedades, tais como: combustibilidade, biodegradabilidade ou solubilidade em água; Resíduos Classe III – inertes. Quaisquer resíduos que não tiverem nenhum de seus constituintes solubilizados a concentrações superiores aos padrões de potabilidade de água. Em outras palavras, são materiais que não são facilmente decompostos a exemplo das rochas, vidros e certos tipos de borrachas e plásticos. O Manual de Impactos Ambientais produzido pelo Banco do Nordeste define o termo lixo como tudo aquilo que deixa de ter utilidade, é jogado fora e que se apresenta no estado sólido ou semi-sólido. O lixo ainda pode ser classificado de acordo com a origem em: Resíduos urbanos: compreende os domiciliares ou domésticos, comerciais e públicos. A responsabilidade de coletar, transportar, tratar e dar disposição final dos resíduos sólidos urbanos é do município, exceto o lixo comercial que ultrapassar, geralmente, o peso de 50kg; Resíduos industriais: provenientes de atividades industriais. Nesta categoria inclui-se a maior parte dos resíduos tóxicos. O gerador desse tipo de resíduo é responsável pelo armazenamento, tratamento e disposição final adequada; Resíduos dos serviços de saúde: conhecido como lixo hospitalar. Contém, em geral, resíduos sépticos que compreendem: agulhas, seringas, gases, bandagens, luvas descartáveis, órgãos e tecidos removidos, etc. Mas também os assépticos como papéis e restos alimentares. Os geradores são também responsáveis sobre o seu manuseio, acondicionamento, transporte, tratamento e disposição final; 36 Resíduos especiais: apresentam grandes volumes ou toxicidade. Esses resíduos necessitam de coleta especial. O lixo é produzido praticamente em todas as atividades humanas e composto por uma grande diversidade de substâncias. Nesta pesquisa tratarei do lixo urbano, especificamente o que é constituído pelos lixos domiciliares, oriundos das residências, e pelos lixos comerciais originados de atividades realizadas em escritórios, hotéis, lojas, cinemas, teatros, mercados, terminais etc. Portanto, quando cito o termo lixo refiro-me ao lixo domiciliar e comercial. Esse tipo de lixo, classificado de resíduos urbanos, é chamado também de lixo municipal pelo fato da execução dos serviços de limpeza pública urbana constituir um dos poucos serviços públicos de competência exclusiva do poder municipal. O lixo domiciliar ou doméstico é constituído basicamente por: embalagens plásticas, de metal, de vidro, de papel e de papelão; jornais, revistas; restos de alimentos; produtos deteriorados e uma grande variedade de outros itens. O lixo comercial por: papel, papelão e embalagens em geral. A partir desses geradores o lixo se transforma em matéria-prima para os catadores, protagonistas deste trabalho. Os catadores de lixo procuram por todas as ruas da cidade de Fortaleza, durante os três turnos, manhã, tarde e noite, materiais que lhes interessem para uma posterior comercialização. Mas é principalmente à noite que esses trabalhadores informais são visualizados. A coleta regular é realizada, na maioria das vezes, no horário da noite e a população é educada a colocar o lixo somente nesse horário quando passa o caminhão do lixo. Desta forma a matéria-prima do catador está disponível principalmente à noite. Outro motivo da catação noturna seria o clima agradável que ameniza o desgaste físico e a diminuição do fluxo de carros evitando acidentes. A partir dos restos de várias atividades, considerados pelos geradores como inúteis, indesejáveis ou descartáveis, os catadores de lixo conseguem sobreviver. No Brasil, há 37 anos que a reciclagem é sustentada através da catação informal de papéis e outros materiais achados nas ruas e nos lixões. O benefício que os catadores de lixo trazem para a limpeza urbana é considerável, pois ao recolherem o material antes do caminhão da coleta passar reduzem os gastos com a limpeza pública7, além de fornecerem matéria-prima para as indústrias de reciclagens, gerando possibilidade de maiores lucros para os empresários. O faturamento das empresas que utilizam material reciclado é ampliado com a redução dos custos na confecção de “novos materiais” que não é repassada para os consumidores. Rodrigues (1998, p. 158), a partir de reportagens da Folha de São Paulo e Gazeta Mercantil, cita exemplo do faturamento de várias empresas que ampliaram seus lucros com a reciclagem. Destaco alguns: A reciclagem de latas de alumínio, que começou em 1991 como um lance de marketing da Latasa, transformou-se neste ano(1994) num negócio lucrativo para a empresa que consegue redução de 8% a 14% no preço da chapa de alumínio feita com material reutilizado... 8 Com a nova tecnologia, a CST já conseguir economizar US$2,5 milhões a partir de um investimento inicial de US$816,5 mil... Para a autora citada, independente da origem, o lixo se tornou “mercadoria” com um “novo” valor de troca. “Mercadoria que alguns ‘pagam’ para se verem livres e outros ‘cobram’ para livrar os outros e com isso têm lucro”(1998, p 147). Até os desastres ambientais acabam também se tornando “mercadorias”. Essa mercadoria tem valor real, pois está no circuito produtivo, como também um valor simbólico, pois é importante para a preservação da natureza. Independente do valor produtivo o maior beneficiamento é a redução crescente do impacto ambiental. A gestão do lixo deve estar orientada à proteção da saúde humana, manutenção da qualidade de vida e melhoria das condições ambientais e conservação dos recursos naturais. No incentivo ao processo de reciclagem, é necessário pensar na preservação 7 Essa redução dos gastos não é possível na cidade de Fortaleza. Na gestão do prefeito Juraci Magalhães, foi acordado com a empresa Ecofor um piso fixo para a coleta do lixo, independente da quantidade do peso do lixo e dos dias úteis trabalhados. Esse contrato terá vigência de 20 anos. 8 CTS – Companhia Siderúrgica de Tubarão. 38 de recursos naturais e viabilização de melhores condições de trabalho das pessoas envolvidas nessa atividade, como os catadores. Em relação ao destino final dos resíduos sólidos a nova ordem mundial, pelo menos no papel, é minimizar o lixo, como o princípio dos 3Rs: reduzir - que consiste em diminuir a quantidade de lixo produzido, desperdiçar menos e consumir só o necessário; reutilizar - dar nova utilidade a materiais que na maioria das vezes são considerados inúteis e jogados no lixo; reciclar - cujo processo possibilita “nova vida” a materiais a partir da reutilização de sua matéria-prima para fabricar novos produtos (FEAM, 2002). Esses princípios permanecem no campo teórico das intenções, pois a todo instante são alimentados e encorajados os hábitos de consumo indiscriminados, veiculados especialmente pelos meios de comunicação de massa, com elevado potencial de impacto em toda a sociedade. O crescimento da população, juntamente com o aumento das aglomerações urbanas alteram a quantidade do lixo produzido. O aumento do volume do lixo, aliado a durabilidade dos materiais da sociedade do descartável, resultam numa diminuição de áreas disponíveis para a destinação dos resíduos gerados principalmente nas grandes cidades. O lixo de Fortaleza já é depositado num aterro localizado no município de Caucaia, região metropolitana. Nos últimos anos o princípio da reciclagem vem recebendo uma atenção maior devido ao fator econômico. Hoje, o meio ambiente é considerado não só uma vertente ecológica, mas também uma variável econômica identificada dentre os fatores de competitividade e oportunidade de negócios. Desta forma, como constatou Rodrigues (1998, p.161), a reciclagem converteu o lixo numa “nova” mercadoria onde a questão ambiental é transformada em “gestão ambiental”. No processo da reciclagem é imprescindível a coleta seletiva que pressupõe a separação dos materiais recicláveis como papel, vidros, plásticos e metais do restante do lixo, nas próprias fontes geradoras. A segregação do lixo na fonte, evita que os resíduos infectantes sejam misturados aos demais, contaminando os passíveis de reciclagens e encarecendo tanto a coleta, com o aumento do volume, como a 39 disposição final, pois os resíduos gerados necessitarão de tratamento especial. Com a ausência da coleta seletiva, o país, desperdiça através do lixo, milhões de toneladas de produtos recicláveis. O CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente – estabelece, através da resolução No 275, um código de cores para os diferentes tipos de lixo, a ser adotado na identificação de coletores e transportadores, bem como nas campanhas informativas para a coleta seletiva. Tal iniciativa pública objetiva incentivar, facilitar e expandir a reciclagem no país. A tabela a seguir trata do código das cores. Tabela 1 CÓDIGO DE CORES PARA DIFERENTES TIPOS DE RESÍDUOS PADRÃO DE CORES MATERIAIS Azul Papel / Papelão Vermelho Plástico Verde Vidro amarelo Metal Preto Madeira Laranja Resíduos Perigosos Branco Resíduos Ambulatoriais e de Serviços de Saúde Roxo Resíduos Radioativos Marrom Resíduos Orgânicos Cinza Resíduo geral não reciclável ou misturado Fonte: CONAMA, 2001. A coleta seletiva poderá reduzir o volume e peso do lixo coletado numa cidade proporcionando o aumento da vida útil dos aterros, a otimização na operação de sistema de compostagem, a economia e proteção de recursos naturais e a economia energética. Em relação à destinação final do lixo o mais utilizado é a disposição no solo. Essa disposição no solo é feito em lixões, aterro sanitário e aterro controlado. Outras técnicas 40 para tratamentos do lixo são a compostagem e a incineração. Como técnica de reaproveitamento, inclui-se também no tratamento do lixo a reciclagem. A tabela a seguir dispõe sobre os dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, realizada pelo IBGE e editada nos anos de 1991 e 2000 que trata da disposição final de lixo nos municípios brasileiros. Tabela 2 DISPOSIÇÃO FINAL DE LIXO NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS 1991 e 2000 Disposição Final ANO 1991 2000 Lixões 76% 64% Aterros Sanitários 10% 14% Aterros Controlados 13% 17% Outros 01% 05% Total 100% 100% Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 1991 e 2000. Embora o resultado em número de municípios não seja favorável, pois a maioria das cidades destina o seu lixo de forma inadequada, ou seja, nos lixões, é notória uma tendência de melhora da situação da disposição final do lixo no Brasil, nos últimos anos, principalmente se indicar a situação de destinação final do lixo coletado no país em peso: 47,1% em aterros sanitários, 22,3% em aterros controlados e apenas 30,5% em lixões, ou seja, mais de 69% de todo o lixo coletado no Brasil estaria tendo um destino adequado (IBGE, 2000). O lixão, tratamento dado pela maioria dos municípios brasileiro ao lixo, é uma forma inadequada de disposição final de lixo, que se caracteriza pela simples descarga sobre o solo, a céu aberto, sem medida de proteção ao meio ambiente ou à saúde pública. Na cidade de Fortaleza, até o ano de 1996, o lixo era depositado no lixão do Jangurussu onde mais de mil pessoas sobreviviam da catação. 41 O aterro sanitário é um processo que permite o confinamento seguro em termos de controle de poluição, fundamentado em critérios de engenharia e normas operacionais específicas. Já o aterro controlado utiliza alguns princípios da engenharia, mas é inferior ao aterro sanitário. Ele assemelha-se aos lixões por causar danos ao meio ambiente comprometendo a qualidade das águas subterrâneas e do ar. Ainda em relação a disposição final de lixo existe o tratamento da compostagem que se fundamenta na estabilização da matéria orgânica, por meio de processo biológico. O produto obtido é um material livre de agentes patogênicos, chamado composto orgânico, e pode ser utilizado na agricultura como fertilizante. A incineração, que é um processo de combustão controlada do lixo, é aplicada na destruição de resíduos perigosos, porém com alto custo e com risco de contaminar o ar (Banco do Nordeste, 1999). O lixo, quando não é tratado adequadamente, constitui uma permanente ameaça à saúde publica e ao meio ambiente. Os recursos naturais que mais sofrem efeitos negativos da disposição inadequada do lixo são os solos, águas (subterrâneas e superficiais) e o ar. Tanto nos “lixões” quanto nos aterros sanitários, quando não atendidas as condições técnicas para construção, manutenção e operação, os solos podem ser contaminados por microrganismos patogênicos, metais pesados, sais e hidrocarbonetos clorados, contidos no “chorume” (líquido resultante da decomposição do lixo). Fortaleza, como a maioria das cidades brasileiras, depositou por um longo tempo seu resíduo sólido nos lixões. Esse tratamento de disposição final do lixo durou até o ano de 1996. A taxa de urbanização registra 100% desde o ano de 1991. Com o crescimento da cidade, esgotou-se assim o espaço físico para o mato, lagoas e principalmente para depositar o lixo. Hoje o lixo da cidade é levado para o município de Caucaia, especificamente para o Aterro Sanitário Metropolitano Oeste de Caucaia (Asmoc). A cidade de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, está delimitada ao Norte com o Oceano Atlântico, ao Sul com os municípios de Itaitinga e Eusébio, a porção Ocidental com o Oceano Atlântico e porção Oriental com o município de Caucaia. Conta ainda 42 com uma população de 2.141.402 habitantes numa área de 313,8 km2. Em 2000, a população representava 28,82 % da população do Estado (IBGE, 2000). Segundo ainda dados do IBGE o acesso ao serviço básico da coleta de lixo dos domicílios urbanos, na cidade de Fortaleza, subiu de 84,7% no ano de 1991 para 95,1% no ano de 2000. Portanto, o incremento desse serviço, possibilitou que grande parte da população tivesse seu lixo coletado reduzindo assim pontos de lixos. Para a coleta regular dos resíduos sólidos Fortaleza foi dividida em três grandes áreas e subdividida em 24 ZGL’s – Zonas Geradoras de Lixo para o gerenciamento dos serviços de limpeza da cidade. Em cada ZGL encontra-se um gerente setorial responsável em distribuir as equipe de garis e deslocar caçambas para desenvolverem trabalhos de varrição, pintura, capinação entre outros. A partir da matéria publicada no Diário do Nordeste (19/06/2005) relato aqui o caminho do lixo. Nessa reportagem o engenheiro Francisco Helano Menezes Brilhante enumera a existência de cinco lixões na cidade: do João Lopes; da Barra do Ceará; do Buraco da Gia; do Henrique Jorge; e por último o do Jangurussu. Segundo ainda os funcionários da limpeza urbana o lixão mais antigo foi o Lixão do João Lopes, localizado no bairro do Monte Castelo, entre os anos de 1956 a 1960. A coleta desse lixo era realizada por carroças movidas por tração animal e caminhões abertos. O próximo destino do lixo foi o Lixão da Barra do Ceará, entre os anos de 1961 a 1965. Nessa época, a coleta já era feita com caçambas, carros com carrocerias e tratores com pneu puxando carroças e não mais animais. Registra-se, nesse intervalo, a presença de catadores nas ruas da cidade. Por um período de apenas dois anos (1966 a 1967), o lixo foi depositado no Lixão do Buraco da Gia, por trás da fábrica de beneficiamento de castanhas Cione, para em seguida ser depositado no Bairro de Henrique Jorge, entre 1968 e 1977. Nessa época surgiram os coletores compactadores. O Lixão do Jangurussu começou a operar em fevereiro de 1978 às margens do Rio Cocó e foi desativo em 1996. O lixo chegou a uma altura de 42 metros de altura, com área de 20 mil metros quadrados. 43 Após a desativação do Lixão do Jangurussu o lixo de Fortaleza passou a ser depositado no Asmoc, exatamente no ano de 1997. A reportagem sugeriu que os lixões ficaram no passado, mas em minhas visitas pelos bairros da periferia, entre eles, Santa Rosa, Serrinha, Quintino Cunha, Tancredo Neves e Barroso, observei a existência de vários depósitos de lixo que lembram verdadeiros lixões. 1.2. O caminho percorrido por alguns excluídos: o lixo. A acumulação capitalista de um grupo minoritário tem como contradição a acumulação de miséria e perdas da maioria da população. O Brasil é um dos campeões mundiais em concentração de renda e, no período da intensificação do capitalismo industrial, a concentração das riquezas acentuou-se exageradamente, perpetuando o problema da exclusão social no Brasil. Esta questão tem forte conotação regional. A pobreza se instala na América Latina de forma peculiar. As favelas se multiplicam. No Brasil elas abrigam cerca 6,5 milhões de pessoas. Mais da metade dos 400 milhões de latino-americanos não consegue satisfazer suas necessidades básicas e existem 102 milhões de indigentes que nem sequer conseguem alimentar seus filhos9. Desta forma, famílias inteiras, vidas humanas são “jogadas ao léu”, “jogadas ao lixo”, pois muitos procuram alimentos no lixo. Os catadores de lixo por estarem em condições de inferioridade na hierarquia social são, muitas vezes, tratados e considerados como “não-semelhantes”. Cristóvam Buarque propôs o termo apartação social como sendo o fenômeno de separar o outro, não mais considerado como humano. Ou seja, a exclusão social torna-se apartação quando o outro não é apenas desigual ou diferente, mas quando o outro é considerado como "não-semelhante", um ser expulso, não dos meios modernos de consumo, mas do gênero humano. (Nascimento, 1995, p.25). 9 Dados coletados do jornal Diário do Nordeste, 13 de junho de 2004. 44 A apartação proposta por Buarque é visualizada em algumas produções acadêmicas. Exemplo desse resultado é o Atlas da Exclusão Social no Brasil, que ajuda na compreensão e visibilidade do quadro de diferenciações sociais e regionais no país. Pochmann (2003, p.9) busca melhor compreender o fenômeno da exclusão social que pode ser “interpretada como um processo de natureza transdisciplinar, capaz de envolver diferentes componentes analíticos”. A produção do Atlas resultou na localização geográfica das regiões relativamente mais excluídas do país e na identificação de algumas das suas principais carências. Metaforicamente é fotografada a exclusão social no Brasil. A pesquisa de Pochmann ensejou apurar nos 5.507 municípios brasileiros, em 2000, o Índice de Exclusão Social. O resultado dependeria do valor encontrado do índice que variava de zero a um em cada município. Os valores próximos a zero equivaleriam às piores condições de vida, enquanto os próximos de um às melhores situações sociais. Nesta pesquisa apurou-se que: ... nada menos que 41,6% das cidades do Brasil apresentam os piores resultados neste indicador, quase todas situadas nas regiões Norte e Nordeste. Mais uma vez, isso reforça a constatação de que a “selva” de exclusão mostrase aí intensa e generalizada, com poucos “acampamentos” de inclusão social, pontuando uma realidade marcada pela pobreza e pela fome, que atingem famílias extensas, população pouco instruída e sem experiência assalariada formal (Pochmann, 2003, p.25). O número de cidades com elevado índice de Exclusão Social chega a 41,6% (2.290) do total de 5.507 municípios no território nacional. Índice alto que deveria causar consternação, vergonha e desolação a toda população brasileira. Como nordestina que sou a indignação é maior, pois dentre esses municípios de maior índice de exclusão a maioria localiza-se na região Nordeste que é recordista, representando 72,1% (1.652). Esses municípios encontram-se dentro da exclusão tradicional, ou seja, de famintos que não garantem o simples critério de subsistência. A região NE é formada, principalmente, por famílias vulnerabilizadas pela pobreza e exclusão, inseridas num cenário de uma economia de mercado crescentemente globalizado e assentado sobre a lógica da competitividade ilimitada. Nas regiões Norte e Nordeste identificam-se vários baixos indicadores das condições de vida dessas 45 populações: escolaridade, alfabetização, desigualdade social, emprego formal, concentração de jovens, violência. Muitos são os cidadãos que se encontram com profundos problemas de desemprego, condições precárias de moradia, analfabetismo. No próximo capítulo veremos que o perfil dos catadores de lixo, foco central do presente estudo, confirma os baixos indicadores. Conforme os dados, acima, detectou-se que existem ao longo do território brasileiro, quinto maior país do mundo, “acampamentos” de inclusão social em meio a uma ampla “selva” de exclusão, que se estende por praticamente todo o espaço brasileiro, mormente nas regiões geográficas do Norte e Nordeste. Essa desigualdade entre os “incluídos” e “excluídos” revelou-se por meio de oito indicadores: participação de cidadãos com até 19 anos de idade no total da população; existência de analfabetismo; nível de instrução do chefe; participação dos assalariados em ocupações formais no total da população em idade ativa; violência; pobreza; desigualdade; exclusão social. O último indicador, exclusão social, representa uma síntese de todos os indicadores. Para uma melhor análise dos dados dessa pesquisa exponho a seguir os índices de exclusão social de algumas das maiores cidades do país. Tabela 3 ÍNDICE DE EXCULSÃO SOCIAL DE ALGUNS MUNICÍPIOS DO BRASIL, 2000 CIDADE Pobreza Juventude Alfabetização Escolaridade Emprego Formal Violência Desigualdade Exclusão social Fortaleza 0,579 0,657 0,838 0,671 0,239 0,913 0,235 0,552 Recife Brasília São Paulo Belo Horizonte 0,587 0,784 0,803 0,747 0,680 0,792 0,851 0,902 0,911 0,751 0,816 0,777 0,383 0,490 0,368 0,747 0,872 0,743 0,331 0,597 0,485 0,594 0,708 0,667 0,764 0,769 0,921 0,813 0,486 0,913 0,475 0,710 Belém Porto Alegre Curitiba 0,617 0,829 0,666 0,839 0,894 0,927 0,738 0,911 0,252 0,478 0,945 0,904 0,232 0,618 0,576 0,761 0,845 0,788 0,936 0,872 0,428 0,914 0,537 0,730 Fonte: Atlas da Exclusão Social no Brasil, 2003. 46 Observando a tabela 3, os índices da desigualdade (0,235) e do emprego formal (0,239) estão quase na extremidade do pior índice (zero). A metrópole cearense em relação aos maiores centros do país teve a pior performance no que se refere ao Índice de Exclusão social (0,552). A cidade teve, também, todos os índices, com a exceção do índice violência, abaixo das demais metrópoles. Os indicadores apresentados sinalizam uma realidade social interna de grande desigualdade na Cidade da Luz. Os dados do IBGE também confirmam que a desigualdade cresceu em Fortaleza. O índice de Gini, que indica a desigualdade, passou de 0,65 em 1991 para 0,66 em 2000. A desigualdade é alimentada com o tipo de desenvolvimento econômico impulsionado no Estado que favorece a concentração de renda. Na próxima tabela (número 4) exporei quão grande é o fosso que separa os extratos mais ricos dos mais pobres em questão da renda na “Fortaleza bela”. Os 20% mais ricos detêm, nada menos que, 70,2% da renda da Metrópole. Enquanto os 20% mais pobres ficam com migalhas de 1,9%. Até parece que no Brasil a história não muda: “os ricos ficam cada vez mais ricos e o pobre cada vez mais pobre”. Fortaleza insere-se numa colocação razoável na classificação do Índice de Exclusão Social. Sua posição no ranking a partir da melhor situação social é de 644a. A cidade também ocupa uma boa posição no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, a 896a posição. Em relação aos outros municípios do Estado, Fortaleza ocupa a 1a posição10. No ano de 2000, o IDH-M de Fortaleza foi de 0,786, considerado assim de médio desenvolvimento humano pelo PNUD. A capital do Estado do Ceará, onde se concentra a riqueza e as exigências dos mercados, teve uma boa colocação nessas pesquisas graças ao elevado valor em alguns índices como juventude, alfabetização, escolaridade e violência. Em relação ao IDH a contribuição para o crescimento foi da educação(48,8%), longevidade(29,8%) e renda(21,5%). A elevação dos índices ocorreu naqueles itens considerados da exclusão tradicional. 