“Sozaboy: a novel in rotten English”, de Ken Saro

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“Sozaboy: a novel in rotten English”, de Ken Saro
“Sozaboy: a novel in rotten English”, de
Ken Saro-Wiwa: os sintomas de uma
modernidade pos-colonial e uma
alegoria da soberania nacional
nigeriana
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“Sozaboy: a novel in rotten English”, by Ken Saro-Wiwa: the symptoms of a
post-colonial modernity and an allegory of the Nigerian national sovereignty
Celina de Oliveira Barbosa GOMES2
Ângela Lamas RODRIGUES3
RESUMO: Na Nigéria, dentre outras formas de prescrição, a modernidade se manifestou pelo fomento à
constituição de um estado-nação pós-colonial pautado em um projeto nacional, cujo motor era mantido pela
petro-economia. No entanto, a formação desta nação desconsiderava as peculiaridades de grupos étnicos que,
apesar de estarem arrolados nestes planos, no que tange especialmente à sua participação na captação de recursos
para a manutenção nacional, não seriam beneficiados por este sistema de integração de fronteiras, já que seus
reais contextos de sobrevivência haviam sido descompensados pela colonização ou não conheciam o conceito de
contemporaneidade. Isto suscitou diferentes conflitos entre estes coletivos e o estado, caracterizando confrontos
como o da Guerra Civil entre a Nigéria e a Biafra, em 1967. Este trabalho pretende apresentar nuances do
romance “Sozaboy: a novel in rotten English”, de Ken Saro-Wiwa, como indícios da devastadora entrada de
populações, como a de Dukana, na modernidade, do período traumático que fora este momento e a complexidade
da perda advinda desta iniciativa, configurando a alegoria da construção de uma soberania nacional pós-colonial
que, na realidade, revela uma crise política e social da pós-independência nigeriana. Para isso, serão consultados
teóricos como Na’Allah (1998), Quayson (1998), Eke (2000), Lincoln (2010), entre outros.
PALAVRAS-CHAVE: “Sozaboy: a novel in rotten English”; Modernidade pós-colonial; Alegoria nacional.
ABSTRACT: In Nigeria, among other forms of prescription, the modernity was manifest by promotion of the
establishment of a post-colonial nation-state guided by a national project, whose engine was maintain by petroeconomy. However, the formation of this nation disregarded the peculiarities of ethnic groups that, despite being
listed in these plans, in reference especially in the participation in capitation of resources for the national
maintenance, would not benefit by this border integration system, as that their real survival contexts were
uncompensated by colonization or did not know the concept of contemporaneity. This evoked different conflicts
between these different collectives and the state, featuring clashes as the Civil War between Nigeria and Biafra
in, 1967. This work intends to present nuances of the novel "Sozaboy: a novel in rotten English", by Ken SaroWiwa, as evidences of the devastating incoming of the populations, such as Dukana’s in modernity, of the
1
Artigo advindo de excerto da dissertação de mestrado sob a referência “GOMES, Celina de Oliveira Barbosa.
Desalienação e a configuração do Bildungsroman em Sozaboy: a novel in rotten English, de Ken Saro-Wiwa.
Londrina: UEL, 2015.”
2
Instituto Federal do Paraná – IFPR – Departamento de Linguagens e Estudos Literários. Assis Chateaubriand –
Paraná – Brasil. CEP: 85935-000. Email: [email protected]
3
Universidade Estadual de Londrina – UEL – PR. Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas. Londrina –
Paraná – Brasil. CEP: 86.057-970. Email: [email protected].
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traumatic period that was this moment and complexity of the loss arising from this initiative. This, in order to set
up the allegory of building of a post-colonial national sovereignty that, in reality, reveals a political and social
crisis of the Nigerian post-independence. Therefore, will be consulted theorists such as Na'Allah (1998),
Quayson (1998) Eke (2000), Lincoln (2010), among others.
