baixe aqui o livro - Igreja Vineyard Central
Transcrição
baixe aqui o livro - Igreja Vineyard Central
JOÃO COSTA 1 2 MISSIONAL MISSIONAL uma jornada da devoção à missão por João Costa Publicado pela Interferência Editora Primeira Edição: 2012 Editores: Sandro Wagner e Márcio de Souza Revisão: Márcio de Souza Capa e Diagramação: Sandro Wagner ISBN: 978-85-65202-11-4 www.editorainterferencia.com [email protected] twitter.com/EdInterferencia facebook.com/editorainterferencia É permitida a reprodução de partes deste livro, desde que citada a fonte e com autorização escrita dos editores. JOÃO COSTA 3 “‘Entramos no Reino mediante nossa entrega, humildade e confiança e disposição de começarmos a trabalhar nosso coração, a fim de nos tomarmos o tipo de pessoa que Deus deseja que sejamos’ - James Bryan Smith - Sempre vi no João essa sua entrega ao Senhor, seu ardor pela leitura e a disposição de servir, porém com coração simples que é a marca daqueles que optaram em levantarem a bandeira do Reino. Esse livro é um material que ajudará aqueles que trazem dentro de si a chama de plantar e viver igreja, principalmente no contexto urbano que é o contexto vivenciado pelo autor na sua jornada como plantador de igreja. Um livro que aguçara no leitor o desejo de buscar um caminho que o leve a fazer parte de uma comunidade de gente ávidas por um coração e caráter moldados pelo Jesus de Nazaré.” Luciano Manga Pastor da Igreja Vineyard Rio, líder de adoração e conferencista. “Um imenso prazer recomendar a leitura do texto em questão. Isto porque, em meio a uma pulverização do pensamento eclesial, torna-se mais do que necessário a leitura deste texto, para aqueles que buscam compreender o devido papel da igreja na atualidade.” André Esteves Psicólogo e mestrando em Ciências da Religião (Mackenzie/SP). “É com grande satisfação que recebo essa primeira obra produzida pelo João Costa. A temática da natureza missionária da igreja é sempre relevante e, no momento em que vivemos, extremamente importante. Olhar para a igreja compreendendo-a como o povo de Deus em missão no mundo é manter a centralidade do Evangelho na vida e caminhada da Igreja. João não escreve a partir de conceitos meramente teóricos, mas da sua vivência e prática como um verdadeiro pastor missional. Leia o livro, você não vai se arrepender….” Ricardo Costa Pastor da Comunidade Presbiteriana Vinhedo, diretor de Treinamento da MPC do Brasil, mestre em Missiologia. 4 MISSIONAL “João Costa é um homem de Deus, que ama seu Senhor e que vive para glorificar o nome daquele que o arregimentou. Recomendo o livro “Missional, uma jornada da devoção a missão” a todos aqueles que desejam viver e pregar o evangelho de forma contextual e missional. Tenho certeza que através da leitura desse material você será ricamente abençoado, bem como desafiado a servir ao Senhor com seus dons, talentos e ministério.” Renato Vargens Conferencista, escritor, plantador de igrejas e pastor da Igreja Cristã da Aliança. “Foi uma grata surpresa conhecer o João Costa há cinco anos atrás. O mais surpreendente é perceber o quanto ele está crescendo e ampliando o seu mundo. A prova cabal de tal expressão é o seu livro. De maneira ágil e dinâmica, João apresenta o cristianismo pra uma geração midiática, pluralizada, líquida e secularizada. O seu texto é um convite desafiador a todos aqueles que anseiam por uma teologia missional bíblica e santa.” Vladimir Oliveira Souza Pastor senior da PIB do Cosmorama, professor de Teologia Sistemática e escritor. “Para os que buscam não somente um testemunho da afirmação do poder do evangelho da cruz na cidade, mas também uma articulação bem elaborada de como fazê-lo, recomendo esse livro do pastor João Costa, que é uma exposição bíblica, teológica e contemporânea da tarefa missionária da igreja”. Franklin Ferreira Diretor e professor de Teologia Sistemática e História da Igreja do Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos-SP. JOÃO COSTA agradecimentos À minha amada esposa Mariana, pelo amor, apoio e companhia na jornada. Aos meus pais João e Regina, e irmã Neninha, por terem me cercado de livros desde pequeno. Aos pastores e missionários que foram e ainda são mentores e amigos na minha jornada. Aos amigos e editores Márcio e Sandro por acreditarem e apoiarem à loucura da pregaçao. À igreja local onde sirvo junto com meus irmãos, a Comunidade Vineyard, que tem aceitado o desafio de ser uma família de filhos semelhantes a Jesus. 5 6 MISSIONAL JOÃO COSTA 7 sumário prefácio . . . . . . . . . . . . 9 apresentação . . . . . . . . . . . . 11 introdução . . . . . . . . . . . . 13 PRIMEIRA PARTE Por que Somos Missionários? Porque Deus é cheio de Glória. Capítulo 1 - Glória e Graça . . . . . . . . . . . . 21 Capítulo 2 - O Missionário Definitivo . . . . . . . . . . . . 31 Capítulo 3 - Esperança na Eternidade . . . . . . . . . . . . 41 SEGUNDA PARTE Por que Somos Missionários? Porque Somos a Comunidade de Discípulos Capítulo 4 - Senso de Pertencimento . . . . . . . . . . . . 51 Capítulo 5 - Reconhecimento e Revelação . . . . . . . . . . . . 61 Capítulo 6 - Comunicação Expressa . . . . . . . . . . . . 71 TERCEIRA PARTE Por que Somos Missionários? Porque Somos a Cidade de Deus Capítulo 7 - Proteção . . . . . . . . . . . . 81 Capítulo 8 - Santificados na Urbe . . . . . . . . . . . . 89 Capítulo 9 - Fronteiras da Contextualização . . . . . . . . . . . . 99 QUARTA PARTE Por que Somos Missionários? Porque o Mundo Carece de Deus Capítulo 10 - Expandindo a visão . . . . . . . . . . . . 111 Capítulo 11 - Perspectivas da Unidade . . . . . . . . . . . . 119 Capítulo 12 - Ágape . . . . . . . . . . . . 125 8 MISSIONAL JOÃO COSTA 9 prefácio Nossa geração precisa de missionários urbanos comprometidos com a relevância cultural. Porém, ser culturalmente relevante em detrimento do conhecimento do evangelho e da profundidade teológica é pura cosmética religiosa ou, dependendo do caso, arreligiosa. Nossa geração precisa, então, de missionários urbanos comprometidos com o conhecimento do evangelho e a profundidade teológica. Porém, conhecer o evangelho e ter notório saber teológico em detrimento do conhecimento da realidade que nos cerca é como esconder um farol debaixo da cama. Ou seja, não precisamos de missionários “ou-ou”. Por exemplo, ou teólogo ou evangelista; ou conservador ou relevante. Essa lógica cria uma falsa dicotomia. Precisamos de missionários “tanto-quanto”. Essa era a lógica de Jesus. Ele era profundo do ponto de vista teológico tanto quanto era atraente, relevante. As pessoas se aproximavam dele para ouvi-lo (Lc 15.1). 10 MISSIONAL Esse é o ponto de partida das reflexões de João Costa em Missional: uma jornada da devoção à missão. Acredito que este livro será uma ferramenta muito útil para aqueles que acreditam que a ortodoxia cristã não é um empecilho para a relevância do evangelho hoje. Pelo contrario, no retorno às nossas origens, encontramos um motor que nos empurra para frente, inclusive nos tornando, ao contrário do que parece, pessoas a frente de nosso tempo. Parabéns a Editora Interferência por acreditar nesse livro que não bajula nossa cultura, mas recebe-a de forma mais verdadeira que a de um mero beijo no rosto. Jonas Madureira teólogo e doutorando em Filosofia JOÃO COSTA 11 apresentação O Conceito de ser Missional não tem nada de novo. Missional nada mais é do que um adjetivo para a palavra Missão. Então qual o sentido deste livro? Aqueles que me conhecem sabem que eu espero ver igrejas mais centralizadas no Evangelho. Igrejas plantadas com o objetivo de exaltar a Jesus. Apesar dos vários avivamentos ao longo dos últimos trinta anos, o Brasil ainda não experimentou muitas de transformações culturais e sociais como real resultado de milhares de novas igrejas e milhões de novos cristãos. Temos ainda os mesmos problemas sociais e, em alguns casos, eles são ainda piores: a pobreza, corrupção e violência ainda existem apesar de milhões de novos evangélicos. Isto nos faz pensar na seguinte questão... Alguém poderia pensar que o Evangelho ao entrar na cultura resultaria na transformação da sociedade. Eu, certamente, creio que sim. Infelizmente, aqui no Brasil, precisamos perguntar sobre que tipo de 12 MISSIONAL Evangelho está sendo pregado? Ele é saudável? Ele tem exaltado a Cristo? Este Evangelho tem sido fiel ao conceito de Missão? As igrejas que vem sendo plantadas neste país têm pregado fielmente todo o Evangelho? João Costa nos coloca frente a frente a esta discussão extremamente importante. Não é simplesmente uma discussão sobre como devemos ir para a missão ou ao discipulado. É uma discussão sobre como devemos ser fiéis na contextualização do Evangelho. E isto é um convite para nos engajar em nossa missão de proclamar o Evangelho de Cristo da melhor forma possível. Isso me faz lembrar o autor e missionário Leslie Newbingen, que destaca a crise vivida nos dias de hoje na igreja européia: ele afirma que isto é o resultado do abandono da missão do Evangelho. Depois de anos de estrada, em meio à igreja brasileira, posso olhar novamente esta questão e refletir sobre como temos perdido uma geração inteira de evangélicos cheios de potencial. E isto não é porque haja falta de igrejas suficientes ou evangelismo. Isto tem acontecido porque o Evangelho pregado por muitas destas igrejas simplesmente não é o Evangelho de Cristo. É um evangelho desprovido de poder, porque se limita a buscar Deus simplesmente pelo que ele pode nos dar, em detrimento da busca pelo que Ele realmente é. Eu gostaria de encorajá-lo a ler este livro de João Costa. Faça isso de mente aberta sobre como podemos nos envolver com a cultura sendo radicalmente firmado em Cristo. João tem sido um bom exemplo nisto em minha vida. O que ele relata neste livro é fruto de sua experiência pessoal. Você pode não concordar com todas reflexões e conceitos expostos, mas lhe asseguro que sempre é tempo de reconsiderar nossa Missão à luz da multifacetada beleza desta jóia que nós chamamos de Evangelho. Jay Bauman Restore Brasil Atos 29 Brasil JOÃO COSTA 13 introdução “Eu fui missionário de um mundo pagão…” * Rio de Janeiro, final dos anos 90. Vivendo as pulsações da transição de não apenas uma década, mas do consciente coletivo da virada de um novo milênio que se aproximava, eu era um jovem envolvido com todas as ebulições dessa época cinzenta onde os sonhos de liberdade das décadas passadas se diluíram com as privatizações das estatais. Era um tempo onde a ironia começou a se tornar o grande escape de existência como forma de se relacionar com o meio ambiente, com a política, com a economia e sobretudo com as pessoas. Como filho da classe operária, afro-descendente e morador da Baixada Fluminense, recebi todo “pedigree” necessário para me tornar o arquétipo de dois estigmas da sociedade carioca das últimas décadas: o cara que “só quer ser feliz” embalado pelos “bigbeats” dos bailes funk, ou o “rebelde com causa” de inclinação política esquerdista. A segunda opção era o que eu buscava, pois eu era constantemente movido por ver uma transformação social acontecendo. Vim de *Referência a música Carta aos Missionários, da banda Uns e Outros - single de sucesso nas rádios FM brasileiras nos anos 1980. 14 MISSIONAL uma família tradicionalmente católica, mas naquela altura, todos os sacramentos e tradições para mim já não tinham mais valor, e eu me identificava com uma postura agnóstica, alimentada pelos discos de punk/hardcore, pelos fanzines e por obras de Eduardo Galeano, Karl Marx, Noam Chomsky, entre outros. Em meio a tudo isso, conheci um grupo de missionários. Alguns se ocupavam exclusivamente daquela tarefa, trabalhando nas bases de JOCUM espalhadas pelas favelas Rio de Janeiro. Outros eram como eu, jovens empenhados em empregos para dar suporte ao sonho de concluir seus estudos. O que diferenciava estes jovens de mim, era a causa que os movia. Lembro-me de um que me falou que seu desejo de se tornar um profissional na área de gestão de empresas era ser um missionário, porque ele tinha entendido que a sua própria vida e seus sonhos se construíam sob um plano maior: o propósito eterno de Deus. Através do convívio com aquele grupo, reconheci que minha vida não era tão “minha” assim (por mais que tivesse formado toda uma muralha de independência ética, e a repulsa por quase todas as formas de governo vigentes) e que existia um propósito bem maior, inclusivo e genuinamente transformador. Em 30 de agosto de 1998, pela primeira vez em minha vida, fiz uma oração consciente, guiada e apaixonada por uma leitura do Evangelho de João, no Novo Testamento que ganhei de presente de um dos missionários que conheci no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Naquela noite, me arrependi dos meus pecados e nasci de novo. Por que somos missionários? O objetivo deste livro não é contar minha história, até mesmo porque ela ainda esta sendo construída, mas essa nota biográfica remonta ao início da minha caminhada com o Senhor e de como o veio missionário sempre esteve presente na expressão coletiva da minha fé. Durante nove meses, aquela base foi a minha congregação local e todo JOÃO COSTA 15 o dialeto missional tomou conta da minha vida. Uma coisa que aprendi desde aqueles primeiros dias na jornada cristã, e hoje reverbera na vida da comunidade de fé onde sirvo, é que todos somos missionários! Se apropriando da declaração creditada ao célebre pregador CH Spurgeon, “todo cristão é um missionário ou é um impostor”, vamos nesta introdução observar alguns aspectos que dão muito sentido a tal frase. O grande século das missões, o século XlX, deixou marcas que definitivamente transformaram o mundo, a ponto de hoje termos um segmento cultural onde este livro será lido, apenas para citar um exemplo. Podemos dizer que no Brasil, os que receberam a mensagem do Evangelho propagada séculos atrás foram ao longo dos anos criando seu gueto, e esse gueto foi se particionando em tribos, à medida que as denominações foram surgindo no fluxo de divergências históricas, doutrinárias e até mesmo culturais. A realidade contemporânea nos mostra o crescimento vertiginoso de estatísticas que apontam pra popularidade do cristianismo evangélico. Não temos muito o que comemorar com isso se pesarmos na balança o fato de que muitas pessoas são na verdade apenas dados do IBGE, do que de fato discípulos de Jesus. O cenário fica mais dramático ao vermos o fenômeno de constante evasão de pessoas da fé, ou na verdade, a constatação de que a conversão que tiveram foi apenas à denominação da qual fazia parte, ou a figura de um líder carismático. Com isso, comunidades de fé que não se entregam ao populismo da teologia da prosperidade ou a rigidez ascética de algumas igrejas históricas, buscam em novas configurações a relevância dos “homens que tem causado alvoroço no mundo”. A propósito, em nome desta relevância muito se tem feito, falado, escrito e cantado. E neste ciclo de ativismo frequente e desejoso de cumprir a grande comissão, temos transformado sermões em palestras, colocado em primeiro lugar as ações sociais como salvo-conduto da nossa consciência e orgulho manchado pelos abusos e 16 MISSIONAL escândalos, quase que predominantes no circuito neopentecostal. Temos vergonha de cantar até mesmo versos da Bíblia ou simples canções de louvor e adoração para o Senhor (que não apenas falam sobre Ele, mas para Ele), por querer mostrar o quão antenados com a cultura estamos e o quanto nossa poesia, que fala muitas vezes de um Deus que não conhecemos de fato, está afiada. Talvez você encontre essas características em grupos que se identificam como missionais. Para coroar esta condição, o que talvez hoje se entenda como missional celebra por vezes a cultura em detrimento à sã doutrina, à inerência bíblica e em última e mais grave instância, à soberania divina. No afã de não querer soar religioso, os cristãos deste tempo por vezes acreditam que para ser missionários eles não devem ser “fundamentalistas” (será que a bíblia é divinamente revelada?) como os cristãos históricos e nem “alienígenas culturais” (precisamos orar tanto? o Espírito Santo me torna alguém estranho?) como pentecostais. Este relativismo enclausura esta geração no estilo de vida morno de Laodicéia. O cinismo é a nova indulgência paga para consequentemente se viver uma religião incrédula, por mais incompatível que isso venha parecer. O missiólogo anglicano Leslie Newbigin, falava do movimento triangular do Evangelho onde o diálogo entre Igreja + Evangelho + Cultura era a forma mais simples de traduzirmos a prática para a vida dos discípulos/missionários, a “missio dei”, a missão de Deus. Nessa equação, nenhum elemento pode ficar de fora. Se olharmos para a primeira metade do século passado, quase de forma predominante, a Igreja e o Evangelho tinham um diálogo tão forte que a cultura ficava de fora: Igreja + Evangelho - Cultura = Fundamentalismo. Da década de 60 até o limiar do século passado, a busca pelas verdades das Escrituras e a conversação com a arte, a política, e a sociedade em geral minimizaram a força da Igreja por estar tão empedernida em seus aspectos histórico/institucionais, o que foi o nascedouro JOÃO COSTA 17 para novas configurações que formavam comunidades de fé, mas não necessariamente grupos que se identificavam como Igreja: Evangelho + Cultura - Igreja = Para-eclesiásticos. Por último, este tem sido o tempo da busca desenfreada pela relevância, onde muitos cristãos apontam Bono Vox como o maior pregador do Evangelho da grande aldeia global que necessita de co-existência, e onde os absolutos radicais de um livro judaico-cristão, precisam ceder para outras verdades não-absolutas: Cultura + Igreja - Evangelho = Liberalismo.1 É neste cenário que precisamos discernir e perceber onde nasce o nosso chamado, para que o nosso envio como missionários não seja uma declaração baseada na nossa imunda justiça própria. Quando nos voltamos para a história da Igreja e vemos os movimentos missionários, não por acaso todos eles são marcados de uma gênese na devoção, na busca pelo Senhor. Ao observar o primeiro capítulo de Atos, vemos que a expansão territorial (Jerusalém - Judéia/Samaria - confins da terra) teve como nascedouro um ambiente de espera e busca orientado por Jesus. Na primeira parte, a glória de Deus é exposta como a razão primordial e matricial de sermos missionários. Na segunda parte, observaremos as nuances da vida comunitária. Na terceira parte, nosso posicionamento como a cidade de Deus. E na quarta parte, nosso envio a um mundo que carece de amor, pois carece de Deus. Teremos como fio condutor desta perspectiva MISSIONAL o texto de João 17, a oração sacerdotal, onde temos Jesus como protagonista da narrativa, sendo umas das mais expressivas demonstrações do que é ser caminho, verdade e vida. Que possamos ser chamados ao Sacerdócio de Todos os Santos, ao percorrer essa jornada devocional/ missional proposta pelo Sumo Sacerdote, Jesus Cristo. Conceito adaptado por: Mark Driscoll - Reformissão: como levar a mensagem sem comprometer o conteúdo - pg 20-22 - 2009 - Editora Tempo de Colheita 1 18 MISSIONAL JOÃO COSTA PRIMEIRA PARTE POR QUE SOMOS MISSIONÁRIOS? Porque Deus é cheio de Glória. 19 20 MISSIONAL JOÃO COSTA 21 capítulo 1 Glória e Graça “Quando colocarmos as nossas mãos no arado, sem olhar para trás, nos lembraremos: existimos para a glória de Deus, pois Deus é maior do que nós.” Ronaldo Lidório “Depois de falar essas coisas, Jesus levantou os olhos ao céu e disse: Pai, chegou a hora. Glorifica teu Filho, para que também o Filho te glorifique, assim como lhe deste autoridade sobre toda a humanidade, para que conceda a vida eterna a todos os que lhe deste.” João 17.1-2 O texto tradicionalmente conhecido como “a oração sacerdotal” encontrado no capítulo 17 do Evangelho segundo João, é uma das passagens onde mais percebemos a supremacia de Deus através da trindade. Ao longo dos evangelhos sabemos que Jesus por vezes se dirige em oração ao Deus Pai, mas em nenhuma outra parte, as pessoas de Filho e Pai se tornam tão evidentes como nesta. O texto não está isolado, pois inicia fazendo uma conexão com o contundente ensino que Jesus discorre entre os capítulos 14 e 16, só que o nível de intimidade que se estabelece agora restringe os personagens e nos mostra o tom de despedida que uma oração como essa nos traz. D.A. Carson ressalta: “O que é singular nesta oração não depende nem de sua forma nem de suas associações literárias, e sim daquele que a faz e do momento em que é realizada. Ele é o Filho de Deus encarnado, e ele está voltando para o seu Pai pelo caminho de uma morte excessivamente vergonhosa e dolorosa. Ele ora para que o curso no 22 MISSIONAL qual entrou traga glória para o seu Pai, e que seus seguidores, em consequência de sua morte e exaltação, sejam preservados do mal pelo privilégio sem preço de ver a glória de Jesus, que imita completamente, em seu próprio relacionamento, a reciprocidade de amor manifestada pelo Pai e pelo Filho.” 