Editorial Psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado

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Editorial Psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado.
Memorandum,
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Editorial
Memorandum: memória e história em psicologia
Número 24
Psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado
A edição 24 da Memorandum traz contribuições que se agrupam por volta de três eixos
temáticos: a psicologia no contexto histórico brasileiro; a psicologia e a fenomenologia;
psicologia, história, cultura e sociedade.
A inserção da psicologia no contexto histórico brasileiro é tema de dois artigos: Extra!
Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros de Scarparo, Sottili,
Albert e Jesus estuda, numa perspectiva histórica, as práticas psicológicas no ano da
regulamentação da psicologia no Brasil especialmente através do jornal gaúcho Correio do
Povo. Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura
militar no Brasil de Gianordoli-Nascimento, Silva, Cruz, Oliveira, Veloso e Rabelo analisa
entrevistas com mulheres que foram presas e torturadas no contexto da ditadura militar
brasileira (1964-1985): aponta a relevância das atividades culturais como recurso para crítica,
resistência e enfrentamento do autoritarismo.
As relações fecundas entre psicologia e fenomenologia são evidenciadas por três
artigos: Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica de Freitas estabelece uma interessante
comparação entre as concepções do filósofo americano James B. Pratt (1875-1944) e do
psiquiatra suíço Herman Rorschach (1884-1922) a partir de uma leitura fenomenológica
fundamentada em Husserl e Merleau-Ponty. A relação com o outro em Sartre de Furlan
investiga os diversos sentidos da relação com o outro na filosofia de Sartre tematizados por
Foucault e Merleau-Ponty. "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano de
Veríssimo analisa a concepção lacaniana do estádio do espelho em diálogo com as teorias de
Wallon, Sartre e Merleau-Ponty, apontando a relação entre psicanálise e fenomenologia.
As relações entre psicologia, história, cultura e sociedade são discutidas segundo
métodos e objetos distintos por dois artigos: Por uma história da psicologia histórica de Waeny
propõe um estudo original sobre o termo "psicologia histórica" mostrando que, apesar de
estreitamente relacionado aos historiadores dos Annales, seu uso ultrapassa aquele âmbito e
que a história da psicologia histórica não se restringe ao contexto da psicologia histórica
francesa de Ignace Meyerson. From multiculturalism to interculturality: through the relational
reason de Donati discute a ideia de multiculturalismo, termo que se difundiu no Ocidente
durante a década de 1960, fazendo uma análise crítica de sua utilização; aponta a categoria
mais recente de interculturalidade, indicando a necessidade de novas semânticas da
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diversidade inter-humana e propondo o conceito de "razão relacional" para pensar uma nova
ordem social capaz de humanizar os processos de globalização e as migrações crescentes.
Por fim, a resenha de Massimi sobre a Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos
organizada por Leite traz ao conhecimento do leitor de Memorandum uma interessante
iniciativa de preservação da cultura regional brasileira.
De modo geral, portanto, a edição documenta diversas formas de inserção da
psicologia nos contextos amplos da cultura e da sociedade. A complexidade destes contextos
é evidente na atualidade pela própria diversidade de âmbitos sócio-culturais e das relações
humanas que neles se configuram, somada a sua grande visibilidade no nível mundial. Neste
sentido, faz-se cada vez mais necessário o aprimoramento dos recursos conceituais e
metodológicos por parte da psicologia que chegue a viabilizar o diálogo vital e indispensável
interno às ciências humanas e com a filosofia.
Abril de 2013
Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editores
Editorial
Memorandum: memory and history in psychology
Issue 24
Psychology and sociocultural biodiversity in the globalized world
The 24th edition of Memorandum brings contributions which group themselves in
three thematic axes: psychology in Brazilian historic context; psychology and
phenomenology; psychology, history, culture and society.
The insertion of psychology in Brazilian historic context is a topic of two articles: Extra!
Brazilian psychology in the news in 62: brief time, lasting meanings by Scarparo, Sottili, Albert
and Jesus studies, in a historical perspective, the psychological practices in the year of the
regulation of psychology in Brazil, specially through the gaucho newspaper Correio do
Povo. Promises of life in times of threat: women, music and resistance during the military
dictatorship in Brazil by Gianordoli-Nascimento, Silva, Cruz, Oliveira, Veloso e Rabelo
analyzes interviews with women who were arrested and tortured in the context of Brazilian
military dictatorship (1964-1985): it shows the relevance of cultural activities as an approach
to critical opposition, resistance and a way to face authoritarianism.
The fruitful relations between psychology and phenomenology are demonstrated in
three articles: Pratt and Rorschach: a phenomenological approach by Freitas establishes an
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interesting comparison between the conceptions from the American philosopher James B.
Pratt (1875-1944) and from the Swiss psychiatrist Herman Rorschach (1884-1922) based on
the phenomenological approach from Husserl and Merleau-Ponty. The relationship with the
other in Sartre by Furlan investigates the various meanings of the relationship with the other
in the philosophy of Sartre, addressed by Foucault and Merleau-Ponty. "Place ofthe imaginary
of seeing": dialogues based on Lacan's mirror by Veríssimo analyses the lacanian conception of
mirror stage in dialogue with theories of Wallon, Sartre and Merleau-Ponty, demonstrating
the relationship between psychoanalysis and phenomenology.
The relations between psychology, history, culture and society are discussed according
to distinct methods and objects in two articles: For a history of the historical psychology by
Waeny proposes an original study about the term "historical psychology" showing that
although closely linked to the historians from the Annales, its use goes beyond that scope and
that the history of historical psychology is not restricted to the context of French historical
psychology from Ignace Meyerson. From multiculturalism to interculturality: through the
relational reason by Donati discusses the idea of multiculturalism, term that was spread in the
Occidental world in the 60'sdoing a critical analysis of its use; it demonstrates the most
recent category of interculturality, indicating the necessity of new semantics of the interhuman diversity and proposing the concept of "relational reason" to think of a new social
order which is capable of humanizing the globalization processes and the growing
migrations.
Finally, the digest by Massimi about Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos
organized by Leite provides the reader of Memorandum the knowledge of an interesting
initiative of Brazilian regional culture preservation.
All in all, this edition documents various forms of insertion of psychology in the ample
contexts of culture and society. The complexity of these contexts is evident nowadays due to
the diversity of socio-cultural scopes and human relations which take place, added to its
high visibility. This way, it is increasingly necessary that psychology improve conceptual
and methodological resources to make viable the vital and indispensable dialogue contained
in human sciences and with philosophy.
April 2013
Miguel Mahfoud
Marina Massimi
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Miguel Mahfoud
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Universidad Católica de Chile
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William Barbosa Gomes
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Arno Engelmann
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Bernadette Majorana
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Davide Bigalli
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Deise Mancebo
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Abraão Coelho - desenvolvedor web.
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em Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
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São Paulo - USP/Ribeirão Preto.
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USP/Ribeirão Preto.
A revista eletrônica Memorandum é uma iniciativa do Grupo de Pesquisa
"Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória", vinculado ao
Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais - UFMG e ao Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras Universidade de São Paulo - USP/Ribeirão Preto.
The electronic scholarly journal Memorandum is an initiative of the Research Group
"Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória",
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Humanas of Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG and to Departamento de
Psicologia e Educação of Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras of Universidade de São
Paulo - USP/Ribeirão Preto.
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Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve
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Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos
duradouros
Extra! Brazilian psychology in the news in 62: brief time, lasting meanings
Helena Beatriz Kochenborger Scarparo
Thais de Souza Sottili
Carla Estefanía Albert
Luciana Oliveira de Jesus
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Brasil
Resumo
O artigo busca compreender práticas psicológicas no ano da regulamentação da
psicologia no Brasil. A pesquisa se baseia em matérias sobre as relações políticas, o
comportamento cotidiano e a divulgação científica do jornal Correio do Povo. A coleta
ocorreu no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, em Porto Alegre onde foi feita
a seleção e fotografia de materiais referentes à psicologia. Posteriormente, foi criado um
banco de dados para análise temática e discussão do material. Dentre os resultados
sobressaíram-se algumas estratégias voltadas para a legitimação da área como a inserção
na mídia impressa com a divulgação de cursos, pesquisas, debates e aconselhamentos.
Foram evidentes as correspondências entre as práticas psicológicas explicitadas no Jornal
e o contexto sócio político da época pautado pela ênfase no desenvolvimento econômico e
tecnológico, pela evitação de conflitos e pela crença de que a ciência psicológica poderia
promover a humanização das relações.
Palavras-chave: história da psicologia; construção de conhecimento; história social
Abstract
This research paper aims to understand the psychological practices in 1962, the year of
formalization of Psychology in Brazil. The research is based on contents about political
relations, behavior and science popularization in the newspaper "Correio do Povo". Data
were collected at Hipólito José da Costa Museum of Communication in Porto Alegre
where all material related to psychology was selected and photographed. Afterwards, a
database for analysis and material discussion was created. Among the results, some
strategies oriented to the field's legitimation stood out, as the insertion in the print media
with the promotion of courses, researches, debates and advices. There was an evident
correspondence between the psychological practices explained in the newspaper and the
socio-political context guided by the economical and technological development
emphasis, by the conflict avoidance and by the belief in the psychological science as a
promoter of humanization in relationships.
Keywords: history of psychology; construction of knowledge; social history
Introdução
O presente artigo apresenta parte dos resultados do projeto de pesquisa "A construção
da Psicologia no Rio Grande do Sul: das práticas sociais à produção de conhecimentos
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através de múltiplas metodologias"1. Trata-se de uma investigação de cunho histórico, do
tipo descritivo-interpretativa, que explora indicadores teóricos e empíricos capazes de
descrever e explicar processos de instituição e regulamentação da Psicologia no Brasil, mais
especificamente, no cenário sul-rio-grandense. Neste artigo são descritos os resultados do
subprojeto que examina os sentidos atribuídos à Psicologia, expressos pela mídia impressa,
em 1962, no jornal Correio do Povo - criado no final do século XIX e que permanece em
circulação até o presente.
O trabalho se insere no âmbito da História Social, pois se propõe a entender as
condições para o estabelecimento da psicologia em contexto, considerando os processos
sociais nos quais essa área se constituiu e tem se consolidado (Barros, 2005). Nessa
perspectiva, o estudo buscou articulações entre as especificidades históricas e políticas do
início da década de 1960 e as práticas relacionadas ao conhecimento psicológico naquele
contexto. Desse modo, se procurou contemplar a historicidade das ideias, da linguagem
utilizada e das ações políticas articuladas à inserção naquelas circunstancias. É evidente que
não pretendemos com isso tarefas impossíveis como esgotar o tema ou mesmo acessar com
precisão as especificidades da época. A proposta do estudo é favorecer uma aproximação das
condições da emergência, circulação e instituição da psicologia como ciência e profissão no
ano de sua regulamentação legal no Brasil, evento que, no presente ano motiva
comemorações da categoria profissional pela passagem do cinquentenário.
Como já mencionado, a investigação aqui descrita teve como fonte o jornal Correio do
Povo, do ano de 1962. Trata-se de um dos Jornais mais tradicionais do Estado, que é editado
desde 1895 até o presente, com expressiva penetração. No período estudado, esse periódico
era leitura usual da sociedade gaúcha e suas matérias compunham as opiniões e os diálogos
cotidianos da população. Nesse período, a televisão era artigo raro e a grande maioria da
população recebia notícias sobre o que se passava no mundo, especialmente através das
rádios e dos jornais.
Vale ressaltar que, no que se refere aos parâmetros da pesquisa histórica, um período
de cinquenta anos é, obviamente, um breve espaço. Por outro lado, se observarmos as
peculiaridades do contexto, a intensidade das trajetórias percorridas, assim como a
diversidade das experiências e dos sentidos formulados no decorrer desse tempo,
poderemos avaliar a importância de conhecer as especificidades dessa etapa de construção
da Psicologia no Brasil. Tratou-se de um período cujas ações conjugaram ideais de
construção de um mundo pacífico no pós-guerra e cenários políticos conturbados. Esses
eram marcados pela intolerância às diferenças ideológicas e por mudanças nas relações
1
Pesquisa desenvolvida com apoio do CNPq e FAPERGS pela equipe do Grupo de Pesquisa "Psicologia e
Políticas Socias - História, Memória e Produção do Presente", do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
PUCRS.
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sociais expressas, no Brasil, em transformações na esfera do trabalho, da educação, da
política e da ciência.
A Segunda Guerra Mundial pode ser considerada acontecimento impactante para a
construção das ciências em geral, o que incluiu, evidentemente, a psicologia (Farr, 2000).
Após esse episodio, alterações nos sentidos de ciência e tecnologia denotavam uma grande
valorização das atividades ditas científicas e de seus produtos que prometiam, num futuro
próximo, a conquista do espaço, avanços na medicina, facilidades da automação e maior
conforto associado á vida cotidiana. Ao mesmo tempo, estabeleciam-se questionamentos
quanto à responsabilidade e aos efeitos da produção de conhecimento científico. O episódio
da destruição de Hiroshima e Nagasaki através da tecnologia nuclear, por exemplo, era alvo
de profundas discussões e intensas preocupações com a possibilidade de mais uma guerra na
qual este tipo de armamento ou outros mais potentes e destruidores fossem utilizados. Tais
perspectivas transformaram o fazer científico e as práticas dele decorrentes e, ao mesmo
tempo, legitimaram alguns espaços e atribuições para cada área. É o caso da avaliação
psicológica no decorrer e após a Segunda Guerra Mundial (Bender, 1978; Farr, 2000).
O período de 1962, desta forma, foi um momento de muitas mudanças e de
reestruturações em nível global que repercutiram no contexto político brasileiro da época e
contribuíram para fortalecer os movimentos de oficialização e para consolidar a
regulamentação da psicologia. Com isto, torna-se relevante uma reflexão histórica do
contexto político brasileiro.
A seguir apresentaremos os resultados de nossos esforços para contribuir com esta
reflexão. Primeiramente faremos algumas considerações acerca do contexto brasileiro na
década de 1960. Logo após apresentaremos a descrição dos procedimentos metodológicos
para a efetivação do estudo. Em seguida serão detalhados sentidos expressos no jornal sobre
o contexto da época e logo em seguida trataremos das especificidades dos movimentos para
legitimação da área, tendo em vista o campos da saúde mental, as especificidades da ciência
psicológica e as características da profissão em tempos de regulamentação.
Algumas considerações sobre o contexto histórico-político brasileiro na década de 1960
Com a renúncia do presidente Jânio Quadros no dia 25 de agosto de 1961, tomou posse
o então vice-presidente João Goulart ou "Jango", como era conhecido popularmente. Ele
assumiu o poder, em um sistema parlamentarista, após intensa negociação política pela
campanha da legalidade (Fausto, 2009). Entre os fatores que levavam a esta situação foi
determinante a rejeição por parte dos ministros militares da época à postura política e à
liderança exercida por ele. Por exemplo, na época da renúncia de Jânio Quadros, Jango
estava em viagem diplomática para a China - país de regime comunista e, portanto opositor
do ideário estadunidense. Como vice-presidente na época, buscava estabelecer uma política
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externa independente. Desejava o livre trânsito comercial tanto com o lado socialista quanto
capitalista e tinha como proposta o desenvolvimento nacionalista com a ampliação da
democracia a partir das "Reformas de Bases", o que não agradava interesses políticos
hegemônicos na época. Assim, em período conturbado politicamente, o Brasil estava
fragilizado institucionalmente num contexto que acirrava, localmente, o clima global de
desconfiança, característico do período pós Segunda Guerra Mundial (Fausto, 2009; Ferreira
& Delgado, 2003).
Este período de transição entre o governo de Juscelino Kubitschek e a ditadura que se
instauraria a partir de 1964 foi conturbado. As matérias jornalísticas pesquisadas mostram
influencias da Guerra Fria nas relações políticas brasileiras que se caracterizavam pelos
antagonismos ideológicos, como, por exemplo, entre comunistas e não comunistas. Também
foram noticiadas manifestações de contrariedade com as circunstancias políticas - como a
organizada pela União Nacional dos Estudantes em 01 de junho ou a greve geral no dia 05 de
julho. Especificamente no que se refere à psicologia no Brasil dessa época, algumas
peculiaridades desenhavam-se já no início da década de 1960. Por um lado, havia a
perspectiva da categoria profissional que recentemente tinha conquistado sua
regulamentação como profissão através da Lei 4119/1962. Era evidente entusiasmo daqueles
que, de alguma forma, se mobilizaram para tal e que tinham, como projeto, dedicar-se à
consolidação da área e às práticas desenvolvidas com apoio no conhecimento psicológico.
Por outro, se estabeleciam no imaginário social, ideais, expectativas e atribuições para a
profissão recém-oficializada (Scarparo, 2005). Emergia assim, um complexo campo no qual
se entrecruzaram territórios, se inauguraram demandas e se estabeleceram fronteiras. Tais
processos transformaram as paisagens profissionais compostas no Brasil em um tempo
global de crise e mudanças no qual se discutia a urgência de reformas institucionais, num
projeto de intensificação de um modelo econômico pautado pela necessidade de estabelecer
as bases de uma economia industrial madura (Baer, 1986; Soares, 1981). Podemos afirmar,
então, que a psicologia brasileira, oficializada em 1962, instituiu-se no cenário global da
Guerra Fria e, localmente, na interface da urgência em implementar mudanças econômicas,
políticas e sociais com a crença nas amplas possibilidades da profissão recém oficializada em
contribuir com o projeto de construção de uma nação próspera e desenvolvida.
O texto que segue relata uma das compreensões possíveis desse processo quando
busca coletar materiais da mídia impressa, analisar e discutir as expectativas, as demandas e
os fazeres associados à psicologia presentes nessa fonte.
Procedimentos metodológicos: a escolha do jornal como fonte
Os resultados aqui apresentados se originam da coleta e análise de conteúdos sobre a
Psicologia presentes no jornal "Correio do Povo" em 1962. Hoje, é um dos periódicos mais
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Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve
tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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antigos ainda ativos no Rio Grande do Sul. Em 1962 já tinha expressiva tiragem e circulação,
o que nos fez optar por esse periódico como fonte para coleta dos dados empíricos. As
edições consultadas pertencem ao acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa,
localizado em Porto Alegre.
Após selecionar e fotografar todos os materiais referentes à psicologia que se
evidenciaram no jornal, no ano mencionado, foi montada uma coleção de imagens e textos. A
coletânea foi disposta de acordo com a data e o tipo de material jornalístico (coluna,
reportagem, anúncio ou publicidade). Foram examinados todos os exemplares referentes ao
ano de 1962 e selecionados o total de 103 matérias que tinham relação com as práticas
psicológicas do período.
Além da busca específica pelos conteúdos referidos, foram fotografadas também todas
as capas dos jornais selecionados. Tal iniciativa auxiliou na compreensão, através do teor das
manchetes de capa, dos contextos sociais e políticos que marcaram os temas de cada edição.
Nesse processo de organização foi composta uma ampla coleção de imagens e textos, o que
resultou num corpus que denotou a riqueza e a complexidade do objeto de análise.
Estudar os contextos de inscrição e escrita dos elementos que formam o corpus de
análise auxilia o conhecimento da direção e da força das argumentações, das características
do vocabulário da época e dos elementos geradores das práticas sociais formuladas. Desse
modo podemos falar em dois planos para o entendimento do material: um mais evidente e,
até, óbvio e outro mais interpretativo e decorrente das mobilizações aguçadas pelo material
examinado.
Quando associamos o conteúdo material, o simbólico e os contextos ocorre a
intensificação da expressão do potencial de análise do material, pois se vislumbram
diferentes focos de percepção do objeto de estudo (Hernandez, Scarparo, 2008). Tal processo
permite também reconhecer as contingências datadas das fontes e sondar sentidos de
questões e argumentos que foram próprios da época. Assim, não basta, apenas, examinar as
imagens eos textos coletados. Os sentidos revelados por cada material coletado são
inseparáveis dos contextosnos quais se instituíram (Penn, 2010).
Para a análise do material coletado buscamos uma proposta teórico-metodológica que
situasse a produção do conhecimento no interior dos processos de interação social - o
Construcionismo Social (Gergen, 1985). Nessa perspectiva optamos pela proposta de análise
das práticas discursivas (Spink, 2004; Spink & Gimenez,1994), pois acreditamos existir íntima
relação entre enunciados e saberes, o que constitui os discursos como práticas socialmente
significativas e, ao mesmo tempo, como a materialização das ações num dado tempoterritório. Assim, examinamos os materiais tendo em vista os processos de produção da
psicologia, os sentidos compartilhados e os posicionamentos engendrados na construção de
identidades naquele contexto histórico.
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Se considerarmos o período analisado, podemos afirmar que, já naquela época, o jornal
era um dos principais recursos discursivos. Trata-sede uma mídia que propõe fatos e
explicita narrativas sobre as ações que os constituíram. Dessa forma, participa da construção
de opiniões e, por decorrência, afeta o comportamento social. Desse modo, "o que os textos
da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor produzir
formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta" (Gregolin,
2007, p. 16).
A psicologia como prática profissional oficializada pode ser compreendida, então,
através dos discursos e das circunstâncias de produção que a constituem e que, em última
análise, confirmam determinados lugares para a ciência psicológica e para o profissional da
área em condições temporaise territoriais específicas. Desse modo, a partir da circulação das
ideias na sociedade, se elaboram e se compartilham versões acerca de determinada prática e
se estabelecem processos de negociação das identidades sociais. Tais processos são pessoais e
coletivos. Além disso, são marcados pelos discursos pertinentes à cultura nos quais se
inserem (Spink & Gimenez, 1994). Essa perspectiva de análise incorporada ao corpus acima
descrito resultou nos temas que passamos a descrever a seguir.
Textos e imagens como narrativa de um contexto
O ano da oficialização da Psicologia como profissão no Brasil se desenrolou no
contexto da Guerra Fria, período pós Segunda Guerra Mundial no qual era improvável que
se tivesse uma guerra e impossível conquistar a paz (Aron, 1979). A Guerra Fria teve início
com o término da Segunda Guerra Mundial e encerrou-se com a desestruturação da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e com a queda do Muro de Berlim, em 1989. Nos
anos sessenta, a lógica da Guerra Fria tinha vigor no Brasil, apesar de já abalada por
acontecimentos que questionavam tanto as experiências capitalistas quanto as comunistas.
No decorrer da Guerra Fria os Estados Unidos da América (EUA), norteados pela
ideologia capitalista e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) inspiradas num
sistema socialista, disputavam a hegemonia política, militar e econômica o que resultava
numa série de artimanhas e embates de cunho ideológico, sem confronto militar declarado
entre as duas nações. Eram evidentes áreas de influência político-econômicas distintas. No
início o conflito situava-se na divisão da Europa em Ocidente e Oriente, sob a influência dos
EUA e da URSS, respectivamente. Desse modo, as relações internacionais se traduziam na
bipolaridade de poderes e na continuidade dos conflitos entre os capitalistas e os comunistas.
O Brasil, como de resto toda a América Latina, era sede do expansionismo dos EUA. A
literatura consultada (Hobsbawm, 1997; Fausto, 2009) anuncia marcantes influências
econômicas, culturais e científicas nos países latino-americanos e os dados coletados para o
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presente estudo confirmam tais interferências com conteúdos que indicam valores, estilos de
vida e, consequentemente, comportamentos inspirados em modelos estadunidenses.
Nesse processo de consolidação do antagonismo entre as duas ideologias citadas, a
Revolução Cubana, ocorrida em 1959, relativizou a suposta configuração de divisão em dois
blocos. Isso porque Cuba instituiu uma revolução social, apoiada em um regime comunista,
localizado no cerne da "zona de influência" estadunidense. Como decorrência, o opositor,
que estava isolado e afastado na URSS até então, passa a se impor dentro da América Latina,
constituindo-se num "inimigo interno". Tal situação era considerada ameaçadora na medida
em que poderia ter como decorrência a ampliação do comunismo nas Américas (Fernandez,
2009).
No jornal examinado, a análise das capas de cada periódico denota essas
circunstâncias. No ano de 1962, as primeiras páginas do Correio do Povo, são centradas
exclusivamente na política externa. É curioso observar que as notícias sobre o Brasil
emergem apenas quando descrevem atividades voltadas para o âmbito internacional como,
por exemplo, viagens de políticos brasileiros ao exterior. É o caso da visita do então
Presidente, João Goulart aos EUA em abril de 1962.
Ao mesmo tempo, as alusões ao comunismo eram pauta diária do periódico.
Frequentemente os textos traziam alusões depreciativas ou, pelo menos preocupantes, em
relação à ideologia comunista. Podemos citar como exemplo, a manchete "Homens
demasiadamente idosos e doentes estão governando a Rússia", que traz na matéria a
sugestão de que se estudasse "os efeitos que dirigentes enfermos têm exercido na história do
mundo" (Correio do Povo, 1962, 9 de janeiro, p. 1).
Comunistas eram, então, inimigos, depois da revolução cubana, muito mais próximos,
que precisavam ser enfrentados e combatidos "com armas espirituais e éticas" (Correio do
Povo, 1962, 9 de janeiro, p. 1). Eram vistos como ameaças e descritos como produtores de
mazelas sociais numa diversidade de modos de expressão. No plano religioso tal
característica pode ser ilustrada pela excomunhão de Fidel Castro pela Igreja Católica, por
ele ter "confessado ser comunista" (Correio do Povo, 1962, 9 de janeiro, p. 1). Na esfera da
política internacional, uma reportagem do de 12 de janeiro desse ano, traz fragmentos de um
discurso do então presidente dos EUA, John Kennedy que afirma: "Não são os países livres
que tem discórdia dentro de si, com inevitáveis sinais de desunião" (Correio do Povo, 1962, 9
de janeiro, p. 1). Na mesma edição e página, aparece a notícia de que o Vietnam do Sul está
recebendo ajuda estadunidense para o enfrentamento das "constantes agressões dos rebeldes
comunistas". Como se pode perceber, havia argumentos fundamentados em valores
religiosos, liberais e nacionalistas (Fausto, 2009). Todos esses indicavam padrões de
comportamentos a serem seguidos e categorizados como "bons ou maus", "certos ou
errados", "doentes ou saudáveis", "aptos ou inaptos" de acordo com a ideologia proposta
pelo bloco capitalista e tendo em vista as ameaças de reedição de mais um conflito de
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proporções mundiais. Destacamos uma declaração de Kennedy feita no pátio da Casa
Branca, ao receber um grupo de estudantes brasileiros em visita aos EUA, divulgada pelo
jornal, na edição de primeiro de agosto: "Só um doente mental pode querer uma guerra nos
dias atuais" (Correio do Povo, 1962, 1° de agosto, p. 1).
Também foi marca desse período a corrida espacial, tema que usualmente ocupava os
espaços do jornal examinado falando de avanços tecnológicos, heróis espaciais e prospecções
para o modo de vida humana no futuro. Numa das matérias a acirrada competição entre os
blocos capitalista e comunista foi alvo de uma comparação numérica entre os feitos de um e
outro. Ao falar da "conquista do espaço, da lua e de outros planetas que parecem mais
próximos e não mais tão inatingíveis" o jornal apontou que enquanto os EUA computam
setenta lançamentos espaciais, a URSS tem apenas 13 satélites de observação, lançados no
espaço. O interesse pela tecnologia e suas possibilidades de mudança dos modos de viverera
evidente, o que aparecia também em relação à Psicologia, com suas teorias e instrumentos,
como veremos adiante.
Saúde Mental e loucura: demarcando territórios
O clima de desconfiança imperante no contexto da Guerra Fria foi marcado pela
valorização e expansão do conhecimento científico e tecnológico (Martins, 2004). Se
associarmos a essas circunstâncias ao material coletado no jornal teremos alguns exemplos
de formulação de práticas de prevenção no campo da saúde mental. Nesse sentido, dentre o
material coletado encontra-se matérias sobre as novas técnicas de terapia ocupacional no
Hospital Psiquiátrico São Pedro (Correio do Povo, 1962, 9 de outubro, p. 11); a apresentação
de teste para avaliar a saúde mental de mulheres (Correio do Povo, 1962, 8 de abril, p. 25)
sobre o metabolismo humano como regulador da química das emoções (Correio do Povo,
1962, 9 de outubro, p. 11) e previsões quanto à epidemiologia da saúde mental no Brasil
(Correio do Povo, 1962,11 de janeiro, p. 11).
As iniciativas para prevenir ou amenizar as consequências do adoecimento psíquico
também foram enfocadas no Jornal. É o caso da fundação da "Associação de Saúde mental",
motivo de reportagens nos exemplares dos dias 23 de junho e 5 de julho. A matéria relatou a
iniciativa de uma equipe do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, através da qual
se pretendia socializar informações acerca dos fatores desencadeantes da loucura e do
manejo adequado do paciente portador de doença mental. Entre os integrantes da equipe
figuravam psiquiatras, educadores, párocos. assistentes sociais e psicólogos. Dentre esses
últimos foram nomeados na matéria Artur de Matos Saldanha, José Carlos Fenianos, Jurema
Alcides da Cunha e Graciema Pacheco conhecidos profissionais dedicados à psicologia em
Porto Alegre (Correio do Povo, 1962, 23 de junho, p. 9; 1962, 5 de julho, p. 13).
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Nesse período, a Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul estava instituída e
promovia diferentes atividades relacionadas à profissão em processo de oficialização, dentre
essas à saúde mental. Além disso, muitas pessoas se dedicavam à formação disponibilizada
na PUCRS e ao exercício de práticas psicológicas (Scarparo & Osório, 2009, 2011). Contudo, a
elucidação de aspectos referentes aos fenômenos do campo da doença mental, no conteúdo
examinado, era associada aos conhecimentos advindos da medicina, da psiquiatria e da
psicologia. As matérias atribuíam a esses conhecimentos as tarefas de pesquisar o tema,
descobrir precocemente e subsidiar o enfrentamento das ameaças à sociedade que
representava a loucura. Neste sentido, havia forte influência do conhecimento produzido nos
EUA e o jornal examinado frequentemente trazia noticias de pesquisas realizadas e resenhas
de obras publicadas cujos conteúdos corroboravam uma lógica de categorização dicotômica
dos sujeitos: ou são normais ou patológicos.
Entretanto, o reconhecimento nosográfico da manifestação psicopatológica é atribuído
aos profissionais da área médica nos conteúdos examinados. Da mesma forma, os cursos
anunciados referentes à psicanálise, na maioria das vezes, são protagonizados por
profissionais dessa área. É o caso da palestra promovida pela Faculdade de Filosofia da
UFRGS, que abordaria a definição de Psicanálise, psicoterapia de grupo e tratamentos a
partir dessa abordagem (Correio do Povo, 1962, 11 de maio, p. 9; 1962, 15 de maio, p. 16),
assim como do "Seminário Estudantil Latino-americano de Psicologia Médica", realizado em
Ribeirão Preto de 22 a 39 de julho daquele ano (Correio do Povo, 1962, 8 de março, p. 12).
O conceito de saúde mental se traduz no jornal em comportamentos esperados para
uma pessoa normal, ou seja, adaptada às expectativas sociais para homens e mulheres da
época, pautadas pela habilidade no desempenho dos papéis na área familiar e do trabalho.
Os materiais relativos às práticas psicológicas no campo da saúde mental expressam modos
de detectar e prevenir desvios dos padrões de comportamento aceitáveis, indicações de
ordem educativa quanto ao manejo de situações desviantes, espaços de aperfeiçoamento
profissional com recursos da psicologia (por exemplo, "Psicologia das Vendas") ou
oportunidades de qualificação profissional como palestras, congressos e cursos
(especialmente de testes para medir habilidades ou detectar características de
personalidade).
A dissociação presente nas relações internacionais, no período da Guerra Fria, parece
reproduzir-se nas dicotomias saúde mental-doença mental, o que corresponde ao
comportamento normal e comportamento desviante nos conteúdos veiculados nos materiais
examinados. Desse modo, as expectativas sociais na perspectiva do capitalismo
correspondem aos sentidos de saúde e normalidade enquanto o rechaço a essa ideologia
poderia associar-se aos modos de viver anticapitalistas.
Desse modo, o conhecimento e as práticas psicológicas, por sua vez, poderiam ser
instrumentos eficientes de prevenção com detecção dos desviantes e acomodação ao
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paradigma proposto para a normalidade. Em função disso, muitos dos cursos e pesquisas
anunciados na fonte investigada buscavam dar uma conotação de neutralidade e
cientificidade à atividade proposta.
Era evidente a necessidade de pautar pelos critérios de normalidade vigentes no
comportamento desejável. Nesse sentido, destaca-se uma matéria veiculada em um dos
jornais investigados tendo como chamada a questão: "Como está sua saúde mental?"
(Correio do Povo, 1962, 8 de abril, p. 25). Tratava-se de um questionário apresentado no
Congresso Internacional de Medicina e Higiene Escolares, realizado em Paris, em 1959. Esse
questionário pontuava, a partir das expectativas sociais da época para o comportamento
feminino, se a leitora gozava de "boa saúde mental" ou se estava doente e, por isso,
precisava suprimir as causas de seu adoecimento ou buscar ajuda de um especialista para
conseguir adotar "comportamentos normais". Entre as questões figuram: "As crianças a
deixam constantementenervosa?" "Tem medos sem razão?" Você pensa que tem sempre
razão e que as pessoas que discordam de você estão sempre erradas? "Queixa-se de
numerosas dores vagas para as quais os médicos não encontram causas físicas?". É
interessante destacar as noções de saúde mental que se pode extrair do texto. Ele está
associado à felicidade e essa é significada como atributo de uma pessoa "sem problemas",
com atitude calma, cordata, invariavelmente tranquila e amigável.
Nesse exemplo é evidente a associação da noção de saúde mental utilizada à prática de
relações harmônicas e consensuais. Ao mesmo tempo, se desenvolve um conceito
generalizante, através do qual só podem ser caracterizados como saudáveis comportamentos
que não denotem angústias, discordâncias, ansiedade ou imprevisibilidades. Todas essas
possibilidades seriam desviantes do comportamento atinente à normalidade, justificando o
acompanhamento profissional.
Psicologia no jornal: ciência-profissão
Os espaços destinados à psicologia ou aos temas a ela relacionados são frequentes e
diversificados no jornal examinado. As matérias são ilustrativas quanto aos lugares a serem
ocupados e às atribuições para a área no ano correspondente à oficialização da profissão. Um
fato não poderia ser negado: se intensificavam no imaginário social os matizes e contornos
de uma profissão apoiada em conhecimentos voltados para as peculiaridades dos seres
humanos num contexto de ampla valorização do conhecimento científico e dos avanços
tecnológicos. Acrescente-se a essas circunstâncias o controle ideológicoo que propiciava
práticas adaptativas, voltadas para os processos de fortalecimento da lógica de gestão de
negócios e oferecimento ao mercado de bens e serviços.
Uma notícia veiculada em 2 de dezembro de 1962 ilustra bem o vigor desse processo
no Rio Grande do Sul. A manchete "Porto Alegre é sede de um verdadeiro laboratório
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psicológico de cores" (Correio do Povo, 1962, 2 de dezembro, p. 18) referia-se a uma matéria
que relatava uma pesquisa desenvolvida na capital através de uma amostra de 3600 pessoas.
Tinha como mote o conhecimento mais amplo da psicodinâmica das cores. De acordo com
essa notícia em "exaustivo e profundo trabalho", 85 alunos matriculados num curso sobre o
tema, aplicaram o instrumento e coletaram os dados para a investigação coordenada pelo
arquiteto "Dr. Simão Goldman com auxílio da psicóloga Leila Ramos". Ao falar da
relevância do estudo, a matéria informou que os resultados poderiam "fornecer respostas
para muitos casos de aplicação de cores e desenhos na indústria, além de permitir "a
observância de reações psico-sociais". A matéria acrescentava que os resultados seriam
organizados de acordo com o poder aquisitivo dos propósitos para que se compreendesse,
nos diferentes extratos sociais, as preferências e comportamentos vinculados às cores.
Além dessa atividade vinculada a um curso sobre psicodinâmica das cores, outros
cursos voltados para a psicologia também foram alvo de matérias ou, simplesmente, motivos
de anúncio para divulgação no jornal. É o caso do curso de "Psicologia para vendedores",
promovido pelo "Centro de Psicologia da Venda" que era dirigido pelo "psicopedadogogo
Kurt Richter". Esse programa de estudos tinha como objetivos a "preparação adequada do
elemento que milita em vendas". Dentre os conteúdos programáticos figuravam
"biotipologia humana e sua aplicação na prática dos negócios", "dinâmica cerebral da
conduta humana", "psicologia dos grupos humanos", "relações entre servidor e público",
"relações públicas e liderança em reuniões" e "técnicas de vendas" (Correio do Povo, 1962, 8
de fevereiro, p. 16).
Como se pode observar pelas breves descrições acima, havia clara alusão à utilidade
dos conhecimentos da psicologia, tendo em vista a o mercado de trabalho e a atuação no
comércio, podendo exemplificar a ênfase desenvolvimentista presente no Brasil desse
período (Fausto, 2006). Além disso, tratava-se de um saber que não era restrito à atividade
precípua de profissionais da psicologia. Nesses casos, por exemplo, os trabalhos eram
coordenados por um arquiteto auxiliado por uma psicóloga e por um psicopedagogo,
respectivamente. Desse modo, a conquista de um território profissional, através das
especificidades do conhecimento psicológico produzido, parecia uma tarefa árdua e
prolongada.
As fronteiras de atuação da psicologia também foram pauta da visita ao Brasil do
presidente da "Associação Psicanalítica Internacional", o médico estadunidense Maxwell
Gitelson. Através da reportagem "Psicanálise e Psiquiatria tem que caminhar juntas",
veiculada no dia 14 de agosto de 1962, fica clara a disputa por domínios profissionais e
disciplinares. No texto jornalístico, o referido médico afirmou que os conhecimentos da
psiquiatria, da bioquímica e da fisiologia eram de suma importância para a psicanálise no
que tocava à atividade de psicodiagnóstico. Por outro lado, declarou o entrevistado, a
"ciência de Freud" só pode fazer parte do aprendizado da psicologia "de forma intelectual"
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(Correio do Povo, 1962, 14 de agosto, p. 13). A notícia, veiculada duas semanas antes da
oficialização da profissão de psicólogo, trouxe indícios dos tensionamentos acerca dos
territórios de atuação que a profissão teria que enfrentar. Alguns anos depois, tal discussão
se desdobraria no Projeto - Lei n°2726/80 do Deputado Salvador Julianelli, nos anos 1980
(Scarparo, 2009) e, mais recentemente, no Projeto de Lei do Ato Médico, motivos de
controvérsias, disputas e mobilizações por parte das categorias profissionais envolvidas.
Além dos processos de inserção e dos embates pela conquista de espaços profissionais,
podemos afirmar que, em geral, as temáticas voltadas para a psicologia no jornal se
dirigiram tanto à produção do conhecimento científico quanto à sua aplicabilidade na prática
dos profissionais da área. Nesse sentido, a atribuição de avaliar comportamentos
adequados/normais ou não, era usual e esperada nas alusões às práticas psicológicas.
Nesse sentido, foi frequente a socialização de saberes já produzidos, especialmente em
sessões dedicadas à educação de filhos e filhas e à responsabilidade dos pais e mães no
sentido de construir espaços sociais considerados apropriados à ideologia vigente. Nessa
ótica, havia uma coluna denominada "Nós e as crianças", assinada pela psicóloga Yeda
Roesch da Silva, através da qual eram veiculadas informações acerca do desenvolvimento
infantil e do manejo adequado das relações familiares em diferentes situações. Podemos citar
como exemplo, o cuidado com crianças deficientes, o efeito nefasto das exigências
perfeccionistas dos pais e das mães em relação às crianças e a questão da desobediência
infantil. Em outra matéria sobre a psicologia infantil, assinada por uma assistente social
(Correio do Povo, 1962, 21 de janeiro, p. 19), são mencionados os prejuízos ao
desenvolvimento saudável de uma criança, causados pela necessidade de sua mãe trabalhar
fora. Além do permanente conflito para a mulher, o texto ressalta as condições adversas
decorrentes da falta de serviços que possam substituir a mãe e o clima de um lar na sua
ausência.
Tais materiais revelam os paradigmas de família e comportamento presentes no
período como, por exemplo, a preponderância de homens nas atividades remuneradas, no
espaço público. Como decorrência fica clara a indicação do espaço doméstico como lócus
preferencial para as atividades das mulheres. Tais atribuições também são frequentes na
publicidade veiculada no jornal.
As expectativas para a psicologia como ciência aparecem, também, atreladas às
discussões globais da época, mais especificamente ao contexto da Guerra Fria e ao receio de
eclosão de outra Guerra de proporções mundiais, acima mencionados. Chama atenção a
reportagem originada da vinda a Porto Alegre do psicólogo norte americano Henry Clay
Lindgren. O referido cientista exercia suas atividades na Califórnia, na San Francisco State
College e dedicava-se especialmente à saúde mental e psicologia educacional. Veio ao Brasil
patrocinado pela United Nations Educational, Scientificand Cultural Organization
(UNESCO) e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) e, em sua
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estadia no País proferiu cursos e palestras em São Paulo e em Porto Alegre. No Rio Grande
do Sul a atividade foi planejada e organizada pelo Centro Regional de Pesquisas
Educacionais da, então, Universidade do Rio Grande do Sul. Dentre as atividades do
palestrante uma delas chama atenção pela franca vinculação da produção da ciência
psicológica aos temores e expectativas globais característicos da época. Em uma das mais
extensas matérias sobre psicologia expostas no jornal foi divulgado que Lindgren tratou da
"contribuição potencial da psicologia para a paz mundial" (Correio do Povo, 1962, 25 de
agosto, p. 11). Segundo ele, os conhecimentos produzidos na área oferecem elementos
fundamentais para a compreensão das relações internacionais, uma vez que "as relações
entre nações apresentam grande similitude com as relações entre as pessoas, principalmente
no que se refere à hostilidade". Informou que existem muitos "dados objetivos" acumulados
sobre o tema e que podem ser usados para evitar as guerras e prevenir tensões. Revela sua
esperança de que tal aplicabilidade do conhecimento psicológico fosse reconhecida e que as
ações nesse sentido se realizem "antes que seja tarde".
Essa expressão denotaa ênfase na prevenção. No tocante à psicologia ela se dirigiu, na
fonte estudada, frequentemente, à delinquência juvenil. A Matéria "Como descobrir
precocemente a tendência para o crime" - veiculada em 11 de novembro daquele ano,
descreve estudos realizados na esfera da psicologia na Universidade de Bristol. Ao descrever
as características do provável delinquente juvenil, o autor da matéria refere resultados
atinentes a fatores de ordem social, congênita, familiar e psicológica, entre outras. A detecção
precoce éfortemente indicada e a causa da delinquência é atribuída a uma "desintegração da
motivação normal e racional" que faz com que a pessoa repudie tudo o que se constitui
"aspiração máxima para a pessoa normal". Tal aspiração é traduzida por "perspectivas
econômicas, estima da família, amigos e oportunidades matrimoniais" (Correio do Povo,
1962, 11 de novembro, p. 15). Trata-se de apenas mais uma das matérias que confere ao
conhecimento psicológico o lugar de legitimar a condição de normalidade ou saúde mental
traduzida na capacidade de cumprir os requisitos de inserir-se no mercado de trabalho,
constituir família e produzir relações sociais pautadas pela harmonia e pela adaptação à
ordem social vigente.
Nessa perspectiva, são reiterados os anúncios e matérias do jornal atinentes à avaliação
psicológica e às descrições das maneiras consideradas adequadas de ser e de viver na
sociedade, naquele contexto. Encontramos também materiais coletados acerca da
aprendizagem e aplicação de instrumentos que pudessem favorecer as práticas de
diagnósticos e a classificação ou categorização do comportamento dos indivíduos. Assim, o
uso de instrumentos de avaliação da personalidadee de habilidades para as tarefas do
âmbito educacional ou do trabalho denotava a premência de predição de comportamentos.
Tal predição abria espaços para a inserção de psicólogos nas tarefas de orientação,
recrutamento e seleção profissional. É o caso da matéria acerca de Orientação Vocacional que
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Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve
tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de
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menciona o uso de recursos psicotécnicos para subsidiar o acompanhamento de jovens no
momento de sua escolha profissional (Correio do Povo, 1962, 27 de maio, p. 15).
Em notícia veiculada no dia 10 de março, é relatada a iniciativa da Universidade de
Brasília "a mais nova e (dita "revolucionária") universidade brasileira", no sentido de
promover entrevistas e exames psicotécnicos para os candidatos inscritos nos diferentes
cursos oferecidos. A proposta foi justificada e elogiada pelo jornal pela "salutar finalidade de
ordem vocacional" e "pelo afastamento da universidade de gente psiquicamente incapaz de
a frequentar, embora passando nos exames ordinários" (Correio do Povo, 1962,10 de março,
p.4).
As circunstancias construídas até então expressas no jornal examinado favoreceram o
processo de legitimaçãoda psicologia como prática profissional o que aconteceu no dia 27 de
agosto de 1962, com a Lei n. 4.119. Houve grande euforia por esse reconhecimento e
iniciaram-se movimentos pela ocupação de espaços de atuação, pela delimitação e defesado
território profissional. Para Chaves (1992), tal defesa referia-se principalmente à classe
médica, a qual não reconhecia plenamente a psicologia. No jornal examinado, na edição do
dia 27 de agosto, uma pequena nota divulga uma reunião da Sociedade de Psicologia do Rio
Grande do Sul na qual seu presidente, José Carlos Fenianos expressa sua satisfação pela
recente sanção presidencial do Projeto que regulamenta o curso de Psicologia e a atividade
profissional. Tal notícia é acrescida da informação de que, a partir de então, muitos novos
candidatos se inscreviam para associar-se àquela entidade, o que denota a emoção e
esperança de construir um espaço profissional profícuo.
Considerações finais
O estudo aqui descrito fez uma tentativa de explicitar sentidos formulados pelo jornal,
acercadas circunstâncias e dos processos para oficialização da Psicologia como profissão
legalmente instituída no Brasil em 1962.
Se pensarmos na perspectiva do historiador, trata-se de um breve tempo. Cinquenta
anos é uma curta distância entre o presente e os tempos vividos no início dos anos 60. Em
função dessa aproximação temporal, é na imprensa diária que encontramos subsídios
(Hobsbawm, 1995) para conhecer, de modo mais preciso, as especificidades e circunstâncias
dos processos de instituição da psicologia no Brasil.
Ao folhear os jornais de 1962 nos deparamos com manchetes, notícias e imagens que
atravessavam o cotidiano dos psicólogos e das psicólogas que, em 27 de agosto,
comemoraram a oficialização da profissão. Desse modo, foi possível compreender aspectos
da articulação dos contextos narrados pelo conteúdo jornalístico com demandas, projetos e
práticas profissionais possíveis naquele momento. Podemos dizer que ao pesquisar criamos
uma articulação entre os materiais midiáticos e o olhar do leitor ou leitora preso a um espaço
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Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve
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futuro. Nele se instituem as experiências e expectativas para a profissão posteriores ao
contexto desenhado pelo jornal.
Os achados reforçaram a impossibilidade de estabelecer divórcios entre as ideias e os
contextos. Tal constatação nos levou a optar por uma investigação fundada nas diferenças
dos tempos e compreender sentidos produzidos numa história singular. Ou seja,
reconhecendo a natureza eminentemente datada da fonte consultada, buscamos
compreender desenhos possíveis da Psicologia no Brasil, através do olhar para o texto e para
contexto: a escrita, suas linguagens, as circunstâncias e as considerações sobreefeitos sociais e
políticospossíveis de se vislumbrar.
Na sociedade contemporânea, informações sobre os acontecimentos se dão através dos
meios midiáticos (Braudel, 1992). Com a elaboração deste estudo, testemunhamos a
complexidade de um tempo de incertezas, no qual a psicologia era considerada novidade e,
ao mesmo tempo, instrumento de inovação para intervir nas relações sociais. Por outro lado,
no presente, as distâncias dos sistemas de crenças e dos vocabulários normativos daquela
época, nos fazem pensar nas singularidades que se estabelecem no fazer da psicologia no
presente. Hoje somos muitos e diversos. Exercemos muitas psicologias e nos relacionamos
com diferentes territórios. Em todos eles encontramos demandas, incertezas e esperanças. As
demandas, ecos de outras vozes ou chances de criação, sugerem a amplitude e diversidade
do trabalho possível; as incertezas, frutos de conceitos esvaziados pelo tempo e do
envelhecimento de valores nos impõem pensar nas éticas que justificam práticas tão
distintas. E as esperanças? Só em escrever a palavra brotam várias, o que denota a
impossibilidade de restringi-las a um texto. De qualquer forma, a autoria nos possibilita
ressaltar uma que gostaríamos de compartilhar aqui: a de participar da construção da
história da psicologia no sentido de favorecer a consolidação de práticas solidárias, capazes
de reconhecer a riqueza da vida todos os dias. Tal esperança não admite comportamentos ou
caminhos marcados de forma rígida por métricas descontextualizadas ou pela renovação de
dogmas; ela sugere o exercício político de fazer psicologia e de desejar que os meios
midiáticos do século XXI narrem a história de uma profissão que participou da construção
do mundo da dignidade humana.