10 Os dados sobre o IDH-M foram coletados no IBGE no Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2000. 47 Tabela 4 PORCENTAGEM DA RENDA APROPRIADA POR EXTRATOS DA POPULAÇÃO 1991 e 2000 1991 2000 20% mais pobres 2,3 1,9 40% mais pobres 7,1 6,5 60% mais pobres 15,3 14,6 80% mais pobres 30,7 29,8 20% mais ricos 69,3 70,2 Fonte: IBGE, Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2000 Os números não alcançam a vida, nem o sofrimento que cada indivíduo passa nesta cidade. Muito menos, as minhas palavras, secas e sem poesia, poderiam transcrever para um papel os sentimentos experienciados por esses cidadãos, especificamente os catadores de lixo, que além de não ter os meios materiais necessários para uma vivência digna, são insultados, ultrajados e transfigurados pelo suor, peso e sujidade. As dores narradas pelos catadores e as experiências vividas no campo deixaram em mim marcas profundas e pensamentos nebulosos. Sentimentos de impotência e indignação estão presentes no processo de redação desse texto. As porcentagens apresentadas apontam que a cidade fortalezense enquadra-se numa forma nova e peculiar de exclusão social como os grandes centros urbanos. Exemplo disso seria o elevado número de indivíduos que, apesar da escolarização, da experiência de assalariamento formal e da composição de famílias pouco numerosas, encontram-se em situação de desemprego e insuficiência de renda. No crescimento de Fortaleza, observa-se uma divisão no plano espacial entre leste/sudeste e oeste/sudoeste. A primeira parte, predominantemente habitada pela população de padrão médio e alto de renda (cujas “casas e mansões ostentam riqueza e suntuosidade em suas fachadas e luxo nos seus interiores”) é onde também se concentram os serviços de infra-estrutura e melhor qualidade de vida. Já a segunda é 48 habitada, sobretudo, pelas camadas de baixa renda: “operários, trabalhadores de baixos salários e aqueles cuja informalidade no mundo do trabalho impõe, muitas vezes, uma situação de miséria”. Nas zonas oeste e sudoeste reúnem-se a indústria, o pequeno comércio, o aterro sanitário e os serviços de infra-estrutura realizados de modo precário (Braga, 1995, p.116). Povoam, também, nessas zonas os catadores de lixo investigados nesta pesquisa. Esses catadores desenvolvem várias e engenhosas alternativas para garantirem o nível mínimo de sobrevivência. O trabalho de catação desenvolve-se principalmente nas grandes cidades. O processo de urbanização brasileira se deu com o crescimento econômico, mas sem uma distribuição de renda eqüitativa, o que favoreceu a desigualdade e o surgimento da cidade-paralela (a cidade “ilegal”, “espoliada”, “clandestina”), sem acesso aos direitos urbanos e fora dos padrões de legitimidade da legislação urbanística. Aqui, é flagrante que a remuneração da imensa maioria dos assalariados não acompanhou o aumento da produtividade do trabalho, havendo uma deterioração dos rendimentos reais até nos momentos de expansão econômica. O Brasil iniciou o século XXI com aproximadamente 82% da sua população vivendo no cenário urbano. A desigualdade no espaço urbano é um dado estarrecedor. Fortaleza, com o índice de desigualdade igual a 0,235, comprova essa constatação. As cidades convivem hoje com um número crescente de favelas, cortiços e ocupações urbanas que se estabelecem aparentemente sem uma estratégia mais global, simplesmente respondendo a demanda pela terra para habitação, necessidade inadiável de um país que está longe de promover uma efetiva reforma urbana, em razão do monopólio da terra por indivíduos e empresas, em grande processo especulativo. O que predomina no país, de forma absoluta, são os interesses empresariais por lucros, acompanhado de um crescimento econômico feito à custa da superexploração dos trabalhadores. Configura-se, assim, um cenário de expressão da pobreza onde não é possível estabelecer um limite entre "incluído" e "excluído". No tocante a exclusão social Maricato (1994, p.51) assim se expressa: 49 Não se trata de conceitos mensuráveis, mas de uma situação complexa que envolve a informalidade, a irregularidade, a pobreza, a baixa escolaridade, o oficioso, a raça, o sexo, a origem e principalmente a falta de voz. Entretanto nas sociedades mais pobres e/ou desiguais, a exclusão social talvez possa ser mais facilmente observada, sobretudo na relação entre os bem-alimentados e os famintos. Mas à medida que as sociedades vão incorporando novas realidades nascem necessidades adicionais de vida digna, para além do simples critério de subsistência. Além da indicação quantitativa para a definição de exclusão, ou não, ao acesso à educação, ao trabalho, à renda, à moradia, ao transporte e à informação, entre outros, cresce de importância a noção de qualidade (Pochmann, 2003, p.10). Para Escorel (1999, p.12) a exclusão social resultaria do crescimento demográfico e da condução histórica do capitalismo que levou uma multidão sem precedentes de seres humanos a não fazer parte da partilha dos bens sociais e da riqueza gerada pelo desenvolvimento econômico, tecnológico e científico. A autora denomina exclusão social a magnitude desse fenômeno. Para Nascimento (1995), o termo exclusão social ganhou notoriedade no final da década de 80, a partir da literatura francesa com a obra de Lenoir Les Exclues em meados dos anos 70. No trabalho deste autor, os excluídos são os deserdados temporários do progresso. Entretanto, os excluídos, na terminologia da última década do século passado, não são residuais nem temporais, mas contingentes populacionais crescentes que não encontram espaço no mercado e vagueiam pela cidade sem emprego e muitos sem teto. Para Virgínia Pontes (1995) o diferencial da exclusão contemporânea é a possibilidade de criar, internacionalmente, indivíduos desnecessários à produção econômica. Para eles não haveria, aparentemente, mais possibilidades de integração ou reintegração no mundo do trabalho e da alta tecnologia. Forrester (1997) constata que o trabalho está desaparecendo, perecendo. Aqueles que poderiam distribuir o emprego consideram-no, hoje, um fator negativo, de alto preço, 50 inutilizável, nocivo ao lucro. Além de ser, também, um fator arcaico, fonte de prejuízos e de déficits financeiros. Os malefícios dos empregos seriam tantos que sua supressão tornou-se um dos modos de administração mais em voga, um agente essencial do lucro. O “pensamento único”, religiosamente pregado, é centrado sobre o lucro. Os especialistas, inclusive, garantem que nada é mais vantajoso para os negócios do que as demissões em massa. Na lógica capitalista prioriza-se a expansão dos negócios em detrimento da vida de muitas pessoas, que sem função, não encontram lugar neste mundo. Os seres humanos são classificados de supérfluos, desnecessários e até nocivos. E por essa razão, Forrester (1997) conclui que essas pessoas seriam passíveis de extermínio, pois uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno número que molda a economia e detém o poder. A eliminação reduziria os custos e aumentaria os benefícios para os balanços de governos e empresas. Houve, sem dúvida, tempos de angústia mais amarga, de miséria mais acerba, de atrocidades sem medidas, de crueldades infinitamente mais ostensivas; mas jamais houve outro tempo tão frio, geral e radicalmente perigoso. (...) Jamais o conjunto dos seres humanos foi tão ameaçado na sua sobrevivência (Forrester, 1997, p.136). Forrester (1997) compara, ainda, o desemprego a um fenômeno das tempestades, ciclones e tornados, que não visam ninguém em particular, mas aos quais ninguém pode resistir. A autora ressalta o nefasto sofrimento que o desemprego gera nos desempregados, inclusive, pela culpabilização de sua própria situação. Por exclusão nomeiam-se várias modalidades de miséria do mundo: o desemprego de longa duração, o jovem da periferia, o sem domicílio e etc., ou seja, uma variedade de situações. Nessa circunstância Castel (1997) alerta para o uso impreciso da palavra exclusão, pois oculta e traduz, ao mesmo tempo, o estado atual da questão social. O autor aponta os seguintes motivos da imprecisão do termo: heterogeneidade de seus usos por designar um número imenso de situações diferentes; autonomização de situações-limite que só têm sentido quando colocadas num processo; não se interroga sobre os mecanismos que são responsáveis pelos desequilíbrios atuais; aplicação de políticas de inserção pensadas como estratégias limitadas no tempo; focalização da 51 ação social; redução da questão social à questão da exclusão. Devido a essas imprecisões Castel reforça o rigor e o controle do termo exclusão. Os excluídos para Castel são os indivíduos que não participam de nenhuma maneira nas relações de produção da riqueza e do reconhecimento social. O excluído é um desfiliado cuja trajetória é feita de uma série de rupturas em relação a estados de equilíbrios anteriores mais ou menos estáveis, ou instáveis (1997). Castel, ao tentar melhor definir os conceitos de exclusão social, realiza na verdade um meio termo entre as explicações tradicionais relativas ao uso do paradigma das classes sociais e outras que saberiam apontar para a questão cultural e dos valores. Castel fala de "desenraizamento" como fenômeno fundamental no começo do processo de exclusão, na falta de acesso ao patrimônio e ao trabalho regulado. O aumento da pobreza do conjunto da população vem contribuindo para o crescente número de catadores em todo o país. O lixo tornou um caminho de sobrevivência para os excluídos do mundo do trabalho. Em Fortaleza não é diferente. Entretanto, o acréscimo desse segmento populacional vem contribuindo para organização dos grupos de catadores e, por conseqüência, conquista de melhores condições de trabalho e vida. A precarização do trabalho para Singer (1999) engloba tanto a exclusão de uma crescente massa de trabalhadores do gozo de seus direitos legais como a consolidação de um ponderável exército de reserva e o agravamento de suas condições. Santos (1999) afirma que o resultado do desemprego leva a uma flexibilização dos sistemas jurídicos e das leis trabalhistas do Estado, permitindo novas relações de trabalho. A autora reflete sobre as perspectiva de um mundo sem emprego. Como podemos, diante do cenário atual, criar condições para estabelecer a igualdade na sociedade? Efetivar a conquista da liberdade conciliada com a igualdade na sociedade demanda, a meu ver, uma série de transformações nas políticas públicas: 52 políticas sociais universais; transparência no orçamento; estabelecimento de renda mínima; e uma democracia participativa. 1.3. A construção da participação Compreender a luta da população pobre por direito e dignidade, ou seja, por sua "inclusão" na sociedade, remete ao estudo da categoria participação. Aqui, concebemos como Ammann (1978) a participação social como um processo que resulta fundamentalmente da ação das camadas sociais em três níveis diferenciados: a produção de bens e serviços; a gestão da sociedade; o usufruto dos bens e serviços produzidos e geridos nessa sociedade. Os movimentos sociais urbanos têm sido uma das principais formas de organização da população brasileira para a expansão de seus direitos sociais. Investigar a participação popular na criação de novas alternativas de sobrevivência é um dos objetivos da pesquisa. Nos diversos discursos atuais nota-se uma tendência para intensificação dos processos participativos, tanto nos setores progressistas, como nos setores tradicionais. A participação, do ponto de vista dos progressistas, facilita o crescimento da consciência crítica da população, fortalece seu poder de reivindicação e a prepara para adquirir mais poder na sociedade. Já nos setores tradicionais ela mantém uma situação de controle de muitos por alguns. Mas a participação vai além. Como afirma Bordenave, ela está por natureza inseparavelmente ligada ao homem. A participação é inerente à natureza social do homem, tendo acompanhado sua evolução desde a tribo e o clã dos tempos primitivos, até as associações, empresas e partidos políticos de hoje. Neste sentido, a frustração da necessidade de participar constitui uma mutilação do homem social.(Bordenave, 1992, p.17). Para Souza (2004, p. 334) a participação é um direito inalienável. Ele destaca a importância da participação: primeiro, porque uma ampla participação pode contribuir para minimizar certas fontes de distorção (que inclusive no Brasil está insustentável 53 com o caso de denuncias de corrupção e mensalão praticados no governo); segundo, pelo fato de que quando o cidadão participa de uma decisão, sente-se muito mais responsável pelo seu resultado. Para o autor abrir mão desse direito é colocar-se numa posição de tutela, como uma criança perante um adulto. A não participação seria infantilizar o cidadão. Marcelo Lopes Souza (2004, p.202) admite tratar o grau de abertura para com a participação popular com o auxílio da escala de avaliação. Essa escala de avaliação foi inspirada na clássica “escada da participação popular” de Sherry Arnstein (1969), com suas oito categorias: parceria, poder delegado e controle cidadão; apaziguamento, consulta e informação; manipulação e terapia. Entretanto, para o autor tornou-se necessário modificar algumas categorias da classificação de Arnstein. As modificações são apresentadas na figura abaixo. Quadro 1 DA NÃO-PARTICIPAÇÃO À PARTICIPAÇÃO AUTÊNTICA: UMA ESCALA DE AVALIAÇÃO 8 7 6 5 4 3 2 1 AUTOGESTÃO DELEGAÇÃO DE PODER PARCERIA COOPTAÇÃO CONSULTA INFORMAÇÃO MANIPULAÇÃO COERÇÃO Fonte: Souza, 2004, p.207. A partir da escala de participação, citada acima, Souza estabelece uma diferenciação do que é não-participação, pseudo-participação e participação autêntica, ou seja, verdadeira, em oito categorias distintas. Observando o quadro 1 as categorias 1 e 2 se enquadram em situações de não-participação, as de números 3, 4 e 5 são graus de pseudo-participação, e finalmente as 6, 7 e 8 denotam graus de participação autêntica. Para uma melhor compreensão dessa escala resumirei sinteticamente as definições dadas por Souza (2004, p.203-5) para cada categoria: 54 1. Coerção: situações de clara coerção serão encontradas, normalmente, em regimes de exceção como os ditatoriais ou totalitários, nas quais a própria democracia representativa não existe ou deixou de existir; 2. Manipulação: corresponde a situações nas quais a população envolvida é induzida a aceitar uma intervenção, mediante, por exemplo, o uso maciço da propaganda ou de outros mecanismos; 3. Informação: neste caso, o Estado disponibiliza informações sobre as intervenções planejadas, mas dependendo de fatores como cultura, política e grau de transparência do jogo político, as informações serão menos ou mais completas, menos ou mais ”ideologizadas”. 4. Consulta: o Estado não se limita a permitir o acesso a informações relevantes, sendo a própria população consultada. O problema é que não há qualquer garantia de que as opiniões da população serão, de fato, incorporadas. Argumentos técnicos são muitas vezes invocados para justificar a não incorporação das sugestões da população; 5. Cooptação: a cooptação de uma coletividade pode se dar de várias formas. Em sentido mais específico, deseja-se fazer referência, aqui, à cooptação de indivíduos (líderes populares, pessoas-chave) ou dos segmentos mais ativos (ativistas), convidados para integrarem postos na administração ou para aderirem a um determinado “canal participativo” ou uma determinada “instância participativa”. A diferença em relação à consulta é que, nesse caso, instâncias permanentes são criadas. O grande risco dessa categoria, classificada de pseudo-participação, é o de domesticação e desmobilização ainda maiores da sociedade civil; 6. Parceria: Estado e sociedade civil organizada colaboram, em um ambiente de dialogo e razoável transparência, para a implementação de uma política púbica ou viabilização de uma intervenção; 7. Delegação de poder: vai além da parceria, pois aqui o Estado abdica de toda uma gama de atribuições, antes vistas como sua prerrogativa exclusiva, em favor da sociedade civil. A parceira e a delegação de poder consistem em situações de cogestão entre Estado e sociedade civil; 8. Autogestão: na prática, a delegação de poder é o nível mais elevado que se pode alcançar nos marcos do binômio capitalismo e democracia representativa. Lograr a 55 autogestão pressupõe, a rigor, um macrocontexto social diferente em que a sociedade seja regida com autonomia por seus cidadãos. A palavra autonomia que vem do grego autonomia que significa “dar-se a si próprio a sua própria lei”. Para Souza (2004, p.175) uma sociedade autônoma significa uma sociedade na qual a separação institucionalizada entre dirigentes e dirigidos foi abolida, com isso dando-se a oportunidade de surgimento de uma esfera pública datada de vitalidade e animada por cidadãos conscientes, responsáveis e participantes. Bordenave (1992), assim como Souza, considera a autogestão o grau mais alto de participação. Nesse processo o grupo determina seus objetivos, escolhe seus meios e estabelece os controles pertinentes sem referência a uma autoridade externa. É importante observar a influência da estrutura social sobre a participação. O fato de nossa sociedade estar estratificada em classes sociais e com interesses antagônicos, leva-nos a questionar se uma estrutura como a nossa favorece a participação, partindo do pressuposto, que só se participa realmente quando se está entre iguais. Desta forma, a participação será sempre uma guerra a ser travada para vencer a resistência dos detentores de privilégios. Schumpeter (1979), na defesa da democracia no liberalismo propõe uma teoria da democracia que prima pela supremacia da competição, entre as pessoas, pela liderança política, e não mais nas decisões tomadas pelo eleitorado. O autor discorre uma série de implicações para distanciar a participação popular: ausência de um bem comum, ao fato de diferentes indivíduos e grupos darem uma significação diferente ao que é bem comum; inexistência do consenso; presença de elementos extra-racionais e irracionais no comportamento humano sob influência da aglomeração. Neste modelo o povo apenas elege um governo: ... assumimos agora a visão de que o papel do povo é produzir um governo, ou melhor, um corpo intermediário que, por sua vez, produzirá um governo ou um executivo nacional. E definimos: o método democrático é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos 56 adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população. (Schumpeter, 1979, 337) O autor destaca, através dos estudos sobre a psicologia social, comportamentos que evidenciam na democracia da doutrina clássica a presença de elementos extraracionais e irracionais. O comportamento humano sob influência da aglomeração assume características de “reduzido senso de responsabilidade, um nível mais baixo de energia de pensamento e uma sensibilidade maior às influências não-lógicas”. Desta forma, na democracia liberal o cidadão é “nocivo”, “perigoso” ao processo político interno e externo devido ao reduzido senso de responsabilidade e à ausência de desejo efetivo explicados pela ignorância do cidadão comum e sua falta de discernimento nessas questões. Diferentemente do autor anterior, Borja, tem a seguinte definição: "A participação é um método de governo, em estilo de fazer política no Estado e na sociedade, que supõe cumprir previamente ou ao mesmo tempo todo o conjunto de requisitos, especialmente a racionalização e a descentralização do Estado."(1988, p.15) A participação dos cidadãos, diferentemente da adotada na democracia liberal, não pode se limitar às eleições e à relação com os partidos, seu objetivo principal é o de facilitar, tornar mais direto e mais cotidiano o contato entre os cidadãos e as diversas instituições do Estado. Possibilitar, também, que as instituições levem mais em conta os interesses e opiniões daqueles antes de tomar decisões ou de executá-las. A participação se baseia em uma cidadania ativa e na existência de uma rede o mais densa possível de organizações sociais de todo o tipo. Borja (1988) aborda que a não participação social dos cidadãos é motivada, muitas vezes, pelo fato dos mesmos não saberem como, onde ou para quê participar. É motivada também pela falta de confiança da sociedade nas instâncias públicas já que a participação requer uma tripla credibilidade do Estado: que seja considerado democrático, honesto e eficaz, isto é, representativo em todos os níveis, 57 descentralizado e defensor das liberdades. A desinformação e a falta de credibilidade no Estado, por parte da sociedade, alimentam situações de não participação. Gondim (1990), apoiando-se em Borja, considera que o sistema eleitoral não garante nem a representatividade social imediata, nem a competência funcional dos eleitos, e ainda estabelece uma grande distância entre estes e os eleitores. Para a autora, no Brasil, o debate sobre a participação popular na Administração Pública acompanhou o processo de "abertura" do sistema político, iniciado em fins da década de 70. A tendência predominante, pelo menos em nível de discurso, tem sido reconhecer a necessidade de promover a participação política direta dos cidadãos como condição para se chegar a uma sociedade verdadeiramente democrática. Contudo, pouco se tem avançado quando se trata de definir como essa participação deve se dar, isto é, através de que mecanismos e sob que condições. Assim, um entrave do discurso é operacionalizar a participação. Não basta à sociedade prover a existência de mecanismos tais como o voto, a representatividade, o plebiscito, a associação etc. Urge que a população esteja informada, (...) Somente informada pode uma população fazer julgamento claro sobre a validade das oportunidades e dos instrumentos postos à sua disposição, utilizá-los, ou, inclusive, rejeitá-los, se os considera ineficientes ou inadequados (Ammann, 1978, p.25). Nos estudo de Souza (2004) e de Ellen Wood (2003), ambos para discutem a categoria participação retornam a reflexão sobre a democracia, ou seja, sobre as diferenças entre democracia representativa e democracia direta. Embora com suas peculiaridades os autores sugerem, ao meu ver, que participação de fato só se efetivaria numa democracia direta. Souza (2004, p 327) afirma que a representação, diferentemente da delegação, significa alienar poder decisório em favor de outrem, seria como entregar um cheque em branco assinado para algum desconhecido, a não ser pelo nome, número de candidatura e algumas intenções ditas em palanques. O autor parafraseia Rousseau acerca da liberdade dos ingleses: a representação equivale a uma liberdade fugaz, exercida um dia a cada quatro anos. Ele ainda afirma que as objeções contra a democracia teriam juízo de valor elitista e antipático ao envolvimento dos “de baixo”. 