2 A base da oração de Jesus é a Glória de Deus, e nunca é demais lembrar da primeira declaração da Confissão de Westminster: “O fim principal do homem é glorificar a Deus e desfrutá-lo para sempre”. O propósito de Deus gira em torno de sua própria glória e uma vez que somos alcançados por este propósito, nossa vida ganha um sentido mais amplo e bem maior do que as limitadas raias dos nossos anseios. É fato que a cristandade tem sua missão comprometida a medida que sucumbe numa espiritualidade frívola, que não consegue contemplar o Sagrado e consequentemente responder em amor a esse “fim principal” ao qual somos destinados. Uma das maiores ciladas em que caímos, é o fato de nos apegarmos ao padrão de alta performance, do muito fazer com excelência, como selo de aprovação divina dos nossos atos. Precisamos nos despertar como igreja para a seguinte realidade: a obra missionária não é a prioridade da igreja, pois o que é prioridade para Deus é a sua glória. Por vezes nossas campanhas missionárias transculturais são mais uma forma de pedirmos desculpas pelas atrocidades cometidas pelos nossos antepassados a povos desfavorecidos economicamente, violentados em todos os sentidos. Quando falarmos em termos urbanos, o quadro pode se tornar mais patético, porque comunidades de fé têm iniciativas de assistência social ou até mesmo instituem ONG’s com o pressuposto missional, mais para garantir uma imagem polida diante da opinião pública do que para de fato levar o Evangelho todo para o homem todo, conforme aprendemos com os irmãos no Pacto de Lau2 D. A. Carson - O Comentário de João - pg 551,552 - 2007 - Shedd Publicações JOÃO COSTA 23 sanne. A glória de Deus, que satisfaz o Filho, deve, consequentemente nos satisfazer também. A condição de constante insatisfação que o ser humano tem, ganha contornos mais extremos e impactantes num tempo onde somos cercados de coisas e penduricalhos que, aparentemente, suprem as necessidades que temos, e até as que não temos. Como diz o personagem Tyler Durden, um símbolo da conturbada década de 1990, no livro que virou filme, Fight Club: “trabalhamos em empregos que odiamos para comprar porcarias que não precisamos.” O “status quo” é apenas um nome sofisticado que damos para a nossa própria glória, e precisamos de humildade para reconhecer que temos buscado constantemente esta glória, até mesmo na nossa missão. Os recursos e resultados, as mídias e ferramentas, o reconhecimento e as honrarias ainda falam muito alto quando pensamos num ministério missional. Estes ídolos têm impedido a nós, como aqueles que nasceram de novo, de contemplar e reconhecer a glória de Deus. Nossa linguagem missional contemporânea tem encontrado influencia em Nimrod e sua uniforme linguagem de Babel, que ergue uma torre auto-afirmativa. A medida que os ídolos são derrubados, a nossa linguagem missional incorpora a linguagem de Pentecostes, que nos coloca no nosso lugar, onde somos revestidos do Espírito Santo, e colocados debaixo do infinito teto da soberania divina.A linguagem missional, identificada com a linguagem de Pentecostes, é o canal de comunhão que encontramos, primordialmente, na relação pré-existente na Trindade. Não há divisão, ruídos e confusão, pois a comunicação uníssona nessa relação é a glória de Deus. Graciosamente somos chamados a falar e literalmente encarnar esta linguagem, como ensina John Owen: “Ela se refere à graça. Em todo lugar, isso é atribuído a ele por meio da eminência. “O verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e verdade” (João 1.14): graça na verdade e na substância. Tudo o que aconteceu foi 24 MISSIONAL tipológico e representativo. Na verdade e na substância, acontece somente por meio de Jesus Cristo. “A graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (v.17); “todos nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça” (v.16), isto é, temos comunhão com ele na graça, recebemos dele toda forma de graça que existe. E assim temos comunhão com ele.” 3 O nosso exemplo missional precisa ser estabelecido pelo prisma da comunhão com Deus, que soberanamente, é Deus em comunhão, entre Pai, Filho e Espírito Santo. Se inicialmente como discípulos, que são sacerdotes da nova aliança e vitalmente missionários, consequentemente seremos levados a uma vida onde essa comunhão é compartilhada com aqueles que por causa da ignorância causada pelo pecado, estão de fora desta comunhão. Os equívocos missionais atuais estão quando tentamos obsessivamente incluir as pessoas, sem conduzi-las pela porta, que é Jesus. Estes equívocos são atalhos culturais, janelas de possibilidades que insistimos em pular, por diversas razões, que por muitas vezes não termos a coragem, ousadia e loucura necessária para encarnar a explícita mensagem do Evangelho de Jesus, nomeamos de amor. Em nome desse amor de silício dos dias de hoje, estamos nos distanciando daquele que é Amor de fato, nosso Senhor. Estes equívocos missionais são resultados de obras que nascem em corações e mentes bem intencionados. Porém, precisamos de um exemplo que nasce no lugar certo. O lugar onde Jesus estava no momento dessa oração era crítico, mas era um lugar de devoção. E é justamente, entre o perigo e a oportunidade, que disciplinas espirituais como a oração, o jejum, o mergulho na Escritura, nos conduzirão a percepção de atos que glorifiquem a Deus, da primeira à última instância. Pela graça, nós ganhamos um destino, o de ser semelhantes a Jesus, e nesta semelhança precisamos buscar todas as esferas e matizes dessa caminhada. Ao olhar para o menino Jesus, Simeão viu 3 John Owen - Comunhão Com o Deus Trino - pg 109 - 2010 - Editora Cultura Cristã JOÃO COSTA 25 ali alguém que ia causar a queda e o soerguimento de muitos, além de ser um sinal de contradição. Consequentemente, nós como missionários que glorificam a Deus, sejamos sinais de contradição na presente era. Glorificar alguém que não seja você mesmo é talvez, o maior sinal de contradição que podemos expressar. R.C. Sproul declara: “Jesus não ora só pela restauração de sua própria glória, ele ora pedindo que aqueles que são dele possam compartilhar na presença da sua glória. Jesus não orou só pelos discípulos que andaram com Ele na terra, mas também orou por nós e por todos aqueles que o recebem sinceramente através do testemunho dos apóstolos.” 4 A presença da glória fez com que Jesus experimentasse a tentação no deserto em seu período de solitude, jejum e oração e dinamicamente fosse lançado em seguida na efervescência da missão urbana. A proposta de uma espiritualidade interior exterioriza a missio dei, da qual somos parte efetiva. A narrativa de Mateus 4 é um exemplo da devoção que alimenta, que empodera a missão. Jesus, mesmo sendo Deus, não usurpou ser igual a Deus, a medida que entendia que dependia dessa busca pela glória de Deus se disciplinando espiritualmente para o cumprimento do seu chamado. Esse é um dos grandes aspectos da encarnação de Jesus, ao qual nós, com nossas limitações humanas, devemos nos apegar. Por mais que a figura do Jesus encarnado/humilhado desperte em nós uma identificação imediata, é imprescindível a exaltação de Cristo em nossa perspectiva missional. Alguns dos sofismas missionais que mais contaminam uma efetiva prática dos missionários que os cristãos de hoje deveriam ser, estão diametralmente relacionados a uma cristologia extremamente humanista, tendenciosa e domestica4 R.C. Sproul - A Glória de Cristo - 2ed - pg 136 - 2004 - Editora Cultura Cristã 26 MISSIONAL da. A inclinação quase que predominante é de minimizarem Jesus à posição de um mestre de sabedoria, seja como um revolucionário ou um pacifista. Ao olharmos a história, o legado de figuras históricas como Gandhi, Martin Luther King Jr., Che Guevara, Madre Teresa de Calcutá e tantos outros podemos ver o altruísmo do ser humano maximizado, mas precisamos da mesma visão que Isaías e João em Patmos tiveram: a de Jesus exaltado como Deus. Se nossos olhos naturais pudessem ver Deus hoje, o ícone de cabelos e barbas longas (que sempre quando se vê alguém na rua com esse visual desperta na massa o brado: “lá vai o Jesus”) daria lugar a uma imagem que nem os mais sofisticados estúdios cinematográficos poderiam conceber. Tente imaginar as 45 passagens do livro de Apocalipse que mostram Jesus no seu trono cheio de gloria. A instabilidade, ou até mesmo ausência de paixão, em nossa perspectiva missional tem origem na falta de uma visão cheia de fé, de um Deus cheio de Glória. Sim, Jesus é Deus. Amparamos-nos na máxima cunhada no Concílio de Calcedônia, no ano de 451 d.C. que reconhece que Jesus foi completamente homem e completamente Deus. Também sabemos que contemplaremos a vitória de Jesus como o Leão da Tribo de Judá, porque fomos lavados no sangue da morte de Jesus, como Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. O Cordeiro é a graciosa manifestação de Deus que nos capacita a vislumbrar a sua Glória. Será que nossos avanços missionários ainda estão atravancados porque não temos conseguido vislumbrar essa gloria? Até que ponto nossa visão esta tão restrita ao aqui/agora? Por que as pessoas não se achegam a Deus através da nossa mensagem? A resposta está na falta de autoridade de uma mensagem que procede apenas do que está no nosso imaginário e/ou intelecto a respeito de Jesus. Na sua oração ao Pai Ele declara que recebeu autoridade sobre toda a humanidade. Mark Driscoll acertadamente diz que: JOÃO COSTA 27 “A supremacia de Jesus Cristo como nosso Deus soberano e exaltado é a nossa autoridade para a missão(…). Nós obtemos a nossa autoridade para pregar o Evangelho a todas as pessoas, em todas as épocas e em todos os lugares da gloriosa exaltação do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo.” 5 Nesta jornada, que tem como ponto de partida a devoção, devemos conhecer em todas as esferas o Deus que cremos. Em uma aula em nossa comunidade, o professor Juan de Paula afirmou: “Qual o problema de não crer corretamente para a devoção? Se focarmos apenas na divindade de Jesus, nossa devoção será farisaica, legalista, moralista e religiosa não levando em conta que Jesus chorou e teve compaixão das pessoas. Se focarmos apenas na humanidade de Jesus, nossa devoção será carnal, humanista e libertina sem considerar que Deus é Santo e chama os salvos para crescerem em santidade (Levíticos 11:44).” 6 O mundo como o conhecemos, sobretudo no ocidente, nos grandes centros urbanos tem esvaziado de significados e as pessoas tem se fragmentado de tal forma, que a redenção graciosa que ansiamos ver no mundo que geme pela manifestação dos filhos de Deus, necessita ser anunciada. Porém, como profetizou Habacuque, é o conhecimento da glória divina que encherá a terra (Hc 2:14-15). Nenhuma outra mensagem poderá preencher o grande abismo existencial que progressivamente se agravará, pelo esfriamento do amor de muitos em função do multiplicar da iniquidade (Mateus 24). Por vezes, esquecemos que a alarmante profecia de Jesus abrange também os crentes, a igreja, realidade onde o amor não deveria se extinguir. O multiplicar da iniquidade torna-se visível pela constante e exponencial fragmentação do Corpo de Cristo em instituições que John Piper e Justin Taylor (editors) - The Supremacy of Christ in a Postmodern World - pg 132 - 2007 - Crosswsay Books 5 6 Apostila Introdução à Cristologia- pg. 6 - acesse em: http://migre.me/99FkR 28 MISSIONAL comunicam suas verdades, seus pressupostos, seus pontos de vista e fatalmente, sua (passageira) glória. O especialista em pesquisas de opinião, Mark J. Penn, ao fazer uma radiografia da sociedade do século 21, escreveu: “Quando os filósofos gregos tentaram explicar pela primeira vez a mudança natural do mundo ficaram confusos. Até que Demócrito, em cerca de 460 a.C., propôs a teoria de que o mundo era feito de átomos, pequenas, mas distintas partículas cuja combinação definia o estado e a natureza da matéria. Muitos discordaram, até Aristóteles foi seu principal crítico. Com o tempo, contudo, demonstrou-se que Demócrito tinha razão. Na verdade, até mesmo a massa mais sólida é feita de bilhões de átomos invisíveis que determinam sua natureza. Como qualquer aluno do ensino médio sabe, apenas uma ligeira mudança nessa combinação de átomos causará efeitos profundos na resistência do aço, no brilho dos diamantes ou na radioatividade do urânio enriquecido. Essa analogia reflete a teoria subjacente das micro tendências. A nossa cultura hoje é cada vez mais produto do que identifico como átomos sociais, pequenas tendências que refletem hábitos e escolhas que estão mudando. Hoje, a maioria das pessoas faz críticas semelhantes às de Aristóteles, uma visão holística dos eventos a partir do próprio ponto de vista. Entretanto, diferentemente de Aristóteles, elas muitas vezes alegam ter visto a floresta sem realmente terem examinado as árvores. Especialmente nesse mundo atual acelerado, as pessoas estão cada vez mais fazendo seus juízos com base na própria visão de mundo, em vez de construir uma opinião baseada nos fatos, o que consideram difíceis de determinar. A verdade nua e crua é que, na maior parte das vezes, não é possível identificar padrões concretos na vida das pessoas, a não ser por meio de estatísticas. Ainda assim, afirmamos que nosso entendimento se baseia em nossos próprios pontos de vista limitados. A tendência, então, é que a sabedoria convencional seja ao mesmo tempo muito dogmática e muito equivocada.” 7 7 Mark J. Penn - Microtendências - pg 503,504 - 2008 - Editora Best Seller JOÃO COSTA 29 Ao reconhecer a glória de Deus, como aquele que detém no poder da sua Palavra a existência de cada átomo do universo, cada ‘átomo social’ [na linguagem de Penn] está sujeito a este mesmo poder soberano. A extrema fragmentação na cosmovisão do homem conhecido como pós-moderno, comprometida quase que predominantemente com as percepções holísticas da vida, mostra a necessidade do conhecimento daquele que não é medido por estatísticas, e que é pleno em si mesmo. Se como micro tendenciosos, humanamente corremos para cada vez mais ter a nossa baia de atuação determinada pelo macro, graciosamente temos um grande Deus, que mesmo cheio de glória volta seus olhos para nós e é soberano sobre cada pequeno detalhe de nossas particionadas vidas. Está é a relevância da doutrina da trindade, a mensagem da unidade entre Pai, Filho e Espírito Santo. Newbigin destacou o peso do entendimento da Trindade na prática missional contemporânea: “Um verdadeiro entendimento das questões que Deus levanta para nós em nosso tempo, e uma autêntica reafirmação do significado da tarefa missionária se reclinarão, assim como o Novo Testamento se reclina, na revelação de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo” 8 A graça se manifesta quando do meio da Trindade, da plenitude da eternidade, Jesus esvazia-se da sua glória torna-se homem, para que a humanidade possa ser cheia de todo significado que ela precisa: viver para a glória de Deus. Usando a abordagem de Dietrich Bonhoffer, precisamos combater o barateamento da graça de Deus, configurado pela relativização da mensagem do Evangelho em nome de uma relevância superficial que é Leslie Newbigin - Trinitarian Doctrine for Today’s Mission - pg 36 - 2006 - Wipf and Stock Publishers 8 30 MISSIONAL impressa no vocabulário, na vestimenta, e na cultura em geral. A graça que nos alcançou alcançará todos aqueles que o Pai na eternidade, já deu a Jesus. E a nossa missão de proclamar tem como fundamento fazer tudo para a glória Dele. Eis uma boa forma de respondermos a Graça: Vivendo hoje a vida eterna, para a sua glória. JOÃO COSTA 31 capítulo 2 O Missionário Definitivo “Deus poderia muito bem requerer uma obediência “cega”, mas Ele nos chama a uma obediência baseada em relacionamento, entendimento e discernimento.” Beth Wood “E a vida eterna é esta: que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, que enviaste. Eu te glorifiquei na terra, completando a obra da qual me encarregaste.” João 17.3-4 A autoridade de Jesus é um sinal de aparente contradição num mundo onde os que se estabelecem como autoridades isolam-se numa camada de poder restrito e auto-favorecedor, o que os torna, muitas vezes autoridades aparentes. Encontramos na autoridade que Jesus estabelece sobre toda a humanidade, a infinita misericórdia de Deus se manifestando para que a vida eterna se torne acessível. Autoridades de hoje são mais celebridades inalcançáveis do que qualquer outra coisa. A autoridade gloriosa do nosso Deus foi manifesta no caminho de relacionamento que através de Jesus foi restabelecido para nós.Essa falência das autoridades, ou a mutação da mesma em autoritarismo, torna-se o palco para a ausência de significado das nossas mais básicas vocações, em especial a de sermos missionários. Amamos o testemunho de homens como Abraham Kuyper e William Wilberforce, por sua preeminência social, cultural e política. Mas vale lembrar que eles viveram num período onde a mentalidade da Europa 32 MISSIONAL estava sob a égide do cristianismo. Hoje, é um período onde a verdade (uma premissa básica do cristianismo) já não representa uma base de comportamento viável. As palavras do discípulo de Nietzsche, o filósofo francês Foucault, influenciam extremamente essa geração: “A verdade é algo deste mundo. É produzida apenas pelas múltiplas formas de restrição, que incluem os efeitos regulares de poder”. 9 Neste tempo de ceticismo acentuado pela liquefação da verdade e a ausência de significados, precisamos de um exemplo atemporal para nossa missão. O pesquisador David Wells, sabiamente afirmou que: “Crer em Cristo é entrar no reino e tornar-se uma parte do século futuro. Paulo, no entanto, expande esse pensamento muito além do campo pessoal e eclesiástico. Se Cristo é o Senhor ao qual todo crente serve, a Cabeça à qual todo o corpo da Igreja deve responder, também é o Criador de quem tudo deriva a sua existência, o centro sem o qual não há realidade. Seja acima, no firmamento estrelado, ou abaixo, nas consciências humanas, Jesus tem “supremacia” (Cl 1.15-20). Nesse mundo caído, em suas vidas decadentes, aqueles que se separaram de Deus constituem uma parte deste século, que agora está morrendo. Ele não tem futuro, e existem indicações disso nas profundezas da consciência humana, onde há uma confusão de contradições, pois fomos criados para ter significado, mas encontramos somente vazio. Somos feitos como seres morais, mas somos afastados daquilo que é santo. Somos feitos para entender, mas somos frustrados em muitas buscas. Estes são os sinais definitivos de uma realidade desconjunta em si mesma. Isso é o que, na verdade, aponta para outra coisa. Essas contradições não têm solução na ausência daquele século vindouro que se enraíza no Deus trino, de quem falam as Escrituras. É Ele que não somente sustenta toda a vida, conduzindo tudo ao seu fim determinado, mas que também é a medida daquilo que permanentemente é verdadeiro, certo e a fonte de todo significado, propósito e esperança.” 10. Michel Foucalt - Power/Knowledgment: Selected Interviews and Other Wriitings - pg 131 1980 - Colin Gordon 10 John Piper e Justin Taylor (editors) - The Supremacy of Christ in a Postmodern World - pg 48,49 - 2007 - Crosswsay Books 9 JOÃO COSTA 33 E esta fonte é Jesus Cristo, o primeiro e definitivo missionário. O primeiro missionário é o próprio Deus que encarnado nos mostrou com sua vida, morte e ressurreição o propósito eterno de ser humano, em todas as esferas sociais e políticas desta palavra. Pensar em ser missional, longe destas esferas é tentar domesticar a nossa humanidade e encaixotar nossa espiritualidade. Justamente por isso, não temos condições de ficar sossegados com as representações religiosas que “domesticam” Jesus. Ampliando a escala, e ajustando o foco da encarnação de Jesus e suas implicações sobre nós pelo prisma político, não podemos mais ignorar o impacto do imperialismo ocidental sobre povos subordinados e sobre as formas de reação de povos que sentem suas vidas invadidas. A analogia histórica “coincidente” é muito inquietante, isto é, que o Império Romano, viera para controlar o antigo Oriente Médio, incluindo a Galiléia e Judéia, onde Jesus operava. Passamos a reconhecer que o antigo povo palestino reagiu ao domínio romano numa longa série de protestos e movimentos. É difícil continuar imaginando que Jesus tenha sido o único personagem imune à submissão do seu povo à ordem imperial romana. Se não há outro, talvez o simples fato de que Ele foi crucificado, uma forma de execução que os romanos adotavam para intimidar os rebeldes nas províncias, deve levar-nos a reavaliar a situação. Podemos identificar pelo menos quatro fatores inter-relacionados, de suma importância, nesta construção de um Jesus despolitizado mas recentemente sob a aparência de um mestre de sabedoria11: 1. Mais determinante é o pressuposto ocidental moderno de que a religião está separada da política e da economia. As sociedades Uma boa análise crítica dessa identificação: Jesus and the Cynics: Survey and Analysis of a Hypothesis - Hans Dieter Betz - http://www.jstor.org/stable/1203757 11 34 MISSIONAL ocidentais institucionalizaram essa divisão da realidade não apenas na separação da Igreja do Estado e da economia capitalista, mas também na divisão acadêmica do trabalho, faculdades e universidades em departamentos distintos de religião, ciência política, economia, etc. A educação nos cursos de pós-graduação e de preparação profissional continua em escolas separadas de teologia, administração política e negócios. Projetamos então o pressuposto ocidental moderno de que a religião está separada da política e da economia nas sociedades antigas. Presumindo que Jesus está adequadamente categorizado como figura religiosa, até certo ponto ignoramos os aspectos políticos e sociais e as implicações da pregação e da prática de Jesus. 2. Ao pressuposto da religião como esfera separada associa-se estritamente ao individualismo ocidental moderno. O individualismo é um desenvolvimento social relativamente recente e peculiar, característico das sociedades ocidentais modernas (especialmente forte nos Estados Unidos). Novamente projetando um pressuposto ocidental moderno na sociedade antiga, pensamos em Jesus como uma figura individual independente das relações sociais em que estava inserido. E pensamos em Jesus relacionando-se principalmente com outros indivíduos, não com grupos sociais e instituições políticas. 3. Outro fator importante na despolitização de Jesus é a orientação científica dos seus interprétes acadêmicos. Captando sinais da cultura acadêmica dominante, os pesquisadores bíblicos se sentem forçados a ser científicos em seus critérios e procedimentos de pesquisa e interpretação de Jesus. “Dados” dos Evangelhos precisam ser isolados, analisados e postos sob rigoroso controle para então ser usados na reconstrução histórica. Somente os dados que passam no teste da razoabilidade/racionalidade moderna podem ser aproveitados. Depois de reduzir os Evangelhos a fragmentos religiosos dirigidos a indivíduos e de passá-los pelo crivo científico, eliminamos os resíduos de tudo que seja milagroso, místico ou fantástico e deixamos as pepitas JOÃO COSTA 35 puras de ditos e parábolas que podemos testar para comprovar a sua “autenticidade”. Indiscutivelmente, esses três fatores reduzem Jesus a um mestre religioso que proferia sentenças e parábolas isoladas relevantes apenas para pessoas em sua individualidade. 