: ESPECIAL : 24-25 I Guerra Mundial

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: ESPECIAL : 24-25 I Guerra Mundial
Sexta-feira _27 de junho de 2014. Diário de Notícias
24
Especial
Sexta-feira _27 de junho de 2014. Diário de Notícias
25
Aniversário da I Guerra Mundial
Como estamos 100 anos depois?
No mundo. Embora não impossível, uma terceira guerra mundial é difícil, dizem historiadores ouvidos pelo DN. Interdependência entre países – hoje em maior número do que em 1914 – ou organizações
como a ONU servem de travão. Nem sempre capaz de evitar conflitos ou guerras locais e regionais
1914 em 2014
BERNARDO
PIRES DE
LIMA
Mais países
e guerras
em várias
esquinas
Investigador
universitário
Esquina, em Sarajevo, na Bósnia, onde a 28 de junho de 1914 o nacionalista Gravilo Princip matou o arquiduque Francisco Fernando
DN Margaret MacMillan, historiadora da Universidade de Oxford.
No início da guerra, as potências já
formavam dois grupos de alianças,
tendo arrastado para o conflito
os seus aliados. De um lado, Grã-Bretanha, França e Rússia, do outro Áustria-Hungria e Alemanha
(a Itália mudou de lado em 1915). A
I Guerra Mundial durou quatro
anos, fez milhões de mortos, só
acabou em novembro de 1918
(Princip morreu na cadeia em abril
desse ano vítima de tuberculose).
A guerra que se quis rápida e
“para acabar com todas as guerras”
foi, como diz MacMillan, “a guerra
que acabou com a paz”. Assim se
intitula um dos seus livros. Analisando a evolução 1914-2014, a historiadora não acha justo dizer que
foi a I Guerra Mundial que levou à
II (a Alemanha saíra humilhada
como a única culpada do conflito
no Tratado de Versalhes de 1919).
“Houve 20 anos entre as duas. Muitas decisões foram tomadas”, refere a professora de Oxford, discor-
memória da maioria dos
europeus vivos não chega
a 1914, o que não significa que 1914 não esteja vivo
em 2014. Na Europa, por exemplo, onde o trauma de mais um
regresso à guerra (seguido de
outro 25 anos depois) moldou
até hoje a institucionalização
de “Estados civis”, a relação
entre a política e a guerra,
dessacralizando uniformes e
promovendo relações pacíficas
entre Estados (há exceções,
claro). O continente da guerra
intermitente passou a ver na
“paz perpétua” o santo graal, os
impérios militarizados substituídos por nações independentes e preferencialmente civis e
comerciais, a cidadania deixou
de assentar no serviço militar e
abraçou uma nova mundividência, mais hostil ao conflito e
menos servil às hierarquias
(James Sheehan é magistral em
The Monopoly of Violence). Se a
“Europa da defesa” é hoje um
tigre de papel, muito deve ao
trauma social das grandes
guerras do séc. XX. Em 1914,
metade dos países independentes e um quarto da população do mundo estavam na
Europa – hoje são um quarto
dos países e só 10% da população. Se quisermos, o corrente
declínio relativo da Europa
resulta da implosão do estatuto
imperial das principais potências, nunca recompostas da
perda dessa aura universal.
A queda dos impérios motivada por 1914, transformou
a Europa mas também África,
na altura só com Etiópia e
Libéria independentes – hoje
há 55 nações soberanas, mais
do que em qualquer outro
continente. Ou o Médio
Oriente, depois da implosão
otomana e da esquadria anglofrancesa (não censurada pela
Rússia) de nações fictícias. E
basta olhar para o que se passa
na Síria e no Iraque para percebermos como 1914 permanece
bem vivo em 2014.
A
PATRÍCIA VIEGAS
Gravilo Princip estava numa esquina da Rua Francisco José, em Sarajevo, na manhã de 28 de junho de
1914, junto a uma loja de comida.
Era domingo e os seus colegas do
grupo nacionalista Mlada Bosnia
(Jovem Bósnia) tinham acabado de
lançar uma bomba contra o veículo em que seguia o arquiduque
Francisco Fernando, herdeiro do
trono da Áustria-Hungria, com a
sua mulher, Sofia, falhando o alvo,
mas fazendo vários feridos. Feridos
esses que o arquiduque fez questão
de ir visitar ao hospital. Mas um
erro do motorista no caminho a seguir fez que o veículo do sobrinho
do imperador austríaco, Francisco
José, parasse mesmo em frente aos
olhos de Princip. O jovem sérvio de
19 anos puxou da pistola e disparou dois tiros. Atingiu o arquiduque
e a mulher. Antes do meio-dia estavam mortos. Um mês mais tarde, a
Áustria declarou guerra à Sérvia.