58 Ainda que os discursos atuais não desqualifiquem a democracia direta, argumenta-se que ela é inviável e elaboram uma lista interminável de justificativas.11 Eleen Wood (2003) é mais radical ao propor que a democracia não é possível numa sociedade capitalista. A autora critica a democracia dos modernos, inglesa e americana, em que a desigualdade e a exploração socioeconômica coexistem com a liberdade e a igualdade cívica. E conclui que talvez seja o senhorio e não a cidadania o conceito constitutivo da democracia moderna. Desta forma, para a autora a democracia não encontrou raízes no capitalismo moderno. Nem no parlamentarismo inglês, nem no presidencialismo americano. A burguesia defende a propriedade privada e qualifica quem é o cidadão: o proprietário. Assim, a democracia torna-se antítese do capitalismo. Com o sufrágio universal, após a Segunda Guerra Mundial, desvalorizou-se mais a condição da cidadania. As próprias constituições tornam-se mais institucionais do que democráticas. Seu maior objetivo é controlar a sociedade. Wood (2003) exemplifica a Constituição dos Estados Unidos que “[...] não foi um documento de um demos livre, mas dos próprios senhores que afirmaram privilégios feudais e a liberdade da aristocracia tanto contra a coroa quanto a multidão popular”. Na definição americana de democracia o fortalecimento do governo central, concomitante a diluição do poder popular, é a principal característica. Ellen Wood (2003), representante da democracia na nova esquerda12, defende a democracia como um “caminho” para diminuir as desigualdades. “A democracia contra o capitalismo” superaria a desigualdade e a exploração. Essa utopia supera a análise de luta de classe e propõe uma democracia participativa e solidária, ou seja, uma democracia direta. Democracia na qual a sociedade seja construída por cidadãos 11 Ver Souza, 2004, p. 328-330. A teoria da democracia, na nova esquerda, inicia-se na década de 60 e se consagra na década de 70. Uma esquerda diferente, não mais operária, mas acadêmica. Ela questiona algumas teorias marxistas. Althusser, um dos seus mentores, é denominado no meio acadêmico de marxista político, por acreditar que a partir da participação consegue-se transformar a sociedade. 12 59 conscientes, responsáveis e participantes. Sociedade utópica vislumbrada na sociedade hipotética de Souza (2004, p.332): Em uma hipotética sociedade autônoma, autogestionária, a idéia de participação popular mudam os próprios sentidos de “povo” e “participação”. O povo não é mais aquilo que, se ideologicamente abrange todos os que vivem dentro de um território, especialmente os nacionais de um dado país, politicamente se contrapõe a uma elite dirigente: não havendo mais assimetrias estruturais de poder e instituições garantidoras dessas assimetrias, “povo” passará a significar a totalidade do corpo de cidadãos, sem a distinção entre “cidadãos de primeira classe” e cidadãos de “segunda” ou de “terceira”. Alcançar uma sociedade autônoma demanda luta, esforço e experiências. Daí a Importância de se valorizar também as pequenas conquistas ensejadas pelos grupos populares nas associações e cooperativas. Na pesquisa com os catadores demonstro que a participação e cooperação dos grupos é um exercício de autonomia, como também, uma alternativa ao mundo sem emprego. Como diz Santos (1999) um mundo sem empregos não necessariamente significa um mundo sem trabalhadores. No Brasil, a situação sócio-econômica é marcada pelo desemprego e sobretudo pelo subemprego e exclusão. Enquanto a política é marcada por corrupções, fraudes e incapacidade de solucionar os graves problemas da população. A participação, ao meu ver, é um “caminho” para garantir melhores condições de vida. No setor econômico Santos (1999) evidencia que uma cooperativa de trabalho, se construída dentro dos preceitos cooperativistas, pode tornar-se uma alternativa viável e flexível social e economicamente, dando sobrevida ao trabalhador e/ou empresário frente à lógica perversa do mercado. No próximo capítulo discorrerei sobre as conquistas alcançadas pelos grupos de catadores que tentam se organizar através da autogestão na cidade de Fortaleza. A divulgação das atividades em torno dos catadores nesta dissertação é minha forma de valorizar a organização popular. 60 Galpão dos catadores da ACORES (Serrinha). Galpão dos catadores do Parque Santa Rosa. Pesquisadora ao lado de uma entrevistada. 61 E a História humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos colégios, nos prostíbulos, nas usinas, nos namoros de esquina. Disso eu quis fazer minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada de vida obscura e injustiçada. Porque o canto não pode ser uma traição à vida. E só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e coisas que não tem voz. (Ferreira Gullar) 62 CAPÍTULO II OS CATADORES E SUAS TRAJETÓRIAS Como resultado de uma emocionante e enriquecedora experiência apresento, neste capítulo, um breve relato das organizações envolvidas com a problemática do lixo e um conjunto de entrevistas sobre a história de vida dos catadores. Depoimentos que constituem além da trajetória de vida o exercício da participação na autogestão de dois grupos de catadores: ACORES e Parque Santa Rosa. Na caminhada de pesquisadora iniciei meu trajeto no Fórum Lixo & Cidadania do Ceará, hoje, o maior espaço de discussão da problemática do lixo da sociedade civil de Fortaleza, por essa razão explano um breve histórico desse fórum. Dedicar-me-ei, no segundo ponto, ao processo de gestação dos dois grupos acompanhados durante todo o período da pesquisa. No último tópico chegarei nas falas, nas narrações dos próprios catadores de lixo sobre seu cotidiano nas ruas da cidade e no grupo que participa. O universo das entrevistas foi composto por três catadores da ACORES, dois catadores de depósitos - que já participaram da ACORES - e quatro do Parque Santa Rosa. Nas reuniões mensais do Fórum Lixo e Cidadania do Ceará estabeleci o primeiro contato com os catadores. Após minha apresentação comecei as visitas in loco, cujo objetivo era intensificar os contatos com os catadores na sua área de convivência e, assim, vencer aquela fase que podemos chamá-la de estranhamento. Essa etapa é de suma importância tanto no sentido da minha aceitação por parte dos catadores, como também de uma experiência mais próxima do cotidiano dos entrevistados. A pesquisa oportunizará aos catadores de lixo falar sobre si mesmos, como eles encaram a sociedade e a visão que têm de sua participação como sujeitos. As entrevistas, em sua versão transcrita, apresentarão elementos básicos para a compreensão do agir-pensar-sentir do catador. 63 2.1. Fórum Lixo & Cidadania: expressão dos catadores. Os Fóruns, na sociedade brasileira, vêm se constituindo em espaços de experiências participativas da sociedade civil. As estruturas menos formalizadas e mais abrangentes possibilitam uma abertura à participação popular. Para Alba Pinho Carvalho (2001, p. 12) os Fóruns são espaços de construção de esfera pública e instrumentos efetivos de democratização. A autora os definem como: Espaços específicos, peculiares da sociedade civil onde se constroem estratégias de luta, onde se constroem alianças em torno de pautas coletivas; [...] momento de auto-crítica da sociedade civil quanto a sua participação; espaço de construção da participação da sociedade civil para dar concretude ao que foi legalmente conquistado. O Fórum Lixo & Cidadania do Ceará, desde o ano de 2001, funciona como um espaço de discussão envolvendo dezenove entidades não governamentais, treze instituições governamentais, quatro instituições empresariais, quatro fóruns e três universidades, ligadas à problemática do lixo, em especial, nos aspectos ambientais, educacionais, organizacionais e do desenvolvimento da cidadania. O Fórum recebeu e recebe um apoio vital da Igreja Católica através da Cáritas Arquidiocesana de Fortaleza13, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. A presidência do Fórum é dirigida pela representante da Cáritas Cristina França. Tanto a Cáritas como o Fórum funcionam na mesma sede localizada na rua Sobral, sem número, no sub-solo da Catedral Metropolitana de Fortaleza. A Igreja Católica começou a engajar-se nas lutas populares de Fortaleza com mais intensidade a partir do golpe militar de 1964. A intervenção militar desmobilizou o movimento popular, e a Igreja, através das CEB's e de outros setores pastorais como Pastoral Urbana, Cáritas, passou a atuar de forma mais organizada nos bairros da periferia da cidade. 13 A Cáritas tem a missão de promover e animar o serviço de solidariedade. A entidade, através de suas linhas de ação, promove diversificados programas para consolidação da democracia, resgate da cidadania, efetivação da participação popular e organização de grupos. Cito os atuais Programas executados: Geração de Trabalho e Renda, Segurança Alimentar; Criança e Adolescente, Catadores(as) de Resíduos Sólidos; Gestão Institucional, Cultura da Solidariedade, Formação de Agentes de Cáritas e Lideranças Comunitárias. 64 No final da década de 70, o movimento de bairro na cidade de Fortaleza conquistou, paulatinamente, um papel destacado no seio do movimento popular. Os processos de organização e luta que realizavam, praticamente isolados, nesse período, vão adquirindo, além de um certo nível de articulação, a presença de vários setores da sociedade civil. Os movimentos de bairro em Fortaleza se identificavam, principalmente, por três eixos aglutinadores: Federação de Associações de Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF), sob a força hegemônica do Partido Comunista do Brasil (PC do B); União das Comunidades da Grande Fortaleza (UCGF), as quais se relacionavam politicamente com o Partido Revolucionário Operário (PRO) e com segmentos do PT; Comunidades Eclesiais de Base (CEB's), que articulam o conjunto das CEB's existentes nos bairros periféricos da cidade (BRAGA, 1995). A participação das CEB’s nos movimentos de bairros corroborou a articulação de vários movimentos isolados. As CEB’s, entretanto se diferenciavam dos dois movimentos citados acima. Sua ação se pautava na fé. A ação das CEB's constituía um trabalho educativo baseado na fé que estava marcado por uma prática sistemática nas comunidades, onde o processo de conscientização e reflexão era definido a partir da “cultura do povo”. (Braga, 1995, p.145-6). A Igreja Católica do Ceará, inserida no meio popular, cria em 1979 a Pastoral Urbana como uma ação ante as injustiças sociais do contexto urbano. Numa mesma ação de assessoria e assistência jurídica a grupos e pessoas com problemas relativos à terra, a Igreja cria o CDPDH - Cento de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos. A Cáritas Diocesana também cumpriu um papel importante na luta pela moradia nesse período, com recursos financeiros das Igrejas da Alemanha e Suíça, assim como da Cáritas Brasileira. Embora no período atual a Igreja Católica tenha se voltado mais para o aspecto doutrinário, alguns grupos continuam fomentando a organização popular. Um exemplo dessa atuação é a Cáritas Arquidiocesana que preside e articula o Fórum Estadual Lixo & Cidadania cujos objetivos constados no regimento interno são: discutir permanentemente a temática dos resíduos sólidos, meio ambiente e cidadania; 65 estimular e apoiar a organização dos catadores; apresentar sugestões, críticas e denúncias relacionadas às políticas de gestão dos resíduos sólidos. Atualmente o objetivo mais perseguido é o incentivo à formação de associações e/ou cooperativas junto aos grupos de catadores. Para alcançar esse objetivo o Fórum organizou um curso para formar cooperativas com os catadores. Os encontros são semanais e acontecem no Seminário da Prainha. O custo das passagens e do lanche é disponibilizado pela Cáritas. Entretanto, desde a sua organização, o FEL&C do Ceará busca fomentar a organização dos catadores em grupos. Nesse intuito acompanha dezesseis grupos de catadores localizados nos municípios de Fortaleza, Caucaia e Maracanaú: catadores da Serrinha, através da ACORES; catadores do Parque Santa Rosa, através da Irmandade do Bom Pastor e Paróquia do Mondubim; catadores da Praia do Futuro, através do Projeto Hora de Reciclar; catadores do Pirambu, através da SOCRELP; catadores da Aldeota, através do Centro Comunitário Dom Lustosa; catadores do Genibau, através do Centro Comunitário Dom Helder Câmara; catadores do Conjunto Industrial, através da ASMOCI; catadores do Mutirão Vida Nova, através da COOMVIDA; catadores da Pajuçara, através do Movimento EMAUS; catadores de Caucaia, através da Prefeitura Municipal; catadores do Quintino Cunha, através da congregação religiosa da Paróquia São Pedro e São Paulo; catadores do Tancredo Neves, através da Pastoral Social; catadores do Bonsucesso, através da Associação Santa Edwirges; catadores do Otávio Bonfim, através da paróquia Nossa Senhora das Dores; catadores do Barroso, através da Pastoral Povo da Rua; catadores da Usina de Triagem do Jangurussu. O FEL&C reúne-se regularmente às últimas quartas-feiras de cada mês no Seminário da Prainha, situado no Centro, avenida D. Manoel número 01. Além das reuniões mensais com as entidades, o Fórum realiza as plenárias mensais itinerantes que acontecem a cada mês em um dos bairros em que se concentram os catadores. As plenárias têm possibilitado o fortalecimento dos grupos, a elevação da auto-estima dos catadores de lixo e a valorização da categoria pela sociedade. Uma das maiores novidades das plenárias foi a construção de uma bolsa de valores para os diferentes 66 materiais e a divulgação entre os grupos das melhores oportunidades de negócios. Desta forma, o Fórum vem se consolidando como espaço de organização e protagonismo dos trabalhadores do lixo. O poder público municipal de Fortaleza na gestão do antigo prefeito, o Sr. Juraci Magalhães, foi totalmente omisso no trato com catadores de lixo de Fortaleza (assunto do próximo capítulo). O descaso é tanto que se desconhece o número preciso de catadores da cidade, mas percebe-se que esse número aumenta a cada dia. Embora não existam dados oficiais sobre o número de catadores, o FEL&C, infere que mais de 5.000 pessoas tem a catação como a principal atividade profissional. O Fórum também é um espaço de pressão sistemática da sociedade civil sobre o poder público. No ano passado (2004), ano eleitoral, o Fórum proporcionou debates com alguns candidatos à prefeitura de Fortaleza: Luizianne Lins (PT), Inácio Arruda (PCdoB) e Marcelo Silva (PV). Uma carta de reivindicações foi entregue aos candidatos citados. Dentre algumas propostas destaco duas: que a Prefeitura Municipal implante progressivamente a coleta seletiva porta a porta, tendo como ponto de partida que cada regional conte com uma área piloto; que o destino a ser dado a estes materiais seja a doação às cooperativas e associações de catadores existentes ou que venham a se formar. O Fórum juntamente com a Cáritas trava uma luta para a organização dos catadores de Fortaleza com efetiva participação. Na proposta conceitual de Ammann (1978) as associações representam um instrumento que pode ou não viabilizar a participação. Outro fator que facilita a participação social registra-se na razão direta da autonomia e na razão inversa da dependência de uma dada sociedade. A autonomia dos catadores, em relação aos sucateiros, poderia oferecer melhores condições à efetivação da participação, ao permitir que o planejamento e as resoluções das atividades sejam definidos pelos seus membros. 67 O apoio de entidades não-governamentais e governamentais é imprescindível à organizações de grupos populares em associações, logo que, existe uma gama de critérios formais e políticos para efetivar uma associação. Pedro Demo (1996, p.117) descortina pelo menos quatro critérios de qualidade política de associação: representatividade, legitimidade, participação da base, auto-sustentação. A associação só existirá efetivamente se contar com esses critérios. Para o autor, ser membro de uma associação significa genuinamente ser cidadão. Demo (1996) discorre sobre a constituição de associação: uma que começa no centro, reunindo um pequeno grupo já consciente e decretando o surgimento de uma associação, que apressadamente se define como representativa de toda a classe. Depois, convida algumas pessoas para ser membros da associação, que facilmente não passarão de meros sócios. Outra que nasce da união de um grupo pequeno com interesses comuns, relativamente homogêneo, organizado, e politicamente consciente, onde se exerce um estilo participativo de poder. Na criação desta última associação o processo de construção possuiria características comunitárias. O FEL&C, no intuito de incentivar e formalizar a união de grupos pequenos, apóia com assessoria e recursos financeiros, advindo de projetos, a formação de associações e cooperativas. Como já relatei acompanho as reuniões do Fórum, desde o final do ano de 2003. Durante esse período observei que o catador aproveita o espaço das reuniões como canal de expressão dos seus sentimentos e reivindicações. No tópico seguinte mostro dois desses grupos que são acompanhados pelo Fórum. 2.2. Conhecendo os grupos de catadores. Fortaleza, a quinta cidade mais povoada do país, está dividida em seis áreas administrativas que têm a denominação de Secretarias Executivas Regionais (SERs). A associação ACORES situa-se na SER IV, no bairro da Serrinha, rua Frei Alemão, número 210. A organização dos catadores do Parque Santa Rosa, localiza-se na SER V, rua 7, s/n, loteamento Santa Terezinha, no bairro Santa Rosa. O IDH dos dois bairros 68 é um dos mais baixos de Fortaleza. Não é fora de contexto que as associações estejam localizadas no lado oeste/sudeste da cidade. 2.2.1. Parque Santa Rosa No limiar do ano 2000 um grupo numeroso de mulheres do bairro Parque Santa Rosa vivia nas piores condições de vida possíveis: catavam o lixo e o vendiam a preços baixíssimos aos “deposeiros”14 ou sucateiros. O subemprego predomina na maioria dos catadores que são visualizados nas ruas das cidades. O “deposeiro” fornece o carrinho para a catação e os catadores são obrigados a venderem todo o material para ele ao preço que lhe convém. A organização dos Catadores Parque Santa Rosa teve início a partir da união de um grupo de mulheres catadoras, que há quatro anos se reúne, semanalmente, neste bairro, incentivado pela pastoral da Igreja Católica do Mondubim. A organização partiu da religiosa Elizabeth que faz parte da Congregação do Bom Pastor, cujo alvo de suas ações pastorais é o trabalho com mulheres. A freira atormentava-se com a situação de algumas mulheres que participavam da Igreja e viviam numa extrema pobreza, obrigadas a trabalharem na catação. Uma vida muito sofrida, mormente pela idade avançada. As reuniões semanais aconteciam no espaço da Igreja do Mondubim, entre o período de 2000 a 2003. Das mulheres que iniciaram, algumas permanecem no grupo: Lourdes, Chaguinha, Melândia, Elza... No início, o objetivo maior era trabalhar a evangelização, mas com a socialização das experiências relatadas pelas participantes foi descortinado um universo de ações para a equipe organizadora. Os encontros aconteciam todas as quartas-feiras no salão paroquial. 14 Os catadores denominam deposeiros os donos de depósitos que compram, guardam e depois vendem para a indústria de material reciclável. 69 Durante três anos o número de membros sempre oscilava, mas a solidez era verificada através do envolvimento dos participantes e das conquistas alcançadas. O grupo ampliou-se ao acolher homens e por ter representação no Fórum Lixo & Cidadania do Ceará. O catador, Evandro, membro desse grupo, foi o primeiro a participar de um grande evento nacional, o Congresso Nacional dos Catadores em Brasília, em 2001. A Cáritas Arquidiocesana de Fortaleza fomentou a produção dos catadores colaborando com a sobrevivência material, mas principalmente incentivando a participação, possibilitando a consolidação da organização de um grupo imerso num “mar” de exclusão. O primeiro passo foi ceder oito carrinhos feitos de geladeira para os catadores do Parque Santa Rosa conseguirem sua autonomia. O grupo, juntamente com a Cáritas Arquidiocena e a Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro do Mondubim, organizou também um “livro de ouro” que passou pela Assembléia Legislativa, mas o apurado foi muito baixo. A maior colaboração financeira veio da aprovação de dois projetos enviados ao Banco BNB e à Província da Companhia de Jesus Centro Leste. Com o financiamento foi possível comprar o terreno, construir o galpão, adquirir os equipamentos necessários e possuir um pequeno capital de giro. No percurso de trabalho e organização muitos desanimaram, outros se desentenderam, mas aqueles que perseveravam, fortaleceram o grupo, lutaram e o resultado foi a concretização do sonho: a construção de um galpão “um cantinho onde eles mesmos pudessem pegar o material, juntar e vender para ganhar um pouquinho melhor”15. No dia 15 de março de 2004 os catadores começaram a trabalhar efetivamente no Galpão. Além da construção do espaço para o armazenamento do material reciclável, os catadores compraram, também, carrinhos novos e equipamentos como balança e prensa. Antes da construção do galpão os catadores realizaram um mutirão para a limpeza do terreno. Este espaço foi nomeado de Galpão de Estocagem e Seleção de Materiais Recicláveis, inaugurado no dia 24 de abril de 2004. As reuniões semanais acontecem, 15 Comentário da Sra. Musa, administradora do Galpão em entrevista cedida no dia 25/11/04. 70 agora, no espaço próprio dos catadores. Quem visita o galpão é surpreendido com a limpeza e organização do espaço (Cf anexo III). Uma vez por semana eles realizam o mutirão da limpeza. Foram organizados dois grupos, de forma que cada grupo passa quinze dias entre um mutirão e outro. Os catadores deliberaram, ainda, uma nova nomenclatura para o grupo: Agentes Ambientais do Parque Santa Rosa. Um processo no qual Regina Manoel16 denominou reclassificação, ou seja, esse sujeito transformou-se de catador de lixo em catador de material reciclável – um trabalhador. Essa reclassificação possibilitou o aumento da sua auto-estima e o respeito da sociedade. Hoje o grupo prepara-se para uma nova fase, uma nova conquista, a formalização da cooperativa. Durante todo o primeiro semestre de 2005 foi discutido e votado o estatuto. Contatou-se com vários profissionais, advogados, contadores e sociólogo para assessoria técnica. Muitos catadores tiveram que tirar documentos tais como: identidade, CPF, título de eleitor e carteira de reservista. Novos membros foram integrados ao grupo, que recebeu também nova nomenclatura, COOPERAV – Cooperativa de Agentes Ambientais Rosa Vírginia. Vinte catadores compõem essa nova cooperativa que realizou sua primeira eleição no dia 01 de julho de 2005 para os cargos de presidente, tesoureiro, fiscal e suplente. As mudanças e os desafios atravessados pelo grupo na formação da cooperativa - seja na intensificação dos conflitos, devido ao processo eleitoral, seja no aumento das novas dificuldades financeiras, pois todos catadores terão que pagar o INSS -, não esmoreceu nos catadores o sonho e o desejo de que a vida vai melhorar. 2.2.2. Associação ACORES O mesmo processo de reclassificação foi verificado com os catadores da Serrinha. Na reclassificação eles se nomearam de Coletores. Entretanto a construção da entidade foi 16 Manoel apud Mota, 2003, p. 29. 