4. Alguns interprétes recentes de Jesus despolitizaram-no ainda mais, eliminando do “banco de dados” das suas palavras “autênticas” tudo o que implicasse juízos embaraçosos. Eles sustentam que João Batista, era um profeta apocalíptico que proclamava o juízo, e que os discípulos de Jesus, logo depois da sua morte, o interpretaram como uma figura apocalíptica, o Filho do Homem, vindo para julgar. O próprio Jesus, dizem eles, não pregou o juízo. As expressões proféticas de condenação são produtos posteriores dos seguidores de Jesus, que ficaram ressentidos por fracassarem e serem perseguidos. Assim, o próprio Jesus não era profeta, mas um mestre de sabedoria, como os filósofos cínicos errantes nas cidades da Grécia, ensinando um modo de vida alternativo, como o dos hippies modernos, a um bando de nulidade sem raízes. Seja qual for a credibilidade deste quadro como reconstrução histórica, ele mostra um instrutor individual despolitizado pronunciando aforismos isolados que pertencem apenas a um estilo de vida contracultural individual fora de qualquer contexto político-econômico particular e sem implicações sociais. É difícil compreender por que Pôncio Pilatos se incomodaria em crucificar uma figura como essa. Os pressupostos e procedimentos que levam a um quadro de Jesus assim, porém, são indefensáveis na pesquisa e reconstrução histórica. 1. É simplesmente impossível separar a dimensão da espiritualidade confessional da vida político-econômica nas sociedades tradicionais. Se os norte-americanos não tinham consciência disso antes de 11/09/01, estão cientes hoje de que, na maioria dos países do Oriente Médio, é extremamente difícil separar a fé e a prática muçulmanas das questões políticas e econômicas e da vida social 36 MISSIONAL em geral. A julgar pelo extravasamento de patriotismo de feições religiosas ocorridas depois dos ataques terroristas, também nos EUA é difícil dizer onde termina a religião civil americana e onde começa o processo político estadunidense e a sua economia de consumo. 2. O individualismo é uma ideologia ocidental, evidente de modo especial nos grandes centros urbanos, mas em grande parte é uma ficção operacional. Com o advento das redes sociais na internet, é impossível separar identidade, crenças e comportamentos individuais da rede de relações e de instituições nas quais as pessoas estão inseridas. Identidades são sempre complexas e híbridas. As vidas das pessoas estão sempre entretecidas numa rede de formas e instituições sociais. Como insistem as pensadoras feministas, as próprias relações maritais e sexuais são políticas. As pessoas estão sempre envolvidas em relações de poder complexas. 3. Os procedimentos adotados pelos pesquisadores para criar um “banco de dados” que sirva de base para construir um quadro de Jesus, são especialmente problemáticos como método histórico. As pessoas não se comunicam com frases isoladas. O significado de enunciações como provérbios ou parábolas depende totalmente do contexto em que são feitas e da tradição cultural a que tanto o orador como os ouvintes pertencem. Em vez de isolar intencionalmente os ditos de Jesus do único contexto de significado a que ainda temos acesso, isto é, os Evangelhos, precisamos começar exatamente por essas fontes literárias. 4. A afirmação de que Jesus não pregou o juízo de Deus é resultado da aplicação dos conceitos acadêmicos dicotomizados modernos de “sabedoria” e “apocalipticismo”, que minimizam a divindade de Cristo, em detrimento ao diálogo relativista predominante. Essa abordagem aponta para a urgência do tempo presente, onde os desdobramentos políticos imprimem o medo no consciente cole- JOÃO COSTA 37 tivo. Um coletivo que enganado pela proposta da individualidade vive acuado pelo medo, um dos subprodutos do poder restrito e visível do presente século. Nosso desejo é de sermos agentes, proclamadores do Reino e anunciantes do ano aceitável do Senhor e do dia da vingança do nosso Deus. Mas para que isso ocorra efetivamente e não seja apenas uma iniciativa romântica e utópica precisamos de um início, que não é exposto publicamente. Necessitamos de conhecimento. Não de causa, ou de nós mesmos. Mas do conhecimento do único e verdadeiro Deus. Como diz Rubem Amorese: “Qualquer ação ministerial que não se tenha originado do quarto é, no mínimo, deficiente, pois apenas nesse lugar de intimidade com Deus se apreendem e recebem as habilitações carismáticas para o serviço, para a abnegação, para o amor sacrificial, enfim, para o sacerdócio real cristão. A adoração genuína e secreta se revela, então, a experiência primária, geradora e dinamizadora de tudo isso. Conforma-nos à imagem do Filho, para que Ele seja o Primogênito entre muitos irmãos. O quarto da adoração é o berço da ética cristã. Muito mais que fonte de bem-viver, é fonte de vida eterna.” 12 Como tornar conhecida uma pessoa que não conhecemos? Para cumprirmos nossa vocação que glorifica o Senhor precisamos conhecê-lo. A intimidade com nosso Deus, expressa através de uma vida que vai além do que nos habituamos na rotina das nossas reuniões de celebração. O ministério de Jesus foi marcado por uma profunda relevância porque sua intimidade com o Pai era o fator determinante para a realização de sinais visíveis do Reino. Nossa expressão autômata e imediatista precisam ceder ao exemplo de Jesus que quando foi interpelado pelos principais da religião acerca dos milagres que realizara, declarou: “Eu lhes digo verdadeiramente que o Filho não pode fazer nada de si mesmo; só pode fazer o que vê o Pai fazer, porque o que o Pai faz o Filho também faz.” João 5:19. 12 Nelson Bomilcar (org) - O Melhor da Espiritualidade Brasileira - pg 146 - Editora Mundo Cristão - 2005 38 MISSIONAL O reconhecimento da veracidade de Deus é um elemento fundamental na missão, pois enaltece a glória de Deus. Esta veracidade ganha contornos de pessoalidade quando reconhecemos Jesus Cristo como enviado de Deus. Uma prática encarnacional é necessária em dias de relativização e virtualização das ideias, onde as relações e algumas personalidades são moldadas no ambiente midiático da internet. Tendo como base a devoção, nossa missão não será produto de um impulso emocional ou meramente religioso, mas a resposta a um chamado, como bem descreve o missiólogo Ed Stetzer: “Talvez nossa grande falha se dê numa nebulosa urgência em pressionar nossas ações antes de ouvir Deus. Nós temos o chamado de Deus para testemunhar e compassivamente cuidar dos perdidos. E nós deveríamos praticar isso e ensinar a Igreja a fazer o mesmo. Nós falhamos quando lançamos um novo modelo, implementamos um novo estilo de adoração, e tentamos desevendar o código missional antes de ter ouvido o suficiente a voz daquele que escreveu o código humano original.” 13 Um texto que é decorado por muitos é a chave interpretativa para esse trecho da oração de Jesus: “Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele” (João 3:16-17). A missão tem perecido pelo não conhecimento de Deus, pela distância desse Jesus que foi enviado. Por não conseguir contemplar o Cordeiro, declarar que cada discípulo de Jesus é um missionário torna-se um absurdo para os ouvidos de muitos. A experiência missionária marcou a história, e nos inspira até hoje. Uma das mais marcantes é a dos Morávios (ou Moravianos), que curiosamente têm sido mencionados com frequência recentemente. Vale relembrar como e onde ela nasceu. A comunidade denominada 13 Ed Stetzer - Breaking The Missional Code - pp 22 - Broadman & Holman Publishers - 2006 JOÃO COSTA 39 Hernhut, que significa “Abrigo do Senhor”, em 1722, dava refúgio a cristãos perseguidos da Morávia. Num memorável domingo, em 13 de agosto de 1727, quando estavam reunidos para a Ceia do Senhor, o Espírito Santo veio sobre eles, através de uma visão da glória divina revelada no Cordeiro, quebrantando-os e levando-os à maior reunião de oração de todos os tempos, que durou mais de 100 anos ininterruptos. Movidos por tal devoção, os moravianos enviaram missionários para as Ilhas Virgens (1732); Groenlândia (1733); Suriname (1735); África do Sul (1736); Jamaica (1750); Canadá (1771); Austrália (1850); Tibet (1856), entre outras localidades. A paixão com que Jesus viveu como missionário será possível para nós se começarmos hoje a conhecê-lo e amá-lo profundamente. John Piper diz: “Quando esta era terminar e representantes de toda raça, tribo e nação se dobrarem diante do Cordeiro de Deus, a obra missionária não existirá mais na Igreja. Mas existira o louvor e a adoração. Permanecerá na Igreja o culto. (Paixão de Deus por sua própria glória: Is 48.9-11). O homem natural busca a sua própria glória, mas Deus, a sua. A adoração é o combustível e meta das missões. É a meta das missões porque nelas simplesmente procuramos levar as nações ao júbilo inflamado da glória de Deus. O alvo das missões é a alegria dos povos na grandiosidade de Deus. Quando a chama da adoração arder com o calor da verdadeira excelência de Deus, a luz das missões brilhará para os povos mais remotos da terra.” 14 Adorar o Senhor vai abrir nossos olhos para a realidade da eternidade, que se manifesta hoje, que não encontra limites culturais, sociais e temporais. Essa perspectiva imersa na glória de Deus é nossa esperançosa inspiração. John Piper - Alegrem-se os povos - a asupremacia de Deus em missões - São Paulo-SP - Ed. Cultura Cristà - 2001 - p. 13 14 40 MISSIONAL JOÃO COSTA 41 capítulo 3 Esperança na Eternidade “A vida eterna já não é mais uma esperança para o último dia” C.H. Dodd “Agora, pois, glorifica-me, ó Pai, junto de ti mesmo, com a glória que eu tinha contigo antes que o mundo existisse.” João 17.5 Toda a primeira sessão de João 17 (versículos 1-5) enfatiza a glória de Deus através do relacionamento de Pai e Filho, em situações extremas onde a vida e o tempo como conhecemos não podem ser mensurados. Essa trama na qual somos envolvidos e para a qual somos chamados também nos envia. Da mesma forma que Jesus foi enviado ao mundo, nós também somos enviados a realidade do século presente, não como espectadores do teatro religioso, ou como especulador da espiritualidade, mas como missionários. O mundo continua sendo decaído e ao mesmo tempo está sendo redimido. Jesus morreu, mas ressuscitou. Por isso vivemos o presente com gratidão e adoração por um fato passado, a redenção pela cruz, e na esperança de um futuro prometido, o Reino que virá. Existe uma tensão, no aparente paradoxo do Reino que já veio e o Reino que virá. Onde estamos vivendo um tempo intermediário, entre a 42 MISSIONAL primeira e a segunda vinda de Cristo. Estes fatos acabam gerando uma verdadeira tensão entre o objetivo e o subjetivo, entre o já e o ainda não. O “já e ainda não” do Reino de Deus, é a dimensão em que nós contemplamos a eternidade em profundo amor e reverência à glória de Deus. O estudioso George E. Ladd escreveu: “O Reino de Deus, portanto, é a realização da vontade de Deus e o gozo das bênçãos que a acompanham. No entanto o Novo Testamento ensina de forma clara que a vontade Deus não será perfeitamente realizada nesta era. A doutrina da segunda vinda de Jesus Cristo é central na teologia bíblica. A Bíblia entende que toda a extensão da história humana repousa na mão de Deus, mas ela busca realização final do Reino de Deus em uma esfera “além da história”, ou seja, em uma ordem de existência nova e diferente.”15 Com esse entendimento, podemos estar em missão como discípulos de Jesus, engajados com nossa vocação, mas livres de uma responsabilidade que não cabe a nós: A expansão do Reino de Deus. Proclamamos o Reino de Deus, mas não cabe a nós a expansão de uma realidade centrada na eternidade. Estamos habituados a nos relacionar com a graça como o favor de Deus que resolve as pendências do pecado no passado, mas de acordo com Paulo em sua carta ao discípulo Tito, fica evidente a plenitude da atuação divina na nossa esfera humana de tempo nos dando esperança: “Porque a graça de Deus se manifestou, trazendo salvação para todos os povos, nos ensinando a renunciar à impiedade e às paixões mundanas, e a viver com domínio próprio, e de forma justa e piedosa nesta era presente, aguardando a nossa bendita esperança, a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo” (Tito, 2.11-13 - ESV). George Eldon Ladd - O Evangelho do Reino: Estudos bíblicos sobre o reino de Deus - p 25 - Ediçòes Vida Nova - 2008 15 JOÃO COSTA 43 Por isso é necessário rever sempre o objetivo de existirmos como homens e mulheres que nasceram de novo, que antes de sermos missionários, é, além de glorificá-lo, desfrutar d’Ele para sempre. A espiritualidade fastfood com a qual lamentavelmente estamos habituados, desmorona ao vislumbrarmos unicamente Jesus, como o Filho de Deus, podendo declarar ao Pai: “Agora”. Jesus era o verbo que estava com Deus, e era (e é!) Deus. Esse expressar, esse falar, esse verbo é Deus, pois um Deus que não fala, um Deus sem a Palavra, não é Deus. E uma palavra que não é Deus nada realiza. Segundo a profecia de Isaías: “…assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam para lá, mas regam a terra e a fazem produzir e brotar, para que dê semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca; não voltará para mim vazia, mas fará o que me agrada e cumprirá com êxito o propósito da sua missão.” (Is 55.10-11). Assim a Escritura estabelece a base para a declaração do evangelista João de que o verbo estava com Deus e o verbo era Deus. O termo verbo ou Palavra, na língua grega, é logos. Embora logos tenha desempenhado um papel no gnosticismo pagão (doutrina herética que tumultuava a Igreja primitiva), como um dos passos através dos quais a pessoa desenvolve seu caminho em direção a Deus, e como tal é encontrado dessa forma em numerosas heresias judaicas cristãs, aqui ela não evidencia uma inclusão pagã no NT, como alguns supõem. Pelo contrário, logos corresponde ao termo aramaico memra (também “palavra”), um termo técnico e teológico usado pelos rabinos nos séculos antes do nascimento de Jesus, quando tratavam da expressão de Deus a respeito de si mesmo. Se existe uma forma de iniciarmos um relacionamento genuíno com o Deus que “é” antes que o mundo existisse, esse relacionamento come- 44 MISSIONAL çará pela Sua Palavra, revelada nas Sagradas Escrituras. Como declara o renomado professor de Teologia bíblica e sistemática, Wayne Grudem: “A suficiência das Escrituras significa que elas contêm todas as palavras que Deus deseja que seu povo tenha em cada estágio da história da redenção e que Deus nos diz, pela Bíblia, tudo que precisamos saber sobre a salvação, sobre confiar nele de maneira perfeita e sobre como obedecer a ele de forma perfeita. Essa definição enfatiza o fato de que somente nas Escrituras devemos procuras às palavras de Deus para nós. Isso também nos lembra que Deus considera o que Ele nos diz na Bíblia como suficiente para nós e que devemos nos regozijar e nos contentar com a grande revelação que ele nos outorgou.” 16 A imersão nas Escrituras desperta em nós o fascínio que se transforma no culto racional, fruto de mentes com entendimento renovado. A experiência da adoração é uma disciplina espiritual que se desordenou ao longo dos anos, e precisamos resgatá-la com todo zelo, pois se existe uma forma de nos conectarmos com a realidade da eternidade é nos prostrando em apaixonada devoção diante de Jesus, e servindo ao próximo, para que de fato sirvamos ao Senhor, que não vemos com nossos olhos naturais. As nossas discordâncias particulares devem ser colocadas de lado ante a infinita grandeza da concordância entre Pai e Filho. A glória neste versículo reforça tudo o que foi tratado até aqui: a deidade da Pessoa de Jesus. Ele possuía a glória divina antes do mundo existir, na eternidade que chamamos de passada. Portanto, deve ser glorificado agora com essa glória juntamente com o Pai. O Senhor tem participação na glória divina não por si mesmo, mas junto com o Pai, pois Ele e o Pai são um. Esta unidade na eternidade é um sinal de esperança para nós no tempo chamado hoje. E na verdade um alento para repensarmos a nossa missão. Como já afirmamos, ser missional diz respeito a estar alinhado com a missio Dei, a missão de Deus. Portanto, alguns temores com as temporalidades, como os discípulos 16 Wayne Grudem - O Dom de Profecia - pp 336 - Editora Vida JOÃO COSTA 45 demonstravam em Atos 1.7, ao perguntar a Jesus quando o reino seria restituído a Israel, são desnecessários. À luz da boa nova, da qual nós como missionários somos cartas vivas, pouca diferença faz a posteridade da modernidade, a liquefação da sociedade e até mesmo a cosmovisão relativizada. Não que a experiência com a glória de Deus nos aliene, mas ao contrário, recebemos um genuíno choque de realidade. E assim somos levados a um genuíno compromisso comunitário onde passamos a considerar a nós mesmos e o próximo, como parte da eternidade divina. Desta forma temos nossa relação construída com Deus pela via da oração, do jejum e das Escrituras não como um documento histórico, mas como a palavra do nosso Deus que era, que é e que há de vir. A busca por atender uma agenda de novos programas tem nublado nossa verdadeira atuação missional. Precisamos encontrar nosso caminho novamente. Não em busca de uma espiritualidade que se auto-intitula como monástica (até porque para muitos isso é mais uma moda do cristianismo líquido, moldado pelos apelos de uma espiritualidade horizontalizada, do que, a busca pela referência histórica do precioso legado de alguns dos chamados pais do deserto), mas que tem a devoção como plataforma de lançamento para a missão de Deus. Precisamos ir além das convicções enjauladas em confessionalismo religioso, que suprem apenas as expectativas transitórias de uma ou outra argumentação da presente era. Precisamos de uma fé madura, que tem peso em todos os aspectos da nossa vida, a ponto de imprimir em nós uma esperança sólida em Cristo, a ponto de nos dar uma nova perspectiva sobre a própria história. Através dessa bendita esperança, nossa visão aponta para uma consumação futura, tendo como garantia, a vitória de Cristo na cruz. A visão cristã da história, pelo prisma do NT, é que ela é um desenrolar do propósito eterno de Deus, tendo como centro, a redenção da cruz. Então todas as cerimônias, tipos, promessas do AT, têm seu cumprimento na vida, morte, ressurreição 46 MISSIONAL de Jesus, e alcançará sua plenitude ou consumação final na segunda vinda de Cristo, no novo céu e na nova terra, na plena redenção. Podemos afirmar que pelo fato de Jesus ser o Senhor da História, ela obedece a um plano eterno e soberano e caminha para um propósito final, que é a Glória de Deus. As Escrituras nos ensina a ler a História como a esfera da redenção. Para o apóstolo Paulo, o Espírito Santo hoje em nós, é o penhor (Ef 1.14; 2 Cor 1.22; 5.5), o selo (Ef1.13; 4.30; 2 Cor 1.22) e as primícias (primeiros frutos - Rm 8.23). Paulo via a era entre a primeira e a segunda vinda de Cristo como uma era “provisória”, com base nisso cremos que já temos as bênçãos que Deus nos deu em Cristo (Ef 1.13). Mas ainda não as temos em plenitude. E uma dessas bênçãos é a maturidade. Precisamos desenvolver uma maturidade que nos leve, como Igreja, a participar ativamente na sociedade, visualizando sua transformação, mas acima de tudo reconhecendo que o poder de moldar o futuro da mesma não está em nossas mãos, e que tudo que é feito é para a gloria do Todo-Poderoso e Senhor da história, Jesus Cristo. Recebemos, assim, a instrução de Paulo aos Filipenses (Fp3.2-16), onde nos é apresentado um caminho para a maturidade cristã. Do ponto de vista moral e legal, Paulo poderia ser considerado uma pessoa madura, pois cumpria os requisitos da lei e andava de acordo com os padrões morais mais elevados da sua cultura e religião. Era também zeloso, responsável e coerente para com suas convicções e seus compromissos religiosos. Como ele mesmo afirma: “circuncidado no oitavo dia, da descendência de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fui fariseu, quanto ao zelo, persegui a igreja; quanto à justiça que há na lei, eu era irrepreensível”. O que chama atenção é que, para ele, tudo o que consideramos fundamental para o caminho da espiritualidade e amadurecimento, tudo o que vimos anteriormente, JOÃO COSTA 47 tudo aquilo que consideramos um forte fundamento, ele considera como “esterco” diante daquilo que é superior e sublime. Fica para nós o ensino que outrora o apóstolo Paulo trouxe à Igreja de Roma, ressoando ainda hoje como uma verdade que nos faz ser comunidade de Jesus: “Pois tudo o que foi escrito no passado, foi escrito para nos ensinar, de forma que, por meio da perseverança e do bom ânimo procedentes das Escrituras, mantenhamos a nossa esperança. O Deus que concede perseverança e ânimo dê-lhes um espírito de unidade, segundo Cristo Jesus, para que com um só coração e uma só boca vocês glorifiquem ao Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, aceitem-se uns aos outros, da mesma forma como Cristo os aceitou, a fim de que vocês glorifiquem a Deus.” Romanos 15:4-7 48 MISSIONAL JOÃO COSTA SEGUNDA PARTE POR QUE SOMOS MISSIONÁRIOS? Porque Somos a Comunidade de Discípulos 49 50 MISSIONAL JOÃO COSTA 51 capítulo 4 Senso de Pertencimento “Sendo cristãos, entendemos que não somos de nós mesmos, mas fomos comprados por preço. Por meio de sua graça salvadora, o Senhor Jesus se apropriou de nosso coração de pedra, e o regenerou, e o transformou em um coração espiritualmente maleável, derramando nele o seu amor, mediante o Espírito Santro, que nos foi dado” Burke Parsons “Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram teus, e tu os deste a mim; e eles obedeceram à tua palavra. Agora sabem que tudo quanto me deste vem de ti” João 17.6-7 Jesus revelou a glória do Pai, quando fez conhecido aos homens o Seu nome. Aos eleitos, o entendimento do nome aponta para o caráter de Deus, se entendermos a necessidade que essa resposta imprime ao olharmos para Ex 3.13-15. A revelação que Jesus faz do nome de Deus é clara na sua encarnação, se fazendo cumprir a profecia de Isaías 52.6: “Por isso o meu povo conhecerá o meu nome.” Ao orar pelos discípulos, Jesus deixa claro o pertencimento. Os discípulos são o Seu povo. O caráter do Pai é revelado àqueles que ele escolheu, e que mediante adoção não são mais criaturas, mas agora são filhos. 