KEYWORDS: Postcolonial modernity; National allegory.
Introdução
Ao arrolar atualmente os grandes produtores de petróleo do mundo, é bem possível
que a Nigéria ocupe lugar de destaque dentre os melhores colocados, o que, a princípio,
sugere certo caráter desenvolvimentista e progressista daquele país, bem como insinue
satisfatórias e modernas condições de vida da maioria de suas populações. No entanto, esta
relação entre fartura mineral e bem-estar social não é diretamente proporcional naquele
contexto e isto pode ser visto quando se considera a situação de povos que não só não foram
considerados na partilha das riquezas advindas da exploração petrolífera, como também foram
negligenciados quanto à preservação de seus aspectos culturais, políticos, ambientais e
humanos, apesar de estarem “relacionados” em um dito projeto nacional de construção de um
Estado-nação pós-colonial nigeriano.
Além destas arbitrariedades, outros problemas assolavam as pequenas populações
destas cercanias, a saber, os próprios conflitos étnicos, políticos e regionais que motivaram
confrontos como a Guerra Civil entre a Nigéria e Biafra, no ano de 1967, embate provocado,
entre outras coisas, pela declaraçãoda Região Leste Igbo como a República da Biafra, pelo
tenente-coronel Chukwuemeka Odumegwu Ojukwu, o que mobilizou tropas federais para
“conter os rebeldes” e segregou minorias, como os Ogoni, entre os dois grupos combatentes.
E é nesta esterira que o romance “Sozaboy: a novel in rotten English”, de Ken Saro-Wiwa se
assenta, pois são estas minorias, localizadas no Delta do Níger e no limiar dos confrontos, que
são negligenciadas e exploradas. São os chamados autóctones que o processo de
modernização desejava também “arrastar”. Isto porque, no intento de se criar um contexto
nacional articulado nigeriano, muitas iniciativas foram perpetradas pelo governo estatal a fim
de integrar fronteiras, contudo, esta integração se dava de forma violenta e forçada,
desconsiderando as particularidades culturais destas minorias que deveriam ser
convenientemente “exorcizadas” (no pleno sentido da palavra, inclusive, de seus lugares de
origem, estes ricos em petróleo) para que as maiorias étnicas, eliminando seus antagonismos,
tentassem dar início à “cidadania na Nigéria”. Por não quererem dobrar-se ao mando estatal,
em nome do suposto “nacionalismo”, populações como os Ogoni, minoria étnica defendida
por Saro-Wiwa em sua militância, foram configuradas como bode expiatório. Esta condição
se explicava pela situação geográfica do grupo, que se encontrava isolado dos demais no
Delta do Níger, valendo-se de hábitos muito particulares, pertinentes à sua comunidade. Esta
circunstância lhes relegou à subjugação, quando ficaram entre os secessionistas da Biafra e as
tropas federais, bem como à falta de representação e à suscetibilização à economia nigeriana e
aos seus mandos, o que caracterizava uma aniquilação iminente desta população, numa cruel
articulação genocida. Em função disso, Ken Saro-Wiwa tornou-se testemunha e ativista da
causa Ogoni. Como intelectual público, usou sua voz e escrita para denunciar a tragédia que
ameaçava aqueles por quem falava, delatando não só as mazelas de uma determinada região,
mas a corrupção e subserviência ao mando estrangeiro que ainda cooptava o poder estatal de
seu país (LINCOLN, 2010). E Saro-Wiwa o podia fazer, pois possuía uma condição especial.
Segundo Lincoln (2010), seu testemunho era forte e autêntico, porque ele falava de um local,
ao mesmo tempo, dentro e fora de um espaço traumático, pois, descendente dos Igbo, estava
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nas terras onde eclodiu o conflito da Biafra e lutou, no início do confronto, ao lado das tropas
federias. Podia, portanto, ir e voltar deste espaço de trauma, o que possibilitava sua tradução
da experiência dentro de uma batalha emblemática de tempos atuais, dentro de termos que se
fazem realmente entender e serem ouvidos.