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Funda-se hoje o Io "Clube da Saúde Mental" (1962, 23 dejunho). Correio do Povo, 219,9.
Primeira diretoria da Assoc. de Saúde Mental (1962, 5 de julho ). Correio do Povo, 229,13.
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Só um doente mental pode querer uma guerra nos dias atuais afirma Kennedy a estudantes
brasileiros (1962, 1° de agosto). Correio do Povo, 252,1.
Psicanálise e psiquiatria tem que caminhar juntas (1962, 14 de agosto). Correio do Povo, 263,
13.
Psicologia acumula dados que podem ser usados para prevenir as guerras (1962, 25 de
agosto). Correio do Povo, 273,11.
O hospital São Pedro e a terapêutica ocupacional (1962, 9 de outubro). Correio do Povo, 7,11.
Como descobrir precocemente a tendência ao crime (1962,11 de novembro). Correio do Povo,
35,15.
Porto Alegre é sede de um verdadeiro laboratório psicológico de cores (1962, 2 de
dezembro). Correio do Povo, 52,18.
Nota sobre autores
Helena Beatriz Kochenborger Scarparo. Doutora em Psicologia Social pela PUCRS.
Professora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUCRS. Contato:
[email protected]
Thais de Souza Sottili. Graduanda da Faculdade de Psicologia da PUCRS. Bolsista de
Iniciação Científica do Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUCRS. Contato:
[email protected]
Carla Estefanía Albert. Doutoranda em Psicologia Social do Programa de Pós Graduação
em Psicologia da PUCRS. Contato: [email protected]
Luciana Oliveira de Jesus. Mestranda em Psicologia Social do Programa de Pós
Graduação em Psicologia da PUCRS. Contato: [email protected]
Data de recebimento: 03/08/2012
Data de aceite: 24/04/2013
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Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013).
Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil.
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Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e
resistência durante a ditadura militar no Brasil
Promises of life in times of threat: women, music and resistance during the military
dictatorship in Brazil
Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento
Sara Angélica Teixeira da Cruz Silva
Jaíza Pollyanna Dias da Cruz
Flaviane da Costa Oliveira
Flávia Gotelip Corrêa Veloso
Laís Di Bella Castro Rabelo
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Resumo
Esta investigação apresenta a temática da ditadura militar brasileira (1964-1985),
focalizando as experiências de prisão e tortura de ex-presas políticas durante o regime,
integrando um conjunto mais amplo de pesquisas que exploram o tema neste período
histórico específico. A pesquisa proposta parte do relato de cinco entrevistadas,
privilegiando trechos que elucidam o papel da música na trajetória de resistência das
militantes. Por meio de análise de conteúdo das informações, revelaram-se as seguintes
categorias: a música como arte e militância; estratégia de integridade física, psicológica e
moral; coesão grupal e expressão de afeto. A discussão temática é perpassada por
elementos conceituais do campo de análise da memória psicossocial e da teoria de
identidade social. Os resultados apontaram a importância que as atividades culturais
tiveram como veículo de crítica e resistência ao autoritarismo, tornando-se importante
modo de enfrentamento da experiência de prisão e tortura.
Palavras-chave: mulheres; ditadura; resistência; música
Abstract
This investigation presents the theme of the Brazilian military dictatorship (1964-1985),
focusing on the experiences of prison and torture undergone by ex-female political
prisoners during the time of such regime, and also encompassing a wider body of
research that explores the theme at this particular historical period. From the accounts
given by five interviewees, there has been made a clipping that privileged fragments that
portray the role of music in this activist women's journey of resistance. By analyzing the
content of the pieces of information, the following categories have stood out: music as a
form of art and militancy; as a strategy to preserve physical, psychological and group
integrity; as an expression of affection and group cohesiveness. The thematic discussion
is colored by conceptual elements from the field that analyzes psychosocial memory and
the social identity theory. The results have pointed to the importance of cultural activities
as an approach to critical opposition and resistance to authoritarianism, and to the fact
that they became an important way of facing the experiences of prison and torture.
Keywords: women; dictatorship; resistance; music
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1. Introdução
Tudo em volta é só beleza
Sol de abril e a mata em flor
Mas Assum Preto cego dos óios
Num vendo a luz, ai, canta de dor
(Assum Preto, Humberto Teixeira & Luiz
Gonzaga, 1950)
A ditadura militar no Brasil (1964-1985) foi precedida por lutas em prol de melhorias
sociais, que incluiriam reformas estruturais, no âmbito da educação, saúde e economia,
condensadas nas chamadas "Reformas de Base", metas centrais do governo de João Goulart
(1961-1964) (Arquidiocese de São Paulo, 1985). Tais metas favoreceram ações sociais e
conspirações políticas e militares, culminando no golpe militar em Io de abril de 1964.
Nos quatro primeiros anos da ditadura as medidas repressivas do regime autoritário
nem sempre possibilitavam uma distinção clara das fronteiras entre o que era proibido ou
permitido para a população. Com o fortalecimento das organizações e movimentos
populares em oposição ao regime, o governo militar instaurou uma atmosfera de medo,
silêncio e repressão que culminou na promulgação do Ato Institucional n° 5 - o AI-5, 13 de
dezembro de 1968. Conhecido como o golpe dentro do golpe, marcou o enrijecimento do
Regime Militar que ficou conhecido como os anos de chumbo (Almeida & Weis, 2002;
Gianordoli-Nascimento, Trindade & Santos, 2012; Ventura, 1988). Passou a vigorar no país
uma política de perseguição aos que contestavam ou representavam algum tipo de ameaça ao
governo intensificando os atos violentos: prisões arbitrárias, práticas de tortura, mortes,
desaparecimento, banimento e exílio (Arquidiocese de São Paulo, 1985; Coimbra, 2001).
A repressão levou as ações contrárias ao regime a adentrar a esfera privada dos
oposicionistas. Almeida e Weis (2002) esclarecem que diferentemente das democracias, em
regimes de exceção as esferas públicas e privadas se entrelaçam, pois permitem cada vez
menos mobilizações na esfera pública fazendo com que "a resistência ao regime
inevitavelmente (...) [arraste] a política para dentro da órbita privada". Neste sentido os
autores apontam que "é consenso considerar privado, em sentido amplo, o âmbito da
chamada sociedade civil: as atitudes, atividades, relações, e formas de organização não
voltadas para o sistema político, ou, mais especificamente, não orientadas para influenciar,
conquistar ou exercer o governo" (Almeida & Weis, 2002, p.327, grifo do autor).
Com o AI-5 "oficializou-se o terrorismo de Estado (...). O Congresso Nacional e as
Assembleias Legislativas estaduais foram colocados temporariamente em recesso e o
governo passou a ter plenos poderes para suspender direitos políticos dos cidadãos"
(Ridenti, 1999, p. 59) como a suspensão do direito a habeas corpus (Brasil, 2007). Em dezembro
de 1968, há uma nova onda de cassação de mandatos políticos e ampliação da censura às
manifestações culturais e à imprensa (Almeida & Weis, 2002). Com a ascensão dos militares
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linha dura o Estado passou a utilizar a violência de forma arbitrária e permanente em suas
ações. Esse tipo de política, caracterizada como Ideologia ou Doutrina da Segurança
Nacional, tem bases herdadas do nazismo e das grandes potências do pós-guerra (Boff, 1987;
Borges, 2003; Chauí, 1987). Segundo Boff (1987),
O que houve foi a ruptura com um acordo mínimo que sustenta o Estado de
Direito. Este pressupõe um consenso acerca de certa ordem social (...) e uma
adesão a referências básicas de direitos e de deveres do Estado e do cidadão.
Um Estado de Direito não se sustenta sem o consenso mínimo (...). Em lugar
do antigo consenso e do novo a surgir entrou a violência como forma de
relação do Estado para com o resto da sociedade. E com a violência, a tortura
como expressão da força de submetimento de todos os que resistem,
divergem, se opõem ao Estado ditatorial (p. 11).
Ainda que a tortura tenha sido utilizada no período inicial do regime, foi somente após
o AI-5 que tal prática foi institucionalizada pelo Estado e usada de modo sistemático contra
os opositores ao ser atrelada à política de segurança nacional adotada pelo Estado. Mediante
esse cenário de acirramento da repressão, as ideias que inspiravam o movimento de
reconstrução sociopolítico do país tiveram que encontrar novas formas de existência (Carmo,
2001; Ferreira, 1996; Martins Filho, 1987). Assim, além da militância vinculada a organizações
políticas, outros setores da sociedade fizeram oposição ao regime militar ao reagir às
tentativas de silenciamento impostas pelo Estado, visando restabelecer a possibilidade de
expressão política.
Os problemas sociais e políticos denunciados pela esquerda, juntamente com a crítica
feita aos valores sociomorais da classe média abastada, que cultivava preconceitos e ideias
estreitas, o chamado comportamento pequeno-burguês, passaram também a ser tematizados
no campo da cultura que buscava transformações de valores e costumes ao questionar e
romper com os valores sociomorais tradicionais (Almeida & Weis, 2002; GianordoliNascimento, Trindade & Santos, 2012). Nesse contexto, o cenário cultural foi atingido por um
intenso movimento de renovação que alcançou os meios de difusão cultural, da música
popular ao cinema novo, passando também pelo teatro e pela literatura (Almeida & Weis,
2002; Ferreira, 1996; Gianordoli-Nascimento, Trindade & Santos, 2012; Ventura, 1988; Albin,
2002).
Valorizando esses aspectos, este trabalho enfoca a trajetória de mulheres que
participaram da militância política rompendo com os códigos e valores sociais da época.
Neste sentido, a investigação destacou a música como instrumento de resistência, protesto,
sobrevivência e espaço de elaboração de sentidos (Berger & Luckmann, 2004), para mulheres
militantes em situação de prisão e tortura, durante o regime militar no Brasil.
Além da discussão temática sobre o cenário histórico-social da ditadura militar, alguns
elementos conceituais do campo de análise da memória psicossocial (Sá, 2007; 2009) e da
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Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013).
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teoria de identidade social (Tajfel, 1983), serão acionados a fim de contribuir para o
enriquecimento das análises realizadas.
1.1 A resistência ao golpe militar pós-1964: o movimento musical na cultura de protesto
A produção cultural brasileira no período ditatorial promoveu a aproximação de
diversos grupos que questionavam o regime e fez ecoar as vozes contrárias ao sistema,
silenciadas mediante o acirramento dos mecanismos de repressão. Exemplo disso foi a
relação entre o meio artístico e o movimento estudantil, que fortaleceu as manifestações
deste último para além das causas educacionais alcançando a contestação e denúncia das
mazelas da sociedade brasileira (Gianordoli-Nascimento, Trindade & Santos, 2012).
A partir de meados da década de 1960, a produção artística nacional, em especial o
teatro e a música, passou a apresentar questões políticas e sociais que denunciavam a
realidade brasileira, tornando-se um dos mecanismos de maior resistência ao regime militar
(Abreu, 1997; Aguiar, 1994; Ferreira, 1996; Michalski, 1994; Simões, 1999; Ventura, 1988). É
nesse período histórico que se formou "um novo perfil de resistência que se convencionou
chamar de cultura de protesto" (Caldas, 2005, p. 123).
As manifestações culturais de protesto tiveram seu auge entre 1964 e 1968, período em
que, embora houvesse a censura institucionalizada por meio de cortes e proibições, a
repressão se manifestava por atos isolados. Com o recrudescimento da repressão, após o AI5, a perseguição à classe artística se tornou intensa obrigando alguns artistas ao exílio
forçado ou autoexílio (Caldas, 2005; Kornis, 2004). A música, uma das expressões artísticas,
ficou caracterizada também como prática político-ideológica, expressando ideais, atitudes,
valores, convicções e motivações que ajudaram a fortalecer a resistência à ditadura
(Bernardo, 2007; Starling, 2004).
Em função do lugar que ocupou tanto na indústria cultural quanto na cultura da
juventude, a música popular foi importante canal de denúncia do autoritarismo no país. Um
dos maiores exemplos disto é a música de Geraldo Vandré que se tornou o Hino do combate
a ditadura no Brasil:
Nenhuma outra criação artística simbolizou com tanto vigor a oposição ao
regime, nem tão explicitamente convocou à sua derrubada - pelo menos até
o "Hino Nacional" cantado por Fafá de Belém (...) em 1984 - quanto "Pra não
dizer que não falei das flores" de Geraldo Vandré, que horrorizou os
militares para todo o sempre pelos seus versos explícitos sobre o que se
ensinava nos quartéis ("morrer pela pátria/e viver sem razão") (Almeida &
Weis, 2002, p. 345).
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O ideário de libertação difundido por qualquer segmento intelectual, artístico,
estudantil ou operário, ficava impossibilitado de ser conjugado com a ideologia da
Segurança Nacional imposta pelo regime (Ventura, 1988), que atacou com virulência a
produção artística e cultural do país durante a época, inclusive causando impacto devastador
sobre os profissionais1. A censura muitas vezes proibia obras inteiras, cancelando a
encenação de peças, a publicação de livros, o lançamento de discos ou canções isoladas,
classificando vários artistas como inimigos do Estado. Antes mesmo de deflagrado o AI-5,
alguns representantes incipientes da Música Popular Brasileira (MPB)2 já haviam sido
incluídos nesta categoria, entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Taiguara e Geraldo
Vandré (Almeida & Weis, 2002).
O ano de 1965 foi um marco da chamada "era dos festivais" (Napolitano, 2004c, p. 203),
quando ocorreu o I Festival da MPB, na TV Excelsior. Chico Buarque e Geraldo Vandré
passaram a serem reconhecidos na cena musical do período após o II Festival de MPB na TV
Record-SP, em 1966, e seguiram com suas notáveis participações nos festivais até 1968
(Napolitano, 2004a, 2004c). Os festivais de músicas da TV Record-SP foram essenciais para a
consolidação de novos artistas, mas tiveram sua atuação impactada pela repressão e censura,
cada vez mais acentuadas após este ano (Napolitano, 2004a, 2004c).
No cenário musical as figuras que mais se destacaram foram Geraldo Vandré e Chico
Buarque de Holanda, considerados inimigos do Estado repressor devido ao conteúdo
propagado pelas suas canções e pelo consequente sucesso das mesmas. A música
Caminhando, lançada por Geraldo Vandré no festival de 1968, ficou proibida de ser cantada e
executada em todo o país. Só voltou a ser veiculada em 1979, após a abertura política e a
anistia, quando a cantora Simone a cantou em um show no Canecão/RJ. Posteriormente,
Perseguido intensamente pelo regime, Geraldo Vandré esteve exilado de 1969 a 1973. Após o exílio, não
conseguiu recuperar a carreira interrompida pela censura presente na ditadura militar. Foi um dos mais
emblemáticos casos de uma expressiva carreira artística, emprestada ao combate à ditadura militar, abruptamente
calada pela ditadura. Com o fim do regime, o cantor não faria sucesso expressivo no cenário musical e muitos
cogitaram uma mudança ideológica ou acometimento mental, em detrimento de torturas sofridas durante o
regime. Já Taiguara, considerado uma das mais belas vozes masculinas da MPB, foi um dos cantores que mais se
opuseram a censura da ditadura militar. Sua obra pagou o preço da perseguição e em 1971 tornou-se um dos
alvos da censura, chegando a ter no ano de 1973 onze músicas proibidas (Albin, 2002; Araújo, 2005; Caldas, 2005;
Bernardo, 2007). A perseguição levou Taiguara a dois autoexílios. Em meados de 1980 retornou em definitivo
para o Brasil, porém não conseguiu mais manter uma inserção contínua no cenário musical.
Segundo Napolitano (2005), a sigla foi utilizada em letras maiúsculas pelas primeiras vezes em LP's e eventos
musicais em meados de 1965, quando o gênero musical tenta aglutinar toda a tradição musical popular brasileira.
O autor aponta que a sigla MPB traz em si traços de estilos musicais que se uniram e passaram a delimitar uma
ideologia comum aos artistas e às pessoas que na Música Popular Brasileira se identificavam.
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Chico Buarque "se tornou alvo da mais longa e acidentada história de atritos com a ditadura
e a censura" (Almeida & Weis, 2002, p. 346). Ambos são considerados ícones fomentadores
da notoriedade da MPB (Napolitano, 2004b).
Durante o período, esses artistas utilizaram diferentes recursos musicais para contestar
a política do Governo. Enquanto Geraldo Vandré criticava diretamente a ditadura, Chico
Buarque deixava suas mensagens escamoteadas por uma linguagem que trazia duplo
sentido de interpretação (Napolitano, 2003; Ribeiro, 2004).
A figura de Chico Buarque é considerada paradigmática, ainda que nem todas as suas
canções fossem de protesto. Gostar de ouvir Chico Buarque implicava simpatizar com
valores que estavam culturalmente associados a questões republicanas. Tais ideias ficaram
vinculadas de forma emblemática à MPB de modo geral, sem que necessariamente o
conteúdo das músicas tivesse em si uma discussão política (Almeida & Weis, 2002).
A MPB ficou marcada por reunir músicos que já atuavam na Bossa Nova, como
Vinícius de Moraes, Baden Powell, e artistas que surgiam naquele momento, como Elis
Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso e Geraldo Vandré. Assim, sobre o considerável papel
da MPB, Napolitano (2005) esclarece que:
A MPB será um elemento cultural e ideológico importante na revisão da
tradição e da memória, estabelecendo novas bases de seletividade,
julgamento e consumo musical, sobretudo para os segmentos mais jovens e
intelectualizados da classe média. A "ida ao povo", a busca do "morro" e do
"sertão", não se faziam em nome de um movimento de folclorização do
povo como "reserva cultural" da modernização sociocultural em marcha,
mas no sentido de reorientar a própria busca da consciência nacional
moderna. Nessa perspectiva é que se deve entender as canções, atitudes e
performances que surgiram em torno da MPB, que acabaram por incorporar
o pensamento folcloricista ("esquerdizando-o") e a ideia de "ruptura
moderna" da Bossa Nova ("nacionalizando-a") (p. 64).
Nesse sentido, a MPB tornou-se um canal de diálogo entre o povo e os intelectuais, já
que mantinha vínculos com a tradição do cancioneiro popular. Expressou-se, então como
campo fértil para as emergentes questões políticas, através de uma resistência cultural ligada
ao movimento nacional-popular (Vianna, 2004). Nesse contexto a música torna-se veículo
inédito de aglutinação entre classes musicais, antes separadas.
Um dos momentos mais importantes da cultura musical brasileira, após o golpe
militar, foi o show musical Opinião, realizado em Dezembro de 1964 pelos jovens exintegrantes do Centro Popular de Cultura (CPC) com a participação de cantores e
compositores como João do Vale, Zé Kéti e Nara Leão (Caldas, 2005; Vianna, 2004). O CPC
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foi criado em 1962 por um grupo de intelectuais de esquerda associados à União Nacional
dos Estudantes (UNE) com o objetivo de conscientizar politicamente as massas através de
uma "arte revolucionária" (Caldas, 2005, p. 89) e foi extinto em março de 1964 pelo golpe
(Caldas, 2005; Kornis, 2004).
Apesar do CPC ter se extinguido, a organização do evento ainda contou com caráter de
conscientização popular defendido até então pelos seus membros, pautado na captação de
novos valores e anseios para melhorias sociais, que naquele momento do evento atingia um
novo público. Realizado no emblemático teatro de Arena, em Copacabana, bairro de classe
média do Rio de Janeiro, o show trazia em seu bojo uma conotação política que agora
contava com o respaldo do segmento intelectualizado da classe média. O próprio nome do
evento, Opinião, foi uma escolha notoriamente política e de resistência (Caldas, 2005).
Com o fechamento das organizações que fizeram oposição ao regime "a cultura parecia
ser uma das poucas alternativas de oposição, e a música um meio eficaz de se dizer o que
estava abafado" (Bernardo, 2007, p. 17). A música, assim como "todas as formas de
manifestação artística, além de seu sentido lúdico e estético, tinha ainda importante função
de alertar a sociedade para os seus problemas" (Caldas, 2005, p. 121).
Diante do exposto, podemos compreender como as manifestações culturais, e
especialmente a música, fizeram parte da trama social do cenário da ditadura militar no
Brasil, tendo sido silenciadas pela censura, mas não apagadas das lembranças/ experiências
partilhadas por diferentes grupos sociais que vivenciaram de forma singular este momento
histórico.
1.2 Ecos da memória feminina: militância e identidade
A história de um país, ou de um povo, pode ser escrita e contada por diferentes
versões. Há nesta forma de narrar ou escrever, uma peculiaridade construída socialmente
que atravessa os espaços e as relações micro e macrossociais: a hierarquia do que será
mantido ou omitido, que conduz a construção de uma versão considerada oficial e
legitimada como verdade.
Nas diferentes versões da história, seja oficial ou silenciada, a participação feminina
permanece hierarquicamente inferiorizada (Perrot, 2005), seja nas organizações políticas de
esquerda, nas guerrilhas armadas urbanas e rurais, e nas ações de oposição ao regime militar
(Ferreira, 1996; Gianordoli-Nascimento, Trindade & Santos, 2012; Goldenberg, 1997; Ridenti,
1990).
Os poucos registros sobre as militantes na história oficial brasileira sinalizam uma
tentativa mais de "esquecer do que recordar com espírito crítico um passado que,
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visivelmente, mais incomodava que interessava a imensa maioria" (Reis, Ridenti & Motta,
2004, p. 9).
Gianordoli-Nascimento, Trindade e Santos (2012) assinalam que após o fim do regime
militar no Brasil, por mais de vinte anos uma grande parcela dos atores envolvidos não pôde
assumir e contar suas próprias histórias. Poucos são os registros históricos da participação de
mulheres na militância política (Colling, 1997; Goldenberg, 1997; Ridenti, 1990), aspecto que
elucida, entre outros, a relevância desta investigação. Segundo Ferreira (1996), a produção
historiográfica e a própria constituição da memória situam-se em um mesmo campo de
relações de poder, onde o discurso oficial sobrepõe-se a outros discursos e memórias.
Um período histórico traumático, a exemplo do ditatorial, pode trazer consequências
como a falta de possibilidades para expor, lembrar ou ainda elaborar as memórias, gerando o
silenciamento. Segundo Pollak (1989), o silêncio não significa que o passado foi esquecido,
mas demonstra "a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de
discursos oficiais" (p. 5). É possível, então, que um acontecimento ou um período histórico só
possam ser mais adequadamente recontados numa rede de discursos parciais, com seus
atritos, pontos de contato e independências.
Sá (2007, 2009), ao organizar o campo da memória social em torno de uma perspectiva
psicossocial, aponta que as memórias orais, pessoais e comuns de um período, ao serem
registradas e divulgadas, podem contribuir para a difusão de novos aspectos dos fatos
históricos entre indivíduos que não o vivenciaram, ou até mesmo entre aqueles que não
tiveram acesso a esse tipo de informação.
Cabe ressaltar que a análise psicossocial da memória (Sá, 2007, 2009) diferencia-se do
foco dos historiadores, pois
A preocupação do psicólogo social não é com a preservação dos relatos ou
com a confiabilidade das fontes, como faz a história oral, mas sim com o
processo e com as circunstâncias segundo os quais tais memórias são
construídas, reconstruídas ou atualizadas por conjuntos sociais mais ou
menos amplos e, por diferentes critérios, suficientemente circunscritos (Sá,
2007, p. 294).
A partir desta perspectiva psicossocial da memória, a reconstrução de uma memória
histórica (Sá, 2007) torna-se possível, na medida em que são valorizados os depoimentos dos
grupos e indivíduos cujas vozes se encontravam silenciadas. Dentro deste quadro, alguns
autores (Catela, 2001; Padrós, 2007; Tanno, 2005) apontam a importância desses depoimentos
e experiências para a análise da questão da violência e seus desdobramentos durante os
períodos ditatoriais, pois além de revelarem histórias e dramas individuais e de familiares,
que se entrelaçam e ganham sentido no quadro da repressão militar, trazem a tona seus
aspectos obscurecidos.
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O silêncio que paira sobre estas histórias remete à disputa entre o que é lembrado e
esquecido na constituição da memória histórica do período (Pollak, 1989; Sá, 2009). Sendo as
memórias patrimônios dos grupos sociais, revelar ou omiti-las deflagra a dinâmica de
valorização e proteção da identidade social dos grupos. Desta forma, percebe-se uma
interconexão entre as dinâmicas de relações intergrupos que compõem a identidade social
(Tajfel, 1983) e a construção da memória social (Sá, 2007) das gerações. Assim, a construção
da memória está intimamente relacionada com a identidade social, carregada de elementos
"históricos, culturais, religiosos e psicológicos" (Carneiro, 1994, p. 187).
A Teoria da Identidade Social (Tajfel, 1983) compreende a identidade como processo
dinâmico construído a partir da relação intergrupos. A identidade social é composta pelo
auto-conceito, somado às pertenças grupais que cada membro do grupo partilha. Os grupos
se comparam, estabelecendo categorias para se diferenciarem uns dos outros (Tajfel, 1983),
neste processo, estão emjogo mecanismos de categorização, comparação e diferenciação, que
envolvem aspectos sociocognitivos.
O processo de categorização e comparação social imbricado na construção de um nós e
de um eles, tem por função organizar a realidade. Nesta dinâmica, processos de identificação
e diferenciação, podem produzir distanciamentos ou proximidade entre os grupos. Como
estratégia de proteção da identidade social, os grupos se relacionam de modo a valorizar
atributos do grupo de dentro (endogrupo ou ingroup) e de des valorização do grupo de fora
(exogrupo ou outgroup), protegendo e fortalecendo a identidade social (Tajfel, 1983). A
proteção endogrupal, algumas vezes, pode conduzir a formas de exclusão, manifestando-se
em atos violentos, tais como, o preconceito e a discriminação, podendo chegar ao extermínio
(Souza, 2004). Por outro lado, o reconhecimento de pontos de identificação (Bonomo,
Trindade, Souza & Coutinho, 2008) através da comparação social, pode levar a construção de
redes de solidariedade entre os grupos, que superam a separação imposta no processo de
diferenciação. Internamente, a formação de laços de solidariedade, pode representar
importante elemento de fortalecimento e coesão da identidade social do grupo de pertença
(Souza, 2004).
2. Método
Esta investigação apresenta a temática da música no período da ditadura militar
brasileira, focalizando os relatos referentes à prisão e tortura de mulheres militantes, presas
políticas durante o regime. O presente trabalho integra um conjunto mais amplo de
pesquisas que exploram este período histórico específico. A produção destas pesquisas
contribuiu para a construção de um banco de dados composto por vinte e cinco entrevistas
de mulheres militantes e familiares de ex-presos políticos, mortos e desaparecidos.
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38
As entrevistas foram realizadas em períodos distintos entre 2002 e 2012, obtidas
individualmente, a partir de um roteiro semi-estruturado que serviu de guia para o
conhecimento da trajetória de vida das militantes.
Esse trabalho é um recorte temático, a partir do relato de cinco mulheres militantes
entrevistadas, privilegiando trechos que elucidam o papel da música como instrumento de
resistência em suas trajetórias, salientando a importância da Música Popular Brasileira para
seus enfretamentos pessoais e coletivos em situações de prisão e tortura.
Considerando as especificidades e características de cada uma das entrevistadas e com
o objetivo de garantir seu anonimato, optamos pela utilização de nomes fictícios que não
guardam qualquer semelhança com os nomes verdadeiros ou codinomes utilizados pelas
entrevistadas durante o período de militância. O Quadro 1 caracteriza as militantes em
relação à sua prisão, que ocorreram em bases militares do exército, presídios comuns, DOPS3,
DOI-CODI4 e CENIMAR5. Estão identificadas as cidades onde a militância se iniciou, embora
a trajetória de militância as tenha conduzido a diversas cidades brasileiras. As sucessivas
prisões também ocorreram em várias cidades, sendo que algumas militantes foram
remanejadas de centros de tortura a presídios ao longo do período de prisão. Todas as
informações do quadro foram obtidas a partir dos relatos. Quanto ao tempo de prisão, cabe
ressaltar que o mesmo não tem correlação com o grau de sofrimento das entrevistadas, uma
vez que as dimensões de sofrimento e tempo são vividas de forma singular.
Quadro 1: Caracterização das mulheres entrevistadas
Nome ficticio
Local ele inicio
,
.,..„ .
,
.
Ano das prisoes
r
da inÜltanCia
Tempo total de prisao
f
.
_•*.
(aproximado)
Idade na época
, prisao
. 5
da
_
. ,
Qasse social
larrnvimarlní
ría tincan
3 anos
19 anos
Média-alta
a
Sóida
Vitória-ES
I ) 1968
2a)19ó8
3a)19ó9
4a)1971
Rita
Vitória-ES
la)1972
2a)1972
40 dias
21 anos
Baixa
Rosane
Vitória-ES
1972
40 dias
2üanos
Baixa
Renata
Vitória-ES
1972
2 meses
21 anos
Média-alta
Sofia
Sao Paulo-SP
1972
26 anos
Baixa
DOPS - Departamento de Ordem Política e Social
DOI-CODI - Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna
CENIMAR- Centro de informações da Marinha
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As informações foram submetidas à análise de conteúdo (Bardin, 1977/2009),
revelando as seguintes categorias: 1. A música como arte e militância; 2. Estratégia de
integridade física, psicológica e moral; 3. Coesão grupal e expressão de afeto. Ressalta-se que
na apresentação e discussão dos resultados, os trechos de uma mesma entrevista poderão
compor mais de uma categoria, uma vez que os temas estão entrelaçados.
A discussão temática será perpassada por elementos conceituais do campo de análise
da memória psicossocial (Sá, 2007, 2009) e da teoria de identidade social (Tajfel, 1983). Desse
modo, resultados e discussão formam um amálgama que compõe experiências, memórias e
história.
3. Resultados e discussão
3.1 A música como arte e militância
A musicalidade é um dos elementos que compõem a identidade nacional brasileira
(DaMatta, 1994) sendo um traço de reconhecimento internacional, reforçado e
autorreconhecido na experiência dos brasileiros, seja em seus ritos, festejos e tradições. No
país, entre a "invenção do samba" (Carvalho, 2004, p. 65), ocasionada na década de 1930, até
a transição à democracia, em meados da década de 1980, a música foi lugar de edificação da
opinião pública e de uma interpretação comum acerca da moderna trajetória do Brasil
(Carvalho, 2004).
Segundo Starling (2004), no Brasil, a música possui uma vocação ética e pedagógica,
capaz de criar uma imagem de mundo comum, possível de ser válida para indivíduos de
uma mesma coletividade, podendo integrar, assim, públicos diversos e fornecer temas e
recursos de linguagem para o debate sobre a realidade brasileira.
Ressoa nas trajetórias individuais de algumas militantes entrevistadas, o papel da
música enquanto parte de sua experiência de vida e militância:
Ele [namorado e militante] estudava..., bebia cerveja e tal, cantava, ia nesse
negócio de Música Popular Brasileira, ia no teatro, era isso que ele queria. Era uma
vida maravilhosa que ele tinha! Então, pra ele foi muito complicado isso, muito
complicado. Ter responsabilidade, né, de pai, de família... E, aí, nasceu Clarice,
Clarice chama Clarice, porque da música, né, do Caetano: Os Mistérios de Clarice...
Porque era minha música predileta de todos os tempos. Adoro (Rita).
Chama atenção no relato de Rita a menção à MPB, como apontada por Napolitano
(2005), não representando somente um gênero musical, mas relacionada ao posicionamento
frente uma cultura política. Neste sentido, Gianordoli-Nascimento, Trindade e Santos (2012)
identificam em seus dados referentes à organização da esquerda em Vitória-ES (local de
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militância de Rita) uma composição na qual as militantes valorizam a inserção cultural que
tinham como forma de expressão política, como é atestado na fala de Sônia.
Então, havia coisas maravilhosas... Eu me lembro que, naquela fase, logofoi criado o
Centro Popular de Cultura, CPC, esse centro maravilhoso... Eu soube que Vitória
era... culturalmente importantíssimo!... Nos sentimos sempre inseridos mais
nacionalmente (...) (Sônia).
Sônia demonstra a existência de diferentes formas de atuação e identificação com o
pensamento denominado de esquerda, tendo a música um papel aglutinador dos indivíduos, e
também figurando como ponte para o contato entre grupos sociais diversos. A música se
apresenta enquanto facilitadora do acesso a bens culturais (intelectualidade) valorizados no
período e pelos grupos de pertença. A fluência nos assuntos culturais, em geral, possibilitava
o diálogo entre os pares e garantia certo status intelectual, favorecendo as relações e a
integração ao grupo social. Desta forma, o acesso e o gosto musical vinculado à MPB,
também significava identificar-se com uma opção ideológica ligada primordialmente à classe
média contestadora (Bernardo, 2007).
No trecho abaixo, a entrevistada destaca a importância que as relações sociais
vinculadas à militância tiveram para a sua aquisição de conhecimentos musicais associados à
intelectualização política da classe média, garantindo ao mesmo tempo um processo de
diferenciação e identificação com as formas de expressão da intelectualidade de outros
militantes, favorecendo sua mobilidade social ao se relacionar com pessoas de classe média
com elevado grau de intelectualidade, em sua avaliação. No caso de Rosane, proveniente de
classe popular, sua mãe lavadeira e pai carpinteiro, ambos analfabetos e ela a única filha a
ingressar na universidade, a ampliação de seu conhecimento musical lhe assegurava a
percepção de uma posição integrada ao grupo de militância, diminuindo a diferença de
capital político-cultural que percebia ter em relação às demais militantes oriundas da classe
média. Cabe destacar que, no cenário da época, o estilo musical associado às classes
populares era a chamada música cafona6, ignorada pelas elites culturais do período.
Então [o pai de um colega da universidade] era muito nosso amigo [ dela e do
namorado também militante]... um médico conceituado... ele dava um respaldo
intelectual. Tipo assim, ele não dava dinheiro nem nada. Ele nunca contribuiu pro
Seus representantes são vários: Waldick Soriano, Odair José, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo, Paulo Sérgio. Estes
são apenas alguns dos nomes mais conhecidos da geração de cantores bregas que marcou época durante o regime
militar. Ao contrário dos artistas da MPB, não tiveram formação universitária e não compunham prioritariamente
canções de protesto, embora análises recentes evidenciem o cunho político que algumas das músicas revelavam.
Por conta disso, foram taxados de alienados e ignorados pelas elites culturais da época. Suas músicas falavam
quase sempre sobre a rejeição, seja ela amorosa ou social, e foram censuradas principalmente pelos aspectos
morais, pois tratavam de temas considerados tabus, como: Sexo, pílula, prostituição, drogas e homossexualismo
(Araújo, 2005).
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partido... ele era muito intelectualizado, mas muito. Ele lia de tudo, sabia de tudo, ele
que me apresentou "Águas de Março", que eu choro até hoje quando eu escuto, eu
lembro quando eu escuto porque eu relacionei a música à ele. Eu era fã da Elis
Regina, porque eu via os festivais que passavam... Porque eu gostava de um tipo de
música [n... que eu conhecia [a música de Nana] Caymmi, depois eu fui conhecer
Dorival Caymmi. Eu sempre fui ligada [a música]. Assim, meu lado intelectual era
de outra maneira que eu via... era cultura, era cultural mesmo. Não tinha nada desse
negócio de rebeldia política.
Ao analisar a música como recipiente de temas socialmente compartilhados sobre a
realidade brasileira, nota-se que, durante o regime, a política passa a ser debatida e
tematizada na produção musical engajada de modo contundente, estabelecendo um elo entre
a arte e a militância. Sobre isso, Starling (2004) afirma que
os anos do regime militar em nosso país costuraram um vínculo de
integração extrema entre a palavra, a ação e o discurso político, e a forma
musical, a estrutura poética e a performance interpretativa da canção. Por
conta desse vínculo que estabelece um quase isomorfismo entre os versos da
canção e as práticas da política, essa canção passou a manter um elo
operante e muito visível com o conjunto vigoroso de ideias, ideais, crenças e
sensibilidades políticas que formaram as origens e o desenvolvimento das
forças de resistência ao regime militar brasileiro (p. 219).
Na análise das entrevistas, é possível perceber esse importante papel da música como
instrumento de ação política, pois, além de ter sido um mecanismo de difusão das ideias
contra o regime, também era utilizada pelas militantes como uma estratégia de ação política
dentro das prisões.
Um exemplo dessa condição foi descrita por uma das entrevistadas. Sônia relata que,
após um grupo de estudantes ter sido preso, durante o congresso de Ibiúna7 realizado
clandestinamente em outubro de 1968, eles organizaram uma greve de fome a fim de
pressionar as autoridades para as solturas e transferências de presos políticos dos presídios
comuns, enquanto uma quantidade enorme de comida chegava dentro das celas enviada
pelos familiares e amigos. Nessa ocasião, parte da estratégia política era cantar músicas de
compositores que já estavam sendo visados e perseguidos pelo regime, em duetos, entre as
celas masculinas e femininas:
E todo mundo preso junto... era um presídio comum. A gente cantava as músicas de,
de, cantávamos as músicas de Chico Buarque, ou então essas músicas de...Vandré
"Caminhando e cantando e seguindo a canção"... eufiquei numa cela de mulheres e
Ocorreu em 1968, na cidade de Ibiúna, interior de São Paulo, o 30° Congresso da União Nacional de Estudantes
(UNE). A quantidade de pessoas com características incomuns chamou a atenção da população local, isso tornou
fácil a prisão de 720 estudantes, inclusive toda a cúpula da organização: José Dirceu, Vladimir Palmeira e Luiz
Travassos (Pontes & Carneiro, 1985).
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perto, assim, do lado, ficou a cela do pessoal da, da, UNE, a diretoria da UNE que
tava mais visada. Aí eu me lembro que a gente ficou cantando aquela música do
Chico Buarque em parceria, assim: "Vem, meu menino vadio". Aí a gente fez um
dueto, a gente cantava um monte de música assim (Sônia).
Nota-se que, não aleatoriamente, os estudantes cantaram as músicas de Geraldo
Vandré e Chico Buarque, reforçando a importância dos dois compositores que, através de
suas canções, representaram nesse momento histórico uma forma de resistência contra o
regime, como destacado por Almeida e Weis (2002). É pertinente ressaltar que cantar
especific amente as músicas de Chico Buarque não só representava uma forma de protesto,
mas um claro posicionamento transgressor diante dos valores impostos pelo governo.
Segundo Napolitano (2003), as músicas do compositor
não apenas denunciavam o regime militar, mas os efeitos da violência e da
repressão sobre as consciências (...) não se tratava de fazer uma música de
protesto, no sentido estrito da exortação a uma ação política efetiva e prática,
mas afirmar uma experiência sociocultural, ainda que fugaz, de liberdade e
"promessa de felicidade" que durava na exata medida da própria
experiência da canção (p. 11).
As manifestações culturais e artísticas promoviam a consciência sobre o cenário
político brasileiro, pois tinha como pressuposto um desejo de transformação e de crítica à
ordem estabelecida (Kornis, 2004). Nesse sentido, a arte, em especial a música, foi
instrumento imprescindível de algumas militantes para a resistência à ditadura.
Quando em situação de prisão os militantes cantavam, expressavam de alguma forma
a situação que estavam passando. A experiência vivida era metaforizada e denunciada na
expressão musical, atingindo aos militares que vigiavam o cárcere. Desta forma, mesmo que
figurada, a mensagem chegava ao seu destino, e provocava diversas reações, dentre elas o
incômodo, como relembra Sofia no período em que ficou presa no DOI-CODI de Brasília:
"Eles punham todo dia seis horas da tarde pra você ouvir nos microfones, que era aquela [música]
'Jesus Cristo eu estou aqui', então eu cantava isso... e mesmo assim o cara vinha 'não pode cantar, não
sei o que... ah alguma coisa eu tenho que fazer!'" (Sofia).
Apesar das entrevistadas não fazerem parte de um mesmo grupo de militância e terem
sido presas em períodos, instituições e duas cidades diferentes (vide Quadro 1) percebe-se a
importância da música no contexto de prisão, seja como forma de resistência ou como forma
de não sucumbir à violência física, psicológica e moral imposta pelo regime.
As militantes do período foram expostas a fatos históricos semelhantes, como a
mudança no cenário político e ascensão de militares ao poder, com consequente perseguição
a seus opositores, e, sendo assim, mesmo que não tenham discutido estes acontecimentos, a
análise de seus relatos indicou a presença de memórias comuns. Sendo assim, trabalhamos,
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inevitavelmente, com as memórias comuns formadas pelo conjunto de memórias pessoais
sobre determinado tema, e que podem ser construídas de forma independente (Sá, 2007).
As memórias comuns dizem respeito a lembranças de um grupo de pessoas que foram
expostas a um mesmo acontecimento, mesmo que não façam parte das comunicações
grupais ocorridas face a face (Sá, 2007). As mulheres que vivenciaram a militância durante o
regime possuem memórias pessoais e comuns acerca desse período, revelando
representações sobre o passado que englobam redes de significados vinculadas as diferentes
vivências da experiência.
Por outro lado, as memórias pessoais não são individuais, a construção dos fatos
históricos vivenciados não se dá de forma isolada, as lembranças são, até certo ponto,
compartilhadas entre as pessoas que integram um contexto social determinado "pelos
grupos, pelas instituições, pelos marcos mais amplos da sociedade, por recursos
culturalmente produzidos" (Sá, 2007, p. 291). Desta forma, o embate sobre o que será
lembrado ou esquecido, está intimamente ligado à relação intergrupos, sendo que neste
contexto as estratégias de silenciamento e esquecimento perpetradas pelo regime, cumprem
sua função, fazendo com que as lembranças saiam dos porões da memória de forma
fragmentada.
Considerando tais aspectos, durante o regime militar, a censura parece ter tido um
importante papel nessa dinâmica, pois impediu a veiculação de músicas, manifestações
culturais e informações, ao censurar os mais diversos meios de comunicação, principalmente
aqueles sobre os quais havia a mínima suspeita de que seus conteúdos pudessem aludir
qualquer sentido de oposição ao regime militar.
No que tange às manifestações culturais, a mordaça colocada pela censura atingia não
somente a classe artística, mas também a população que se via impedida de usufruir desse
bem cultural. Rita descreve a sensação de violência sofrida quando a expressão das
manifestações artísticas produzidas eram brutalmente cerceadas. Nesses momentos, parte da
população de diferentes segmentos sociais, que de alguma partilhavam deste contexto, se
sentia violada no compartilhamento de suas expressões culturais.
Olha bem, veio o AI-5, né, veio o AI-5, que coisa, aquilo era uma coisa assombrosa.
Aqui, por exemplo, no teatro, a gente iafazer um teatro, era uma coisa, na época da
ditadura, todas as manifestações culturais, fossem elas onde fossem, as cadeiras
primeiras eram da censura. Sentavam lá aqueles caras e ficavam lá. E se eles
achassem que deveriam, eles interrompiam o espetáculo no meio. "Acabou, acabou a
festa, acabou a peça, vai embora. Acabou, todo mundo vão borá". Isso era uma coisa
muito violenta, né, assim, sabe?!... A gente ensaiou uma peça meses, meses e meses,
e não conseguimos passar a peça. Porque no meio da peça, que era Morte e Vida
Severina, né?!... assim, no ensaio pra mostrar pra polícia como que ia ser, porque
tinha que fazer uma... [exibição] um teatro só pra eles, né?! Pra polícia assistir pra
ver se ia liberar ou não. Aí no meio tinha assim, do camarote do governador, uma
pessoa [que era o ator] chegava e falava: "mais forte são os poderes do povo". [Os
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censores falavam] "Pára tudo! Acabou! Não vai ter teatro. Acabou". Não teve a
peça... era pára tudo. Acabou. É isso que eu to falando... são umas coisas, assim,
gente... música! Tudo era assim, né? Você ia ter um show musical: "não, essa
música não pode, essa não pode, essa não pode". Então aquilo era uma coisa muito,
sabe?! E isso era muito violento pra gente (Rita).
3.2 A música como estratégia de preservação da integridade física, psicológica e grupal
Várias foram às estratégias mencionadas pelas entrevistadas no contexto de prisão, nas
quais a música e o cantar se tornaram um instrumento de coesão, pertencimento e
manutenção da integridade individual e grupal. Um dos primeiros contextos que nos
chamou a atenção foi a realidade cotidiana vivenciada pelas presas políticas nos momentos
de prisão coletiva em que a possibilidade de suporte social, por meio da comunicação, era
percebida como forma de (re)integração com o cotidiano das relações de militância do qual
foram apartados; isto porque presos antigos podiam estar em contato com presos recentes.
Por meio da música, os militantes encontraram uma estratégia de comunicação para
veicular mensagens de forma escamoteada, permitindo ao grupo certo controle sobre o que
acontecia com os companheiros presos. Assim, era possível saber quem tinha chegado
recentemente aos porões, quem havia sido transferido, levado para tortura, voltado ou não, e
em que condições. O cantar foi um recurso para a proteção grupal, que garantia certa
segurança para a identidade pessoal e social de preso político, contribuindo para a
integridade física e psicológica.
Então eu não conseguia falar com ninguém e tinha um esquema, por exemplo, [dos]
presos mais velhos, de fazer contagem dos presos pra ver se estão todos, se tava
faltando algum, então quando chegava na minha vez, eles cantavam uma música
acho que é do Roberto Carlos, é senhora [Minha senhora]... Era a única hora que eu
podia responder, tá certo?! E a resposta era aquela música que eles, [os militares na
prisão], punham todo dia seis horas da tarde pro cê ouvir nos microfones, que era
"Jesus Cristo eu estou aqui", então eu cantava isso (risos)... Eu respondia com essa
[música] cantando... E eles [os presos mais velhos] davam as dicas, tipo "senhora
cante" efale! (Sofia)
Na coletividade da prisão, diversas formas de convívio social se estabeleciam entre os
presos que, independente das suas filiações anteriores de esquerda, naquele contexto se
identificavam enquanto grupo de presos políticos (ingroup), em contraposição ao grupo da
repressão (outgroup). As músicas cantadas no contexto de prisão se tornaram catalisadoras do
processo de identificação e relação grupal entre os militantes presos mesmo que não tenham
se encontrado face a face neste contexto, pois poderiam estar em outras celas. Sofia
exemplifica essas interações ao revelar que até hoje não sabe quem eram os presos com os
quais se comunicava e por quem se sentia protegida.
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Sendo assim, a música em situaç ões-limite pode exercer um papel extremamente
significativo. Lerner (2008), ao analisar como as canções se tornaram uma forma de refúgio
para os judeus perseguidos e aprisionados nos tempos do holocausto, aponta a música como
importante estratégia para a manutenção da integridade física e moral deste grupo,
contribuindo para descarregar a opressão que sofriam ao vivenciar a fome, presenciar mortes
e sofrer torturas inimagináveis.
Em situação de suplício, em que se tentava destruir a dignidade humana através da
dor e da humilhação, os relatos das mulheres apontam que a música parece ter tido um
papel expressivo para a conservação da integridade moral, psicológica e física, favorecendo a
luta pela vida na prisão e uma maneira de enfrentar psicologicamente o sofrimento.
A prática da tortura, a partir dos anos 1960, embora negada oficialmente pelo governo
militar, passou a ser utilizada pela repressão como "política sistemática do Estado brasileiro"
(Coimbra, 2001, p. 13) nos porões da ditadura. Chauí (1987) afirma que se estabelecia uma
relação na qual o torturador agia como se estivesse "acima da posição humana" (p. 33). Tal
instrumento tinha como objetivo desumanizar o torturado, realizando um processo de
violência e violação em que o indivíduo é rebaixado da condição de sujeito a "coisa", a objeto
(Chauí, 1987, p. 33). Aportando tal discussão em um conceito mais amplo de violência, Chauí
(1980) pontua que esse é um processo que geralmente se realiza em silêncio e de forma
velada, no âmbito das relações sociais, visando minar a cidadania.