71 muito diferente. A senhora Nilda, no final da década de 1990, foi presidente de uma associação dos moradores do bairro. No ano de 2000 ela foi convidada, enquanto líder comunitária, a participar de uma reunião sobre reciclagem realizada no Centro Comunitário Dias Macedo. Na ocasião da reunião, a Sra. Nilda comunicou que trabalhava com reciclagem, juntamente com os seus filhos. Ela foi informada da proibição do trabalho infantil e convidada para uma reunião na sede da Secretaria do Trabalho e Ação Social do Estado, sobre o Projeto Cooperar. A partir do incentivo do poder público ela formou um grupo de cinco pessoas. Como ela mesma diz “eu acatei essa idéia e trouxe pra cá”. No dia 21 de fevereiro de 2002 começou a funcionar a Associação Ecológica dos Coletores de Material Reciclável da Serrinha e Adjacências (ACORES). Através da parceria com o governo estadual, a associação recebeu uma verba de 24 mil reais para comprar o terreno e construir o espaço físico. Receberam, também, os carrinhos e fardamentos. Neste período foram beneficiados dez catadores. A mudança na equipe do governo no ano de 2002 trouxe conseqüências desastrosas para a associação. Sem o apoio do Estado a associação ficou sem o capital de giro. Por causa da fragilidade relacional do grupo a rotatividade dos catadores é intensa. Durante o trabalho de campo era verificado, em todas as visitas, um número diferente de catadores, o que dificultou muito o levantamento do perfil e a realização de entrevistas. Independente da intenção do grupo e da sua líder, a intervenção do Estado, na criação e composição da associação, propiciou uma alienação detectada também no trabalho de Dias (1982, p. 91) “O caráter histórico da chamada alienação demonstra com grande eloqüência, a ‘necessidade’ da figura do ‘chefe’ em contraponto à assunção plena da prática coletiva no processo de tomada de decisões”. A ação do Estado na ACORES instituiu uma forma de participação quase que imposta à comunidade, repetindo assim sua tentativa histórica de despolitizar a vida cotidiana. 72 Embora existam as dificuldades específicas de cada grupo, a organização popular, seja por meio de uma associação ou cooperativa, é o caminho mais viável para uma sobrevivência digna numa conjuntura de desemprego e exclusão social. A associação ou cooperativa pode conter o germe da transformação pois "a arte consiste em unir sabiamente produção e participação, porque matamos com uma cajadada pelo menos dois coelhos: a sobrevivência material e a consolidação da cidadania" (Demo, 1996, p. 126). Essas entidades possuem uma estratégia fundamental que é unir o político com o econômico. A ACORES, como já comentei, passa por uma intensa rotatividade de catadores, mas nos últimos contatos permaneceu o número de cinco catadores. O reduzido número de catadores, na associação, intensifica a comercialização de material reciclável comprado da comunidade. Nas visitas de campo presenciei, em alguns momentos, mulheres e crianças vendendo alumínio, plásticos e outros materiais a essa organização. Dois episódios de venda desses materiais atormentaram-me profundamente. Uma mulher magricela, de olhos esbugalhados, cabelos despenteados e rijos com aspecto de fome e loucura chegou à Associação balbuciando algumas palavras inaudíveis, mas o gesto de estender a mão segurando uma panela de pressão revelou o que a mulher queria: vender o utensílio. Noutro momento, uma criança de aproximadamente dez anos, pequena e raquítica, aproximou-se da Associação com um carrinho de lixo, adaptado para o seu tamanho, carregado de material reciclável para vender. Inúmeras são as pessoas que participam da ACORES indiretamente. Talvez a associação ainda exista devido a esta relação com a comunidade. Entretanto, a conseqüência deste tipo de relação foi a desorganização e o enfraquecimento dos laços de grupo e coletividade da associação. Os princípios associativos foram postos em questão. Conhecida a associação dos catadores, apresentarei no próximo tópico as entrevistas cedidas pelos catadores dos grupos citados. Uma viagem impressionante e dolorosa. Por várias vezes pensei que não resistiria. Momentos de desânimo e tristeza quase me 73 fizeram desistir da pesquisa. Ver e ouvir os sofrimentos dessa parcela excluída da sociedade foi uma experiência indescritível e inenarrável. Entretanto, espero contribuir, de alguma forma, para a conquista de melhores condições de vida dos catadores a partir da discussão e divulgação da presente pesquisa. 2.3. A fala dos catadores de lixo Parafraseando o poeta Ferreira Gullar só é justo pesquisar se a nossa pesquisa arrasta consigo as pessoas e coisas que não têm voz. Eu arrasto para a dissertação as vozes dos catadores de lixo que cotidianamente escrevem suas vidas com suor e sangue nas páginas da História de Fortaleza. Fala dos catadores do Parque Santa Rosa. Entrevista realizada com o Senhor João no Galpão dos catadores no dia 17 de dezembro de 2004. Meu nome é João Nascimento de Souza. Quando nasci fui morar com minha avó. Aos doze anos voltei a morar com minha mãe. Quando cheguei em sua casa tive dificuldades em conviver com meus outros irmãos. Aí comecei a andar pelo mundo. Só voltei de novo pra lá quando fiz vinte anos. Mas comecei a trabalhar desde os oito anos de idade; quebrava pedra pra fazer cal. Aos doze anos colocava saca de sessenta e setenta quilos em cima dos carros pra poder viver. Ainda menino fazia e vendia carrinhos de brinquedo na feira. Nunca gostei de brincadeira. Meu estudo foi até a oitava. A mulher com a qual me juntei e depois me casei era uma viúva com três crianças que não tinha para onde ir. Nós éramos da mesma igreja: a igreja dos crentes. Eu perguntei se ela queria ir para o interior morar com a mãe ou se queria se juntar. Então consegui alugar uma casa na Jurema pra ela e as crianças morarem comigo. Nessa época eu trabalhava num colégio no Quintino Cunha e saía sempre altas horas da noite. Um dia eu fui assaltado na linha do trem da Jurema, quase morri. Por isso nos anos 70 fui morar de novo no Quintino Cunha. Hoje as crianças já tão criadas, já são donos de si, mas ainda estou na batalha. Hoje dentro de casa ainda moram cinco: os quatro que são meus mesmo, um rapaz de 19 anos, um de 18 e o outro 17 anos e a menina de 12; e uma moça que eu crio desde seis meses de nascida. Mas ela é 74 registrada como minha filha. Os quatros filhos do primeiro casamento da minha mulher também são registrados como meus. Eles já são todos casados, não moram mais aqui. Mas se eles souberem que uma pessoa disse alguma coisa comigo... Ave-Maria. Houve um tempo em que fui desenganado pelos médicos. Fui operado do coração muito novo no Hospital de Messejana. Minha mãe me deu muito apoio. Nessa época eu morava num quartinho por trás da casa da mamãe. E graças a Deus estou bom. Graças a Deus e a minha mãe. Ainda nos anos 70, comecei a trabalhar para o depósito, do seu Alfredo Targino, juntando sucata dentro de um saco e carregando nos ombros na Bela Vista, no Rodolfo Teófilo e na Parquelândia. Tudo ali eu conheço graças a Deus. Na época seu Targino encomendou uns carrinhos para quem trabalhava. Ele comprou por 40 mil réis e toda a semana nós pagávamos dois mil réis para ele até pagar os quarenta. De lá pra cá já tive meu próprio depósito. Mas houve uma vez, há dezessete anos, que sofri um acidente. Sofri muito, acabei com o que eu tinha de novo. Aí fui embora do novo para Cascavel com minha família. Lá não me dei bem e então voltei pra cá. Quando eu cheguei aqui com pouco dinheiro e uma televisão negociei com um rapaz a compra de um quarto na beira do rio e um carrinho e aí eu comecei a trabalhar na sucata de novo. Vou contar meu acidente. Um dia saí para trabalhar com uma carroça. Saí com quatro meninos em cima da carroça debaixo de uma chuva muito forte. Aí eu me encostei perto do Center Box, lá na Bezerra de Menezes, para esperar a chuva passar. Mas como a chuva não passava disse para os meus filhos pra gente vir embora. Quando eu cheguei pertinho do terminal da Antonio Bezerra, eu só escutei a pancada na traseira da carroça: Bah! Em seguida me esfreguei no chão, parando longe com a carroça caindo em cima de mim. Aí quebrou toda a minha cabeça, a minha visão afundou. Aí eu ouvi muito bem quando um menino gritou: morreu, morreu papai, morreu. Aí eu não vi mais nada. Quando eu tornei de mim tava num hospital, eu num hospital e o menino de lado com a perna quebrada e eu com isso aqui todo engessado. Eu me lembro quando eu tornei que tava no hospital. Chegou um cara. Aí só fez dizer assim: Como é que ele está? Como é que ele está? Eu me lembro disso aí. Aí o doutor disse: Está bom. Aí pegou um cheque de vinte e cinco e disse: tome aqui pra você comer e comprar as coisas dentro de casa. Aí eu fui e entreguei pra mulher. Aí pronto, eu fiquei em casa doente, doente, sofrendo. Agradeço também mamãe por que todo o sofrimento que os meus irmãos fazia comigo, mas mamãe nunca me abandonou, os meus pais nunca me abandonaram, graças a Deus. Acabei o que eu tinha, passei um ano no fundo de uma cama acabando o que eu tinha. Quando eu fiquei melhor, podia andar, fui atrás do carro que me acidentou. No período do acidente duas pessoas anotaram a placa do carro. Mas quando eu cheguei no departamento para receber informação sobre o carro, só tive dados errados. Primeiro que era um carro grande, depois que era um gol branco, em seguida uma moto e por fim um bugre. Com raiva eu só disse para moça: Doutora isso daí não é 75 nada não, isso daí é o homem que tem dinheiro e eu não tenho dinheiro. Ele já comprou a Senhora. Estou com um ano doente e sofrendo, mas o homem já comprou a senhora. Desesperado fui bater na Clínica Leiria de Andrade. Quando eu cheguei lá encontrei um doutor muito bom. Deus é muito bom pra mim. Quando eu cheguei lá encontrei um doutor que me examinou e disse: tua visão tem jeito, mas é um tratamento passando de um ano. Você vai ficar dentro de casa se tratando. Mas eu vou lhe dá um atestado que você é cego para conseguir sua aposentadoria. Depois fui bater no INSS, eu tinha trinta e cinco anos. A assistente social do INSS se sensibilizou com minha situação, organizou a documentação, mas tive que ir atrás também de um delegado para assinar. E assim o fiz. Aí consegui um benefício pelo INSS. Eu tenho todos os documentos guardados lá em casa. Uma vez uma pessoa me disse que um processo vale até vinte anos. Se eu quisesse ainda reivindicar os meus direitos, eu resolvia. Mas é preciso um advogado bom pra poder resolver e eu nunca arrumei. Apesar do beneficio continuo trabalhando com sucata, pois só o colírio pra essa visão custa oitenta e cinco reais e tem os meus filhos. Quem escapa com um salário? A sucata piorou nesse dois últimos anos. Primeiro porque o nosso prefeito modificou o horário dos carros do lixo. Eles, agora passam durante a noite e as pessoas só colocam o lixo nas calçada no horário do caminhão. No horário da noite as pessoas têm medo dos sucateiros. Logo que hoje tem muita violência no mundo. Existe muito sucateiro bom, mas também tem os mal intencionados. Eu não vou mentir. Uns dizem que são sucateiro e chega na casa pra fazer... Mas nem todos são iguais. O lixo diminuiu muito. Os prefeitos passados recolhiam o lixo nas caçambas e colocavam no meio da rua. Os sucateiros vinham e o tiravam. Mas agora piorou para o sucateiro. Piorou porque esse prefeito assim que entrou no poder era bom. Mas depois começou a fazer ruindade com as pessoas, ou melhor, com os pobres. No passado eu conseguia dois ou três carrinhos por dias, hoje eu só consigo um e com muita dificuldade. O dinheiro também diminuiu, o menos que eu ganhava na reciclagem era vinte, trinta ou quarenta reais por dia. Hoje esse mesmo valor é apurado na semana. A reciclagem piorou também porque as pessoas não ajudam. Nós trabalhamos no meio da rua, sofrendo, passando perigo e as pessoas ainda não tem respeito por nós. Vou contar um exemplo: um dia desse eu cheguei numa casa, a minha mulher foi tirar um lixo da calçada. Quando ela pegou no saco um homem saiu da casa com muita raiva e disse: “Hei! Não tira esse lixo daí”. Minha mulher muito ignorante respondeu: “Por que eu não posso tirar esse lixo daqui, por acaso eu estou roubando? Você está vendo eu roubando alguma coisa sua? Você está vendo eu apenas tirar do lixo uma garrafa, uma lata. Porque se você não quer que ninguém mecha deixe dentro de casa ou se não coma!” Mas eu acalmei a mulher. O pessoal fala com a gente como nem sei o que... Mas estamos com uma fé muito grande, porque a prefeita garantiu apoiar aqueles que trabalham na reciclagem. Ela vai organizar a coleta seletiva. Assim as pessoas entregam o material pra nós. 76 Passado um tempo, eu estava em casa quando chegou uma mulher falando de umas irmãs que estavam colocando um depósito de reciclagem e que precisavam de apoio. Aí fui pra lá. Graças a Deus que eu me apeguei a essas irmãs. As irmãs me deram apóio e graças a Deus já estou há quatro anos com elas. Inclusive quem toma conta da chave do depósito sou eu. Eu e o meu filho temos muito cuidado e responsabilidade com todas coisas. Elas dizem que o depósito é nosso porque somos nós que tomamos de conta dele. A cáritas também nos apóia, basta dizer que não pagamos nada para participar das reuniões, nem o ônibus. A Dona Cristina e as outras são pessoas muito boas. Até parece que vieram do céu. Elas querem ver nossa melhora. Com o apoio das irmãs eu consegui uma operação de vista. Naquele tempo a operação custou dois mil e quinhentos reais. E as irmãs adquiriram essa operação. Como eu morava na beira do rio – no tempo do inverno era melhor está no meio da rua do que dentro de casa – as irmãs juntamente com o padre da Paróquia compraram, por três mil e quinhentos reais, essa casa que eu moro. Elas me deram quando eu estava operado. Enquanto eu morava na beira do rio elas me davam os meus remédios. Mas depois que compraram a casa o dinheiro teve que sair do meu bolso. Depois da operação, com cinco dias, eu estava enxergando tudo. Comecei a andar pelas ruas alegre e satisfeito. A operação aconteceu no primeiro jogo do Brasil na copa do mundo, há mais ou menos três ou quatro anos. Mas sou um homem teimoso comecei a trabalhar cedo, com um mês e quinze dias, e também não usava os óculos. Assim, voltei a não enxergar. Nunca ando só. Eu só ando mais o menino. Quando eu saio o menino vai segurando no braço do carro. Mas tem muita gente que se admira quando sabe que eu sou cego. Meu trabalho é sempre no dia do lixo: terça-feira, quinta-feira e sábado. Os bairros dependem com quem eu ando, se ando com a mulher é só o Conjunto Esperança, o Canindezinho, se ando mais os meninos vou mais longe, Amadeu Furtado... até o mercado São Sebastião. Graças a Deus está aumentando as pessoas que doam material para o depósito. Logo nós fazemos campanhas de doação nas igrejas. A gente é quem fala. E está dando certo. Algumas pessoas combinam comigo pra eu pegar as sucatas. Dando o endereço eu vou buscar onde tiver. Deixo o material na minha casa. Entrego o material só no final de semana. Se eu entregar a coleta todo dia eu recebo R$ 5,00 por dia e aí num instante eu me perco sem saber como usei o dinheiro. Mas entregando por semana eu recebo R$ 30, 00, R$ 40,00 ou R$ 50,00 e aí dá pra saber como usar. Eu peço muito a Deus e a vocês que estão me ouvindo: ajude a nós! Porque tem muito pai de família atrás de ganhar o pão. Não tem emprego. A gente só pode viver dessa sucata. Deixem a gente juntar esse lixo no meio da rua. Nós queremos trabalhar e assim ganhar o pão de cada dia. Nós estamos nesse galpão, como outros por aí, vamos trabalhar fardados. Eu mesmo que sou sucateiro tenho pena dos pobres. Tenham compaixão desse pessoal. Cada vez mais ajude o pessoal da sucata. Os donos de 77 mercantil, não façam isso: não peguem seu material, esse lixo, esse papelão pra vender. Doe pro pai de família que se acaba esse negócio de marginal. Entrevista realizada com o jovem Keké no galpão dos catadores no dia 23 de junho de 2005. Meu nome é Francisco de Sousa Nascimento, mas todos me chamam de Keké. Completarei 20 anos no dia 25 de setembro. Sou solteiro e estudei apenas a primeira série. Leio muito pouco. Nunca trabalhei, só vivia mais em casa. Quando era menino saía com meu pai para todo canto. Depois que cresci ele me deixou de lado e agora o meu irmão mais novo é quem o acompanha. Depois que construíram esse galpão meu pai me botou aqui. Aos treze anos já caçava o lixo com o meu pai. Como não tinha outro meio de vida fiquei trabalhando na reciclagem. Só tem esse mesmo. Faz seis meses que o grupo decidiu me colocar pra trabalhar só dentro do galpão. No momento não estou na catação. Mas quando vou pra rua ando somente por perto: Parque Santa Rosa, Conjunto Esperança e Aracapé. Geralmente eu saía nas quintas-feiras, sextas-feiras e sábado. Das seis horas da manha até quatro horas da tarde. Ao chegar no galpão o lixo era separado e pesado. Nunca recebi doação, catava o lixo nas ruas abrindo os sacos que ficavam nas calçadas. Às vezes as mulheres me davam carão. Eu amarrava a sacola de lixo e ia embora. Nunca tive vergonha de catar. Mas o meu irmão morre de vergonha. Nesse trabalho recebia entre quarenta a cinqüenta reais por semana. Por mim eu voltaria a catar, mas o pessoal não me deixa sair do serviço interno do galpão. Na rua eu achava muita coisa funcionando: rádio, relógio... Mas aqui dentro não acho nada. Espero completar meus 20 anos... Pretendo ajudar a Musa no que for possível. Alguns catadores não estão botando muita fé na cooperativa. Meu pai é um deles. Se a cooperativa não funcionar ele sai do grupo. Mas eu fico pra ajudar a Musa e organizar o galpão. O nosso grupo está bom. Não tem desunião e nem carão como acontece nos depósitos. Se você não chegar na hora certa o dono do depósito lhe repreende. Aqui a gente chega na hora que quiser. A Musa sempre atende muito bem. Com a organização as coisas melhoraram. O material não fica mais jogado. Antes era muito difícil. O padre Fayos, o Padre Junior e a irmã Elizabeth deram muito apoio ao nosso grupo. Agora a maior dificuldade é o transporte para entregar o material. Aqui e acolá o Padre Júnior disponibiliza o carro para 78 vender o material. Como a Musa precisa de dinheiro todos os dias para pagar o material, muitas vezes vendemos a reciclagem por um preço mais barato. Com a cooperativa eu acredito que as coisas irão melhorar. Até meus documentos estou tirando. Já tirei a identidade, mas ainda falta é muito. Para formar uma cooperativa as pessoas precisam de documentos por isso todos estão tirando. Entrevista realizada com a Senhora Chaguinha no galpão dos catadores no dia 23 de junho de 2005. Meu nome é Francisca das Chagas da Silva Sousa, mas gosto que me chamem de Chaguinha. Tenho 51 anos. Sou casada e nunca tive tempo pra estudar. Trabalhei em casa de família como doméstica, mas era muito cansativo. Aí eu resolvi entrar na catação que é o trabalho aonde eu tenho minha fonte de renda. Mesmo quando meu esposo estava trabalhando não desisti de trabalhar na catação. Ele recebia o dinheiro por mês e, às vezes, quando faltava o café, o açúcar... nós íamos vender minhas coisas para comprar o que faltava. O dinheiro não dava pra sobreviver e comprar muita coisa, mas remediava a situação. O pouco que ganho Jesus me abençoa e eu toco o barco pra frente. Faz um bom tempo que cato. Mais de vinte anos. Primeiro foi na Serrinha, depois me mudei pra cá e continuei. Aqui eu estou com quatro anos. Antes existiam poucos catadores e as coisas valiam mais. Hoje em dia tem muitos catadores e as coisas são difícil de encontrar. Mas é só o que eu seu fazer. Porque já estou velha e ninguém quer me dar um emprego. O povo me manda trabalhar se eu for pedir esmola. Então eu vou logo trabalhar. Eu só ando no Parque Santa Rosa e no Conjunto Esperança, durante três vezes por semana: terça-feira, quinta-feira e sábado. Nesses dias saio duas vezes de casa: oito horas da manhã e uma hora da tarde. Retorno para casa ao meio dia para almoçar. Termino o trabalho seis horas da noite. Ultimamente volto pra casa com pouca coisa, mas abençoada por Deus. Eu saio catando sozinha nas ruas. Abro os sacos. E ao chegar em casa separo todo o material e guardo no quintal. Geralmente vendo o material por quinzena, mas depende da quantidade. Porque não tem futuro eu vir toda vez vender e só apurar três reais. Embora o material fique na minha casa apertada com quintal pequeno. Se eu trouxer 50kg de papel branco já é uma benção. A coisa mais difícil desse mundo é achar papel branco. No antigo trabalho do meu esposo as pessoas doavam material bom. Lá eu apurava de R$ 90,00 a R$ 120,00 por puxada. Agora recebo somente R$ 55,00 por mês. O catador não ganha nem um salário por mais que ele trabalhe. Ainda não recebo nenhuma doação. Aliás, muitas pessoas fazem é reclamar: “Diabo desse catador vem mexer no meu lixo”; “Hei lixeira”. O povo não dá um copo d’água a gente. Mesmo as pessoas dizendo as 79 coisas com a gente, nós passamos e vamos embora. Eu não tenho vergonha do que faço. Gosto de trabalhar. Porque a Bíblia diz que todos devem viver do seu suor, do seu salário. Através do trabalho da catação vivem muitos por aqui. É o único trabalho da gente. Ele é muito cansativo. O nosso grupo de catadores foi organizado pela irmã Elizabeth. Todas as quartas-feiras os catadores participavam de reuniões no salão da paróquia. A irmã sempre convidava a gente, porém muitos desistiram, achavam que nunca ia pra frente. Com seis meses de luta a gente conseguiu oito carrinhos de geladeira. Enquanto o galpão não era construído a gente vendia nosso material para os depósitos. Aos poucos a irmã também comprou o terreno. Ela então recorreu ao padre da Paróquia, padre Fayros, e os dois conseguiram dinheiro para a construção do galpão. Faz um ano que nós estamos aqui. Aqueles que perseveraram como eu, a Lúcia, a Melândia, o Marcos meu filho vimos muitas conquistas. Apesar de muita luta estamos aqui e agora vamos formar uma cooperativa. Creio que vai melhorar com a nossa união e com o registro do grupo. Antes a gente fazia só catar. Não era acompanhado por ninguém. Hoje conhecemos muitas pessoas. Ás vezes eu e a Huga viajamos pra muitos cantos. Nas viagens as pessoas tratam a gente bem. Nos encontros o povo acha o nosso trabalho muito importante. As pessoas dizem que é um emprego digno e que somos guerreiras porque é um trabalho muito cansativo. A Dona Cristina da Cáritas pagou um curso sobre cooperativa pra gente. A mulher vem, explica tudo direitinho e todos entendem, quando ela sai começa uma confusão porque alguns não querem entender. É um pouco difícil a organização. Mas aqui a maioria é quem manda. Por exemplo, se a maioria disser que a cadeira muda de canto, ela muda, se a maioria disser que não ela volta. Tudo no galpão é sustentado por nós: água, luz, telefone, limpeza e manutenção. Portanto, em cada quilo que vendemos nós deixamos dois centavos, cinco centavos para pagar as despesas. Com a construção do galpão as coisas pouco melhoraram. O material baixou de preço e muitos comerciantes não fazem mais doações. Agora os comerciantes querem também vender o material pra aumentar o seu dinheiro. Aqueles que já têm não querem ajudar a gente. Nos últimos anos melhorou, pelo menos, na moradia. Nós viemos morar aqui num terreno invadido. Na época, o Ciro Gomes tinha entrado na política. Então, ele comprou o terreno que invadimos, depois desapropriou e deu pra gente. Além de desapropriar ele deu material pra quem tinha casa de taipa fazer de tijolo. Minha casa é de tijolo: tem três vão, um banheiro e um quintalzinho. Meu marido não acredita que aqui dê certo. Ele sempre diz para eu desistir. Mas eu não desisto. Ele não consegue entender o trabalho do mutirão. Pra ele o mutirão teria que ser pago. Para o mutirão o grupo foi dividido pela metade e de quinze em quinze dias cada parte vem juntar o papelão, fazer a limpeza e o 80 que precisar. Isso é importante. Quando não posso vir eu mando a minha menina. Se as pessoas não podem vir e nem mandar alguém tem que justificar a falta. Eu acho que é uma cosia boa. No mutirão conheci outras famílias. Meu desejo é permanecer aqui até me aposentar. Junto com os meus companheiros. O dia da manhã não pertence a nós. Não sei por quanto tempo eu vou viver. Eu desejo que o nosso ganho melhore e que entre doações de material no galpão, pra gente catar aqui e não nas ruas. Eu acho que vindo muito material a tendência é formar a cooperativa. Nós ainda temos poucos catadores, nem vinte. Precisamos de mais gente, mas