17 Como filhos de Deus, co-herdeiros em Cristo, passamos a ser uma comunidade, não um mero ajuntamento. Como diz Pedro: “Antigamente, não éreis povo; agora, sois povo de Deus; não tínheis recebido misericórdia; agora, recebestes misericórdia.” (1Pedro 2.10). 17 Se você ainda não conhece este texto, pare a leitura desse livro AGORA e leia Romanos, capítulo 8 52 MISSIONAL O chamado dos que conheceram a Deus, evoluí para a vida comunitária. Não pelo pertencimento unicamente à comunidade, mas, sobretudo, por pertencer ao próprio Senhor Jesus. Pertencendo a Jesus e sendo parte da comunidade de discípulos a nossa identidade vai sendo moldada nesse ambiente. Timmis e Chester declaram: “A Bíblia mostra que somos pessoas da comunidade, feitas para amar a Deus e os outros. Com relação à humanidade, Deus não é simplista em falar apenas uma palavra de comando - Ele inicia um diálogo. “Façamos o homem à nossa imagem” (Gn 1.26). Esse diálogo mostra que o próprio Deus é um ser social e não solitário. Portanto, sua imagem não pode ser portada por um indivíduo, mas pelo homem e a mulher juntos (Gn 1.27). O segundo capítulo de Gênesis reforça isso quando o autor nos diz que a única coisa em toda a criação, que não era boa, era o que o homem estivesse só (v.18). A individualidade divina é definida em termos relacionais. O Pai é o Pai porque tem um filho. Deus é parte de uma comunidade. A individualidade humana também é definida em termos relacionais. A existência de uma pessoa sem relacionamentos é tão impossível quanto a de uma mãe sem filhos ou um filho sem pais. O entendimento trino da nossa humanidade sugere que devemos definir a nós mesmos pela rede de relacionamentos em que vivemos. Sou pai, marido, membro da Igreja, filho de Deus. Isso me torna singular (ninguém possui a mesma matriz de relacionamentos), mas também me define com relação às outras pessoas. Não sou autónomo. Sou parte de uma comunidade. Não posso ser quem eu sou sem considerar as outras pessoas. Na nossa difundida cosmovisão individualista, falamos sobre a mensagem evangélica da reconciliação, unidade e identidade como povo de Deus. Talvez esse seja o maior abismo cultural que a Igreja precisa fechar”. 18 Muito tem se falado do resgate do caráter comunitário da Igreja brasileira, que se desgastou com a excessiva institucionalização, caracterizado pelo clericanismo (a escalada de poder e títulos extrapolaram o ‘bispaSteve Timmis e Tim Chester - Igreja Total: repensando radicalmente a nossa apresentação do evangelho na comunidade - pg 40,41 - Editora tempo de Colheita - 2011 18 JOÃO COSTA 53 do’ e ‘apostolado’ e tem alcançado níveis galácticos!). Pela apologética doutrinário-denominacional (a defesa marcial das tradições segmentadas pelas confissões teológicas e agremiações das históricas até as neopentecostais). Pelo uso cansativo de programas (o franchising de modelos de gestão de membresia ou os cultos temáticos que glorificam tudo, menos o Senhor), pela indústria fonográfica (a fogueira de vaidade ‘gospel’ que se equipara aos programas televisivos Ídolos ou Qual o seu talento?). Para combater isso, esforços de se viver comunidade têm sido constantes por parte da Igreja. Mas existe um grande perigo: o de nos fecharmos numa espécie de bunker religioso, ou transformar a Igreja num centro de recuperação de crentes feridos. É claro que a Igreja deve acolher a todos, mas não fomentar a amargura religiosa. O melhor tratamento de recuperação nesses casos é formar discípulos. A formação espiritual não propõe isolar pessoas, mas levá-las ao Senhor, para ouvindo a sua voz, correspondam a seu chamado como missionários em seu contexto. Por isso, antes de pensarmos o conceito ‘comunidade missional’, precisamos pensar uma comunidade de discípulos. Um engano recorrente na Igreja é o de excluir o princípio do discipulado da vida cotidiana da comunidade, fazendo com que o discípulo se torne uma marionete de domínios de subaproveitamento ‘apostólico’ ou apenas um mero leitor de uma apostila. O discípulo é o ser comunitário, que reconhece a sua necessidade da vida de Igreja. Precisamos da Igreja porque a partir da doutrina da Trindade e do mistério da comunhão é que vemos que a vida cristã é basicamente relacional, é a conversão do indivíduo em pessoa diante de Deus. O indivíduo é o ser encapsulado em si mesmo. Realiza-se a partir de suas próprias conquistas, interpreta a liberdade como autonomia e rejeita tudo o que vem de fora como sendo menos real e verdadeiro. Já a pessoa, é o ser liberto de si mesmo para uma vida de entrega e auto-abandono, que se realiza na comunhão e na experiência de amor com Deus e o próximo. Alegra-se com a co-dependência, aprende 54 MISSIONAL a confiar, aceita a paternidade de Deus e alegremente submete-se a ela provando o cuidado amoroso do Pai e a comunhão com o Filho. A conversão ao Evangelho não é apenas uma conversão de convicções e comportamento, mas uma conversão do ser. É a transformação do egoísmo na generosidade, da mágoa no perdão, da alienação na comunhão. As virtudes de um discípulo de Jesus raramente são experimentadas solitariamente, só podem ser provadas em comunhão, na relação com o outro. Essa relação de pertencimento ao Senhor nos conduz à fidelidade horizontal, que não pode ser determina por relações de poder, mas pelo amor e compromisso de sermos parte da mesma família, remando contra a correnteza de decepções que o evangelicalismo contemporâneo tem proliferado. Isso resulta na falta de constância que as pessoas demonstram com a Igreja. A socióloga Sandra D. Souza relata: “No Brasil, como em outras partes do mundo, o fiel já não é mais tão fiel assim a sua religião, ele transita em diversas expressões religiosas. O perfil religioso do homem e da mulher contemporâneos pode ser altamente cambiante, favorecendo um aspecto religioso num determinado momento, e outro logo depois (…). A ideia de “trânsito religioso” admite o “passeio” por diversas religiões (mesmo, em alguns casos, havendo predileção por uma ou outra) não demanda mudanças intestinais na forma de vida dos transeuntes e dispensa ou atenua o compromisso com uma instituição específica. Isso pode ser melhor verificado entre aqueles que, apesar de admitirem uma pertença religiosa, transitam e se apropriam dos mais variados aspectos simbólicos. Não que isso não acontecesse anteriormente, mas estamos falando de uma intensificação disso.” 19 A comunidade dos discípulos é uma comunidade de pertencimento. Outro grande engano das Igrejas que tem enfatizado uma Sandra D. Souza - Transito religioso e construções simbólicas temporárias: uma bricolagem contínua - p. 164,165 19 JOÃO COSTA 55 experiência comunitária é o de se fecharem num gueto próprio, com um dialeto característico, com usos e costumes específicos, seguindo os caminhos religiosos (no pior dos sentidos) predominantes. E uma das práticas é abrir mão do “pertencer ao Senhor, pertencer um ao outro” em nome de uma pretensa liberdade. Precisamos desfrutar da riqueza de buscarmos o Senhor, conhecer o Senhor, juntos, como família. Dietrich Bonhoffer sabiamente escreveu: “A vida em comum sob a Palavra começa com a adoração coletiva (…). A família comunitária se encontra para louvar o Senhor, render ações de graças, ler as Escrituras e orar.” 20 Toda forma doentia de escapismo que os cristãos contemporâneos utilizam, é resultado, segundo Thabiti Anyabwile, de uma: “falha em entender ou assumir seriamente o propósito de Deus para a Igreja local - que ela seja central à vida de seu povo. As pessoas não se tornam membros comprometidos de Igreja, e, por consequência, discípulos saudáveis, porque não entendem que esse compromisso é exatamente o meio pelo qual Deus tenciona que seu povo vivência a fé e e experimente o amor cristão.” 21 Fugir da ideia do pertencimento (ao Senhor e ao próximo), através de subterfúgios filosófico-existencialistas é fugir de si mesmo. Pois essa construção nasce da falta da espiritualidade centrada no Evangelho, que revela a glória de Deus. Essa falta de espiritualidade, gera uma crise de identidade que pode nos enclausurar em duas celas: a apatia ou a do ativismo. Se existe uma ‘cura’ para essa crise, a obediência à Palavra, vai nos apontar o caminho e as possibilidades para alcançá-la. O fato de sermos a comunidade de discípulos, não significa que somos guiados pelo discipulado em si, porque o princípio, é da relação 20 21 Dietrich Bonhoffer - Life Together:The Classic Exploration of Faith in Community- p 42 - Harper Collins - 1978 Thabiti Anyabwile - O que é um membro de Igreja Saudável - p.66 - Editora Fiel - 2010 56 MISSIONAL entre mestres e alunos. Somos a comunidade de discípulos de Jesus, consequentemente, o que nos conduz e nos guia é o Evangelho. Em sua oração Jesus posiciona os discípulos na relação trinitariana, reconhecendo que eles lhe foram dados pelo Pai, e que a marca disso é o fato deles guardarem e obedecerem ao Evangelho. O que precisamos resgatar, para sobrepujar a crise ensimesmada da cristandade, é a experiência dos discípulos em Jerusalém, que mesmo com dúvidas, medos e nítidas limitações, se converteram ao Evangelho e deixaram suas identidades/atuações serem moldados pelo Evangelho, como fica evidente, por exemplo, no capítulo 2 de Atos dos Apóstolos. Jonathan Dodson descreve que: “ao contrário do que alguns possam pensar o discipulado não é o motor da Igreja. O Evangelho “é”. Sem o Evangelho, tanto o discipulado como a própria Igreja falha. Sem a força motriz do Evangelho, o discipulado se transforma em auto-ajuda religiosa motivada por um pietismo conservador. A Igreja é reduzida a uma organização sem fins lucrativos, em que as pessoas perdem o interesse. Mas o Evangelho reativa a Igreja e desmascara o dissimulado!” 22 Os discípulos que são empodeirados pelo Evangelho, sabem que o mestre, o rabi é o próprio Deus soberano. A soberania de Deus se descortina para aqueles que têm a Palavra de Deus como pavimentação da sua jornada. A.W. Pink diz: “Verdadeiramente, reconhecer a soberania de Deus é, portanto, contemplar o próprio Deus soberano. É comparecer à presença da augusta “Majestade nas alturas”. É ter a visão do Deus três vezes santo, na excelência da sua glória. O efeito de tal visão se pode aprender em trechos bíblicos que descrevem a experiência de várias pessoas que contemplaram o Senhor Deus.” 23 Uma proposta para uma comunidade de discípulos. Alguns insights mais práticos para a vida devocional de cada discípulo: No coração da nossa fé está o discipulado, e de forma bem espe22 23 Jonathan Dodson - http://theresurgence.com/2011/11/04/theres-a-discipleship-crisis-in-the-church-today AW Pink - Deus é Soberano - p.140 - Editora Fiel - 2009 JOÃO COSTA 57 cífica, o aprendizado de vida direto que temos através de Jesus (Mt 28.18-20). Amadurecer como um discípulo de Jesus não acontece por acidente, a intencionalidade é necessária. Para um discipulado efetivo precisamos de um foco definido. FOCO: Confiar em Jesus, Amadurecer em santidade e Viver em missão. CONFIAR EM JESUS. Em toda a Bíblia, a grande boa notícia para a humanidade pode ser resumida em duas palavras: Confie Nele. Jesus é esta boa notícia. Nós fomos criados por Ele e para Ele, portanto, a vida que é realmente vida, só pode ser encontrada Nele. No entanto, o mundo, a própria carne e o Diabo, fazem tudo para desalojar, distorcer e distanciar nossa confiança e contentamento Nele. A maior arma que nós temos contra esses oponentes é uma fé empodeirada pelo Espírito Santo, que nos leva a crer nas promessas de Deus, que é, que era e que há de vir. Isso significa que devemos seguir os “gemidos que não se expressam com palavras”. Romanos 8.26, mostra que não temos em nós mesmos a capacidade sequer de orar. Sendo assim, o caminho do discipulado, é um caminho de espiritualidade que tem o Espírito Santo como condutor, nos levando a crer nas promessas de Deus, ao invés de seguir os impulsos da carne. Não são as promessas do orgulho em se sentir importante, da auto-piedade para curar nossa baixa auto-estima, da luxúria sexual para a satisfação, ou o ódio para obter justiça. O Espírito Santo nos dá a capacidade de crer em promessas melhores, verdadeiras e duradouras. Então, ao invés de acreditar em promessas superficiais e fugazes, ponha sua fé nas promessas de Deus. Peça ao Espírito Santo para fortalecer a sua fé, para ir além dos impulsos da carne e crer em Deus. AMADURECER EM SANTIDADE. A semelhança de Cristo é o nosso critério para amadurecer em santidade. Já sabemos que não é nossa aparência piedosa, ou nossa própria 58 MISSIONAL justiça que vão nos levar a esta estatura (Ef 4.13). Mas, devemos entender que santidade não é de uma hora para a outra. Santidade é uma colheita (Gl 6.7). Nós temos duas estratégias aqui. Em primeiro lugar, para amadurecer, nós devemos nos tornar bem familiarizados com as áreas da nossa personalidade que extraem o pior de nós, onde nós somos mais propensos a pecar. A fim de vencer os impulsos da carne, nós temos que saber como, quando e onde eles são mais efetivos. Peça ao Espírito Santo para lhe convencer dos pecados que precisam ser identificados e combatidos. Em segundo lugar, é importante saber o porquê de gravitarmos em certos pecados. Precisamos investigar em nós mesmo porque somos atraídos para estes pecados. Quais as vantagens que eles trazem? Aceitação, satisfação, auto-estima, significado? Conheça a mentira em que você acredita quando você cede a estes impulsos. Santidade resulta do enfraquecimento habitual da carne através de uma busca intencional de uma vida guiada pelo Espírito Santo. VIVER EM MISSÃO. O viver missional que constrói relacionamentos por causa do Evangelho tem que ser experimentado pela comunidade de discípulos, onde encaramos pessoas como amigas e não como projetos. O grande mandamento de Jesus é amar a Deus e amar ao próximo. A grande comissão de Jesus é fazer discípulos. Por vezes, nosso discipulado se pulveriza na procura por fazer discípulos. Como isso acontece? Quando por vezes procuramos fazer discípulos nas florestas ou no sudeste da Ásia, sem ao menos compartilhar nossa fé com o vizinho ao lado. Os seguidores de Jesus proclamam o Evangelho, à medida que revelam Jesus em suas próprias vidas pautadas pelas boas novas. Podemos experimentar nos encontrar regularmente com 3 ou 5 pessoas que não seguem a Jesus, incluindo-as amorosamente na nossa vida, orando por elas e convivendo com elas. Tim Chester orienta: JOÃO COSTA 59 “Hospitalidade envolve acolhimento, criar ambiente, ouvir, prestar atenção e generosidade. Refeições desaceleram as coisas. E alguns de nós não gostamos disso. Nós gostamos de coisas pré-prontas. Mas o compartilhar de uma refeição nos força a sermos orientados para pessoas ao invés de orientados para tarefas. Compartilhar uma refeição não é o único caminho para construir relacionamentos, mas é o número um da lista.” 24 Compartilhar da mesa é uma expressão das mais eficazes quando queremos fazer alguém se sentir parte da nossa família. Se temos a intenção de cumprir a grande comissão, temos que entender o caráter de redenção da identidade que a mesma carrega. Inserir, trazer para a nossa vida, aquele que não segue a Jesus, é uma forma de mostrar o caminho que trará para a vida dessa pessoa o resgate da sua identidade, em Deus. Brad House define bem essa questão: “Nós somos portadores da imagem de Deus, criados à sua imagem para proclamar sua grandeza à toda criação. Isso é quem nós somos, não o que fazemos. Isto significa que nós temos um valor intrínseco como portadores da Sua imagem e que nós fomos criados com um propósito - reconhecer a glória de nosso Criador. É a partir da imagem de Deus e da obra reconciliadora de Cristo na cruz que nós expressamos nossa identidade como discípulos de Jesus, adorando a Deus, em comunhão com o corpo de Cristo e em missão no mundo.” 25 24 Tim Chester - A Meal With Jesus - p.46 - Re: Lit/Crossway - 2011 25 Brad House - Community - pg 91 - Re: Lit/Crossway - 2011 60 MISSIONAL JOÃO COSTA 61 capítulo 5 Reconhecimento e Revelação “Por sua própria natureza, o fascínio é algo que nos pega desprevenidos e está acima de qualquer expectativa ou suposição, E não pode ser colocado dentro de um esquema nem explicado. Requer a presença e o envolvimento da pessoa.” Eugene Peterson “Porque lhes transmiti as palavras que tu me deste, e eles as acolheram e verdadeiramente reconheceram que vim de ti e creram que tu me enviaste.” João 17.8 O nosso senso de pertencimento procede do reconhecimento que temos da identidade do nosso Deus, não é um acolhimento sentimental, mas uma consciente tomada de postura diante da revelação de quem é Ele e qual o seu propósito para nós. À medida que a “imago Dei” (a imagem de Deus) vai definindo nossa imagem como discípulos, a opus Dei (a obra de Deus) é revelada ao corpo de Cristo, a Igreja, que se lança em missão por crer que Jesus foi enviado em missão. Desta forma, podemos viver em missão de forma holística, interpretando as nuances de fazer parte de uma obra, como Igreja. Muito se fala hoje dos aspectos orgânicos da vida da Igreja, o que para alguns se tornou praticamente um novo “modelo” de Igreja. É incoerente com o princípio central ensinado por alguns líderes que articulam há alguns anos o conceito “orgânico” da Igreja como Wolfgang Simson, John White, Alan Hirsch, Michael Frost, Milt Rodriguez e Neil Cole. Mais ainda, é incoerente com o ensino de 62 MISSIONAL Jesus. A grande questão de “acolhermos a palavra e reconhecer quem é nosso Deus” que nos envia em missão, é a nossa própria vida. Se você tiver revelação em relação a isso, então, no momento em que fizer a menor coisa individualista e não relacionada ao Corpo, você sentirá e saberá que está errado, mesmo sendo uma coisa pequena. Não existe absolutamente qualquer lugar para a independência ou individualismo, pois isto é o ego, isto é você, não é Cristo. Se você não tem consciência do Corpo, então seu entendimento está na esfera mental e não vem por revelação. Se for assim, é algo que você recebeu de fora, não algo que veio do interior. Não é espontâneo e não é vida para você. Pelo contrário, é algo nas esferas superficiais de quem somos, e não uma revelação. Caso contrário, você teria consciência do Corpo. Se for algo que você pode jogar fora, de que pode livrar-se ou pôr de lado, então você não tem revelação sobre o Corpo. Esta revelação nos impulsiona ao envolvimento com a obra de Deus, com o trabalho comunitário de ser e fazer discípulos. E é com a mente cheia de reconhecimento e o coração iluminado pela revelação, que nossa caminhada se livra das cadeias do ativismo característico de comunidades regradas pelas tradições denominacionais e programas e nos liberta da apatia bocejante das comunidades “neo-alguma-coisa” que se escondem atrás do cinismo pseudo-intelctual. Se você está realmente no Corpo, como uma experiência resultante de revelação, você não tem como se livrar dele. Você não tem outro caminho, não existe outra escolha, só existe um caminho para você. Se você não segui-lo, não existe outro caminho para você, simplesmente porque você viu o Corpo por revelação. Se for revelação será algo interior, no seu espírito, e não algo exterior fruto de manobras de comportamento. Fora da Igreja, que é o Corpo de Cristo, não há possibilidade de trabalhar para Deus. Se você for a um lugar onde existe uma Igreja verdadeira, isto é, uma expressão do Corpo de Cristo que é realmente JOÃO COSTA 63 Sua Igreja, você não pode trabalhar separado daquela Igreja, isto é, não relacionado com ela. Não abrigue a idéia de que os pastores, líderes ou pessoas com evidência eclesiástica são os únicos missionários que Deus estabeleceu no Corpo e para o Corpo. Realmente não são os únicos. Cada membro do Corpo é designado por Deus para trabalhar para Deus, o Corpo e a edificação do Corpo. Não é que alguns são obreiros e outros são simplesmente membros do Corpo. Todos são obreiros, por isso enfatizamos aqui, todos são missionários. O Corpo de Cristo deve edificar a si mesmo, porque a origem dessa edificação é o Cabeça, Jesus Cristo, e por meio do seu Espírito temos a revelação que nos faz reconhecer Cristo em todas as partes do Corpo. Pedro Arruda diz: “A falta de revelação impede muitos de encontrarem Cristo na leitura da Bíblia ou na oração. Pelo mesmo motivo, a grande maioria não consegue encontrar Cristo no outro. Trata-se da mesma revelação que fez a opinião de Pedro distinguir-se das outras, que eram baseadas no conhecimento humano das Escrituras, quando respondeu a Jesus: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!” (Mt16.16). Foi essa revelação também que possibilitou a Simeão olhar para o menino Jesus e ver o que o sacerdotes que o circuncidaram não viram (Lc 2.26)” 26 Na verdade, a obra de Deus (não nossa obra, mas a obra de Deus através de nós) só começa quando há revelação. Exteriormente é a visão celestial, interiormente é a revelação. Deus não quer que façamos uma espécie de trabalho genérico ou uma miscelânea de obras para Ele. Ele deseja que conheçamos todo o Seu plano e trabalhemos com Ele em direção a um plano e propósito claros. Pois não somos apenas Seus servos, mas também Seus amigos (Jo 15:15). Toda entrega e consagração é valiosa, mas, falando francamente, só depois da revelação é que a entrega e a consagração podem ser 26 Pedro Arruda - A Comunhão Nossa de Cada Dia - pg 74 - CCC Edições - 2010 64 MISSIONAL de muito valor, pois somente assim podem ser completas. Nossa entrega antes dessa revelação só tem em vista a salvação. “Ele me comprou com Seu sangue, Seu amor por mim é indescritível. Por isso, devo dar a mim mesmo a Ele. Eu devo dar a mim mesmo e tudo o que