Na Sarajevo de 2014, hoje capital da
Bósnia-Herzegovina independente, há um museu na esquina de
onde foram disparados os tiros.
Uma faixa cobre a fachada: à esquerda, o rosto de Gavrilo Princip,
à direita, o de Francisco Fernando.
E uma frase: “A esquina que iniciou
o século XX.”
“O contexto é importante porque é preciso saber porque é que as
Nações reagiram como reagiram. A
Áustria-Hungria via a Sérvia como
uma ameaça real. Apenas estava à
espera de uma desculpa para agir.
Então quando o assassínio aconteceu foi a desculpa perfeita”, diz ao
Na economia. A um grande poder em 1914 estava, em
OPINIÃO
dando também do lugar-comum
que diz que é a divisão do mundo
feita após a Grande Guerra a culpada por muitos dos conflitos que
existem atualmente no mundo. “É
fácil culpar essa divisão, mas quando a conferência de paz se reuniu,
o império austro-húngaro já se tinha desfeito em pedaços e
já tínhamos Polónia, Checoslováquia e Jugoslávia a criarem-se a si
próprias. As fronteiras do Médio
Oriente, essas, sim, foram desenhadas. O problema real foi que, após a
guerra, as condições de paz duradoura não foram asseguradas.”
Benjamin Zeeb, líder do projeto
União Democrática, afirma ao DN
que “em geral a paz foi mal gerida.
Isso é muito verdade em relação ao
Tratado de Versalhes. A agenda de
[Woodrow] Wilson [presidente dos
EUA que apresentou em janeiro de
1918 a declaração de 14 pontos
que, entre outras coisas, previa a
autodeterminação dos povos e
uma liga das Nações] foi bem-intencionada. A forma como as Nações Unidas são organizadas hoje
em dia segue implicitamente as
ideias incorporadas por Wilson”. É
importante notar, diz Zeeb, forma-
EPA
do em História Moderna pela Universidade de Munique, “a proliferação de Estados [desde 1914]. Então haveria 40 ou 50, comparados
com os cerca de 200 hoje. Tentar listar todas as guerras desde então levar-nos-ia um dia inteiro”.
E os elementos que conduziram
à I Guerra Mundial são hoje visíveis
nalguma parte do mundo? “ Há debates que comparam as crises na
Ucrânia e na Síria com a que levou
à I Guerra Mundial [e ultimamente
também o Iraque]. Não concordo.
Os contextos são diferentes. Em algumas partes do mundo temos
grandes conflitos militares em curso. Admito conflitos locais e regionais. Mas globais já não”, sublinha
ao DN Amir Duranovic, professor
assistente no Instituto de História
da Universidade de Sarajevo. Hoje
há interdependência mundial. Na
cidade onde há cem anos Princip
deu o tiro de partida para a guerra,
este especialista lembra que “as
Nações Unidas evoluíram de alguma forma da Liga das Nações”.
OPINIÃO
regra, associado um império colonial. A dimensão dos serviços substitui o peso da agricultura (e da indústria) no passado.
E o consumo domina hoje sobre a poupança e investimento
Fim das colónias e
domínio dos serviços
Wall Street em 1929. Atitudes económicas estavam a mudar
para a indústria e, depois, desta
para os serviços. As economias
mais desenvolvidas possuem um
grande sector de serviços”, recorda
o professor da Nova. Este refere que
outro elemento central das economias desenvolvidas é o de “o comportamento das pessoas estar virado para o consumo” ao contrário
da realidade de 1914. Então, “as
empresas investiam em si e as classes média e alta poupavam e investiam na indústria através dos ban-
ANTÓNIO
PEREZ
METELO
Jornalista
á cem anos, ao rebentar a
I Guerra Mundial, ninguém
fazia ideia de que este era o
fim de uma era. Ninguém imaginava a carnificina que a luta nas
trincheiras iria provocar a leste e
a oeste, todos marcharam ao som
de hinos patrióticos, convencidos de que a divindade estava do
seu lado. O impasse nas frentes
de luta, à medida que os meses
iam passando, deu nova dimensão a uma aparente querela
inicial entre primos coroados,
apoiada por um sistema de acionamento automático de alianças
militares, e gerou a maior crise
social na Europa dos últimos
quatrocentos anos. A campanha
militar inconclusiva produziu a
irrupção violenta da luta de
classes, rebentaram insurreições
operárias na Rússia, na Hungria
e na Alemanha e o fim da contenda produziu dois efeitos
espúrios de consequências ainda
mais incalculáveis. A euforia do
pós-guerra levou à especulação
desenfreada em bolsa e ao crash
de Wall Street, em outubro de
1929. Segue-se a Grande Depressão, que lançou um em cada
quatro trabalhadores dos países
desenvolvidos no desemprego.