o grupo está com medo de trazer novas pessoas. Entrevista realizada com a Senhora Huga no galpão dos catadores no dia 28 de junho de 2005. Meu nome é Francisca Huga da Silva. Tenho 59 anos. Sou casada mas... Estudei até a quinta série. Antes trabalhava de arrumadeira em hotel ou motel. Na época que estava no Hotel San Diego levei uma queda da escada e passei algum tempo sem andar com por causa da coluna. Por trabalhar avulso não tive nenhum direito. Hoje esse hotel fechou depois que a dona se acidentou. Eu comecei a observar as pessoas juntando as coisas, achei bonito. Na minha casa iniciei separando as coisas e doava para os meus vizinhos que trabalhavam catando. Depois pensei comigo: sabe de uma coisa vou pegar um carrinho! Fui no depósito do seu Marrera Enestino, levei minha identidade e ele me cedeu um carro pra trabalhar. Nesse depósito passei sete anos. Um dia recebi na minha casa a visita da irmã Elizabeth me convidando para participar de um grupo de catadoras. Ela é nosso anjo da guarda esteja onde estiver. Sempre lutou para o nosso bem. Então eu vim conhecer o grupo, gostei e fiquei. O padre Junior também me visitou várias vezes. Eles viram minha situação sem marido morando numa casinha à beira do rio, numa área de risco mesmo e começaram a me ajudar. Todos os dias eu trabalho. Nas segunda, quarta e sexta ando na Osório de Paiva na altura do Center Box rodeando até o Terminal do Siqueira; nas terça, quinta e sábado é no Monbudim. Saio de casa às seis horas da manhã e retorno às onze horas pra arrumar as coisas e as crianças. À tarde vou para o galpão separar e vender as coisas. Já estou acostumada com a rotina. Eu acho é bom! Acho bom porque o pessoal, graças a Deus, tem muita amizade. O pessoal me trata bem. Logo no começo era diferente. A gente agüentava muito abuso. As pessoas reclamavam porque a gente rasgava a sacola do lixo. Elas, depois de um logo tempo, começaram a me conhecer e vê o meu sistema de trabalho. Hoje elas juntam as coisas pra mim e temos até uma amizade, graças a Deus. Ao chegar nas casas as meninas me 81 oferece água, merenda... Mas é de mim mesmo não comer na rua. Às vezes aceito um cafezinho e o pão elas mandam eu levar pros meninos. Eu gosto desse trabalho. Graças a Deus e ao meu trabalho não falta nada. A gente trabalha igualmente as outras pessoas que vivem em firma. Nós fazemos a limpeza da cidade e ajudamos os outros catadores também. Muitas vezes eu ensino aos catadores como tirar as coisas da sacola, o tipo e valor do material. No meu carro sempre tem uma vassoura. Com ela eu ajunto e apanho o lixo derramado. Nesse grupo, também, tenho aprendido muita coisa boa. Nos encontros e viagens que fazemos a gente aprende sobre os direitos, sobre como conviver com as pessoas. Assim a gente leva tudo na tranqüilidade, sem se afobar. Com as reuniões o entendimento entre as pessoas melhorou. Eu gosto do grupo, pelo menos, me entendo bem com a Musa, graças a Deus. A irmã Elizabeth antes de viajar orientou a Musa a comprar as coisas dos catadores de acordo com preço que conseguisse vender. Para pagar as despesas ela tirasse dois, cinco porcento de cada venda. Não era pra explorar. Por isso eu acho que esse depósito veio em boa hora pra nós. A Cristina e outras pessoas da Cáritas são uma benção com a gente. Se não fossem elas nós não tínhamos conhecido e aprendido tantas coisas. Toda a viagem que eu já fiz pra Brasília, pra Crateús, Porto Alegre foi graças a Cáritas. Eu aprendi muita coisa e conheci muita gente diferente. Na cidade de Porto Alegre falei com a ministra Marina Silva, pessoa muito boa. Eu sei que foi bom demais! A nossa renda é boa. Muita gente reclama dos outros depósitos. O dinheiro que os catadores dos outros depósitos apuram é a metade do que eu consigo aqui com a mesma quantidade de material. Nossa maior dificuldade, hoje, é o transporte. A gente fica com muito material pra vender e não tem condição de transportar. Ainda bem que tem esse reboque. Aqui tudo é conversado e controlado por nós. Tudo depende de acordo. Os planos são feitos em conversa. Graças a Deus. Eu me entendo muito bem com a Lourdes, com a dona Socorro, com todas. Elas são legais comigo. Agora eu tinha muita vontade de conseguir minha aposentadoria. Mas não consegui. Só se eu fosse pro interior, mas minha família já não vive lá e eu não teria nada pra fazer na minha terra. Agora esse plano da cooperativa me interessa porque quero me aposentar. Se Deus quiser a gente leva a cooperativa pra frente. Muito obrigado pelo seu interesse. 82 Fala dos ex-catadores e catadores da ACORES. Entrevista com o jovem Glaudinei, ex-catador da Acores, na sede da associação no dia 17 de junho de 2005. Meu nome é Glaudinei Calu Melo. Tenho 26 anos e sou solteiro. Moro sozinho em minha própria casa. Estudei até a quinta série. Trabalhava em uma capotaria, mas há quatro anos mexo com reciclagem. Acho a catação melhor porque não estou sendo mandado por ninguém. Passo a semana toda saindo pra trabalhar. Eu acho uma maravilha, a gente conhece muitas pessoas e faz muita amizade. É como se fosse um pássaro. Sai sem destino. Ando pelo Montese, pelo Centro, pelo Bom Sucesso e pela Aldeota. Saio às onze e meia e retorno às nove da noite. Tiro uma parte das manhãs para separar as coisas para poder vender aos sábados no depósito da Dona Jane. Os preços são tabelados, ou seja, são iguais em todos os depósitos. Foi um acordo entre os donos de depósito da Serrinha. O carrinho que uso é dela, mas quando puder vou conseguir meu próprio carrinho pra então trabalhar tanto pra Dona Jane como pra mim. Acho muito interessante meu trabalho, porque tanto a gente ganha como dá lucro pro dono do depósito. Consigo fazer em torno de setenta reais por semana porque o preço do material caiu um pouco. Quando eu era assalariado o dinheiro só dava pra pagar dívidas e ficar com mais dívida. Mas já a gente que trabalha nesse ramo de reciclagem sempre sobra um pouco. Passa um pouco a mais. E acho que a tendência é melhorar ainda mais. Antes eu tinha vergonha. Mas uma vez um colega meu da Acores chegou e me chamou à noite pra fazer catação. Então fui com ele e vi como era o movimento, como eram as coisas, como separava, o que comprava e o que não comprava, o que era mais caro e o que era barato. Acabei aprovando. Gostei e fui fazendo clientela rapidamente. Tem gente que me ajuda combinando comigo o dia e o local para pegar o material. Quando adoeço, aviso pra eles, e então guardam as coisas pra quando eu puder pegar. Quando não vou, eles até se preocupam em saber por que não fui trabalhar. Só acho ruim quando alguns motoristas botam os carros pra cima da gente. Mas a gente leva na brincadeira e eles deixam por menos. No dia-a-dia eu não gosto de sair com ninguém. Porque hoje em dia algumas pessoas tão vendo a gente com outros olhos. Quando vêem duas pessoas juntas puxando o carrinho já vão pensando que a gente vai roubar algo. Então prefiro sair só pra não ter problema nem com os outros nem com a polícia. A única dificuldade é quando o carro da um prego na estrada. 83 Entrevista com o Senhor José, ex-catador da Acores, na sede da associação no dia 15 de junho de 2005. Meu nome é José Pinheiro de Sousa. Tenho 38 anos. Não sou casado, mas sou junto e moro aqui no depósito. Parei de estudar na quinta série. Posso dizer que não tenho profissão, mas faço tudo. Trabalho com animal na carroça, com reciclagem, com carvão. O que aparecer eu faço. Hoje eu não trabalho na reciclagem, mas eu disse pra Nilda que assim que consertar esses carros eu volto. Faz muito tempo que eu trabalho na reciclagem, nem me lembro mais. Uns vinte anos. Eu e a Nilda começamos a trabalhar na casa do nosso pai. O material ficava praticamente no meio da rua, porque não tinha local pra guardá-lo. Eu só trabalhava a noite, nos bairros Montese e Aldeota. Saia às duas horas da tarde e voltava onze ou doze horas da noite, às vezes só chegava de manhã. Depois de algum tempo iniciou o projeto. Nós juntávamos o material e quando tinha muito volume nós levávamos para o Centro de Triagem do Tancredo Neves. Às vezes passávamos o dia todo carregando. Nesse projeto eu trabalhei dois anos. A Nilda batalhou muito por esse terreno e pela construção do ponto. Nós éramos uma equipe de 20 catadores. No horário da tarde todos saíam. Eu gostava do trabalho. Não sentia vergonha de catar lixo ou pegar em saco de lixo, porque trabalhar é honra. Esse trabalho não é pra todo mundo, é pra quem tem coragem. Coragem de andar. Todos os sucateiros do início do projeto saíram. Só eu fiquei. O sucateiro gosta de receber o dinheiro na hora que entrega o material. Aqui tem muito pai de família que precisa dá de comer aos filhos. Mas a Nilda não tinha condições de pagar o material todo dia. Ela foi perdendo um por um. O problema foi a falta de dinheiro. Eu também parei. Parei porque o tempo piorou, a produção caiu, o preço caiu. Na época eu tirava uns R$ 200,00 ou R$ 250,00 com facilidade. Hoje como o preço baixou tem que trabalhar muito pra tirar esse mesmo valor. Nós lutamos muito com a Nilda para conseguir esse ponto e os carrinhos que, foram trazidos um em cima do outro, a pé, do Tancredo Neves. Nós não trabalhávamos quando tinha plenária. A gente ia com Nilda para as reuniões. O povo exigia que levasse todos os sucateiros. No início a gente acreditava que as coisas iriam melhorar, mas depois vimos só conversa e promessa que não cumpria. Eu não sei do meu futuro, se a Nilda conseguir ajeitar esses carros eu posso voltar a trabalhar com eles. O ruim é que os carros não agüentam peso, nem seque duzentos quilos. Eu só gosto de trazer carrada, 84 entre duzentos e duzentos e cinqüenta quilos. Uma carrada pra ganhar um dinheirinho bom. Hoje os carros estão todos quebrados. Só tem três rodando e a gente não tem verba para ajeitar. Entrevista com a jovem Edilene, catadora da Acores, na sede da associação no dia 16 de junho de 2005. Meu nome é Francisca Edilene Silva Sousa. Tenho 28 anos, sou solteira e só estudei até a oitava série. Tenho só um filho. Ele passa o dia na creche enquanto eu trabalho. Minha família mora distante. Não conto com eles. Só primeiramente com Deus e a Nilda e força e coragem que Deus me dá para puxar esse carrinho. A família do meu pai mora toda no Bom Jardim e no Pio XII e o resto é tudo em capitais de outros Estados. Moro aqui mesmo na reciclagem. Antes eu trabalhava pra Jane, depósito de reciclagem. Então a Nilda me viu trabalhando com ela. A Nilda também cansou de trabalhar com a Jane, aí me chamou pra trabalhar nos carrinhos dela. Aí decidi ir pra Nilda porque o ganho era melhor do que na Jane. Lá, a gente era mandada. Tinha que trabalhar todo dia. Aqui na Nilda não, a gente trabalha o dia que a gente quer. Antigamente o trabalho na reciclagem era bom, dava pra gente se manter, pagar o aluguel. Agora não, as coisas tão baixando, tem muito catador. Aí não tenho condição de pagar o aluguel. Aí a Nilda me ofereceu um quartinho na reciclagem pra eu morar. Aliás, nunca ninguém me deu apoio além dela mesmo. Ela me ajudou muito e até hoje ela me ajuda muito. Comecei trabalhando como malabarista do Circo Escola do Bom Jardim, mas depois que minha mãe faleceu achei melhor trabalhar na reciclagem porque ninguém quer dá emprego a quem não tem documento. Há dez anos trabalho na catação. Mas na ACORES trabalho há quase quatro. Lá tem união. Por causa dos carrinhos muitos saíram. Agora só tem umas dez pessoas trabalhando. No começo eu tinha vergonha. Só queria caçar nos cantos onde ninguém me conhecesse. Hoje não. Eu não deixo esse meu trabalho por carteira assinada de jeito nenhum. Gosto do que faço porque a gente conhece pessoas novas e, além disso, se eu trabalhar a semana toda tiro mais que um salário. Vai depender do material que trago. Geralmente ando três dias por semana. Nesses dias saio às seis da manhã e volto por volta das quatro horas da tarde. Algumas pessoas pegam confiança na gente e tem amizade e a gente já vai naquele recurso de pegar aquele material que a pessoa separa. Ando bastante. Percorro os bairros Montese e Vila Betânia. Às vezes vou ao Parque Dois Irmãos, ao Centro, a Aldeota e a Beira-Mar. Eu gosto de ir ao Centro quando tenho um parceiro para ir junto. Não gosto de ir só. Nos bairros mais próximos eu ando só. Quando é bairro longe eu ando com o parceiro. 85 Quando eu saio sozinha tem aonde eu me alimentar. Tem uma mulher no Montese que marca um horário de eu chegar pra merenda. Á vezes quando eu saio daqui sem merendar, eu merendo na casa dela. Quando eu venho voltando perto da hora do almoço ela guarda minha alimentação e me dá. Uma vez ia acontecendo um acidente comigo. Muitos motoristas não respeitam a gente. Mas os motoristas de ônibus respeitam. Às vezes, eles deixam passar na frente deles. Os moradores não colaboram. Eles dizem é coisa com a gente. Seria muito bom se o povo respeitasse mais a gente e que nos ajudasse separando o material reciclável e marcasse um dia pra a gente ir pegar. Já estou acostumada com meu serviço, pois comecei a trabalhar aos quatorze anos de idade, depois que eu perdi minha mãe. No começo foi difícil, mas agora qualquer peso dá pra levar, porque estou acostumada e nossos carros não são iguais aos carrinhos de geladeira. Às vezes eu trago cem, cento e cinqüenta quilos num carrinho desses e não sinto nada. No momento estou parada por motivo de doença, mas meus companheiros, especialmente a Nilda, me ajudam como podem. Quando eu entrei na ACORES o grupo já era organizado. O prédio e os carrinhos já eram comprados. Hoje a dificuldade maior com o trabalho é porque só tem quatro carrinhos, se um vai trabalhar o outro tem que esperar para poder sair. Assim, quando é dia de coleta, às vezes, a gente perde o dia. Outro problema aqui é pouco capital de giro para manter o catador. A gente trabalha porque precisa de dinheiro pra viver. A Nilda não pode sempre ajudar a gente numa coisa e outra. Acho que é só isso mesmo. Entrevista com o jovem Chichi, catador da Acores, na sede da associação no dia 16 de junho de 2005. Meu nome é Ântonio José Moreira da Silva e sou catador da ACORES. Todos me conhecem pelo apelido de Chichi. Tenho 29 anos. Sou Solteiro. Nunca me interessei em estudar, meu negócio sempre foi trabalhar. Fiz só a primeira série. Não sei ler, mas sei fazer meu nome tendo as letras. Eu tinha treze anos quando comecei a trabalhar com reciclagem num sucateiro do bairro. De lá pra cá até hoje, graças a Deus, estou aqui do mesmo jeito. Aqui e acolá o pessoal me chama pra trabalhar de servente. Faço tudo: trabalho de eletricista, de carpinteiro, caçador da reciclagem. Agora mesmo faço o serviço de reboco e piso aqui na reciclagem da Dona Nilda, a ACORES. Quando estou parado venho ficar aqui porque às vezes as pessoas ligam pra entregar material. Então eu vou buscar. Minha família é pequena: eu, minha mãe e uma irmã por parte de pai que mora na Vila União. A família da mãe mora no interior, em Camocim. Às vezes eu moro aqui na reciclagem, outras vezes eu vou à casa da mãe que fica no Riacho Doce. Não moro direto com ela por causa da bebida. Quando a mãe bebe não deixa a gente dormir sossegado. A gente chega do trabalho cansado não pode nem se deitar um pedaço e nem comer porque ela fica com zoada. Então eu saio de lá com raiva e venho pra cá. Eu já morei na 86 casa de Nilda quando tinha treze ou quatorze anos. O marido dela foi quem me ensinou a ser servente de pedreiro. Trabalho mais na reciclagem, porque aqui e acolá eu adoeço. Trabalho quatro noites e passo um mês internado. Sempre me dá uma dor no corpo, uma fraqueza, dor de cabeça, febre e coisas piores... Mas a Nilda me ajuda, me visita no hospital e me dá vale pra comprar os remédios. Graças a Deus estou melhorando. Eu também gosto de trabalhar no carrinho, pelo menos, é melhor do que estar parado. O ruim da reciclagem é que as pessoas chamam a gente de vagabundo, sem coragem de procurar um emprego. Uma vez uma moça disse assim: “vichi, um rapaz tão novo caçando o lixo no meio da rua”. Mas é melhor caçar lixo do que roubar. Eu trabalho muito, às vezes até, no domingo. Ando em muitos bairros: Serrinha, Parque Dois Irmãos, Barroso, Centro e às vezes Praia do Futuro. Quando no Barroso não tem material vou pro Conjunto Ceará, Jurema, Caucaia, por todo canto ando sozinho com Deus e o carrinho. Não tenho hora para trabalhar. Às vezes saio sete da manhã e chego três ou quatro da tarde, outras vezes, saio três da tarde e chego sete ou oito horas da noite. Quando a viagem é para o Centro prefiro trabalhar à noite e só chego sete da manhã. Dependendo da coragem em trabalho três ou quatro dias. Com este trabalho eu ganho uns R$ 150,00, R$ 200,00 ou R$ 250,00 por mês, dependo do material que trouxer. Mas eu acredito em Deus que vou melhorar. Antes de sair tomo um cafezinho e aqui e acolá alguém me oferece almoço. Quando o carrinho dá um prego no meio do caminho eu chego morrendo de fome e sede. Graças a Deus nunca tive problemas com os motoristas. Os moradores das casas são os que mais reclamam: “Fulano não espalha o lixo, pode deixar!”. Então amarro o saco do mesmo jeito, saio e vou pra outro lugar. Os policiais também pensam que a gente rouba os fios de telefone. Uma vez alguns policiais, do Parque Dois Irmãos, viraram meu carro como não encontraram nada eles foram embora e eu coloquei os materiais de novo no carrinho. Graças a Deus e a Nilda estou melhorando e continuo aqui na ACORES. Já errei uma vez chegando melado com uma carrada grande. Aqui não pode beber. Mas eu pedi desculpa e continuo aqui. A gente tenta formar um grupo porque é melhor. Às vezes a gente ajuda e faz favor pra Nilda. Mas muitos pensam que essa história de grupo não vai dar certo. Eles preferem o depósito porque lá não tem briga. Graças a Deus até hoje trabalho aqui. O preço desse depósito é melhor do que os outros. Sonho conversando com as meninas, me casando ou me juntando. Quando acordo fico triste porque não tenho condições de casar. O meu ganho é pouco não dá pra comprar as coisas... pagar água, luz. Nem para comprar comida direito o dinheiro dá. Meu consolo é uma cachacinha. Quando sobra dinheiro eu tomo uma cachaça e vou pra casa dormir. Agora o salário vai melhorar porque tem gente nos ajudando. 87 Entrevista com o jovem Glauber, catador da Acores, na sede da associação no dia 23 de junho de 2005. Meu nome é Luís Cassiano Lopes, entretanto todos só me conhecem por Glauber. Tenho 29 anos. Sou solteiro, mas já fui junto. Estudei até a sexta série. Meu primeiro trabalho foi com plantação de verdura. Eu aguava e limpava uma horta. Depois trabalhei como gari na Marquise. Por fim vim ser coletor. Faz mais ou menos quatro anos que trabalho na reciclagem. Logo emprego fixo não existe mais. Não consegui outro emprego desde a saída da firma. Conheci a reciclagem na ocasião do serviço de pintura que realizei na ACORES. Vi que era bom e comecei a gostar. Desde então não saí mais daqui. No começo sentia uma vergonha muito grande, mas me acostumei. Fazer o quê? É melhor do que roubar e mexer no que é alheio. A gente se diverte com os amigos que conhece. Meu percurso é no bairro de Fátima, Piedade, Centro e Aldeota. Saio três vezes por semana nesses bairros atrás do material: terçafeira, quarta-feira e sexta-feira. Das seis e meia da manhã até seis da noite. Mas este trabalho é bom porque a gente sai e chega na hora que quer. Não é mandado por ninguém. Tem dia que a gente pega muito material. Tem dia que a gente pega pouco. Não tem quem aborreça. Quando o trabalho está bom ganho setenta ou oitenta reais por semana; quando não, cinqüenta ou sessenta. Algumas pessoas colaboraram outras não; enquanto umas criticam, outras valorizam o nosso trabalho e reconhecem que a gente batalha muito, anda muito. Inclusive eu sempre recebo lanche pela manhã no Centro, à tarde na Piedade e tem as onze meia da noite no Centro, perto da Igreja da Sé. E assim a gente vai à luta. Às vezes arriscando até a vida pelas pistas com os carros quase batendo na gente. Não penso no futuro. Até quando Deus quiser fico aqui. Comecei a trabalhar por conta própria e não tenho mais vontade de trabalhar pra ninguém. A gente recebe muita ajuda da Cáritas. Nas reuniões conhecemos outros grupos de coletores e novas pessoas. Mas tem coletor que não comparece às reuniões. Logo as coisas não mudaram muito com essas reuniões. A renda pouco melhorou. Na época do inverno, o preço dos materiais baixam. Uma grande dificuldade da ACORES é que os coletores se afastam daqui. Eles trabalham um tempo, se afastam e depois voltam. Eu mesmo já trabalhei em outro depósito. Lá eu recebia o dinheiro a toda hora. Alias em qualquer depósito o pagamento é na hora. O problema daqui é que o dinheiro só sai com quinze dias. Muitos recicladores não querem essa forma de pagamento. Comigo não tem problema porque eu moro aqui. Tanto faz eu receber o dinheiro na hora como depois. Mas se todos se organizassem e colocassem o material não faltava dinheiro. Depende dos recicladores se unir, se juntar e trabalhar pra botar dinheiro aqui dentro. Porque só um, dois, três coletores, durante quinze dias, não consegue grande quantidade de material. Hoje só tem quatro coletores trabalhando. 88 O meu intuito, na presente pesquisa foi dar voz a quem não tem. Por isso apresentei na íntegra o resultado da entrevista. No próximo capítulo serão exibidos os demais atores envolvidos com a temática do lixo na cidade de Fortaleza. 89 Reunião do FEL&C (Seminário da Prainha) COOSELP (Antigo lixão do Jangurussu) 90 Eu peço muito a Deus e a vocês que estão me ouvindo: ajude a nós! Porque tem muito pai de família atrás de ganhar o pão. Não tem emprego. A gente só pode viver dessa sucata. Deixem a gente juntar esse lixo no meio da rua. Nós queremos trabalhar e assim ganhar o pão de cada dia. (João, Cooperav) Um pobre e esplêndido poeta, o mais atroz dos desesperados, escreveu esta profecia: “Ao amanhecer, amados de uma ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades”. Eu creio nessa profecia de Rimbaud... Sempre tive confiança no homem. Não perdi jamais a esperança. Por isso talvez cheguei até aqui com a minha poesia, e também com a minha bandeira. Em conclusão, devo dizer aos homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que todo o porvir foi expresso nessa frase de Rimbaud: só com uma ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens. Assim a poesia não terá cantado em vão. (Pablo Neruda) 91 CAPÍTULO III VIDAS E LIXO: UMA REFLEXÃO No último capítulo reflito sobre as políticas públicas do Município e do Estado direcionadas a temática do lixo e dos catadores. Assim retomo a discussão sobre o tratamento que a Prefeitura Municipal de Fortaleza tem dado ao seu lixo. Apresento, também, algumas experiências concretas da sociedade civil relacionadas aos catadores de lixo. E por fim, retorno aos depoimentos dos catadores de lixo sobre suas vidas e suas experiências nos grupos dos quais participam, com a finalidade de produzir algumas considerações frente a problemática do lixo e da participação dos catadores. Retorno aos depoimentos e aos apelos dos catadores, como o citado na página que antecede este capítulo, por direito ao acesso ao lixo. Aonde chegamos? E para onde caminha essa sociedade que desfigura e ignora seus cidadãos? Como diz o poeta Neruda “só com uma ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens”. Assim meu trabalho, também, não terá sido em vão. Para Cunha (2002) as políticas públicas envolvem conflitos de interesses entre camadas e classes sociais, e as respostas do Estado para essas questões podem atender a interesses de um em detrimento dos interesses de outros. Veremos que os interesses dos grupos do setor industrial, do setor comercial ou empresarial sempre se sobrepuseram sobre os interesses dos grupos dos catadores na cidade de Fortaleza. Política pública pode ser entendida como: ...linha de ação coletiva que concretiza direitos sociais declarados e garantidos em lei. É mediante as políticas públicas que são distribuídos bens e serviços sociais, em resposta às demandas da sociedade. Por isso, o direito que as fundamentam é um direito coletivo e não individual. (Pereira apud Degennszajh, 2000, p. 59) Os pontos convergentes e divergentes da vida dos catadores e do tipo de organização serão pontuados aqui. Como também outras experiências que acontecem no país e na cidade como é caso da Asmare, Coopamare, Cooselc e Socrelp. 