Nesse sentido, a violência pode prescindir da ação física contra o corpo, estendendo-se,
principalmente, contra o existir social. "A sua eficácia depende em grande medida do seu
silêncio. Quanto mais silencioso, quanto menos visível, mais eficaz" (Souza, 2004, p. 60). "A
tortura não quer "fazer" falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível situação:
através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em coisa, em objeto"
(Coimbra, 2004, p. 54). Como complementa Chauí (1987)
a resistência é encarada como esforço gigantesco para não perder a lucidez,
isto é, para não permitir que o torturador penetre na alma, no espírito, na
inteligência do torturado (...). O que me impressiona nos relatos é o esforço,
às vezes bem-sucedido, às vezes fracassado, de não permitir que o
torturador se aposse do espírito torturado, de sua subjetividade, de sua
humanidade (p. 34).
Durante os vários momentos de tortura, em mais de um ano de prisão, em diversos
estados, tal esforço é revelado por Sônia numa complexa estratégia de manutenção da
integridade mental instrumentalizada pela música.
EU atéfalei com eles [os torturadores] assim: "se tem uma coisa que vocês não vão
conseguir é destruir, me destruir como pessoa, porque vocês tão tentando, mas isso
vocês não vão conseguir"... Se eu não morri ou não enlouqueci ou foi por sorte ou
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muita determinação... Agora, que exigiu muita determinação minhafoi demais! Foi
muito autocontrole, foi muita capacidade! Eu dizia assim: "não, tenho que pensar,
não posso parar de pensar, eu tenho que raciocinar. Não posso perder minha
capacidade de raciocínio... porque a hora que eu perder, eu tô lascada". Então isso aí,
esse autocontrole, essa capacidade de pensar, refletir... cantava música quando eu
tava muito desesperada pra poder relaxar... minha cabeça descansar um pouco, me
manter lúcida" (Sônia).
Dentre as várias experiências dessa natureza, ela relata sobre os momentos na prisão
em que foi torturada na casa da morte8- Petrópolis/Rio de Janeiro, em uma câmara refrigerada
onde havia alterações constantes de temperatura, simultaneamente a uma variação sonora
intensa (Arquidiocese de São Paulo, 1985):
eu não consigo muito lembrar de como era, porque como eu já tava muito ruim
quando eu fui levada [do DOI-CODI de Belo Horizonte] pra lá [casa da morte Petrópolis/Rio de Janeiro], e como eu já fui entrando no pau ali... eu me lembro
muito, assim, eu tenho uma visão muito clara da geladeira, que euficava dentro. O
som, porque era grave, agudo, mas era um negócio, a história do som com a
temperatura era uma coisa assim que desestruturava completamente, eu pensava
assim "vou enlouquecer"... depois, também lá em Belo Horizonte [onde foi levada
de volta] quando eu percebi que eu não conseguia suportar um barulho, os caras,
ficavam fazendo assim [dedilhando na mesa], o soldadinho. Aquilo me fazia um
mal! Eu começava a botar coisa no meu ouvido pra não ouvir, e eles ficavam
[dedilhando na mesa]. E eufiquei pensando: "acho que eles estão fazendo isso para
eu lembrar daqueles barulhos da tortura", por que eles me faziam aqueles barulhos
quando eu tava no, na, na geladeira, ai eu começava a querer pensar assim: "não
pode ser! Eles não devem saber daquilo porque são soldados". Mas ai eu pensava:
"Issojá é alucinação! Issojá é alucinação, já tô alucinando" (Sônia).
A estratégia utilizada por Sônia era cantar o mais alto possível todas as músicas de
Chico Buarque que conhecia, uma forma também de resistência. Como ressaltado no item
anterior, as músicas de Chico Buarque, bem como de outros cantores da MPB, eram
produzidas e cantadas como forma de crítica e protesto ao regime estabelecido.
Porque vocêficava ali, só ouvindo aquilo, euficava cantando... E quando terminava
de cantar começava tudo de novo. Tentando voltar minha atenção pra outra coisa,
esforçando minha memória para pensar em coisas, pra eu não ouvir o som. Mas é
uma coisa que enlouquece mesmo, teve momentos que eu pensei que ia enlouquecer
(Sônia).
Casa de Petrópolis também conhecida como "Casa da Morte". Centro de tortura e extermínio clandestino
montado pelo Centro de Informação do Exército (CIE), considerado "uma filial do inferno". Passar pelas mãos do
CIE era considerado pelos militantes como o equivalente a passar pelas "piores desgraças possíveis. Não era só o
risco de ser morto. No CIE, a morte não era o pior dos castigos; muitas vezes, para os guerrilheiros presos, parecia
até mesmo ser a solução" (Figueiredo, 2005, p. 207).
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Neste sentido, estar vinculado psicologicamente ao que representavam alguns artistas
da época, era um fator positivo de fortalecimento da pertença ao grupo de militância, à
ideologia partilhada, e sua ligação com os companheiros que estavam fora da prisão. Tal
vinculação pode estar associada ao que Tajfel (1983) identificou como forma de pertencer a
um grupo, que não necessariamente significa vincular-se a ele de maneira presencial, trata-se
de uma pertença psicológica. Para o autor,
o termo "grupo" indica uma entidade cognitiva com grande significado para
o indivíduo num determinado momento e que é diferente da maneira como
se utiliza o termo "grupo" quando se quer indicar uma relação face-a-face
entre um certo número de pessoas (Tajfel, 1983, p. 289).
A música representava um refúgio para resistir ao objetivo dos torturadores, qual seja,
minar o sujeito em todas as suas formas de dignidade, o que naquele contexto representava
também a possibilidade de delatar os companheiros:
Vocêsabe o que eu pensava? Eu pensava o seguinte: que as pessoas quefalam, depois
elas se sentiam tão mal com elas mesmas... Tanta culpa, que eu falei "esse
sentimento eu não vou ter"... Eu vou poder dormir tranquila, porque eu não
denunciei companheiros (Sônia).
Após sete meses em confinamento, passando por um longo período de bárbaras
torturas, presa na maior parte do tempo em solitária com poucas notícias da vida extramuros, e sem nenhuma noção de quanto tempo havia se passado desde sua prisão, a
esperança de vida de Sônia retornou através de um rádio clandestino: "os caras deixaram
mamãe entrar... me deixaram um minutinho encontrar... mamãe, aí mamãe pegou... Ela enfiou um
radinho desse tamanhozinho, de pilha. Enfiou no meu bolso... eufiquei com aquele radinho" (Sônia).
Nessa conjuntura, a música constituiu-se como elo entre a prisão e o mundo externo,
não se restringindo às chamadas músicas de protesto.
Foi uma coisa tão importante aquilo, tão importante aquilo, o meu psicológico foi a
mil. Porque eu me lembro que na hora que eu botei o rádio tava dizendo assim
"agora vamos ouvir uma nova música de Tom Jobim". E isso era março. Aí dizia
assim "são as águas de março fechando o verão, é promessa de vida no meu coração".
Menina, aquilo, olha, essa música até hoje me emociona, porque diz assim "é pau, é
pedra, é ofim do caminho, é um resto de toco, é um toco sozinho". Aí quando dizia
assim "são as águas de março fechando o verão, é promessa de vida no meu coração".
Eu falei assim: "gente, eu sobrevivi, eu tô ouvindo música de rádio, eu tô ouvindo o
que tá acontecendo no mundo, eu entrei em contato com o mundo"... Foi quando eu
senti que eu tava retomando contato com o mundo... Mas aí já mudei a minha... a
minha psicologia já mudou (Sônia).
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Embora a música mencionada pela entrevistada não seja especificamente identificada
no rol das canções de protesto, ela ganha aqui uma acepção peculiar, despertando esperança
de vivências para além do cárcere. Naquela ocasião, a canção tornou-se a promessa de vida em
tempos de ameaça. Mesmo diante de uma situação-limite, de crise, é na música que a
militante consegue um espaço para elaboração de sentido transformando a vivência em
experiência (Berger & Luckmann, 2004), ou seja, possibilitando novas formas de significação
da vida e da situação objetiva que estava vivendo. Este momento de reflexão, possibilitado
por meio da música escutada, anuncia a continuidade da vida e a esperança de superação
daquele cenário.
3.3 A música como expressão de afeto e coesão grupal
Várias eram as músicas cantadas e ouvidas, que compunham o repertório das
militantes e que não se configuravam necessariamente como críticas ao governo, mas
acionavam sentimentos diversos e traduziam a vivência do período e a necessidade de
resistir. A música também pode ser um recurso para traduzir o que em alguns momentos se
torna de difícil expressão ou que não pode ser comunicado de forma explícita. Geralmente,
carrega emoções e mensagens socialmente compartilhadas que podem unir gerações em
códigos de sociabilidade, tanto no tempo, quanto no espaço. Segundo Napolitano (2005),
Entre nós, brasileiros, a canção ocupa um lugar muito especial na produção
cultural. Em seus diversos matizes, ela tem sido termômetro, caleidoscópio e
espelho não só das mudanças sociais, mas, sobretudo, das nossas
sociabilidades e sensibilidades coletivas mais profundas (p. 77).
No período da ditadura militar no Brasil, a música engajada embasou e fortaleceu a
luta política de uma corrente de pensamento que repudiava o regime. Em situações de prisão
e tortura, o canto serviu para ancorar vivências coletivas, contribuindo para a resistência das
militantes.
O ex-preso político Fernando Gabeira, em seu livro O que é isso companheiro ?, escrito em
1979 após seu retorno do exílio, menciona a presença da música cantada quando um dos
companheiros voltava da tortura: "Fazíamos um círculo em torno da pessoa, curávamos os
ferimentos com os poucos recursos que tínhamos, dávamos uma das frutas que estavam na
reserva. A solidariedade tornava possível suportar aquela situação e, às vezes até
cantávamos" (p. 392). Álvaro Caldas, também ex-preso político, relata o papel das canções
nos momento sem que algum dos companheiros militantes era liberto: "A libertação de
alguém era sempre festejada com a 'Canção do adeus', a 'Internacional' [Comunista] ou
aquela estrofe do Hino da Independência que todos conheciam: 'ou ficar a pátria livre/ ou
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morrer pelo Brasil'" (Almeida & Weis, 2002, p. 398). Nas vivências de Gabeira e Caldas, a
música aparece como um dos meios que favoreciam a formação de uma rede de
solidariedade e suporte emocional entre os presos.
Nesta situação-limite na qual as militantes foram levadas a viver, eclodiam também,
relações de embate e percepção de diferenças e semelhanças, o que segundo Souza (2004),
pode conduzir à criação de laços de solidariedade ou ao surgimento de mecanismos de
exclusão. No processo de comparação social, há segundo Tajfel (1983) uma tendência do
grupo próprio a se valorizar positivamente e a desvalorizar o grupo com o qual se compara.
Quando nos processos de comparação os grupos valorizam traços de semelhança de outrem,
isso significa valorizar-se a si mesmo, fortalecendo a identidade pessoal e social (Souza,
2004).
Na criação desses laços, não se trata de eliminar a diferença, mas de reconhecê-la,
valorizando as igualdades em detrimento das dessemelhanças. Esses processos são
ilustrados pela relação estabelecida entre as entrevistadas Rosane e Renata.
Renata expressa à existência de diferenças entre ela e Rosane, em relação às formas de
contestação ao regime dentro da prisão:
EU acho que eu dava conteúdo e sentido, no sentido de que eu de repente falava, eu
meio que pregava, assim, aquela coisa de "vamos, é a ditadura", eu meio que
lembrava das nossas coisas [fundamentos ideológicos, estruturas políticas do
partido]. E a [Rosane] mostrava o absurdo da situação... de forma mais
estapafúrdia... do jeito dela, completamente diferente, anárquica... (Renata).
Rosane, por sua vez, manifestou às companheiras suas inquietações com as posturas
intelectualizadas que para ela não representavam nada: "eu andava no bairro, tipo assim, né, pé
no chão, pegava ônibus... o pessoal era mais intelectualizado, mas só de falar. Lia, lia e repetia"
(Rosane).
Mas não eram só essas as questões que incomodavam Rosane, eram também seus
preconceitos em relação à classe social, escolarização e regionalidade. Ela acreditava que
quem vivia na capital deveria ter um nível intelectual e de conhecimento maior do que
pessoas do interior: "Aí deu aquela minha revolta, né! 'Ela é do interior, como é que ela sabe isso
tudo e eu não sei?’". Rosane se incomodava com Renata, seja pelo repertório musical que
cantava, ou pela forma intelectualizada com que a companheira de cela se posicionava. Ao
desvalorizar a origem rural de Renata e valorizar sua origem urbana, ela protege e fortalece
sua identidade social, que poderia ser abalada pelas diferenças oriundas de suas classes
sociais de origem (Renata é proveniente da classe média e Rosane da classe baixa).
Embora Rosane se considerasse uma frequente ouvinte de música no rádio, MPB
principalmente, desconhecia a existência das que eram cantadas por Renata, nascida em
região rural, e por isso ficava incomodada: "Quem ouvia rádio era eu! [Depois] entendi que a
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mesma onda que chegava [na cidade], chegava lá pra ela [no interior], com menos onda
[frequência]! (Rosane).
A convivência na prisão foi fazendo com que Rosane, por exemplo, pudesse rever as
desigualdades sociais tão naturalizadas para ela, e pudesse perceber que a intelectualização
das demais se referia à realidade social que ambas viviam, sendo esta outra maneira de
questionar as desigualdades: "naquela época eu era muito simplória... não li muito sobre o que se
passava no jornal, política, nada. Lia por ler. Eu não quis saber... Se tivesse questionado mais um
pouco... Eu não tinha aquela, vamos dizer assim, aquela esperteza, aquela malícia, né?" (Rosane). Por
meio das músicas que cantavam na prisão, apresentadas por Renata, Rosane percebeu o
significado das letras e entendeu que não era apenas uma forma de passar o tempo, mas de
representar, expressar e denunciar o que estavam vivendo.
Para nossas entrevistadas que ficaram presas juntas, o canto foi também um fator de
coesão e aproximação do grupo, que passou a estabelecer laços importantes de amizade e
solidariedade ao instituírem seus hinos de resistência, como declara Rosane:
(...) foi daí que eu ouvi Renata cantando, cantava [a música] Antonico... Assum
Preto, descobri assim... É aí que eu vi o lado bom dali... Renatinha cantava todo dia,
porque a gente pedia toda hora.... mas ela tinha um lado assim... ela bateu de frente
comigo, [mas] nós só nos unimos (Rosane).
A música, nesse sentido, foi um elemento mediador que contribuiu para a convivência
e proteção do grupo, fazendo com que, principalmente, as duas pudessem se aproximar e se
reconhecerem como parte do mesmo grupo. A partir dessa identificação, Rosane passou a
partilhar a identidade social de militante política com as demais do grupo. Ao perceber que
muitos vivenciavam as mesmas circunstâncias, unir-se era mais importante que dividiremse. Desta forma, as canções se tornaram referências entre as amigas, especialmente para
Rosane com relação à música Antonico, por esta representar o que ela havia vivido naqueles
dias.
Afastadas no tempo e no espaço, tendo se passado vinte anos sem contato após o
período que ficaram presas, Rita, Renata e Rosane se reencontraram em uma ocasião
desejada por elas, e organizada pela pesquisadora, em função da participação na presente
pesquisa. Foi um momento de intensa emoção, reencontro e fortalecimento de um laço
identitário no qual a música manteve sua força. Agora, o sentido dado àquelas canções não
tinha mais funções de protesto e oposição, mas eram marcas deste tempo de luta e
resistência, estando vivas nas memórias pessoais e comuns, como pode ser visto no diálogo
entre a entrevistada e a entrevistadora:
[Entrevistadora:] Foi emocionante aquele dia que [vocês cantaram] na reunião...
[Rosane:] Foi. Então. Vocêviu, ela do meu lado apoiada em mim, cantando...
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[Entrevistadora:] Você ainda lembra a música toda ?
[Rosane:] Não, um pedaço... lá lembrei... tinha essa [Assum Preto] e tinha
Antonico. Não sei, mas Antonico eu não lembrava que era de Abel Silva [sic], depois
eufui saber, né,fiquei apaixonada efoi assim (Rosane).
Trazer essas lembranças à tona, pode ter sido uma forma de ressignificar os fatos e
compartilhar diversos sentimentos despertados por meio da música e do canto em
comunhão.
Neste reencontro, percebe-se que a partilha de lembranças relacionadas às memórias
pessoais e comuns (Sá, 2007) sobre o período, possibilitaram um espaço coletivo de
transformação da vivência em experiência (Berger & Luckmann, 2004) e a possível
constituição de um espaço de criação de memórias coletivas (Sá, 2007), a partir da reflexão
conjunta sobre os fatos vividos. Desta forma, entende-se que a escolha das músicas não era
aleatória. Cada canção trazia uma referência significativa por expressar a própria
experiência, constituindo uma forma de elaboração de sentido (Berger & Luckmann, 2004).
Em suma, percebe-se que o papel peculiar da música, no contexto da prisão política,
propiciou a resistência dessas mulheres, ao favorecer o fortalecimento dos laços de amizade e
solidariedade, possibilitando a elaboração das experiências relacionadas à situação-limite
pela qual passaram.
4. Considerações Finais
Diante da riqueza dos testemunhos das militantes e de suas lembranças, vemos
emergir a possibilidade de se resgatar parte do repertório sociocultural daquele tempo no
Brasil, contribuindo para a construção de uma memória histórica sobre o período. Os relatos
autobiográficos das militantes revelam elementos de memórias pessoais e comuns (Sá, 2009),
bem como a formação de redes de solidariedade e resistência mediadas pela música, aspecto
relevante na trajetória destas mulheres e marcante no cenário cultural da época.
Os dados apontam como a música surge como uma estratégia de engajamento político
e manutenção da integridade física, psicológica e grupal, tornando-se um instrumento de
resistência. Assim, a música pode também ser tomada como um veículo para a construção
das memórias geracionais (Sá, 2007), nos ajudando a compreender e (re)construir a memória
social deste cenário histórico e político (Lerner, 2008; Sá, 2007).
Para as mulheres entrevistadas, a música teve também a função de fortalecer a
identidade social e potencializar a luta que estavam travando contra a própria debilidade
física e mental à qual temiam sucumbir. Para aquelas que ficaram presas juntas, o canto foi
um fator de coesão e aproximação, que passou a estabelecer laços importantes de amizade e
solidariedade. Segundo Lerner (2008), "a música aciona sentimentos, conhecimentos e
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valores partilhados pelo grupo que vivencia situações similares, permitindo uma
identificação privada e subjetiva entre a informação transmitida pela mesma e a
receptividade dos que a ouvem" (p. 1).
Enquanto cantavam, a solidariedade consolidava-se como um componente importante
para que pudessem suportar as condições de insegurança e de sofrimento. Essa experiência
só podia ser partilhada por elas próprias, já que não havia contato periódico com familiares.
A música, somada ao raciocínio, ao exercício lúdico ou à afetividade, era um elo de contato
com a realidade exterior. A forte presença das músicas nos relatos e memórias dessas
mulheres dá visibilidade à importância que as atividades culturais e artísticas tiveram como
veículos de crítica ao autoritarismo.
Finalmente, cabe destacar que a arte engajada e mobilizadora não se caracterizava
como uma hegemonia cultural naquele momento. Para Mendes (2008)
a existência da jovem guarda e das telenovelas caracteriza justamente o
outro lado da moeda. Desta forma, não se tratava efetivamente de uma
hegemonia da esquerda no meio artístico-cultural embora esta fosse a
impressão tanto daqueles que faziam parte desse segmento político, como de
setores da direita (p. 269).
Embora inexistisse essa supremacia, "era uma parte representativa e qualitativamente
destacada, porém, minoritária, desta produção [que] tinha pretensões de transformações de
alguma espécie" (Ridenti, 1999). Por outro lado, ainda que durante a ditadura militar
algumas vozes tenham se erguido contra as práticas de perseguição e tortura, estas não se
mantiveram ativas após o período ditatorial, estabelecendo que a tortura ficasse vinculada
apenas à ditadura.
O mais grave hoje no Brasil é que muitas das vozes que clamavam contra a
tortura no tempo do regime militar silenciaram, e constata-se agora uma certa
complacência da sociedade - para não dizer o aplauso de setores das elites e de
muitos segmentos médios. É como se a tortura praticada [hoje] contra os
estratos mais baixos da população não fosse tão grave assim. É como se [hoje]
não existisse mais tortura no Brasil (Araújo, 2005, p. 249).
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ISSN 1676-1669
www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01
Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013).
Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil.
Memorandum,
24,
29-58.
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gravação: CD]. São Paulo: Universal Music 73145224002. (Reedição em 2002 do original
1965).
Nota sobre as autoras
Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento é Doutora em Psicologia pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, docente do
Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do núcleo de pesquisa "Memórias,
Representações e Práticas Sociais". Contato: Departamento de Psicologia, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos,
6.627, Campus Pampulha, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 31270-901. E-mail:
[email protected]
Sara Angélica Teixeira da Cruz Silva é mestranda em Psicologia pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista da Coordenação
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Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil.
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de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Contato: Programa de PósGraduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6.627, Campus Pampulha, Belo Horizonte-MG, Brasil.
CEP: 31270-901. E-mail: [email protected]
Jaíza Pollyanna Dias da Cruz é mestranda em Psicologia pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Contato: Programa de PósGraduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6.627, Campus Pampulha, Belo Horizonte-MG, Brasil.
CEP: 31270-901. E-mail: [email protected]
Flaviane da Costa Oliveira é mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Contato: Programa de PósGraduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6.627, Campus Pampulha, Belo Horizonte-MG, Brasil.
CEP: 31270-901. E-mail: [email protected]
Flávia Gotelip Corrêa Veloso é mestre em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: [email protected]
Laís Di Bella Castro Rabelo é mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: Programa de PósGraduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6.627, Campus Pampulha, Belo Horizonte-MG, Brasil.
CEP: 31270-901. E-mail: [email protected]
Data de recebimento: 06/09/2012
Data de aceite: 26/03/2013
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Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica
Pratt and Rorschach: a fenomenological approach
Marta Helena de Freitas
Universidade Católica de Brasília
Brasil
Resumo
Este ensaio estabelece algumas comparações aproximativas entre as concepções do
filósofo americano James B. Pratt (1875-1944) e do psiquiatra suíço Herman Rorschach
(1884-1922), a partir de uma leitura fenomenológica inspirada nas contribuições de
Husserl e Merleau-Ponty. Tal leitura retoma, principalmente, os conceitos "fundo de
sentimento vital", em Pratt, e "tipo de vivência", em Rorschach, e seus respectivos
fundamentos teórico-filosóficos e os coloca em diálogo com outros conceitos de autores
de sua época, em especial de Freud e Jung. Tomando-se como fio condutor as relações
entre o fundo irrefletido e a atividade reflexiva que caracterizam a existência humana,
conclui-se que tanto Pratt como Rorschachbuscaram reenviar, por meio de seus conceitos
e instrumentos, e cada um a seu modo, às contínuas transformações e às diferentes
modalidades de realizações da intencionalidade psíquica.
Palavras-chave: Pratt; Rorschach; fenomenologia; psicologia da religião; personalidade
Abstract
This essay provides some estimated comparisons between the conceptions from the
American philosopher James B. Pratt (1875-1944) and from the Swiss psychiatrist Herman
Rorschach (1884-1922), based on the phenomenological approach from Husserl and
Merleau-Ponty. The main focus of these comparisons are the concepts of the "vital feeling
background", by Pratt, and the "experience type", by Rorschach, along with their
theoretical and philosophical principles, which are put in connection with the concepts
from other authors of their time, especially Freud and Jung. In these connections, the
main thread of discussion is the relationship between the unreflective background and
the reflective activity that characterize human existence. The conclusion is that both Pratt
and Rorschach attempted to resubmit, through their concepts and instruments, and each
one in their own way, to the continuous changes and the different modalities of
achievement of the psychic intentionality.
Keywords: Pratt; Rorschach; phenomenology; psychology of religion; personality
Introdução
Toda ação ou todo conhecimento que não passam por esta elaboração [do
que vivemos no mundo] e querem propor valores que não tenham tomado
corpo em nossa história individual ou mesmo coletiva, "ou bem", o que dá
no mesmo, escolher os meios por um cálculo e por um proceder
inteiramente técnico acabam aquém dos problemas que desejavam revolver
(Merleau-Ponty, 1960/1980, p. 175).
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De uma primeira visada pareceria haver nada em comum entre o filósofo americano
James B. Pratt (1875 - 1944) e o psiquiatra suíço Herman Rorschach (1884 - 1922), a não ser o
fato de ambos teremsido contemporâneos e vivido num período em que se registrou
verdadeira efervescência intelectual em torno do tema religião. De fato, como indicam vários
historiadores deste campo (Rosa, 1971/1992; Brown, 1973; Byrnes, 1984; Beit-Hallahmi, 1989;
Paiva, 1990; Wulff, 1997; Abreu & Silva, 1999), entre os anos de 1890 e 1920, em consonância
com o movimento intelectual da época, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, os
estudiosos pareciam considerar o fenômeno religioso um objeto muito interessante e
propício à investigação psicológica, de modo que, tanto Pratt quanto Rorschach,embora com
objetivos e metodologias muito diversos, também se dedicaram ao assunto.
Por outro lado, se, de um lado, Pratt ficou conhecido principalmente pelas suas
contribuições nocampo da chamada psicologia da religião, sendo frequentemente apontado
como um dos principais pioneiros neste campo, com Rorschch isso não se passou da mesma
forma. Poucos profissionais ou estudantes em psicologia têm conhecimento dos estudos
sobre os fundadores de seitas religiosas desenvolvidos pelo autor do famoso método de
psicodiagnóstico que levou seu nome e que é até hoje empregado com muito êxito no campo
da psicologia clínica. De fato, praticamente nenhum livro ou manual sobre o tão reconhecido
método e seu respectivo autor trazem estas informações e é escassa a literatura concernente
ao tema. Como exemplo dos exíguos trabalhos disponíveis em língua latina, encontram-se
um obra organizada por Ellemberger (1967), um capítulo de Abreu e Silva (2004) e os
trabalhos realizados por Freitas (2002, 2005). Este ensaio pretende ser mais uma contribuição
nesta direção e tem como objetivo principal mostrar como que, de um ponto de vista
fenomenológico, pode se encontrar muitas afinidades entre as concepções fundantes de
ambos os estudiosos, Pratt e Rorschach, ainda que tais concepções tenham dado origem a
diferentes métodos de investigaçãoe que, pelo menos aparentemente, ambos não tenham
sequer chegado a conhecer os trabalhos um do outro.
Pratt e Rorschach: divergências e convergências
No intuito de tornar mais explícitas algumas divergências e convergências entre os
dois estudiosos, alguns elementos importantes acerca da biografia e produção intelectual de
ambos - origem, período de vida, formação, principais trabalhos, concepções filosóficas,
principais influências, concepções religiosas, concepção de personalidade, conceitos básicos,
sujeitos pesquisados, instrumentos elaborados - são apresentados sumariamente no Quadro
01. Como se pode constatar no referido quadro, Pratt (1875 - 1944) e Rorschach (1884 - 1922)
foram contemporâneos, sendo que o primeiroteve um tempo de vida bem mais longo queo
segundo. Isso inclusive, dentre outros fatores, como se verá a seguir, explica a produção mais
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significativa de Pratt em termos de número de obras publicadas, em geral livros, ainda em
vida.
Rorschach viveu mais tempo longe do mundo acadêmico, atuando como assistente
médico em clínicas psiquiátricas (Münsterlingen e Waldau, Berna, na Suíça, e Münsingin, na
Alemanha). Embora ele mantivesse relações com vários pesquisadores e cientistas de sua
época e contexto cultural (dentre eles, Bleuler, Monakow, Jung, LudwingBinswanger,
Eugene Minkowski, além do grupo psicanalítico suíço e diversos filósofos da Rússia), a sua
principal obra - "O Psicodiagnóstico" - surgiu longe das universidades, dos laboratórios e
das bibliotecas, numa pequena clínica psiquiátrica.Já Pratt, por outro lado, era filósofo,
docenteuniversitáriono Williams College, nas áreas de psicologia, história da filosofia e
história da religião, tendo se dedicado plenamente à vida acadêmica, boa parte dela em
pleno centro cultural e científico de Nova Iorque.
Em relação às concepções de mundo, Pratt se intitulava um filósofo de tipo realista
pessoal, posição influenciada pelo pragmatismo de C. Pierce e W. James, tendo inclusive
realizado a sua tese de doutoramento sob a orientação deste último. Rorschach, por sua vez,
compartilhava dos ideais próprios do romantismo alemão e procurou conciliar contribuições
vinda de fisiologia, em Mourly Vold, da psiquiatria francesa, em Pierre Janet, e da
psicanálise, em Freud e Jung, como se pode ler em Ellenberger (1967), seu biógrafo, ou em
Abreu e Silva (2004), quetraça um perfil dos fundadores de seitas estudados por Rorschach.
Entretanto, mesmo considerando-se as especificidades de cada uma destas correntes
filosóficas, uma leitura fenomenológica acerca do modo como cada um desenvolveu suas
ideias, e respectivas concepções sobre a vida psíquica, leva a constatar que, em alguma
medida, elas têm muitas similaridades, como se pretende deixar mais claro ao longo deste
ensaio.
Quadro 01: Comparativo entre Pratt e Rorchach
J. B. PRATT
H. RORSCHACH
ORIGEM
Norte Americana - EUA
Européia - Suíça
PERÍODO DE VIDA
1875 -1944
1884 -1922
FORMAÇÃO
Filosofia - Professor
Psiquiatria - Clínico
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Reflexhalluzinationenundverwandte
Psychology ofReligious Belief
(livro), Nova Iorque, l907.
Whatis pragmatism?, ibid., 1909.
PRINCIPAISTRABALHOS The religiousconsciousness, ibid.,
1920.
Matter and Spirit, ibid., 1920.
Personal Realism, ibid., 1927.
Naturalism, ibid., 1938.
Why religions die, ibid, Berkeley,
l940.
Erscheinungen1 (Tese de doutorado),
Zurich, l912.
ReflexhalluzzinationundSymbolik2
(artigo), 1912.
EinigesüberschweizerischeSektenund
Sektengründer3 (artigo), 1917.
Weiteresüberschaweizerische
Sektenbildungen4(artigo), 1919.
Sektierestudien5 (artigo), 1920.
Psychodiagnosstik6(livro),Verlag
/Berna/Leipzig, 1921.
CONCEPÇÕES
FILOSÓFICAS
Realismo personalista
Romantismo alemão
PRINCIPAIS
INFLUÊNCIAS
Pragmatismo
Peirce e W. James
Fisiologia - Mourly Vold
Psicanálise - Freud e Jung
Fenomenologia - L. Binswanger
CONCEPÇÕES
RELIGIOSAS
Cristão - Protestante
CONCEPÇÃO DE
PERSONALIDADE
Cristão - Acreditava numa "corrente
espiritual" fluindo através dos
séculos.
Fundo invisível e dinâmico, de
Núcleo invisível, em
cujas raízes se nutrem afetos,
constanteelaboração e atividade e que,
desejos e impulsose de onde
consciente ou inconscientemente, coemergem pensamentos,
determina pensamentos e atos
raciocínio lógico e diferenciações
conscientes.
ideativas.
CONCEITOS BÁSICOS
RELACIONADOS
"Fundo de sentimento vital"
Tipos de crença:
perceptiva, intelectual, afetiva e
volitiva
Tipos de vivência:
introversivo, extratensivo, coartado e
coarta tivo
"Função do real"
SUJEITOS
PESQUISADOS
População normal
População psiquiátrica,
principalmente
INSTRUMENTO
ELABORADO
Questionário Pratt
sobre Crença Religiosa
Método de Rorschach
(Psicodiagnóstico)
Segundo a concepção de personalidade apreendida a partir das proposições de Pratt
(1907), poder-se-ia distinguir, na vida mental, além dos aspectos racionais, cognitivos e
representativos, dois outros tipos de material psíquico: "o sentimento e o que é conhecido
como o fenômeno do "background" (pano de fundo, cenário)" (p. 9). As coisas que estão nesse
1
Sobre as "alucinações reflexas" e outras manifestações análogas.
Alucinação reflexa e simbolismo.
3
Algo sobre seitas suíças e fundadores de seitas suíças.
4
Algo mais sobre as seitas suíças.
5
Estudos sobre sectários.
6
Psico diagnóstico.
2
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pano de fundo são privadas, mas caso se fixe a atenção nelas, poderiam tornar-se
comunicáveis. Por outro lado, estas mesmas coisas, "ainda enquanto na região marginal e
ainda enquanto não percebidas e não conhecidas" (idem, p. 10), teriam um efeito sobre o tom
geral da vida consciente, colorindo a vida, no sentido afetivo do termo. Esta espécie de pano
de fundo da vida mental, a que o autor designou de "fundo de sentimento vital", é assim
descrita e relacionada às demais funções psíquicas:
A sensação e a ideação remetem-nos ao mundo exterior retirado de nós pelo
espaço e o tempo; a massa sentimental de que eu falo está indissoluvelmente
conectada com nossas funções vitais. Tanto o quanto nós somos conscientes
destas funções todas, aquela consciência pertence principalmente à vida
afetiva. "Coencesthesia" - como o termo alemão Gemeingefühl implica - é um
caso de sentimento, num sentido amplo. Os ritmos conscientes dos
processos corpóreos - especialmente os que indicam condições de saúde ou
doença - são somados neste sentimento marginal comum. Em suma, podemos
dizer que a ideação é a consciência de um homem enquanto ser racional; seu fundo
sentimental/afetivo é sua consciência de organismo vivo. É isto que está em conexão
com nossas necessidades vitais. Os desejos instintivos e os impulsos têm suas
raízes lá, e de lá se nutrem; as reações inatas ao meio, enquanto conscientes,
as antipatias e as tendências congênitas, nosso amor e ódio mais profundos tudo são partes deste "fundo" e crescem a partir dele. De fato, tão
inextricavelmente ligado está ele à vida e tudo o que ela significa que bem
poderia ser chamado de fundo vital (Pratt, 1907, pp. 14-15, grifo nosso).
Também uma concepção de personalidade semelhante pode ser apreendida a partir
dos fundamentos do Método de Rorschach (1921/1974), e que é decorrente da noção de "tipo
de vivência" ou "tipo de ressonância íntima". Tal noção constituiu-se como que no núcleo do
referido instrumento de psicodiagnóstico (Ellemberger, 1967) e pode ser compreendida como
sendo a mais íntima e essencial capacidade de ressonância com as experiências da vida e
respectiva elaboração inconsciente.
O aparelho de vivência com o qual o indivíduo experimentaé um sistema
muito mais amplo do que o aparelho com o qual o indivíduo vive. Para
experimentar, o indivíduo possui uma série de registros dos quais ele
costuma utilizar, em suas ações da vida, apenas alguns e a tal ponto que,
frequentemente, recai na estereotipia (Rorschach, 1921/1974, p. 91, grifo do
autor).
Segundo o autor do famoso psicodiagnóstico, haveria, junto ao enlace natural entre as
percepções isoladas por meio de "associações", um caminho muito mais direto através do
sistema cinestésico. Assim, por meio dos fenômenos "cinestésicos", as percepções óticas
seriam fixadas diretamente por baixo do umbral da consciência idiocineticamente. Estas
percepções seriam, posteriormente, re-vivenciadas conscientemente como cinestésicas ou,
ainda, "retraduzidas" inconscientemente em impressões óticas. Este princípio foi aplicado na
elaboração do teste, cujas lâminas poderiam ser consideradas como uma espécie de espelho,
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no qual os estímulos óticos ativariam imagens cinestésicas, que seriam, por sua vez,
projetadas sobre as manchas de tinta e percebidas como pareidolias.
Além dos conceitos de personalidade, aqui muito resumidamente apresentados, chama
a atenção também o fato de ambos terem recorrido a aspectos da fisiologia para explicar a
constituição e funcionamento da vida mental e, ainda, terem procurado estabelecer relações
entre esta última e o passado do indivíduo, tanto em termos ontogenéticos como
filogenéticos. Algumas semelhanças nesse sentido podem ser constatadas a partir do que diz
Pratt (1907), no capítulo I do seu livro Psychology ofReligious Belief, e do que diz Rorschach
(1921/l974), no capítulo IV do seu Psicodiagnóstico.
Segundo Pratt (1907), o fundo de sentimento vital seria, na verdade, uma espécie de
forma primária de consciência, mantendo íntima e direta relação com a vida do organismo.
Todas as formas inferiores de vida teriam pouco dessa forma primária e tanto a sensação,
como a percepção e, ainda, as funções psíquicas chamadas superiores, como a ideação,
emergiriam a partir daí. Para o filósofo americano, "o processo parece análogo àquele da
evolução biológica, e pode ser muito bem descrito pela definição de Spencer: um progresso
desde a homogeneidade incoerente e indefinida até uma heterogeneidade coerente e
definida, através de sucessivas diferenciações e integrações (idem., p. 17). Assim, por meio
dessa massa de sentimento não-racional, o ser humano estaria ligado com seu próprio
passado, com seus ancestrais, com a própria espécie e etnia e, até, num certo sentido, a todas
as outras coisas vivas. Este fundo de sentimento vital o colocaria permanentemente em
contato, de uma maneira perfeitamente natural, com um meio mais amplo do que,
simplesmente, a capacidade de raciocínio, ligando-o, de certa maneira, tanto ao que está
ausente no espaço, mas também com o passado distante e, mesmo, com o futuro, num certo
sentido. E a partir destes pressupostos, concluiu:
Em suma, a massa de sentimento é mais larga e mais profunda que os outros
departamentos da vida psíquica, e mais estreitamente relacionada com o self.
Uma mudança nela significa uma mudança de personalidade. Sensações e
ideias têm uma natureza comunicável e universal; este resíduo não racional
é peculiarmente privado e individual. É o determinante do caráter - num
sentido é a própria personalidade e o próprio caráter. De lá a atividade
prática retira a maior parte de sua energia e direcionamento. Por outro lado,
embora de uma maneira peculiarmente individual em comparação com as
ideias e as sensações, aquele resíduo parece, noutro sentido, mais universal
que aquelas ideias e sensações, pois ele é ilimitado e parece se estender além
de quaisquer fronteiras que possamos demarcar, e de ser sensível a
influências para as quais nossa parte mais claramente consciente está
inteiramente indiferente (Pratt, 1907, pp. 25-26).
Pratt chegou a estas concepções motivado pelo seu interesse no estudo da crença
religiosa e seus diferentes modos de manifestação. Para ele, seria esse fundo de sentimento
vital que estaria na base da chamada crença emocional, que procede diretamente desta
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instância, a qual, por sua vez, em termos fenomenológicos, poderíamos designar de prépredicativa. Ele estabelece, ainda, relações entre esta instância e as demais modalidades de
crenças por ele descrita: a perceptiva, a intelectual e a volitiva.
Rorschach, por sua vez, iniciou seus estudos a partir do seu interesse nas chamadas
alucinações reflexas, tema de sua tese de doutoramento (Rorschach, 1967c), na qual procurou
combinar as contribuições do filósofo norueguês Mourly Vould, que havia se ocupado
durante mais de 25 anos da psicofisiologia dos sonhos, com as contribuições psicanalíticas de
Freud e da psicologia analítica de Jung. A sua genialidade teria lhe possibilitado ver, muito
além dali onde outros normalmente veriam apenas duas teorias contrapostas (uma
proveniente e adepta da psicofisiologia, e outra, decorrente do estudo do inconsciente),
possibilidades de complementaridade. E foi a partir desta complementaridade que ele pode
elaborar o seu método mais tarde, partindo do princípio de que, não só as alucinações
reflexas ou os sonhos levariam aos fenômenos cinestésicos, mas também toda modalidade de
atividade assimiladora e criadora. E a partir disso chega também à noção de tipo de vivência,
a qual é compreendida como sendo a mais íntima e essencial capacidade de ressonância com
as experiências da vida, ao mesmo tempo que se relaciona também com suas respectivas
elaborações inconscientes.
Como se disse antes, o conceito de "tipo de vivência" constitui-se como que no
núcleo do Psicodiagnóstico. Ellenberger (1967) chega a afirmar que, à época em que
Rorschach o inventou, tratava-se de um conceito absolutamente novo e que não se
assemelhava a nenhuma outra ideia então já apresentada em toda a psicologia ocidental. O
biógrafo considera que o conceito que mais se aproximaria deste seria aquele dado pela
psicologia hindu, ou seja, o conceito de Karma. Mas, este, tomado em sua acepção original,
antes de ter sido posto em relação com o conceito de samsara (a cadeia sucessiva de
reencarnações). Karma, em seu sentido primeiro, seria, então,
o incessante devir e agir de um invisível núcleo da personalidade que,
mesmo inconsciente, é formado continuamente por nossos atos e
pensamentos conscientes e que, por sua vez, contribui por sua parte a
determiná-los: trata-se do indissolúvel vínculo existente entre um ser vivo e
todos os seus atos anteriores (Ellenberger, 1967, p. 59).
Como pode ser constatado, no Capítulo IV do seu Psicodiagnóstico, Rorschach
estabelece conexões entre o tipo de vivência e praticamente todos os demais aspectos da
vida, partindo do princípio de que o mesmo revelaria a extensão do aparelho psíquico com o
qual o indivíduo poderia viver. Esclarece que o tipo de vivência de um indivíduo não
corresponde, necessariamente, ao psicograma geral dado pelo teste: "Ele apenas indica como
o indivíduo experimenta, não como ele vive ou o que ele ambiciona." (Ellenberger, 1967, p. 91,
grifo do autor). Admite, portanto, discrepâncias entre o tipo de vivência e a vida, mas que só
poderiam ser explicados
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pelo fato de a energia vital, o grau de energia ativa, atuante em determinado
momento, a vontade, a libido, ou seja qual for o nome que se possa dar a
isto, esteja dirigida apenas para uma parte das possibilidades de vivência.
Somente o impulso transforma os "momentos" disposicionais em tendências ativas
(Rorschach, 1921/l974, p. 91, grifo do autor).
Assim, ainda no Capítulo IV, após esclarecer o conceito em pauta, Rorschach apresenta
vários elementos da relação entre o tipo de vivência de um indivíduo e demais aspectos da
vida: a) o tipo de vivência e a vida; b) o tipo de vivência e os componentes da inteligência; c)
o tipo de vivência e as perturbações; d) as variações temporárias do tipo de vivência habitual
do indivíduo; e) as transformações do tipo de vivência no transcurso da vida, f) estudos
comparativos sobre o tipo de vivência; g) a afetividade e o caráter; e) a imaginação; h) tipos
de vivência e tipo de representação; i) o tipo de vivência e o tipo de alucinação; j) o tipo de
vivência e os talentos; l) tipo de vivência, talento e impulso; m) tipo de vivência, caráter e
talentos; n) tipo de vivência e enfermidade; o) o problema da evolução do tipo de vivência.
Sobre o último aspecto relacionado acima, Rorschach acreditava que, no transcurso da
vida humana, o tipo de vivência evoluiria lenta, constante e autonomamente. Embora
afirmasse não ter, ainda, elementos que pudessem levar ao reconhecimento da gênese do
tipo de vivência, visualizava alguns pontos do que chamou "desta vasta rede de problemas
causais" (Rorschach, 1921/1974, p. 124). Por outro lado, embora aparentemente não tivesse
dado muita atenção à religião convencional e suas práticas, ele "sentia um profundo respeito
diante dos enigmas do Universo, da vida e do homem" e tal "como certos filósofos do
Romantismo alemão, imaginava uma corrente espiritual fluindo através dos séculos e
expressando-se de modo múltiplo na vida dos povos e dos indivíduos humanos"
(Ellemberger, 1967, p. 48). Enquanto estudioso, teria ele uma preocupação em achar uma
chave para decifrar e compreender todas estas múltiplas formas de manifestação e, em sua
opinião, esta seria possível de ser encontrada justamente no âmbito da fantasia criadora. Ao
final de sua vida, teria acreditado encontrar a solução definitiva para tais problemas, que
teria exposto, segundo seu biógrafo, de forma bastante incompleta, na sua obra mais
importante, justamente o seu Psicodiagnóstico.
Tomando-se os principais conceitos básicos de Pratt (1907,1921) e de Rorschach (1967a,
1967b, 1967c, 1967d, 1921/1974), conforme relacionados no Quadro 01, seria possível o
estabelecimento de algumas relações entre eles, como por exemplo: a) crença perceptiva e
crença intelectual X Função lógica, ou função do real7; b) crença emocional X polaridade
introversivo-extratensivo; e d) "fundo de sentimento vital" X "tipo de vivência". Do ponto de
vista teórico, tais relações podem ser estabelecidas a partir das obras dos próprios autores,
mas colocando-as em diálogo com as concepções do pragmatismo de Peirce e com as noções
da psicanálise, em Freud e Jung, e discutidas à luz das contribuições oferecidas pela
7
Em francês, fonctionduréel, termo introduzido na França por Pierre Janet.
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fenomenologia, conforme se verá em mais detalhes nos dois próximos itens deste ensaio. Já
do ponto de vista empírico, estas relações foram investigadas mais detalhadamente em
outrostrabalhos sobreos instrumentos elaborados por cada um e seus respectivos
fundamentos (Freitas, 2002; 2005; 2006).
Quando Pratt (1907) elaborou o seu Questionário Pratt sobre Crença Religiosa, que
contém dez questões, algumas delas desdobradas em subitens, tinha em mente o estudo do
fenômeno religioso nas chamadas pessoas "normais". Em sua pesquisa, inclusive, abandonou
os sujeitos compreendidos como "pessoas excêntricas" ou "extremistas". Já com Rorschach
(1921/1974), em relação à elaboração do seu Psicodiagnóstico, poder-se-ia dizer que ocorreu
quase exatamente o oposto: embora não tenha abandonado o estudo das pessoas
consideradas normais, naquilo que diz respeito ao estudo dos fenômenos relacionados à
crença religiosa, optou pelo estudo aprofundado e analítico exatamente daqueles que, com
certeza, seriam considerados por Pratt como "extremistas" e "excêntricos", como o foram
JohannesBinggeli e Anton Unternährer. Ambos os casos foram apresentados em dois de seus
trabalhos: "Los fundadores de sectas suizos (Bingelli-Unternährer) (Rorschach, 1967a) e "Sobre
las sectas suizas e sus fundadores" (Rorschach, 1967d).
Em que pesem as diferenças entre ambos os instrumentos:
a)
Um, cujos estímulos são essencialmente verbais, e que se propõe a investigar
elementos conscientes da crença religiosa - dada por uma tarefa de natureza discursiva;
sintagmática, portanto - e, a partir da análise das respostas, chegar-se àquilo que seria o
"fundo de sentimento vital", como é o caso do Questionário Pratt sobre Crença Religiosa; e
b)
outro, cujos estímulos são essencialmente formais, e que se propõe a investigar
aspectos inconscientes da personalidade- dado por elementos não discursivos e linguísticos;
paradigmáticos, portanto - e, a partir do material assim produzido, chegar-se àquilo que
caracterizaria o tipo de vivência e suas relações com os aspectos de ordem intelectual, social
e afetiva;
A tese aqui defendida é a de que, sob muitos aspectos, esses instrumentos guardam
entre si semelhanças e complementaridades, naquilo que revelam sobre o modo de ser dos
sujeitos que a eles se submetem de maneira mais ou menos espontânea e que se veem, em
ambas as situações, profundamente mobilizados.
Do ponto de vista fenomenológico, as comparações que se pretende fazer entre as
concepções de J. B. Pratt e H. Rorschach devem ser guiadas por um esforço de compreender
como foi que cada um chegou às suas respectivas tipologias - no primeiro caso, as
modalidades da crença religiosa - primitiva, intelectual, emocional e volitiva; no segundo
caso, do tipo de vivência - introversivo, extroversivo, ambigüal, coartado e coartativo. Partese do princípio de que, cada um a seu modo, chegou às referidas modalidades sem seguir
modelos inspirados na busca de sintomas e cifras, mas sim, de um modo que se poderia
chamar "bastante intuitivo". Nesse sentido, mesmo tendo apresentado previamente seus
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respectivos fundamentos teóricos, parte-se do princípio de que ambos colocaram muito mais
nos instrumentos que elaboraram do que aquilo que puderam desenvolver conceitualmente.