tenho por causa do Seu amor e graça salvadora.” Mas depois da revelação, isso é totalmente diferente, pois procede do reconhecimento inicial da nossa condição de pecadores diante da soberana graça divina. DUAS FORMAS DE EDIFICAR O CORPO Como podemos ser parte efetiva dessa edificação do Corpo? Se nossa missão é “salvar pessoas”, o obreiro que estiver fazendo isso vai dar a impressão de estar realizando algo importante. Em certo sentido, vai parecer que é uma obra para o homem. Mas se nossa obra tem como propósito edificar o Corpo, então o homem, o indivíduo por si só, perde o destaque; porque o Corpo é de Cristo. É tudo sobre Ele! É tudo para Ele! Em 1 Coríntios 12 temos o registro dos muitos dons do Espírito, e Paulo enfatiza tanto as palavras quanto os atos. Mas em 2 Coríntios 4 só temos atos. Existem duas formas diferentes de edificar a Igreja. Na verdade, qual é o valor desses dons do espírito na edificação da Igreja? O que é esse valor comparado ao valor da vida no Espírito? Paulo, em 2 Coríntios, capítulos 3 a 10, enfatiza o que é o ministério da nova aliança. Esse ministério não está nos dons, mas na suprema grandeza do tesouro contido no vaso de barro, isto é, Cristo dentro dele. Em 2 Coríntios lemos: “Levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a Sua vida se manifeste em nosso corpo. (...) De modo que, em nós, opera a morte, mas, em vós, a vida” (4.10, 12). Isso é totalmente diferente de Romanos 6, pois a idéia aqui é da contínua operação da morte. A morte de Cristo opera e continua operando dia a dia em nós, resultando na vida que flui para os outros. Assim a Igreja é edificada. JOÃO COSTA 65 Aqui também temos duas maneiras pelas quais a Igreja é edificada: (a) em 1 Coríntios 12, pelos dons do Espírito; e (b) em 2 Coríntios 4, pela operação da morte em nós, para que a vida possa operar nas pessoas. Qual das duas mais tem edificado você? Sua vida interior tem sido edificada mais pelos dons do Espírito ou por aqueles que você sabe que conhecem a aplicação da cruz na vida interior e levam sempre neles o morrer de Jesus para que a vida de Jesus seja manifesta? Isso é carregar a cruz. Que a morte nunca cesse de operar em você e em mim, para que também a vida nunca cesse de fluir para os outros. Vemos pessoas ricas no uso dos dons: dom de cura, dom de expulsar demônios, dom de eloquência ou de falar em línguas. E pensamos quão ricas, abençoadas e usadas por Deus são tais pessoas. Mas isso é realmente assim? Estes são os dons da meninice. Eles são para o estágio de bebê, útil e necessário para aquele período, mas devemos crescer. O que realmente edifica e mais ajuda não são os dons ou eloquência, mas a vida daqueles que conhecem profundamente a cruz, que a conhecem no íntimo e diariamente, e com os quais entramos em contato. Tome, por exemplo, um grupo de cristãos recém-salvos. Nos primeiros anos o Senhor pode lhes conceder dons, para que fiquem maravilhados com Seu poder e glória, e para fortalecer sua fraca fé. Mas uma vez que ela esteja suficientemente forte, Ele removerá os dons e trará a cruz. Existem graves perigos associados com os dons, e o maior deles é o orgulho espiritual. Alguém no meio de um culto pode levantar a voz, direcionado pelo Espírito, e pronunciar umas poucas frases maravilhosas que ninguém mais pode pronunciar. Então, ele pensa: “Sou mesmo importante!”. Todavia, sua vida interior pode ser infantil comparada com outro crente que não tem os dons, mas conhece profundamente a cruz. Deus concede soberanamente os dons a alguém aqui e ali para que possam servir como Seus porta-vozes por algum tempo, pois neste período nada mais será entendido porque são bebês, e Ele 66 MISSIONAL não tem como encontrar-nos em outro nível qualquer. Na verdade, Ele usará qualquer boca, até mesmo a de um jumento. Mas este é um ministério limitado, do tipo “jardim-de-infância”, e é propenso à vaidade. O que Deus realmente quer e está aguardando e trabalhando para obter somos nós, os vasos nos quais as palavras dadas por Ele para as expressarmos sejam tomadas por Seu Espírito e entretecidas no mais íntimo do nosso ser pela cruz, até se tornarem nossa vida. Somente então nossa missão será de vida, vida que flui sempre da morte que opera em nós continuamente. Sendo assim, todos os que confiam nos dons são tolos, porque estes dons não mudam o homem interior. Uma Igreja que procura se edificar por meio dos dons sempre acabará sendo uma Igreja carnal, porque esta não é a forma de Deus para edificar a Igreja, a não ser no estágio da tenra infância. O método de Deus é: vida e por meio da vida. E os cristãos que estão “inteiros” ou “intactos” nunca podem ministrar vida, pois apenas os que foram quebrados podem ministrá-la. Somente através do quebrantamento deles é que a vida pode manifestar-se. Esse é o método perfeito de Deus. Existem duas maneiras de servir o Corpo: uma, através do dom, é objetiva; e a outra, através da cruz, trabalhada, lavrada interiormente pelo Espírito, é subjetiva. Em algumas Igrejas locais, Deus precisa usar uma dessas maneiras e, em outras Igrejas locais, Ele pode usar a outra. O dom espiritual pode ser chamado de “empréstimo Divino”: o Senhor empresta Seu próprio poder e dons a você. Isso é algo realmente fora de você, separado de você. Tomemos Sansão como exemplo: ele podia fazer muitas coisas incomuns, coisas bem singulares e diferentes de todas as outras. Todavia, o homem mesmo não era de modo algum incomum aos olhos de Deus. Deus simplesmente empresta Seu poder a pessoas comuns por algum tempo porque Ele tem uma necessidade especial, mas isso não significa JOÃO COSTA 67 que o indivíduo é uma pessoa de santidade ou de valor espiritual especial. Na verdade, mais tarde ele pode até dar provas de ser o contrário disso. NÃO FAZER, MAS SER A sociedade que se faz conhecida pela alta performance, enfatiza o que a pessoa diz e o que faz, mas presta pouca atenção àquilo que a pessoa é. Muitos quando pensam em serem discípulos de Jesus, missionários inseridos em seu contexto, desejam ardentemente falar com poder e eloquência, anseiam falar de forma brilhante a fim de mover e ajudar as pessoas. Eles falham em reconhecer que este não é o ponto vital. A questão vital é: quem e o que você é? O que tem valor, a questão de superior importância não é que você tenha recebido um dom e, por isso, seja capaz de falar, mas sim que você conhece o Senhor e, por isso, pode falar. Por isso, os dons estão conectados a uma questão de maturidade, a condicional dos dons é que eles sejam ferramentas que nos conduzam à semelhança de Jesus. John Stott diz: “A forma mais comum usada por Paulo para definir cristãos é dizer que eles são homens e mulheres “em Cristo”. Não dentro de Cristo, como roupas em um armário ou ferramentas em uma caixa, mas como os ramos que estão na videira e como os membros que estão no corpo, ou seja, unidos em Cristo. Assim, estar “em Cristo” é estar relacionado a ele de forma pessoal, vital e orgânica. Nesse sentido, ser maduro é ter um relacionamento maduro com Cristo, no qual o adoramos, confiamos nele, o amamos e lhe obedecemos” 27 Os dons são necessários? Sim, eles são até certo ponto. Todavia, não devem continuar além do ponto em que o Senhor busca 27 John Stott - O Discípulo Radical - p.36 - Editora Ultimato - 2011 68 MISSIONAL interrompê-los para trazer a operação da cruz, o quebrantamento, o enfraquecimento e o conhecimento do Senhor. Nesse sentido não precisamos de expressões sobrenaturais. Pelo fato de a boca falar do que está cheio o coração, e porque Cristo foi trabalhado interiormente pelo Espírito Santo que habita interiormente, é que posso expressar a vida interior Dele. Podemos dizer hoje exatamente a mesma coisa que dissemos dez ou quinze anos atrás, mas será algo totalmente diferente. “Sim, eu conhecia e cria nestas coisas, mas agora elas foram interiormente trabalhadas no meu próprio ser. Sou eu, isto é, Cristo em mim.” O QUEBRANTAMENTO PRODUZ O MINISTÉRIO Isaque representa aquele que tinha tudo por meio dos dons. Observe que tudo o que ele recebeu veio do seu pai. Era algo objetivo para ele, algo fora dele. Até mesmo quando Isaque abençoou os filhos, ele ficou bastante confuso, pois estava quase cego e confundiu os rapazes. Não foi assim com Jacó, pois ele foi quebrado e realmente despedaçado pelo Senhor e o Espírito de Deus trabalhou interiormente a própria vida de Deus nele, até que ele disse: “A Tua salvação espero, ó Senhor!” (Gn 49.18). Quando abençoou seus filhos, ou melhor, os filhos de José, Jacó sabia exatamente o que estava fazendo. Ele o fez com inteligência. Ele disse: “Eu sei, meu filho, eu o sei” (Gn 48.19). Muitos perguntam: “Por que muitos servos bastante usados por Deus falham ou terminam sendo colocados de lado, isto é, não são mais usados por Ele?” Quem pode dizer que Deus já os havia usado? E se Ele usou, foi apenas concedendo os dons. Deus, em Seu direito soberano, escolheu alguém para lhe conceder um dom temporário, para ser usado por ele durante algum tempo, porque o homem não era interiormente digno de qualquer outro JOÃO COSTA 69 ministério. “Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós” (2 Co 4.7). O Senhor nos conduz através de provas de fogo as quais não poderíamos suportar nem por elas passar, situações em que não seríamos vitoriosos e nas quais seríamos liquidados. Todavia, é exatamente aí que descobrimos que aquilo que é precioso em nosso interior funciona. Por causa daquilo que é precioso dentro do vaso, por causa da vida de Cristo no interior, nós seguimos até o fim. Somos vitoriosos onde não poderíamos ser. Levamos no corpo o morrer de Jesus e, consequentemente, a vida de Jesus se torna manifesta. O reconhecimento e revelação de que Jesus foi enviado, como o primeiro missionário, o primogénito, o cabeça do Corpo, nos conduz ao reconhecimento e revelação da nossa missão, que não é individualizada, tão pouco, um fim em si mesmo. Somos cooperadores na missão que é de Deus, bem como a sua própria obra. Por isso, uma comunidade de discípulos, não se baseia no que faz, em suas obras, em publicidade. Jesus é o grande exemplo, como servo, e o grande exaltado, quando de fato reconhecemos nossas limitações e temos sua soberania revelada. Lançando um olhar sobre os equívocos da Igreja contemporânea, Leslie Newbigin afirmou: “Numa reação necessária contra a ideia de uma Igreja que age como o “vice-reinado” de Deus na terra, uma Igreja triunfalista, nós temos nos últimos anos enfatizado Cristo no seu papel de servo. Nós estamos certos em buscar seguir o exemplo de Jesus, que definiu seu papel como de um servo (por exemplo, Mc 10.45). Mas, esse papel de servo não pode ser mal interpretado. Jesus não se permitiu simplesmente estar a disposição dos outros. As tentações no início do ministério de Jesus eram tentações no sentido de fazer o que as pessoas queriam que o messias fizesse. Enquanto Ele respondeu instantaneamente ao toque da 70 MISSIONAL necessidade humana, Ele ainda manteve a soberania em suas próprias mãos. Ele escolheu os momentos, locais e maneiras dos seus atos. Ainda no fim, Ele estava no controle, como vemos em João 10.17-18 “porque dou a minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou espontaneamente. Tenho autoridade para dá-la e para retomá-la” 28 28 Leslie Newbigin - The Gospel in a Pluralist Society - p. 224 - Eerdmans - 1995 JOÃO COSTA 71 capítulo 6 Comunicação Expressa “O ponto de partida para quem deseja viver pela fé é reconhecer que Deus revelou tanto a respeito de sua vontade que temos além do suficiente para viver sem precisarmos ouvir mais nada” Erwin McManus “Eu rogo por eles. Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, pois são teus. Todas as coisas que me pertencem são tuas, e as que te pertencem são minhas; e neles sou glorificado.” João 17.9-10 O contraponto entre a comunidade dos discípulos e o sistema mundo fica evidente nesse momento da oração de Jesus, mas devemos entender que não é um tratado de isolamento absoluto dos discípulos. É claro que o pai ama o mundo criado, ao ponto de sacrificar seu próprio Filho como o Salvador do mesmo (Jo 4.42; 3.17; 12.47). Em contrapartida, Jesus não intercede pelos discípulos os enxergando apenas como meios de se alcançar o mundo. Por mais que a missão fique clara versículos adiante, por mais que o canal de comunicação da Sua mensagem seja a vida dos discípulos, Jesus tem um relacionamento com aqueles homens, e o nível de amor desse relacionamento é a via de comunicação do Evangelho. Carson comenta que: “o motivo fundamental da restrição auto-imposta de Jesus em relação à por quem Ele ora nesse ponto não é utilitária ou missiológica, e sim teológica: eles são teus. MISSIONAL 72 Por mais amplo que seja o amor de Deus (Jo 3.16), por mais salvífica que seja a postura de Jesus para com o mundo (Jo 12.47), há um relacionamento peculiar de amor, intimidade, exposição, obediência, fé, dependência, alegria, paz, bênção escatológica e frutificação que une os discípulos entre si e com a divindade. Esses temas dominaram o discurso da despedida. Somente se pode orar pelo mundo com o objetivo de que alguns que nesse momento pertencem a ele possam abandoná-lo e juntar-se a outros que foram escolhidos do mundo. (…) Orar pelo mundo, a ordem moral criada que está em ativa rebelião contra Deus, seria o mesmo que blasfemar. Não há esperança para o mundo. Há esperança somente para alguns que nesse momento constituem o mundo, mas que cessarão de ser o mundo e se juntarão àqueles a quem Jesus se refere ao dizer pois são teus.” 29 Essa passagem deixa claro que o peso da nossa mensagem, não é direcionado exclusivamente, como enganosamente alguns pressupõem, para o ‘mundo perdido’. Tudo é sobre Jesus e a Sua glória. Pertencemos a Ele, conhecemos a Ele e nossa expressão como comunidade comunica direta e expressamente quem Ele é, a medida em que Ele é glorificado em nós. Quando olhamos os esforços missionários empreendidos pela Igreja enquanto instituição se sucateando nos últimos anos, temos nas bases das comunidades de discípulos missionais, um sinal de esperança para a proclamação do Reino de Deus no presente século. Isso não significa que tais comunidades são uma alternativa global à Igreja como instituição. Bill Clem adverte: “Frequentemente, nossa necessidade e desejo de ser agraciado nos faz distorcer o conceito de comunidade. São nossos desejos ou necessidades sentidas que tendem a nos motivar a ingressar num grupo em primeiro lugar. (…) É mais seguro concluir que a maioria das distorções são nascidas e criadas no porque de formarmos ou ingressarmos em um grupo.” 30 29 30 D.A. Carson - O Comentário de João, pg 561,562 - Shed Publicações - 2007 Bill Clem - Disciple - pg 141,142 - Re:Lit/Crossway Books - 2011 JOÃO COSTA 73 Ao dizermos que as comunidades de discípulos não poderão pretender ser uma alternativa global à Igreja-instituição, não estamos menosprezando seu real valor renovador da expressão eclesial. Tentamos situar seu significado da Igreja universal. As comunidades de discípulos, sem dúvida, significam um aguilhão capaz de mobilizar os aspectos enrijecidos da instituicao-Igreja e representam uma chamada para uma vivência mais intensa dos valores autenticamente comunitários do Evangelho. Podemos dizer que toda a pregação de Jesus consistiu em reforçar esses aspectos comunitários. Num sentido horizontal, conclamando os homens ao respeito mútuo, à doação, à simplicidade das relações. Num sentido vertical, abrindo o homem à sinceridade da relação de filho para com Deus, à singeleza da oração simples e do amor que corresponde ao amor do Pai. Jesus não se preocupou muito com o aspecto institucional, senão com o espírito que deve ser vivido em todas as expressões do convívio humano. Esta era sua comunicação expressa: através da vida da Igreja. A Igreja, em sua globalidade, é a coexistência concreta e vital da dimensão societária e institucional com a dimensão comunitária. Nela há uma organização que transcende as comunidades particulares, atendendo à comunhão de todas elas. Há uma autoridade, símbolo da unidade do mesmo amor e da mesma esperança. Há um credo, expressão da mesma fé fundamental, há metas globais, comuns a todas as comunidades locais. As reflexões sociológicas ganham relevância para a teologia, por desfazerem ilusões e por manterem as nossas efetivas atuações missionais sobre bases realistas. Pode ocorrer uma infiltração de velhos erros históricos e eclesiológicos sob outros nomes, como a demasiada insistência na polarização de terminologias, entre Igreja na “base” e Igreja na “cúpula”, entre missiologia e eclesiologia. Pode haver uma verdadeira renovação dos quadros institucionais da Igreja, vindos dos impulsos das bases comunitárias, sem que a Igre- 74 MISSIONAL ja perca a sua identidade ou se perverta em sua essência ou histórica. A missão que nasce no povo é a mesma que nasceu nos apóstolos. O que muda nela é sua aparição sociológica no mundo, suas formas de expressão. Não muda a coexistência permanente um aspecto mais estático, institucional, permanente com o outro dinâmico, carismático, vital. Sendo assim, persistirá na Igreja em missão sempre a incansável vontade de impregnar de espírito comunitário o aspecto institucional e organizacional da Igreja. O problema da missão não reside, na verdade, no contraposto instituição/comunidade. Haverá sempre a persistência de ambos os pólos. O real problema reside no modo como se vive tanto o comunitário como o institucional. Se um quer absorver o outro, limitá-lo e liquidá-lo, ou se ambos se respeitam e se abrem mutuamente num constante ‘deixar-se questionar’, que comunica o Evangelho. Essa última atitude não deixará que o institucional assuma características enrijecedoras e venha a predominar, e também não permitirá que o comunitário degenere num puro utopismo, pretendendo que a Igreja global se transforme numa comunidade. O institucional não pode, na Igreja, predominar sobre o comunitário. Este deve guardar sempre a primazia. O outro vive em função dele. O comunitário, por sua vez, deverá encontrar sempre sua adequada expressão institucional. Atualmente, em meio à dinâmica da comunicação do Evangelho, despontam nítidos, dois modelos eclesiológicos da Igreja única. Um orientado para a Igreja-grande-instituição, com todos os serviços organizados institucionalmente em função das necessidades da Igreja universal, em estruturas maiores. Este modelo de igreja possui seu centro sociológico e cultural, geralmente, nos setores opulentos da sociedade, goza de poder social e constitui o dialogador exclusivo com os poderes da sociedade. O outro se centra na rede de comunidades de discípulos no meio dos setores populares e nas maiorias pobres, à margem do poder e JOÃO COSTA 75 dos meios de comunicação, vivendo mais profundamente as relações horizontais/verticais de amor e da co-responsabilidade. A evolução dos últimos anos tem mostrado que nem a igreja-grande-instituição existe para si e em si mesma, mas como apoio às comunidades de discípulos, conferindo-lhes universalidade e permitindo-lhes uma ligação com o passado, nem a rede de comunidades pode prescindir da igreja-grande-instituição. Mais e mais a instituição descobre o seu sentido e responsabilidade no cooperar com as comunidades. Evidentemente isso tem levado a debilitar o seu compromisso com os setores influentes da sociedade e do Estado em favor de mais pureza evangélica e de qualidade profética de sua atuação missional. As comunidades, por sua vez, compreendem mais e mais a necessidade da Igreja instituição para a sua continuidade e até mesmo manutenção para a sua unidade local. Essa coletividade entre realidades eclesiológicas tem uma reverberação missiológica nessa geração. Leonard Sweet diz: “O coração da pós-modernidade é uma dislexia teológica: eu/nós ou a experiência do indivíduo em comunidade. Não é tanto a questão, percebida primeiramente por William Tyndale, de que a palavra eu como expressão de individualismo isolado não aparece nos Evangelhos. É mais o fato de que, nos Evangelhos, nenhum “eu” individual pode se tornar “eu” sem “você” e “os outros”. Os pós-modernos querem aproveitar uma identidade própria dentro de um quadro conectivo de amizades, virtudes cívicas e valores espirituais.” 