92 3.1. Como o lixo é tratado? Uma das alternativas ecologicamente corretas, no tratamento do lixo, seria a da reciclagem que desvia, do destino em aterros sanitários/controlados ou lixões, os resíduos sólidos que poderiam ser reciclados, por meio da coleta seletiva. O processo da reciclagem é o resultado de uma série de atividades através da qual materiais que se tornariam lixo, ou estão no lixo, são coletados, separados e processados para serem usados como matéria-prima na manufatura de bens. Assim, a reciclagem tem por objetivo reaproveitar materiais já utilizados, reintroduzindo-os no processo produtivo e economizando, desta forma, recursos naturais que deixam de ser extraídos para a produção de novos materiais e áreas de disposição de resíduos, como aterros sanitários, aumentando sua vida útil. A coleta seletiva realizada de forma informal pelos catadores tem impacto direto na qualidade ambiental e na composição dos materiais coletados pelo caminhão da coleta regular nos municípios. A coleta dos materiais recicláveis antes da passagem do caminhão reduz os gastos com a limpeza pública e prolonga a vida útil dos aterros. Alem de contaminar menos o meio ambiente e diminuir a extração dos recursos naturais. No caso do lixão que é, muitas vezes, um fluxo importante de receitas para a comunidade, os catadores obtêm a sua renda com a venda do material reciclável para os sucateiros, ou atravessadores17, que por sua vez também lucram com essa atividade. Geralmente nos lixões das principais cidades do país trabalham mais de mil pessoas. Nos países de Terceiro Mundo a catação de lixo representa a única fonte de renda de setores totalmente excluídos da sociedade: os catadores de lixo. Em Fortaleza, por exemplo, aproximadamente cinco mil catadores beneficiam-se deste trabalho, que 17 O atravessador é um intermediário entre os catadores e a indústria. Ele compra tudo dos catadores procurando manipular os preços de compras e revende para a indústria de reciclagem. 93 representa não só uma fonte de renda, mas um possível caminho para a construção da cidadania. Em Fortaleza não existe coleta seletiva realizada pela Prefeitura Municipal, mas o trabalho informal de muitos catadores alimenta as indústrias recicladoras. Na pesquisa do professor Gradvohl (2001, p. 64) o setor industrial aceitou bem melhor a idéia de implantação de um sistema de coleta seletiva, logo que, a indústria objetiva qualidade nos resíduos. Já o setor comercial, cujos representantes são os donos de depósitos, demonstrou preocupação com qualquer mudança do sistema. O objetivo principal do último setor foi proteger sua atividade, por isso defendem a informalidade do trabalho dos catadores. No Brasil ainda não existe uma Política Pública Nacional de Resíduos Sólidos. Desde longa data tramitam pelo Congresso dois projetos de leis: primeiramente o Projeto de Lei No 3.333/92 do deputado Fábio Feldmann e o Projeto de Lei No 3.029/97 do deputado Luciano Zica. O Estado do Ceará através da Lei No 13.103, de 24 de janeiro de 2001, dispõe sobre a Política Estadual de Resíduos Sólidos e dá providências correlatas. O Decreto No 26.604, de 16 de maio de 2002, regulamenta a Lei citada. A Lei No 13.10318 está em consonância com as normas da Associação Brasileira de Normas e Técnicas (ABNT) e com o CONAMA. Essa lei trata da recuperação da qualidade do meio ambiente e da proteção da saúde pública. Seu objetivo principal é reduzir o montante de lixo nos aterros e definir ações de gerenciamento e monitoramento dos resíduos. Entretanto, não foi definido prazo para os municípios cearenses se adequarem às regras. A Secretaria de Infra-Estrutura do Estado (Seinfra) elaborou e distribuiu em todas as prefeituras do Ceará um manual para a implantação de aterro sanitário. Mas a construção dos aterros não se efetivou. O técnico da Seinfra, numa reunião do FEL&C, apontou o desinteresse dos prefeitos para o cumprimento da Lei. Já técnicos da ABES18 A Lei e os Decretos estão disponíveis no site www.semace.ce.gov.br/Bibliotecavirtual/Leis . 94 CE (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – seção Ceará) destacaram a falta de condições financeiras e técnicas das prefeituras para a construção e manutenção dos aterros. A partir da Lei No 13.103 alguns eventos aconteceram no Estado como: workshops sobre resíduos sólidos reunindo representantes da área de meio ambiente de diversos municípios; confecção de material, exemplo citado no parágrafo anterior; em Fortaleza destaque para o “Projeto Reciclando – Seja um Cidadão Ecológico” criado na extinta Secretaria do Trabalho e Ação Social - Setas19 - em parceria com o Sebrae-CE. O Estado, com a preocupação de incrementar a oferta de matérias primas para a indústria de reciclagem, cria o Projeto Reciclando. Nesse projeto participaram dez comunidades de Fortaleza localizadas em oitos Centros Comunitários – Dias Macedo, Dom Lustosa, Farol, Goiabeiras, João XXIII, Santa Terezinha, São Francisco e Tancredo Neves – e duas associações – Associação dos Micros e Pequenos Empresários do Conjunto José Walter (AMPEJW) e Associação Ecológica dos Coletores da Serrinha e Adjacências (ACORES). Nos Centros Comunitários foi implantada uma infra-estrutura mínima composta de galpão, frota de carrinhos, de balança, etc. Nesses dez grupos participavam no mínimo dez pessoas. Nos momentos de menos mobilização o Reciclando reunia cem catadores, mas no auge do Projeto participaram trezentos catadores. O Reciclando foi construído como uma política pública de organização da cadeia produtiva da reciclagem. O então titular da Setas, Azin, estabeleceu algumas prioridades na secretaria. Dentre elas o apóio a economia solidária e o desenvolvimento de projetos que tivessem uma capacidade de inclusão produtiva. Nessa estratégia de inclusão produtiva nasce o Reciclando, apoiado na tese de mestrado do professor Albert Gradvohl, titular da Secretaria da Ouvidoria Geral e do Meio Ambiente. O Projeto 19 Na atual gestão estadual a Setas foi dividida em duas secretarias: SETE (Secretaria do Trabalho e Empreendedorismo) e SAS (Secretaria da Ação Social). Os dados sobre o Projeto Reciclando foram obtidos através de duas entrevistas a dois técnicos de ambas secretarias: a socióloga Carla Costa Calvet da SAS e o gerente da Célula de Incubação de Empreendimento Carlos Eduardo Franklin Bezerra. Como também de visita ao Centro de Triagem do Tancredo Neves, ao Centro Comunitário São Francisco e ACORES. 95 se dividiu basicamente em duas frentes: uma para estimular e atrair investimentos de indústrias recicladoras e outra para organizar a oferta de resíduos. Até então, no Ceará não havia compradores significativos que pudessem realmente transformar a reciclagem numa cadeia produtiva e organizada. A ação de organização dos empresários redundou na criação de um sindicato: o Sindiverde. Com essa organização o Estado implantou recursos e capitais nessa área. Por conta dessa política existe no Estado um parque industrial de recicladores. Pelo lado dos catadores a oferta foi organizada através dos Centros Comunitário da Ação Social espalhados na cidade e localizados em regiões onde eles residiam. O mercado da reciclagem reivindica para a sustentabilidade do setor a existência de incentivos governamentais à atividade. Algumas ações já foram adotadas pelo Estado cearense no sentido de minimizar a carga tributária do uso de sucata e materiais. O Decreto 27.487, de junho de 2004, criou uma forma de incentivo para o setor com o diferimento da cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de sucata e resíduo plástico para a ponta do mercado da reciclagem, ou seja, a indústria recicladora. O novo Decreto 27.761, de abril de 2005, incluiu no diferimento da cobrança do ICMS metais, papel, papelão, plástico, tecido, borracha, vidro e congêneres. Além do adiamento do imposto, o novo Decreto estendeu o benefício para praticamente todo o setor de reciclagem: indústria, sucateiros / donos de depósitos. Na separação da Setas todos os programas de qualificação relacionados com a questão do trabalho foram encaminhados para a Secretaria do Trabalho e Empreendedorismo. O Projeto Reciclando, por ser um dos programas da política de promoção do trabalho, foi para a nova secretaria. Mas um problema eminente desestruturou os grupos de catadores: toda a infra-estrutura que havia nos Centros Comunitários permaneceu na SAS. Além do problema físico, a nova Secretaria não priorizou o Projeto e nem se articulou com a SAS para resolver o problema dos Centros Comunitários. Equivocadamente o Governo Estadual assume o controle e monopólio 96 da comercialização dos recicláveis recolhidos pelos catadores repetindo o papel de atravessador, tradicionalmente exercido pelos sucateiros. Atualmente, o Projeto praticamente esvaeceu. Somente quatro grupos permanecem ligados ao Projeto, mas sem acompanhamento técnico social efetivo. A SETE continua mantendo o Centro de Triagem pagando água, luz, telefone, alguns funcionários: vigia, motorista e o coordenador. O gerente de célula da SETE, em que o Reciclando está ligado, não soube informar a quantidade de catadores que permanece no projeto, mas disse ser um número muito reduzido. A falta de organização e articulação dos grupos, aliada a desmotivação dos catadores sinalizam uma falência do Projeto. Os técnicos da Secretaria também não conseguiram se articular com os catadores. Uma das últimas ações de impacto do Estado, em relação ao lixo, foi o convênio com a Espanha para o diagnóstico da destinação de resíduos. O Governo, através da Secretaria de Infra-Estrutura do Estado (Seinfra) assinou em novembro de 2004 um convênio de cooperação técnica com o Governo da Espanha para elaboração do Programa de Tratamento e Disposição Final dos Resíduos Sólidos do Ceará. O recurso previsto para a realização do estudo equivale a 271.965 Euros a fundo perdido, oriundo de Linhas de Financiamento de Estudos de Viabilidade (FEV) da Espanha. A empresa vencedora da licitação pública foi uma empresa espanhola Prointec. No dia 25 de maio de 2005 esse Projeto foi apresentado ao FL&C por uma técnica da Prointec. Ela informou que o Projeto estava na fase de realização de um questionário nos municípios do Estado para saber como está o tratamento do lixo em cada município. Alguns membros do Fórum, como os representantes do Instituto Ambiental Viramundo e Emlurd, temem que as prefeituras não consigam nem sequer responder várias questões do questionário por falta de dados relacionados ao lixo. O Ceará possui apenas nove cidades com aterros sanitários em operação: Caucaia; Aquiraz; Maracanaú; Jaguaribara; Pacatuba; Sobral; Itapipoca; Camocim e Cascavel. 97 Os nove aterros atendem treze cidades do Estado o que corresponde ao atendimento de cerca de 53% da população total.20 Fortaleza não tem mais espaço para a disposição final do seu lixo. Os resíduos sólidos da capital são levados para o Aterro de Caucaia. O Asmoc – Aterro Sanitário Metropolitano Oeste recebe 200 toneladas ao dia do próprio município, Caucaia, e 3.500 toneladas ao dia de Fortaleza sendo quase a sua totalidade formada por lixo domiciliar, sabe-se que até 35% desse lixo coletado pode ser reciclado. O Asmoc está em funcionamento desde 1994 e, segundo alguns especialistas, o aterro ainda tem uma vida útil de aproximadamente cinco a seis anos se continuar com o mesmo ritmo de recebimento de lixo. Além da ausência do espaço físico na cidade, Fortaleza enfrenta a falta de políticas públicas sobre o lixo. Neste contexto citadino a problemática dos trabalhadores informais do lixo, os catadores, foi ampliada com total descaso e omissão do Poder Público Municipal. A administração pública passada não realizou uma coleta seletiva nem campanhas efetivas e eficazes que conscientizassem a população sobre lixo e sua implicação ambiental. O lixo não era pensado sobre o ponto de vista ambiental e as discussões, nos últimos anos, se reduziam em torno da tarifa do lixo, tão criticada e rejeitada pela população. A Prefeitura repassou para uma empresa privada, Ecofor Ambiental21, a responsabilidade de coletar o lixo e educar a população. Na época, o vereador Rogério Pinheiro denunciou no FL&C algumas cláusulas do contrato: falta de especificação da porcentagem a ser destinada para a educação ambiental; o aumento do valor da tonelada do lixo; o valor fixo previsto no contrato para o pagamento da empresa. As ações da prefeitura se reduziam a fazer trabalho de coleta seletiva de papel junto a alguns órgãos públicos e campanhas educativas com ambulantes e permissionários do 20 Dados retirados do jornal O Povo, caderno Cotidiano, de 1 de dezembro de 2004. A Ecofor Ambiental é uma empresa do mesmo grupo da Marquise. Ambas empresas se revezavam na coleta do lixo. 21 98 Mercado Central e Beco da Poeira. A educação ambiental para a população, em geral, era responsabilidade da Ecofor. Na gestão passada os catadores eram completamente ignorados. Nos últimos anos o único projeto de incentivo a coleta seletiva foi o Projeto Jovem Empreendedor, através da Secretaria de Desenvolvimento Econômico – SDE. Durante o período de 2003 e 2004 a prefeitura contratou a Copaterce – Cooperativa de Prestação de Serviço e Assistência Técnica do Ceará Ltda – para realizar o curso Empreendedorismo Cooperativo de 219 horas/aulas com jovens da cidade com a finalidade capacitá-los para trabalhar na reciclagem de forma associada. No período da capacitação eles recebiam uma bolsa de R$ 50,00 por semana. Os jovens selecionados para o curso nunca trabalharam com o lixo. Desse projeto nasce a Coopremarce. A Coopremace – Cooperativa Pré-beneficiamento de Materiais Recicláveis do Ceará ganhou toda uma infra-estrutura da prefeitura. O Galpão de Triagem de Materiais Recicláveis funciona ao lado da Emlurb. A cooperativa, por intermédio da prefeitura, conseguiu uma parceria com o grupo Pão de Açúcar que organizou estações de reciclagem Pão de Açúcar Unilever. No ano de 2004, no início do projeto, foram criados cinco Pontos de Entrega Voluntária (PEVs). Novos pontos foram criados no ano corrente. Mas a cooperativa teve problemas internos entre os jovens e com questões burocráticas que apontam para um eminente fracasso. Na visita, in loco, detectei a permanência de apenas dez jovens na cooperativa: cinco trabalhando no galpão e cinco nos postos do Pão de Açúcar. No tocante a pesquisa verifiquei que o último relatório elaborado pelo poder público municipal foi no ano de 1996, através EMLURB-DLU. O objetivo desse relatório foi estudar a composição dos resíduos da cidade de Fortaleza e contribuir para o processo de otimização do uso de serviço, pessoal, tempo, transporte, custos e principalmente do destino final dos resíduos. A proposta inicial era a realização do estudo a cada ano. Entretanto somente o primeiro aconteceu. 99 A gestão da Prefeita Luizianne Lins vem respondendo as reivindicações das organizações da sociedade civil envolvidas com a temática do lixo. A primeira iniciativa da Prefeitura foi criar um Grupo de Trabalho (GT) dos Catadores ligado diretamente ao gabinete da prefeita. Esse GT é composto por sete representantes de OGs, sete de ONGs ligadas ao FL&C e quatro de comitês. Alguns especialistas apontam para o início das atividades com os catadores a realização de um amplo cadastro das pessoas que vivem da catação e a criação de galpões em diferentes áreas das seis regionais, para que o material seja depositado provisoriamente até seguir para um local adequado. Vários órgãos da prefeitura estão envolvidos com a questão do lixo. Em março deste ano, a Ettusa implantou, no Terminal do Siqueira, o projeto-piloto de coleta seletiva de lixo, com quatro grupos de lixeiras22. O lixo coletado será destinado para comunidades carentes do próprio bairro. A AMC realizou no mês de setembro junto ao Fórum a Plenária Movimento dos Catadores com o objetivo de evitar acidente com os catadores, através da educação de como conduzir os carrinhos nas vias públicas sem risco. O compromisso da prefeita em inserir os catadores existentes na coleta seletiva impulsionou o FL&C e os catadores a desenvolver um projeto de formação em coopetativismo, bio-consciência, técnica e método em coleta seletiva ministrado pela Cooperar. Essa ação acontece toda quarta-feira, à tarde, no seminário da Prainha. Oitenta catadores participam desse processo de formação com representantes dos quatorze grupos que freqüentam o Fórum. A primeira aula aconteceu no dia 15 de junho de 2005. A estimativa é que, provalvemente, em novembro ou dezembro, acontecerão assembléias de constituição das seis cooperativas e a inauguração de uma Central que funcionará como um escritório de comercialização dos produtos e agilização da rede. A idéia principal é que essas cooperativas trabalhem em rede. Em cada regional será constituída uma cooperativa a partir dos grupos já existentes. Cada cooperativa irá congregar e coletar dentro da sua respectiva regional. Com o apóio da prefeitura a expectativa do Fórum e 22 Reportagem do jornal Diário do Nordeste, 04 de março de 2005. 100 dos catadores é que no ano de 2006 seja ofertado à cidade de Fortaleza um serviço regular e eficiente de coleta seletiva. 3. 2. Laboratório da participação: outras experiências. O exercício da cidadania vem avançando através de experiências de vários grupos da sociedade civil. Destaco, aqui, algumas experiências que estimulam a formalização das organizações dos catadores, fornecem apóio técnico e incorporam as associações de catadores ao sistema público de coleta seletiva de lixo. Por meio dessas organizações a coleta seletiva é viabilizada através de parcerias com estabelecimentos comerciais e residenciais, instituições bancárias, bares, restaurantes e outros. A Cooperativa dos Catadores Autônomos de Papel e Aparas de Materiais Reaproveitáveis – COOPAMARE é um exemplo de sucesso de uma cooperativa de catadores, no município de São Paulo. A criação da COOPAMARE encetou na segunda metade dos anos 70 por uma iniciativa espontânea da Organização de Auxílio Fraterno – OAF, entidade ligada à Igreja Católica dirigida para as populações de rua. A partir daí, grupos de catadores passaram a se reunir no Centro Comunitário dos Sofredores de Rua localizado no bairro do Glicério, onde começaram a construir carrinhos para transportar o material reciclável até o local de venda. O trabalho desses grupos de catadores assumiu um caráter profissional no ano de 1985, graças ao apoio financeiro do BNDES que possibilitou o aluguel de uma casa, a compra de balança e de um caminhão. Em 1995, o apoio do IAF – Interamerican Foundation, agência de cooperação americana, permitiu a aquisição de uma camionete (Polis, 1998). O referido grupo se estruturou como Associação dos Catadores de Papel em 1986 com o objetivo de obter melhores preços no mercado. No ano de 1989 a associação se transforma em cooperativa. Desta forma, oficialmente a Coopamare surge em 1989 como uma cooperativa sem fins lucrativos contando com a presença de vinte catadores. Somente no ano de 1990 estreitou-se a relação da Cooperativa com a prefeitura conseguindo a cessão de terreno embaixo do viaduto Paulo VI, região de Pinheiros, 101 onde os materiais recicláveis são estocados e beneficiados para a venda. Além da cessão do espaço público a prefeitura promulgou o decreto que criou o estatuto de categoria profissional, estabeleceu um convênio para o pagamento de serviços prestados pela diretoria da cooperativa e financiou a capacitação dos catadores. Hoje a Coopamare conta com 80 catadores, entre cooperados e associados, e com 120 catadores avulsos.23 A ASMARE24 é outro exemplo de organização bem sucedida, vivenciada na capital do Estado de Minas Gerais, graças ao modelo inovador de uma gestão dos resíduos sólidos. A coleta seletiva em Belo Horizonte faz parte do Programa de Manejo Diferenciado de Resíduos Sólidos coordenado pela Superintendência de Limpeza Urbana, autarquia municipal, que conta com a parceria de várias entidades da sociedade civil: Pastoral da Rua e Cáritas, Associação Evangélica Brasileira, Associação Brasileira das Industrias Automática de Vidro – Adividro, Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, Organização das Nações Unidas, Santa Casa de misericórdia e ASMARE. A ASMARE é uma associação de catadores de papel, constituída de 380 catadores associados que podem ser identificados pelo crachá, uniforme e carrinhos. Os associados são capacitados pela prefeitura, Pastoral de Rua e CEMPRE – Compromisso Empresarial para a Reciclagem –, que desenvolveu material didático de apoio aos cursos de capacitação. A associação teve, também, apoio da Cáritas Internacional. Há mais de 50 anos os catadores de papel fazem parte da realidade de Belo Horizonte. A falta de organização da categoria, no início dessa atividade, relegou-os ocupar um espaço na economia de maneira excluída. A partir de 1987 a Pastoral de Rua apóia os catadores na organização social e produtiva da atividade de reciclagem. Assim foi possível fundar em 1990 a associação denominada ASMARE. No ano de 1993 a 23 Dados obtidos no site www.coopamare.com.br/Histórico acessado em 03 de junho de 2005. Dados retirados do site www.asmare.org.br/ConheçaaAsmare/Histórico acessado em 03 de junho de 2005. 24 102 prefeitura de Belo Horizonte ao implantar a coleta seletiva opta em estabelecer uma parceria com os catadores, reconhecendo-os como agentes ambientais prioritários na execução desta política. A ASMARE recolhe por mês cerca de 450 toneladas de lixo através do trabalho de coleta realizado pelos catadores e da parceria junto a empresas, escolas, condomínios, órgãos públicos, entre outros. 