Especialmente no caso de H. Rorschach, cuja morte sobreveio de maneira abrupta, quando
ele mesmo reconhecia que seu arcabouço teórico ainda era insatisfatório para fundamentar
adequadamente o seu Psicodiagnóstico. Buscar-se-á, portanto, na fenomenologia,
fundamentos que possam sustentar essa análise comparativo/aproximativa, permitindo
compreender elementos implícitos e já presentes desde as concepções originárias de ambos
os instrumentos.
Uma leitura fenomenológica
Os propósitos desta leitura exigem o abandono de julgamentos ideológicos com
relação aos diferentes caminhos tomados pela linguagem filosófica e científica, rompendo
com a tendência de se superestimar os métodos indiretos em detrimento das percepções
diretas. Ou seja, para falar nos termos de Husserl (1911/1967), a radicalidade exige
independência de ideias preconceituosas que provêm ainda da Renascença e que levam a
qualificar mais o status filosófico em si do que suas próprias origens. Neste sentido: "Não é
preciso postular-se que se veja com os próprios olhos, mas antes que se deixe de eliminar o
visto numa interpretação que os preconceitos impõem" (Husserl, 1911/1967, p. 43).
Isto posto, vale ressaltar, então, que, ao se apontar aqui possíveis correspondências
conceituais entre Pratt e Rorschach, tem-se em mente um exercício de aproximações que não
visa a simplesmente abolir ou desconsiderar as diferenças entre os mesmos. Embora
reconhecendo que não se pode, naturalmente, fechar os olhos para os pressupostos históricos
que encaminham a elaboração de ambos os instrumentos: uma teologia implícita, protestante
liberal, típica da cultura americana da época está presente nas proposições de Pratt,
enquanto que, nas concepções de Rorschach, acenam-se claramente as tendências vitalistas,
também presentes nas artes e em boa parte da filosofia europeia do início do século XX.
Entretanto, o que se quer apreender, a partir da leitura fenomenológica aqui proposta, é
justamente o que há de comum entre tais conceitos, no sentido de reenviar, cada um a seu
modo, às contínuas transformações e às diferentes modalidades de realizações da
intencionalidade psíquica.
Em outras palavras, parte-se do princípio de que a linguagem, em Pratt e Rorschach,
reflete o esforço de ambos para expressar suas respectivas compreensões da riqueza obscura
do ser. Poder-se-ia afirmar, a partir do que ensina Cassirer (1925/1973): cada um a seu modo
procurou formular conceitos que exprimissem, da melhor forma possível, uma série de
impressões fugidias e sempre semelhantes que lhe batiam aos sentidos, num sério esforço de
colocá-las em relação com outras, até formarem um complexo maior, procedido de maneira
discursiva e conceitual. Ocorre que, em ambos, houve um reconhecimento implícito de que
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os sentidos forneceriam as idéias elementares (Langer, 1941/1989) ao pensar racional e
reflexivo, incorporando toda a atividade mental à razão. Isto fica ilustrado, essencialmente,
em seus respectivos conceitos de "fundo de sentimento vital" (Pratt, 1907) e "tipo de vivência"
(Rorschach, 1921/1974), já apresentados anteriormente, de cujo seio emergiriam todas as
demais potencialidades humanas, dentre elas, o intelecto. O próprio modo como Rorschach
(1921/1974) cria seu método é um claro exemplo daquilo que Peirce (1931-1958/1995)
qualificou como abdução - uma espécie de insight, para o qual seu próprio autor não
conseguiu, de saída, oferecer uma razão lógica que se sustentasse do ponto de vista
científico, tal como exigido pelo iluminismo ou pelo positivismo reinante. Ironicamente, num
claro exemplo de um pragmatismo perverso (e, certamente, às avessas ao que propunha
Peirce e, mais ainda, ao romantismo de Rorschach), o mesmo método foi resgatado
porteriormente, segundo o modelo indexial, nos Estados Unidos - justamente onde
encontrara inicialmente maior resistência (Klopfer & Kelly, 1942/1974), no emprego para
seleção de combatentes militares que serviam à II Grande Guerra Mundial.
Como filósofo, religioso, e partícipe integral do mundo acadêmico, Pratt (1907, 1921)
apresentou um arcabouço instrumental essencialmente sintagmático: procurou dar conta,
com o próprio recurso discursivo, dos diferentes níveis do psiquismo, apontados em suas
respectivas descrições das modalidades de crenças: perceptiva, intelectual, emocional e,
posteriormente, volitiva. Como clínico, artista, e não tão embrenhado na academia quanto o
primeiro, Rorschach (1921/1974) não se satisfez apenas com os recursos simbólicos mais
específicos da linguagem: para além do discurso, seu instrumental buscou recursos formais,
articulando outros modos de expressão do ser, como as percepções de forma, movimento e
cor. O acesso ao núcleo básico de vivência e suas respectivas articulações com a função do
real, neste caso, seriam dados por uma tarefa de natureza paradigmática. Como resultado, a
possibilidade de descrições mais dinâmicas das modalidades vivenciais de coartação,
introversão, extratensão e ambiguidade.
É compreensível que, no caso de Pratt (1907, 1921), a sua concepção intuitiva do
"fundo de sentimento vital" e respectivas modalidades de crença religiosa se sustentassem
sobre sua própria experiência pessoal como religioso. Como também, no caso de Rorschach
(1921/1974), a concepção de seu método e respectiva descrição do "tipo de vivência" se
alimentassem de sua própria sensibilidade artística e sentimento de religiosidade. Isto
também estaria perfeitamente de acordo com o pragmatismo de Peirce (1931-38/1974), ao
definir a qualidade da sensação, no campo da primeiridade - categoria daquilo que é
originário, e assim resumida por Ghesti (2000):
Ela marca o campo da potencialidade, enquanto pura possibilidade. Não é
algo que se perceba diretamente nos fatos, mas pode ser inferido deles,
porquanto é entendido como aquilo que precede qualquer ocorrência e,
portanto, qualquer possibilidade de observação direta. (...) A primeiridade
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também pode ser pensada como aquele algo que possibilita o ser do quer
que seja (p. 38).
Ou ainda, numa leitura fenomenológica: o sentir é que oferece a possibilidade de
discriminação de formas (Merleau-Ponty, 1945/1999) e, consequentemente, das articulações
possíveis no nível da linguagem, não apenas a de cunho poético/artístico, mas também e
inclusive aquela de cunho teórico/conceitual. Esta última, é certo, se estabelece num outro
plano de racionalidade. Ou, para falar nos termos de Husserl (1950/2000), num outro modo
"do chamado dar-se [dos objetos] (Gegebenheit)" (p. 93). Mas, no caso de ambos os autores
referidos aqui, tal racionalidade não se deu ao preço da mutilação ou empobrecimento do
mundo da vida, ou seja: não houve exclusão das experiências e fatos humanos fundamentais
por não serem passíveis de submeterem-se aos seus respectivos métodos. Pelo contrário, em
ambos os casos, registra-se um imenso esforço de contribuição mais efetiva para
compreensão da problemática humana. Qualifica-se os dois modos de racionalidade
intuitiva como exemplos de atividades reflexivas, que apreendem seu sentido pleno
justamente pela menção ao fundo irrefletido suposto por ela mesma e "do qual tira proveito,
constituindo-se para ela como que um passado original, um passado que nunca foi presente"
(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 325). Para muito além da mera redução do saber humano ao
sentir, Pratt e Rorschach apontam para o nascedouro desse saber e, tornando-o tão sensível
quanto o sensível, reconquistam uma consciência de racionalidade, onde a percepção oferece
"o logos em estado nascente" e ensina, sem quaisquer dogmatismos, "as verdadeiras
condições da própria objetividade", de onde emergem mais límpidas "as tarefas do
conhecimento e da ação" (Merleau-Ponty, 1947/1989, p. 63). A filosofia e a ciência que Pratt e
Rorschach exercitaram-se em produzir, por menor que fosse o aparato linguístico disponível
na época, seria aquelas cujos sentidos legitimar-se-iam, em última instância, no mundo da
vida. Este, sim, é que lhes conferiria fundamentação axiológica, estrutura intencional e
doação originária.
Já em l923, em artigo trazendo algumas observações sobre o Psicodiagnóstico de
Herman Rorschach, Binswanger (1923/1967) discutia o conceito de percepção que, se apenas
decorrente de uma teoria materialista, seguramente não se aplicaria adequadamente à prova
de Rorschach, pois que, desde a instrução "O que poderia ser isso?", o examinando seria
remetido a um exame da fantasia ou da imaginação ótica e cinestésica. Binswanger
(1923/1967) lembra que Rorschach não haveria conhecido suficientemente bem a chamada
psicologia moderna (provavelmente, referindo-se às contribuições da Gestalt) e não teria tido
tempo para fazer um esclarecimento conceitual adequado e explicitar melhor o que entendia
por percepção. Entretanto, reconhece que o modo como Rorschach trabalhava com o método
e as análises dele derivadas mostram que esta seria melhor entendida como referindo-se a
atos psíquicos, nos quais estavam contidos, simultaneamente, aspectos fenomenológicos,
psicogenéticos e fisiológico-cerebrais. Isto daria, então, ao conceito uma completa
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equivalência com o conceito de interpretação, eliminando-se as diferenças assépticas entre
conteúdos autenticamente vistos e conteúdos meramente representados. Enfim, tudo isso
ilustra o quanto Rorschach chegou à sua obra sem ter ainda o seu arcabouço teórico
suficientemente pronto, colocando nela muito mais do que o que chegou a formular
conceitualmente. Binswanger (1923/1967) aponta também o quanto o conceito de tipo de
vivência desenvolvido a partir do Método de Rorschach contribui para a psicologia
tipológica, sem incorrer, no entanto, nos tipos científico-naturais, dados pela tendência
médico-psicológica da época. Ressalta que, mesmo sem ainda conhecer a fenomenologia de
Husserl, a única que poderia proporcionar claridade absoluta sobre o assunto, Rorschach
oferece uma descrição que pode supor um vínculo de união entre os tipos ideais, no sentido
"científico-espiritual" (no sentido de Jaspers e Spranger) e os tipos científicos-naturais
clínicos:
Pois com quanto mais agudeza e exatidão se determinam e definam os tipos
psicológicos fenomenologicamente quanto à sua essencialidade e no sentido
da legalidade estrutural espiritual, a resultados tanto mais claros e unívocos
conduzirá sua investigação desde pontos de vistas científico-naturais
(Binswanger, 1923/1967, p. 237).
Assim, a tipologia de Rorschach não se refere à captação da pessoa psíquica
individual, e sim à busca de uma correspondência com a estrutura psíquica individual, já que
seu método não se propõe a revelar como a pessoa vive, e sim como ela vivencia. Sabendo
que não bastaria conhecer a estrutura psíquica e, sem conhecer a fenomenologia de Husserl,
Rorschach teria buscado, então, o especificamente pessoal no instintivo-pulsional, em Freud,
para explicar a conversão das disposições em tendências ativas.
Também Pratt (1907), a seu próprio modo, procurou formular as conexões entre o
racional e o que está para aquém ou além dele, num esforço de explicar a origem da energia
e respectivo direcionamento da atividade prática e intelectual. Assim, ao referir-se, por
exemplo, à modalidade de crença intelectual, descreve-a como decorrente do fato de se
colocar em suspenso a crença perceptiva (e o termo percepção, neste caso, é usado para
referir-se àquela concepção ingênua de que o mundo é aquilo que vemos), e de se levantar a
dúvida concernente à existência do objeto da crença. Ela (a dúvida) seria, portanto, conforme
palavras do autor, sempre "secundária" e, num certo sentido, "artificial". Ela surgiria da
experiência com o mundo. Com relação à crença emocional, relaciona-a a vida interior, que
tenderia a desclassificar as percepções e caracterizar-se por uma espécie de "confusão
estrepitosa". Mas, admite também que "mesmo a mente lógica e ordeira do lógico mais seco"
encontraria, no fundo de sua mente, com aquele "pano de fundo". Afirma também: "o
pensamento, emergindo do fundo de sentimento, é uma experiência comum a todos" e "a
máquina lógica humana seria uma invenção da imaginação", ou seja, ela seria o "último
produto" que emerge de um "mar de sentimento vital" (Pratt, 1907, pp. 19-26). Ora, o estudo
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sobre fenomenologia da percepção, em Merleau-Ponty (1945/1999), mostra como que o
elemento intuitivo, para dar lugar ao elemento que se afirma puramente racional, deve ser
colocado em suspenso, sendo aquele segundo sempre um objeto tardio de uma espécie de
consciência científica. Daí porque o fenomenólogo afirmar que "a ciência", por pautar-se
neste modelo de sujeição a supostamente lógico, "supõe a fé perceptiva", mas "não a
esclarece" (Merleau-Ponty, 1971), pois que "o pensamento objetivo ignora o sujeito da
percepção" (1945/1999, p. 279). Neste sentido, como denunciara Husserl (1936-1954/1996),
em relação à crise da humanidade europeia, o mundo da ciência, quando comprometido
apenas com um modelo objetivista e matemático, embora também derivado do mundo da
vida, acaba por promover a alienação do mesmo.
Tal como Rorschach, Pratt (1921), ao tomar conhecimento da noção de inconsciente,
em Freud, busca nela elementos para descrever a influência do subliminal sobre o
julgamento e sobre a vida prática. Mas, também como Rorschach, não se satisfaz plenamente
com as noções freudianas: se ambos estão de acordo com Freud em vários aspectos, inclusive
na interdependência do psiquismo para com o respectivo aparato biológico, qualificando a
dimensão do corpo próprio na sua relação com a dimensão cultural, discordam da
psicanálise exatamente naquilo que ela tem de excessiva generalização ou determinismo em
relação à origem da energia psíquica, atribuída exclusivamente à sexualidade, ao mesmo
tempo acompanhada de uma perspectiva desconfiada e patologizante da experiência
religiosa.
De fato, a concepção de "tipo de vivência", em Rorschach (1921/1974), bem como a
noção de "fundo de sentimento vital", em Pratt (1907), muito mais se aproximariam dos
conceitos junguianos de "arquétipo" e "inconsciente coletivo", que propriamente das
acepções mais especificamente freudianas de "pulsão" e "inconsciente" individual.
Rorschach, por exemplo, tal como Jung, provavelmente insatisfeito com a insuficiência do
inconsciente freudiano, que se mostrava limitado para fundamentar toda a riqueza do
material encontrado com o seu criativo método, vai aproximar-se mais da psicologia oriental,
conforme apontou Ellenberger (1967), ao estabelecer seu conceito, então inovador, de tipo de
vivência - ou "tipo de ressonância íntima" - para referir-se "à mais íntima e essencial
capacidade de ressonância às experiências da vida" (p. 59). Já J. B. Pratt (1907), de certo
modo, chega a antecipar-se a Jung na definição do que chamou de "fundo de sentimento
vital", conceito muito próximo da noção de "inconsciente coletivo", que este último passou a
formular, a partir de 1913. Para este último, o "substrato comum" e que "ultrapassa todas as
diferenças de cultura e de consciência" não consistiria apenas de conteúdos aptos a
tornarem-se conscientes, mas de predisposições latentes e que "partem de uma base comum,
cujas raízes mergulham no passado mais distante" (Jung, em Jung & Wilhelm, 1929/1984).
Desta base originar-se-iam as diversas linhas do que Jung chamou de "desenvolvimento
anímico", inclusive todas as representações e ações conscientes. Estas últimas poderiam
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alcançar um nível de consciência quase que emancipada da imagem primordial inconsciente.
Entretanto, essa suspensão, se levada ao extremo de uma consciência intelectual exaltada e
unilateral, afastando-se demasiadamente das imagens primordiais, seria acompanhada de
inúmeras peripécias, geradoras de grande sofrimento psíquico, que ele pode constatar em
seus próprios pacientes. Por outro lado, uma ausência total ou uma baixa descolagem dos
protótipos inconscientes também teria seu preço. Assim, "quando o consciente não atingiu
ainda maior grau de clareza, isto é, quando depende - em todas as suas funções - mais do
instinto do que da vontade consciente, e mais do afeto do que do juízo racional" (Jung, em
Jung & Wilhelm, 1929/1984, p. 28), o indivíduo pode apresentar maior "saúde anímica
primitiva", mas tornar-se muito mais facilmente desadaptado diante de situações que lhe
exigiriam um esforço moral ou intelectual mais alto.
Também em seu conceito de "tipo de vivência", e, ao que indica, ainda sem conhecer
todas as reflexões junguianas apontadas acima, Rorschach (1921/1974, p. 91) referiu-se às
possíveis discrepâncias entre este e a vida, já que aquela "energia vital, o grau de energia
ativa, atuante em determinado momento, a vontade, a libido, ou seja qual for o nome que se
possa dar a isto" poderia ser dirigida apenas a uma parte das possibilidades de vivência. E,
ao caracterizar o problema da evolução do tipo de vivência, o autor do "psicodiagnóstico"
identifica a importância do pensamento disciplinado, ou seja, da "função lógica" ou "função
do real", mas não ao ponto de sacrificar a própria capacidade de vivenciar, como seriam os
casos dos meticulosos e intelectualistas puros, onde o tipo de vivência chega a alcançar
extrema coartação dos momentos introversivos e extratensivos. Por outro lado, também as
capacidades de introversão ou extratensão, quando levadas ao extremo, usurpando ou
volatilizando o pensamento disciplinado, levariam a consequências nada saudáveis do ponto
de vista adaptativo, em ambos os casos reduzindo ou até mesmo destruindo por completo a
capacidade de adaptação afetiva: no primeiro caso, por excesso de abstração e estranheza ao
mundo; no segundo, por excesso de estouvamento. Ou seja, em sua experiência clínica,
Rorschach certamente constatou, tal como Jung, as mesmas peripécias que podem
acompanhar tanto o mergulho total na "vida interior" como o movimento de suspensão
absoluta da experiência fundamental em causa. Chama atenção, tanto em Jung quanto em
Rorschach, que ambos tenham vivenciados uma certa ambiguidade em relação às suas
próprias experiências místicas e também experimentado, em circunstâncias diferentes,
momentos de profunda introversão. Poder-se-ia dizer que ambos preocuparam-se
seriamente, cada um a seu modo, com a repercussão negativa que poderia decorrer de suas
posições gnósticas e buscaram recursos diferentes para se protegerem de possíveis ataques
iluministas e racionalistas. Referindo-se às contribuições de Jung para o esclarecimento do
mundo dos símbolos, Augras (1980/1998) reconhece que a sua originalidade foi resultante
justamente deste distanciamento do próprio irracionalismo para elaborar um corpus científico
que dele se alimentasse. Certamente esta mesma espécie de originalidade se aplica também a
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Rorschach.
Por outro lado, sabe que Rorschach (1921/1974) fez questão de ressaltar mais as
diferenças do que as aproximações entre os seus conceitos de introversivo e extratensivo e os
conceitos junguianos de introvertido e extrovertido. Entretanto, ao fazer esta distinção,
conforme aponta Bash (1967), certamente não considerou a própria evolução do pensamento
de Jung. De fato, desde 1917 até 1921, mesmo ano em que foram publicadas os "Tipos
psicológicos" de Jung e o "Psicodiagnóstico" de Rorschach, há uma evolução do pensamento
junguiano, no sentido de abandonar as concepções mais especificamente tipológicas em
favor de um entendimento mais dinâmico das relações entre as atitudes introvertidas e
extrovertidas. Desse modo, Jung também passou a relacionar a polaridade introvertidoextrovertido às demais funções psíquicas, supondo-a não como correspondente a uma
tipologia constitucional mutuamente excludente, mas como descritiva de funções e atitudes
universalmente dadas. Todas as obras posteriores de Jung podem mostrar, sobre este aspecto
específico, mais aproximações do que propriamente diferenças entre ambos.
Seria tarefa árdua e que extrapolaria os objetivos deste trabalho aprofundar na
compreensão das semelhanças e diferenças entre o pensamento de Jung e Roschach.
Entretanto, fica registrada a impressão de que Rorschach, em 1921, teria alcançado mais
profundamente a compreensão dos conceitos de introversão e introversão do que poderia ter
feito Jung à mesma época. Assim, conforme salienta McCully (1980), é de lamentar-se que
ambos não tenham passado juntos horas a fio, discutindo suas ideias. Afinal, é como se
Rorschach (1921/1974), ao estabelecer o seu conceito de Tipo de Vivência (Erlebnistypus),
tivesse compreendido muito mais profundamente a dimensão de "último plano do vivido"
(termo empregado por Husserl em "A síntese passiva", 1966/1998) do que o pudera fazer
Jung à mesma época. Por outro lado também, é como se o próprio Jung tivesse plantado
sementes (teste de associação de palavras, conferências assistidas por Rorschach, dentre
outros) que brotaram posteriormente em solo fértil, regado pela sensibilidade criativa e
independente do espírito de Rorschach.
Uma retomada do conceito de Espírito (do grego Spiritus), na filosofia, e seus
respectivos desdobramentos ao longo das épocas, em diferentes correntes religiosas,
filosóficas e religiosas, permitiria um enriquecimento da discussão acerca das possíveis
aproximações fenomenológicas entre a concepções de base realista-pessoal em Pratt e as de
fundamento romântico em Rorschach. Para os propósitos deste estudo, entretanto, vale por
enquanto apenas ressaltar que, em ambos, há um entendimento de que não é somente
espiritual aquilo que reporta diretamente ao intelecto, à racionalidade e à vontade. Assim, a
despeito da polissemia do termo inconsciente, ao empregá-lo, ambos buscam,
simultaneamente e com o aparato linguístico e filosófico de que dispunham até então,
qualificar a abertura originária às funções superiores do homem - que lhe oferecem a
capacidade da apreensão do universal, mas ressaltando que tal abertura se sustenta sobre
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um fundo básico de corporeidade e afetividade. Daí a preferência de ambos por termos como
"fundo de sentimento vital" ou "tipo de ressonância íntima", ao invés de simplesmente
"instinto" ou "inconsciente".
Como se viu antes, Pratt falou de um "princípio vital" sob forma primária, tanto a
nível filogenético quanto ontogenético, em cujo estado originário as sensações e ideações
seriam ainda latentes, e que as dimensões vividas de tempo e de espaço encarregar-se-iam de
promover as respectivas diferenciações ao longo da evolução do homem e da humanidade.
Também Rorschach, acreditando firmemente numa corrente espiritual fluindo através dos
séculos, propunha que, conforme o direcionamento da "energia vital", transformando
"momentos" disposicionais em tendências ativas e ideacionais, ocorreria uma evolução de
um estado mais primário em direção a uma finalidade ótima de desenvolvimento, cujas
etapas poderiam ser identificadas num estudo longitudinal do indivíduo ao longo de sua
história de vida, bem como da humanidade ao longo das épocas e das culturas. De novo,
vale aqui lembrar as aproximações desta ideias com as concepções junguianas. Em sua obra
"L'Energetik der Seele" (A energia psíquica), Jung (1928/1956) também referiu-se a um estado
natural da "energia vital" que já conteria em si mesma um fluxo direcionado em pontos de
diferenciação, que se expressaria nas ações e ideações humanas, ao longo do seu
desenvolvimento individual e cultural. Nesse sentido, a cultura seria vista como "uma
máquina que transforma energia vital em energia psíquica, sendo resultante de um processo
de diferenciação evolutiva da natureza" (Mourão, 1997, p. 34).
Eixos de análise e determinantes do Método de Rorschach X Modalidades de crença
religiosa em Pratt
Ao definir a pura fenomenologia, seu método e seu campo de investigação, Husserl
(1928/1981) a caracteriza como "ciência da consciência pura", diferenciando-a da psicologia,
que seria o estudo da consciência em seu sentido estritamente empírico. Em sua definição,
consciência não seria uma substância ou uma instância, mas uma atividade constituída por
atos (percepção, sentimento, imaginação, volição) com os quais visa-se sempre algo. Nesse
sentido, a fenomenologia pura pretende chegar ao fundamento último do ser e de suas
respectivas aparições à consciência, cuja intencionalidade seriam de duas espécies, uma
temática (saber do objeto e do próprio saber sobre o objeto) e uma operante (visada do objeto
em ato, ainda não refletida). Esta última, então, seria a essência buscada pela fenomenologia
pura. Conforme esclarece Zilles, em sua introdução à obra "A crise da humanidade europeia
e a filosofia" (Husserl, 1936/1996), por ele traduzida no Brasil:
A primeira tenta alcançar a segunda, que a precede, sem nunca consegui-lo.
O saber consciente só se exerce sobre este fundo de irrefletido, nessa
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dimensão de vida que já é sentido porque visada de objeto, mas sentido
ainda não formulado (idem, p. 30).
Em "A síntese passiva", Husserl (1966/1998) descreve diferentes níveis do vivido,
considerando-se as diferentes modalidades de relações entre aquele saber irrefletido, prépredicativo - ou vivido de último plano (que, pode-se dizer, Pratt e Rorschach chamaram,
respectivamente, de "fundo de sentimento vital" e "tipo de vivência", como já se viu
anteriormente) e o saber refletivo, predicativo - ou vivido de primeiro plano. O exercício
reflexivo que resulta nestas possíveis aproximações entre os dois autores, apresentadas ao
longo deste trabalho, jamais poderia ser designado como fenomenologia em seu sentido
puro, dada a radical alteridade desta com a psicologia. Entretanto, considerando-se
justamente as noções apreendidas daquela primeira, é possível, seguindo a via deum saber
refletido - via intencionalidade temática - que busca continuamente alcançar osaber
irrefletido - a intencionalidade operante - ainda que de modo sempre incompleto, buscamos
aprofundar estas reflexões a partir de uma comparação entre os eixos de análise e os
determinantes dados pelo Método de Rorschach e as modalidades de crença descritas por
Pratt. Tal exercício resultou nos Quadros 02 e 03, apresentados nas páginas seguintes.
O Quadro 01 apresenta como que um diagrama, onde se coloca em relação os três
eixos de análise do Rorschach - localização, determinante e conteúdo -, relacionados na
primeira coluna, com as três modalidades de crença religiosa primeiramente descritas por
Pratt - perceptiva, emocional e intelectual -, relacionadas na terceira coluna. Na coluna
central, são relacionadas as dimensões fenomenológicas apontadas por Merleau-Ponty
(1945/1999), em "Fenomenologia da Percepção", e Husserl (1966/1998), em "A síntese
passiva". As possíveis correspondências entre os conceitos seriam identificadas pela análise
horizontal, cujo elemento central seria a dimensão do sentir, ou vivido de último plano - ali
onde a vigília pode estar ausente. Este plano corresponderia também ao que Peirce designou
como primeiridade, ou seja, o campo aberto às potencialidades do ser, e que estão na base da
percepção e da linguagem.
Quadro 03: categorias fenomenológicas, eixos de análise do rorschach e modalidades de crença em
pratt
EIXOS DE ANÁLISE NO
RORSCHACH
CATEGORIAS
FENOMENOLÓGICAS
MODALIDADES DE
CRENÇA EM PRATT
Atenção/Percepção
Localização
Perceptiva
(Secundidade, em Peirce)
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SENTIR
Determinante
Emocional
(Vivido de último plano Primeiridade, em Peirce)
Significado/Linguagem
Conteúdo
Intelectual
(Vivido de primeiro plano Terceiridade, em Peirce)
O Método de Rorschach, no âmbito da localização, vai exigir do sujeito uma tarefa
perceptiva, dada pela sua capacidade de manter a atenção suficientemente estável e
concentrada nos estímulos visuais que lhe são apresentados e, ao mesmo tempo, "pela posse
de engramas de formas nítidas" (Rorschach, 1921/1974, p. 58). Segundo Rorschach "quando
as imagens-lembranças não forem nítidas (confabuladas, muitos débeis, orgânicos), também
não será possível um reconhecimento de formas igualmente nítidas, de despertá-las, de
trazê-las ao consciente" (idem); ou seja, o processo associativo pode ser perturbado em
função de fatores orgânicos ou psicológicos. Ainda, no âmbito da localização, seria
fundamental a capacidade de escolher, entre as imagens-lembranças disponíveis, aquelas
que mais se assemelham ao conjunto de estímulos visuais. O que significa, então, que a
atenção, neste caso, não seria dirigida apenas para o estimulo exterior, mas também para o
interior, permitindo ou não um controle do próprio processo perceptivo e uma crítica
interpretativa. Na mesma linha, então, do eixo da localização, situamos a crença perceptiva,
designada por Pratt, cujo elemento básico seria também a percepção, seja de um dado
estímulo que lhe vem de fora, seja de uma figura percebida como autoridade. Neste caso, o
processo perceptivo privilegiaria os estímulos, alimentado por ou em detrimento das várias
camadas da consciência: seja a do sentir, na sua expressão mais fundamental, seja a do
pensar, em sua capacidade de disciplinar a função lógica.
No eixo dos determinantes, apreende-se o dinamismo pelo qual se manifesta o tipo
de ressonância íntima, ou tipo de vivência, considerando-se as dimensões fenomenológicas
de espaço, tempo e cor. Assim, ao centrar-se mais nos aspectos formais do estímulo, ou ao
privilegiar os aspectos cinéticos ou cromáticos da prova, a afetividade básica pode mostrarse mais estabilizada, mais internalizada ou mais à mercê dos estímulos externos (labilidade).
Ou seja, as modalidades do sentir se potencializam no direcionamento da acuidade
perceptiva e dos processos associativos durante o trabalho de assimilação dos estímulos
(forma), ou como uma disposição individual para afetos mais intensivos e interiorizados
(cinestesia), ou, ainda, numa disposição geral afetiva mais orientada para o exterior e,
portanto, mais sujeita à mobilidade (cor). Nesta mesma linha, situar-se-ia a crença emocional,
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no sentido em que a descreveu Pratt (1907), considerando-se a sua fonte direta do fundo de
sentimento vital - ou vivido de último plano, em termos husserliano, e sua respectiva
expressão no modo de apreender o mundo.
Com relação ao conteúdo, expressão final da tarefa paradigmática dada pelo Método
de Rorschach, que reflete a transformação dos elementos pré-lógicos em linguagem, num
exercício de atribuir um sentido - uma gestalt, ao conjunto de elementos percebidos, há um
remetimento à função mais propriamente cognitiva e linguística - uma dimensão consciente
e, portanto, de natureza intelectual. Ou seja, ao primeiro plano descrito por Husserl - os atos
do ego cogito, e que, em termos das modalidades de crença descritas por Pratt (1097),
corresponderia ao que ele chamou de crença intelectual: a que se sustenta sobre argumentos,
sobre o racional, sobre a lógica formal. Viu-se que o próprio Rorschach (1921/1974), ao
concluir seu Psicodiagnóstico, reconhece os elementos anteriores (os princípios formais do
processo de percepção - localização e determinantes) como sendo prioritários na
compreensão do como se processa a vida psíquica. O conteúdo das interpretações deveria,
então, ser considerado num segundo lugar, representando senão uma parte da vida mental.
Numa linguagem husserliana, poder-se-ia dizer: os conteúdos são atos de uma consciência
egóica específica e que se constituem em uma forma particular de realização da
intencionalidade dada pelo vivido de último plano.
Alguns autores, como são os casos de Anzieu e Chabert (1961/1987) e Pedrosa (1979),
chegam a referir que, ao criar o seu método de interpretação das manchas de tinta, dirigindose "aos momentos dados, primários, chegando assim à diferenciação de diversos tipos de
vivência" (Pedrosa, 1979, p. 90), Rorschach acabou criando a chamada psicopatologia
estrutural, numa interessante aproximação dos mecanismos descobertos experimentalmente
pela psicologia da forma (Gestaltpsychologie). De fato, a partir destes experimentos e,
posteriormente, da própria experiência clínica, a compreensão de self, tal como dada mais
tarde por Perls (conforme citado por Fadiman & Frager, 1986) far-se-á a partir de uma noção
não estática e nem objetivável. Ou seja, o eu se identificaria "com qualquer experiência
emergente da figura em primeiro plano". Assim, todos os aspectos do organismo (sensorial,
motor, psicológico) identificar-se-iam temporariamente com a Gestalt emergente, sendo a
experiência de si mesmo justamente essa totalidade de significações. Desta perspectiva,
então, função e estrutura seriam idênticas.
Ora, o método de Rorschach tem, intuitivamente, a compreensão daquilo que
Merleau- Ponty (1945/1999) aponta em sua fenomenologia da percepção:
Uma coisa não é efetivamente dada na percepção, ele é interiormente
retomada por nós, reconstituída e vivida por nós enquanto é ligada a um
mundo do qual trazemos conosco as estruturas fundamentais e do qual ela é
apenas um das concreções possíveis (p. 438).
Neste sentido, a dimensão de corpo próprio é fundamental, pois que manteria "o
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espetáculo visível continuamente em vida" (p. 273), animando-o e alimentando-o
interiormente, formando com o mundo um sistema. Chama, portanto, a atenção, o fato de
que, ao apresentar borrões simétricos, o método de Rorschach remete justamente a uma
espécie de "geometria" que estaria em viva conexão entre a coisa - o mundo e as partes do
próprio corpo. Como duas faces de um mesmo ato - certamente a experiência fundamental
em causa: "tipo de ressonância íntima", como a chamou Rorschach (1921/1974), ou "fundo de
sentimento vital", conforme a formulou Pratt (1907), a percepção do corpo próprio e a
percepção exterior variam conjuntamente. É a essa relação que os determinantes - forma,
movimento e cor - das respostas ao método parecem reenviar. Assim, muito mais que
apontar uma personalidade estática, digamos assim, tais determinantes apontam para o
processo, para as funções dinâmicas de estruturação de um modo de ser no mundo.
Um exercício de aproximação entre as principais categorias fenomenológicas,
apreendidas a partir de uma leitura em Merlau-Ponty, e os determinantes das respostas no
Rorschach e, ainda, as modalidades de crença descritas por Pratt, resultou na elaboração do
Quadro 02,
apresentado
a seguir.
Na coluna do meio,
situam-se as categorias
fenomenológicas, em cujo centro estáa dimensão corporal - corpo / movimento, como
princípio determinante de uma disposição afetiva individual. Na primeira coluna, portanto à
esquerda da coluna central, situam-se os determinantes do Rorschach, numa clara analogia
ao remetimento, dado pelo próprio método, a instâncias pré-lógicas e respectivo dinamismo
da vida mental. Na segunda coluna, portanto à direita da coluna central, situam-se as
modalidades de crença descritas por Pratt, também numa clara analogia ao seu método, de
natureza sintagmática, remetendo a uma elaboração mental consciente das experiências
fundamentais em causa.
Quadro 03: categorias fenomenológicas, determinantes no Rorschach e modalidades de crença em
Pratt
DETERMINANTES DO
RORSCHACH
CATEGORIAS
FENOMENOLÓGICAS
MODALIDADES DE
CRENÇA EM PRATT
Percepção/Forma
FORMAL
Intelectual
(Categoria espaço)
Corpo/Movimento
CINESTÉSICO
Emocional
(Categoria movimento)
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Meio/Cor
CROMÁTICO
Perceptiva
(Categoria tonalidade)
Como pode constatar empiricamente o próprio Rorschach, o determinante formal
expressa o grau de acuidade dos processos associativos durante o trabalho de assimilação,
bem como a capacidade de disciplinar a função lógica ou o quanto esta última se apresenta
automatizada, instalando-se por si própria. Assim, uma percentagem ótima de respostas
formais seria reflexo de uma vida mental consciente suficientemente desenvolvida. Por outro
lado, um excesso delas poderia se dar de maneira quase automatizada e em detrimento de
uma vida afetiva mais flexível, levando à estereotipa ou ao dogmatismo. Alinhando-se com o
aspecto formal do teste, ressalte-se o aspecto fenomenológico do espaço, dado aqui no
sentido propriamente estático. O determinante formal se sustenta sobre a distribuição do
borrão no espaço físico delimitado e respectivos contornos. À direita desta mesma linha,
relaciona-se a crença intelectual, descrita por Pratt (1907), considerando-se os seus
determinantes, de primeiro plano, também racionais.
O determinante cinético, segundo constatações também empíricas do próprio
Rorschach (1921/1974), estaria relacionado a uma energia disposicional interior e, portanto,
revelador de um movimento predominantemente introversivo. Como relatado em mais
detalhes em trabalho anterior (Freitas, 2005), Rorschach chegou às suas concepções sobre o
valor e as funções da cinestesia a partir dos seus estudos sobre os sonhos, estes últimos
compreendidos tanto em sua dimensão fisiológica quanto simbólica. As sensações de
movimento, ligadas portanto ao corpo próprio, estão na base do seu entendimento sobre o
dinamismo das respostas cinestésicas. Portanto, no eixo central desta linha, situam-se as
categorias fenomenológicas de corpo e movimento. Encontrando sua fonte diretamente no
fundo de sentimento vital; portanto, também na vida interior do organismo, a crença
emocional descrita por Pratt é relacionada na extrema direita desta linha.
Por último, o determinante cromático, como disposição geral dada pela afetividade
dirigida ao mundo exterior, mostra-se revelador de um movimento de extratensão: uma
tendência a reagir de imediato aos estímulos do meio ou internos, acompanhada de uma
inteligência mais reprodutiva que criadora. A categoria fenomenológica da tonalidade/meio
ganha aqui a ênfase principal, conforme relacionado na coluna central. Na terceira coluna,
relaciona-se, então, a modalidade de crença primitiva, descrita por Pratt, devido à sua
particular identificação com uma espécie de consciência enredada ou, para falar nos termos
em que se expressou Lévy-Brhul, de consciência "participativa".
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Á guisa de conclusão
A ideia básica sobre a qual pautaram-se as reflexões desenvolvidas ao longo deste
ensaioé a de que a crença religiosa ou a descrença, tal como os demais elementos do
psiquismo humano, guardam a mesma relação de filiação para com a dimensão das
vivências - o mundo da vida (Erlebnisse), a que se refere a fenomenologia. Ao tentar dar conta
desta relação de fraternidade que integra os diversos aspectos da vida mental, Peirce (19311958/1995) falou em "Primeiridade", Pratt (1907) formulou o conceito de "fundo de
sentimento vital" e Rorschach (1921/1974) apresentou sua concepção de "tipo de vivência" ou
"tipo de ressonância íntima".
Naturalmente que estes conceitos acima não podem ser considerados equivalentes,
em seu sentido literal. O que há de comum entre eles, e que tornou-se como que o fio
condutor ao longo as análises aqui apresentadas, é justamente o fato de refletirem um
esforço de compreensão acerca das relações entre uma espécie de fundo irrefletido e a
atividade reflexiva que caracterizam a existência humana. E é a partir disso que se pode
concluir que, de um ponto de vista fenomenológico, ainda que representando o Zeigeist de
onde inseridos, tanto Pratt e Rorschach buscaram reenviar, por meio de seus conceitos e
instrumentos - e cada um a seu modo, às contínuas transformações e às diferentes
modalidades de realizações da intencionalidade psíquica.
Querendo ou não, não há como negar que a psicologia contemporânea - e não só a
psicologia da religião! -, de um modo ou de outro, ainda se vê à volta com tais questões.
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Nota sobre a autora
Marta Helena de Freitas. Psicóloga, doutora em Psicologia pela Universidade de
Brasília, com pós-doutoramento em Psicologia da Religião, realizado no Religious Studies
Department, School ofEuropean Culture and Languages da University ofKent at Canterbury, Reino
Unido. Professora pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Católica de Brasília. E-mails: [email protected] e [email protected]
Data de recebimento: 24/06/2012
Data de aceite: 07/03/2013
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A relação com o outro em Sartre
The relationship with the other in Sartre
Reinaldo Furlan
Universidade de São Paulo
Brasil
Resumo
O objetivo é explorar os sentidos da relação com o outro na filosofia de Sartre (O ser e o
nada). Em primeiro lugar destacamos as noções de ser-em-si, ser-para-si e ser-para-ooutro, noções chaves para a compreensão dos fundamentos da relação com o outro em
sua filosofia. A seguir, destacamos o desejo e o amor nas formas concretas de relação com
o outro. Por fim, encerramos com o levantamento de duas ideias, uma referente à
atualidade de sua temática, através do pensamento de Foucault, e a outra
problematizando a sua noção de encarnação, através do pensamento de Merleau-Ponty.
Palavras-chave: relação com o outro; fenomenologia; Sartre; subjetividade;
Merleau-Ponty
Abstract
The aim is to explore the meanings of the relationship with the other in the philosophy of
Sartre (Being and Nothingness). First of all we highlighted the notions of being-in-itself,
being-for-itself and being-for-the-other, key notions for understanding the fundamentals
of the relationship with the other in Sartre's philosophy. After that, we highlighted desire
and love in the concrete way of relationship with the other. Finally, we finished by
raising two ideas, one referring to the relevance of the theme at the present time through
Foucault's thought, and the other discussing the notion of incarnation through MerleauPonty's thought.
Keywords: relationship with the other; phenomenology; Sartre; subjectivity;
Merleau-Ponty
Introdução
Esse texto1 completa o trabalho que iniciamos com "Desejo e formação de mundo em
Sartre: breve contraponto com Merleau-Ponty" (Furlan, 2012), destacando, agora, as relações
com o outro segundo a filosofia de O ser e o nada (Sartre, 1943/1976).
Do trabalho anterior, retomamos apenas o sentido necessário para a introdução da
temática do presente artigo, a fim de torna-lo independente do primeiro. Mas, uma vez que
ambos faziam parte de um mesmo curso que ministramos no Programa de Pós-Graduação
em Psicologia (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade
de São Paulo), consideramos vantajosa a sua leitura conjunta, uma vez que o trabalho
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presente se desenvolve na sequência do primeiro, inclusive em obediência à ordem das
razões na obra do próprio Sartre. Nesse sentido, consideramos bastante oportuna a
possibilidade de publicá-los na mesma revista, facilitando seu acesso recíproco ao leitor
interessado.
Nesse artigo destacamos, pois, as relações com o outro segundo a filosofia de O ser e o
nada (SARTRE, 1943/1976). Em particular, destacamos o capítulo intitulado "As relações
concretas com o outro", que discute os fundamentos da relação com o outro através do amor
e do ódio, do sadismo e do masoquismo, do desejo, da indiferença e da expressão
linguageira. Damos atenção especial ao amor e ao desejo. Encerramos com o levantamento
de duas questões, uma referente à atualidade de sua temática, em uma analogia com o
pensamento de Michel Foucault, e outra problematizando a sua noção de encarnação,
através do pensamento de Merleau-Ponty.
O para-si2
Discutir o sentido fundamental da relação com o outro, ou a dimensão de ser-para-ooutro em Sartre, implica que se tenha com clareza a dimensão de ser da consciência ou do
que o autor chamou de ser-para-si, em contraposição ao ser-em-si.
A saber, o para-si surge enquanto negação do ser-em-si que ele não é, e esta negação
será a ocasião da própria manifestação do Ser para a consciência, de um ser, portanto, que é
para a consciência, e que a consciência não é. É o modo como Sartre explicita o caráter
intencional da consciência, ou sua estrutura enquanto consciência de alguma coisa (Husserl),
esvaziando a consciência de qualquer conteúdo de ser. Ela é apenas essa relação com o ser, e
nada mais. Mas, em segundo lugar, é preciso entender o caráter concreto do para-si
enquanto "separação" do ser-em-si das coisas, e que é ocasião da deflagração do ser
propriamente dito. Pois não se trata, antes de tudo, da inauguração de uma relação
epistemológica, ou da abertura da dimensão do conhecimento, mas de uma falta ontológica,
um oco ou vazio de ser que surgirá enquanto desejo de ser. Ou seja, justamente porque a
consciência aparece como não-ser (em-si), sente falta de ser, e esse desejo fundamental de ser
é o que caracteriza a essência do ser humano, que assim se revela, pois, como vazia. E daí o
mote sartreano de que "a existência precede a essência" (Sartre, 1946/1978, p. 5), pois, no
caso do homem, cuja essência não é, ou é a de não-ser, será seu projeto, enquanto movimento
de ser, que constituirá, na medida do possível, seu próprio ser, visto que o homem há de se
projetar permanentemente em direção ao ser que ele não é, num movimento incessante e
sempre ultrapassado por ele mesmo pela própria condição de (não)ser da consciência.
2
Para um maior esclarecimento desse item, remetemos o leitor ao nosso trabalho anterior, Furlan (2012).
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"
Ser-para-o-outro
E o importante agora, para os propósitos desse artigo, é perceber que nesse seu
movimento ou nessa sua dimensão de ser, o para-si não se conhece. Tem consciência do que
faz, pois sua condição de ser é a própria consciência, mas a tal ponto é no mundo com o ser
das coisas, através das quais realiza seu próprio ser, que não se ocupa em saber o seu próprio
sentido. Isto é, apenas o vive, ou é esse sentido em devir, e esse estado do para-si Sartre
chama de consciência irrefletida. Será a presença do olhar do outro que fará com que o parasi se veja ou tematize o sentido e o valor de sua própria ação, isto é, de seu projeto de ser.
Assim se abre para o para-si uma dimensão da qual não se ocupava, e que dará origem à
própria moral. Pois é a presença do outro, melhor dizendo, a consciência que o para-si tem
do olhar do outro sobre si, que o levará a reverter seu olhar, antes ocupado com as coisas,
para o valor de suas próprias ações, ou sobre o sentido do seu próprio comportamento.
Considere-se o exemplo de Sartre (1943/1976) sobre o ato de espiar o outro através do
buraco da fechadura da porta. Enquanto o faço, sou todo visão no corpo que contemplo. Mas
a simples possibilidade ou o fato de ser flagrado revela a mim a situação que na perspectiva
do para-si eu vivia de forma irrefletida. Não significa que eu não tivesse, até então,
consciência do que fazia. Ao contrário, eu era ou sou essa consciência, mas apenas enquanto
consciência irrefletida, e não transcendida pelo outro ou pela perspectiva de ser-para-ooutro, que é a perspectiva do conhecimento ou da consciência reflexiva, que se volta sobre si
mesma ou o sentido de sua ação. O que significa que a transparência da consciência
(irrefletida) para si mesma é ao mesmo tempo a razão da opacidade daquilo que o para-si é
enquanto projeto (Silva, 2003, p. 179), como se o engajamento estivesse na razão inversa do
seu conhecimento. Ou seja, quanto mais sou ação no mundo, o que inclui, inclusive, minhas
atividades de conhecê-lo, menos contemplo o sentido do meu próprio comportamento. Em
contrapartida, no encontro com o Outro, o sentido que eu apenas vivia se apresenta como
um fora que escapa a mim mesmo na dimensão do mundo que eu sou. Ou seja, a dimensão
de ser para o outro a uma só vez possibilita "nos ver como nós somos" (Sartre, 1943/1976, p.
404), e na complexidade em que somos, uma vez que o sentido do que fazemos implica o
sentido do nosso próprio mundo, isto é, nossa maneira de sê-lo através dos nossos projetos
(cf. Furlan, 2012).
Ou ainda, não fosse o olhar do outro (possibilidade que é uma abstração), o para-si
viveria permanentemente em estado de inocência, ocupando-se apenas do mundo, e não do
sentido que ele é enquanto o realiza.
Na verdade, são duas perspectivas opostas: ver e ser visto. Ver é a dimensão de serpara-si, é o corpo próprio enquanto projeto de ser, isto é, transcendência em direção ao ser.
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Ser visto é a dimensão de ser-para-o-outro, portanto, como transcendência transcendida pela
perspectiva do olhar do outro, que capta o sentido de ser (projeto) do para-si no mundo.
Ora, tudo o que se faz a partir da perspectiva de ser visível para o outro tem como
ponto de partida essa objetivação de um sentido de ser do para-si - que o determina de uma
forma ou de outra -, e como finalidade se afirmar enquanto para-si ou subjetividade diante
da avaliação objetiva do outro, como veremos a seguir.
O outro há sempre de me ver como um determinado sentido de ser que me identifica
ou confere a mim certa identidade. O que significa que o seu olhar não apenas me desvela
uma dimensão da qual eu não me ocupava até então, mas também representa uma ameaça à
minha liberdade, que se vê estancada, porque apropriada no sentido de seu ato: um valor me
foi atribuído, ou a dimensão de liberdade que eu vivo enquanto fuga permanente do ser (emsi) em direção ao ser (em-si) é estancada ou fixada num determinado valor de ser (em-si):
"fulano é assim", "fulano é isso". E, antes, um nome me foi atribuído - note-se, desde já, o
papel atribuído por Sartre à linguagem, que retomaremos mais à frente.