Nesta perspectiva, “Sozaboy: a novel in rotten English” se estabelece como uma
alegoria, uma representação do viés de Saro-Wiwa acerca da situação de anulação das
minorias na Nigéria e da degradação de suas instâncias ambientais, culturais e humanas em
favor da construção de uma soberania nacional que privilegia as coligações de maior
representatividade e em colaboração a uma pseudo-modernidade pós-colonial que, na
realidade, é sustentada por grupos – do qual o próprio governo faz parte - em
subdesenvolvimento, advindos de um contexto de colonização, que não têm dinheiro, nem
experiência para manter o poder. Este mesmo ambiente colonial estimulou, inclusive, a então
situação de instabilidade das sociedades pós-coloniais para justificar, mesmo em um ideário
de (suposta) independência, a influência estrangeira (EKE, 2000).
Em “Sozaboy: a novel in rotten English”, especialmente pelas reflexões do
protagonista Mene, apelidado de Sozaboy, Saro-Wiwa vai revelar os efeitos desta
modernidade pós-colonial em Dukana, Pitakwa e outras cidades vizinhas que têm seu ponto
forte de destruição caracterizado com a eclosão da guerra, mas que já apresentam indícios de
ruína pela corrente desigualdade social, pela corrupção, pela falência da liderança e pela
degradação ambiental. Mais do que isso, em uma explícita correspondência entre criador e
criatura, o romance vai revelar a desalienação de Mene e sua politização em favor das
minorias, fazendo-lhe compreender os reais motivos do confronto bélico e a improcedência
deste na construção de uma soberania nacional de uma Nigéria da qual ele sabe não fazer
parte ou acredita mesmo não existir.
Aqui, portanto, se evidencia a forma como a modernidade passa a influenciar, de certa
maneira, a identidade do indivíduo (e porque não dizer, haja vista a equivalência entre SaroWiwa e o protagonista Mene) e do escritor, fazendo com que ele direcionasse o foco de sua
produção para a situação política, social e cultural nigerianas, determinadas pela ação de
interesses gestados no bojo de uma burguesia nacional preocupada com a economia e,
consequentemente, com esta mesma modernidade, uma questão que será discutida na seção
seguinte.
“Sozaboy: a novel in rotten English”: uma alegoria da soberania nacional nigeriana
Para bem entender como o romance “Sozaboy: a novel in rotten English”, de Ken
Saro-Wiwa se propõe como uma “alegoria” da sociedade nigeriana pretendente a uma
soberania nacional, bem como de que maneira esta pretensão acabou por delinear aspectos de
uma modernidade pós-colonial frustrada que marcou a identidade de muitos indivíduos
daquele país, é preciso, antes de tudo, tomar uma das muitas definições para o termo. Segundo
Ceia (1998), “uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através
de uma ilação moral, [...] a alegoria reporta-se a uma história ou a uma situação que joga com
sentidos duplos e figurados, sem limites textuais [...].” Mediante este conceito que, diferente
da metáfora, estende-se a expressões ou a textos completos, passa-se a traçar um paralelo
entre a história narrada por Saro-Wiwa e a história política, social e, por que não dizer, étnica
da Nigéria.
Considerando brevemente o enredo do romance, a história, narrada em primeira
pessoa pelo protagonista Mene, Sozaboy, inicia-se apresentando um cenário de aparente
alegria dos habitantes de Dukana, uma pequena cidade da Nigéria, os quais se regozijam pela
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mudança de governo – de civil para militar – e pela expectativa em um futuro melhor, onde as
condições de vida serão mais adequadas a todos, provendo condições de sobrevivência digna,
de segurança e de finalização das desigualdades sociais e da exploração. O próprio
protagonista vislumbra outras oportunidades para si e para a sua família, já que está trabalha
como auxiliar no transporte de passageiros e está em vias de fazer os exames para fazer sua
carteira de habilitação. Homens como o famigerado Inspetor Okonkwo, membro do governo
anterior, eram símbolos de um poder corrupto. No entanto, o que Mene e muitos convivas
seus não sabiam era que o novo governo seria tão ou muito pior do que o anterior e que
figuras como o Inspetor Okonkwo (que, por sinal, permaneceu no poder) seriam recorrentes
em sua administração. Nesta situação, questões como a cobrança por serviços básicos e o
suborno ficaram cada vez mais comuns. A alegria de outrora dera lugar ao desespero.