A esta razia social somou-se um
Tratado de Versalhes, com insensatas reparações de guerra, que a
Alemanha jamais estaria em
condições de satisfazer. O aviso
de Lord Keynes não foi ouvido.
Previu que estas imposições
produziriam inevitavelmente
nova guerra. Hoje sabemos que
tinha razão. Assim, o que começou há cem anos, foi, de facto, a
II Guerra dos Trinta Anos (1914-1945), que arruinou a Europa.
Até lá, ela dominava o mundo,
com os seus impérios coloniais.
Nesses 30 anos, os impérios
começam a desmoronar, o capital acumulado no Velho Continente é destruído em mais de
metade, emergem duas forças
em luta pela hegemonia global:
EUA e URSS. Há cem anos, desataram-se as Fúrias na Europa.
H
ABEL COELHO DE MORAIS
O mundo no início da Primeira
Guerra Mundial e em 2014 “apresenta diferenças radicais” mas também “semelhanças enormes”, considera João César das Neves, professor de Economia na Universidade Católica de Lisboa. “Pela primeira vez [em 1914], o mundo está
unido por novas tecnologias: o telégrafo, o navio a vapor, por exemplo.
Estávamos no auge de uma primeira globalização industrial e de um
período longo de paz, a pax britannica, em que uma série de países
começam o seu desenvolvimento,
como a Rússia e o Japão.”
“O mundo estava a entrar numa
era de aceleração e integração”, defende o professor Luciano Amaral,
da Faculdade de Economia da Universidade Nova, em que “a grande
potência económica era a Grã-Bretanha e também a maior potência
imperial”, mas “não se pode dizer
que fosse o país mais rico em rendimento per capita. Já fora ultrapassada pelos EUA” que, nas projeções
estabelecidas por Angus Maddison,
era também a maior economia
mundial (ver gráfico). Com uma diferença, explica o professor da
Nova: “Os EUA, ao contrário da GrãBretanha, tinham ainda grande
parte da população, na ordem dos
30% a 40%, ligada à agricultura.”
Algo semelhante sucedia na Rússia
e na China, então potências económicas “apenas por serem grandes”,
diz César das Neves. Como sucede
hoje ainda na China “ou na Índia,
grandes poderes económicos, em
que a agricultura tem um peso importante”, nota Luciano Amaral.
São, por isso, potências económicas
atípicas – porque o “crescimento
económico não é só haver maior riqueza a distribuir pela população, é
também a transformação estrutural com a mudança da agricultura
Desatam-se
as Fúrias
D.R.
cos. A poupança era maior na altura”, comportamento substancialmente alterado, nota Luciano
Amaral, pela “revolução financeira
dos anos 80 e 90, com o aparecimento dos chamados derivados”.
Com os novos produtos financeiros, o “endividamento tornou-se
um hábito”, sublinha o professor da
Nova, notando que “o problema de
endividamento não é só público, é
também dos privados”.
Elemento relevante, como já referido, é o “grau de integração dos
vários espaços mundiais que só
volta a acontecer recentemente. A
I Guerra Mundial vai acabar com
isso, assim como a Grande Depressão e a II Guerra Mundial. A normalização, em termos de percentagem de exportações e importações, só sucede a partir dos anos 60
e 70, quando estas voltam aos níveis de 1914”, explica César das Neves. Com uma importante diferença, nota. A tecnologia “contribuiu
para multiplicar os bens disponíveis, baixar os seus custos e torná-los acessíveis a um maior número”, o que era impensável em 1914.

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