Por isso a relação fundamental com o outro, segundo Sartre, é a do conflito entre uma
liberdade que enquanto para-si eu vivo sempre em ato, cuja duração é essa permanente fuga
do ser (em-si) em direção ao ser (em-si), e o olhar do outro que me apreende num desses
sentidos que eu sou enquanto projeto de ser (que constituem o sentido que sou, enquanto
passado ou sentido que trago sempre ultrapassado em direção ao ser que desejo).
Frente a esse olhar que objetiva ou fixa o sentido de ser do para-si, qual será a minha
reação? Segundo Sartre, duas opções são possíveis: aceitar essa objetivação, e a partir dela
tentar recuperar a própria subjetividade diante do outro, ou recusar essa objetivação,
reafirmando a própria subjetividade através da objetivação do outro com o próprio olhar.
Entre as atitudes da primeira opção, Sartre destaca o amor, a linguagem e o
masoquismo. Na segunda opção, a indiferença, o desejo, o ódio e o sadismo. Ele as descreve
separadamente para fins analíticos, mas, de fato, são posições que podem se alternar. O
importante é frisar que são atitudes que não se misturam: posso ocupar a posição de sujeito
ou de objeto, mas não uma posição aquém dessa distinção.
É a separação entre essas instâncias que se enfatiza, a passagem de uma para a outra, e
não de uma na outra, isto é, enfatiza-se sua alternância, e não sua cumplicidade. Ou, coerente
com sua noção de consciência enquanto nada ou não-ser (e conforme tratamos no artigo
anterior), Sartre recusa por princípio qualquer tentativa de mistura "substancial" entre os
sujeitos, e a carne, enquanto contingência humana do para-si, encontra-se destituída de
sentido, é pura matéria. São duas perspectivas opostas e inconciliáveis, portanto. Posso ver
ou tocar, e nessa dimensão sou o corpo próprio enquanto projeto de mundo, ou posso me ver
e me tocar, como uma coisa no mundo, e então o para-si que sou, nesse momento, toma parte
do próprio corpo como um ser (em-si), um isso ou aquilo. Por exemplo, quando olho para
meu braço ferido ou o estendo para o olhar do médico, para um exame de raios-X, etc. Em
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síntese, a dor que sofro é a dimensão do para-si, que, naturalmente, me atrai ou me lembra
da contingência de meu próprio corpo, ou da sua dimensão de ser-em-si.
Mas também posso (como tratamos no artigo anterior) assumir como fim imediato meu
próprio corpo, ao invés de sê-lo como instrumento de meus projetos de ser no mundo. Então
desejo (no sentido restrito do termo, e não mais em sentido ontológico mais amplo, onde
todo projeto é desejo de ser), isto é, busco me encarnar ao invés de fazer do corpo princípio
de ação no mundo. Quer dizer, meu corpo que é referência implícita no uso de todos os
instrumentos com os quais componho meu ser no mundo (ou desejo ser, no sentido amplo
do termo), passa a ser meu fim imediato enquanto desejo sexual ou de encarnação, o que
levará à encarnação do mundo também. Isto é, a instrumentalidade do mundo dará lugar ao
seu caráter sensível, à sua sensualidade para a minha própria consciência encarnada, o que
significa que os meus projetos de ser se afundam no caráter sensível de minha carne e do
mundo, que antes representavam apenas a presença da contingência da matéria nos mesmos.
Retomaremos esse ponto mais à frente, quando tratarmos especificamente do desejo como
modalidade de relação com o outro.
As relações concretas com o outro
Antes de tudo, é importante frisar que todas as descrições sartreanas que visam
elucidar o sentido de nossas relações com o outro, ocorrem em diferentes graus ou
intensidades, isto é, das formas mais ou menos nuançadas, até as mais explícitas ou
evidentes. O importante nessas descrições, portanto, é a sua direção de sentido, e não a
intensidade ou grau em que ocorrem em nossas relações, que varia segundo cada situação
particular.
A) Comecemos pelas atitudes de recusa da objetivação do olhar do outro, através das
quais o para-si pretende preservar sua subjetividade. Dessa forma, o para-si, que se sente
objetivado pelo olhar do outro, objetiva-o em defesa da própria subjetividade.
1) A indiferença. Com a indiferença o para-si procura ignorar o olhar do outro,
tentando reduzi-lo a um elemento funcional entre tantos de seu mundo. Por exemplo, para
um aluno existem salas de aula, ônibus ou carro para ir à escola, etc, mas também
professores, e vice-versa. Professores e alunos são visíveis uns para os outros, ou sofrem os
olhares uns dos outros (naturalmente, os pares também se olham). Revelam, assim, as
dimensões objetivas que ameaçam suas liberdades. Ora, a atitude de indiferença frente à
mesma é a tentativa de um reduzir o outro a um elemento funcional de seu mundo, por
exemplo, como um instrumento entre outros para se obter um salário ou um diploma. Mas a
medida do sucesso dessa tentativa é também a de seu fracasso, pois, uma vez sofrido o olhar
do outro, como cada para-si envolvido pode recuperar sua subjetividade, transformando o
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outro em coisa ou elemento funcional de seu mundo? Ou seja, quanto mais ele reduz o outro
a insignificância das coisas, menos pode obter dele o reconhecimento de sua subjetividade.
2) O desejo. Como adiantamos, o desejo (sexual) é princípio de encarnação do para-si
(consciência) em seu ser corpo. Isto é, de referência implícita à situação do para-si no mundo,
seu corpo passa a ser seu objeto e fim mais imediatos. Desejar o outro já pode ser, pois,
princípio de encarnação ou objetivação própria, porque a carne representa para Sartre a
matéria do mundo desprovida de sentido, é princípio de "queda". Queda de um para-si que
deixa de iluminar o mundo através de suas atividades para se obscurecer no próprio corpo
desejante, e assim também ao mundo que vai se reduzindo a sua matéria sensível. Ora, o
corpo que deseja procura enlear também o outro à própria encarnação, fazendo-se corpo
fascinante. Ou seja, o para-si pode buscar com o desejo sexual a própria objetivação, e buscar
com ela a objetivação do outro também, objeto do seu desejo. Tomemos, num uso mais livre,
o exemplo sartreano da bailarina. A bailarina visivelmente aceita sua objetivação, isto é,
aceita ser para o outro enquanto corpo dançante. Não é esse o aspecto destacado por Sartre,
que se atém ao olhar do espectador, que se fascina por ela, mais precisamente, pela bailarina
e não por seu corpo, pois esse corpo encontra-se transfigurado pelos seus movimentos - é
corpo dançante, cuja graça suspende a matéria sensível (carne) que ela porta ou é. Não há
nada menos nu do que a graça do corpo de uma dançarina em ato, diz Sartre, não importa a
quantidade de roupa que ela use. Mas desde que em estado de graça, frisemos, pois um
corpo "desconjuntado" ou com movimentos desarmoniosos destaca justamente suas partes,
seus músculos, a matéria sob seus movimentos. O movimento das nádegas, por exemplo,
não tem nada de gracioso, segundo Sartre, e, diferenças culturais à parte, isso ocorre quando
o seu requebro destaca-se do conjunto do corpo. Ora, desejando a bailarina, isto é, o outro
em situação, e não o seu corpo, o espectador começa por desnudá-la, isto é, a olhar suas
coxas, nádegas... tentando reduzi-la à matéria sensível que se encontra sob sua dança. Em
outros termos, o desejo pela subjetividade do outro acaba induzindo a percebê-la como um
objeto, como pode induzir o próprio para-si desejante a se objetivar. Por isso Sartre destaca,
na literatura, a proximidade frequente da volúpia com a morte, quando os dois amantes se
aproximam ao máximo da matéria sensível que os constitui. Sartre aborda o exemplo da
bailarina do ponto de vista do espectador, mas, como dissemos, é óbvio que quem dança
para o outro ou para ser visto aceita ser isso que o outro vê. Mas, também, é assim que a
bailarina procura recuperar sua subjetividade, pois é esta que inicialmente o espectador
deseja e que, portanto, reconhece. Ora, do ponto de vista da bailarina, como pode um outro
fascinado reconhecer sua subjetividade, se a fascinação supõe justamente a perda da
liberdade da subjetividade, para ser todo ou apenas no objeto de fascinação? Ou, do ponto
de vista do espectador que deseja a bailarina, que é o foco de Sartre, como pode obter dela o
reconhecimento de sua subjetividade, se termina por objetivá-la através do desejo? Obterá o
reconhecimento de suas coxas ou nádegas?
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"
3) O sadismo. O sadismo é a tentativa de encarnar o outro lhe causando sofrimento. Se
antes o outro era livre para me olhar e objetivar, como sádico procuro reduzi-lo ao próprio
sofrimento ou à própria dor (em seu corpo), que deve suplicar-me, submeter-se à minha
vontade, reconhecendo assim minha subjetividade. A contradição disso, mais uma vez, está
em reduzir ao máximo o outro à condição de coisa para exigir dele o reconhecimento de
minha subjetividade. Mas nem pode uma coisa reconhecer o que quer que seja (o em-si é
fechado), nem pode o para-si próprio ou do outro ser reduzido a uma coisa. No caso do
sadismo, nem pode, em última instância, um sujeito que é "apenas" dor ou sofrimento
reconhecer a subjetividade do sádico, como também sempre lhe resta um último olhar ou
suspiro com os quais suspende tudo o que havia dito ou jurado antes. "Acreditaria mesmo
em tudo o que disse?" "O que teria significado aquele último olhar?" São dúvidas que o
sádico, por fim, levará consigo, não logrando o que esperava.
4) O ódio. Através do ódio o para-si deseja a eliminação do outro. Mas, caso venha a
fazê-lo, não pode eliminar o fato do outro ter sido e de ter apreendido o sentido de seu ser.
Restaria, pois, a lembrança do outro que um dia encerrou seu ser, o que é suficiente para
marcar o fracasso dessa tentativa do para-si de recuperar sua subjetividade, agravada, então,
pela eliminação do outro, que, assim, não pode mais reconhecer coisa alguma.
B) Na primeira atitude, ao contrário, o para-si aceita sua objetivação pelo olhar do
outro, e é através dela que procura recuperá-la.
1) O masoquismo. O masoquista não só aceita sua objetivação como procura
intensificá-la ao máximo, tornando-se totalmente objeto para o gozo do outro. Esse é o ponto
em que procura converter sua submissão enquanto objeto para o outro, em necessidade
desse outro por ele, com o que as posições se invertem, e o masoquista, antes dominado ou
na posição de objeto, passa a ocupar o papel dominante de sujeito, e o outro, a de objeto.
Mas, como dito anteriormente, um objeto não pode mais reconhecer subjetividade alguma, e
o sentido visado pelo masoquista também está fadado ao fracasso.
2) O amor. A diferença com o desejo sexual é que o amor pressupõe reciprocidade.
Quem deseja (sexualmente), não necessariamente precisa ser desejado, ainda que a
reciprocidade possa ser favorável à satisfação do desejo. Em última instância, pode-se
comprar um objeto de desejo ou até obtê-lo à força, mas o amor pressupõe reciprocidade.
Contrariando visões puristas ou altruístas do amor, quem ama deseja ser amado. Em outros
termos, não há amor desinteressado.
O amante procura, então, fazer-se objeto fascinante para o amado, com as contradições
que isso implica, como adiantamos a respeito da fascinação, pois um sujeito fascinado não
pode mais reconhecer a subjetividade do outro, na medida em que perde a sua. Ou seja, no
amor quer-se um sujeito (livre) cativo, o que é contraditório.
Nesse caso, suscitar o desejo sexual do amado pode fazer parte desse processo, mas
não basta, pois o amante não quer ser um objeto de desejo entre outros que o amado possa
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ter, mas ser O objeto, isto é, este a partir do qual todos os objetos do mundo são significados
para o amado. Em outros termos, cada para-si valora espontaneamente o mundo através de
seus projetos (como vimos no exemplo da montanha ou do campo de neve no artigo anterior,
que têm um valor de sentido conforme o desejo do para-si na sua relação com os mesmos)3, e
o outro, sendo valorado por ele, também é objetivado (como sendo isso ou aquilo, assim ou
daquele jeito). Mas se esse outro passa a ser amado, torna-se o centro de referência de todos
os outros objetos do mundo para o para-si, e assim de todos os seus valores, ocupando dessa
forma um lugar sui generis em seu mundo, pois ao mesmo tempo é objeto e condição de
valor de todo objeto, o que significa, no limite, deixar a própria condição de objeto (que é a
forma, pois, como o para-si, aceitando sua objetivação através do seu ser amante, pretende
recuperar sua subjetividade). Por isso se diz que o mundo fica diferente quando se ama,
melhor ainda, que sem o amado nada mais importa ou tudo perde o sentido, e é isso o que o
amante deseja do amado. Se isso acontece, então os dois passam a ser para cada qual o centro
de referência de todos os outros valores mundanos, formando, assim, um casal, onde o olhar
de um terceiro só atrapalha, porque rompe com essa cumplicidade fechada de referência
recíproca e absoluta de mundo, ao situá-los no mundo como um casal que se ama,
relativizando, assim, o que lhes parecia absoluto. Por isso, mesmo um amigo é um intruso
indesejável quando de alguma forma pretende mostrar a um deles os defeitos ou limites do
outro. Em geral, é a amizade que se enfraquece ou se acaba.
Ora, note-se então o que supostamente consegue o amor. Sendo amado, o para-si sente
justificada sua existência, pois esta parece absolutamente necessária para o outro. O outro
não só me reconhece (em minha subjetividade), como me ama, justificando plenamente o
meu ser.
O amor realiza, pois, da maneira mais favorável possível, a avaliação que se iniciou
com o olhar do outro. Pois se o outro me avalia com seu olhar, e me ama, então sou o objeto
mais importante de sua vida, tão importante que sua própria avaliação encontra em mim o
seu limite, confunde-se comigo, a ponto de não poder mais me avaliar, pois passo a ser a
referência de todas as suas avaliações, o que seria o momento do reconhecimento de minha
subjetividade pelo outro. Mas essa é a contradição, pois nessa condição de ser cativo o outro
não pode mais reconhecer minha subjetividade, ou, conforme o dito popular, "o amor é
cego".
Note-se quantas variações de graus de intensidade podemos fazer em relação ao amor
dos amantes, tal como descrito por Sartre. Porque professores, pais, filhos, amigos,
profissionais em geral, também podem ser amados, se não nesse sentido particular dos
3
"Sendo em situação, o para-si qualifica o ser (em-si) enquanto seu projeto de ser. Sentir e perceber a situação de
uma forma ou de outra já é, nesse sentido, um projeto de ser do para-si. Por isso uma montanha aparece como
obstáculo desde que se pretenda passar para o seu outro lado; um campo de neve aparece como brancura na
perspectiva de um espectador, ou, sobretudo, como espaço liso na perspectiva do esquiador; o frio e o calor
parecem excessivos, desde que se queira um estado de conforto ou até mesmo, em última instância, preservar a
vida, etc" (Furlan, 2012, p. 120).
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amantes, ao menos com alguns de seus traços. Então um professor, amado pelos alunos,
encontra justificado, ao menos parcialmente, seu ser ou sua vida, e assim por diante, um
médico ou terapeuta, pelos pacientes, um aluno, pelos professores, etc, etc. Ora, o risco disso
está em trocar a consciência da liberdade por uma imagem de ser que o para-si não é e jamais
será. Por isso, do ponto de vista sartreano, bons professores, alunos, pais, filhos,
profissionais, etc., quando admirados ou amados, jamais se deixam seduzir por isso. Quer
dizer, o que importa é o projeto pelo qual procuram "justificar" a própria existência, isto é,
sendo o que lhes parece valer a pena, onde o ponto de vista dos outros pode participar ou ser
relevante para essa sua realização, mas jamais com o intuito de ser bem visto ou bem
avaliado pelos outros. Nosso ser é visível para o outro, e por isso a imagem que o outro tem
de nós pode ser reveladora do nosso sentido ou projeto de ser. Não ignorá-la, porém, não
significa ser-lhe subserviente, ou ser em função dessa imagem. O para-si tem apenas a si
mesmo para se justificar, ainda que considere o ponto de vista do outro ou que este lhe seja
importante.
3) A linguagem.
Ser expressivo é ser na dimensão para o outro. A linguagem representa, pois, a
perspectiva da objetivação do para-si, onde ele é para o outro ou do ponto de vista do outro.
Naturalmente, a linguagem pode fazer parte dos utensílios do para-si, através dos quais ele
projeta o próprio mundo ou se faz mundo. O para-si usa a linguagem sendo expressivo ou
significante para o outro, enquanto escritor, professor, aluno, médico, terapeuta, paciente,
sedutor, cantor, patrão, empregado, etc. O risco, mais uma vez, está em se objetivar aí, o que
a palavra ou o olhar do outro faz por princípio, captando ou dizendo o sentido de ser de
cada para-si que só é ultrapassando ou negando o próprio ser.
De uma forma ou de outra, isto é, sendo ativo ou passivo, subjetivando ou sendo
subjetivado (objetivado como sendo isso ou aquilo), através da linguagem o para-si
reconhece sua dimensão expressiva de ser-para-o-outro. Melhor ainda, ser-para-o-outro é ser
na dimensão da linguagem, que representa, por excelência, o campo geral dos conflitos com
o outro, e, como o campo da percepção de si através do olhar do outro, é onde o para-si pode
se deixar ou mesmo desejar se prender ou fixar.
Todas as tentativas do homem de eliminar o conflito entre as suas dimensões
subjetivas e objetivas de ser nas relações concretas com o outro são fadadas ao fracasso.
Podemos, inclusive, ter projetos em comum com o(s) outro(s), quando suspendemos a
relação de olhar um para o outro, e olhamos juntos a mesma coisa, ou visamos juntos aos
mesmos objetivos. Nessa perspectiva, um casal, uma pequena reunião de pessoas, uma
comunidade, uma classe social ou até mesmo a humanidade, como um todo, virtualmente
podem assumir a perspectiva subjetiva de ser no mundo - o que não significa fusão subjetiva
com o outro (Sartre, 1943/1976).4 Mas, nesses casos, a perspectiva de ser para o outro seria a
' Cf. Sartre (1943/1976, pp. 464-486), sobre a diferença entre ser ao lado e ser-com
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de ser vista, senão por alguém de fora do grupo ou de outra classe social, em última instância
por "Deus" (o grande Outro), através do qual a humanidade se perceberia segundo o seu
sentido de ser visível para o Absoluto ou um outro além. De qualquer forma, se me vejo, isto
é, se assumo a perspectiva do outro, real ou imaginário, percebo o caráter de meu ser
objetivo, que me fixa no mundo e transcende a minha subjetividade. Ora, é essa tensão entre
o que sou e não sou, ou o que sou não sendo, que se agudiza na relação com o outro.
Considerações finais
Antes de tudo, julgamos pertinente encerrar com uma lembrança ao trabalho de
Foucault, porque o ocaso da noção de consciência em nossa filosofia contemporânea mais
recente não deve ser motivo para subestimar a força do pensamento sartreano, em que se
apoiaram sobretudo filósofos franceses da geração seguinte. Quer dizer, sabemos que Sartre
apostou no acabamento da noção de consciência, e que o ocaso da mesma na filosofia
contemporânea também favorece o esquecimento de sua filosofia, ainda que Sartre seja um
expoente muito refinado dessa noção, o que levou Deleuze & Guattari (1992, p. 65) a dizerem
que sua filosofia devolve "à imanência seus direitos". Naturalmente, não sugerimos uma
relação linear entre os pensamentos de Sartre e Foucault, este que se serviu de outros
interlocutores importantes, entre os quais os epistemólogos franceses e o próprio Nietzsche.
Mas não deixa de ser curiosa essa relação, eles que tiveram inclusive querelas pessoais na
vida intelectual francesa.
Sabe-se que Foucault construiu fama em grande parte fazendo a crítica das formas de
objetivação do sujeito na história ocidental, destacando, sobretudo na fase genealógica de seu
pensamento, como em Vigiar e Punir (1975/1996) e História da Sexualidade I (1976/1988), as
formas modernas de saber-poder que se investem sobre nós. Ora, como vimos, o princípio
geral da aplicação dessa ideia encontrava-se exposto de forma incisiva na filosofia sartreana.
Em outros termos, o sistema "infernal" com que somos codificados, significados, avaliados,
presos na teia do Outro (sociedade), encontrava-se anunciado na filosofia sartreana através
da análise da perspectiva do outro. Foucault, naturalmente, atem-se a uma perspectiva
histórica, ou de ontologia histórica e não geral, como em Sartre. Mas vale lembrar, inclusive,
que o mote de que o conflito generalizado é a base das relações com o outro é comum a
ambos os filósofos. Certamente, para Sartre a perspectiva do outro representa também a do
conhecimento do sentido de nosso ser, perspectiva que não interessava a Foucault, cujo
pensamento destaca apenas o que o poder fez de nós na história ocidental. Foucault
(1984/2004a) destacava essa segunda perspectiva apenas em entrevistas, afirmando que suas
obras não significam que não há verdade ou que tudo não passa de poder. Quer dizer, ao
estudar as formas canônicas de saber-poder, em sua fase genealógica Foucault se preocupa
apenas com os seus efeitos sobre nós, e só depois, em atenção à dimensão Ética, introduziu
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um princípio positivo em sua análise sobre a subjetividade, quer dizer, então na perspectiva
do que um sujeito pode fazer pela própria vida ou existência, e não apenas na perspectiva do
que o outro faz dele (Foucault, 1984/2004b).
Não bastasse esse contraponto com Foucault, a importância da nossa imagem pessoal
para o outro, que se acentua na chamada sociedade de espetáculo, e coloca mais em risco
nossa liberdade, encontra-se decididamente problematizada por Sartre, cuja filosofia se
mostra, portanto, bastante atual.
Por fim, gostaríamos de levantar outro ponto que não foi propriamente objeto de nossa
discussão, para mostrar o que nos parece crucial caso se queira revisar os fundamentos da
perspectiva sartreana sobre as relações com o outro.
Sartre entende a relação com o outro a partir do conflito. Simplesmente porque ser
olhado pelo outro revela a cada para-si a sua dimensão visível ou objetiva enquanto ser, que
assim estanca sua liberdade de não-ser. Ou seja, a dimensão objetiva significa o efeito de se
ver ou se sentir transcendido pelo olhar do outro. Não se trata, pois, de uma decisão
voluntária daquele que olha, mas da estrutura interna da própria relação entre olhar e ser
olhado. Daí a insuperabilidade dessa situação de conflito, e o que cabe a cada para-si
objetivado pelo olhar do outro é a tentativa (sempre frustrada) de obter o reconhecimento de
sua subjetividade através das alternativas que apresentamos, aceitando sua objetivação para
através dela buscar o reconhecimento de sua subjetividade, ou recusando-a de imediato,
objetivando o outro através do próprio olhar.
Ora, a revisão dessa perspectiva parece-nos que passa de maneira privilegiada pela
noção de carne ou encarnação em sua filosofia. Como vimos, para Sartre a carne representa
apenas a contingência da matéria do para-si, ou sua faticidade mais própria, porque sempre
com ele. Ou, a passividade é a dimensão da carne ou do corpo em-si para Sartre, e a
atividade é o para-si enquanto corpo-próprio, isto é, enquanto homem que age no mundo
através de seus projetos de ser. A dimensão passiva que o homem traz não pode, de direito,
invadir sua atividade, ou, a inércia não invade a liberdade do para-si, distinta dela por
natureza. São duas dimensões que se alternam, mas não se misturam, e a má-fé ocorre
justamente quando o para-si procura se encarnar, empastar a consciência em seu próprio
corpo, como destacamos com o desejo, mas que pode ser generalizado para qualquer atitude
de má-fé, na medida em que através dela o para-si se comporta como se fosse uma coisa (emsi), no caso, como se seu corpo não fosse próprio (para-si), mas um objeto entre outros.
Mas é essa ideia de carne ou encarnação que em última instância compromete nossas
relações com o outro, particularmente o amor. Ou seja, coerente com sua definição de
consciência, tomada como princípio central em sua filosofia, o outro sempre aparece como
uma ameaça de objetivação que em última instância crava minha consciência no próprio
corpo; é sempre a lembrança da faticidade de meus projetos, situados no mundo e
particularmente em meu próprio corpo. Isto é, o outro inverte sempre a perspectiva de ser do
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para-si: de abertura de mundo, ou de situação que se arma a partir de seus projetos, da qual
o corpo próprio é referência ou princípio central, o para-si se sente encerrado pela
perspectiva do outro, sente seu mundo ou projeto captado pelo seu olhar, e, em última
instância, como encarnado em seu próprio corpo.
Sartre não vê possibilidade de mistura dessas perspectivas, porque não vê
possibilidade de mistura entre os para-si, definidos a partir da noção de consciência, nem
destes com as coisas, o que a carne, se não fosse degradada à sua condição objetiva, poderia
promover, afinal, os corpos se tocam ou se enlaçam.
Vamos nos servir de uma citação de uma nota de curso de Merleau-Ponty que discute
diretamente a posição sartreana. Nela, Merleau-Ponty destaca a ideia de sado-masoquismo
justamente para mostrar que eu e o outro formamos um sistema, onde é difícil separar o que
é meu e do outro, o que há de mim no outro e o que há do outro em mim:
Numa concepção + profunda: relação com o outro e comigo são entrelaçadas
e simultâneas - A agressão # resposta a uma frustração objetiva (e portanto o
remédio não é uma gratificação objetiva). A agressão é também
masoquismo: sou eu que persigo no outro, é o outro que persigo em mim.
Freud: sado-masoquismo. Não sou de forma alguma simples: o outro é em
mim, me destruo por ele, há troca - Não o ser para si + o ser para outrem,
mas o Füreinander, isto é sado-masoquismo - O que sou em "para si", sou
também "para outrem", o que ele é "para si", é também "para mim" - Isso é
impossível de pensar através da "consciência": ela só pode se sentir anulada
pelo outro absoluto, culpável absolutamente, injustificável absolutamente,
responsável, condenada - mas se sou uma existência, isto é, sempre ligado à
inércia, a outro que eu, essa generatividade me absorve, sei que não serei
consciência negando-a (Merleau-Ponty, 1959-1961/1996, pp. 152-153).
Por isso, quando agrido ou odeio o outro é a mim mesmo que também o faço, ou ao
outro que está em mim e que, portanto, faz parte daquilo que sou. Merleau-Ponty trabalha,
nesse sentido, com as noções de introjeção e extrojeção (psicanálise), fazendo da relação com
o outro uma questão mais complicada do que se fosse apenas uma relação entre duas
consciências. Isto é, as relações com o outro são tanto "internalizadas" quanto "projetadas", e
por isso o que há é um no outro.
Ora, é esse embaraçamento das dimensões do si que a noção de carne (Merleau-Ponty,
1964) possibilita compreender (o que a noção de consciência pura não permite), tornando
mais difícil a distinção de suas perspectivas no sentido do nosso comportamento.
Podemos nos servir de mais duas passagens em Merleau-Ponty para ilustrar a questão:
Schilder observa: fumando cachimbo diante do espelho, sinto a superfície
lisa e ardente da madeira não somente lá onde estão meus dedos, mas
também nesses dedos gloriosos, nesses dedos apenas visíveis que estão no
fundo do espelho. O fantasma do espelho arrasta para fora minha carne, e,
do mesmo passo, todo o invisível de meu corpo pode investir os outros
corpos que vejo. Doravante, meu corpo pode comportar segmentos extraídos
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dos outros como minha substância se transfere para eles: o homem é espelho
para o homem. Quanto ao espelho, ele é o instrumento de uma universal
magia que transforma coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu no
outro e o outro em mim (Merleau-Ponty, 1960/1984, p. 93).
Esta mistura e esta invasão (de um sobre o outro) existem já porque nós
vemos, isto é, vemos os outros verem, com uma sutileza extraordinária,
vemos com os olhos dos outros desde que tenhamos olhos (...) Isso parece 6o
sentido porque cremos que se vê apenas coisas visíveis ou qualidades: mas
eu vejo corpos dirigidos para o mundo e para o mesmo mundo que eu vejo,
seus gestos ínfimos, eu os esposo, eu os vejo do interior. Os homens também
são homens-gignognes - Se se pudesse abrir um, nele encontraríamos todos
os outros como nas bonecas russas, ou antes, menos bem ordenados, em um
estado de indivisão (Merleau-Ponty, 1959-1961/1996, p. 211).
Temáticas, pois, a contrapelo do sentido da filosofia sartreana. E assim como no artigo
anterior sobre a noção de desejo e formação de mundo em Sartre, fizemos referência, além de
Merleau-Ponty, à filosofia de Deleuze & Guattari, podemos apontar aqui, en passant, que em
Deleuze (1970/2002) ou Deleuze & Guattari (1997) a noção de afecto representará a
prioridade da noção de corpo em substituição à noção de consciência.
Não cabe aqui, naturalmente, desenvolver essa questão que introduzimos à luz da
filosofia de Merleau-Ponty, que pode ser vista como uma tentativa de reescrever as temáticas
sartreanas num outro sentido ou sob outros fundamentos, como já frisamos no artigo
anterior (Furlan, 2012). De fato, a filosofia de Merleau-Ponty (1960/1984, 1964) procura
justamente dar sentido à simultaneidade entre as nossas dimensões de ver e ser visto, tornálas compossíveis, e não excludentes, e procura fazê-lo justamente através da ideia de
encarnação. Não significa que os riscos de objetivação descritos por Sartre sejam eliminados,
mas que o caráter de ser-com o outro não está comprometido por princípio, em seu sentido
mais forte ou intrínseco, talvez o preço pago por um pensamento que se caracterizou pela
mais intransigente e rigorosa afirmação do princípio de nossa liberdade. Nesse sentido,
ainda, mas esse seria tema para outro trabalho, em Merleau-Ponty a liberdade é mais
matizada, opaca e embaraçada com o outro (nunca se sabe, ao certo, o que há do outro em
mim ou de mim no outro), enquanto, para Sartre a consciência é translúcida em seu
movimento intencional de ser, movimento sem inércia possível e livre de qualquer embaraço
com o outro ou o que quer que seja, ainda que isso signifique na filosofia sartreana, como
mostramos no trabalho anterior, a mais íntima ligação entre consciência e mundo, a ponto de
constituírem um único Ser (já que separados por nada), mas livre de embaraços porque
marcados por essa diferença de ser (em-si e para-si) "que os coloca mais distantes um do
outro do que o mais longínquo exterior" (Furlan, 2012, p. 122).
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Silva, F. L. (2003). Ética e literatura em Sartre. São Paulo: Edunesp.
Nota sobre o autor
Reinaldo Furlan. Professor de filosofia no Departamento de Psicologia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo. E-mail:
[email protected]
Data de recebimento: 31/08/2012
Data de aceite: 19/04/2013
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Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121.
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1
“
Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano
"Place of the imaginary of seeing": dialogues based on Lacan's mirror
Danilo Saretta Verissimo
Universidade Estadual de São Paulo
Brasil
Resumo
A concepção lacaniana do estádio do espelho é perpassada por uma rica malha de
diálogos teóricos. Em meio a esta rede se esboça uma ideia de sujeito. O presente trabalho
é destinado ao exame dessa ideia, não no interior da obra de Lacan, e sim no âmbito do
quadro de referências teóricas relacionado ao tema em apreço. Interessa-nos situar
determinados aspectos metodológicos e antropológicos do estádio do espelho em relação
a teorias que lhe servem de mediação. Nossos apontamentos voltam-se para três autores:
Wallon, Sartre e Merleau-Ponty. O primeiro já em 1931 sublinhava a importância da
experiência da criança diante do espelho para o estudo da psicogênese. O segundo é
considerado como representante de uma filosofia do Cogito e, portanto, parece figurar
como contra-referência para o psicanalista. O terceiro estabeleceu com Lacan uma relação
de diálogo mútuo que reforça o caráter heurístico das confrontações entre a psicanálise e
a fenomenologia.
Palavras-chave: constituição do sujeito; Lacan; Wallon; Sartre; Merleau-Ponty
Abstract
Lacan's conception of the mirror stage involves a rich network of theoretical dialogues.
Amidst this network, an idea of subject is drawn. The aim of this paper is to examine that
idea, not inside Lacan's work, but in the theoretical framework related to the theme
under analysis. We are interested in situating certain methodological and anthropological
aspects of the mirror stage in relation to its mediating theories. Our observations are
focused on three authors: Wallon, Sartre and Merleau-Ponty. As early as in 1931, the first
underlined the importance of the child's experience in front of the mirror to study
his/her psychogenesis. The second is considered a representative of a Cogito philosophy
and, therefore, seems to serve as a counter-reference for the psychoanalyst. The third
established a relation of mutual dialogue with Lacan, reinforcing the heuristic nature of
confrontations between psychoanalysis and phenomenology.
Keywords: constitution of the subject; Lacan; Wallon; Sartre; Merleau-Ponty
Introdução
A temática relativa ao estádio do espelho em Lacan é perpassada por uma malha
teórica rica em cumplicidades, divergências e prolongamentos conceituais.1 O artigo
intitulado O estádio do espelho como formador dafunção do Eu (Lacan, 1949/1999a) materializa
particularmente bem esta condição multifacetária. Em meio a esta rede se esboça uma teoria
1
O presente artigo vincula-se a projeto de pesquisa apoiado pela FAPESP.
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do sujeito. O presente trabalho é destinado ao exame dessa teoria, não especificamente no
interior da obra de Lacan, e sim no âmbito desse próprio quadro de referências relacionado
ao tema em apreço. Interessa-nos situar determinados aspectos metodológicos e
antropológicos concernentes ao estádio do espelho em relação a outras teorias que, de um
modo ou de outro, lhe servem de mediação.
Não teríamos, todavia, como nos aplicar a todas essas referências no espaço de um
artigo, pois elas vão de Freud a Lévi-Strauss, da ideia de Gestalt ao conceito de Umwelt, tal
como concebido por Uexküll, sem contar os inúmeros pesquisadores que se serviram
posteriormente da ideia do estádio do espelho. Escolhemos, pois, guiar nossos apontamentos
a partir de três autores: Henri Wallon, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty. O primeiro
já em 1931 sublinhava a importância da experiência da criança diante do espelho para o
estudo da psicogênese. Veremos que Lacan opõe-se ao racionalismo de suas formulações
acerca dessa experiência. O segundo é considerado como representante de uma filosofia do
Cogito e, portanto, parece figurar como contra-referência para o psicanalista, apesar das
convergências que unem os dois autores no que diz respeito ao papel da alteridade na
constituição do sujeito. O terceiro estabeleceu com Lacan uma relação de diálogo mútuo que
reforça o caráter heurístico das confrontações entre a psicanálise e a fenomenologia.
Ademais, Merleau-Ponty valeu-se da teoria do estádio do espelho para desenvolver certos
aspectos de sua própria filosofia.
Aspectos históricos e epistemológicos da questão do estádio do espelho
Lacan faz menção ao estádio do espelho pela primeira vez em 1936, numa conferência
proferida junto à Sociedade Psicanalítica de Paris (Roudinesco & Plon, 1998). Nesse mesmo
ano, Lacan expõe sua tese sobre o estádio do espelho no congresso da International
Psychoanalytical Association (IPA). Na ocasião, a comunicação deixa de ser publicada.
Trechos dessa conferência são integrados pelo autor a um texto consagrado às relações
familiares e publicado na Encyclopédie Française, em 1938, a pedido de Wallon2. O tema do
estádio do espelho foi retomado por Lacan em outra edição do congresso da IPA, realizada
em 1949. A comunicação foi intitulada "O estádio do espelho como formador da função do
Eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica" (Lacan, 1949/1999a). O psicanalista
retomou a questão em outros trabalhos (Lacan, 1948/1999b, 1950/1999c).
Dois aspectos do estádio do espelho são essenciais, tanto mais pela relação com os três
autores que nos interessam. O primeiro deles refere-se ao fato de que Lacan (1949/1999a)
mostra a necessidade de tratar o tema posicionando-se nos antípodas do racionalismo. O
estádio do espelho ilumina o problema da função do eu, tal qual emerge da experiência
psicanalítica. Essa experiência, diz o autor, coloca-nos em posição oposta "a toda filosofia
2
Trata-se do artigo intitulado "Les complexes familiaux dans la formation de l'individu" (Lacan, 1938/2001).
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advinda diretamente do Cogito" (Lacan, 1949/1999a, p.93). Com efeito, trata-se de contraporse a toda forma de racionalismo que povoa a tradição filosófica francesa desde Descartes. O
que não implica, cumpre salientar, a adesão a qualquer espécie de materialismo ou de
determinismo.
Descartes funda a primazia do pensar na determinação do ser sujeito e do ser coisa. Na
medida em que postula a existência da substância extensa, passível de uma segura inspeção
do espírito por meio da observação, da experimentação e da formalização matemática, o
filósofo seiscentista assenta os alicerces de um racionalismo cientificista. Se no século XIX
essa ideologia busca compor o real a partir de uma rede de relações causais, a representação
do mundo real permanece exigindo um sujeito da representação. Em outras palavras, o
racionalismo, de um lado, e o materialismo e o determinismo, de outro, são aparentados, e,
ao recusar aquele, Lacan recusa também a estes. Seu intuito é quebrar as barreiras seculares
entre sujeito e objeto.
Daí a leitura que realiza da segunda tópica freudiana, em direção contrária à psicologia
do eu. Em sua segunda teoria do aparelho psíquico, Freud define as três instâncias que o
constituem: o isso, o eu e o supereu. A gênese do eu é tratada por Freud (1920/1996,
1923/1996) sob "dois registros relativamente heterogêneos" (Laplanche & Pontalis,
1967/2007, p. 241). Por um lado, o eu, em meio ao contato com a realidade exterior,
estabelece-se como um sistema adaptativo que se diferencia a partir do isso e que inclusive
opera, em certa medida, inconscientemente. Por outro, constitui-se como produto de
identificações relativas a objetos investidos pelo isso. A psicanálise tal como desenvolvida
nos EUA privilegia as indicações de Freud referentes ao primeiro registro, do eu como
resultado da diferenciação progressiva do isso, a ponto de conceber o eu como representante
da realidade e contendor das pulsões. Para Roudinesco (1988), a estrutura desta apropriação
teórica implica o estabelecimento do primado do sistema percepção-consciência sobre as
matrizes inconscientes e, por conseguinte, pode ser considerada como expressão de uma
espécie de neocartesianismo na psicanálise norte-americana. Como veremos, para Lacan a
gênese do eu deve ser tratada em termos de identificação, de imagos tomadas de empréstimo
a outrem, e não de autonomização (Roudinesco, 1993; Roudinesco & Plon, 1998).
O segundo aspecto que gostaríamos de destacar é justamente o fato de que a
discussão em torno do estádio do espelho refere-se à história da subjetividade, ou seja, a uma
problematização de ordem genética. Lacan encaminha-nos à questão da gênese do eu e, por
conseguinte, do mundo percebido, processo que, na tradição filosófica e psicológica, ora é
reduzido ao problema do conhecimento do mundo, segundo correntes idealistas, ora a
questões relativas à recepção e à associação dos aspectos sensíveis do mundo, de acordo com
correntes empírico-deterministas.
A abertura ao mundo não se dá à luz da evidência, mas contém uma parcela de
obscuridade. Muito já ocorreu antes que as coisas sejam concebidas como objetos para um
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sujeito do conhecimento. Apenas uma investigação genética precavida em relação às
posições idealistas pode recolocar o sujeito pensante no fluxo da dimensão natural da nossa
existência, ou seja, daquilo que se dá ao largo do pensamento objetivo.
O estudo genético deve, contudo, precaver-se do risco de conceber a filiação natural do
homem conforme a representação mecanicista. Vale considerar que Bergson (1907/1970) já
alertava contra a concepção segundo a qual a forma intelectual do ser vivo é "modelada
pouco a pouco sobre as ações e reações recíprocas de certos corpos e de seu meio material"
(p. 491). Não sem ironia, Bergson comenta que a inteligência humana, destinada a inserir
perfeitamente nosso corpo em seu meio, de modo a representar as relações de coisas
exteriores umas às outras, sente-se muito à vontade entre objetos inertes, sobre os quais
aplica com sucesso sua lógica dos sólidos, da matéria bruta. Essa forma puramente lógica é,
no entanto, incapaz de se representar a natureza da vida e da sua evolução, afirma o filósofo.
Segundo ele, a teoria da vida deve ser acompanhada de uma crítica do conhecimento, de
maneira que os conceitos que habitualmente se encontram à disposição sejam revistos e nos
aproximem da raiz da natureza e do espírito.
Coerente com essa exigência crítica do seu tempo, Lacan aborda a questão da gênese
do eu imbuído da intenção de reconstruir o modelo de cientificidade da psicologia (Simanke,
2002). Em suas reflexões esboça-se uma epistemologia que renuncia tanto ao objetivismo
idealista quanto o objetivismo mecanicista, organicista. É o que transparece na forma com
que Lacan se apropria da teoria walloniana do espelho.
Lacan face ao espelho walloniano
Wallon dedicou sua carreira à psicologia da criança. Ocupava-se justamente de
questões relativas à vida psíquica no curso do desenvolvimento, a "processos gerais de
psicogênese" (Wallon, 1949/2009, p. 245). Em 1931, o autor publica no Journal de Psychologie o
artigo intitulado Comment se développe chez l'enfant la notion du corps propre. Este texto foi
reeditado no livro Les origines du caractère chez l'enfant, de 1949, onde aparece com o título
Conscience et individualisation du corps propre, compondo a segunda parte da obra. Nele,
Wallon (1949/2009) propõe-se o estudo da constituição, por parte da criança, de "... uma
noção suficientemente coerente e unificada de seu ser físico" (p. 179), o que ele denomina
corpo próprio. As etapas dessa constituição são consideradas pelo autor como um aspecto
particular da psicogênese. No texto, Wallon dá grande importância à evolução das reações
da criança diante de sua imagem no espelho enquanto índice da individualização do corpo
próprio, processo essencial na conquista da consciência de si na infância.
De acordo com Wallon (1949/2009), a organização da consciência corporal não se
limita à aquisição de um senso coordenado acerca dos nossos órgãos e da sua atividade. Ela
exige a distinção progressiva entre aquilo que deve ser atribuído ao mundo exterior e aquilo
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que deve ser imputado ao corpo próprio. Esse processo corresponde à integração e
maturação, no plano da vida psíquica, da atividade simbólica, caracterizada pela capacidade
de evocar, além das impressões sensíveis momentâneas, sistemas de representação do
mundo e do próprio corpo. Antes disso, contudo, é preciso que ocorra o desenvolvimento de
um sistema coeso e sinérgico entre as sensibilidades interoceptivas, proprioceptivas e
exteroceptivas.
No início da vida, estes diferentes domínios funcionais encontram-se dissociados,
afirma o autor. O domínio interoceptivo, relacionado à sensibilidade visceral, e o domínio
proprioceptivo, referente às sensações ligadas ao equilíbrio e à motricidade, desenvolvem-se
mais precocemente. As funções exteroceptivas, que se referem à sensibilidade às excitações
de origem externa, são mais tardias e, inicialmente, provocam efeitos que não pertencem à
vida da relação com o mundo exterior, mas apenas ao próprio organismo. Segundo Wallon
(1949/2009), a regulação mais estável e sinérgica entre estes três domínios pode ser
vislumbrada em torno do fim do terceiro mês de vida. Este fato é atrelado ao processo de
mielinização das fibras nervosas, cujo curso se estende ao longo do primeiro ano de vida da
criança. Com efeito, trata-se de um processo de maturação progressiva dos centros nervosos
ligados ao equilíbrio e às sinergias funcionais. Essa sinergia corporal nascente orienta-se
progressivamente para o meio exterior, motivando e se beneficiando, ao mesmo tempo, de
uma integração crescente entre elementos posturais, motores, sensoriais e psíquicos. Dessa
forma, por volta do terceiro mês de vida, observa-se na criança o início da preensão e da
atividade manual, que fará parte do estabelecimento de um circuito de ação no qual o uso
dos objetos irá se diversificar e se transformar, a ponto de, em torno do oitavo mês de vida,
poder ser comparado à habilidade instrumental dos chimpanzés estudados por Köhler
(1927).
O início das atividades exteroceptivas minimamente coordenadas possibilitam as
primeiras reações da criança face ao seu próprio corpo. Wallon (1949/2009) observa que,
entre o terceiro e o sexto mês de vida, é comum deparar-se com a surpresa da criança frente à
aparição fortuita de seus membros em seu campo perceptivo. Durante o esforço para pegar
um objeto qualquer, é possível que ela pare uma das mãos diante dos olhos e a fixe
prolongadamente, atendo-se especialmente à agitação dos dedos. No curso de movimentos
aleatórios, pode ainda ocorrer que a criança pegue uma mão com a outra, a mão tocada
parecendo lhe surpreender mais, pois, apesar de inerte, apresenta-se como sede de
sensações, comenta o psicólogo. Segundo ele, neste período ainda não existe, por parte da
criança, uma intuição do corpo próprio em seu conjunto. No decorrer dos seis meses
seguintes, são esperados importantes avanços na constituição de uma personalidade física
mais unitária.
O reconhecimento da imagem exteroceptiva do corpo próprio por parte da criança é
destacado por Wallon (1949/2009) como importante etapa desse processo. Com efeito, a
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presença da criança diante do espelho serve ao autor como contraprova das dificuldades que
ela enfrenta antes de "reduzir numa intuição de conjunto tudo aquilo que se relaciona à sua
personalidade física" (Wallon, 1949/2009, p. 218). Conforme Wallon, a tarefa que a criança
tem diante de si é reconhecer seu aspecto exteroceptivo como seu. Mais do que isso, ela deve
reconhecer o real na imagem, sendo capaz, contudo, de distinguir as coisas da sua
representação.
Wallon (1949/2009) mostra que esta atividade simbólica, cujo desenvolvimento se dá
ao longo dos primeiros anos de vida infantil, não encontra paralelo entre os animais.
Enquanto certas aves respondem à percepção de sua imagem especular como se estivessem
diante de um de seus companheiros, símios superiores, como os chimpanzés, têm o ímpeto
de, diante do reflexo, verificar a parte posterior do espelho. A frustração os deixa irritados e
eles passam a evitar a imagem. Para o autor, o comportamento dos símios demonstra um
"ato verdadeiro de conhecimento" (Wallon, 1949/2009, p. 221). Num átimo, tem lugar um
rompimento entre a percepção e a adesão ao percebido, um esboço do "nascimento da
representação face ao real" (Wallon, 1949/2009, p. 221).
Até o terceiro mês de vida, a criança se mostra insensível à imagem especular. Entre o
terceiro e o sexto mês, observam-se manifestações afetivas intermitentes de interesse pelo
reflexo. A partir do sexto mês, as imagens refletidas no espelho encetam reações mais ricas.
Wallon (1949/2009) dá o exemplo da criança que sorri diante do reflexo dela junto a seu pai,
e que se espanta quando o escuta falar por detrás dela. Segundo o autor, trata-se de uma
situação de confronto entre o aspecto refletido pelo espelho e a presença real do pai. A
criança surpreende-se diante de uma espécie de duplicação espacial, que, num momento
seguinte, deverá ser reduzida, ainda que precariamente, à identidade entre a imagem e o
objeto. Malgrado a diferença de fontes espaciais, a criança começaria a se dar conta da
correspondência mútua entre certos grupos de impressões. De acordo com Wallon
(1949/2009), a verificação dessa relação revela um "ato de conhecimento" (p. 224) original,
na medida em que implica a realização de novas formas de identificação e de integração
mentais.
As relações entre o objeto e a imagem, entre o corpo vivo e seu duplo visual, não são,
todavia, apreendidas subitamente. Observam-se intermitências no comportamento da
criança diante do espelho. Ora ela tenta agarrar sua imagem com as mãos e se espanta com a
solidez do vidro. Noutro momento, ela examina a parte posterior do espelho, atribuindo
realidade independente tanto à imagem quanto ao modelo. Noutra ocasião, se chamada por
seu nome, pode ocorrer que ela olhe diretamente para o espelho. Wallon (1949/2009) referese a este realismo espacial como um estádio de simples justaposição.
O trabalho que a criança deve realizar em seguida, ainda que a título de prelúdio da
atividade simbólica, é o esvaziamento da existência da imagem especular do corpo próprio.