Com a crescente opressão governamental, o medo foi coagindo o povo. Muitos
voltavam para suas aldeias de origem em função de especulações sobre torturas e assassinatos
perpetrados contra quem se opusesse ao poder estatal, bem como por não poderem cumprir
com as exigências impostas por ele. Estas eram mediadas pelo representante popular, Chief
Birabee, que cooptado pelo mando governamental se sujeitava à autoridade dele e reproduzia
todas as suas ordens à população, bem como cobrava dela impostos e outros poucos bens que
ela possuía. Esta, com os recursos já escassos, muitas vezes incorriam na miséria, passavam a
vida sem obter sua propriedade e viviam sempre forçados por ameaças de “comprometimento
da paz”. Os habitantes de Dukana acreditam que estas articulações favoreciam unicamente ao
Chief Birabee, o que, de fato, ocorria, já que, mediante ao contexto administrativo nacional
que se estabelecia, ele mesmo queria assegurar sua proteção e sobrevivência, mesmo que
fosse à custa da aniquilação de sua comunidade. Esta aniquilação, inclusive, se estendia aos
aspectos culturais, já que, em função da influência colonizadora, muitos dos costumes, como
as danças, as apresentações com tambor e certas práticas religiosas foram desencorajadas,
negligenciadas, esquecidas e até proibidas pelo novo governo, o que também foi favorecido
pela difusão de religiões fundamentadas no cristianismo, por exemplo.
Mene tinha pretensões de obter sucesso profissional como motorista, pois esta era uma
das poucas funções com remuneração fixa na região. Desejava terminar seus estudos e
aperfeiçoar a língua inglesa, pois acreditava que esta, como idioma de prestígio, o inseriria em
outros contextos onde os tentáculos da corrupção não o alcançariam. O transporte com o qual
trabalhava era ironicamente denominado de “Progress” (Progresso). Este era o veículo que
conduzia pessoas a Pitakwa, uma cidade maior e um pouco mais desenvolvida, próxima a
Dukana. Lá, Mene frequentava um bar, o “African Upwine Bar” ou “Diobu New York”
(referência ao elemento norte-americano), onde conheceu Agnes, garçonete com quem se
casaria tempos depois.
Após certo tempo na situação de opressão em que encontravam, os habitantes de
Dukana esqueceram-se dos sofrimentos advindos das cobranças abusivas de impostos e
mesmo os personagens mais críticos, como Bom, Duzia e Kole, os mais velhos e amigos de
Sozaboy, acabaram considerando Chief Birabee um “bom administrador”, pois, apesar de
explorá-los, este conseguiu “projetar o nome de Dukana no cenário nacional, segundo ele. O
sentimento de alienação era geral.