31 A convergência desses modelos eclesiológicos e sua interação dialética contribuíram para que a Igreja como totalidade tomasse consciência profunda de sua ação missionária, especialmente entre os pobres deste mundo, de cuja paixão ela participa, assistindo-os. Para a Igreja como instituição se faz cada dia mais iniludível a escolha entre as seguintes opções: ou continua a manter boas relações para com o Estado e as classes ricas que ele representa, ou toma a 31 Leonard Sweet - Peregrinos do Novo Século - pg 124 - Garimpo Editorial - 2010 76 MISSIONAL sério a rede de comunidades de discípulos, com as exigências que elas implicam em termos de justiça e de transformação social. Na primeira opção a instituição tem garantida a sua segurança pessoal e organizacional e pode contar com apoio à sua ajuda assistencial, mas deve renunciar a fazer missão de modo eficaz as grandes maiorias pobres. A segunda escolha recuperará sua missão, representará os reclames justos que nascem do coração da terra e vão até Deus, mas deve contar com a insegurança, a difamação oficial e a sorte dos discípulos de Jesus. Vale lembrar, que o espectro opressor do Estado foi uma realidade enfrentada pela primeira comunidade de discípulos da História, em Jerusalém. Ao longo de Atos dos Apóstolos, acompanhamos o desenvolvimento dessa comunidade de discípulos e sua expansão urbana e transformadora em todos os aspectos, que em meio à violenta perseguição, se mantiveram firmes em posicionamento diante do Estado, e acima de tudo diante da soberania de Deus. Que futuro possui a missão, no nosso contexto brasileiro, pela lente da comunidade de discípulos? É o que perguntávamos anteriormente. Cremos que é possível, a partir da vivência, responder. Possui um futuro permanente desde que saiba entender-se no contraponto da instituição da Igreja. Não deverá querer o impossível utópico de esgotar em si o conceito de comunidade, de tal modo que nenhum outro grupo ou formação possa existir, apresentando-se como a única forma de ser Igreja hoje. Agora de forma sem precedentes se renova o veio transformador dos ideais missionários, da comunidade de irmãos, da vivência simples da mesma fé e do culto espontâneo do Cristo no meio dos homens, do serviço intencional e da preocupação para com as necessidades de cada membro. Nunca pereceu na Igreja a utopia do Reino que se antecipa na comunidade fiel por laços mais humanos, por uma fé mais viva e JOÃO COSTA 77 por relações marcadas pelo amor de Deus. A nossa missão, se quiser manter o espírito comunitário, não deverá querer substituir modelos eclesiológicos, deverá conservar os valores centrados no Evangelho em primeira instância, e a vida de orgânica e natural da Igreja para evitar a burocratizarão e facilitar o “face a face” dos membros. Deverá abrir-se à comunhão da Igreja global com suas instituições e formas societárias e, ao mesmo, tempo, sustentar a tensão dialética com ela, para não se deixar absorver. Dessa forma, a missão não deteriora, seja um grupo fanático escatológico-futurista, seja num grupo retrógrado “velhista”, mas permanece constante e fluente, em sua comunicação das boas novas do Reino vindouro, no século presente. Uma proposta para uma comunidade de discípulos. Alguns insights mais práticos para a comunicação expressa entre a comunidade: Uma tri-perspectiva baseada em: TEXTO - TEOLOGIA - VIDA (envolvendo 3-5 ou 10-15 pessoas) TEXTO Oriente o grupo a ler o mesmo texto bíblico durante toda a semana. Se a Bíblia não for central, o grupo acabará confiando em si mesmo, suas experiências e seus sentimentos. Por mais que outros livros possam ser de grande ajuda, nada pode substituir a Bíblia. Se a Bíblia é central no encontro, é mais provável que o grupo incline sua confiança em Jesus. É bom que o grupo decida junto qual texto das Escrituras será lido durante a semana. Eu sugiro a leitura de pelo menos um capítulo por semana e pedir o Espírito Santo que direcione sua atenção para o que Ele quer que você faça. A cada semana faça do texto bíblico o foco inicial, compartilhando como o Espírito Santo se moveu em você, gerando transformação, através das Escrituras durante a semana. 78 MISSIONAL TEOLOGIA Mova-se do texto para a teologia, através do entendimento da motivação do autor. Nesse ponto, tente desvendar a mensagem central do capítulo. Abra espaço para questionamentos. Se esforce em ser cristocêntrico, e não centrado na aplicação de um programa. O objetivo não é “aplicar”, mas imergir na beleza do texto com Jesus, não é “fazer”, mas se deleitar Nele. Então, do nosso deleite Nele e por crer em suas promessas, nós podemos aplicar o texto as questões do cotidiano. Faça de Jesus a pessoa central. VIDA Mova-se da teologia para a vida, traga sua vida para a conversação. Não limite demasiadamente o tempo para essa parte. Levante perguntas. Graciosamente e amorosamente, encoraje uns aos outros a discernir as motivações não direcionadas por Deus das motivações do Evangelho. Em contrapartida, esse não é um estudo bíblico. Compartilhe suas vidas, não seus insights. É um ambiente para oração, confissão, arrependimento e mover do Espírito Santo para que haja encorajamento para enfrentar o tumultuado dia a dia das cidades e que, para nesse turbulento cenário, as vidas sejam inspiradas a ponto de comunicar com as mesmas, o Evangelho. JOÃO COSTA TERCEIRA PARTE POR QUE SOMOS MISSIONÁRIOS? Porque Somos a Cidade de Deus 79 80 MISSIONAL JOÃO COSTA 81 capítulo 7 Proteção “Em cada cidade terrena, existem duas cidades competindo por controle: a cidade dos homens e a cidade de Deus” Agostinho “Não estarei mais no mundo; mas eles estão no mundo, e eu vou para ti. Pai santo guarda-os no teu nome que me deste, para que sejam um, assim como nós. Enquanto eu estava com eles, eu os guardei e os preservei no teu nome que me deste. Nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura. Mas agora vou para ti. E digo isso enquanto estou no mundo, para que eles tenham a minha alegria em plenitude. Eu lhes dei a tua palavra; o mundo os odiou, pois não são do mundo, assim como eu também não sou. Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno.” João 17.11-15 Quando nos deparamos com o livro de Apocalipse, vemos a História tendo seu ápice na instauração da cidade que desce dos céus. Aprendemos a guardar nossa esperança nesse glorioso dia, mas o nosso viver em missão tem uma realidade ao redor, que pulsa com as agruras da realidade mundana. De um mundo e sistema que essencialmente, odeia aqueles que representam a comunidade de discípulos. A partir do entendimento de que nós somos a Jerusalem espiritual, a nossa unidade em missão inevitavelmente nos impulsiona para o contexto urbano. Aliada à dimensão missional como elo fundamental da proclamação do Evangelho, verificamos ao longo da História da Igreja, que a comunidade corre o risco de se fechar em torno de si mesma, assumindo o papel de um corpo um tanto quanto alheio a tudo o que acontece ao seu redor. Em sua oração sacerdotal, Jesus deixa 82 MISSIONAL claro o desdobramento que lança os seus discípulos num inevitável ambiente de hostilidade, por isso o pedido de proteção. E como se dá essa tensão que Jesus propõe a nós como seus missionários? Essa tensão, apesar de estar hoje numa realidade distinta daquela, continua persistindo em nossos dias. Santo Agostinho, a partir de sua cidade, Hipona, conseguiu fazer uma leitura do caos urbano de Roma de 410 d.C. que impactava na realidade da África. A partir daí, surge a obra Cidade de Deus, que expõe a grande tensão entre duas cidades: a divina e a dos homens. O senso de pertencimento, a essência da revelação de quem é Jesus e o comprometimento com o seu Reino, em contraponto ao desprezo em relação à soberania divina, vão marcar as características que fundam essas duas cidades: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial.” 32 A grande maioria das novas configurações de comunidades assume em muitos casos o perfil comportomental paroquiano, como se fosse um grupo fechado para si mesmo, por mais que isso seja totalmente incoerente com seu discurso que busca freneticamente a evangelização relevante. Muitos destes grupos assumem estas posturas para se proteger. Pior ainda é quando, em algumas metrópoles, se procura estabelecer rígidos limites geográficos para demarcar territórios pertencentes a cada comunidade. Outro fator que ainda persiste, em menor escala, é a tendência de circunscrever a tarefa da comunidade como sendo o atendimento das necessidades religiosas dos moradores do perímetro. A unidade da comunidade dos discípulos não deve formar em nós um comportamento isolacionista, ao contrário, o fato de sermos essa família de irmãos que buscam a semelhança de Jesus é o que determina nossa origem e destino, nosso amor e missão. 32 Agostinho - A Cidade de Deus - XIV, XXVIII, 2 - pg 169 - Editora Vozes - 2002 JOÃO COSTA 83 Nossa perspectiva de “oikos” não nos encerra em nós mesmos, mas dinamiza a nossa missão no contexto urbano. Como o apóstolo Paulo escreve à Igreja em Eféso, “Assim, não sois mais estrangeiros, nem imigrantes; pelo contrário, sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus…” (Ef 2.19). A proteção que temos como cidadãos da cidade de Deus, não deve proceder de cordões de isolamentos estabelecido por nós mesmos, mas da nossa origem/ destino celestial. Como cidade de Deus, tornamo-nos a comunidade missional de discípulos. Assumimos a responsabilidade de assumir sua condição como concidadã em nossa pátria, e por essa perspectiva escatológica, que define bem nosso destino, poderemos ter uma atuação relevante, profética e transformadora, agindo como Jeremias que assumiu o desafio missionário de procurar a paz na cidade e orar por ela ao Senhor (Jr 29.7). É tempo de discernir claramente os tempos e seus sinais. Jonathan Wilson-Hartgrove diz: “Estou convencido de que nós encaramos uma crise muito similar a que Jesus visualizou e nomeou no primeiro século na Palestina. O fim do mundo está próximo (…) Alguns cientistas políticos e ambientalistas tem fortes e bem pesquisados argumentos para chegar ao mesmo ponto básico. Muitos cristãos têm uma lista de textos bíblicos que eles gostam de citar para dizer a mesma coisa. Mas, Jesus é o ponto interpretativo e instigante para tudo isso: tudo que nós temos que fazer nesse momento é ler os sinais dos tempos.” 33 Essa ênfase, profundamente profética/missional, exorta a comunidade para sua verdadeira vocação missionária no meio urbano: ser um movimento renovador e mobilizador da cidade. A dimensão do amor misericordioso recebeu um tratamento religioso unilateral: direcionado ao indivíduo. Essa dimensão é verdadeira e bíblica, mas não é todo o Evangelho. A profunda compaixão de Deus quer a transformação Jonathan Wilson-Hartgrove - New Monastics: What it has say to today’s church - pg 15 - Brazos Press - 2008 33 84 MISSIONAL pelo poder do Espírito Santo de toda cidade, de todo país, enfim, quer redimir toda a criação que geme e sofre sob o cativeiro do pecado (Rm 8.19). Para corresponder a esse mandato do Evangelho é urgente buscar em humildade uma dimensão da espiritualidade capaz de amar além das dimensões do bem-estar pessoal e familiar. É sintomática a percepção de que jamais ou excepcionalmente uma comunidade, como um todo, tenha sido despertada para se levantar em nome do Senhor contra um mal que ameaça a cidade ou um povo. Geralmente as iniciativas missionárias brotam de pessoas que recebem uma visão ou passam por uma profunda experiência de conversão, ou então, as iniciativas por transformações brotam de grupos que desencadeiam movimentos de inovação ou reforma. Por outro lado, sem aprofundar a questão aqui, é notório que no Brasil de nossos dias tenha surgido uma enormidade de comunidades e movimentos. Alguns expurgados de igrejas históricas, outros resultantes de competição religiosa entre líderes despóticos, outros como fruto genuíno do Espírito Santo. Na verdade, a Igreja evangélica brasileira hoje deve creditar a grande parcela de seu crescimento, numérico e qualitativo, à ação desses movimentos. À medida que eles se organizam, abrem-se as portas para um diálogo promissor de aprendizado mútuo para varrer esse país com a misericórdia do Senhor. Grandes metrópoles, como o Rio de Janeiro, com seus contrastes e ambiguidades apontam para uma ideia das duas cidades, que nesse momento da sociedade expurgam todas suas mazelas, incubadas durante décadas de ouro da modernidade positiva, como bem descreve Arnaldo Jabor na introdução da obra “Cidade Partida” de Zuenir Ventura: “Na verdade, já existiam então “duas cidades” ou uma cidade partida, mas a convivência amena, a obediência civil, a falta de antagonismos de classe e a despreocupação com os problemas sociais nem sempre deixavam perceber que havia um ovo de serpente chocando no paraíso.” 34 34 Zuenir Ventura - Cidade Partida - pg 11 - Companhia das Letras - 1994 JOÃO COSTA 85 Uma proposta missional nesse tempo encontrará seu impacto evangelizador, à medida que buscar na palavra do Senhor a espiritualidade capaz de permitir um surgimento de comunidades que saibam conjugar esses dois eixos: evangelização e serviço. Ou seja, redescobrir uma vivência de comunhão plena, koinonia que abarca todas as necessidades da pessoa e da cidade. Ao longo de todos os tempos a comunidade é tentada a fechar-se em torno de uma mentalidade auto-preservativa, um grupo de mentalidade voltada para si mesma. Sempre que isso ocorrer, ela precisa ser exortada a se abrir para ser oikos, abrigo, lar para aqueles que não tem casa. O processo urbanizatório brasileiro e as pautas da política neoliberal de nossos dias transformaram as metrópoles em mostruário de desintegração humana, social e ecológica. Está na hora de construir cidades de refúgio, compreendendo pelas Escrituras, que o soberano Deus é o nosso refúgio. Essa construção se dará pela multiplicação de comunidades missionais, onde cada cidadão possa reconstruir sua vida pelo Evangelho e que a cidade seja abraçada com a crítica e a misericórdia, a exemplo de Jesus: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes eu quis ajuntar teus filhos, como a galinha ajunta seus filhotes debaixo das asas, e não quiseste!” (Mt 23.37). Tim Keller, um dos pioneiros de uma postura missional no seio da Igreja-instituição, e com forte atuação numa das maiores metrópoles do mundo (Nova York), constata que: “Muitas pessoas que tomam uma postura intelectual contra o cristianismo, o fazem combatendo um pano de fundo de decepções pessoais com cristãos e a Igreja. Todos nós baseamos nossas predisposições intelectuais em nossas experiências. Se você conhece muitos cristãos sábios, gentis, amorosos e perspicazes ao longo dos anos, e se você já viu igrejas devotas em sua fé e ainda 86 MISSIONAL assim comprometidas com a sociedade e generosas, você vai encontrar um ‘case intelectual’ para o cristianismo muito mais plausível.” 35 É inevitável que o mundo nos odeie, pois somos embaixadores do Reino de Deus. Carregamos em nossas vidas a mensagem que abala os alicerces do sistema mundo. Mas, o bloqueio da hostilidade e rejeição total da mensagem é uma possibilidade. Somos guardados, protegidos do maligno para o cumprimento da nossa missão. Historicamente, o cristianismo serviu como um movimento revitalizador que se ergueu em resposta ao caos, miséria, medo e brutalidade presentes na vida urbana do mundo greco-romano. Essa revitalização aconteceu nas cidades, provendo novas formas e maneiras de relações sociais capazes de lidar com os muitos e urgentes problemas urbanos. Para cidades cheias de necessitados, o cristianismo ofereceu caridade, bem como esperança. Para cidades cheias de pessoas de outras localidades, o cristianismo ofereceu bases imediatas para esses novos agregados. Para cidades divididas por violentos combates étnicos, o cristianismo trouxe novas bases de solidariedade. E para cidades enfrentando epidemias e catástrofes, o cristianismo ofereceu efetivo serviço. No nosso contexto brasileiro, grandes metrópoles nasceram no contexto da sociedade rural, e a hostilidade em relação a mensagem do Evangelho tem se transmutado ao longo dos anos, mesmo com o acento provinciano presente no consciente colectivo brasileiro. No campo, a cultura era homogénea, a religião era homogénea e era o centro da cultura. A religião transmitia-se na família e na vizinhança com a cultura e como a cultura. Os filhos adotavam os comportamentos dos pais. Alguns eram mais religiosos e outros menos, mas todos estavam de alguma forma inseridos na igreja, como o peixe na água. O peixe nem se dá conta da água, ele está dentro da água. Assim, os camponeses estavam 35 Tim Keller - The Reason For God: Belief in an age of skepticism - pg 53 - Penguin Books - 2008 JOÃO COSTA 87 dentro da Igreja mesmo se ignoravam o que era Igreja. Podiam ser cristãos inconscientemente. De todos os modos, o cristianismo se transmitia sem que os sacerdotes tivessem que empenhar-se muito. As famílias encarregavam-se de levar as novas gerações para os sacramentos, o catecismo, as festas religiosas e a pratica da moral aceita commumente na sociedade rural como sendo a moral cristã (cada cultura tem os seus pecados permitidos e os seus pecados proibidos). Justo González diz: “A questão da relação entre a fé e a cultura sempre foi um dos temas fundamentais de toda teoria e prática missiológicas. Cada vez que a mensagem do Evangelho atravessa uma fronteira, cada vez que cria raízes em uma nova população, cada vez que é pregada em um novo idioma, coloca-se uma vez mais a questão da fé e da cultura.” 36 Nas cidades modernas já não é assim. Não há mais garantia de transmissão da religião dos pais para os ilhós. Primeiro porque na cidade há várias ofertas religiosas. As pessoas podem escolher. Em segundo lugar, as novas gerações não aceitam simplesmente o modo de viver, o modo de pensar ou de agir dos pais. Adaptam-se mais depressa à vida urbana e consideram seus pais como ultrapassados. Além disso, os pais estão muito ocupados e os meios de comunicação estabelecem uma barreira: não deixa tempo para a conversa. Não há mais momento do dia nem da semana em que os pais possam tranquilamente explicar aos seus filhos os seus valores. Eles próprios duvidam dos seus valores tão diferentes daqueles que a vida urbana exalta. Sentem-se intimidados e deixam que os filhos sigam cada um o seu caminho.Durante 1500 anos, a fé foi comunicada pelos país aos filhos. Este processo deixou de funcionar nas cidades. Isto constitui para a Igreja um real desafio. A necessidade de proclamar o EvangeJusto L. Gonzalez - Cultura e Evangelho: O lugar da cultura no plano de Deus - pg 31 Editora Hagnos - 2011 36 88 MISSIONAL lho a adultos que aprenderam a pormenorizar a fé, a necessidade de sermos agentes em conversões pessoais. Falando sobre a missão na cidade, Darrin Patrick diz: “Deus, através dos seus profetas, instruí seu povo a construir casas numa terra estrangeira, e vivendo ali, plantar jardins e comer de sua colheita. Leva tempo construir casas. Leva tempo plantar e cuidar de jardins. O que me parece é que Deus está ordenando ao seu povo a se enraizar profundamente na estrutura dessa cidade perversa”. 37 A palavra do Senhor neste momento, não nos tira do mundo. Temos uma missão a cumprir aqui na perversidade urbana. E pela palavra do Senhor, seremos guardados do maligno para o cumprimento da missão. Darrin Patrick - Church Planter: The man, the message, the mission - pg 227 - Re: Lit/ Crossway Books - 2010 37 JOÃO COSTA 89 capítulo 8 Santificados na Urbe “Pelo Evangelho, encontramos a forma de viver interiormente cheios do Espírito, e comunicar em missão a boa nova num mundo que se volta contra Deus” Sam Storms “Eles não são do mundo, assim como eu também não sou. Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade.” João 17.16-17 Guardados e devidamente protegidos do maligno, temos na cidade o nosso contexto. Cidades são centros estratégicos de influência espiritual, social e cultural. O ritmo da cidade imprime o ritmo do mundo. De fato, toda a trajetória humana culminará numa cidade. Em nenhum outro lugar do planeta encontramos tanta diversidade de pessoas num mesmo lugar, de todas as idades, de todas as etnias, de todas as classes sociais. Essa ambiência é a expressão máxima da urbe, é nessa extrema e crescente rotatividade que a humanidade cada vez mais tem dado as costas pra Deus. Em Romanos 1.19-25, o apóstolo Paulo, escrevendo a uma comunidade plantada numa grande cidade, traça a realidade dessa cidade que dá as costas para Deus: “Pois a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens, que impedem a verdade pela sua injustiça. Pois o que se pode conhecer sobre Deus é 90 MISSIONAL manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois os seus atributos invisíveis, seu eterno poder e divindade, são vistos claramente desde a criação do mundo e percebidos mediante as coisas criadas, de modo que esses homens são indesculpáveis; porque, mesmo tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; pelo contrário, tornaram-se fúteis nas suas especulações, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e substituíram a glória do Deus incorruptível por imagens semelhantes ao homem corruptível, às aves, aos quadrúpedes e aos répteis. É por isso que Deus os entregou à impureza sexual, ao desejo ardente de seus corações, para desonrarem seus corpos entre si; pois substituíram a verdade de Deus pela mentira e adoraram e serviram à criatura em lugar do Criador, que é bendito eternamente. Amém”. Francis Schaeffer discerniu sua época à luz dessa verdade, e concordamos com ele quando diz: “Qual então deve ser a nossa mensagem nesse contexto ao mundo, à Igreja e a nós mesmos? Nós não temos que tentar adivinhar o que Deus diria sobre isto, porque existiu um período da história bíblica, que grandemente se compara aos nossos dias. É o tempo de Jeremias. O livro de Jeremias e o livro de Lamentações mostram como Deus olha para uma cultura que o conheceu e deliberadamente virou-lhe as costas. Mas isto não é somente o caráter dos tempos de apostasia de Jeremias. É o meu tempo. É o seu tempo. E se vamos ajudar nossa própria geração, nossa perspectiva deve ser aquela de Jeremias “(…) que no meio das suas lágrimas, falou sem mitigar sua mensagem de julgamento para um povo que tinha tido tanto e ainda assim havia se desviado” 38 Em razão disso, nas cidades, vários ambientes estão impregnados de preconceitos anticristãos. Trata-se dos intelectuais, universitários, professores e alunos de colégios públicos ou particulares, dos empresários, Francis A. Schaeffer - Morte na Cidade: A mensagem à cultura e à igreja que deram as costas a Deus - pg 15 - Editora Cultura Cristã - 2003 38 JOÃO COSTA 91 mas também de operários ou empregados de comércio que assmiliam os preconceitos dos patrões ou foram secularizados na ação política ou social. Para essas pessoas a Igreja é uma instituição do passado, responsável por muitos dos males que vêm da história do Brasil. A Igreja é feita de pessoas atrasadas, ignorantes da ciência, da tecnologia, das exigências da vida moderna: defende uma moral antiquada e, sobretudo, se dedica a atividades aborrecidas. Para muitos a Igreja é velhice, aborrecimento, vida parada, moral superada, obsessão do sexo, dependência dos líderes, uma instituição sem futuro e sem novidade. Então, a vida em missão, que expressa à cidade de Deus, consiste em tornar presente uma figura diferente do que se estabeleceu. Pela graça, nossa caminhada que busca a semelhança de Jesus, é uma forte expressão missional. A possibilidade de vida sendo manifesta na cidade dos homens se dá pela santificação daqueles que não são deste mundo, mas são oriundos da cidade de Deus. J.C. Ryle descreve: “De uma coisa estou bem certo: é insensatez fingir santificação, se não estivermos seguindo a mansidão, a longanimidade e a benignidade, porquanto a Bíblia salienta essas virtudes. As pessoas que habitualmente dão lugar a atitudes intempestivas e caprichosas na vida diária, e que se mostram continuamente ferinas no uso da língua, desagradáveis para todas as pessoas ao redor - pessoas dignas de dó, vingativas, exigentes, maliciosas, e das quais, infelizmente, o mundo anda cheio! - todas elas conhecem pouco do que deveriam conhecer sobre a realidade da santificação. Esses são os sinais visíveis de um homem santificado.” 