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Nos termos do que afirma Wallon (1949/2009), isso implica que, gradualmente, o corpo
próprio adquira uma dimensão espacial-objetiva. O autor comenta:
Entre a experiência imediata e a representação das coisas é preciso
necessariamente que intervenha uma dissociação, que destaca as qualidades
e a existência pertencentes ao próprio objeto das impressões e das ações em
que ele se encontra inicialmente implicado, atribuindo a ele, entre outros
caracteres essenciais, aquele da exterioridade. Não há representação possível
senão a este preço. Aquela do corpo próprio, na medida em que existe, deve
necessariamente responder a esta condição. Ela apenas pode formar-se
exteriorizando-se (Wallon, 1949/2009, pp. 227-228).
O reconhecimento da imagem especular é, pois, uma das ocasiões para que a criança
entre pouco a pouco no mundo das coisas perceptíveis. Ela chegará a se conceber como um
corpo entre outros corpos, como "um ser entre os seres", concebendo imagens de si mesma
análogas às que podem se formar exteriormente.
A unificação de seu eu no espaço, contudo, pressupõe que a criança conceba a
impossibilidade do agenciamento da percepção por parte do seu eu exteroceptivo, ou seja,
por parte da sua imagem, afirma Wallon (1949/2009). A imagem não percebe, ela não tem
acesso aos sentidos do corpo próprio, posto que não coincide com ele. Daí a dupla operação
que a criança deve realizar: admitir que há imagens que apenas possuem a aparência de
coisas reais e afirmar a realidade de imagens que escapam a uma apreciação perceptiva total,
como no caso do corpo próprio. Em outros termos, escreve Wallon (1949/2009), trata-se de
compreender que há "imagens sensíveis, mas não reais; [e] imagens reais mas subtraídas ao
conhecimento sensorial" (p. 230).
Em torno do primeiro ano de vida, a criança já é capaz de demonstrar ter sido
introduzida no campo dessa atividade simbólica. É o caso de uma menina que serve de
exemplo a Wallon: ao passar diante de um espelho, ela prontamente leva sua mão ao chapéu
de palha que lhe cobre a cabeça, e não à imagem especular. O autor comenta a situação da
seguinte maneira:
A imagem no espelho não mais possui existência por si mesma; ela é
imediatamente reportada pela criança ao seu eu proprioceptivo e tátil; ela é
apenas um sistema de referências apto a orientar os gestos para as
particularidades do corpo próprio do qual ela é a indicação (Wallon,
1949/2009, p. 231).
Wallon, assim como Piaget, é herdeiro da neuropsicopatologia do início do século XX.
A partir de pesquisas sobre a agnosia, a apraxia e a afasia, diversos neurologistas, psiquiatras
e psicólogos concordaram em delimitar o núcleo destas patologias em torno da incapacidade
para o exercício de atividades conceituais e abstratas. Os doentes apresentariam diversos
graus de perturbação do que se denominou comportamento simbólico, e que representa a
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possibilidade que temos de nos afastar em relação às nossas experiências concretas e
imediatas e de adentrar as esferas do possível, do concebido e do pensado (Verissimo,
2011a).
Nesse sentido, para Wallon o processo de constituição da consciência do corpo próprio
envolve a progressiva distinção entre o corpo vivido e a imagem refletida no espelho, e
termina com a compreensão simbólica do espaço imaginário em que sua unidade era forjada
(Roudinesco & Plon, 1998). Mais ainda, termina com a compreensão de que o corpo próprio é
passível de considerações de tipo espacial-objetivas. Segundo Roudinesco e Plon (1998),
Wallon estuda a individualização do corpo próprio, enquanto processo de psicogênese, pelo
prisma da consciência. Ao menos no que diz respeito a suas considerações acerca das
experiências infantis diante da imagem especular, parece, pois, legítimo afirmar que Wallon
assevera o primado da dimensão objetivante da inteligência na constituição do sujeito.
Lacan atenta-se à função matricial da imagem especular a partir dos trabalhos de
Wallon. Lacan, todavia, não apenas se apropria do espelho walloniano, mas o transforma, a
ponto de nem sempre dar os devidos créditos ao psicólogo na concepção do estádio do
espelho3. Diferentemente do que ocorre na teoria de Wallon, o psicanalista descreve a fase em
que o bebê depara-se com a imagem global de seu corpo diante do espelho pela perspectiva
do inconsciente, a partir do que a estruturação do sujeito humano em sua dimensão arcaica
pode ser descrita sob a égide da intersubjetividade (Nasio, 2009; Ovilgie, 2005; Roudinesco,
1988,1993; Roudinesco & Plon, 1998).
Para Lacan (1950/1999c), o comportamento do bebê denota "relações imaginárias
fundamentais" (p. 184) que se assentam sobre processos de identificação, no sentido analítico
do termo, a saber, o de assunção de uma imagem, com suas implicações transformadoras
para o sujeito (Lacan, 1949/1999a). Na fase do desenvolvimento que nos ocupa, trata-se dos
fundamentos da identidade e, portanto, a principal implicação da assunção da imagem
especular por parte do bebê é a própria constituição de uma forma primordial do eu, uma
"matriz simbólica" (Lacan, 1949/1999a, p. 93) anterior à dialética de identificação com
outrem, anterior, pois, a qualquer instituição (Ogilvie, 2005), mas que "prefigura sua
destinação alienante", comenta o autor (Lacan, 1949/1999a, p. 94). Destinado ao encontro
com a imagem de outrem, Lacan observa que, segundo o registro da psicanálise freudiana,
esta forma primordial do eu poderia ser designada pelo termo eu ideal. Seu encontro com o
devir do próprio sujeito é uma possibilidade limite, comparável à ideia de figuras
assintóticas. Com efeito, o eu é a instância destinada à descentração do sujeito por meio de
identificações.
3
Roudinesco (1993) menciona o esforço de Lacan "(...) para apagar o nome do psicólogo e se apresentar como o
único introdutor do termo" (p. 156). Vale notar que em O estádio do espelho, Wallon não é citado. Em outros dois
artigos em que Lacan (1948/1999b, 1950/1999c) aborda o problema da fase do espelho, Wallon é mencionado,
mas não naquilo que tange a questões relativas à imagem especular.
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Na teoria lacaniana, nem o bebê nem seu olhar figuram como o principal personagem
do estádio do espelho, mas, sim, a imagem especular do seu corpo, objeto primordial de
identificação e fundamento do esboço de uma primeira unificação do eu (Nasio, 2009). Para
Lacan (1938/2001, 1949/1999a, 1948/1999b, 1950/1999c), é surpreendente como o bebê, a
partir do quadro de prematuração que o caracteriza, ou seja, do seu estado de
desorganização motora, mostra-se efusivamente atraído pela forma total do seu corpo no
espelho. O chimpanzé, que denota um nível de inteligência instrumental superior ao do bebê
de seis meses de vida, após o exame do espelho e da constatação da desnecessidade da
imagem, manifesta indiferença por ela. O bebê, ao contrário, regozija-se diante da imagem,
identifica-se com a "Gestalt visual de seu próprio corpo" (Lacan, 1948/1999b, p. 112), mesmo
sem saber que se trata apenas de uma imagem especular de si mesmo. Este fato deve-se a um
fator psíquico que revela, no caso do homem, uma relação inédita com a natureza, "uma
certa deiscência do organismo" (Lacan, 1949/1999a, p. 95), "discórdia primordial" (Lacan,
1949/1999a, p. 95) em relação ao inacabamento que marca o início da vida do indivíduo. A
criança se reconhece de forma global e intuitiva na imagem (Nasio, 2009), é captada pela
imago da forma humana. Ela sente prazer não apenas com essa Gestalt naquilo que ela possui
de visível, mas também com a correspondência entre a imagem e seus próprios gestos, com a
possibilidade nascente de dominar a turbulência que anima seu corpo. Com efeito, na
experiência de contato com a imagem especular, a criança percebe uma unidade corporal
sem paralelo com suas vivências intero e proprioceptivas. Se estas lhe oferecem um
sentimento de desarranjo e de fragmentação, a identificação com a imagem, unificada e
organizada, é capaz de aplacar a angústia do despedaçamento (Sales, 2005).
Encontramo-nos, pois, no centro daquilo que interessava a Lacan tematizar a partir
do estádio do espelho: um esboço primordial de unificação do eu, mas um eu que desde o
início se aliena. Sales (2005) enfatiza a ideia de que a identidade própria da criança "(...)
nunca poderá deixar de ser algo que lhe vem de fora, do horizonte da alteridade" (p. 116).
Esta primeira relação da criança consigo mesma implica, em última instância, uma relação
com o outro (Ogilvie, 2005). É a forma humana, enquanto Gestalt genérica, que cativa o bebê.
Lacan (1950/1999c) afirma: "o primeiro efeito da imago que aparece no ser humano é um
efeito de alienação do sujeito. É no outro que o sujeito se identifica e até se experimenta a
princípio" (p. 180, grifo do autor).
Estas considerações possuem um caráter de cunho estrutural e não simplesmente
histórico. Muito mais do que um momento específico do desenvolvimento infantil, o estádio
do espelho apresenta-se como paradigma de uma estrutura permanente da subjetividade
(Sales, 2005). Ser capturado pela própria imagem já constitui uma relação dual. De modo
que, no estádio do espelho, não se trata de um verdadeiro estádio nem de um verdadeiro
espelho (Ogilvie, 2005; Roudinesco & Plon, 1998). Lacan (1956/1995) comenta:
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O que é o estádio do espelho? É o momento em que a criança reconhece sua
própria imagem. Mas o estádio do espelho está bem longe de apenas conotar
um fenômeno que se apresenta no desenvolvimento da criança. Ele ilustra o
caráter de conflito da relação dual. Tudo que a criança aprende nessa
cativação por sua própria imagem é, precisamente, a distância que há de
suas tensões internas, aquelas mesmas que são evocadas nessa relação, à
identificação com essa imagem (pp. 115-116).
Em suma, para Lacan o estádio do espelho não representa uma dialética natural que se
encaminha para a maturação psicológica, principalmente para a capacidade de objetivação
do mundo, mas um processo ontológico. Trata-se da constituição do ser humano pela
identificação com seu semelhante, no caso, sua própria imagem diante do espelho
(Roudinesco, 1993). É "(...) na relação do sujeito consigo mesmo como outro" (Ogilvie, 2005,
p. 98) que a razão de ser da sua constituição é vislumbrada.
A temática da estrutura intersubjetiva da experiência remete-nos ao diálogo com certos
aspectos da filosofia de Sartre.
"A cada instante outrem me olha"
Lacan conhecia algumas das principais concepções filosóficas de Sartre. É o que se
evidencia nas críticas endereçadas ao filósofo em O estádio do espelho como formador dafunção
do Eu. Sem referir-se nominalmente a Sartre, Lacan (1949/1999a) fala da "negatividade
existencial, cuja realidade é tão vivamente promovida pela filosofia contemporânea do ser e
do nada" (p. 98, grifo nosso). Logo em seguida, imputa a esta filosofia a concepção de uma
consciência auto-suficiente, cuja "ilusão de autonomia" (p.98) abarcaria o eu. Trata ainda esta
filosofia como um "jogo de espírito" (p. 98) que, a partir de empréstimos da experiência
analítica, teria a pretensão de fundar uma psicanálise existencial, tema tratado por Sartre
(1943/1980) em um capítulo homônimo de O ser e o nada.
Embora seja conhecido o incessante recurso de Lacan à filosofia, especialmente à obra
de Hegel e à sua interpretação por Kojève, os conceitos filosóficos discutidos pelo
psicanalista são diretamente voltados para investigações que fazem parte de um projeto de
psicologia científica (Simanke, 2002). Trata-se de constituir uma psicologia concreta, nos
moldes da discussão realizada por Politzer (1928/2003) acerca dos fundamentos da
psicanálise. Lacan não pactua, pois, com a empresa abertamente eidética de Sartre nem
tampouco com o intelectualismo expresso na formulação antinômica de um em-si e de um
para-si. Há, todavia, aproximações significativas entre os dois autores, principalmente no
que diz respeito ao papel que a alteridade assume na constituição do eu.
Pode-se afirmar que a metafísica moderna faz-se presente no pensamento sartreano na
forma de conservação da dicotomia entre sujeito e objeto (Bornheim, 2007). Sartre estabelece
uma separação fundamental entre o mundo, reino das coisas, ou do em-si, e o homem
Memorandum 24, abr/2013
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
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enquanto consciência, ou para-si. Tem-se em Descartes o principal agente fundador desta
dicotomia. O filósofo seiscentista, a partir da delimitação de um entendimento infinito,
encontrado na evidência do pensar, afirma a possibilidade de um conhecimento claro e
distinto tanto da substância pensante quanto das coisas extensas. Como mostra MerleauPonty (1960/2003a), este "grande racionalismo" abre caminho para um "pequeno
racionalismo", cujo mote é tomar a razão pela capacidade de enclausurar a totalidade do real
num entrelaç amento de relações causais, com o que se decai na direção do materialismo
psicologista, capaz de anular a autonomia da própria idéia de razão.
Sartre (1943/1980), por seu turno, renuncia ao primado do conhecimento, o que quer
dizer que o ser daquele que conhece não precisa se constituir como um objeto de
conhecimento. Vale aqui o preceito fenomenológico de "colocar o mundo entre parênteses",
de anular a atitude natural, cuja essência é conceber o mundo dotado de propriedades
objetivas. O que emerge dessa "redução fenomenológica" é a fenomenalidade do mundo, o
fato de que "o sentido de ser do mundo é ser para uma consciência" (Barbaras, 2009, p.49). A
consciência pode, então, ser revelada como consciência transcendental. Em termos
filosóficos, este processo equivale justamente à crítica ao materialismo (Bornheim, 2007).
Sartre (1943/1980) comenta: "A consciência é consciência de alguma coisa: isso significa que a
transcendência é estrutura constitutiva da consciência; quer dizer que a consciência nasce
apoiada sobre um ser que não é ela" (p. 28, grifos do autor). Em outro trecho, o filósofo afirma
que no ser da consciência está em questão o fato de que seu ser implica um ser diferente do
dela. Não obstante a dicotomia que vai sendo implantada entre a consciência transcendental
e o ser transcendente, Sartre distancia-se das formulações secularizadas pela filosofia
moderna na medida em que se instala no plano do ser, e não do conhecimento: "não se trata
de mostrar que os fenômenos do sentido interno implicam a existência de fenômenos
objetivos e espaciais", afirma ele, "mas que a consciência implica em seu ser um ser não
consciente e transfenomenal" (Sartre, 1943/1980, pp. 28-29).
Estas são as bases para a caracterização de duas regiões do ser, o ser da consciência, o
ser-para-si e o ser do fenômeno, o ser-em-si. As coisas existem em si, afirma Sartre
(1943/1980). Nelas não há nenhum recuo de si a si mesmo, não há nenhuma relação a si. O
em-si é maciço, repleto de si mesmo e, por isso, opaco a si mesmo. Sartre (1943/1980)
comenta: "o ser é o que ele é" (p. 32), "não saberia nem mesmo não ser aquilo que ele não é"
(p. 33). Ele não envolve nenhuma negatividade, não existe como falta. "Ele é plena
positividade", conclui o filósofo (Sartre, 1943/1980, p. 33). O para-si é definido por Sartre de
modo análogo. A consciência implica a "descompressão do ser" (Sartre, 1943/1980, p. 32). De
modo que "o sujeito não pode ser si mesmo" (Sartre, 1943/1980, p. 115), posto que a
coincidência consigo mesmo implicaria o seu desaparecimento como si. Por outro lado, ele
não pode deixar de ser si mesmo, dado que o si indica o próprio sujeito. Daí a seguinte
afirmação:
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O si representa, pois, uma distância ideal na imanência do sujeito em relação
a ele mesmo, uma forma de não ser sua própria coincidência, de escapar à
identidade colocando-a como unidade, em suma, de ser em equilíbrio
perpetuamente instável entre a identidade como coesão absoluta, sem traço
de diversidade, e a unidade como síntese de uma multiplicidade. É o que
chamamos de presença a si (Sartre, 1943/1980, p. 115, grifos do autor).
Com efeito, Sartre instala no âmago do sujeito um princípio de negatividade. A
presença a si "supõe que uma fissura impalpável tenha deslizado no ser" (Sartre, 1943/1980,
p. 115). Ser presença a si implica não ser o si por completo, de modo que a presença figura
como "uma degradação imediata da coincidência" (Sartre, 1943/1980, p. 115). E o que separa
o sujeito dele mesmo, pergunta Sartre? Visto tratar-se de uma separação que não se opera no
espaço, é preciso admitir que ela não seja efetuada por nada. "Esta fissura é o negativo puro",
escreve o autor (Sartre, 1943/1980, p. 116). Pouco depois, afirma ainda: "Este negativo que é
nada de ser e, conjuntamente, poder nadificador é o nada" (Sartre, 1943/1980, p. 116, grifo do
autor). A nadificação é sustentada por uma "privação de ser", completa Sartre (1943/1980, p.
124). Não se trata, pois, de simplesmente introduzir o vazio na consciência, ou de expulsar o
em-si do seu interior, mas sim de identificar a perpétua determinação do para-si de "não ser o
em-si" (Sartre, 1943/1980, p. 124, grifo do autor). Esta descrição ontológica revela o Cogito
enquanto "fundamento de si como privação de ser" (Sartre, 1943/1980, p. 124). Segundo o
exemplo dado pelo filósofo, podemos facilmente afirmar que um cinzeiro não é um pássaro.
Esta negação mantém, todavia, estes dois entes intocados. Trata-se de uma relação externa. A
negação que concerne à relação do para-si ao em-si é interna, é a falta no ser do para-si que
constitui a presença dela a si própria, bem como o aparecer do ser negado por ela. O ser do
para-si determina a sua existência na medida em que não coincide consigo mesmo. Sartre
chama de "ato ontológico" o acontecimento incessante pelo qual o em-si degrada-se em
presença para si. O aparecer do ser, a transcendência, deve-se ao fato de que somos "negação
de ser" (Sartre, 1943/1980, p. 259). Nada pode acontecer ao ser por meio do próprio ser. O
para-si, ou seja, a nadificação, é "a única aventura possível do Em-si", assevera Sartre
(1943/1980, p. 259).
Não convém aprofundarmo-nos nas definições sartreanas do em-si e do para-si.
Cumpre, todavia, retornarmos ao fato de que esta separação se dá no seio de uma correlação
fundamental entre a consciência e o mundo tal como se apreende por meio da redução
fenomenológica. A reboque de Husserl e de Heidegger, Sartre reconhece a impossibilidade
de se afirmar um sujeito sem mundo. Não é possível, igualmente, conceber um sujeito
isolado, sem o outro (Bornheim, 2007).
De acordo com Sartre, afirmar que a realidade humana é-para-si não dá conta de
outra estrutura ontológica, que, a despeito de ser minha, me apresenta "um ser que é meu ser
sem ser-para-mim" (Sartre, 1943/1980, p. 265, grifo do autor). Se experimentamos vergonha,
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podemos compreendê-la como apreensão vergonhosa de mim. Mas, antes de tudo, afirma
Sartre (1943/1980), "a vergonha em sua estrutura primeira é vergonha diante de alguém" (p.
265, grifo do autor), o que revela meu ser-para-outrem. O outro aparece, pois, como
"mediador indispensável entre mim e mim mesmo" (Sartre, 1943/1980, p. 266). É a partir da
alteridade que me torno capaz de julgar a mim mesmo como a um objeto. Apesar de afirmar
visar à consciência a partir do cogito, ou da consciência reflexiva, Sartre afirma também a
impossibilidade do sucesso dessa empreitada. A consciência visada é a consciência
objetivada, a consciência que não somos. O filósofo comenta:
Com efeito, a noção de objetidade4 (...) exige uma negação explícita. O objeto é
aquilo que não é minha consciência (...) Assim o eu-objeto-para-mim é um
eu que não sou eu, quer dizer, que não possui os caracteres da consciência.
Ele é consciência degradada (Sartre, 1943/1980, p. 320).
Outrem é a condição concreta e transcendente da minha objetidade. É a partir da
estrutura do ser-para-outrem que posso me qualificar como desagradável, gentil ou feliz.
Conduzidos por Sartre, constataremos que esta mediação concretiza-se no olhar de outrem
sobre nós, no ser visto.
Sartre (1943/1980) se pergunta sobre a existência de uma realidade cotidiana capaz
de desvelar nossa relação original com outrem. Ver alguém é por si só uma experiência
desconcertante. O sujeito olha seu relógio, caminha até certo ponto, sem que sejamos o centro
dessa atividade. O mundo, nosso mundo, é, pois, descentrado pela aparição de outrem.
Poder-se-ia dizer, contudo, que nessa circunstância outrem continua sendo um objeto para
nós. O que converte radicalmente esta situação é o ser-visto-por-outrem, já que não
poderíamos ser vistos por um objeto, afirma Sartre. A condição de outrem como sujeito
repousa em nossa possibilidade incessante de ser visto pelo outro. Daí a afirmação de que "O
'ser-visto-por outrem' é a verdade do 'ver-outrem'" (Sartre, 1943/1980, p. 303). De modo
análogo, a aparição do ser-sujeito de outrem implica a revelação de meu ser-objeto para
outrem.
Em uma célebre passagem de O ser e o nada, Sartre (1943/1980) imagina-se só,
olhando pela fechadura de uma porta. Atraído pela cena proibida, declara-se como "pura
consciência das coisas" (Sartre, 1943/1980, p. 305, grifo do autor), consciência irrefletida, o
que quer dizer: consciência colada aos atos, ou, simplesmente, consciência que coincide com
o ato de espreitar e com o ciúme que o move. Subitamente, ouve passos no corredor e se
percebe descoberto por alguém. De acordo com o filósofo, este acontecimento efetua a
presentificação do eu à sua própria consciência irrefletida. Não se trata aqui, portanto, de um
simples vislumbre reflexivo de uma consciência que toma a si mesma como objeto. "A
consciência irrefletida", afirma Sartre (1943/1980), "não alcança a pessoa diretamente e como
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Em francês, objectité.
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seu objeto: a pessoa está presente à consciência enquanto objeto para outrem. Isso significa
que de repente tenho consciência de mim enquanto me escapo (...)" (p. 306, grifos do autor).
Em outro trecho, o filósofo comenta:
(...) não viso outrem como objeto, nem meu ego como objeto para mim
mesmo, não posso nem mesmo dirigir uma intenção vazia para este ego,
como para um objeto fora do meu alcance no presente; com efeito, ele está
separado de mim por um nada que não posso preencher, já que o tenho
enquanto não é para mim e que ele existe, por princípio, para o outro; não o
viso, pois, enquanto poderia me ser dado um dia, mas, ao contrário,
enquanto foge de mim por princípio e que jamais pertencerá a mim. E, no
entanto, eu o sou, não o afasto como estrangeiro, mas ele está presente a mim
como um eu que sou sem conhecê-lo (Sartre, 1943/1980, p. 307, grifos do
autor).
Influenciados pela filosofia hegeliana, Sartre e Lacan estabelecem a dependência de
outrem no centro do nosso próprio ser, de modo que podemos observar convergências entre
algumas de suas formulações teóricas. Pode-se afirmar que a metáfora especular é o
fundamento do tema da alteridade em Sartre. A dialética das consciências aparece como
fator de constituição do eu que, aliada à concepção fenomenológica da consciência como
intencionalidade e ao caráter de negatividade que esta assume em O ser e o nada, conduz à
dessubjetivação da consciência, ou seja, à desconstrução da ideia de eu como substância.
Lacan (1949/1999a) não deixa de assumir a convergência em relação ao tratamento da
alteridade em Sartre ao falar dos instintos de destruição invocados "para explicar a relação
evidente da libido narcísica à função alienante do eu" (p. 98). Segundo Lacan, toda relação
com o outro, mesmo a mais bem intencionada, envolve agressividade. Este fato, denominado
por ele como "negatividade existencial" (p. 98), estaria no centro da filosofia sartreana.
Vimos que Sartre desenvolve a ideia de um sujeito cuja unificação se dá apenas em uma
dimensão fictícia. Em Sartre, o próprio do ser-sujeito é a não coincidência consigo mesmo.
Além disso, o reconhecimento de si apenas é concebível no interior de uma alienação
fundamental garantida pela estrutura ontológica do ser-para-outrem. Com efeito, para Sartre
(1943/1980) "O conflito é o sentido original do ser para outrem" (p. 413). Ao ser visto pelo
outro, experimento a minha alienação, sem que isso faça de mim um objeto. Ao olhar o
outro, constituo-o como objeto, mas não completamente; minha liberdade logo se escoa na
liberdade alheia (Bornheim, 2007). Pode-se afirmar que, na psicanálise, esta instabilidade
aparece justamente sob a rubrica da agressividade.
De um ponto de vista genético, o estádio do espelho, "experiência narcísica
fundamental" (Laplanche & Pontalis, 1967/2007, p. 262), revela uma estrutura ambígua no
que diz respeito à agressividade. Lacan (1949/1999a, 1950/1999c) fala da eficácia mágica de
imagos arcaicas agrupadas por ele como imagos do corpo despedaçado. Trata-se da
experiência primitiva, à qual já fizemos referência, de um corpo dividido, sem coordenação,
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e que se expressa em imagens agressivas que nos acompanham, tais como a de castração, de
mutilação, de desmembramento e de devoração. A obra do pintor Jérôme Bosch é indicada
pelo psicanalista como representação privilegiada destas imagos. O fato é que Lacan
(1950/1999c) caracteriza essa experiência como fundamento "de uma gestalt própria à
agressão no homem" (pp. 104-105). A angústia do despedaçamento é perpassada por
impulsos agressivos. A identificação imaginária da criança com sua imagem especular é
mediada pelo desejo de pôr fim à angústia do despedaçamento (Cléro, 2002). A gestalt visual
do próprio corpo constitui-se como "unidade ideal, imago salutar" (Lacan, 1966/1999c) em
relação à incoordenação vivida. Por outro lado, a identificação com a imago do corpo próprio,
unidade formadora do eu, não deixa de ser vivida como intrusão de uma tendência
estrangeira, o que Lacan (1938/2001) denomina "intrusão narcísica". O autor comenta:
"antes que o eu afirme sua identidade, ele confunde-se com esta imagem que o forma, mas o
aliena primordialmente" (Lacan, 1938/2001, p. 43). O aparecimento do eu por identificação é,
pois, marcado por uma "relatividade agressiva" (Lacan, 1950/1999c, p. 113). Lacan
(1950/1999c) escreve: "Esta relação erótica em que o indivíduo humano se fixa a uma
imagem que o aliena dele mesmo, está aqui a energia e está aqui a forma de onde tem origem
esta organização passional que ele [o homem] chamará seu eu" (p. 112). A agressividade
surge como tensão correlativa à estrutura narcísica. Lacan (1950/1999c) afirma ainda: "Esta
forma cristalizar-se-á, com efeito, na tensão conflitual interna ao sujeito, que determina a
manifestação de seu desejo pelo objeto do desejo do outro: aqui o concurso primordial
precipita-se em concorrência agressiva" (pp. 112-113).
Cumpre assinalar que para Sartre (1943/1980) apreender-se como visto significa
apreender-se como visto no mundo. Aquilo que sou, e que me escapa, eu o sou no meio do
mundo, que também me escapa nas possibilidades de ação do outro. Tem-se, pois, que a
constituição por alienação do eu implica a constituição de um mundo que não abarcamos
completamente. Lacan (1949/1999a), por sua vez, afirma que "a imagem especular parece ser
o limiar do mundo visível" (p. 94). Para ele, a significação do espaço para o organismo vivo
relaciona-se ao efeito formativo de gestalts percebidas. Em certos animais que apresentam
maturação sexual por identificação aos pares, o contato com imagens especulares ou mesmo
com imagens cuja animação aproxime-se da de um membro da mesma espécie é suficiente
para desencadear o processo biológico. Daí a afirmação de que a função da imago é
"estabelecer uma relação do organismo à sua realidade" (Lacan, 1949/1999a, p. 95). No caso
do homem, a função do eu encontra amparo na gestalt, ou imago, do corpo próprio. O eu que
se esboça adquire, ao mesmo tempo, visibilidade, e é lançado no meio do mundo. Na esteira
da ficção do eu unitário, o mundo, por sua vez, passa a exigir ares de objetividade.
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Reaprender a ver
Analisamos certos pontos do pensamento de Wallon e Sartre tendo por objetivo a
discussão das formulações de Lacan acerca do papel unificador que a relação especular
exerce sobre a função do eu. A título de conclusão, invocaremos a figura de Merleau-Ponty,
que, em alguns dos seus trabalhos, dedicou-se a questões relativas ao estádio do espelho e
que nos será útil para integrar certos aspectos metodológicos e antropológicos aos quais
fizemos menção no início do presente artigo.
Em seus cursos na Sorbonne, realizados entre 1949 e 1952, Merleau-Ponty (1997, 2001)
dedica-se à psicologia infantil. Por ocasião de reflexões em torno do problema da
intersubjetividade na infância, o filósofo discute a relação entre a percepção do
comportamento de outrem e a percepção do corpo próprio na criança. Interessado nas
descrições acerca do progresso da abertura do corpo próprio ao mundo e sobre as reações da
criança diante da percepção de seu próprio corpo, Merleau-Ponty recorre a Wallon. O
filósofo dá particular importância às análises do psicólogo acerca das relações arqueológicas,
e portanto indeléveis, entre a vida infantil e a vida adulta expressas nas considerações sobre
a sociabilidade sincrética e no conceito de ultracoisas. Mas no que diz respeito às análises de
Wallon sobre a organização da experiência do corpo próprio a partir da conquista de sua
visibilidade por intermédio da imagem especular, Merleau-Ponty identifica o
estabelecimento de uma cisão entre as experiências sensório-motoras da criança e a
constituição de uma função simbólica. Tudo se passa como se a imagem da criança no
espelho devesse ser progressivamente esvaziada de afetos e reduzida a um fenômeno
intelectual, algo a ser pouco a pouco compreendido como um conjunto de fenômenos
objetivos.
Seguindo-se as considerações de Merleau-Ponty, constata-se que o espelho
walloniano é, em última instância, um espelho cartesiano, e por dois motivos.
Primeiramente, por reduzir a imagem especular a uma ilusão. Em O olho e o espírito, MerleauPonty (1961/2007) fala da tentativa de Descartes para constituir "um mundo sem equívoco"
(p. 36), correlato de um pensamento que se nega a habitar o visível e que se satisfaz
reconstruindo-o a partir de modelos de representação. Neste caso, o que dizer dos reflexos
no espelho senão que estes "duplos irreais são uma variedade de coisas" (Merleau-Ponty,
1961/2007, p.38), ou seja, que há a própria coisa e a luz refletida em correspondência com a
primeira. De modo que a semelhança entre a coisa e sua imagem especular é estabelecida
pelo próprio pensamento, visto tratar-se de coisas exteriores umas às outras. Merleau-Ponty
(1961/2007) comenta:
Um cartesiano não se vê no espelho: vê um manequim, um "exterior" do
qual tem todas as razões de pensar que também é visto pelos outros, mas
que, nem para si mesmo nem para eles, é uma carne. Sua "imagem" no
espelho é um efeito da mecânica das coisas; se ele se reconhece nela, se
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encontra "semelhança" nela, é o seu pensamento que tece este vínculo, a
imagem especular não é nada dele (pp. 38-39, grifos do autor).
Em Wallon, é o ideal deste reflexo sem expressão, "exterior sem interior" (Al-Saji,
2005), que representa o ápice da experiência do sujeito diante do espelho. Lacan (1961), em
texto de homenagem a Merleau-Ponty por ocasião da sua morte prematura, afirma que, em
O olho e o espírito, o filósofo faz referência crítica "ao olho abstrato que supõe o conceito
cartesiano de extensão, com seu correlativo de um sujeito, módulo divino de uma percepção
universal" (p. 246). Ou à "experiência do cosmonauta", quer dizer, a de "um corpo que pode
se abrir e se fechar sem pesar em nada nem sobre nada" (Lacan, 1961, p. 246). Com efeito,
Merleau-Ponty e Lacan denunciam o esvaziamento da dimensão carnal da vida perceptiva
em favor da dimensão objetivante do pensamento. Este é o segundo motivo para a
aproximação de Wallon à tradição cartesiana. Partindo-se da premissa de que a criança
conquista uma função simbólica, capaz de apresentar-lhe uma realidade objetiva, não se vê
como esta função ancora-se na experiência sensório-motora nem como esta experiência
corporal prepara o estágio de tomada de consciência do mundo (Verissimo, 2011b). MerleauPonty (2001) qualifica esta concepção do desenvolvimento como idealista.
Para Merleau-Ponty (1997, 2001) a abordagem lacaniana da experiência especular por
parte da criança revela não simplesmente relações de conhecimento, mas "relações de ser
com o mundo, com outrem" (Merleau-Ponty, 1997, p. 204). A criança, ao apropriar-se de uma
imagem visual, realiza a passagem de um estado de personalidade marcado por pulsões
experimentadas confusa e imediatamente, sem distância, à experiência de si como
espetáculo. Com isso, a própria presença do mundo adquire uma nova estrutura. Com o
corpo "colocado sob a jurisdição do visível" (Merleau-Ponty, 2001, p. 527), o espaço adquire
um efeito desrealizante. Este é o sentido da ênfase que Merleau-Ponty dará ao caráter
reversível do corpo, ao fato de que o corpo é "sentiente sensível", ou seja, vidente-visível,
toc ante-tocado. Não se trata apenas de incorporar o visível ao vidente, mas de incorporar o
vidente ao visível. Em O visível e o invisível, o filósofo afirma:
(...) sabemos que, desde que a visão é apalpação pelo olhar, é preciso que ela
também se inscreva na ordem do ser que ela nos desvela, é preciso que
aquele que vê não seja ele mesmo estranho ao mundo que vê. (...) A
espessura do corpo, longe de rivalizar com a do mundo, é, ao contrário, o
único meio de ir ao coração das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as
carne (Merlea-Ponty, 1964/2006, pp. 175-176).
Nos cursos sobre o conceito de natureza, Merleau-Ponty (1994) comenta que podemos
sentir, na imagem especular, o calor do cachimbo em nossa mão, e anota:
Lugar do imaginário do ver: pelo ver e seus equivalentes táteis, inauguração
de um dentro e de um fora e de suas trocas, de uma relação de ser àquilo
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que, no entanto, está fora para sempre: a espacialidade do corpo é
incrustação no espaço do mundo (...) (Merleau-Ponty, 1994, p. 346).
Este parentesco entre o corpo e o mundo, chave da nossa "ambição racional", da
"visada de um ser comum e objetivo" (Bimbenet, 2011a, p. 13), possui uma história. As
pesquisas de Merleau-Ponty em torno da animalidade visam justamente à arqueologia do
corpo e da sua relação com o mundo. Neste ponto a crítica de Lacan direcionada à Sartre,
mais especificamente à autonomia assegurada à noção de consciência que emerge de seus
estudos sobre o ser e o nada, pode ser esclarecida. Tendo o próprio Sartre como alvo,
Merleau-Ponty (1994) busca reposicionar-se em relação às filosofias do negativo, que
estabelecem uma dialética do ser e do nada. Segundo o autor, o esquecimento de uma
filosofia da natureza corresponde ao assentimento a que o espírito, a história e o homem
sejam concebidos como pura negatividade. A retomada de uma filosofia da natureza não
significa, contudo, uma contraposição a estes problemas maiores. Trata-se, sim, de ancorar a
negatividade no corpo, evitando, a uma só vez, recair em concepções naturalistas e
espiritualistas. Merleau-Ponty refere-se reiteradamente a uma "negatividade natural", à vida
como sistema de oposições que torna possível a emergência de algo como o sentir. É no
interior desse sistema que se torna possível conceber o aparecimento do homem no seio da
animalidade. Esta continuidade é ausente no "humanismo sartreano" (Merleau-Ponty, 1994,
p. 182). Em Sartre, o para-si é imposto a um em-si, de modo que a subjetividade não pode ser
englobada pelo ser ao qual ela abre (Merleau-Ponty, 1994). Estabelece-se um abismo entre
estas duas dimensões do ser. Daí a seguinte afirmação por parte de Merleau-Ponty
(1964/2006): "O pensamento do negativo puro ou do positivo puro é, pois, um pensamento
de sobrevôo" (p. 97) - ou, nos termos de Lacan, um pensamento de cosmonauta.
Podemos precisar, enfim, em que medida Merleau-Ponty nos ajuda a integrar
aspectos metodológicos e antropológicos relativos a nossas análises precedentes. A versão
merleau-pontiana da redução fenomenológica observa não apenas a suspensão do saber
positivo, que, como queria Husserl, nos libera a fenomenalidade do mundo, o fato do mundo
aparecer para a nossa consciência. Simetricamente, Merleau-Ponty suspende o
intelectualismo filosófico, recusando-se a absorver a consciência na trama apriorística do
saber transcendental. Este exercício duplo aparece na obra do filósofo como exigência de
uma composição permanente e crítica entre o realismo dos fatos e a ordem filosófica do
sentido; em outras palavras, entre as ciências - particularmente a psicologia, a psicanálise, as
neurociências, a etologia, a antropologia - e a filosofia. Esta exigência metodológica possui
seu correlato de ordem antropológica (Bimbenet, 2011a). A filosofia reflexiva coloca-se na
perspectiva de um eu absoluto, que rompe o elo existente entre nós e o nosso corpo, entre
nós, o mundo e os outros. Ela se afirma, todavia, na medida em que se opõe à consideração
da relação entre nós e o mundo a partir de modelos mecanicistas e materialistas. À sombra
destes modelos, a intenção racional que marca a vida humana apenas se associa à nossa
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filiação natural de modo abstrato. É o que se observa na psicologia idealista do
desenvolvimento, que não foge à consideração do comportamento a partir da alternativa
clássica entre o automatismo e a consciência. Em contraponto, a filosofia de Merleau-Ponty
busca apagar as linhas divisórias entre o "corpo" e o "espírito". Para Merleau-Ponty
(1960/2003b) a psicanálise converge nesta mesma direção:
O corpo é enigmático: parte do mundo sem dúvida, mas bizarramente
oferecido, como seu habitat, a um desejo absoluto de aproximar outrem e de
unir-se a ele em seu corpo, animado e animador, figura natural do espírito.
Com a psicanálise o espírito passa no corpo como inversamente o corpo
passa no espírito (p. 371).
Na perspectiva de Merleau-Ponty vale aquilo que Zenoni (1991) afirma a respeito da
psicanálise freudiana: não se trata de repetir ideias tais como a de que nossa origem animal
sobrevive em nós na forma de um arcaísmo irracional. A psicanálise não estabelece o grau de
dependência que nossos comportamentos conscientes e racionais possuem em relação a suas
bases biológicas: ela evidencia, ao contrário, o fato de que a biologia que os condiciona é
inteiramente distinta da biologia animal. Segundo Zenoni, a hipótese do inconsciente aponta
para a eficácia de pensamentos e de palavras onde, se tratando do corpo, e fora da dimensão
da consciência reflexiva, poderíamos supor a existência de funções menos evoluídas,
próximas da animalidade e da irracionalidade. O sintoma, afirma o autor, é da mesma ordem
do ato que lhe serve de tratamento: a decifração simbólica, operação estranha à vida psíquica
animal. Trançando a descoberta do inconsciente à descoberta da sexualidade infantil, Zenoni
(1991) comenta: "O escândalo da descoberta do inconsciente não se encontra na afirmação de
um componente irracional na experiência humana, mas na afirmação do caráter tão
'intelectual' da satisfação libidinal que ele persegue" (p. 6). O autor afirma ainda que o desejo
próprio à condição humana desnatura e perverte a sua animalidade. É disso que trata
Merleau-Ponty ao abordar o lugar do corpo humano na natureza. O filósofo anota: "(...) o
homem não é animalidade (no sentido de mecanismo) + razão - E é porque nos ocupamos
do seu corpo: antes de ser razão a humanidade é uma outra corporeidade" (Merleau-Ponty,
1994, p. 269). Noutro trecho, encontramos o seguinte apontamento: "A relação animal homem não será hierarquia simples fundada sobre uma adição: já haverá uma outra maneira
de ser corpo no homem" (Merleau-Ponty, 1994, p. 277).
De fato, a empresa lacaniana em torno do estádio do espelho parece coincidir com a
intenção merleau-pontiana. Em Lacan, se o ponto de partida não é a experiência
fenomenológica, mas a clínica do inconsciente, a discussão se encaminha para uma
indagação diametral do sujeito em suas dimensões de encarnação e de intenção racionalrealista, a partir da integração do ponto de vista empírico e do ponto de vista filosófico.
Contra o "eu penso" ao qual a tradição filosófica tenta reduzir nossa presença, o psicanalista
instala uma miragem no centro do sujeito (Lacan, 1961). Contra o determinismo biologicista,
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revela o poder cativante da imagem, inclusive em momentos diversos da escala zoológica.
Mas, assevera Lacan (1949/1999a), a função do estádio do espelho revela "um caso particular
da função da imago" (p. 95), uma relação alterada com a natureza no caso específico do
homem. Não sem razão, Merleau-Ponty e Lacan são figuras centrais nos recentes debates
realizados em torno das noções de vida e de animalidade, discussões das quais são
testemunhas os trabalhos de Bimbenet (2011b), Barbaras (2008, 2011) e Duportail (2008, 2011).
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Nota sobre o autor
Danilo Saretta Verissimo. Professor Assistente Doutor do Departamento de Psicologia
Evolutiva, Social e Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP. Doutor em
Psicologia pela Universidade de São Paulo e Doutor em Filosofia pela Université Jean
Moulin - Lyon III. E-mail: [email protected]
Data de recebimento: 07/07/2012
Data de aceite: 26/03/2013
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Por uma história da psicologia histórica
For a history of the historical psychology
Maria Fernanda Costa Waeny
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil
Resumo
Psicologia histórica é um termo estreitamente relacionado aos historiadores dos Annales,
onde muitas vezes foi comparado a outras denominações. Este artigo recupera aspectos
históricos do termo psicologia histórica no ambiente dos Annales; em seguida apresenta
as primeiras menções à psicologia histórica de que se tem conhecimento até o momento,
mostrando que desde 1833 o termo tem sido ininterruptamente mencionado por vários
autores e de diferentes maneiras; o uso do termo por autores como Quevedo y Zubieta,
Circé-Côté, Sforza, Fletcher, Van den Berg, Barbu, Schneider, Pelckmans, por sua vez,
demonstra que seu uso ultrapassa o ambiente dos Annales e que a história da psicologia
histórica não se restringe ao ambiente francês. Isto tem ocorrido porque historiadores,
historiadores da psicologia e pesquisadores da psicologia histórica de Ignace Meyerson
não consideraram a própria historicidade da psicologia histórica em suas pesquisas.
Palavras-chave: história da psicologia; Annales; Ignace Meyerson; historiografia
Abstract:
Historical psychology is a term closely linked to the historians of Annales, where it was
frequently compared to other names. This article retrieves historical aspects of the term
historical psychology in the environment of Annales; after that it presents the first
references to historical psychology which are known so far, showing that since 1833 the
term has been continuously mentioned by several authors and in different ways; the use
of the term by authors like Quevedo y Zubieta, Circé-Côté, Sforza, Fletcher, Van den
Berg, Barbu, Schneider, Pelckmans, in turn demonstrates that their use goes beyond the
Annales environment and that the history of historical psychology is not restricted to
French environment. This has occurred because historians, historians of psychology and
researchers of Ignace Meyerson's historical psychology did not consider the own
historicity of the historical psychology in their researches.
Keywords: history of psychology; Annales; Ignace Meyerson; historiography
Psicologia histórica: pioneiro e desenvolvimentos
O pioneirismo no uso do termo psicologia histórica tem sido atribuído a Henri Berr
(1863-1954); ele a mencionou na tese, UAvenir de la philosophie, de 1899. Disse ele
O espírito é o produto da história. A história é a concreção do pensamento.
Psicologia da humanidade, psicologia dos povos, psicologia biográfica:
ensaios diversos se multiplicam. E todas estas concepções aspiram a se
fundir, absorvendo a erudição. Há uma psicologia histórica que se elabora,
sem ter encontrado sua forma definitiva (citado por Chalus, 1961, p. ix).
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No ano seguinte Berr fundaria a Revista de síntese histórica, com uma seção dedicada a
"artigos de fundo [composto por] (teoria da história e psicologia histórica)" (Revue de
Synthèse, 1900). Sua proposta, porém, se inscreve no projeto maior de uma síntese histórica,
ou seja, na "unificação da ciência a partir da definição de uma metodologia integradora
fundada sobre a história" (Gemelli, 1987, p. 228). Berr, no entanto, não definiu claramente a
posição da psicologia histórica em seu projeto: além de usar termos como psicologia dos
historiadores (Berr, 1921), historiador psicólogo (Berr, 1939), psicologia coletiva ou
psicanálise (Berr, 1949), psicologia genética (Berr, 1953), qualificou a iniciativa do psicólogo
Ignace Meyerson como "um tipo de síntese na Síntese" (Berr, 1953, p. 291).
As ideias de Berr ecoaram nos jovens Marc Bloch e Lucien Febvre, fazendo deles e do
Annales seus legítimos herdeiros; de quem herdaram, também, o interesse pela psicologia e a
indefinição terminológica: Bloch, por exemplo, em um único livro (Bloch, 1982) utilizou os
termos maneiras de sentir e de pensar (p. 94), mentalidade (p. 104), memória coletiva (p.
111), e posteriormente usou psicologia coletiva (Bloch, 1948); Febvre, de sua parte, utilizou
aparelhagem mental, (Febvre, 1978, p. 55), psicologia histórica (Febvre, 2004, p. 37). Quanto
ao interesse pela psicologia, Berr se referiu a ela de modo geral, já Bloch e Febvre se
apoiaram em autores da psicologia e da sociologia, a exemplo de Charles Blondel e Maurice
Halbwachs (Burke, 1991, pp. 27-28), e Henri Wallon (Febvre, 1985).
Outros integrantes dos Annales também foram vinculados à psicologia histórica; Burke
(1991), por exemplo, menciona Henri Bremond (p. 28), Jean Delumeau (p. 84), avisou que o
livro de Robert Mandrou (1961) foi baseado em notas deixadas por Febvre (p. 84) e estranhou
que Vernant preste "homenagem não a Febvre, mas ao psicólogo I. Meyerson" (p. 114). É
necessário alertar, porém, que Mandrou, originalmente, não é um autor em psicologia
histórica, mas o compilador das ideias de Febvre; que Vernant foi discípulo de Meyerson, e
inclusive subintitulou seu livro por psicologia histórica (Vernant, 1965a); que Bremond e
Delumeau nada publicaram sobre psicologia histórica; ou ainda Dosse (1994, pp. 124-126),
que cita Charles Morazé como historiador dos Annales, mas não menciona que ele nomeava
seus cursos por psicologia histórica (Morazé, 1971-1972 e 1977-1978).
O interesse pela psicologia no ambiente dos historiadores franceses não é recente; Berr
(1911/1946), por exemplo, igualou as duas áreas alegando que ambas teriam curiosidade
pelo humano e uma "inteligente simpatia para o diferente, o mutável e o complexo da vida"
(p. 210); Febvre (1985a) sugeriu que psicologia e história deveriam "manter relações
contínuas" (p. 205); Dumoulin (1993) afirmou que Berr fazia "da história a ciência das
ciências que progridem graças à psicologia histórica" (p. 94); para Vernant (1965) a
incontestável aproximação era evidente devido à recente publicação de três novos títulos em
psicologia histórica (Barbu, 1960; Mandrou, 1961; Van den Berg, 1965); nessa mesma ocasião
Vernant aproveitou para expressar seu espanto diante da ausência de referências destes
autores a Meyerson; disse Vernant (1965)
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Assim, no espaço de dois anos, um psicólogo, um psiquiatra, um
historiador, sem se conhecer e independentemente uns dos outros, colocam
igualmente sua obra sob o signo de uma psicologia histórica. É preciso
lembrar que funciona na Escola de Altos Estudos um centro de Pesquisas de
Psicologia Comparativa e histórica, criado e animado por nosso colega, o
psicólogo Ignace Meyerson? (pp. 85-86)
Com razão Vernant defendeu a anterioridade da proposta meyersoniana: já em 1941
Meyerson criou a Sociedade de Estudos Psicológicos de Toulouse; em 1948 defendeu a tese,
As funções psicológicas e as obras, sistematizando sua proposta; em 1951 iniciou os cursos de
psicologia comparativa na Escola de Altos Estudos e em 1953 inaugurou o Centro de
Pesquisas em Psicologia Comparativa, mantendo estas e outras atividades relacionadas à
psicologia histórica até 1983. A advertência de Vernant, portanto, adquire importância
porque refere títulos posteriores à tese de Meyerson e acrescenta novos autores ampliando,
assim, o leque de menções à psicologia histórica para além do ambiente dos Annales.