Eis que o problema da guerra, a saber, o confronto entre o estado federal da Nigéria e a
Biafra (1966-1970), que vai sendo explanado gradativamente no romance, começa a ser
divulgado e a preocupar a população de Dukana. Zaza, um ex-veterano de guerra, narra a
todos suas experiências do fronte de batalha e as apresenta em tom épico; este personagem é
conhecido por ter uma voz “doce”, agradável de ouvir e isto não se dá por acaso. Zaza é
responsável por cantar o lado “bonito” e heroico do conflito armado (se é que ele existe),
motivando outros, como Mene, a se enveredarem pelo mesmo caminho, se instalando no seio
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da guerra como soldados. Esta ideia passará a povoar a mente do protagonista justamente por
questões como a influência de Zaza, que irá provocar-lhe ciúmes, incitando-lhe a ser também
um combatente e a voltar “com honras” (que, na verdade, nem o próprio Zaza recebera) como
ele voltara, pelo estímulo de sua então esposa Agnes, que deseja ter um “soza” (soldado do
exército nigeriano) como marido e, sobretudo, para usar a farda de soza e aderir às (supostas)
regalias e glórias que um soldado poderia conquistar ao fim do conflito, como prometiam os
agenciadores de combatentes. Vale dizer também que Mene se sentia impelido a tornar-se um
soldado para tentar amenizar um pouco mais os abusos de outros combatentes para com o
povo de Dukana, uma prática que era flagrante e, em função da subserviência de Chief
Birabiee, não era refreada.
Mene, agora Sozaby, se junta ao exército e está, inicialmente, feliz, pois admira o
grupo – em função das histórias de Zaza. Esta admiração, no entanto, vai arrefecendo, quando
ele começa a notar as mesmas relações de corrupção e subserviência que observava em
Dukana, bem como quando começa a perceber as tentativas de manipulação que os superiores
estrangeiros utilizam através da linguagem, valendo-se um inglês rebuscado e difícil, de uma
gramatica elitizada e confusa. Eis aqui a grande sacada de Saro-Wiwa que, ao longo da obra,
“planta” proposital e convenientemente um “inglês podre” (rotten English) em meio ao inglês
gramatical “convencional”, desvirtuando-o, misturando-o a expressões em língua nativa,
explicitando a utilização do idioma do poder dominante contra este próprio poder, para
também confundi-lo. Sozaboy e seus colegas de fronte sofrem muito e veem que a vida de
soza não era o que esperavam. O local onde estão é bombardeado e muitos deles morrem.
Sozaboy acorda em um centro de tratamento inimigo e lá se reestabelece, lamentando por
companheiros como Bullet, seu melhor amigo, que morrera no ataque. Além de lastimar,
Sozaboy se questiona o porquê da guerra. Se dá conta de que até aquele momento só recebera
ordens, mas não obteve nenhuma explicação sobre o motivo da guerra ou por quem estariam
lutando. Assim como ele, nem seus amigos sabiam e morreram sem saber. Começou a
perceber, então, que o conflito era uma ação sem sentido, uma iniciativa que influenciava a
vida de muitos, mas que não trazia benefícios para os tantos envolvidos nesta.
Após sua recuperação, Sozaboy é integrado ao exército inimigo, no intuito de retornar
à Dukana e reencontrar sua mãe e sua esposa Agnes, pois o sonho de participar do exército
federal nigeriano já não lhe seduzia mais. O que o protagonista não esperava é que, ao
retornar para casa, ao longo do caminho, não encontrasse mais o cenário anterior, mais um
rastro de destruição pontuado de campos de refugiados, dentre os quais, muitos de seus
compatriotas, como Zaza, os quais, disseram que vários em Dukana morreram ou foram
levados pelas tropas inimigas. Ao final da narrativa, o desespero de Sozaboy aumenta ao ver
sua cidade arrasada e ao descobrir que sua família está morta. Mene, o Sozaboy, chega à
conclusão de que a guerra é um jogo em que poucos ganham e muitos, como ele, perdem
tudo; é uma ação alienada, na qual se doa a vida sem se saber ao certo o porquê da luta e por
quem, de fato, se está lutando e, no final, vê-se que, independente das motivações para a
guerra, as consequências dela são devastadoras e não a justificam.