39 A atribuição do verbo grego hagiazô [santificar], no Evangelho de João é sempre destinada à missão. Muitos deram as costas para Deus por causa de Marx, Freud, Nietzsche. Para muitos, Deus morreu porque os cristãos o mataram como dizia Nietzsche. Não adianta dizer que Deus está vivo, se está na cara dos crentes que está agonizando. A santificação é a nossa 39 J.C. Ryle - Santidade - pg 52 - Editora Fiel - 2002 92 MISSIONAL resposta à vida que recebemos do Senhor. Por outro lado, há muitos ambientes urbanos em que simplesmente falta a presença da Igreja. Com efeito, não basta que haja o prédio, o espaço onde a Igreja se reúne para que haja presença. O que faz e marca a presença na cidade, são as pessoas. A presença vem de pessoas que, como missionárias, buscam o contato e não se contentam em esperar que venham, porque não virão espontaneamente. Daí a necessidade de missionários e missionarias em todos os ambientes em que se realiza a socialização urbana, e através da semelhança de Jesus, sejam agentes transformadores desses ambientes, os transformando em locais de encontro. A experiência dos movimentos religiosos que fazem conversões deve nos instigar. Estamos na época da história do mundo em que houve mais conversões pessoais, conversões para uma fé pessoal, livre, sem nenhum constrangimento, sem interesse material, mesmo com toda sorte de pregações antropocêntricas que enaltecem as necessidades do povo. Os pentecostais já conseguiram no mundo centenas de milhões de conversões individuais. Os movimentos carismáticos em geral conseguiram dezenas de milhões de conversões individuais. A prova está dada. Só não vê quem não quer. Há uma metodologia de conversão que funciona. Existem variantes, mas os elementos fundamentais são comuns. Sempre é um apelo a uma pessoa individual, um chamado para uma nova vida, uma libertação, um êxodo. Uma pessoa descobriu o seu estado de pobreza espiritual, de vazio de sentido da vida, percebeu a nulidade da sua existência e este reconhecimento foi ajudado por outra pessoa, um convicto discípulo de Jesus. Neste momento, surge o chamado para uma vida nova. O contato e o convívio são as ferramentas virais dessa grande vocação. Pelo exemplo, pelo testemunho, e acima de tudo, pela Palavra os discípulos de Jesus são chamados a proclamar a novidade do Evangelho em cada setor da JOÃO COSTA 93 cidade. Pois, em cada setor, algo pode e deve mudar. A Evangelização da sociedade é tarefa de formiga: milhões de pessoas trabalhando juntas. Cada uma levando um grão do Evangelho e, assim, indefinidamente sem cessar, sem jamais ver o fim da tarefa. Pois a cidade muda constantemente e a missão deve recomeçar sempre de novo a partir de uma realidade nova. Nesta realidade, o Espírito Santo envia missionários para a missão. Porém, não são aceitos pela burocracia da Igreja, por uma série de motivos, todos válidos e até justificáveis, porém destrutivos da espontaneidade e da liberdade do Espírito. Uma prática de libertação passa por milhares de pequenas transformações no tecido urbano. Não existe mais a possibilidade de imaginar uma mudança global, As experiências da revolução russa e da revolução cultural chinesa mostraram que o preço de tais transformações é inaceitável e que os resultados em longo prazo são irrisórios. Estamos diante do desafio de montar outra estratégia de mudanças. Milhões de iniciativas particulares são necessárias nas nossas sociedades. Em cada cidade, seriam necessárias milhares de iniciativas. Somente conversões individuais numerosas podem fornecer essas iniciativas: na liberdade de redefinirem sua identidade santificando-se à sombra da cruz vazia. Wilberforce atestou: “Fica claro que as verdades acerca da corrupção da natureza humana, de nossa necessidade de reconciliação com Deus por meio da expiação de Cristo e da restauração de nossa dignidade original por meio da influência santificadora do Espírito Santo são todas partes de um todo único. Interdependente e reciprocamente apropriado.” 40 Muitos missionários repetem sem cansar que o Evangelho é uma boa nova, mas não dizem qual é esta boa nova. Na sensibilidade de William Wilberforce - Cristianismo Verdadeiro: Discernindo a fé verdadeira da falsa - pg 116 - Editora Palavra - 2006 40 94 MISSIONAL muitas pessoas, tudo o que se refere à religião é “má nova” e querem livrar-se dela. Não adianta comentar que o Evangelho é boa nova. Se for boa ou má, vai resultar do conteúdo. Os ouvintes se enflieiram como juízes para dizer se foi boa nova ou se não foi. No cristianismo tradicional, o Evangelho não é nenhuma “nova”. Pelo contrário, é a coisa mais antiga do mundo. A religião é tradição do passado e tira o seu valor da tradição. Receber a boa nova cabe dentro da psicologia e das expectativas das pessoas urbanizadas. Na cidade percebemos o interesse pela espiritualidade chamando a atenção. Por vezes não se sabe o que é, mas atraí porque é novidade. Temos na cidade, portanto, uma grande seara, um múltiplo campo missionário. As “multidões como ovelhas sem pastor” que Jesus contemplou em Mateus 9, continuam perambulando pela cidade até hoje, em busca de respostas. Em Romanos 12.2, Paulo coloca a premissa: no processo de aceitação do Evangelho por parte das pessoas da cidade não se trata de moldar a boa nova ao esquema do tempo presente, mas de propiciar uma transformação através da renovação da mente. Portanto, o Evangelho leva a uma renovação do modo de pensar, a partir do discernimento daquilo que Deus quer. Mais ainda: o Evangelho pede um modo novo de agir como “culto racional” a Deus (Romanos 12.1). Podemos exemplificar o significado desta premissa para a prática da cidade de Deus por meio de dois exemplos referentes a conflitos de conotação tipicamente urbana: a questão da carne sacrificada aos ídolos (1 Coríntios 8-10) e a questão da ceia do Senhor (1 Coríntios 11.17-34). O conflito em torno da questão se é permitido ou não comer carne sacrificada aos ídolos é abordada extensamente por Paulo em 1 Coríntios 8-10. Vamos destacar alguns momentos desta abordagem. O conflito está vinculado à realidade urbana enquanto reflexo da diversidade religiosa. Esta se expressa nos mais diferentes JOÃO COSTA 95 cultos organizados em torno de diferentes templos, o que é típico da paisagem urbana daquele tempo. Alguns desses cultos incluíam refeições em comum na presença da entidade. Além disso, via de regra, a carne vendida em açougues esta vinculada a um sacrificio ou à dedicação a algum deus. Ingressando nessa realidade, o Evangelho de Jesus traz o conhecimento de que há um só Deus e um só Senhor e que os demais assim chamados “deuses e senhores” na verdade não o são. É a confissão monoteísta marcando presença no mundo urbano politeísta e desafiando para a renovação do modo de pensar essa questão. Paulo qualifica esse conhecimento de libertador. Ele liberta as consciências em relação aos deuses e permite usufruir as dádivas de Deus sem falsos escrúpulos (“Pois do Senhor é a terra e a sua plenitude” 1Cor10.26). Mas a questão não é tão simples. Por trás da diversidade dos deuses se esconde outra realidade, a dos demónios. Do conhecimento acima poderia-se tirar a conclusão lógica: podemos participar livremente e sem problemas dos cultos aos deuses em seus templos. Mas isto justamente significaria dar-lhes o status de deuses, ignorar a manobra dos demônios e provocar ciúmes no Deus verdadeiro. O conhecimento do Evangelho de Jesus Cristo justamente abre a nossa mente para vermos além da realidade aparente e discernirmos a estrutura que a sustenta. No entanto, a questão é mais complicada ainda. Existem aquelas pessoas que, embora tendo aceitado o Evangelho de Jesus Cristo, ainda não deram o passo libertador que este conhecimento proporciona. Elas ainda não renovaram sua mente e suas consciências ainda estão presas ao costume antigo da adoração aos deuses. Essas pessoas cristãs se escandalizam com a demasiada liberdade das outras e correm o risco de abandonarem a fé. Assim, se em relação ao mundo circundante do Evangelho proporciona liberdade, na relação intracomunitária pode levar à falta de 96 MISSIONAL amor e à divisão. Portanto, renovação da mente neste aspecto significa abandonar o individualismo e levar em consideração justamente a pessoa mais fraca na sua necessidade e buscar de modo construtivo em relação a ela, tendo a liberdade inclusive de desistir da demonstração de sua própria liberdade. Vemos aqui que o apóstolo com o seu modo argumentativo e não autoritário tenta fazer jus à complexidade das relações sociais urbanas. Ele não dá receitas prontas de como proceder, mas analisa e discute o problema apontando critérios teológicos para a sua solução. Esses critérios de cunho mais geral devem pautar a prática específica, para a qual cada comunidade deve ser capacitada. Nesta parte tem papel fundamental o uso da “razão”, isto é, da capacidade de refletir e pensar como meio de definir os parâmetros da ação missional comunitária e individual. Trata-se, portanto, da aplicação da premissa “renovação da mente” para oferecer a Deus um “culto racional”, ou seja, um culto constante guiado pela reflexão a partir do Evangelho de Jesus. Não há como negar que é um procedimento bastante flexível e versátil, adequado à diversidade e à complexidade da realidade urbana. Podemos observar o mesmo ainda no segundo exemplo: a distorção do sentido da ceia do Senhor na comunidade de Corinto (1 Corintio 11.17-34). Este problema está vinculado com a diferença de condição social entre as pessoas que formavam a comunidade na cidade de Corinto. A comunidade urbana era, nesta parte, espelho da sociedade. Dela faziam parte poucas pessoas mais abastadas e uma maioria de pobres trabalhadores ou escravos. As reuniões se realizavam nas casas dos membros mais abastados, pois ofereciam mais espaço e condições para a realização das refeições e dos cultos. 41 O que Paulo criticou na celebração da ceia em Corinto foi que Para explorar os temas abordados aqui, indico os ótimos livros: W.A. Meeks - Os primeiros cristãos urbanos - Editora Paulinas; e Gerd Theissen - Sociologia da cristandade primitiva - Editora Sinodal. 41 JOÃO COSTA 97 ela não estava espelhando a novidade do Evangelho, mas a realidade circundante, caracterizada pela divisão e pelo individualismo. Uns comiam e bebiam antes da chegada dos outros, de modo que aqueles se embebedavam e empanturravam, enquanto estes passavam fome. Essa situação fazia com que houvesse na comunidade pessoas que enfraqueciam, adoeciam e morriam. É o resultado da desigualdade social que se reflete na situação comunitária. Mas onde está a novidade dos discípulos de Jesus? O Evangelho justamente chama para um exame de consciência sobre a responsabilidade de cada pessoa nesta situação. A vivência comunitária deve ser “digna” do Evangelho, isto é, deve corresponder ao espirito da boa nova acerca de Cristo. A celebração da ceia do Senhor como comunhão com Cristo deve levar necessariamente a outro modo de pensar e agir. Ou seja, a consequência lógica é que, por ocasião da refeição, uns pensem nos outros. Concretamente, que uns esperem pelos outros e, se não puderem se aguentar, que comam alguma coisa em casa. O critério é teológico: a unidade e a comunhão no corpo de Cristo, expressas na participação no pão e no cálice da ceia. A partir dele é possível superar a fragmentação da existência e o individualismo e formular novos parâmetros para pensá-lo e o agir individual e comunitário no contexto urbano. Paulo os ajuda na formulação da nossa estratégia de acão no mundo urbano, primeiro, porque não nos indispõe geologicamente de antemão com o mundo urbano. Como cidadão urbano, ele vivia a cidade e via nela um lugar para a vivência digna do Evangelho de Jesus Cristo. Em segundo lugar, Paulo nos ajuda, porque usou a razão para refletir o modo como o Evangelho poderia tomar forma no mundo urbano. Seu procedimento argumentativo, avesso a receitas prontas, proporcionava critérios para facilitar a decisão autônoma das comunidades. Paulo era um parceiro de dialogo na busca por fazer das comunidades um espaço dentro do mundo urbano que 98 MISSIONAL correspondesse à vontade de Deus. Nesse sentido, este é o terceiro destaque é que a comunidade de discípulos é a representatividade da cidade de Deus, se configurando como um segmento importante da sociedade urbana. Testemunha desta importância é, não por último, a conflitividade que o Evangelho provoca. No entanto não se trata de fugir do meio urbano para viver o Evangelho, mas de viver o Evangelho no meio urbano de modo digno do mesmo. Ou seja, exercer a cidadania de modo correspondente ao Evangelho de Jesus. Os critérios podem ser formulados de modo abrangente: a confissão de fé, a edificação da comunidade, a comunhão, o amor e assim por diante. Eles são norteadores da reflexão. Pois a situação urbana precisa ser pensada a partir de critérios novos. Os passos concretos da ação missional precisam ser formulados em cada caso, em cada cidade, por quem vive o Evangelho nela. Assim, o ingresso do Evangelho no mundo urbano progride. JOÃO COSTA 99 capítulo 9 Fronteiras da Contextualização “Uma das razões pelas quais estamos cada vez mais sem voz em nossa cultura, é que abaixamos o Cristianismo a um nível extremamente ridículo. Talvez seja tempo dos Cristãos viverem uma vida tão emocionante, tão desafiadora e tão interessante que as pessoas naturalmente queiram entender o que nos leva a viver do jeito que vivemos” Todd Hunter “Assim como tu me enviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo. E por eles me santifico, para que também eles sejam santificados na verdade.” João 17.18,19 As grandes cidades são como verdadeiras antenas repetidoras de informações e tendências, onde as fronteiras são praticamente, inexistentes. Da mesma forma que o Pai enviou Jesus para este contexto, nós somos enviados pelo nosso Senhor como missionários. Nossa mensagem não encontra fronteiras, mas as formas, métodos e linguagens em seu contexto precisam ser ponderadas, avaliadas e testadas pelas Escrituras. Quando a Bíblia fala da cidade via de regra usa conceitos de valor revela uma postura em relação a mesma. Desde a crítica vinda do campo e da periferia (Gn 11.1-7; Mt 11.20-24; Mt 23.33-38) e também dentro da cidade (Is 1.21-26) até a à esperança da cidade de Deus (Is 65.17-2; Ap 21.1-8), passando pela tentativa de salvar a cidade (Gn 18.16-33; Lc 19.41-48), nenhuma dúvida subsiste a respeito do que o autor do texto pensa da cidade. Estes textos mexem com nossas emoções e preparam o nosso estado de espírito para nos confrontarmos com o urbano. Eles criam um cli- 100 MISSIONAL ma de rejeição e compaixão, juízo e esperança, realidade nua e crua e utopia esperada. Eles nos ajudam a tomar posição em relação ao tema. Animam a denunciar e anunciar. Porém, ficam devendo a resposta quando perguntamos pelo “como”, pelo modo de proceder dentro do urbano. Entretanto, quando se trata do envolvimento prático no mundo urbano, precisamos saber como ir além do sentimento e da emoção. Precisamos distinguir essa tensão pelo poder do Espírito Santo, como Alan Hirsch descreve: “a maioria das pessoas, quando perguntada sobre como elas acham que esses movimentos notáveis (de expansão da mensagem na cidade) cresceu tão espantosamente, respondem que foi porque eles eram vivenciados por verdadeiros crentes. Isto é, havia uma autenticidade de sua fé e eram, obviamente, empodeirados pelo Espírito Santo.” 42 Voltemos nossa atenção para o processo que se deu quando o Evangelho ingressou no mundo das grandes cidades gregas e romanas. Sabemos que, a certa altura, a mensagem do Reino de Deus transpôs os limites interioranos da Palestina e se espalhou pelo mundo urbano antigo. Muitas pessoas estiveram por trás dessa irradiação da mensagem do Evangelho. De Antioquia na Síria até Roma na Itália, passando por Éfeso na Ásia Menor, Corinto na Grécia, Filipos e Tessalonica na Macedonia e Alexandria no Egito, o anúncio sobre Jesus Cristo foi acompanhado as grandes rotas comerciais da época, interligavam os grandes centros urbanos por mar e terra. Menos de vinte anos após a ressurreição de Cristo havia pequenas comunidades de discípulos por todo o mundo urbano mediterrâneo e até além dele. O que chama a atenção nao é o tempo nem a amplitude da divulgação. Vinte anos é um tempo razoável e o tamanho das comunidades em relação a popoulacao das respectivas cidades não deve ter sido muito significativo. O aspecto intrigante extamente Alan Hirsch - The Forgotten Ways Handbook: A pratical guide for developing missional churches - pg 38 - Brazos Press - 2009 42 JOÃO COSTA 101 é que a mensagem do Evangelho encontrou ressonância num meio totalmente diferente do de sua origem e logrou fazer a cabeça e o coração de pessoas da polis e da urbe, as quais a principio nem eram visadas. Como aconteceu isso? A resposta deve ser a mais abrangente possível. Mas, no espaço deste livro, somente vamos poder realizar uma abordagem parcial, construindo em cima do que outros já elaboraram. Para fazer um início mais ou menos seguro, vamos considerar o que podemos conhecer melhor: a atividade de Paulo de Tarso. Não sabemos o que ele pensava da cidade em si. Assim, ele não nos irá predispor ou indispor de antemão contra ela. Ele, provavelmente, cultivava uma esperança na cidade de Deus (Fp 3.20), mas não nos dá nenhuma descrição dela. Ele não conhecia um conflito “campo-cidade”. Parece que, para ele, além da cidade e do mar, só existia ainda o “deserto” (2Co 11.26). Mas, por isso mesmo, ele pode nos ajudar. Como cristão urbano, nascido numa grande cidade do seu tempo, artesão livre, ele escreve em filipenses simplesmente: “exerçam a sua cidadania de maneira digna do Evangelho de Cristo” (Filipenses 1:27 - NVI; compare com 1 Ts 2.12). Aqui é preciso embarcar na perspectiva correta: Paulo não escreve estas palavras para pessoas que vêm de fora da cidade, animando-as a serem, dali em diante, cidadãs. Ele escreve, antes para pessoas cidadãs, que de qualquer modo iriam exercer a sua cidadania, animando-as a fazê-lo de modo a corresponder ao Evangelho de Cristo. Ou seja, aqui não se coloca a questão da legitimidade ou mesmo da possibilidade da cidadania. Ela é pressuposta como um dado vital. A questão em pauta é a maneira de viver na cidade, ou o que faz a diferença agora que o critério se tornou o Evangelho de Cristo? Precisamos assumir a cidadania como um dado e o Evangelho como critério da ação. Creio que esse foi o fator fundamental que permitiu construir a ponte entre o interiorano e o urbano. Este dado 102 MISSIONAL constitui também o pressuposto básico da transformação da mensagem do Evangelho e da sua maneira de divulgação para dentro do mundo urbano. Quem divulgou o Evangelho não questionou a cidade em si, mas a viu como um lugar de concretização vital da mensagem. Não foi o Evangelho que acolheu o meio urbano, mas o meio urbano que acolheu o Evangelho. Este é o primeiro dado importante: O Evangelho não problematiza o urbano por princípio. O segundo dado é que essa acolhida não foi unânime, indicando para a complexidade e a diversidade do meio urbano. Paulo caracteriza, na passagem acima mencionada (Fp 1.27-30), o exercício missional da cidadania como um ato militante (v. 27,30) que desafia adversários e gera conflitos (v.28), podendo provocar sofrimentos (v.29). Paulo concebe o exercício da cidadania pautado pelo Evangelho como luta organizada contra muitos adversários, para os quais a boa nova de Jesus Cristo justamente não é sinal de salvação, mas de destruição (v. 28). Assim o caminho do Evangelho no meio da cidade é caracterizado pela conflitividade. Destacamos, portanto, que o urbano, com suas caracteristicas peculiares, reage ao Evangelho e lhe cria problemas. Devemos levantar ainda um terceiro dado a partir do texto. O exercício missional da cidadania não se concerta no isolamento em relação ao urbano, mas no esforço organizado, comunitário. A comunidade cristã se qualifica como segmento da cidade. Isto é, o Evangelho encarnado no segmento “comunidade” participa da luta pelo poder e pelo espaço vital no meio urbano, visando qualifica-lo com os valores vislumbrados no Evangelho de Jesus Cristo. Rene Padilla diz que: “A encarnação torna óbvia a aproximação de Deus à revelação de si mesmo e de seus propósitos: Deus nao proclama sua mensagem aos gritos desde os céus; Ele se faz presente como homem em meio aos homens. O clímax da revelação de Deus é Emanuel. E Emanuel é Jesus, um judeu do primeiro século! De maneira definitiva a encarnação mostra que a intenção de Deus é revelar-se a partir de dentro da situação humana. Em virtude da própria JOÃO COSTA 103 natureza do Evangelho, somente conhecemos o evangelho como uma mensagem contextualizada na cultura.” 