55% dos catadores são mulheres e 44% homens cuja renda familiar varia de um a seis salários mínimos25. Os catadores que participam diretamente de alguma organização recebem apoios técnicos, sociais e assistenciais, desde aulas, cursos de capacitação à exigência da manutenção dos filhos na escola. Os catadores, por intermédio das associações ou cooperativas, vêm angariando importantes conquistas como o reconhecimento e a valorização do trabalho do catador, a melhoria das condições de trabalho, o aumento do valor de venda dos recicláveis que são repassados diretamente para a indústria, quebrando a rede com o atravessador. A autonomia dos grupos reflete na melhoria da renda do catador. Apresentarei uma experiência em Fortaleza que teve insucesso pela falta de participação e autonomia dos catadores. A Cooselc – Cooperativa dos Trabalhadores Autônomos da Seleção e Coleta de Material Reciclável Ltda – funciona no antigo Aterro do Jangurussu, Rua 11, Jadim Castelão, bairro Jangurussu. O aterro, mais conhecido por Lixão do Jangurussu, funcionou por 20 anos às margens do Rio Cocó. O lixo acumulado chegou a uma cota de 42 metros de altura. O Governo do Estado pressionado por ambientalistas e moradores das adjacências foi impulsionado a buscar recursos para a construção de aterros sanitários. O Banco Mundial, através do Projeto Sanear financiou a construção de três aterros sanitários na Região Metropolitana de Fortaleza, nos municípios de Caucaia, Aquiraz e Maracanaú. Com a desativação do Lixão o problema ambiental foi parcialmente resolvido - o 25 Idem. 103 despejo de chorume, emanado da enorme massa de lixo continuou a escorrer sem qualquer tratamento, diretamente para o Rio Cocó - mas o problema social permanecia. Mais de mil pessoas sobreviviam do Lixão do Jangurussu. O Governo do Estado opta por construir no mesmo local uma Usina de Triagem de resíduos. Através do convênio com a Prefeitura Municipal de Fortaleza, o Estado transfere à prefeitura a gestão da usina e todos os novos equipamentos. Por decreto cria-se a Cooselc, registrada em outubro de 1998 com 360 vagas para os catadores do antigo lixão. Mas nem Estado e nem Prefeitura preocuparam-se em adotar políticas públicas de reciclagem que viessem a beneficiar os catadores. Para a médica sanitarista Denise Cury, ex-coordenadora do FEL&C, a intervenção do Estado e da Prefeitura foi desastrosa, do ponto de vista social. A intervenção levou os catadores do Jangurussu a três diferentes destinos: parte ficou ligada à nova usina de triagem (mulheres, jovens e idosos, em sua maioria); outros transformaram-se em catadores de rua, principalmente os homens que por serem mais fortes, do ponto de vista físico, tinham esperanças de melhores ganhos; finalmente algumas famílias migraram para as imediações do novo aterro metropolitano em busca do lixo perdido. Aos que permaneceram ligados à Usina de Triagem, muitas dificuldades foram impostas, entre elas: a ausência de investimento na capacitação do grupo; permanência do trabalho sobre o lixo domiciliar bruto da cidade, sem qualquer segregação prévia de materiais; falta de equipamento para o catador como luvas, máscaras e botas cano longo; redução do rendimento; alto custo da manutenção dos equipamentos; a presença de catadores sem serem cooperados no pátio de baixo da usina. No período que realizei visitas à cooperativa verifiquei quatro esteiras quebradas do total de seis. Fortaleza teve ainda a experiência de implantação da planta piloto de um consórcio26 do lixo no bairro do Pirambu, iniciado em 05 de julho de 1996 e terminado em 30 de 26 Consórcio significa, do ponto de vista jurídico e etimológico, a união ou associação de dois ou mais entes da mesma natureza. O consórcio não é um fim em si mesmo; constitui, sim, um instrumento, um meio, uma forma para a resolução de problemas ou para alcançar objetivos comuns (Gradvohl, 2001, p.73). 104 agosto do mesmo ano, na Sociedade Comunitária de Reciclagem de Lixo do Pirambu – Socrelp. O modelo de consórcio foi testado na comunidade Socrelp, organizada na forma associativa desde 1994 e aproveitando todas as instalações físicas, tais como galpão, pátios e máquinas do Projeto Sanear executado pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado. O projeto inicial realizado na Socrelp se definia como um projeto de coleta seletiva, com base na educação ambiental. A coleta se limitava ao bairro do Pirambu. Gradvohl (2001, p.75) considerou utópica a experiência que pretendia direcionar de forma voluntária 100% da oferta de recicláveis, ou seja, 60.116kg mensais desses materiais a partir do conceito único de educação ambiental. O programa de educação ambiental teve insucesso. O modelo do consórcio do lixo implantado em 1996 aproveitou toda estrutura física e humana. As ações para implantação do consórcio possibilitaram a Socrelp receber treinamento e capacitação para a gestão da unidade produtiva, ensinando como selecionar, classificar e tratar os resíduos para a comercialização de forma técnica, através do termo de adesão entre o Sebrae/Ce e o Sistema Fiec – Federação das Indústrias do Estado do Ceará. Como também desenvolver ações estratégias comerciais, que minimizassem a atuação de atravessadores. No começo do ano de 2004 realizei várias visitas de campo a Socrelp no período da tarde. Entretanto, poucos foram os contatos com os catadores. Geralmente, os catadores ao chegarem na Associação separavam e pesavam os materiais coletados na rua, recebiam o dinheiro e logo iam embora. Eles sempre estavam apressados e com muito trabalho. O presidente da associação me informou que no período da noite a Associação recolhe no Centro da cidade os materiais recicláveis em um caminhão. Assim, muitos catadores preferiam vender seus materiais no Centro. Os motivos acima me fizeram abandonar a pesquisa na Socrelp. 105 Após uma breve apresentação de diversas experiências relacionadas a organização de catadores, passarei, no próximo item a apresentar os relatos orais dos sujeitos da minha pesquisa. 3.3. Relatos orais sobre a vida e a participação dos catadores. Agora, passarei a trabalhar com os dados colhidos nas entrevistas que realizei com nove catadores de Fortaleza visando refletir sobre as informações transmitidas nos depoimentos. Iniciarei minha reflexão resgatando de onde partem os catadores da pesquisa para a caminhada pelas ruas dos vários bairros de Fortaleza. Na pesquisa de graduação (Gonçalves, 2001) detectei que, geralmente, são nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário privado ou nas áreas públicas situadas em regiões desvalorizadas e de risco que segmentos da população, desprovidos de qualquer direito, escolhem para se ajolar: beiras de rios, encostas dos morros, terrenos sujeitos a enchente, sem saneamento, regiões poluídas ou até em áreas de proteção. Nesta pesquisa, também, a falta de moradia é uma das carências que afeta os catadores. O Senhor João e a Dona Huga se instalaram à beira do rio. Quando eu cheguei aqui com pouco dinheiro e uma televisão negociei com um rapaz a compra de um quarto na beira do rio e um carrinho e aí eu comecei a trabalhar na sucata de novo. [...] Como eu morava na beira do rio – no tempo do inverno era melhor está no meio da rua do que dentro de casa – as irmãs juntamente com o padre da Paróquia compraram, por três mil e quinhentos reais, essa casa que eu moro. (João, Cooperav) Eles viram minha situação sem marido morando numa casinha à beira do rio, numa área de risco mesmo e começaram a me ajudar. (Huga, Cooperav) As ocupações de terras surgem, também, como estratégia para solucionar o problema da moradia nas cidades. As ocupações ocorrem em bloco, ou seja, um certo número de famílias que não podem pagar aluguel ou comprar uma casa ou terreno procura juntamente uma área para instalar-se no mesmo dia com todo o grupo. A catadora Chaguinha sem poder pagar mais o aluguel recorre a essa alternativa. Nós viemos morar aqui num terreno invadido. Na época o Ciro Gomes tinha entrado na política. Então, ele comprou o terreno que invadimos, depois desapropriou e deu pra gente. (Chaguinha, Cooperav) 106 A problemática da habitação dos catadores da Acores é mais crítica: dos quatro catadores que participam da Associação, três moram na própria sede. Inclusive um excatador também mora no espaço da Associação. Quatro famílias residem num mesmo espaço, completamente impróprio à moradia. A situação de moradia desses catadores da Acores demonstra que a habitação não pode ser tratada como mercadoria ou produto lucrativo. Moro aqui mesmo na reciclagem. Antigamente o trabalho na reciclagem era bom, dava pra gente se manter, pagar o aluguel. Agora não, as coisas tão baixando, tem muito catador. Aí não tenho condição de pagar o aluguel. Aí a Nilda me ofereceu um quartinho na reciclagem pra eu morar. (Edilene, Acores) O problema daqui é que o dinheiro só sai com quinze dias. Muitos recicladores não querem essa forma de pagamento. Comigo não tem problema porque eu moro aqui. Tanto faz eu receber o dinheiro na hora como depois. (Glauber, Acores) Moro aqui no depósito.(José, Acores) Às vezes eu moro aqui na reciclagem, outras vezes eu vou à casa da mãe que fica no Riacho Doce. Não moro direto com ela por causa da bebida. Sonho conversando com as meninas, me casando ou me juntando. Quando acordo fico triste porque não tenho condições de casar. O meu ganho é pouco não dá pra comprar as coisas... pagar água, luz. Nem para comprar comida direito o dinheiro dá. Meu consolo é uma cachacinha. (Chichi, Acores) A sede da Associação tornou-se um cortiço pela característica de várias famílias utilizarem coletivamente os espaços: salas, banheiro, cozinha. Mas em momento algum os catadores mencionaram pagar determinado valor por ocupar os espaços. Entretanto, o dia do pagamento dos catadores é incerto. As experiências relatadas acima representam um conjunto de situações denominado por Kowarick (2000) de espoliação urbana que está intimamente ligada à acumulação do capital e ao grau de pauperismo dela decorrente. [...] espoliação urbana: é a somatória de extorsões que se opera pela inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, que juntamente ao acesso à terra e à moradia apresentam-se como socialmente necessários para a reprodução dos trabalhadores e aguçam ainda mais a dilapidação decorrente da exploração do trabalho ou, o que é pior, da falta desta.(Kowarick, 2000, p. 22) As experiências, também, nos remetem ao que Castel fala de "desenraizamento", ou seja, do fenômeno fundamental no começo do processo de exclusão, na falta de acesso ao patrimônio, aqui representada na casa, e ao trabalho regulado. 107 Os catadores de lixo são, muitas vezes, estigmatizados à rejeição e à inutilidade assim como a matéria-prima do seu trabalho: o lixo. Eles são tratados e considerados como “não-semelhantes”. A maneira que a sociedade trata os catadores, relatada pelos entrevistados, enquadra-se no termo apartação social proposto por Cristóvam Buarque (Nascimento, 1995, p.25). A apartação social seria o fenômeno de separar o outro, não mais considerado como humano. Para o autor a exclusão social torna-se apartação quando o outro não é apenas desigual ou diferente, mas quando o outro é considerado como "não-semelhante", um ser expulso, não dos meios modernos de consumo, mas do gênero humano. Nos depoimentos abaixo a discriminação ao catador é notória, como também, a falta de informação e compromisso das pessoas com a preservação do meio ambiente. Até o respeito é negado a esse segmento da população. Com a palavra meus interlocutores: A reciclagem piorou também porque as pessoas não ajudam. Nós trabalhamos no meio da rua, sofrendo, passando perigo e as pessoas ainda não tem respeito por nós. (João, Cooperav) Às vezes as mulheres me davam carão. Eu amarrava a sacola de lixo e ia embora. (Keké, Cooperav) Ainda não recebo nenhuma doação. Aliás, muitas pessoas fazem é reclamar: “Diabo desse catador vem mexer no meu lixo”; “Hei lixeira”. O povo não dá um copo d’água a gente. Mesmo as pessoas dizendo as coisas com a gente, nós passamos e vamos embora. (Chaguinha, Cooperav) Logo no começo era diferente. A gente agüentava muito abuso. As pessoas reclamavam porque a gente rasgava a sacola do lixo. (Huga, Cooperav) Os moradores não colaboram. Eles dizem é coisa com a gente. Seria muito bom se o povo respeitasse mais a gente e que nos ajudasse separando o material reciclável e marcasse um dia pra a gente ir pegar. (Edilene, Acores) O ruim da reciclagem é que as pessoas chamam a gente de vagabundo, sem coragem de procurar um emprego. Uma vez uma moça disse assim: “Vixi, um rapaz tão novo caçando o lixo no meio da rua”. Os moradores das casas são os que mais reclamam: “Fulano não espalha o lixo, pode deixar!”. Então amarro o saco do mesmo jeito, saio e vou pra outro lugar. Os policiais também pensam que a gente rouba os fios de telefone. Uma vez alguns policiais, do Parque Dois Irmãos, viraram meu carro e como não encontraram nada eles foram embora e eu coloquei os materiais de novo no carrinho. (Chichi, Acores) Ao lado da tendência geral de pobreza dos catadores, observou-se um baixo nível de instrução. Nem um catador entrevistado concluiu o Ensino Fundamental II. Constatamos que três, praticamente, não sabem ler. Cada um apresenta seu nível de escolaridade: 108 João: meu estudo foi até a oitava; Keké: estudei apenas a primeira série; Chaguinha: nunca tive tempo pra estudar; Huga: estudei até a quinta séria; Glaudinei: estudei até a quinta série; José: parei de estudar na quinta série; Edilene: só estudei até a oitava série; Chichi: não sei lê, nunca me interessei em estudar, meu negócio sempre foi trabalhar; Glauber: estudei até a sexta série. O nível de educação escolar sinaliza quão baixo é o grau de escolaridade dos catadores. O baixo nível educacional é um obstáculo para a inserção no programa de modernidade do mercado de trabalho, onde se faz necessário a utilização de máquinas e equipamentos que requerem leitura e interpretação de manuais. Assim como é obstáculo para a autogestão das associações e cooperativas. Os catadores se acham incapazes de coordenar o grupo. Na eleição da Cooperav a presidente e a tesoureira eleitas não são catadoras, mas colaboraram com a organização dos catadores desde a formação do grupo. A confiança e o bom trabalho realizado pela Musa, acrescido ao sentimento de incapacidade dos catadores fizeram com que esses trabalhadores não seguissem a orientação do FEL&C e elegessem uma pessoa que não era catadora. Na Acores os catadores consideram a presidente da Associação a dona do depósito. Analiso que as relações de necessidade e troca de favores abafam as questões políticas referente à gestão da Associação. A falta da leitura e das abstrações deixam ainda mais vulneráveis estas famílias que vivem no limiar da pobreza e da miséria na cidade de Fortaleza. A vulnerabilidade das famílias pobres faz com que os filhos abandonem ou nem mesmo tenham acesso aos estudos para ingressarem no mundo do trabalho. A insuficiência de renda faz com que todos os membros das famílias trabalhem. Isso implica em presença de criança e adolescente no trabalho infantil. Na catação é visível a presença de criança nessa atividade. A caminhada de alguns catadores é feita com filhos sempre ao lado, ou melhor, dentro dos carrinhos quando crianças. No início da adolescência algumas ganham carrinhos adaptados ao seu tamanho. A inserção no mundo do trabalho na infância é realidade dos catadores entrevistados. O trabalho e a responsabilidade pelo seu próprio sustento iniciam na infância ou adolescência. 109 Mas comecei a trabalhar desde os oito anos de idade; quebrava pedra pra fazer cal. Aos doze anos colocava saca de sessenta e setenta quilos em cima dos carros pra poder viver. Ainda menino fazia e vendia carrinhos de brinquedo na feira. Nunca gostei de brincadeira. (João, Cooperav) Quando era menino saía com meu pai para todo canto. [...] Aos treze anos já caçava o lixo com o meu pai. (Keké, Cooperav) Faz muito tempo que eu trabalho na reciclagem, nem me lembro mais. Uns vinte anos. Eu e a Nilda começamos a trabalhar na casa do nosso pai. (José, Acores) Comecei trabalhando como malabarista do circo escola do Bom Jardim, mas depois que minha mãe faleceu achei melhor trabalhar na reciclagem porque ninguém quer dá emprego a quem não tem documento. Já estou acostumada com meu serviço, pois comecei a trabalhar aos quatorze anos de idade, depois que eu perdi minha mãe. (Edilene, Acores) Eu tinha treze anos quando comecei a trabalhar com reciclagem num sucateiro do bairro. (Chichi, Acores) O jovem Keké é inserido desde cedo pelo pai, o senhor João, no mundo do trabalho. Deficiente visual e com uma renda do benefício insuficiente para manter a família, o Senhor João, necessita dos filhos para desempenhar o papel de provedor. Além do trabalho as crianças presenciam sofrimentos e dores. Cedo elas experimentam o desespero. Os filhos do seu João presenciaram o acidente do pai. Quando eu cheguei pertinho do terminal da Antonio Bezerra, eu só escutei a pancada na traseira da carroça: Bah! Em seguida me esfreguei no chão, parando longe com a carroça caindo em cima de mim. Aí quebrou toda a minha cabeça, a minha visão afundou. Aí eu ouvi muito bem quando um menino gritou, quando um menino gritou: morreu, morreu papai, morreu. Aí eu não vi mais nada. A presença de crianças no trabalho com lixo levou a sociedade civil a criar em 1998, o Fórum Nacional Lixo e Cidadania que lançou em 1999 a campanha “Criança no Lixo Nunca mais”, pela erradicação do trabalho infantil com o lixo. Para atingir esse objetivo, o Fórum fixou como metas: colocar crianças e adolescentes, oriundos do trabalho com o lixo, na escola e em atividades complementares; inserir socialmente e economicamente os catadores, preferencialmente em programas de coleta seletiva municipais; erradicar os lixões. O Fórum, nos quatro anos de atuação, conseguiu tirar 30 mil crianças e adolescentes do trabalho com o lixo; o reconhecimento do trabalho dos catadores pelo Ministério do Trabalho e Emprego; e o aumento dos investimentos na área de resíduos sólidos por parte das instituições federais27. 27 Dados obtidos no jornal Diário do Nordeste, 12 de dezembro de 2002. 110 É sobre-humana a capacidade das pessoas pobres de sublimar as adversidades e agruras humanas em momentos de felicidades. Na catação os entrevistados registram suas satisfações no trabalho que realizam. Acho a catação melhor porque não estou sendo mandado por ninguém. [...] Passo a semana toda saindo pra trabalhar. Eu acho uma maravilha, a gente conhece muitas pessoas e faz muita amizade. É como se fosse um pássaro. (Glaudinei, Acores) Eu comecei a observar as pessoas juntando as coisas, achei bonito. Na minha casa iniciei separando as coisas e doava para os meus vizinhos que trabalhavam catando. Depois pensei comigo: sabe de uma coisa vou pegar um carrinho! (Huga, Cooperav) Eu gosto desse trabalho. Graças a Deus e ao meu trabalho não falta nada. A gente trabalha igualmente as outras pessoas que vivem em firma. Nós fazemos a limpeza da cidade e ajudamos os outros catadores também. (Huga, Cooperav) No começo eu tinha vergonha. Só queria caçar nos cantos onde ninguém me conhecesse. Hoje não. Eu não deixo esse meu trabalho por carteira assinada de jeito nenhum. Gosto do que faço porque a gente conhece pessoas novas e, além disso, se eu trabalhar a semana toda tiro mais que um salário. (Edilene, Acores) Mas a fatalidade também é registrada nessa atividade de catação. A dificuldade de emprego, o baixo nível de escolaridade, a ausência de qualificação de trabalho subordina a população pobre a apenas oportunidade de sobrevivência. Não existe liberdade de escolhas ou aptidões para a execução de um trabalho ou outro. Os catadores reconhecem essa situação: Como não tinha outro meio de vida fiquei trabalhando na reciclagem. Só tem esse mesmo. [...] O nosso grupo está bom. Não tem desunião e nem carão como acontece nos depósitos. Se você não chegar na hora certa o dono do depósito lhe repreende. Aqui a gente chega na hora que quiser. A Musa sempre atende muito bem. (Keké, Cooperav) Hoje em dia tem muitos catadores e as coisas são difícil de encontrar. Mas é só o que eu seu fazer. (Chaguinha, Cooperav) Posso dizer que não tenho profissão, mas faço tudo. Trabalho com animal na carroça, com reciclagem, com carvão. O que aparecer eu faço. (José, Acores) Trabalho mais na reciclagem, porque aqui e acolá eu adoeço. Trabalho quatro noites e passo um mês internado. Sempre me dá uma dor no corpo, uma fraqueza, dor de cabeça, febre e coisas piores... Mas a Nilda me ajuda, me visita no hospital e de dá vale pra comprar os remédios. Graças a Deus estou melhorando. Eu também gosto de trabalhar no carrinho, pelo menos, é melhor do que estar parado. (Chichi, Acores) No começo sentia uma vergonha muito grande, mas me acostumei. Fazer o quê? É melhor do que roubar e mexer no que é alheio. (Glauber, Acores) Os excluídos, na concepção de Castel, são ameaçados pela insuficiência de seus recursos materiais e pela fragilidade em seu tecido relacional, ou seja, uma fragilidade 111 que tem como conseqüência o isolamento. Nas brechas do sistema capitalista os catadores garantem seu sustento e desbravam um caminho de ruptura do isolamento social com a organização de cooperativas e associações. Apesar das idas e vindas dos catadores da Acores e das desistências e dificuldades dos Catadores da Cooperav visualizo um gérmen de transformação e participação nessas organizações. Na fala dos catadores da Cooperav registro o otimismo e a esperança com relação ao futuro, à conquista de direitos e à melhoria econômica através da cooperativa. A organização favoreceu a conquista do direito mínimo de acesso aos documentos; a oportunidade de conhecer outros catadores e grupos ligados à temática do lixo, como também outras cidades; e o mais precioso no meu entendimento é a capacidade do diálogo e do trabalho em grupo. Com a cooperativa eu acredito que as coisas irão melhorar. Até meus documentos estou tirando. Já tirei a identidade, mas ainda falta é muito. Para formar uma cooperativa as pessoas precisam de documentos por isso todos estão tirando. (Keké, Cooperav) Apesar de muita luta estamos aqui e agora vamos formar uma cooperativa. Creio que vai melhorar com a nossa união e com o registro do grupo.[...] Antes a gente fazia só catar. Não era acompanhado por ninguém. Hoje conhecemos muitas pessoas. Ás vezes eu e a Huga viajamos pra muitos cantos. Eu desejo que o nosso ganho melhore e que entre doações de material no galpão, pra gente catar aqui e não nas ruas. (Chaguinha, Cooperav) Aqui tudo é conversado e controlado por nós. Tudo depende de acordo. Os planos são feitos em conversa. (Huga, Cooperav) Lembro-me então da reflexão do Pedro Demo ao discorrer que a fome não é maior que a falta de cidadania “Ao lado das carências materiais, temos a precariedade da cidadania. Uma não é maior ou pior que a outra. Condicionam-se mutuamente mas não se reduzem uma à outra. O cerne da pobreza não está em não ter simplesmente, mas em ser coibido de ter e de ser. Por isso pobreza é injustiça, e esta consciência é decisiva para seu enfrentamento” (1996, p. 16). Para Demo o processo de organizar-se para conquistar seu espaço, para gerir seu próprio destino, para ter vez e voz, é o abecê da participação. A partir dos depoimentos e das minhas observações nas entidades pesquisadas utilizarei a escala de participação proposta por Marcelo Souza (2004) para verificar o grau de participação dos catadores nas duas associações, ou seja, investigar se existe 112 nessas associações uma participação autêntica, pseudo-participação ou nãoparticipação. Os catadores da Cooperav, desde longa data, mobilizam-se para concretizar um projeto construído com organizações religiosas e sociedade civil. Embora a gratidão aos fomentadores do movimento esteja presente nos discurso dos catadores, as conquistas são reconhecidas como uma negociação travada dos próprios catadores com diferentes grupos da sociedade e não como uma concessão ou boa vontade de alguém. O conhecimento da história do grupo, o engajamento nas atividades proposta e a esperança que a cooperativa melhore as condições de vida de todo o grupo comprovam que uma participação autêntica está sendo testada nessa incipiente cooperativa. Essa questão fica evidente nos depoimentos que se seguem: O nosso grupo de catadores foi organizado pela irmã Elizabeth. Todas as quartas-feiras os catadores participavam de reuniões no salão da paróquia. A irmã sempre convidava a gente, porém muitos desistiram, achavam que nunca ia pra frente. Com seis meses de luta a gente conseguiu oito carrinhos de geladeira. Enquanto o galpão não era construído a gente vendia nosso material para os depósitos. Aos pouco a irmã também comprou o terreno. Ela então recorreu ao padre da Paróquia, padre Fayros, e os dois conseguiram dinheiro para a construção do galpão. Faz um ano que nós estamos aqui. Aqueles que perseveraram como eu, a Lúcia, a Melândia, o Marcos meu filho vimos muitas conquistas. A Dona Cristina da Cáritas pagou um curso sobre cooperativa pra gente. [...] É um pouco difícil a organização. Mas aqui a maioria é quem manda. (Chaguinha, Cooperav) A Cristina e outras pessoas da Cáritas são uma benção com a gente. Se não fossem elas nós não tínhamos conhecido e aprendido tantas coisas. Toda a viagem que eu já fiz pra Brasília, pra Crateús, Porto Alegre foi graças a Cáritas. Eu aprendi muita coisa e conheci muita gente diferente. Na cidade de Porto Alegre falei com a ministra Marina Silva, pessoa muito boa. Eu sei que foi bom demais! Nos encontros e viagens que fazemos a gente aprende sobre os direitos, sobre como conviver com as pessoas. (Huga, Cooperav) As irmãs me deram apóio e graças a Deus [...] Elas dizem que o depósito é nosso porque somos nós que tomamos de conta dele. A cáritas também nos apóia, basta dizer que não pagamos nada para participar das reuniões, nem o ônibus. A Dona Cristina e as outras são pessoas muito boas. Até parece que vieram do céu. (João, Cooperav) O padre Fayos, o Padre Junior e a irmã Elizabeth deram muito apoio ao nosso grupo. (Keké, Cooperav) Um dia recebi na minha casa a visita da irmã Elizabeth me convidando para participar de um grupo de catadoras. Ela é nosso anjo da guarda esteja onde estiver. Sempre lutou para o nosso bem.