Tendo em vista a concisa apresentação da narrativa, verifica-se que a alegoria se
apresenta basicamente pelos seguintes pontos: como metonímia da própria Nigéria,
especialmente no que tange à subserviência dos chefes locais com o mando europeu e ao
tolhimento dos direitos populares, Dukana e as próprias cidades de Pitakwa e Bori, possuem a
maioria da população formada por diferentes famílias ou grupos étnicos, os quais se
preocupam mais com seus problemas pessoais e de seus entornos particulares do que com
questões nacionais ou de maior amplitude. As ações governamentais, aqui representadas pela
administração do presidente Ibrahim Babangida, são arbitrárias, mas passam despercebidas
por muitos que acreditam que estas, apesar de opressoras, ainda beneficiam, de alguma forma,
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o país, como ocorre com o favorecimento da exploração de petróleo por empresas como a
Royal Dutch Shell e a Chevron em diferentes regiões da federação.
Muitos dos que não concordam com a forma de governo e com as ações por ele
perpetradas são, de alguma forma, excluídos do dito caminho do “progresso” para o qual esta
mesma administração diz estar rumando o destino da Nigéria, num suposto futuro de
modernidade e de desenvolvimento. Esta conjuntura pode ser ilustrada pela situação
catastrófica em que incorreu o povo Ogoni, etnia pela qual Saro-Wiwa também empreendeu
sua luta. Em função de sua peculiar localização no Delta do Níger, ficando entre os
secessionistas da Biafra e as tropas federais, muitos membros deste grupo foram subjugados e
aniquilados. A ação das etnias majoritárias também colaborou para a quase extinção dos
Ogoni, pois, muitas delas, também alienadas pela proposta de construção de uma soberania
nacional (igualitária? Mas, para quem?), isolavam as populações Ogoni e não as apoiavam –
contra os ataques partidos dos diferentes lados (economia, governo) no intuito de – cooperar
com o velado genocídio que se praticava contra elas. A população e o meio ambiente em
Dukana funcionam como as populações Ogoni e seu entornos, degradados pela ação da guerra
e dos interesses econômicos apoiados pela burguesia nacional e pelo estado. A falência da
liderança, personificada na pessoa do Chief Birabee, corresponde à falência de liderança na
Nigéria, bem como da própria consciência nacional, como atesta Fanon lido por Eke (2000).
Entre outros detalhes, o romance de Saro-Wiwa arrola a prostituição de mulheres como forma
de amenizar a hostilidade dos soldados em sua abordagem aos habitantes de Dukana. Esta
prostituição, muitas vezes, era muito mais agressiva do que a dita “venda de favores sexuais”,
pois se configurava mesmo em tráfico humano, já que, por exemplo, muitos pais entregavam
suas filhas como objeto de barganha para obterem favores e melhor tratamento por parte das
tropas. Isto de forma voluntária ou forçada. Esta também é uma alegoria utilizada por Ken
Sro-Wiwa, pois aqui, o autor sugere a própria prostituição e entrega da Nigéria ao capital
europeu. Os motes para a alegoria ainda se configuram pelo cavar buracos que Mene,
Sozaboy, empreende com seus colegas, bem como pelos próprios bombardeios. Esta é uma
forma que o governo, utilizando a máquina da guerra, tenta fragmentar a nação,
desmembrando-a em todos os sentidos (étnicos, físicos) (EKE, 2000).
Na figura de Zaza e do próprio Mene, Saro-Wiwa ridiculariza a visão romancizada e
heroica da guerra, evidenciando a ilusão e o embuste que ela encerra para os soldados e para a
própria nação. Mais do que isso, de posse da voz do narrador, Saro-Wiwa mostra como a
guerra bestializa os seres humanos e que nela não há nenhum propósito de construção de
soberania, tampouco de avanço à modernidade, já que não se pode conceber progresso em um
cenário onde os indivíduos matam uns aos outros sem se conhecerem, como se fossem
animais. Aliás, em várias passagens, como na descrição do ambiente do bar onde Agnes,
esposa de Mene, trabalha, os indivíduos são assemelhados a baratas ou a moscas, ou mesmo a
cabras ou vermes. Nesta esteira, o autor empreende uma feroz crítica social à destrutividade
da Guerra Civil Nigeriana, a qual ele atribui à falta de liderança ou a uma liderança corrupta
de uma sociedade também corruptível.