O destino da psicologia histórica, porém, além de incerto parece desanimador: para
Dosse (1994, p. 85), por exemplo, ela logo saiu de moda; Burke (1991, p. 132) anunciou que
ela perdeu a disputa para o termo mentalidades; e Vernant (1965), de certo modo, identificou
o isolamento que a tem caracterizado. Tudo leva a crer, portanto, que a indefinição
conceitual, o recurso a termos similares e a dispersão dos autores tem contribuído para a
permanência da psicologia histórica na obscuridade.
A base sobre a qual estão assentadas as origens da psicologia histórica está incompleta.
Isto porque a primeira menção até agora localizada antecede em mais de sessenta anos o
surgimento comumente aceito, transferindo assim o pioneirismo de Berr, e sua tese de 1899,
para Ballanche (1833). O texto em questão é um verbete sobre a alma, no qual Ballanche
(1833) alega que não vai expor os diversos sistemas de conhecimentos já produzidos "sobre a
natureza e a diferença das almas, sobre a união da alma e do corpo: isto seria uma psicologia
histórica, comparada" (p. 334). Desta forma, a menção de Ballanche à psicologia histórica
destaca a anterioridade no uso do termo e permite retraçar o percurso desta denominação.
O percurso da psicologia histórica
A primeira menção à psicologia histórica de que se tem conhecimento, portanto, foi
localizada na Enciclopédia de conhecimentos úteis, de 1833 (Ballanche, 1833). Depois, tudo
indica que psicologia histórica passou a ser mencionada em livros; entre as primeiras
menções pode-se citar, por exemplo, Vinet (1853), Garnier (1865), Littré (1876 e 1877), Galvão
Bueno (1877), Richet (1884), Ribot (1894), Brayce y Cotes (1899), Gourmont (1900), Barzellotti
(1900), Renan (1910). Menções em publicações seriadas apareceram em 1860, na Revue
contemporaine, e depois no Journal de médicine mentale (1870), Revue philosophique de la France et
de l'étranger (1879), Revue historique (1893), Revue de métaphysique et morale (1898), entre outros
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periódicos. Por fim surgiram os títulos em psicologia histórica, a exemplo de Gebhart (1896),
Rocafort (1896), Prouteaux (1900), Quevedo y Zubieta (1909), entre outros títulos.
A preferência dos exemplos acima citados recai sobre as primeiras menções, mas é
certo que citações à psicologia histórica não deixaram de ocorrer ao longo do tempo: há
menções em textos que cobrem o período que vai de Vinet (1853) a Hartog (2007), da Revue
contemporaine (1860) à Revue de synthèse (1997), de Gebhart (1896) a Pelckmans (1986). Além
do mais, títulos como os de Cochet (1917), Berr (1919), Circé-Côté (1924), Bertrand (1924),
Fletcher (1930) e Sforza (1936) confirmam que a presença da psicologia histórica não ocorreu
em apenas determinado período de tempo e nem em determinado local.
Para avaliar e compreender o uso recorrente do termo, no entanto, é necessário
identificar as diversas significações atribuídas à psicologia histórica ao longo de seu
percurso. Já desde as primeiras menções é possível observar a diversidade conceitual e
temática do termo psicologia histórica:
Segundo Vinet (1853), "de todas as leis naturais, as da história sem dúvida são as mais
difíceis a determinar. Ao tentar pode-se obter um tipo de psicologia histórica, uma ciência
dos fenômenos da alma social" (p. 353).
No livro de Garnier (1865) o editor, Paul Janet, propõe substituir a psicologia subjetiva
por uma "psicologia histórica e geográfica fundada sobre a observação das raças, dos povos,
das diversas classes da sociedade" (p. XVIII).
Galvão Bueno (1877) dedica duzentas e vinte páginas à psicologia, classificando-a "em
psicologia experimental ou histórica e psicologia racional ou especulativa" (citado por
Massimi, 1990, pp. 32-33).
Richet (1884) afirma que os testemunhos de posse demoníaca, magia e feitiçaria são
relatos sobre "o estado do espírito humano na idade média" (p. 299), e diz: "Isto não é
totalmente história e nem é totalmente psicologia: é psicologia histórica" (p. 299).
Para Ribot (1894) os romanos, "malgrado suas tradições latinas, seu funcionamento
imperial, seus hábitos importados do Oriente (...) e seu estreito cristianismo, ainda é grego no
fundo. Há aí um curioso estudo de psicologia histórica" (p. 124).
Para Brayce y Cotes (1899), "a psicologia histórica tende para a concepção do
organismo social a serviço da coletividade" (p. 12).
Para Gourmont (1900) psicologia histórica seria um estudo sobre "qual grau de
dissociação se encontram, no decorrer dos séculos, certo número de verdades que
pensadores qualificaram como primordiais" (p. 88).
Em Barzellotti (1900) psicologia histórica é mencionada como sendo a "pedra de toque
do método de Taine" (p. 59); como lei que transcende os vocábulos classicismo e
romantismo, considerando-os como "duas faces, duas atitudes do espírito humano, duas
maneiras originalmente distintas, nas quais a natureza [humana] se dispõe a conceber, a
sentir as coisas, a vida e a arte" (p. 168).
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Para Quevedo y Zubieta (1909), se a associação dos termos é nova, "o conceito que
expressa é tão velho como a própria história" (citado por Preciado, 2003, p. 11); afirma
também que o autor que consegue expressar a consonância entre determinada situação e
"um caráter, uma alma...[faz um] verdadeiro trabalho de psicólogo. Esses autores sem o
saber faziam psicologia histórica" (citado por Preciado, 2003, p. 11).
Renan (1910) pondera que o segundo volume do Cosmos de Humboldt, no qual a
"[história de um sentimento de humanidade perseguido em todas as raças e através de todos
os séculos, em suas variedades e suas nuances], pode ser considerado como um tipo dessa
psicologia histórica" (pp. 175-176).
As diferenças nos trechos acima são expressivas: Vinet sugere que psicologia histórica
seria a ciência das leis de funcionamento social; Paul Janet propôs a substituição de uma
psicologia subjetiva por uma outra fundada na observação de características da sociedade;
Galvão Bueno a estabelece como uma das divisões da psicologia; para Richet é o estudo dos
estados de espírito; em Ribot parece ser o que há de mais comum, irredutível, em
determinado povo; para Brayce y Cotes ela estaria a serviço de um social e/ou coletivo; para
Gourmont ela serviria para questionar o caráter histórico de verdades consideradas
universais; Barzellotti, mesmo sem citar Taine diretamente, menciona que para este autor ela
seria um método e também uma lei; em Quevedo y Zubieta ela seria o retrato do caráter de
um povo; para Renan seria a somatória dos diversos sentimentos de humanidade.
É possível organizar a diversidade conceitual e a abrangência temporal do termo
psicologia histórica em duas categorias: a primeira se refere à concentração de títulos em dois
períodos distintos; a segunda propõe uma classificação preliminar das menções à psicologia
histórica nos trechos e títulos aqui referidos.
A publicação de títulos em psicologia histórica se concentra nos períodos 1896-1909 e
1947-1965. O primeiro grupo de publicações (1896-1909) pertence ao contexto de fins do
século XIX, que de modo geral tende a explicar os fenômenos e suas conexões, o
funcionamento e desenvolvimento do homem e da sociedade, como evolução contínua do
espírito humano, a história mostrando os níveis de graus do espírito e a organização social
representando os degraus já galgados rumo à civilização; é este o motivo para o uso de
termos como alma social (Vinet), caráter de um povo (Quevedo y Zubieta), observação das
raças (Garnier), organismo social (Brayce y Cotes), estados do espírito humano (Richet,
Barzellotti), e noções que sugerem a permanência de aspectos do homem através dos tempos
(Ribot, Renan). O segundo grupo de publicações (1947-1965) surge justamente no período da
crítica ao caráter ideológico da ciência e dos conceitos de Cultura e Civilização; eis o motivo
para que, no âmbito da renovação da noção de cultura como produção e compartilhamento
de processos simbólicos, o tema privilegiado serão as condições histórico-culturais de
surgimento da vida íntima e do inconsciente (Van den Berg), da sensibilidade (Mandrou),
das funções psicológicas (Meyerson), do pensamento racional na Grécia (Vernant).
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É possível que a concentração de títulos em psicologia histórica tenha ocorrido porque
ela serviu de recurso para explicar as mudanças paradigmáticas desses dois períodos, pois
esses dois intervalos de tempo correspondem ao que Delacampagne (1997) definiu por crise
da noção clássica de representação (1880-1914) e desilusão do pós-guerra (após 1950),
denominando-os, respectivamente, "nascimento da modernidade" (pp. 11-20) e "a razão em
questão" (após 1950) (pp. 233-284).
Quanto à segunda categoria, uma classificação das menções à psicologia histórica
permite agrupar as menções em torno de, por exemplo, teses (Brayce y Cotes, 1899;
Meyerson, 1948), ementas (Morazé, 1971-1972 e 1977-1978) e cursos (Meyerson, 2000);
aproximação à psicologia social/coletiva (Quevedo y Zubieta, 1909; Schneider, 1978;
Preciado, 2003; Bloch, 1948); relações entre história e psicologia (Quevedo y Zubieta, 1909;
Vernant, 1965; Febvre, 1985a); estudos sobre a arte (Vinet, 1877; Littré, 1877); estudos sobre a
psicologia e/ou fisiologia (Richet, 1884; Ribot, 1894; Garnier, 1865; Galvão Bueno, 1877).
Esta classificação, ainda que preliminar, demonstra que menções à psicologia histórica
podem ser agrupadas e que as categorias, por sua vez, tanto contribuem para a compreensão
das relações entre história e psicologia, entre psicologia e fisiologia, como podem dar
visibilidade a novas perspectivas de análise tal como a aproximação entre psicologia
histórica e psicologia social/coletiva.
A concentração de títulos em dois períodos específicos e a classificação das menções
demonstram que é possível agrupar as diferentes significações atribuídas à psicologia
histórica ao longo de seu percurso e começar a compreender aspectos da história desse
termo; os dados e a análise apresentados, porém, vale lembrar, são elementos para uma
história da psicologia histórica.
Consideração final
O objetivo primordial deste artigo é mostrar a recorrência do termo psicologia histórica
ao longo do tempo e delinear alguns dos aspectos que a mantiveram relegada. Ela foi mesmo
muito mencionada pelos historiadores dos Annales, por isso comentadores e historiógrafos
da nova história a citam com frequência; Burke e Dosse, dois reconhecidos historiógrafos dos
Annales, exemplificam as apreciações acerca da psicologia histórica, mas a extensa
bibliografia sobre esse tema, porém, dificulta qualquer aprofundamento no presente artigo.
Além do mais, viu-se que a presença da psicologia histórica no ambiente dos Annales é
apenas parte da história dessa denominação.
A maioria dos textos que abordam a psicologia histórica, não sem razão, menciona
apenas a proposta meyersoniana. Ignace Meyerson foi realmente o principal sistematizador,
mesmo sem se restringir ao termo psicologia histórica: a tese Lesfonctions psy cholo giques et les
oeuvres (Meyerson, 1948), por exemplo, não menciona o termo no título; o centro de
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pesquisas que ele fundou, em 1953, foi nomeado por psicologia comparativa; o curso de
1975-1976, à Escola de Altos Estudos, acrescenta os termos objetiva e comparativa
(Meyerson, 2000). Por outro lado, a argúcia e abrangência temática lhe garantem lugar de
destaque na história da psicologia histórica: para Meyerson, por exemplo, a crença no caráter
imutável das funções e das categorias do espírito "é um fato psicológico importante que não
deve ser negligenciado" (Meyerson, 1948, p. 120); a história das funções psicológicas se
enquadra no âmbito de "uma modificação mental, uma invenção nos domínios da memória
e do tempo" (Meyerson apud Leroy, 1986, pp. 99-100); as transformações no uso da cor e sua
percepção demonstram que "há uma história humana da percepção, feita de incessantes
interações entre o homem e seu meio" (Meyerson, 1957, p. 7); as mudanças radicais no
conhecimento científico conduzem à "convicção do inacabamento da pesquisa científica"
(Meyerson, 1948, p. 190) e este inacabamento é um princípio próprio ao homem.
A quantidade e variedade de menções ao longo do tempo, a falta de definições claras, o
uso de termos similares, os comentários baseados em dados incompletos, o surgimento de
títulos em curto período de tempo e a ausência de referência mútua entre os autores são
alguns dos fatores que determinaram o desconhecimento que ainda hoje caracterizam a
psicologia histórica. Este texto mapeou diversas menções à psicologia histórica ao longo do
tempo e propôs uma explicação para o surgimento simultâneo de propostas em curto espaço
de tempo, considerando a historicidade do termo psicologia histórica em seus aspectos
sincrônico e diacrônico.
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Nota sobre a autora
Maria Fernanda Costa Waeny é pós-doutorada pelo PEPG em Psicologia Social da
PUCSP, onde desenvolveu a pesquisa Psicologia histórica: um estudo crítico, que originou o
presente artigo. Contato: [email protected].
Data de recebimento: 10/09/2012
Data de aceite: 26/03/2013
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From multiculturalism to interculturality: through the relational reason
Pierpaolo Donati
University of Bologna
Italy
Abstrat
Multiculturalism is a term which was spread in the West during the 1960s to indicate
respect, tolerance and defence of cultural minorities. The idea of multiculturalism has
become a collective imaginary ("all different, all equals"). It has generated a political
ideology supporting an inclusive citizenship towards "different" cultures. After being
adopted as official policy in many Countries, multiculturalism has generated more
negative than positive effects (fragmenting the society, separating the minorities and
creating public cultural relativism). As a political doctrine, it seems harder and harder to
be put into practice. At its place, today we talk of interculturality. But this expression also
seems quite vague and uncertain. This essay discusses the possible alternatives to
multiculturalism, asking itself whether the way of interculturality can be a solution or
not. The Author's thesis is that the theory of interculturality has the advantage to stress
the inter, namely what lies in between different cultures. But it does not possess yet the
conceptual and effective means to understand and handle the problems of the public
sphere, when the different cultures express radical cultural values that bring about
conflict between them. The troubles of interculturality result from the lack of two things:
an insufficient reflexitivity inside the single cultures, and the lack of a relational interface
between the different cultures (between the carrier subjects). Modern western Reason
created a societal structure (lib-lab) promoting neither the first nor the second one. In fact,
it neutralizes them, because it faces the dilemmas of values inside the cultural diversities
through criteria of ethical indifference. Such criteria set reflexitivity to zero, preventing
individuals from understanding the deepest reasons of the vital experience of the others.
Reason is emptied of its meaning and of its understanding capability. To go over the
failures of multiculturalism and the frailties of interculturality, a lay approach to the
coexistence of cultures is required, being able to give strength back to Reason, through
new semantics of the inter-human diversity. The Author suggests the development of the
"relational reason", beyond the forms already known of rationality. To make Reason
relational might be the best way to imagine a new social order of society, being able to
humanize the globalizing processes and the growing migrations. The after-modern
society will be more or less human depending on how it will be able to widen the human
Reason, structuring it inside a new "relational unit" with the religious faith.
Keywords: multiculturalism; interculturality; relational reason; recognition; relational
paradigm
1. The issue of civil coexistence between different cultures and the theses of this
contribution.
1.1. What is multiculturalism?
Multiculturalism is usually defined as a public policy approach for managing cultural
diversity in a multiethnic society, officially stressing mutual respect and tolerance for
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cultural differences within a country's borders. As a policy, multiculturalism emphasizes the
unique characteristics of different cultures, especially as they relate to one another in
receiving nations. The word was first used in 1957 to describe Switzerland, but came into
common currency in Canada in the late 1960s.
As official political program, multiculturalism was first adopted in Canada in 1971 (see
Canadian Heritage) to affirm "the value and dignity of all citizens, independently from their
racial or ethnic origin, or their language or religion". It was adopted then by various
Countries, as Australia, New Zealand, Great Britain and Holland.
In its original definition, multiculturalism is a "way of incorporation" of immigrates in
a society where another kind of culture prevails. A different way from assimilation (that
defines the standards of interaction in public places by means of law), from the melting pot
and from hyphenation (see the experience of USA), from hybridization, half-breeding (cross-
breeding), and syncretism (that may be found in the Countries of Asia, Africa and SouthAmerica), and from other possible solutions1.
In the last decades, multiculturalism had many formulations, that we may classify in
two big currents. "Communitarian multiculturalism" (in many versions, from the anti-liberal
one of C. Taylor and E. Sandel, to the new-aristotelic one of A. MacIntyre and A. Etzioni) and
"pluralist multiculturalism" (W. Kymlicka)2. In the communitarian version (Taylor1992), the
multicultural doctrine aims at recomposing ethics and policy within the single cultural
communities (giving them self-government), since it is impossible to obtain such
recomposition in the space between them. In the pluralist version, it aims at defending the
specific cultural groups (ethnicals, nationals, etc.), through forms of political representation,
which obtain special rights (namely, in the education of children, in the way of dressing and
working, in the ways of taking care of the health, etc.), within the framework of a plural
democracy. In any case, multiculturalism does definitely oppose to the modern, liberal and
individualistic idea of "open society".
I am suggesting to distinguish between multiculturalism as a "social fact", as a
collective imaginary (supporting rethorics and theories in the field of social sciences), and as
a political ideology.
It is empirical that our societies are less and less homogeneous, as long as the variety of
different races, ethnic groups and cultures increases. It results from an historical process that
is under everybody's look, destinated to increase even more in the future. A society is
virtually multicultural when it loses its "tribal" structure and meets interdependency and
mixing with other societies having different ethnical cultures. Then some problems arise, to
which various and different answers have been given in the course of history.
1
For instance, the idea of a patriotic and civic constitutionalism (or 'constitutional patriotism' as elucidated by J.
Habermas) now debated in countries such as Germany, France and Italy.
2
It is not possible, here, for reasons of space, to stop to analyze all these versions.
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The ideology of multiculturalism is quite a different matter. Multiculturalism becomes
an ideology when it fights for particular values or interests, lived in particular cultural
communities, like they were universal values or interests, by appealing to the principle of
equality (the political equality granted to all cultural differences).
In these terms, multiculturalism has grown well beyond the original idea of defending
and promoting the ethnical cultures (national or migratory), in a context where another
culture prevails. It has become a collective imaginary 3, mythicizing the cultural diversity as
an irreconcilable connotation of every personal and social identity. Society is represented as a
field of coexistent cultures, considered refractory to one another, not translatable the one into
the other, devoid of common values, therefore always potentially conflictual. The image of
the Alter is absorbed and represented as completely different from the image of Ego.
The collective imaginary of multiculturalism may be illustraded by the slogan "all
differents, all equals". It supports some political programs that feed some social practices in
order to deeply modify social life (Benhabib, 2002). Nowadays, as a political doctrine,
multiculturalism produces a new version of secularity in the public life. It changes the sense
of lay (= to give supported reasons to somebody's thoughts and/or acts) to a form of active
and overpowering secularism. In order to make "normal" all the "differents", it legitimates a
political system (at its various territorial levels) that, instead of comparing the sense of the
topics in order to catch their differences and give them their pertinent meaning and value,
neutralizes the ethical and religious reasons constituting the core of the cultural differences
and makes them in-different (with no qualitative difference). In short, multiculturalism
expresses an ideology legitimating an always further loss of what cements society.
Multiculturalism produces a society distinguished by a growing pluralization of every
culture, not only because of migrations, but also because of the inner dynamics of the native
(national or not) cultures. In particular, multiculturalism erodes the very modern western
culture, which loses the rational roots that guaranteed a certain homogeneity for so many
centuries. The multicultural ideology, in fact, justifies not only the traditional cultures, but
also the new cultures and lifestyles considered to be post-modern. The multiplication
(systemic production) of the cultural differences feeds a social order, where the subjects
become individuals through the search for an identity referred to particular social spheres
that privatize the public sphere. All these novelties are interconnected and depend on the
globalizing processes. Over the long term, it will be possible no more to keep the distinction,
still dear to the liberal political scientists such as Giovanni Sartori (2000, p. 93), according to
which it would be possible to distinguish between the "domestic differents" (the natives, which
we are accustomed to) and the "foreign differents" (the ones coming from the migrations). By
now, such distinction has no more acceptable sociological bases.
!
About the distinction between ideology and collective imaginary, see Charles Taylor (2005, p. 174).
Memorandum 24, abr/2013
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065
Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167.
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Therefore, our problem is the following one: does it exist a solution of civil coexistence
between different cultures, which may avoid to incur the negative effects of the ethicalcultural relativism and of the political laicism kept by the ideology of multiculturalism? The
stakes are those of the civilization as a human and progressive endeavour4.
1.2. The theses ofthis contribution.
In this contribution, I am suggesting that multiculturalism is a symptom of the cultural
crisis of western humanism, in particular of its Reason, the one developed from the Greek
civilization until the Enlightenment5.
My argument is that western humanism (with Jewish-Greek-Christian roots) risks the
implosion and an historical drift, because it has not been able yet to develop a reflexivity of
the human thought that can be able to confront the depersonalization of the reason, which is
at the origin of multiculturalism as an epistemological, moral and political doctrine. In
absence of an adequate reflexivity, a pervasive functionalist rationality - namely the Reason
of globalization - prevails over, shaping the social world as an "anonymous matrix of
c ommunication"6.
I claim that the humanism of the 'old Europe' is drifting because it doesn't see the rifts
and voids that prevent from drawing a common world under historical conditions of
globalization. The dialogue and meeting of cultures suffer the lack of reasons of a
neohumanism up to the global challenge, because reason is referred to partial domains, as a
particular culture (as bounded or embedded rationality), or the individual as such (see the
4
One of the deepest criticism to multiculturalism has been expressed by the Ayn Rand Institute, according to
which multiculturalism is a growing force in America's universities and public life. In brief, multiculturalism is
defined as the view that all cultures, from that of a spirits-worshiping tribe to that of an advanced industrial
civilization, are equal in value. Since cultures are obviously not equal in value — not if man's life is your standard
of value — this egalitarian doctrine can have only one purpose: to raze the mountaintops. Multiculturalism seeks
to obliterate the value of a free, industrialized civilization (which today exists in the West and elsewhere), by
declaring that such a civilization is no better than primitive tribalism. More deeply, it seeks to incapacitate a
mind's ability to distinguish good from evil, to distinguish that which is life promoting from that which is life
negating: «We are opposed to this destructive doctrine. We hold that moral judgment is essential to life. The ideas
and values that animate a particular culture can and should be judged objectively. A culture that values freedom,
progress, reason and science, for instance, is good; one that values oppression, stagnation, mysticism, and
ignorance is not».
5
In confirmation, there are several societies that are virtually multicultural (as Brazil, for instance, but generally
various Countries of South-America, Africa and Asia), even if imaginary and ideology of multiculturalism are
totally absent.
6
According to Gunther Teubner (2006): «Since violations of fundamental rights stem from the totalising
tendencies of partial rationalities, there is no longer any point in seeing the horizontal effect as if rights of private
actors have to be weighed up against each other. On one side of the human rights relation is no longer a private
actor as the fundamental-rights violator, but the anonymous matrix of an autonomised communicative medium.
On the other side, the fundamental rights are divided into three dimensions: first, institutional rights protecting
the autonomy of social discourses - art, science, religion - against their subjugation by the totalising tendencies of
the communicative matrix; secondly, personal rights protecting the autonomy of communication, attributed not
to institutions, but to the social artefacts called 'persons'; and thirdly, human rights as negative bounds on societal
communication, where the integrity of individuals' body and mind is endangered».
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Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167.
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rational choice theory), or the functional needs of the social systems (the system rationality).
The solution I suggest is to search for "new reasons" to be referred to social relations. My
background thesis is that the reason must become reflexive, so that the good reasons of
human coexistence would be referred to human relations, distinguishing them from the
rationality inherent in individuals, social systems and the very cultures.
Being an ideology, multiculturalism is not a solution expressing a project of society,
simply because it generally excludes the possibility to build a common world. The
alternatives to the rifts of the society may be searched within a program of inter-culturality,
where the inter (what is between cultures) must be read, interpreted and acted through a
relational paradigm. The sense of such paradigm is to expand the reasonfrom the human person
to the social relations, so that the reason might play the role of mediation between cultures. I
will name it "relational reason" (for a more extensive explanation of this concept: see Donati
2008).
2. Multiculturalism is a social fact, but also an ideology.
My first argumentation is that multiculturalism represents a way to turn a social fact
into a political program being the expression of an ideology. As such, it is not a suitable
answer to the problem of reconciling cultural differences.
The existence of a variety of cultures, as a mere social fact, represents a richness,
because it expresses different aspects of the humanity of persons, social groups and
populations. Obviously, it reflects peculiar contextual situations (Gupta, Ferguson 1992). The
social-cultural practices, insofar as they exist and express a modus vivendi that shows a stable
ability to survive, reflect some experiences of the human nature, which there is always
something to learn from. Every cultural position or stance has its good reasons, even when
there is not a full and satisfying rationality, because it expresses the nature of the human
behaviour, which is free in creating the cultural forms.
We must accept the social fact as a given, although it calls for a moral evaluation. You
always have to answer to the facts. At the same time the social fact may not be the best and
more acceptable solution to face the human needs. The problem starts when
multiculturalism becomes an ideology, transforming the social fact of difference in a
representation, for which a "partial" identity poses some instances that are incompatible with
the basic values of social life. This is the case of a culture, where religion is coercively
ascribed to the person for life (or vice versa, a coactive atheism or agnosticism is imposed); or
a culture, where a disabled child (or the embryo with a pathology) is killed; or a culture,
where the woman is considered to be inferior or a man's property; or a culture, which admits
polygamous marriage where women have unequal dignities. In such cases, the values of
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these cultures affirm a partiality towards a conception that gives a full universal value to the
human person, denying that dignity conquered in many centuries of cultural progress.
Ideology enters the field when the cultural differences are asserted to defend or
promote some particular interests as if they were universal. There are many examples under
this respect: a religion which denies the right to freedom to other religions; religions which
are wholly ascriptive (people born within it cannot exit); cultures which legitimises the
killing of an embryo or a new born child, despite his human dignity, because he is not a
'perfect child'; and so on. The right to diversity, to every cultural diversity, is passed off as
the right to the equality of opportunities that any culture should have in configuring its
choices and practices (while in fact it is not). The ideology of cultural difference becomes the
basis of a new conception of secularity of the public sphere, which affirms that, in order to
coexist, it is necessary that all cultures were relativized (none of them can pretend to say the
truth). Nobody is allowed to speak the language of truth when talking to others in the public
sphere.
If the public social space becomes devoid of common values (because the only common
value is that all differences have equal dignity), the social acting must be inspired by that
principle of "politically correct", which compels people to adopt a relativistic point of view.
The fight for the acknowledgement of the different identities causes distancing and rifts. It is
a new tragedy of common goods (that, with some similarities, recalls the tragedy of commons
emerged with the rise of the modern capitalism). We see the fall of the "institutions of the
sense" (that are common, public and collective as a matter of fact), and of the rational orders
of justification, that have supported the western society up to now7. The social order
becomes more chaotic, risky and liquid. The "eastern" morphogenesis (guided by a circular
idea of time, and by a purely naturalistic idea of the human being) prevails over the
"western" one (guided by the linear sense of time, and by an idea giving transcendental
potentialities to the human being). It is the reign of the pure media communication, thus
forcing the social actors to adopt behaviours whose reasons are no more judgeable or
comparable between them on the basis of the old parameters of western rationality. The
argumentations considered being "rational" (or also reasonable) up to now become useless
and devoid of value. As a consequence, in the public sphere there is an increasing of anomy
and irrationality, avoidable by the individual only if retiring into its own cultural community
of reference. Both mechanical and organic solidarity8 are reduced, and the pathological
lifestyles do increase.
7
See the juridical debate on the introduction of the "cultural defence" «to mitigate punishment, create exemptions
from policies, and increase the size of damage awards» (A. Dundes Rentein 2005). The evidence sought to be
adduced is "cultural" as opposed to classically scientific (Currie 2005).
8
We refer to the theories of E. Durkheim and F. Toennies.
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Multiculturalism considers the deep cultural diversities as incompatible9, and it offers
itself as a solution to the potential conflicts between cultures. But, acting like this, it creates a
reservoir of potential tensions and clashes, which may be avoided only by forcing the
cultural models governing the public sphere to adopt a sort of "genetic mutation". This
mutation consists in emptying the social relations (lived in the public sphere, but affecting
the private as well) of any content of transcendental ethical sense. The sacrificial victim of
such mutation of common culture is the human being. The ethical and cultural relativism
embedded in the ideology of multiculturalism leads right to a further dehumanization of
social relations both outside and inside the membership community. Ultimately, it leads to
the so-called "trans-human".
That is when the conflicts do arise, because it is unavoidable, in the social life, for the
actors to judge practices, uses, values and rules of a particular culture as to the way in which
the latter affects society. To express a judgement, it is necessary to have an instrument able to
show whether a solution is acceptable or not. This instrument is the "judging knowledge",
made up of science and conscience, namely of scientific and moral reasons.
Which is the "judging knowledge" of multiculturalism?
Multiculturalism is an ideology, because it answers the question of knowledge and
judgement without putting forward any universal and disinterested reason, excluding even
the possibility to do it. Its reasons, both theoretical and practical, are partial and selfinterested. When the cultural difference becomes a debating issue, multiculturalism
neutralizes the difference, carrying it out in the field of incommunicability. We may say that
the judging knowledge of multiculturalism is characterized as follows:
(i) it is based on a form of cultural determinism, because it deterministically
subordinates knowledge to culture; in other words, it assumes that every knowledge is
completely conditioned by the cultural context and it is valid only referring to it; in doing that, it
assumes that cultures are fully homogeneous inside them, and the subjects belonging to a
culture have a full mutual comprehension, which is not empirically based (it is a mistake
which, in my opinion, is present in the theory of S. Hungtinton 1996, and has not been
sufficiently noticed during the international debate on his work);
(ii) it denies the possibility of giving a moral judgement on cultural patterns, when instead,
from a sociological point of view, culture is precisely what a human person needs in order to
answer the ethical problems of conscience (when it is necessary to say whether an action or
style of life is good or bad).
These assumptions lead multiculturalism to certain consequences, which should be
carefully considered. a) First, multiculturalism does not give rise to any mutual learning
between cultures, because the claims of the cultural pluralism do legitimate the simple
9
Namely, it considers values and lifestyles not only as opposite realities (as like the physical and the spiritual,
which may coexist), but also as excluding one another (as like considering the embryo as a human being or just a
clot of cells).
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existence (ex-sistere, 'being out') of the "social fact" of difference. b) Secondly, when
multiculturalism reduces the public-political sphere to a neutral arena towards cognitive and
moral differences, it gives up the search for an agreement between different instances, which
might lead to the building of a common good.
On the whole, we could say that, behind the ideology of multiculturalism, lies an idea of
recognition which, going back to Machiavelli, through Hobbes to Nietzsche, does not grant
any positive role to morally-founded struggles of social groups — their collective attempt to
establish, institutionally and culturally, expanded forms of reciprocal recognition — through
which the normatively directional change of societies proceeds. The mainstream idea of
multiculturalism is clearly opposed to a theory of recognition as a fight concerning a claim which can be traced back to Hegel (Honneth 1995) -, whose basic assumption is that social
struggle (between partial identities that must recognize one another) is the structuring force
in the moral development of the society.
3. Promises and limits of multiculturalism.
3.1. Why the promises of multiculturalism cannot be kept?
As observed by Amartya Sen (2006), after about three decades, the political doctrine of
multiculturalism is in crisis almost everywhere. It seems to be clear, by now, that
multiculturalism, conceived as an ideology of difference, is not a suitable answer, neither on
the ethical nor on the political basis, to the problem of coexistence between different cultures.
Nevertheless, though the ideology is easily questionable, the collective imagery is
much less, because it is supported by mass media and it is culturally homogeneous to the
communicative processes of globalization. It is certain, in fact, that the western open liberal
societies are not able to treat the causes that transformed multiculturalism into the collective
imaginary according to which "all differences are equal".
The sociological causes of multiculturalism lie on the desertification produced by the
liberal societies (ruled by lib-lab regimes) in the connective tissue of society, because they
tenaciously pursued the aim to immunize the individual from the (bonding features of) social
relations. In front of the recognition requests of the various cultural identities, the modern
Enlightenment Reason is idle. The social tissue cannot be reconstructed basing on the
rational forms elaborated by the western liberalism up to today10. Therefore, if up to
yesterday the modern cultures have been invaded by the western reason, today the very
western culture loses its inner integration, because of the fall of "its" Reason. All cultures,
10
I am conscious, here, to disagree both with Charles Taylor and Jurgen Habermas (Habermas, Taylor 1998). They
try to save liberalism reformulating it, the first one in the key of recognition and contribution of rights to
minorities, the second one in the key of civic or patriotic constitutionalism.
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both the western and the eastern, lose their identity and are less and less homogeneous
inside, they are always more syncretic and half-bred (Tiankui, Sasaki and Peilin eds. 2006).
In brief, multiculturalism, as a sign and a display of the Western crisis, promises a form
of civil co-existence that cannot be realized, because it meets with some insurmountable inner
problems. The analysis of such limits it useful to understand where to seek some alternative
solutions.
There is an endless literature about promises and limits of multiculturalism as moral
philosophy and political ideology. Here, I will limit my considerations to a few essential
points:
a) The epistemological limits of multiculturalism. Multiculturalism promises the
recognition of identities, but its epistemological relativism cannot provide such performance.
In fact, the authentic recognition of an identity needs an assumption on the truth of such
identity (Ricoeur 2004).
b) The ethical limits of multiculturalism. As a moral philosophy, multiculturalism leads
to support an attitude, according to which what is possible becomes licit. In front of the moral
aberrations rising from such principle, in particular the violations of human rights,
multiculturalism must look for remedies built upon some ethical limits. But it is unable to do
it, because it should violate its basing principle of ethical relativism. The promise of giving
society an ethics of civil coexistence is necessarily disregarded.
c) The political limits of multiculturalism. As a political ideology, multiculturalism
promises tolerance, but in fact it generates intolerance11. More generally, multiculturalism
supports a problematic form of citizenship, because its model of political inclusion hides
some definite asymmetrical power relations, generating new forms of social exclusion
(Mackey 2002). My personal opinion is that, after all, as a political doctrine, multiculturalism
could be read as a new formula of that kind of arrangement that the sociology calls "the
Hobbesian solution to the problem of social order" (T. Parsons), which is now applied to
cultural systems instead of individuals. The principle of political inclusion of the
individualist liberalism grants citizenship to minorities, basing on a pluralism devoid of
ethical qualification in the public sphere. Consequently, it is unable to develop a "deep"
citizenship (Clarke 1996) recognizing a true social pluralism, i.e. a pluralism that is an
expression of the positive liberties of inter-human encounter (Donati 2002).
In my opinion, the inner limit of multiculturalism in every perspective
(epistemological, moral and political), is the loss of the relationality between the different cultures,
or, in other words, the fact of institutionalizing the loss of the relational nature of what lies in
between the different cultures. Multiculturalism is simply blind (in an affective, cognitive and
11
If the liberal tolerance may have been an element of civil progress at the beginning of the modern times,
afterwards - with the loss of its traditional (Christian) values - it has become the reason of the decay of the
western society (Seligman 1992). As stated by J. Ratzinger (2005), "a confused ideology of liberty leads to a
dogmatism that is revealing to be more and more hostile to liberty".
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moral sense) in front of the relational character of culture (culture as a relational fact)12. The
relations between cultures are neutralized or made indifferent by the joint of two principles:
the liberal principle of tolerance (lib) and the social-democratic principle (lab) of political
inclusion. Attracted inside such binomial of liberty-equality (lib-lab), and used in a
functionalist way, multiculturalism completely forgets the meaning of solidarity and
brotherhood.
How to fill up the lack of relationality of multiculturalism, lived and acted as an
ideology and a collective imaginary?
In my opinion, it should be observed that, in the international debate, there is no
analysis of multiculturalism under this light.
The transformation of political multiculturalism into a collective imaginary may be
interpreted as an effort to make survive in a new form the lib-lab configuration of society13, in
order to answer to its inner crisis. The attempt is the one of shaping the cultural communities
as enclaves based on values (and belongings) innerly strong, but such as to have neutral
relations ("impartial" according to Taylor, "dialoguing" according to Habermas) in the public
space between them. The attempt, expressed in this way, is destined right to failure.
3.2. The background sociological deficit: a reductive theory of recognition.
In its springing reason, multiculturalism expresses the need to search for new ways to
recognize the dignity of the human being. As such, it certainly reflects a positive demand.
The statement, according to which "the value and dignity of all the citizens, independently
from their racial and ethical origins, their language and religion" (Canadian Heritage) must be
recognized, recalls the Christian conception of laity at the beginning of Christianity (Letter to
Diogneto). Nevertheless, if on the one side multiculturalism is a spur to rethink the
characters, qualities and properties of the recognition of what is actually human, on the other
side it does not provide an adequate answer. The multicultural solution is inadequate,
because it is unable to fill the gap between citoyen and homme. To state that the citizen
realizes itself in the public sphere through the politics of the human dignity and its
corresponding legal rights (the "politics of universalism"), while the human being realizes
12
Culture may rise only by relation, i.e. it is a relational product: written and oral communication, that is sound
and symbol, are not such by emission, but by reception, not owing to their "make sense", but through their "consense". And this latter depends on recognition and sharing (that are relational acts). That is why sociology is
empirically relational.
13
In my opinion, instead, it is suitable to underline that multiculturalism is inscribed within a definite framework,
where philosophical-cultural relativism and multicultural citizenship become synergistic and give a peculiar
answer to the crisis of the lib-lab outline of the society, which supported the western Countries from the Peace of
Westphalia onwards. The lib-lab outline, having its far ancestor in Thomas Hobbes, bases on two complementary
pillars: from the one side, the proprietary individualism (and the related market liberties) (lib side) and, from the
other side, a political power that exercises the monopoly of strength, and that rules the society in a way that no
one can violate the other's liberty, and all the individuals have equal opportunities to compete in the market (lab
side). It is well known that the lib-lab outline is in crisis for a long time, finding no alternatives yet (Donati 1999).
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itself in its own cultural community (the "politics of difference"), leaves a void between these
two spheres.
Multiculturalism is equivocal and ambivalent because, if from the one side it
underlines the uniqueness of the human being, from the other side it makes it
incommunicable from the cultural point of view. Nevertheless, its insistence about the
radical alterity of the Other (Monceri 2006) pushes us to better understand the difference
between the recognition of the human being and the recognition grantable by human beings
to not-human beings. The point is that multiculturalism promises a recognition that it cannot
realize, because it has a very strict and reductive idea of recognition. In fact, the multicultural
recognition is conceived as a one-sided act of a collective mind, which ascribes an identity
basing on a self-certification or on a claim of identity, which satisfies neither a veritative nor
a gratitude (thankfulness) principle. In the social practice, instead, we see that recognizing
the Other (as an individual, but also as an "other culture") is a human act only if it is a
validation act (that sees the Other's verity), inscribed in a circuit of symbolic exchanges
(gifts).
Multiculturalism does satisfy neither of these two requirements. It does not search for
the reasons that legitimate the difference; it does not establish that circuit of mutual gifts that
is necessary for the social practices and for the experiences of everyday life to realize a
human form of recognition. So it does not help to understand the reasons why this latter is
necessary to produce a human civilization. To make this step, it is necessary that
multiculturalism provide itself with a more adequate reflexivity in the processes of
recognition14.
What reflexivity? As from Hobbes, recognition always starts from a violent clash
between identities. Fichte underlines, instead, that recognition springs from the subjects'
need to relate one another (this is maybe the closest version to the lay sense of recognition)15.
Hegel formulates a "synthesis" (that still guides the majority of the present theories of
recognition), according to which recognition is a dialectical process, which consists of a fight
against the Other and a desire to find a new relationship with him at the same time. A
formulation that describes history as a sequence of clashes, in peace and war, always as a
violence. Yesterday, it was referred to the relation between modernity and pre-modernity;
today it explains the so-called clash of civilizations.
To go beyond the Hegelian idea, included the most recent revisions (A. Honneth) and
the hermeneutical critics (P. Ricoeur), we must search for a new model of rationality of the
act (and process) of recognition.
14
Under that light, it may be useful to understand reflectivity, both in M. S. Archer's (2003) and in B. Sandywell's
(1996) meanings.
15
"No matter who you are - so everyone could say - if you have human features, you too are a member (Mitglied)
of such a great community; (...) no one exists in vain for me, as long as it shows the mark of reason on its face,
even if it is a coarse and crude expression" (...) "in any case it is sure, (...) my heart will be united to yours by the
most beautiful of the ties, the one of free and mutual share of good" (Fichte 2003, p. 90).
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Essentially, the failures of multiculturalism represent a drive to search for a new
reflexivity of society on to itself. Such reflexivity must be able to express "unity in diversity",
according to post-Hobbesian and post-Hegelian solutions.
A society that thinks itself as multicultural can get some comparative processes going,
spurring a deeper understanding of the cultural identities and of their relations. But we need
a new paradigm of rationality to manage such novelties.
4. In search of possible alternatives: is interculturality a solution?
4.1. Culture and rationality.
The search for alternatives to multiculturalism as an ideology and a collective
imaginary should be aimed to solve two big issues. The fist one is about the liberty of the
human being towards the socio-cultural structures. The other issue is about the need to
configure the public sphere, so it will be - at least in some fundamental values - a "common
world" to its dwellers.
We point out that these two issues are linked together, because a shared public sphere
needs liberty of people16. In its turn, personal liberty leads to the recognition of the principle
of moral and juridical equality of people as human beings, and of their related rights of
citizenship, to be assured.
The doctrine of multiculturalism, as already said, does not solve these two problems,
because it considers the person as embodied and embedded in its culture of origin, and it does
not pursue any common world, but only the respect and tolerance "at a distance" between
cultures. Both those lacks refer to the deficit of relationality, proper of multiculturalism. In
which direction should the alternatives to multiculturalism be sought?
Up to now, the solutions have been sought in two main directions. From the one side,
there was the attempt to deal with the cultural difference by cultural means, i.e. adopting a
(culturalist) position that searches for the convergence between cultures through new
cultural forms. From the other side, there was the attempt to show that the meeting between
cultures depends from the rationality of the individual actors. The first position generally
suffers from a hypersocialized vision of the social actor, the second one of a hyposocialized
vision of the human being. Let us see them:
(a) The culturalist (or conventionalist) position, according to which the moral feelings
are culturally originated, believes that the solutions should be found in the preservation of
16
Rightly A. Sen (2006) has called attention to the difference between a public sphere based on freedom and
consensus and one based on cultural communities of ascriptive character (the ones transmitting a cultural
tradition from one generation to the other, basing on the fact that an individual is born in such culture). But Sen
does not clarify how the liberties enjoyed by equal individuals can build up a common public sphere. He
criticizes multiculturalism in the name of an open society (according to the lib-lab model of institutionalized
individualism), which seems to be as imaginary as the multicultural one.
Memorandum 24, abr/2013
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
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Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167.
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cultures and in the building of a conventional common platform, permitting them to coexist,
that is to come alongside with each other. The suggestions, somehow or other, consist in
elaborating new conventions and pacts between social groups, to the various degrees of
cultural conflicts. It is supposed to come to an agreement between the various cultures
through "contracts", on the model of the international conventions. This position suffers from
the same problems of multiculturalism, because it considers the actors and their choices to be
necessarily defined by the cultural context, and that only a conventional consent "from above"
could re-orient the single actors. In substance, it has a "holistic" and hypersocialized
character. Those who adopt such position will sooner or later contradict themselves, since
the idea of "translating" a culture into another so to achieve a full reciprocal understanding
comes to be considered as impossible and rejected (Shimada 2006).
(b) The rationalist position (Enlightenment, in various versions), instead, is the one
according to which the moral feelings have a rational origin (Boudon 2006). Here, reason
comes before identity (as claimed by Sen 1999). In this way, the solution to the cultural
conflicts should be found in the direction of a dialogue, based on the encounter of the
individuals' "good reasons". Here is the perspective of interaction models and rules, which
may lead to a lowest common denominator between cultures, thanks to the use of reason
from the part of those participating in the situation. Such common denominator may be of
different kind (it may appeal to human nature, natural law, recognition of the innate rights
of persons and peoples or nations, or to something else). For the rationalists, the "common
feeling" making cultures coexist must be an expression of the moral feelings of the
individuals, and it must lie on individual motives of rational action.
Stated in the right terms, the debate between culturalists and rationalists has made no
big steps forward. From the one side, the culturalist position ended, not rarely, in nourishing
various forms of anti-Humanism, of trans-Humanism or even fundamentalism. From the
other side, modern rationalism, in its various expressions, has not been able to assure dignity
to the human being, and to protect the human essence within the socio-cultural context (not
only the human essence within the individual).
The search for solutions is stalemate. It is evident when it comes about the theme ofliberty of
the human being (agency) towards the so cio-cultural structures. For the culturalists, the person is
a product of the society; it is entirely socialized by the society, so that the cultural debate
stops in front of the declarations of the different identities. For the rationalists, the person is a
pre-social individual that socializes itself basing on its own internal propensions, so that the
cultural debate takes place making the identities nominalistic.
The contemporary human being is needful to leave cultural determinism through
reason. But reason at its disposal is insufficient. Multiculturalism undermines all the existing
forms of rationalism: instrumental, substantial, procedural and deliberative. The western
rationality is put in crisis and cannot find any argument in front of the requests of the ones
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not recognizing it (that are not only abroad, but also within the West). Should we renounce
to reason?
4.2. In search of a common world: the theory ofinterculturality.
Today, there is a possible way out thanks to interculturality. With this term, we
generally mean a coexistence way basing on dialogue and the open debate between different
cultures, which renounce both to the dominance of one on another (assimilation or
colonization) and to the division without mutual communication (balkanization). One
appeals to the "intercultural communication".
Certainly, the intercultural communication has a lot of credits, but also some manifest
limits. Its main credit is to affirm that there is an intermediate space between the "full
comprehension" within every single culture, and the "complete non-involvement" between
cultures. In this way, it avoids the idea that a common world is impossible because of the
dualism between the full comprehension (reachable only within a single cultural community)
and the non-involvement (the complete alterity between different cultural communities), as
claimed by the cultural relativists. Nonetheless, it meets with the limit of not being able to
manage the borders between the three domains (intra-cultural, inter-cultural and multicultural), if not as pure communication.
Another credit of the intercultural position is to underline that the debate between
cultures may constitute a positive and useful exercise of values' investigation (an exercise
inside people's ability of axiological research: Touriñan López 2006). But such axiological
exercise, which may be considered as a way for persons to give themselves reasons for their
lifestyles, does not explain how individuals may find some common reasons.
Other Authors underlined the benefits of intercultural integration as "conviviality of
differences". In particular, Stefano Zamagni (2002, pp. 240-266) suggested a quite elaborate
model of intercultural integration, based on five principles: 1) the primacy of the person as
regards both the cultural community and the State; 2) the recognition that liberty, as selfrealization, needs the relation with the other as a value in itself; 3) the principle of neutrality as
impartiality (not indifference) of the State towards the cultures "brought" by their dwellers; 4)
the principle of integrating ethno-cultural minorities within a common national culture, in
order to which the (lay) State has to adopt "a nucleus of inalienable values" (liberty, human
dignity, respect for life, minimum welfare) that, being as such, are valid for all the human
beings, no matter for their cultural belonging; 5) the fifth principle is that of a "conditioned
tolerance": the State, in the name of the citizen's rights (that, unlike the human's, have no
natural law basis), has to assign resources to the various cultural groups, in proportion to
their engagement in making themselves keepers of an integration project, based on the
fundamental rights of the human being.
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The intercultural model proposed by Zamagni is certainly shareable and full of
interesting hints. Nonetheless, it presents some limits. I am pointing out just one of them: it
refers the intercultural project to the national culture (its nation-state and its political
constitution), while the latter becomes more and more problematic vis-à-vis the globalization
processes. To be realized, the intercultural model needs a context of sociological reflexivity
referred to the cultural globalization. In my language, it exacts a meta-reflexive subject and a
new societarian reflexivity.
My purpose is to show that the intercultural solution cannot be understood - as done
by someone nowadays - as a sort of "mitigated multiculturalism", sweet, moderate, which
looks for the agreement between cultures, pushing individuals towards common reasons
that are just external and not internal to the single cultures.