(Huga, Cooperav) Dentre as oito categorias da escala da participação visualizo que a categoria parceria está mais adequada para o atual estágio do grupo da Cooperav. A presidência da 113 cooperativa e os catadores colaboram, em um ambiente de diálogo e razoável transparência, na elaboração dos projetos e implementação das decisões tomadas pela maioria dos componentes. Apesar dos limites e dificuldades, do grupo do Parque Santa Rosa, está sendo construído na cooperativa um planejamento participativo contemplando os três componentes básicos proposto por Demo (1996, p.42-48): formação da consciência crítica e auto-crítica na comunidade; formulação de uma estratégia concreta de enfrentamento dos problemas; necessidade de se organizar. Na Acores o processo da participação autêntica não prevaleceu no grupo. Mas detectei uma pseudo-participação alternando a categoria informação e consulta. Na postura do Estado em relação ao grupo prevaleceu a informação: os catadores foram convidados para formar uma associação; receberam informações sobre o projeto da Setas; foram transferidos de uma secretaria para outra e por fim foram abandonados. Mas o espaço de participação na esfera micro, ou seja, na associação foi criado. A presidente da Acores é uma catadora e existe o espaço de diálogo entre eles, até por morarem de forma coletiva. Os catadores sempre são consultados. Acredito que um técnico social pudesse colaborar para a retomada do grupo, a falta de um mediador dos conflitos levou alguns catadores ao julgamento equivocado que um depósito é melhor que uma associação pela ausência do conflito. A falta de autonomia financeira também contribui para a evasão dos catadores. Mas os catadores que permanecem acreditam que é possível continuar. O catador Glauber arrisca na sugestão e dois outros catadores emitem seus pareceres sobre a mesma questão: Mas se todos se organizassem e colocassem o material não faltava dinheiro. Depende dos recicladores se unir, se juntar e trabalhar pra botar dinheiro aqui dentro. Porque só um, dois, três coletores, durante quinze dias, não consegue grande quantidade de material. Hoje só tem quatro coletores trabalhando. (Glauber, Acores) Mas muitos pensam que essa história de grupo não vai dar certo. Eles preferem o depósito porque lá não tem briga. (Chichi, Acores) Nós lutamos muito com a Nilda para conseguir esse ponto e os carrinhos que, foram trazidos um em cima do outro, a pé, do Tancredo Neves. Nós não trabalhávamos quando tinha plenária. A gente ia com Nilda 114 para as reuniões. O povo exigia que levasse todos os sucateiros. No início a gente acreditava que as coisas iriam melhorar, mas depois vimos só conversa e promessa que não cumpria.(José, Acores) Todos catadores entrevistados relataram que o trabalho da catação passa por momento de crise: tanto para encontrar material, pois a produção caiu, quanto a queda dos preços. Não que o consumo tenha diminuído, mas foi a comercialização que aumentou. Os empresários, desde os donos de um pequeno mercantil aos donos de rede de supermercado, querem lucrar com a venda de seu lixo. Nem as escolas das periferias doam mais o material reciclável. Os depoimentos que se seguem são bastante elucidativos: A sucata piorou nesse dois últimos. [...] O lixo diminuiu muito. [...] No passado eu conseguia dois ou três carrinhos por dia, hoje eu só consigo um e com muita dificuldade. O dinheiro também diminuiu, o menos que eu ganhava na reciclagem era vinte, trinta ou quarenta reais por dia. Hoje esse mesmo valor é apurado na semana. (João, Cooperav) O material baixou de preço e muitos comerciantes não fazem mais doações. Agora os comerciantes querem também vender o material pra aumentar o seu dinheiro. Aqueles que já têm não querem ajudar a gente. Hoje em dia tem muitos catadores e as coisas são difícil de encontrar. Mas é só o que eu seu fazer. Porque já estou velha e ninguém que me dar um emprego. (Chaguinha, Cooperav) Parei porque o tempo piorou, a produção caiu, o preço caiu. Na época eu tirava uns R$ 200,00 ou R$ 250,00 com facilidade. Hoje como o preço baixou tem que trabalhar muito pra tirar esse mesmo valor (José, Acores) A queda dos preços dos materiais recicláveis é resultado da desvalorização do dólar. Segundo o Informativo On-line FL&C ( 05 de agosto de 2005) não só os investidores e exportadores ficam de olho na variação do dólar, mas os catadores de lixo também fazem o mesmo. A maioria dos materiais recicláveis tem cotação internacional: latinhas, garrafas, papel e papelão. O alumínio, por exemplo, tem cotação pela London Metals Exchange e vale para todo o mundo. Nos últimos doze meses, no Brasil, o dólar despencou 25%. A queda repercutiu logo no bolso dos catadores que viram seus rendimentos diminuírem. Nas associações identifiquei vários baixos indicadores das condições de vida dos catadores: escolaridade, alfabetização, desigualdade social, emprego formal. Muitos são os catadores que se encontram com profundos problemas financeiros, condições precárias de moradia. Famílias inteiras dos catadores são vulnerabilizadas pela pobreza 115 e exclusão. Mas a catação organizada tem demonstrado ser um caminho possível para a superação da exclusão e construção da cidadania. 116 Pesquisadora, Pe. da Paróquia e os catadores do Parque Santa Rosa Se estamos aqui reunidos estou contente. Penso com alegria que tudo quanto escrevi e vivi serviu para nos aproximar. É o primeiro dever do humanista e a fundamental tarefa de inteligência assegurar o conhecimento e o entendimento entre os homens. Bem vale haver vivido se o amor me acompanha. (Pablo Neruda) Aqui hoje terminam estas viagens nas quais me acompanhastes através da noite e do dia e do mar e do homem. De tudo quanto vos disse vale muito mais a vida. (Pablo Neruda) 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS É inenarrável a alegria que experimento com o final deste trabalho, final, entretanto que aponta para uma nova partida. Afinal “o final é algo relativo, pode ser um ponto finito no espaço, uma chegada, mas também o começo de uma jornada infinita – uma eterna partida”. (Santos, 1999, p. 105) Apesar das dificuldades vivenciadas e já comentadas nesse trabalho, a pesquisa me proporcionou um aprendizado através do contato com os catadores de lixo. Às vezes me questionava quem estava mais se beneficiando com a pesquisa: eu ou os catadores? Uma outra pergunta, também, não saia do meu pensamento: qual a aplicabilidade final da minha pesquisa? Compartilho com vocês que atravessei esse caminho, como diz o poeta, acompanhada pelo amor e acreditando que “vale muito mais a vida”. O respeito à vida e à condição humana balizaram este trabalho. A escolha de colocar as fotos dos catadores em cada início de capítulo desta dissertação é para lembrar que o ser humano, preferencialmente, o pobre, o excluído deve ser o foco central das produções acadêmicas e do compromisso político. As imagens retratam o sofrimento, a dor, a revolta, mas também a alegria, a esperança e espírito de luta contidos nos semblantes dos catadores. Essa força transmitida pelos sujeitos da pesquisa impulsiona-me a não considerar essa pesquisa encerrada. Assinalo, aqui, o desejo de prosseguir ampliando e aprofundando o estudo em tela. No primeiro contato com os catadores, no período da graduação, prevaleceu a noção de um trabalho que desqualificava o indivíduo, associado a um ambiente de “nocividade”. No decorrer da pesquisa com o conhecimento mais aprofundado, através das leituras feitas e do contato com os catadores organizados, desmitifiquei essa idéia inicial que prevalece, inclusive, como justificativa, dos gestores públicos, para desconsiderarem esses trabalhadores. A prova é que nem Estado, nem Prefeitura efetivaram políticas públicas para essa categoria profissional e ignoraram as 118 experiências da sociedade civil que contribuiriam para a ampliação da esfera pública na cidade de Fortaleza. Assim como nos trabalhos de Juncá (2001), Gonçalves (2005), Muñoz (2000), este texto reflete que no trabalho com o lixo o catador(a) garante junto a sobrevivência física a sobrevivência da identidade de trabalhador(a). Enquanto trabalhadores são imprescindíveis na cadeia de reciclagem do país. As experiências aqui apresentadas evidenciam a importância central do trabalho, não só no nível econômico, mas sobretudo no nível simbólico. Nos relatos dos catadores do Parque Santa Rosa percebe-se a mudança da auto-estima após a inserção na cooperativa. Segundo os depoimentos dos catadores os moradores da cidade têm a compreensão que o catador(a) suja a rua. Essa idéia deve também ser desmitificada, pois ao contrário do julgamento dos moradores da cidade, os catadores(as) são profissionais que, limpam a rua e precisam ser apoiados com políticas públicas. Nos anos 90, a desestruturação do mercado de trabalho é evidenciada pelas altas taxas de desemprego e pela ampliação das ocupações não assalariadas. O cenário atual é de um mundo sem emprego (Santos, 1999), de crise que pode se transformar em tempo de integração através de iniciativas e movimentos populares que criem espaços de autonomia onde seja possível pensar formas de transformação social alternativas às do sistema capitalista, calcado na desigualdade social, no consumismo e na destruição do meio ambiente. As associações e cooperativas organizadas pelos catadores de lixo nos últimos anos no Brasil constituem-se como exemplos de iniciativas que propiciam a criação de novas alternativas de trabalho e, ao mesmo tempo, o fortalecimento de valores como: autonomia, solidariedade, cooperação, auto-estima, organização destes trabalhadores. Essas organizações apresentam várias vantagens, além do exercício da autonomia, elas possuem uma estratégia fundamental de unir o político ao econômico. 119 A organização de alguns grupos na cidade de Fortaleza já alcança alguns resultados positivos. Um deles é a difusão da problemática do lixo e do catador de lixo na imprensa. Nos últimos anos o tema foi exposto, várias vezes, ao público nos jornais O Povo e Diário do Nordeste e na arte, como foi o exemplo da exposição “Heróis do Papelão” de Descartes Gadelha, no Centro Cultural Oboé, no mês de maio de 2004. Mas a maior conquista foi o comprometimento da prefeita Luizianne Lins com as reivindicações dos catadores. Graças à organização dos grupos e ao apoio de diversas entidades que participam do Fórum, esses protagonistas do lixo estão conseguindo algumas vitórias e suas dificuldades sendo discutidas na sociedade. O fenômeno da catação não é recente, mas está em franco crescimento. As políticas, até agora, implementadas em Fortaleza refletiram na valorização da reciclagem pela indústria, mas na desvalorização do trabalho do catador. A desvalorização do ser humano cria grupos de indivíduos excluídos da produção, da gestão e do usufruto dos bens da sociedade e resulta num relaxamento em relação a determinados princípios morais e éticos fundamentais para a regulação de uma sociedade que pretende garantir aspectos básicos para uma vida cidadã. Por isso, assumo a postura de Santos (1999, p. 108): “este é um compromisso mais que social é de resgate da compaixão perdida, da solidariedade inexistente, de uma ética da vida, uma eco-ética” no apóio aos grupos dos catadores. O papel do Estado é fundamental na organização e financiamento dos grupos dos catadores, como também na oferta dos demais serviços sociais, prestados por redes de atenção e proteção social. Várias são as necessidades dos catadores: moradia, escolaridade, acesso à justiça, etc. O nível de escolaridade dos catadores dificulta o processo de aprendizagem de novos métodos e posturas e no gerenciamento das associações/cooperativas. Detectou-se que a escolaridade é de suma importância para formalização dos grupos, pois ao mesmo tempo em que o catador aprende a separar melhor, a coletar melhor, a fazer cálculos de peso e preço, ele melhora o exercício da profissão e do gerenciamento do seu empreendimento. 120 Gostaria de fazer uma observação em relação às visitas as associações dos(as) catadores(as). Nessas visitas deparei-me com um grupo forte de mulheres na liderança: Dona Isolina na ASMOCI, no município de Maracanau; Dona Nete na Sociedade Comunitária de Reciclagem de Lixo do Pirambu - SOCRELP, no bairro do Pirambu; Dona Nilda na Associação Ecológica dos Coletores de Materiais Recicláveis da Serrinha e Adjacência – ACORES, no bairro da Serrinha; Dona Jucilene na Cooperativa dos Trabalhadores Autônomos da Seleção e Coleta de Material Reciclável Ltda – COOSELC, no bairro Barroso; Dona Musa na organização dos catadores de lixo no bairro Parque Santa Rosa; Expedita no Centro Comunitário Dom Lustosa, no bairro da Aldeota; Dona Rita no Centro Comunitário São Francisco, no Quintino Cunha. Talvez, encontre-se, aqui, nessa observação um veio para futuros estudos. As mulheres são minoria na categoria do trabalho com o lixo. Essa constatação é feita numa simples vista nas ruas de Fortaleza. A presença masculina nessa atividade é predominante, pois exige muita força e resistência. Entretanto, as mulheres são maioria nos grupos organizados dos catadores. Na pesquisa pude confirmar uma idéia da socióloga Carla Calvet – cedida numa entrevista no dia 08 de junho de 2005 – que a ação de organização dos grupos dos(as) catadores(as) tem uma influência muito grande de organizações religiosas como: Cáritas Diocesana, Congregações Religiosas, Pastoral de Rua, Pastoral do Imigrante, Movimento Shalom, Centros Espíritas. Os fomentadores das organizações, na maioria das vezes, são movidos por motivações de solidariedade e religiosidade. Em se tratando de questões religiosas as mulheres respondem bem mais a esses apelos do que os homens, o que favoreceu as catadoras se organizarem com mais facilidade. Elas também são mais pacientes e raramente têm problemas com bebidas. Acredito que o sucesso da Cooperav deve-se ao fato da maioria do grupo ser formado por mulheres. Geralmente os homens têm uma resistência à organização principalmente nessa categoria. Eles se sentem livres nessa atividade sem os grilhões do dia, hora e lugar marcado para o trabalho e de alguém mandando neles. Eles realizam o percurso que querem. Embora a catação seja uma atividade desgastante fisicamente, ela proporciona uma sensação de liberdade. Os homens também se disponibilizam menos 121 para as reuniões. Ou estão no trabalho, ou descansando da atividade, ou dormindo, ou bebendo com os amigos. Talvez a maioria masculina na Acores favoreceu a falta de êxito da associação. Claro que a presença de um técnico social facilitaria a promoção de encontro e articulação dos grupos dos catadores. Não defendo que a feminilidade ou masculinidade seja preponderante para o êxito dos grupos, apenas um facilitador. No universo de cinco mil catadores em Fortaleza, a minoria deles está ligada à associação de moradores ou cooperativa. A grande maioria vincula-se aos sucateiros, chamados por eles de deposeiros, que cria um vínculo empregatício com os catadores na maior parte das vezes, sem respeito nenhum a legislação do trabalho, explorando o trabalho infantil e tolerando material advindo de roubo. Os interesse dos sucateiros são distintos dos interesses dos catadores, por isso defendo a intervenção do poder público junto aos catadores que tentam se congregar em associações ou cooperativas. Contudo, embora formado por vários grupos, com suas diferenças e especificidades, os catadores assemelham-se no desejo e na luta pela sobrevivência e cidadania. O catador de lixo, sendo um colaborador tanto ambiental quanto econômico, deve ser considerado como um trabalhador que precisa ser apoiado por políticas públicas e reconhecido pela sociedade. Nesta conquista destaco a importância da participação na construção da cidadania e de uma nova ordem societária a partir de pequenos grupos. As associações e cooperativas têm sido uma forma de organização dos catadores de lixo para a expansão de seus direitos sociais e para o exercício da participação. Nos depoimentos percebe-se que o fato dos catadores participarem das decisões e da delegação do poder na entidade, aumenta sua responsabilidade com o resultado alçando pelo grupo. Os catadores que iniciaram na Acores tiveram receio com a responsabilidade e não continuaram na empreitada. Já a maioria que iniciou na Cooperav continua no grupo e atingiram resultados favoráveis. Nesta pesquisa não foi possível investigar os reais motivos da desistência dos catadores da Acores. As suposições apontadas sobre a desistência surgiram dos relatos dados pelos atuais coletores. 122 Apesar de algumas derrotas descobertas nesses grupos, principalmente na Acores, verifico que perpassam nesses espaços coletivos um grau de pseudo-participação e participação autêntica (Souza, 2004). Na minha concepção esses grupos possibilitam, através da conquista da autonomia, o surgimento de cidadãos conscientes, responsáveis e participantes tanto numa esfera micro quanto numa esfera macro da sociedade. Considero que a gestação dessas organizações é uma experiência da participação no seu grau mais alto: na autogestão. Embora nem a Acores nem a Cooperav tenha chegado a esse grau de participação, vislumbro que a capacitação dos catadores, o financiamento inicial por parte do Estado e o apoio da sociedade civil possibilitará um grau de participação autêntica, como nos moldes de Souza. Para Rech (2000, p.69) a nossa cultura e especificamente a nossa legislação são muito conservadoras no que se refere à experiência de produção coletiva. Prevalece no país o princípio dos direitos e da propriedade privada individuais sobre os direitos da coletividade. Somente as Cooperativas de Produção Agropecuária (CPAs), vinculada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), seria o modelo mais próximo que existe no Brasil do que seria uma cooperativa autogestionária. As iniciativas autogestionárias teriam as seguintes características: ...quem manda e viabiliza o que deve ser feito são as pessoas que também realizam a atividade produtiva. O exercício do poder é igualizado e vinculado ao direito de um voto por pessoa, independentemente do capital investido. [...] o que pode ser arrendado é apenas o capital. Não há, em principio, arrendamento de mão-de-obra. [...] os associados são responsáveis pelos riscos solidariamente, mas o ganho é destinado às próprias pessoas que realizam a atividade produtiva proporcionalmente ao seu trabalho. [...] o que ocorre é a subordinação do capital ao benefício de todos os que estão envolvidos na atividade produtiva. [...] a propriedade dos meios de produção é condominal onde cada pessoal tem uma parcela ideal dos mesmos. [...] a posse dos meios é também coletiva... As experiências de iniciativas autogestionárias são escassas no Brasil, mas esses modelos podem ser construídos aqui. Talvez nos grupos de catadores que se formam em Fortaleza possam ser incentivadas essas experiências já que existe iniciativa de organização por parte de alguns catadores. Os gestores públicos devem seguir a Constituição Brasileira de 1988 que consagrou a participação popular na “gestão” da coisa pública e construir políticas públicas que 123 todos os atores envolvidos participem de forma ativa. Num trabalho com os resíduos sólidos, por exemplo, os catadores devem opinar e cooperar na construção das propostas e das definições que dizem respeito ao seu ambiente de trabalho. Registro que o FEL&C é um ator que permeia a luta por inclusão da questão do lixo e dos catadores na agenda pública para assim, posteriormente, regulamentar como política pública. Utopia que é almejada sem pestanejar. O percurso realizado pelos catadores de lixo de Fortaleza e do Brasil aponta uma projeção otimista com relação ao futuro. O reconhecimento profissional, o apoio da sociedade civil e o envolvimento do poder público possibilitaram uma reclassificação do significado do catador de lixo para trabalhador de materiais recicláveis. A transformação da sociedade, a partir do cuidado com o meio ambiente e com o ser humano, é responsabilidade de cada um de nós. Através da construção desta dissertação sinto-me particularmente responsável pela luta dos catadores de Fortaleza e convidada a aceitar o convite de Bandeira: Meu nome Marcos Bandeira Meu estado é o Ceará Conjunto Palmeira o bairro Sou artista popular Eu não sou catador Mais com eles eu estou Pra luta continuar Vamos juntos companheiros Lutar contra a opressão Combater os poderosos Que se julgam cidadão Na luta com opressores Devemos ser catadores A vitória é o coração Concluindo meu cordel Pois este é o segundo Francisco do Jangurussu Seu Assis e seu Raimundo Dinha e também Bonfim, O catador vence tudo. (Trechos da Literatura de Cordel de Antonio Marcos Bandeira) Bibliografia ABNT. Associação Brasileira de Normas Técnicas. NBR 10004: Resíduos sólidos – classificação, set. 1987. ABREU, Maria de Fátima. Do lixo à cidadania: estratégias para a ação. Brasília: Caixa, 2001. AMMANN, Safira bezerra. Participação social. São Paulo: Cortez e Moraes Ltda, 1978. ARAGÃO, Liduina Gisele Timbó. 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O que você acha sobre a participação das pessoas no início do grupo e hoje? 4. Como se deu a organização dos catadores? 5. Houve alguma mudança nas condições de trabalho depois da organização? Quais? 6. Melhorou a renda? 7. Você identificou alguma ajuda ou apoio de fora no momento da organização? 8. Quais as dificuldades encontradas para a organização do grupo? 130 ANEXO II CARTA DE CESSÃO Fortaleza, (data) Destinatário, Eu, (nome, estado civil, documento de identidade), declaro para os devido fins que cedo os direitos de minha entrevista, transcrita e autorizada para leitura (data) para que Rúbia Cristina Martins Gonçalves possa usá-la integralmente ou em partes, sem restrições de prazos e citações, desde a presente data. Da mesma forma, autorizo o uso de terceiros para ouvi-la e usar citações, ficando vinculado o controle à Rúbia Cristina Martins Gonçalves, que tem sua guarda. Abdicando de direitos meus e de meus descendentes, subscrevo a presente. ______________________________ Nome e assinatura do entrevistado 131 ANEXO III Fotos dos catadores da Cooperav e do Galpão de Estocagem e Seleção de Materiais Recicláveis do Parque Santa Rosa.