A guerra, segundo as proposições de Saro-Wiwa, fez com que o autóctone renegasse,
por culpa, sua terra, pois já não a reconhece, em função de um desejo de modernidade que se
assenta. Uma modernidade na qual, segundo Lincoln (2010, p.85), as populações nigerianas
entraram de forma devastadora, sobretudo, pelo “boom” do petróleo, e que a narrativa de
Sozaboy apresenta muito bem ao abordar o tempo traumático vivido por elas e a
complexidade que este processo causou.
Além das relações já apontadas para sustentar a alegoria, um dos argumentos mais
expressivos possa talvez se estabelecer pelo aparelhamento da figura do protagonista Mene,
Sozaboy, com a do próprio Saro-Wiwa.
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Mene, o Sozaboy, e Ken Saro-Wiwa: algumas correspondências e influências da
modernidade pós-colonial na constituição identitária do indivíduo.
Verificando traços da distinta biografia de Ken Saro-Wiwa, encontra-se referência de
sua participação como combatente no conflito entre o estado federal da Nigéria e a Biafra,
estando ele posicionado em favor do primeiro grupo.
Por sua assinalada atuação social e acadêmica, o escritor ocupou diferentes e
importantes cargos políticos, chegando, até mesmo a ser apontado pelo próprio presidente
Ibrahim Babangida, entre 1987 e 1988, como Diretor Executivo do Diretório para a
Mobilização Social; e nos anos de 1987 e 1992, como Diretor da Companhia Nigeriana de
Manufatura de Impressão de Notícias (NA’ALLAH, 1998, p.365-366). No entanto, em função
de ações que desagradaram Saro-Wiwa, estas advindas do próprio governo, sua estada nestes
órgãos foi breve e o autor de “Sozaboy: a novel in rotten English”, decidiu dedicar-se à sua
escrita e publicações, mas, sobretudo à defesa da causa Ogoni, povo que passou a representar,
justamente por ser este desprovido de uma voz testemunhal que o fizesse e delatasse a
tragédia e a tentativa de extermínio pela qual passava. Mediante os diferentes abusos
cometidos contra os Ogoni, os quais estavam pressionados pela condição geograficamente
“fragilizada” entre as demais etnias e pela opressão de um mando estatal subordinado à
influência europeia, Saro-Wiwa atuou não somente por uma inclinação étnica, mas advogando
em favor desta comunidade, para contrapor-se explicitamente a interesses, sobretudo,
econômicos, que pretensionavam dizimar estas populações em fatura, principalmente, de suas
terras ricas em petróleo e água (QUAYSON, 1998, p.68). Em função de seu trabalho como
ativista político, social e ambiental, mobilizando as massas à reflexão e observação da forma
de administração estatal arbitrária, Ken Saro-Wiwa, juntamente com mais oito membros
Ogoni, foi sentenciado à morte e executado em 10 de novembro de 1995.