To be effective, the intercultural solution needs a deeply reflexive reason, able of
rooting the ultimate values to a solid and common ground. This is the real problem: where to
find this reflexive reason?
4.3. Inter cultural comprehension needs a relational interface: the problem ofboundaries (semantics of
difference).
Cultures debate today within the public sphere, having no clue on how it is possible to
have something in common apart from the mere interest. This happens because the different
cultural identities are not able to dialogue between them in terms of identity.
The modern western society invented some devices to treat the clashes of interest
through the market, and the clashes of opinion through the rules of the political democracy.
But it has not found the instruments to treat the clashes of cultural values. The latter must
then be addressed within the framework of the relationships between religion and culture,
because this is the context where the instruments to handle the clashes of values should be
found.
The problem must be framed considering that, in a democracy, the single religions
should be able to distinguish between their internal dogmatics and what they can and must
submit to their reciprocal confrontation in the public sphere, namely in the civil society,
which legitimates the democratic political system (Donati 2002).
In such a frame, the key-problem is the one of boundaries between the different faiths
(religions) and the public sphere. The public sphere needs a common reason, reachable only
if the various religions are innerly reflexive enough to distinguish between reasons given to
interlocutors in the public sphere, and their faith (their inner dogmatics).
This is not an exercise up to the individual persons, but it involves religions, thought as
cultures. People's inner reflexivity is not enough, it is necessary to make religion reflexive,
and so the culture in which it is embodied.
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In other words, here there is a process of morphogenesis both of socio-cultural
structures (the elaboration of new symbolic and relational patterns) and of agency (the selfreflexive activity of people in their free acting), through the interaction of the individuals.
The intercultural theory may stand only if it is possible to realize such complex
morphogenetic process.
To perform such operation, it is necessary that people put in action a Reason, which no
religion (as a culture, not as a faith) can entirely posses all alone, going across them (it is
trans-cultural). It is their own reason to exist as religions in the public sphere (i.e. particular
systems of values), beyond every single faith that, being a faith, is innerly incomparable17.
The interstitial area between religious faith and public sphere is the area of religions, meant
as cultures that have to be interpreted and acted by the human subjects. Multiculturalism
stops on the threshold of this interstitial area. It supposes a coexistence between cultures
(religions) without seeing how they can interact one another and act in the public sphere, as
to contribute to shape a common reason.
To understand how it is possible, we must observe that, appearing as a culture, the
religion depends, from the one side on faith (transcendental reality), from the other side on
how the human nature (of the person) expresses itself in the life-world relations. The theory
of interculturality may be a solution beyond multiculturalism, only with some assumptions.
Here are the main ones: first, it must be assumed that the culture does not absorb the
human nature (Belardinelli 2002); second, it must be assumed that the citizenship cannot
absorb the homme: third, it must be assumed that people's living experience in the life worlds
may find some forms of agreement (empathy, comprehension: Gomarasca 2004) that, being
pre-cultural and pre-political, may modify the cultural expressions (included religion as a
culture, not as a faith). So, the faith in transcendental realities becomes a device helping
meta-reflexivity (of the individual and the relational context altogether). In this way, the
reason's reflexivity may exceed its purely reproductive ("communicative") and
decontextualized ("independent") forms18.
There are two alternatives: either we drop reason as a veritative principle (of
recognition), or we should make efforts to "widen the range of reason". The so-called "limited
rationality" is an empirical condition (of individuals and functional systems), it is neither the
mankind's nor the civilization's destiny. That means that the expansion of reason may be
rational, namely it may happen basing on matters related to a more comprehensive reason, not
basing on dogmatic or extra-rational reasons. I will talk of it in the next passage.
17
Here, I refer to the well-known distinction between faith and religion proposed by Karl Barth, without
accepting his theory of an intrinsic opposition between them. In the perspective of the relational sociology, it does
not mean to put them in opposition, but instead to see their inner and necessary relationality.
18
As for the various forms of reflectivity (communicative, independent, meta-reflexive, fractured or disabled): cf.
Archer (2003).
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5. Secularity guided by a "relational reason" (relational anthropology) as an alternative to
multiculturalism: in search of a new "common world".
5.1. Which secularity in the public sphere?
In North America, multiculturalism serves to justify a public sphere where everyone
has the right to appear with its own identity, without relegating it to the private, though no
one is legitimated to support it as the only and true identity. In continental Europe (in the
Countries with no Anglo-Saxon tradition), instead, multiculturalism is interpreted in a
different way, which I would call "statist". This quite peculiar version of multiculturalism is
usually translated into political programs, where the State should assume a "lay" position
(i.e. to exercise an active neutrality) in front of the pluralism of values and identities, of the
ways to think, to live and to die. The State must not only recognize, meaning to let them
enjoy freedom, but also help and support diversities (for instance, concerning the sexual
preferences and the subjective identities of gender) through an interventionist welfare state.
Paradoxically, to say "multicultural society" means, to many people, not only that cultural
identities cannot be neither judged nor compared, i.e. they should make no difference in the
public sphere, but, more than that, that they should all be publicly supported by
interventions of "equal opportunities".
Even with different shapes, in front of the conflicts between cultures (sometimes
especially within the western modernity, as concerning hetero vs. the so-called homosexual
marriage) on the two sides of the Atlantic, the State's secularity is demanded more and more
as a decisional principle in the public affairs. But what is "secularity"? What does it mean to
assume a "lay position"?
To make it easier, there are two answers. (i) In the original sense (going back to the first
Christianity), secularity (laity) means "spirit of distinctions", providing autonomy to the
secular realities towards the supernatural ones, without breaking their relation; like this,
secularity leads to rational argumentation and to meeting (not to clash or to mutual denial)
between different positions, as between faith and reason. With this meaning, secularity
consists in providing public reasons that everyone may understand, even if not necessarily
share. (ii) In the modern sense (after Hobbes), secularity means to set aside from a religious
point of view. With this meaning, it corresponds to the assumption of an agnostic point of
view; secularity bec omes secularism, which implies a break between secular and
supernatural realities; the breaking of the relation between secular and not-secular realities
becomes an ideology in itself, and secularism becomes laicism (as shown by the French case:
see the Stasi Commission Report 2003).
In the EU version (where the welfare state is notably stronger and more pervading
than in North America), multiculturalism is intended more and more as an ideology
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supporting the second meaning of secularity, that is the active secularization of the public
sphere. Its strength lays on its ability to manage the difference between secular and notsecular (ultimate, i.e. religious) realities, basing on a symbolic binary code, which erases the
relational character of their distinction. But this is also its weakness. Hence, its inner crisis
and the inability to solve problems that comes from the cultural conflicts.
In the perspective of a reflexive interculturality, to give a lay answer to cultural
pluralism does not mean to put all cultures on the same level, because this solution, with its
big wicked effects, is neither theoretically nor practically viable. Secularity does not mean
indifference towards cultures, but ability to examine every culture in the light of the human
rights, namely the distinctions of a reason that can reach the deepest human truths and, as
such, pertains to human beings as such, not just to a part of them. The answer to the mere
fact of pluralism (multi-ethnical and pluricultural society) does not consist in avoiding,
annulling or equalizing all differences in the public sphere, creating a context (wholly formal
and rhetorical) of "equal opportunities", but in being able to synergically and reciprocally
manage the differences. This means to have a lay mentality in dealing with cultural relations.
Secularity does not mean to let do everything, on the only condition that the actors do not
violate the other's liberty. Such a principle is self-destroying. Secularity means tolerance,
meant not only as a mere "let do", that is a negative liberty, but instead as assertion of
positive principles of mutuality, brotherhood, solidarity towards the neighbour with its
legitimate differences, the ones that are an expression of the human. This is just the opposite
of secularity, meant as ethical neutrality and breaking of the relation between reason and
religion/faith.
5.2. The relational unity between faith and reason.
Joseph Ratzinger (2003, p. 166) wrote that: «The former relational unity, nonetheless
never completely indisputed, between rationality and faith has been torn. The farewell to
verity can never be definite. The range of reason must widen once again...». In this
expression, so rich in contents and hints, there is - in my opinion - the keystone of the
question. Nevertheless, it should be underlined that we are still far from the comprehension
of its meaning19.
I cannot stop here to discuss whether the torn has been caused (before or then, more or
less) by reason or faith respectively. The problem, on which I am concentrating, is the
following one: what is meant by "relational unity" between faith and reason, but also between
religion and culture? Certainly, it is the unity of a difference. But how do we conceive this
difference?
19
For a wider setting of the problem, I take the liberty of referring to Donati (1997).
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5.3. Semantics ofdifference, relational reason and common world.
It is necessary to elaborate a new theory of difference (as for personal and social
identity), permitting us to understand it and manage it in a relational way.
To observe a difference is to trace, or to map, as I would say, a distinction. To talk of
relational unity between two terms implies to see their distance (distinction) as a boundary
relation. The boundaries' management depend on how the differences between terms are
conceived and handled. Modern science recognizes two kinds of operations: dialectic and
arithmomorphic operations20. I suggest adding a third kind: distinction as a relational
operation, conceiving difference through a relational interface21.
Since distinction is a reflexive operation, we should refer to the ways reflexivity
surveys and judges differences. I would distinguish between three fundamental ones:
dialogic, binary and relational (triangular) reflexivity. These are three semantics of difference
(see figure 1), which are three different ways to conceive and manage boundaries (boundary
as a point of contact/clash, as separation of two domains, as a relation emerging from the
disposed combined of refero and religo). I put on the side the theories claiming that it should
be and must be possible to "cancel boundaries" because, in that case, there would be a
central conflation between the two terms.
I) Dialectic or dialogic semantics: the difference is conceived as a gap, under continuous
conflicts or negotiations, being more or less able to find an accord or a synthesis. The idea is
the one of an Ego-Alter relation, which identities have a boundary where they meet (and
eventually clash), and where they discuss and negotiate their own identities. What is
"between" them is a sort of externality for the one or the other. It concerns which of the two
terms may take possession of it or, instead, how they may share it or make it a space of
input-output (one another) sharing. Between Ego and Alter, there is no sharing of specific
identities, but rather an assertion of two identities comparing with each other. Reciprocity,
20
A dialectic concept is a concept which boundaries are not strictly defined, because it lays partly with other
concepts on their respective boundaries (in a sort of "twilight"). Namely, the concept of democracy may have
several partly overlapping meanings. To them, it could not be applied the principle of not-contradiction of the
classical logic (according to which B cannot be A and not-A at the same time; instead, if B is a dialectic concept, it
can be part of A and not-A at the same time). An arithmomorphic concept, instead, is a discrete concept, therefore
being strictly definable. For instance, numbers (1, 2, n), symbols (z, y, etc.), the concept of triangle or circle.
Computers operate with the most arithmomorphic of the distinctions, the one between zero and one. Their
characteristic is to be clearly distinguishable one from the other, because they have no defined boundaries and
they are not overlapping. According to the logic positivists, these are the only concepts qualified to operate in the
world of science. So it is clear why the positive (technical) reason is basically arithmomorphic.
21
The relational concepts, unlike the arithmomorphic ones (that are divided by a blank space: "the one or the
other"), share with the dialectic ones the fact to have boundaries that overlap and cross with other, even opposite,
concepts. But - unlike the dialectic concepts (which boundary is a shady space) - they are characterized by the
fact that the space dividing them is made of a relation, with personal and sui generis powers and properties, not
modifiable at will or by dealing, because such relation is a not-fungible qualification, with the characteristics of an
emerging effect (generable only on certain conditions).
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meant as a symbolic exchange between Ego and Alter, does not require the recognition of a
common identity; it may happen just near their boundaries, but not in their inner identity.
Cultural unity is possible only if one may find an Alter-Ego in the other, at least under some
aspects (namely, about the co-inciding part along the boundaries). Such is the Habermasian
solution, according to which the civic values define the common boundaries between
different cultures. The difference is perceived as a problematic experience of an Ego desiring
to achieve a commonality with an Alter-Ego, frustrated because of the gap, always rising
again, with Alter. The search of a common world takes the shapes of a dialectic, maybe
discoursive (e.g. the discoursive ethics suggested by J. Habermas), which can find only
temporary and situated solutions, because in principle Ego and Alter have a divergent and
clashing identities.
Such semantics support the way that reflexivity is meant in the literary field
(Sandywell 1996). It prevails in narrative, hermeneutic and semiological social disciplines.
II) Binary semantics: the difference is conceived as a discrimination and
incommunicability. The boundary between Ego and Alter is a sharp distinction (division); it
is a separation, an incompatibility, an impossibility to share mutual inputs and outputs.
Distinction is defined as a discrimination between a class of phenomena and the (negative)
complement of that class, which can coexist with purposes or not, depending on the kind of
system operating the distinction. Division generates asymmetry (i.e. as a logic of the
distinction system/environment). Alter is the denial of Ego and cannot be "included" by Ego
(and vice versa). These semantics are those supporting the theory of autopoietic and selfreferential systems, of mechanist, functional and automatic nature (Luhmann 1984). In such
version, culture is a mere by-product of the hypercycles of interactive communication. So,
there is no chance for a real common world, but only contingent mutual expectations
between Ego and Alter. What they share is only the way of turning the world (their
experience of it) into a common problem, in order to try to face the paradoxes of the systemic
functional Reason.
III) Relational semantics: the difference (the gap, the space dividing Ego and Alter) is
conceived as a relation. Such relation is not an interaction that may be defined as free in the
void. It is not mere communication. It is structured. It has a shape that emerges from the
properties of the relation's terms, because it can raise only from them under particular
conditions. The relation is constitutive both of Ego and Alter, meaning that Ego's identity is
shaped through the relation to Alter, and viceversa. The boundary is certainly a field of
conflict, of clash, of negotiation, but it is also a mutual belonging, a constitutive element of
both of them. Hence, the recognition of a real alterity (not of an Alter-Ego), because relation
calls distance, in some aspects even separation, but at the same time it calls sharing between
two uniquenesses (and not two reflections), keeping their impenetrability without synthesis.
Alterity does not mean irreconcilable contradiction, insofar as Alter is another Self ("the other
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as myself", says Ricoeur, not as a same one, but as an ipse). If Ego and Alter coincided and
were assimilable one another (= idem), the relation would fall (disappear). If, on the other
side, the relation were completely external and unrelated to Ego and Alter, we would fall on
the two former cases (semantics I and II). The cultural debate must look at the relation that,
even if in different ways, constitutes Ego and Alter, without conceiving it, as in the latter
Hegel, to be destined to a synthesis.
The western culture used, up to today, the first two semantics, wavering between
them. I am convinced that, in a globalizing climate, and as provided by the disastrous
experience of multiculturalism, a third kind of semantics is emerging.
I (dialectic semantics)
Difference as a gap (border)
between Ego and Alter in
which there is at the same
time a clash and a sharing
between them
(Habermas)22
Ego
Alter
II (binary semantics)
Difference as
autopoiesis and
incomunicability
between Ego and Alter
(Luhmann)
Ego
)/(
Alter
III (relational semantics)
Difference as dissimilar
way to live a relation,
which is constitutive both
of Ego and Alter
(Donati)
Ego
(£)
Alter
Figure 1- Semantics of difference between cultural identities.
The third kind of semantics, namely the relational one, points out the cultural
differences as they are generated by a "common world" (that "includes" Ego and Alter),
which is different and regenerated (re-differentiated) through some forms of relational
differentiation - more or less fit to the situation - between Ego and Alter.
The aim to make cultural differences/diversities not only compatible, but also
relationally significant, cannot be obtained from dialectic and binary semantics. It needs a
relational code. The secularity of the public sphere (and of the State) does not emerge, due to
the fact that it is necessary to answer to the growing cultural pluralism brought by
migrations. Instead, it corresponds to an original and primary fact, namely the different
inflexions of the human reason (on the side of Ego and Alter). Secularity is the same reason
22
In the book The inclusion of the other, Habermas claims that "inclusion does mean neither assimilative engrossing
nor narrow-mindedness towards the diverse. Inclusion of the other rather means that the community's boundaries
are opened to everyone: even - and above all - to those mutually extraneous and willing to remain extraneous".
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for existence of the human being, which builds its own personal and social identity through
the cultures it meets. Secularity is the justifying reason of cultural pluralism, when it rises
from the very social relations. To analyse thoroughly this point, it is necessary to turn to a
relational semantics that permits us to see the unexplored aspects of human rationality: the
relational reason. What does it consist of?
6. The relational reason: widening the human reason through social relations.
6.1. Understanding the relational reason.
Relational rationality is the faculty through which the human being sees the reasons
(‘good motives') concerning inter-human social relations (inherent neither in individuals as
such, nor in socio-cultural systems). The simultaneo us presence of different cultures spurs
the widening of the individual rational (axiological) choices within the individual reflexivity.
But this is not enough to configure inter(culturality) as a social relation. To achieve the
"inter" as a common ground, the public sphere needs a rationality able to give account of the
differentiation between cultures as a relational one.
In other terms, cultural identities are different because of their different "way" to
interpret and live the relation to common values. The way refers to the reason's instrumental
and normative dimensions, while "values" refer to the reason's axiological and purposeful
dimensions. The so-called policy of equality of differences, which neutralizes or makes
relations indifferent, may only generate new differences, finding no relational solution, but
only new forms of dialectic or separation.
The example of marriage is meaningful. If marriage is considered from the point of
view of the equality of individual opportunities, gender identities (male and female) are
made indifferent, because their relation (the male-female relation) has no peculiar reason to
affirm and promote. There is no more need to talk of male (i.e. paternal) and female (i.e.
maternal) symbolic codes, because it is just their relation that has been annulled. Similar
considerations are worth for the difference between monogamic and polygamic marriage.
For the ones supporting the policy of equal opportunity (the lib-lab policy, which even A. Sen
relies on), these are just two relations, offering different opportunities to the individuals, and
nothing more. They do not touch the sense and shape of the marriage relation as such. In the
relational perspective, instead, we find human values (and rights) only if we affirm the rights
to differences (of relations!).
To make social relations in-different, taking away the differential reasons pertaining to
each genus, means to cancel what is unique and specific to that kind (or form) of relation. It
means to annihilate its value as a sui generis reality. For instance, in what pertains to the
marriage example, to speak of a "unisex marriage" does cancel the nuptial value inherent in
the relation of marriage (and its consequences), since two persons of the same sex cannot
Memorandum 24, abr/2013
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have the same relation that exists between a man and a woman. In relational terms, the
unisex relation does not constitute a "couple" able to give birth to a family, properly
speaking, insofar as it is another kind of relation with different relational reasons (they may be
reasons of friendship, mutual aid, eroticism, and so on).
The reasons of the human relations are those which correspond to the dignity of the
human being. Such reasons are latent, and they may develop a criticism of the cultural drifts,
both of anti-humanism, of trans-humanism and of traditionalist fundamentalism.
In order to support an interculturality able to create consensus on the basic human
values, it is necessary to adopt a relational paradigm able to see and articulate the reasons
shaping the inter-human, what is "between" the subjects. The field of bioethics offers several
examples: the embryo's right to life, the child's right to a family, the right of an education fit
for a human being, and so on. These are all relational rights, because these are rights to
relations (neither to things nor to services). Relations have their reasons, which the
individuals may not know in an explicit (discursive, linguistic) way, but which they
understand depending on the kind and level of their reflexivity, insofar as they can see the
reasons of relations implied by the fact of being human, in the natural realm sooner than
within culture.
The so-mentioned cultural mediation can overcome the obstacles of prejudice and
intolerance, only if people are able to relationally combine values, giving them some
relational reasons.
Relational reason is able to value cultural differences without hiding them; this is why
it is able to overcome the forms of distinction between cultures, which have been dominant
in the past (i.e. the segmentary differentiation in primitive societies, the stratification of
cultures by social stratum/ status in premodern societies, the functionalist differentiation in
the first modernity). These are all forms of differentiation unable to reach a shared public
reason within a globalized society.
Relational reason shows us the alternative of the relational differentiation, namely the
creation of a religiously qualified public sphere, where religions might play the role of
defining the public reason, since they steer people into a reflexive comprehension of their
cultural elaboration within the vital worlds.
Such reflexive understanding relies upon an expansion of reason, feeding and
increasing it. Therefore, it is possible to go beyond modern western rationality, which is still
standing at the distinction between instrumental and substantial rationality23. According to
this distinction, the relation to cultural values is not-rational. It may just be affective or
23
'Instrumental rationality' is conceived as the one that, given certain aims, focuses on the means to realize them;
the means are technical instruments to achieve 'values' which, by their nature, are indisputable and
incommunicable (Max Weber's polytheism of values). The instrumental reason searches for convenience, utility,
efficiency, while 'substantial rationality' is the one that focuses on values as ultimate concerns subjectively defined
by the agent/actor.
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traditionalist, because the very values are not-rational. Relational reason comes to tell us that
just the opposite is true. It shows the different modalities through which Ego can relate with
values, besides as with the Other, not basing on feelings, moods, emotions, irrational
preferences or acquired uses, but basing on reasons that do not consist of "things", but of
goods (values) linked to properties and qualities of the present and future relations. These
are the relational goods.
Here I suggest to revise the theory of rationality as it was formulated by Max Weber.
Human rationality cannot be reduced to the two types theorized by Weber, i.e.
Zweckrationalität and Wertrationalität, at least as they have been interpreted by the social
sciences during the last century. These two concepts are full of ambiguities. As a matter of
fact they have led to innumerable confusions. Zweckrationalität refers to the calculation of the
means useful to achieve a goal/target, but the goal can be seen also as a means, so that the
observer cannot distinguish between what is a means and what is a goal. Therefore the
concept becomes useless. Wertrationalität refers to the value as it is subjectively understood
by the social actor/agent, but the value can be either an objective good, valuable in itself, or a
mere subjective choice or preference. The concept does not allow any distinction between the
two. That is why the reformulations of the Weberian theory of rationality made by many
authors (such as T. Parsons and J.C. Alexander, who have translated them into the couple
instrumental rationality vs normative rationality) proves to be wholly unsatisfactory and
misleading.
In order to overcome these shortcomings, I propose a redefinition of rationality as a
faculty of human agency constituted by four components or dimensions (which must be
interpreted within the relational version of AGIL).
1. The component of instrumental rationality, which refers to the requisite of efficiency;
it concerns the means; and, as such, it is the adaptive dimension (A) of thought and action;
its analytical correlate is the economic dimension of rationality, while its empirical
macrostructural correlate is the economic market.
2. The component of goal oriented rationality, which refers to the situated goals; it
concerns the achievement of definite targets (efficacy), and therefore it is the goal-attainment
dimension (G) of rationality; its analytical correlate is the political power, while the empirical
macrostructural correlate is the political system (the state).
3. The integrative dimension of rationality, which refers to the dimension that links the
other three dimensions of the human reason; it is the normative dimension I in the AGIL
scheme; it decides about the internal morality of rationality and preserves its autonomy
towards its environment; it is the rationality of the relation in itself; that is why I call it
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relational rationality (or, in German, Beziehungsrationalität) which means that it is the nomos
building dimension of rationality24. In other words, social relations do possess reasons that do
not pertain either to the individuals or to the social systems. Individuals and systems may
not know these reasons, and certainly they do not possess them. The dimension of relational
reasons has as its analytical correlate the social bond, while its empirical macrostructural
correlate is civil society defined as an associational world.
The value dimension of rationality corresponds to the L dimension, i.e. the directive
distinction that guides human agency towards what has a value in itself (what is an end in
itself, what has a dignity in itself, or what lies behind the actor's ultimate concerns, at the
border with the ultimate realities). This is the component of value rationality, or axiological
rationality (or, in German, Würderationalität), the rationality of what has a true worth, what is
worthy and good in itself. One should be well aware that value rationality refers not to a
situated goal (the Wert, which has or can have a price, as it is in the Weberian
Wertrationalität), but to a value which has no price, that no price can buy25. Axiological
rationality is not contingent upon the situation. It inheres to the dignity of what deserves
unconditional respect and recognition (Würde) in so far as it is distinctive of what is human
(VS what is non-human or inhuman). Therefore it concerns first of all the human person as
such (not the individual's behaviour)26. Its analytical correlate is a value per se, i.e. a symbolic
reference to what is not negotiable, what is distinctive of a person or a good in respect to
other realities. Its empirical macrostructural correlate is the religious system, whereas
religion must be understood as a cultural phenomenon different from the religious faith
(which is transcendent in respect to culture, since faith transcends human action and marks
the border between L as a culture and the supernatural world).
24
The moral norm is what, at the same time, binds (connects) the other three dimensions (A,G,L) and
distinguishes the relative autonomy of any social relation from other kinds of social relations (according to
MINV/ESAG scheme: Donati 2011). For example, the relational rationality of the family as a social relation
consists in connecting its human dignity (L) with its situated goals (G) and the instrumental means to achieve
them (A). So that the autonomy of the relation-family is configured as distinct from other types of social relations
which are not family. although they can have some dimensions in common with it.
25
Vittorio Mathieu (2004) rightly suggests to distinguish between Wert (the value of what has a price or monetary
equivalent) and Würde (the value which has no price, i.e. anything that cannot be treated as a means and no
money can buy). Anyway, he does not see the value of the inter-human relation, and therefore he fails in
indicating the relational reason which links (mediates) the value in itself (axiological reason) and the other
dimensions of rationality.
26
The value rationality (or axiological rationality) is inherent to the process of recognition properly understood in
its three aspects: 1) as a cognitive identification of an object; 2) as a validation of the truth it bears with it; 3) as
gratitude or thanks giving. On these semantics see Donati (2007).
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Goal oriented rationality
(rationality of 'values' as situated goals)
\
I
Instrumental rationality
Relational rationality
(rationality of resources and
means to achieve the goals)
\
(rationality of the relation which
links the other dimensions L,A,G)
L
Axiological rationality
(Würdera tionali tät)
(Rationality as a gratuitous recognition
of what has an inalienable dignity, i.e. what is a good in itself)
Figure 2 - The "complex of reason" (or: the human reason as a complex faculty).
The four dimensions of the Reason (instrumental, goal oriented, relational, and value
oriented to what is worthy in itself) are the constitutive dimensions of what I call the
"complex of the (human) reason". Or, if you like it, the reason as a complex human faculty. I
synthesize this way to understand the human reason in a scheme (figure 2) that must be read
and interpreted in the light of the relational paradigm (Donati 2011). Within this paradigm,
every component is essential in order to have the emergence of a full human reason, both as
a theoretic and practical faculty. The recognition, understanding, explanation and
implementation of what is 'rational' are outcomes of that complex faculty which we call
reason as seen from a relational standpoint.
From the sociological point of view, the human reason is a social emergent
phenomenon. As a matter of fact, a purely 'individualistic' reason does not exist. Rationality
cannot be a faculty operating outside social relations. Reason is a faculty which emerges
from the operation of its constitutive abilities and potentialities. The latter have their own
different properties. Reason is a faculty which comes out as an emergent effect from the
combination, interaction and interchange among the four fundamental dimensions which
constitute it (figure 2).
Those forms which we call "procedural rationality" and "deliberative rationality" are
expressions of particular combinations among the above four dimensions (figure 2). Here I
cannot comment upon these (and other) forms of rationality for lack of space.
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6.2. How does relational reason operate?
Relational reason is that human faculty that operates:
(i) with relations (namely, in the perspective of relations, not of individuals or systems),
in a contextualized way, in the perspective of culture as an expression of a community; it is
made of relations that are put into practice or could be practiced basing on the values of such
culture;
(ii) for relations (namely, in view of improving relations that promote some definite
values of such culture);
(iii) in relations (namely, through relations, acting - practically and analytically - on
existing relations, in order to create new ones).
On the whole, relational reason comes into existence every time that the reason for action
includes the good ofcommon action.
Relational reason is therefore the reason of a cultural mediation, intended not yet as
"betrayal" (F. Crespi) or "paradoxicality" (the paranoia of J. Derrida and N. Luhmann) of
people's free natural acting, but as the expression of the need of the human living experience
to be naturaliter contextualized within a relation, to be directed towards a mediation, to
operate through a mediation.
Relational reason is that faculty, proceeding through four components (aims, means,
rules, values), relating them inside and with their "environments". We may distinguish the
relational reason when it operates inside (theoretical reason = intentions, means, rules,
values) and outside (practical reason = heteronomy, instrumentality, autonomy,
gratuitousness) (Donati 2011).
In such a framework, values are necessarily on the border between reason and its
transcendental environment (faith). On such border, reason, culture and faith necessarily
interact. Values should be seen not as models to maintain and preserve (in an inertial vision
of the social system, as done by Talcott Parsons), but as propellers of social relations. Cultural
values are not only bonds and limits (with zero energy and maximum function of control),
but also resources and perspectives of sense (having a proper energy, often more entropic
than negentropic).
With his theory of incompleteness of formal systems, Gödel taught us two things: (i)
each system needs to relate to an other than oneself, to find a situational and formal
completeness [in the formulation of this Author, the formal needs the informal (intuition,
creativity)]; (ii) the "total completeness" comes from the relation between all the systems (or
rather, it lays on the relations between the systems' relations). This is worth also for reason,
when considered as a system oriented to knowledge and practical action.
If we conceive of reason as a reflexive faculty of the human being, consisting on the
ability of one's I to converse with its Selfon its own I and the world, then to expand reason
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means to expand such reflexive ability (choosing aims, means, rules and values) through
relations implied with the Self and the world, through its own Self. Thus permitting the
person to root its own cultural identity inside its own human nature, expanding outside it in
the culture, and interacting with it in the various spheres of life, where the I bec omes Me,
We, and You27.
The Greek Logos says: "know yourself", as it was written in the front of the temple of
Apollo at Delphi. The exortation nosce te ipsum (Saint Augustine) has become the focus of
introspection in the Christian spirituality. Relational reason observes that such self-reflexive
precept risks to fail and to fall off into subjectivism. It makes us understand that, without the
Other, the I cannot know itself in a fully human way. Therefore, the Logos should make itself
relational and recognize that: "without You, who are Other than Myself, I cannot know myself
(where You is both the Other human being at the level of the immanent existence horizontally - and God at the transcendental level - vertically). Relational reason shows that
there is no opposition between Me as the Other (Idem) and Me as a sole and unique being
(Ipse), as claimed by some philosophers; instead, there is synergy, because the singleness of
the person (ipseity) emerges from the background of what is common (sameness).
To talk of relational reason is to enter the reflected thought (reflexivity). It requires
changing the observational point of view, being no more the one of the single terms or of a
presumed "system", but that of a relationship. It means to enter into another order of
knowledge (the order of relationality).
Relational reason offers good reasons, autonomally understandable by everyone
irrespectively of his/her specific religious faith, because they refer to the development of the
human nature as a reality provided with own properties and powers as regards culture, even
if culture should combine with nature28. What makes "good" the agent/actor's reasons is
their relational character as referred to the human, where "human" stands for what can be
only an end in itself, never a means to other than itself, because it refers to the speciesspecific quality of the human person, perceivable and recognizable by everyone.
6.3. Relational reason offers the necessary mediations for a veritative recognition of the cultural
identities.
The citizenship we need must allow people, families, social groups and communities,
belonging to it, to combine their own culture (and religion) with a growing differentiation of
the individual (due to the various circles of identities intersecting in him/her). Thus, the
individual should be put in the position to identify its own belongings and to determine the
hierarchy of his/her ultimate concerns.
27
Me as a social agent in primary relations, We as a corporate identity, and You as an individual actor in a social
role (cf. Archer 2003).
28
In the Catholic doctrine, these are the so-called preambulafidei.
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If everybody, whatever his/her culture/religion, may identify in the slightest of a
common world, this world cannot consist neither of a state citizenship neutralizing social
relations, nor of a multicultural citizenship making the relations between culture indifferent,
because identity depends on relations.
The common world is the necessary mediation elaborated by the reason (commonly
shared by the human beings), so that every single person may live in the public sphere, even
being of different religion or faith. Only in the interface of the inter-subjective relation,
reason recognizes the reasons of faith, and faith recognizes the reasons of Reason. Only
through their relational values, Reason may open to faith and vice versa.
The lack of relational mediation puts all religions, and not only Christianity, into crisis.
We may see it through the growing entropy of all the world's religions. Christianity is
certainly the one that has absorbed and expressed the most the spirit of distinctions, thus the
most differentiated inside as regards the use of reason. It is inside, and not outside
Christianity, that anti-Humanism and trans-Humanism do generate (for the eastern
religions, these terms ha ve little or no sense).
The differentiating reason of western modernity produced multiculturalism as an
ideology. Only relational reason may cure the consequent pathologies, drifts, deviations and
implosions.
The common world is secularity inside the natural law, but it may be caught only
updating the notion of natural law by means of relational reason. The attempts to redefine
the natural law by means of orders of recognition of the past, as the ancient ones of narrative
feature and the modern ones of proceduralism (Ferry 1991), are no more suitable.
Secularity needed by multicultural societies consists of a new spirit of distinctions, which
does treat social relations neither as dialectic oppositions, nor as binary ways to discriminate
human persons. Such a spirit must transform social relations in an experience of recognition
within a complex circuit of mutual gifts. This is a relational spirit, because it uses relational
semantics of distinctions, as actions inspired by the rule of reciprocity. In this way, it
generates a secularity, which is a recognition of the relation between different identities, as a
free act of gift and acceptance of its responsibility (in fact, the gift is an answer to former
gifts, and it leads to a reciprocation).
The question of the recognition of different cultures implies three steps, related
between them: the attribution of an identity, its validation and a sense of gratitude
(thankfulness) for its existence. These three steps represent the gift circuit that, differently
from the animal realm, is a constituent of the human's sociability. Human recognition would
not be possible if the identity was not a relational one, and if the common world was not
relationally constituted.
Finally, it is clear that the biggest and more specific performance of the relational
reason is the one of solving the inner difficulty of multiculturalism (namely, the problem of
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recognition), through the relational observation and action: recognition is observed and
acted as a gift circuit.
The relational expansion of reason can be understood by all cultures, included the
eastern ones. It assumes a particular meaning when it is deeply rooted to the Christian idea
of human life and of the existence in general, because of its specific trinitary symbolism.
The adoption of this perspective allows society to exceed the limits of liberal tolerance.
While liberal tolerance is without relations, the Christian one passes through relations. The
Christian one is able to understand the sense of all faiths and religions, and of the relations
that they can create between them by means of the human (lay) reason. Its reason lies on the
fact that a principled tolerance may be flexible about means; it is a form of rationality able to
combine value with differentiated rules and instruments. This is, in fact, the relational
reason.
The route of the relational reason does not assert neither a monistic uni-verse, nor a
multi-verse without any order, nor an undifferentiated pluri-verse, but an ordered interverse, a world of diversities oriented one another, on the standard of a reciprocal rationality,
fit for a convergence on common experiences and practices, which are independent from the
single culture as a symbolic product (included the language).
7. Synthesis and perspectives.
The vicissitudes of multiculturalism show that we live in a world, in which the
Hobbesian solution of the social order is no more suitable. Institutionalized individualism
(individualistic liberalism), assessed by the Hobbesian solution, falls into crisis. There is no
more a political power (Leviathan) that may guarantee individual liberties, neutralizing the
cultural (and religious) conflicts within the public sphere. The ideology of multiculturalism
is not a solution to the ethical void which widens in proportion to the fall of the Hobbesian
national State. Which are the alternatives?
A "universal culture" is not thinkable as a world culture (corresponding to the world
system) in a functionalist meaning. The current debate on the difficulties to achieve a
theoretical universalism in culture (Browning ed. 2006) clearly demonstrates it. The Christian
thought may certainly propose its own vision of universalism, basing on its social doctrine
(Crepaldi 2006). But, without a relational interface, the Christian vision is inevitably
perceived as particularistic. A universal culture is possible, instead, as the spirit of an
ethically qualified secularity, constituted as a common world, which may be drawn through
the relational reason, in relationally differentiated social spheres.
Beyond the deficits of multiculturalism, the solution could be provided by a renewed
secular sense of culture, as a common learning space through practices of daily life, where
mutual recognition sets aside from the world of signs and cultural traditions, in order to
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grasp the primary experiential sense of the inter-human. In such a situation, the lay character
could assume the connotation of an independent reason, looking at the sense of human
relations, without depending on justifications based on the sole faith (namely, committed to
dogmatics inside the single religion). In order to let such a secularity emerge, it is necessary
that people and cultures learn to operate differences, no more in a dialectic or binary way,
but through a relational symbolic code, according to which the autonomy of subjects is not a
separation (or continuous clash between them), but a choice ofthe "environment" to depend on.
Relational reason should have the task to avoid every kind of conflation in the cultural
conflicts: top-down conflations (as in the case of Jacobin assimilationism), bottom-up
conflations (as in the theory of an unlimited community of discourse), and central conflations
(peculiar of the relationism that we find in the pragmatics of a coexistence understood as a
conflation or hybridization of cultures).
When relationally intended, secularity promises a new coexistence between cultures,
not based on the waiver to their content of civilization, but on its renewal, through the
recognition that one's own identity is relationally constituted through the relation to the
Other. This idea is the backdrop of what I call societal constitutionalism.
Today, many people are willing to recognize that, to say it in the words of Joseph
Ratzinger (2005, 1 aprile), the self-limitation of the "positivist reason" (even adapted to the
technical ambit) implies a mutilation of the human being. Non-believer laymen, atheists and
agnostics claim it too. Everyone, today, put the evils of a globalized society down to the
technical reason, and to the domination of an economy pushed forward by a science without
ethics. Certainly, the positivist reason is neither universal, nor complete, nor sufficient to
itself. The roots of reason are wider ones. It is shown by the fact that the globalization is
stimulating new "local" cultures.
To see these roots, dipping in the man's nature, it is necessary to produce what has
been called by Max Weber "cultural breakthrough". Christianity has done it during two
millennia, getting done a qualitative leap of the world's process of rationalization. But today
it is frozen. This is because the couple faith-reason is no more able to de-mythicize false idols.
To do it, it should structure the unity of such difference in a relational way, through the
relational reason. That is the only way for reason, which grew on the Judaic-Greek-Christian
roots, to operate a new cultural breakthrough.
We need new roots to survive. We must find a new imagination, which is together
sociological and transcendental, in order to support a meeting between cultures, being able
to get to the root of man's dignity, namely God himself. The project to give back Christian
roots to Enlightenment has no possibility, if we do not look to the reasons of the social
relations. To think of reason as a Logos may be helpful to the individual to provide a new
access to culture, and to the intercultural debate, but it cannot be closed inside the religion of
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the Book. It must open up to historically contextualized human relations. It has to learn from
everyday life practices in so far as they are enlightened by a reflexive reason fully relational.
There is a lot to learn from a reason able to expand itself towards those ultimate
realities that cannot be reckoned, that are not technical-scientific, bringing inside them the
deepest sense of the human. We should be aware that this target requires a relational
development of reason. Social relations contain the reasons that operate the mediation
between the religious faith and the public reason.
Not willing to exceed the limits of my sociological competences, I tried to argument
here the theory, according to which the way we observe the relation between man and God,
mediated by the Logos, needs a renewal. It is the connection (relation!) between the mankind
(perfect) and the divinity (perfect) of Jesus Christ that must be inquired again, since these are
neither two juxtaposed realities, nor immediately coinciding with the only Person29. To
understand such relation, which is the keystone of the co-existence of so many and different
"reasons" (cultures), it is necessary to resort to a reflexive semantics of difference (between
the human reason and its supernatural environment, as between cultural reasons), which is a
relational semantics. This is the meaning of the claim according to which religious faith can
and shall liberate reason from its blind spots.
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29
It is worth while noticing that Joseph Ratzinger has claimed that Christ's identity is fully relational. I quote:
"Jesus is entirely «relational», in his whole being he is but a relationship with his Father (...) The «I am who I am»
lies wholly within the relation between Father and Son" (Gesù di Nazaret, Rizzoli, Milano, 2007, p. 399).
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Note on the author
Pierpaolo Donati is Professor of Sociology at the Department of Sociology and Business
Law of the University of Bologna (Italy). E-mail address: [email protected]
Data de recebimento: 26/01/2013
Data de aceite: 09/03/2013
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Resenha: Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos
Review: Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos
Marina Massimi
Universidade de São Paulo
Brasil
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Montes Claros, MG: Unimontes.
A Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos publicada em 2007 e patrocinada pela
Prefeitura de Montes Claros, pela Unimontes e pela Fundação Nestlé do Brasil e organizada
pela professora Marta Verônica Vasconcelos Leite, nos apresenta um conjunto de dezesseis
volumes reunindo o patrimônio cultural da cidade, produzido por intelectuais nativos ao
longo dos cento e cinqüenta anos de história. A organização da Coleção teve como principal
objetivo suprir a demanda das bibliotecas públicas e escolares de Montes Claros e região,
onde essas obras sempre eram procuradas, mas só existiam em coleções particulares.
Evidenciar como um centro urbano cresce ao produzir cultura é exemplo concreto de
quanto H. Arendt (1954/2003) afirma ao definir cultura como expressão da "vida humana
como tal necessitando de um lar sobre a terra durante sua estada aí" (p. 262). Este lar terreno
se torna um mundo "quando a totalidade das coisas fabricadas é organizada de modo a
poder resistir ao processo vital consumidor das pessoas que o habitam, sobrevivendo assim a
elas. Somente quando essa sobrevivência é assegurada falamos de cultura" (idem). Arendt
remete-nos ao significado etimológico original da palavra, latina, cuja raiz é o verbo colere
que significa cultura, habitar, cuidar, criar e preservar, sendo originalmente associado às
atividades da agricultura e ao cultivo da terra. Acompanhando o pensamento de Arendt
podemos ver como uma cidade, onde um grupo de pessoas estabelece sua habitação e modo
de sobrevivência é lugar também produtor de cultura. Neste momento atual em que tantas
cidades brasileiras correm o risco de se tornarem principalmente lugares de consumo, a
proposição da presente Coleção evidencia a existência de experiências sociais e culturais que
afirmam sua identidade na direção contrária.
Com efeito, na Coleção Sesquicentenária, encontramos produções de intelectuais nativos
da cidade de Montes Claros que se debruçam no conhecimento de sua realidade local
segundo diversas perspectivas: a da história, a da memória, a da produção literária que
tematiza a realidade local por objeto. Compõe-se assim um mosaico rico e colorido de cuja
leitura emerge a vitalidade cultural e social da cidade e da região. Trabalho exemplar em sua
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composição e edição, também no que diz respeito a ações de conservação do patrimônio
cultural do país, visando auxiliar na consolidação das identidades locais, resgatando a
memória e constituindo-se como material educativo cuja transmissão tem em vista a
formação das jovens gerações.
Inicialmente, destaca-se um conjunto muito consistente de trabalhos historiográficos:
Montes Claros: sua História, sua gente e seus costumes, de autoria de Hermes Augusto de Paula,
dividido em três volumes. Editado em 1979, o livro, como o autor destaca em seu prefácio
"foi escrito em quatro, nos intervalos da labuta profissional" e pretende ser uma coleção de
fatos históricos ocorridos em sua terra natal. Divide-se em seis partes: principais fatos
históricos (vol. 1, pp. 3-38); geografia histórica (vol. 1, pp. 41-161), personagens principais da
vida do povo (vol. 1, pp. 163-285), miscelânea histórica (vol. 1, pp. 287-310), genealogia (vol.
2, pp. 3-220), antologia montes-clarense (vol. 2, pp. 221-285), costumes e lendas (vol. 3, pp. 3189). As Efemérides Montesclarenses, de Nelson Vianna, divididas em dois volumes, como
afirma o mesmo autor, são resultado de anos de pesquisas em arquivos, jornais, revistas,
livros, depoimentos orais, correspondências, e de todas as fontes possíveis sobre a história do
município de Montes Claros de 1877 a 1962. Montes Claros: breves apontamentos históricos,
geográphicos e descriptivos é a edição fac-símile da monografia de Urbino de Sousa Vianna
sobre o Município de Montes Claros. Impressa em Belo Horizonte em 1916, foi apresentada à
Câmara Municipal de Montes Claros que à época a adquiriu em número de cem cópias. A
monografia fora elaborada para suprir a necessidade da própria administração local quanto
ao conhecimento histórico do município e da região. Traz informes acerca da história
propriamente dita; da instrução e da cultura, do mundo judiciário, da geografia, da flora e da
fauna, dos mineirais, da economia, da religião e do folclore. Raízes de Minas, de Simeão
Ribeiro Pires, foi elaborado em 1979 e premiado em concurso sobre história mineira. O autor,
engenheiro civil, relata que tendo residido na região da divisa entre Minas Gerais e Bahia
durante a obra de prolongamento da ligação ferroviária norte-sul do Brasil, te ve seu interesse
despertado pela história de algumas figuras significativas da história local (os Condes da
Ponte ou membros da Casa da Ponte), de modo que a escrita do livro condensa as pesquisas
por ele realizadas para responder a este interesse. História Primitiva de Montes Claros, de
Dário Teixeira Cotrim, publicada originalmente em 2003 pela Editora da Universidade de
Montes Claros, propõe uma pesquisa atual e aprofundada sobre as origens da história da
cidade e da região do Médio São Francisco. Em suma, com este primeiro conjunto de obras,
pode-se reconstruir através a história da historiografia de Montes Claros e região.
A Coleção Sesquicentenária propõe também a reedição de documentos referentes à
memória e cultura local. Foiceiros e Vaqueiros, de 1956 e de autoria de Nelson Vianna (também
ilustrador do texto), agrimensor e morador de Montes Claros ao longo de trinta anos, é uma
coletânea de narrativas acerca de fatos e pessoas do local. Narrativas colhidas em relatos
orais de informantes encontrados em muitos casos durante o desenvolvimento de suas
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atividades profissionais, e reelaboradas e transcritas pelo autor, constituindo-se como rica
interface entre cultura coral e escrita, transmitindo memória e construindo a cultura. Janela do
sobrado: memórias, de João Valle Maurício, publicado pela primeira vez em 1992, é também a
obra de "um contador de casos" que resolveu "escrevê-los"; colocando-se do mesmo modo
na interface entre oralidade e escrita, que tão profundamente e peculiarmente marca a
cultura brasileira. Contar casos, nos diz o autor, implica ser de certo modo "memorialista",
sendo os casos contados "lembranças abraçadas em pedaços de emoção"; ou, em outros
termos, "memórias da minha gente, da minha terra, da minha vida". Tendo o mesmo
objetivo de "contar histórias", Montes Claros era assim..., de Ruth Tupinambá Graça, foi escrito
em 1986: trata-se de conjunto de "lembranças guardadas" de festas, celebrações, lugares e
personagens da cidade, mosaico da riqueza da cultura popular, vivenciada e narrada pela
escritora. Serões Montesclarenses, do cronista Nelson Vianna, originalmente composto em
1962, propõe um "passeio pela Montes Claros do passado", apresentando memórias da vida
passada da cidade. Nelson, o personagem de Haroldo Lívio de Oliveira (1995) coleciona
crônicas publicadas em O Jornal de Montes Claros pelo autor e constitui-se expressão
significativa da imprensa regional mineira.
Já em Rebenta Boi, de 1958, Cândido Canela recolhe líricas inspiradas no mundo da vida
do interior mineiro e que também procuram utilizar-se da linguagem popular. Para a
compreensão dos termos mais usados, no fim do livro o autor propõe um vocabulário. A
Menina do sobrado de Cyro dos Anjos, publicado pela primeira vez em 1979, é o volume mais
famoso da Coleção Sesquicentenária, narrativa autobiográfica de um dos intelectuais de
Montes Claros mais significativos no plano nacional. Nesta obra, o autor realiza uma original
reflexão autobiográfica e memorialística acerca de sua formação e de seu universo cultural e
social de pertença.
Memória, história, autobiografia: documentação importante também para os
psicólogos interessados em apreender as modalidades de subjetivação, próprias da cultura e
moldadas ao longo da história. Exemplo concreto de uma ação inteligente e eficaz orientada
para a preservação e a proposição de uma dada tradição cultural, a Coleção Sesquicentenária
de destaca por evidenciar a riqueza desta tradição local e seu valor universal.
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(Original publicado em 1954).
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Massimi, M. (2013). Resenha: Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos. Memorandum, 24,168-171. Recuperado
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Nota sobre autora
Marina Massimi é Professora Titular e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e
Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicas na
Cultura Luso-Brasileira. Contato: Departamento de Psicologia e Educação. Avenida
Bandeirantes, 3900, CEP 14040-901, Ribeirão Preto (SP) / Brasil. E-mail:
[email protected]
Data de recebimento: 29/08/2012
Data de aceite: 08/09/2012
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