Comparando o perfil do escritor com o de seu personagem, então, muitas
correspondências acabam se assentando e a alegoria se ajusta ainda mais ao foco político e
social. Saro-Wiwa, à exemplo de Mene, no início, cheio de sonhos concebidos na academia,
como estudante brilhante e idealista que era, via na educação uma forma de melhorar de vida
e, provavelmente, de melhorar seu país. Ao deparar-se com o conflito entre o estado federal
nigeriano e a Biafra, mesmo sendo talhado para a intelectualidade, não se isentou da
“obrigação moral” – quiçá, embalado pelo mesmo deslumbre, ingenuidade e sedução iniciais
de Mene - em defender sua nação e lançou mão do rifle para defender sua gente, mas
percebeu que, na realidade, aquele era um confronto sem sentido, despropositado, que só
gerava miséria e destruição, do qual poucos – muitos deles, nem mesmo nigerianos – se
beneficiavam, como confessa em seu romance modernista antiguerra “Sozaboy: a novel in
rotten English”. Dukana, como já citado, alegoriza a situação de podridão, miserabilidade e
falência administrativa da própria Nigéria. As instâncias naturais, culturais, sociais e políticas
estão adulteradas pelo elemento europeu que, apesar da fase “pós-colonial” e da promessa de
modernidade, não corresponde em nada a um cenário moderno, progressista, mas de
subdesenvolvimento, dependência, medo, abusos e alienação. A população de Dukana, assim
como de Pitakwa e de Bori – terra natal de Saro-Wiwa -, é subjugada, explorada, prostituída,
corrompida, humilhada, assaltada e morta, tal qual acontece com os Ogoni. A cidade, tal qual
as terras desta etnia, são devastadas, esburacadas, bombardeadas. Quem denuncia a situação
em Dukana é Mene, um dos poucos sobreviventes da guerra, mas o único “desalienado” , que
não sucumbiu ao trauma do fronte de batalha. Já a tragédia Ogoni é denunciada por SaroWiwa, não o único sobrevivente, mas, como já dito por Lincoln (2010), a única testemunha
que pode falar de um local, ao mesmo tempo, dentro e fora do espaço traumático, possuindo
os métodos (linguísticos) para se fazer ouvir.
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Analisando, então, o perfil de criador e criatura e tendo em vista a dita modernidade
pós-colonial, sobremaneira, simbolizada pela difusão da exploração do petróleo na Nigéria,
cabe refletir como esta acabou por influenciar a definição identitária destes indivíduos.
Pensando em Saro-Wiwa, sua própria formação como escritor mostra uma evolução no
sentido de uma elucidação e maior engajamento na causa política, social e ambiental, e seus
próprios depoimentos e entrevistas acerca de seu trabalho como autor validam a função de sua
escrita como arma de politização e mobilização das massas contra a opressão política e
econômica e contra a degradação ambiental. Seu personagem, Sozaboy, como reflexo da
escrita de seu criador, segue a mesma formação, desalienando-se gradativamente e mostrando,
através de seu relato propositalmente deturpado (“rotten English”) como a guerra deteriorou a
vida das populações em Dukana e região e como, mesmo antes da eclosão desta, a dita aura de
modernidade (pós-colonial) já encerrava um cenário administrativo de corrupção,
desigualdades e sofrimentos.
Conclusão
“Sozaboy: a novel in rotten English” foi um feliz empreendimento de Ken Saro-Wiwa para
demonstrar como a modernidade pós-colonial na Nigéria, representada pela exploração do
petróleo e dos próprios conflitos armados, especialmente na região do Delta do Níger, se
estabeleceu de forma ilusória e catastrófica para as populações daquela cercania, por conta
dos interesses econômicos de uma burguesia nacional da qual o próprio poder estatal fazia
parte. O texto evidenciou venturosamente a crítica a construção de uma suposta soberania
nacional que, na verdade, eram sustentadas por vidas humanas, pela degradação do meio
ambiente e pelo desmantelamento étnico e social, fazendo pensar: para quem se constrói esta
soberania nacional? A que preço? E neste intento, Saro-wiwa permite contemplar a forma
como a modernidade acaba por influenciar a constituição da identidade, pessoal e autoral, do
sujeito, norteando-a, em seu caso, para a luta, desconstruindo paradigmas antes estabelecidos
e promovendo revoluções, internas e externas, que perduram, à exemplo deste autor, ao longo
da história, colaborando com ela e com a sociedade, de certa forma.
Referências:
CEIA,
Carlos.
Sobre
o
conceito
de
alegoria.
Disponível
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Recebido em 27/09/2015
Aprovado em 20/12/2015
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