43 Reconhecendo o efeito do Evangelho do Reino de Deus no contexto temos, assim, dois pontos a considerar: a) o novo contexto do Evangelho e b) a estrutura da ação dentro do novo contexto. O novo contexto do Evangelho. De início recordemos que Jesus atuava em povoados e vilas do interior da Palestina e costumava frequentar lugares pouco ou nada habitados (Mt 14.13; 15.33; Mc 1.35,45; 8.4; Lc 4.42; 5.16). Quase não procurava as cidades e, quando o fazia, entrava em choque com elas (Mt 11.21; Lc 13.34; 23.28). Seu contexto vital era agrícola, marcado pela exploração tributária por parte do império romano. A perspectiva de sua atuação era provinciana e nacionalista (Mt 10.6; 15.24). O primeiro passo da mudança de contexto aconteceu quando a mensagem de Jesus Cristo e então também sobre Jesus Cristo fixou residência em Jerusalém com a primeira comunidade cristã. Jerusalém era a maior cidade da Palestina, com uma população residente estimada entre 30 e 55 mil habitantes. Apesar de mal localizada, pobre em água e recursos naturais, mas por ser um centro religioso importante, prosperava comercialmente e atraia a cada ano, um grande número de estrangeiros, e nas grandes festas acomodava uma população diversas vezes maior do que a residente. Via Jerusalém o Evangelho “agrícola” de Jesus, já transformado em Evangelho sobre Jesus, espalhou-se por todo o mundo urbano mediterrâneo. No caminho do Evangelho estão também, e especialmente, as grandes cidades daquele tempo. Para dar uma ideia desse novo contexto do Evangelho, vamos observar uma descrição breve das três cidades significativas e sua relação com Rene Padilla - Missao Integral - Ensaios sobre o Reino e a Igreja - pg 95 - Fraternidade Teologica Latinoamericana - Setor Brasil - 1992 43 104 MISSIONAL a missão urbana em formação. Segundo o relato de At 11.19-30, o Evangelho chegou a Antioquia da Síria por meio dos “helenistas” expulsos de Jerusalém por volta de 35 d.C. A comunidade de Antioquia foi pioneira na missão urbana daquele tempo, preparando e enviando missionarios para o oriente e para o ocidente e exercendo grande influência na formação daquele modelo de cristianismo urbano. Atos 13.1, apresenta uma lista de nomes vinculados a essa cidade, entre eles Saulo. Antioquia era a terceira maior cidade do imperio romano em número de habitantes, somente superada por Roma e Alexandria. Segundo estimativas, a sua população na época do surgimento das comunidades cristãs era de 250 mil a 450 mil habitantes. Fundada em 300 a.C. por Seleuco l, às margens do rio Orontes, a cidade se desenvolveu e chegou ao apogeu no primeiro século da era cristã. Habitada por macedonios, gregos, sirios e judeus, a cidade era um centro pulsante. Sua localização portuaria favorável trouxe muita prosperidade e diversidade cultural. Como sede do procurador romano era um centro politico importante. Sua arquitetura e arte eram famosas no mundo antigo. Tessalonica entrou em contato com o Evangelho por meio da iniciativa de Paulo, Silvano e Timóteo antes da metade do primeiro século (1 Ts1.1,9; At 17.1-9). Ponto de contato foi a sinagoga do lugar. Tessalonica era a maior e mais importante cidade da Macedônia, centro de comércio e sede do procônsul romano. Estava situada no entroncamento de duas das principais estradas do império romano e tinha um porto privilegiado. Entre a população estrangeira residente destaca-se também uma forte comunidade judaica. Tinha administração grega própria exercida por meio das instâncias da assembléia dos cidadãos, do conselho legislativo e do grupo de magistrados. A chegada do Evangelho a Corinto é narrada em Atos 18. Segundo este relato, Paulo chegou sozinho e se pôs a conquistar espaço para o Evangelho, associando-se profissionalmente a patrícios cristãos JOÃO COSTA 105 vindos de Roma e usando como ponto de contato a sinagoga. Mas não foi somente Paulo que atuou em Corinto. Devido a pulsação da cidade, outros missionários foram atraídos como Apolo e Pedro. Corinto era, depois de Atenas, a segunda maior cidade da Grécia e um dos maiores centros comerciais da época antiga, provido com dois portos: Cencréia e Lecaion, um de cada lado do estreito coríntio. Para evitar a perigosa circunavegação do Peloponeso, a maioria dos comerciantes transportava suas mercadorias pelos portos correntios. Por ter sido reconstruída em 46 d.C. pelos romanos, tinha características marcantes de cidade romana. Ali se encontrava todo tipo de gente, todo tipo de culto, todo tipo de manifestação cultural da época. Era sede do procurador romano da província da Acaia. Sua atividade era industrial era marcante: cerâmica, metalurgia e tecelagem, o que levou à existência de um proletariado industrial muito forte. A cidade, incluindo a região periférica, tinha cerca de 900 km2 de área e uma população de 100 mil habitantes para mais. O contexto vital de Paulo e demais missionários era o mundo urbano, marcado pelo comércio intenso, pela indústria, pelo trabalho livre e escravo, pelas viagens, pela diversidade cultural e religiosa. Tarso, cidade natal de Paulo era um centro comercial e cultural de grande importância, capital da província romana da Cilícia e sede do procurador. Neste contexto surge uma perspectiva ampla, não nacionalista, levando em conta a diversidade universal sob o pressuposto da vida urbana. Paulo não precisava mais entrar na lógica da vida da cidade. Ele cresceu e viveu o tempo todo nela. Dessa visão ampla e diversificada surge também a estratégia missional global característica de Paulo. A estrutura da ação: ser tudo para com todos sem entrar no esquema A estrutura de ação de Jesus e Paulo era determinada pelas possibilidades que a situação contextual oferecia. Para destacar a diferen- 106 MISSIONAL ça da estrutura da ação de Paulo e seus companheiros lembremos novamente as características mais marcantes da ação de Jesus. Ele empregava preferencialmente uma aproximação individual e “direta”: Escolhia pessoas, ia até elas e chamava-as pelo nome para o seguirem (Mt 4.18-22). Com estas pessoas criou um grupo pequeno, itinerante, que o acompanhava e sustentava. Característico para este grupo era a renúncia à pátria, à família à propriedade (Mt 19.27-29); o sustento provinha de pessoas simpatizantes proprietárias de bens. Jesus parece não ter visado a formação de um grande grupo de adeptos ou mesmo uma comunidade. Relacionava-se com as multidões através de discursos públicos no intuito de ensinar, proclamar e oferecer ajuda concreta. Porém, Ele não buscava publicidade (Mt 13.36;14.22;15.39 Ele despede as multidões). Sua linguagem era determinada pelo seu contexto vivencial agrícola e interiorano e pautada pela capacidade de compreensão dos ouvintes. Pode-se dizer que a estrutura da ação do apóstolo Paulo e seus companheiros urbanos se equilibrava na corda bamba entre “ser tudo para com todos” (1Co 9.22) e “não entrar no esquema desta época” (Rm 12.1.2). Tratava-se por um lado, de não se tornar o próprio proclamador um impedimento para o Evangelho (1Co 10.32), por outro lado, de não entrar simplesmente na onda geral, o que desvirtuaria a novidade do Evangelho, A estrutura da ação de Paulo não era, quanto a isso, em princípio diferente da estrutura da ação de Jesus, mas na sua forma assumia outras peculiaridades, justamente as do mundo urbano. A estratégia missional, que determinou a contextualização da mensagem do Evangelho no contexto paulino perpassava a afinidade étnica. As sinagogas como ponto de mobilização, o trabalho profissional, a cooperação em equipe, a comunicação vibrante, a organização da comunidade em casas, seu caráter doméstico e familiar é a solução para conflitos típicos do meio urbano. JOÃO COSTA 107 Todas essas informações e inquietações da vida na cidade eram, de fato, a periferia das ações missionais dos discípulos de Jesus, que impulsionados pelo genuíno fôlego apostólico, tiveram como núcleo a direta obediência ao Senhor, sendo conduzidos assim, pela verdade, e não pelo contexto meramente em si. O poder da mensagem do Evangelho transcendeu os limites da cidade, alcançando o mundo, porque as fronteiras da contextualização estavam submetidas à obediência ao Senhor. Como disse Calvino: “Assim como a mais certa fonte de destruição dos homens é obedecerem a si mesmos, assim também o único lugar de segurança é não ter qualquer outra vontade, qualquer outra sabedoria, senão a de seguir o Senhor onde quer que Ele guie. Esse deve ser o primeiro passo para renunciarmos a nós mesmos e dedicarmos todo o vigor de nossa mente ao serviço a Deus. Esse serviço significa não somente aquilo que consiste em obediência verbal, mas também aquilo pelo que a mente, destituída de seus sentimentos carnais, obedece implicitamente à chamada do Espírito de Deus”. 44 44 João Calvino - Institutes of Christian Religion, 3.7.1 - Grand Rapids: Eerdmans - 1947 108 MISSIONAL JOÃO COSTA QUARTA PARTE POR QUE SOMOS MISSIONÁRIOS? Porque o Mundo Carece de Deus 109 110 MISSIONAL JOÃO COSTA 111 capítulo 10 Expandindo a visão “O mundo pode ser alcançado quando o nosso coração como missionários for tomado por uma só coisa, pela qual o mundo clama: Deus.” Dwayne Roberts “E rogo não somente por estes, mas também por aqueles que virão a crer em mim pela palavra deles, para que todos sejam um; assim como tu, ó Pai, és em mim, e eu em ti, que também eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste.” João 17.20,21 Quantas vezes, equivocadamente, pensamos que quando nos dedicamos à busca por uma vida de oração, onde submetemos cada passo a ser dado em nossa caminhada ao Senhor é uma fuga da realidade e que não contempla a necessidade ao nosso redor? O pragmatismo imediato tem sido um grande rival do cumprimento missional da nossa vocação. As turbulências da cidade imprimem ritmos que não são cadenciados pela graça. Este ponto da oração de Jesus, amplia a escala e nos mostra a perfeição do propósito eterno de Deus, transcendendo tempo e espaço. A unidade em obediência dos cristãos missionais a partir de Jerusalém, avançaram por cidades além do seu contexto, teria uma reverberação que talvez os discípulos não imaginassem que alcançariam, mas que o Senhor em sua soberania já tinha estabelecido. Carson comentando essa passagem diz: “Essa unidade é análoga à união que Jesus desfruta com seu Pai, nesse ponto esclarecida com as palavras assim como tu, ó 112 MISSIONAL Pai, és em mim, e eu em ti (…) Da mesma forma, os crentes, devem ser um em propósito, em amor, em ação empreendida com todos e uns pelos outros, unidos na submissão à revelação recebida” 45 O fato é, que nossa unidade missional hoje, assim como foi com os primeiros discípulos e a Igreja chamada primitiva, tem como contraponto a diversidade de vozes e visões a respeito da missão, que é configurada pelas, muitas vezes, bem intencionadas, ações da Igreja-instituição. Bem dizia Pascal: nunca o mal é tão bem-feito, quando vem feito com boa-vontade. Por causa desse equivoco, profetas foram chacinados e os primeiros mártires da Igreja surgiram. A expressão da Igreja, como o organismo efetivamente missional, que congrega os discípulos, que é a expressão da cidade de Deus, é a expressão de unidade, que tendo Jesus como cabeça, alcança os confins da terra. A Igreja como mera instituição, lamentavelmente tem feito muitas vítimas e provocando sofrimento injusto. Centralizada em si mesma e em seu próprio poder, ela é expressão daquilo que Paulo chama “a carne”. A carne traz a morte (Rm 8.6; Gl 6.8). A carne não entende as coisas do Espírito (Rm 8.5). E a Igreja como Corpo de Cristo, em missão na terra nasce da fé do povo pelo Espírito Santo, e não pelo poder de dominação e imposição imperial, clerical e institucional. Esta Igreja “missional” tem como referência máxima o mistério da Trindade santa, o protótipo derradeiro de toda convivência da diferença e da unidade. Frost e Hirsch dizem: “Missão não é meramente uma atividade da Igreja. É o verdadeiro batimento cardíaco da obra de Deus. É na pessoa de Deus que a base da iniciativa missionária é encontrada. O Senhor é o Deus que envia, com o desejo de ver a humanidade e a criação reconciliada redimida e curada. A Igreja missional, então, é uma Igreja enviada. É uma Igreja que vai, um movimento divino através de seu povo, enviado para trazer cura a um mundo decaído” 46 D.A. Carson - O Comentário de João, pg 569 - Shedd Publicações - 2007 Michael Frost e Alan Hirsch - The Shaping of Things to Come: Innovation and mission for the 21st-century church - pg 18 - Hendrickson Publishers - 2007 45 46 JOÃO COSTA 113 Assumindo que fomos enviados e somos a Igreja em missão, devemos saber atuar politicamente, na perspectiva do espírito das bem-aventuranças e no horizonte de uma espiritualidade pascal, que aprende das crises e se fortalece nas perseguições. Importa continuar a penetração no continente dos pobres e permitir que eles construam o projeto popular de Igreja. A partir desta inserção, explorar tudo o que chamamos de sacerdócio coletivo, onde todos ministram e servem. Crescer, portanto, para o fundo. John Wimber ensinava que: “Esse ministério é todo baseado em compaixão e misericórdia de Deus. Jesus foi a evidência viva da compaixão e misericórdia de Deus para aqueles que estavam desamparados e necessitando do Seu amor (…) Hoje, como o Corpo de Cristo, nós continuamos essa missão, incorporando o ministério de compaixão e misericórdia.” 47 Faz-se necessário fortalecer uns aos outros, através de juntas e ligamentos, fazendo com que mais e mais irmãos e irmãs tornem-se de fato missionários, fazer de nossa comunhão algo intencional. Crescer, portanto, para os lados. É urgente garantir um diálogo constante com líderes institucionais, pois não existe vilania neles, e muitos estão apenas desinformados. Estes são aliados contraditórios porque vivem uma cumplicidade dolorosa, mas são imprescindíveis no processo de legitimação e consolidação do entendimento holístico da Igreja em missão. Crescer, portanto, para cima. Arrebatar o Evangelho como inspiração para a insurreição e libertação da velha e perversa ordem que tanta iniquidade perpetrou na historia e que soube cooperar para si o poder da igreja como aparelho de legitimação de seus ideais e interesses. Os sonhos baseados em justiça social não são monopólio das esquerdas indiferentes, gnós47 John Wimber - Everyone Gets To Play - pg 38 - Ampelon Publishing - 2008 114 MISSIONAL ticas e atéias ou está enclausurado no que chamamos de teologia da libertação. Não cair na tentação de transformar a igreja “missional” num modelo eclesial. Missão não é um movimento na Igreja, mas a Igreja toda em movimento. Caso contrário, ficara configurada num quadro canônico anacrônico e perderia sua originalidade. Elas devem continuar com o dinamismo que penetra todo o tecido eclesiástico. De fato, estamos todos em missão de alguma forma. A questão é: qual é a sua missão? O que define o propósito da sua vida? Isso é sua missão. Jesus deu a Sua Igreja, ao Seu povo uma missão: fazer discípulos. Na prática, isso consiste em chamar rebeldes pecadores a crer em Jesus para alcançar o perdão para os pecados. Entretanto, frequentemente a Igreja tem se desviado dessa missão. Isso acontece quando a Igreja deixa outra coisa tornar-se a missão primária: a construção de um prédio, uma não declarada teologia do tipo “tragam pessoas a nós”, o tamanho da congregação, orçamentos, ativismo e até mesmo apatia. Pior ainda, é quando a igreja deixa uma nuvem de suspeita contaminar suas ações, quando deixam parecer que não são bem vindos aqueles que não se parecem conosco, não votam como nós, não se vestem como nós, ou que não tem o mesmo perfil socio-econômico que nós. Quando a missão se desvia a igreja indefinidamente para de alcançar pessoas. Através de um corte missiológico, vamos observar três características que ajustam o foco da igreja “missional”: ENCARNACIONAL Igrejas missionais são profundamente conectadas a comunidade. A não é focada em seu prédio, mas é focada em viver, demonstrar e oferecer uma comunidade bíblica a um mundo perdido. Isso implica JOÃO COSTA 115 em seguir o exemplo de Jesus, o Deus que se tornou homem. Nós devemos estar comprometidos agora a nos tornar parte do contexto em que Deus nos colocou, agindo como agentes redentivos. AUTÓCTONE Igrejas missionais são autóctones, naturais da região onde atuam. Comunidades que são autóctones são enraizadas na cultura local e refletem, de forma redentora, a cultura local. Igrejas missionais vão ter expressões diferentes a partir de suas localidades, e por isso devemos com humildade, estudar as variadas culturas para alcançá-las com o Evangelho de forma que compreendam a veracidade da mensagem. INTENCIONAL Igrejas missionais são intencionais em sua prática: Intencionais em produzir missionários ao invés de consumidores no processo de discipulado; Intencionais em equipar pessoas para viver o cotidiano com a intencionalidade do Evangelho; Intencionais em edificar uma grande cidade e não uma “boa igreja”; Intencionais em se envolver com as mazelas e doenças sociais através de misericórdia e justiça; Intencionais em outras igrejas que irão fazer o mesmo; Intencionais em fundir fidelidade bíblica com engajamento cultural. Quando Jesus em sua oração diz “que também eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” Ele não se refere a um grupo seleto de missionários transculturais. Ao invés disso, o fato de estarmos Nele possibilita a todos nós respondermos ao seu chamado em nosso contexto. Jesus é nosso principal exemplo. A encarnação, Deus se tornar homem, nos ajuda a entender e nos relacionar uns 116 MISSIONAL com os outros. A cruz provê o quadro geral pra nossa teologia (no que nós cremos e como nós nos relacionamos com Deus). Mas é a encarnação que provê o quadro geral da nossa missiologia (no que nós cremos e como nós nos relacionamos com a cultura). Driscoll e Breshears descrevem bem isso ao constatar que: “na maioria das religiões, o homem mais sagrado dos homens era aquele que se afastava da cultura e dos pecadores. Reciprocamente, Jesus Cristo veio para dentro da desordem da história humana e gastou tempo em comunhão com crentes e não crentes, semelhantemente” 48 Durante seu ministério terreno, nós vemos Jesus amando pessoas, gastando tempo com pessoas, e compartilhando sua vida com pessoas. Nós vemos um pária ministrando a outros párias, nós vemos graça manifesta na vida de uma prostituta, de um adúltero, de um coletor de impostos. Nós vemos um Deus-homem vivendo com absoluta compaixão, enxergando as pessoas ao seu redor que “andavam atribuladas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9.36). E Ele diz: Eu estou aqui. Eu estou aqui para buscar e salvar aquele que está perdido. Uma Igreja missional não vê as pessoas e a cultura como inimigos, mas como tesouros perdidos que Deus está restaurando. A restauração só é feita completa e abertamente, através do Evangelho, sendo comunicado pelo povo enviado por Deus, a Igreja. Isso é ser missional. Nós temos um remetente (Jesus), uma mensagem (o Evangelho), e os destinatários (pessoas reais inseridas na cultura). Estar em missão nos faz compreender aquilo que muitos tem buscado de várias formas: a Igreja é ao mesmo tempo instituição e acontecimento. É instituição na sua organização que vem do passado, na sua esturtura sacramental, ministerial, dogmática e liturgia. A instituição garante a continuidade histórica e insere a fé no conjunto da sociedade. Mas Mark Driscoll e Gerry Breshears - Doctrine - what christians should believe - pg 240 - Re:Lit/ Crossway Books - 2010 48 JOÃO COSTA 117 a Igreja não é apenas isso. Ela, em missão, também é acontecimento. Quando pessoas se encontram em qualquer lugar, mesmo sem grandes estruturas físicas e estratégicas, mas onde a Palavra conduz a transformação das mesmas, aí está presente o Senhor com seu Espírito, aí emerge a Igreja como acontecimento. O missiólogo David Bosch identifica esse processo: “O Evangelho deve permanecer como a boa nova tornando-se, até certo ponto, um fenômeno cultural, enquanto considera os sistemas de significado presentes no contexto” 49 Talvez hoje, dado o peso da instituição milenar, sua pouca flexibilidade, seus compromissos históricos com certos setores da cultura dominante, esse caráter de acontecimento da igreja missional torne novamente apetecível a mensagem de Jesus, a faça menos contraditória aos sentidos humanos, e lhe devolva de novo seu caráter de boa nova. David Bosch - Transforming Mission: Paradigms shifts in theology of mission - pg 454 - Orbis Books - 1991 49 118 MISSIONAL JOÃO COSTA 119 capítulo 11 Perspectivas da Unidade “A unidade e a diversidade que existem neste mundo são simplesmente um reflexo da unidade e da diversidade que existem na Trindade” Wayne Grudem “Eu lhes dei a glória que me deste, para que sejam um, assim como nós somos um; eu neles, e tu em mim, para que eles sejam levados à plena unidade, a fim de que o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, assim como me amaste.” João 17.22,23 A unidade é a expressão divina no Corpo de Cristo que faz com que não sejamos apenas agremiações, ministérios, denominações e movimentos temporais. A unidade nasce da perspectiva de que Jesus se revelou a nós, e que o desenvolvimento dessa revelação nos levará a uma plenitude de quem somos como Igreja do Senhor. A glória que Jesus recebeu nos é dada, mediante a graça, com a finalidade de sermos os anunciadores do Reino. Sem essa glória, como revelação da pessoa de Jesus, não temos unidade. E sem unidade, o reconhecimento global de quem é Deus e do seu amor não acontece. Com esse raciocínio, nós não podemos separar eclesiologia (o pensar e o praticar Igreja) da missiologia. A revelação de quem é Jesus não nos leva, como uma igreja missional, a ser uma alternativa para a instituição vigente. A vida cristã, pela perspectiva missional da unidade, se caracteriza pela ausência de estruturas alienantes, 120 MISSIONAL pelas relações diretas, reciprocidade, profunda fraternidade, auxílio mútuo, comunhão de ideiais e igualdade entre os membros. Está ausente aquilo que caracteriza as sociedades: regulamentos rígidos, hierarquias, relacionamentos prescritos num quadro de distinções de funções e atribuições. O entusiasmo gerado pela vivência interpessoal do “nós” e a experiência de saborear a atmosfera do Evangelho levanta, com frequência, um problema não desprovido de gravidade. Os missionários têm que estar atentos a ele para não cair em ilusões. Por vezes, se crê e se alimenta a expectativa de que toda a Igreja, enquanto instituição, se transformar numa comunidade missional. E expreessão da unidade, por um entendimento missional, se dará na expressão de redes. Neil Cole diz: “A formação expansionista de redes de discípulos, líderes, igrejas e movimentos podem acontecer somente se prestarmos atenção cuidadosamente como Deus criou a humanidade para interagir. Por muito tempo, a Igreja ocidental tem ignorado esses importantes conceitos e, no processo, perdendo uma real oportunidade de mudar vidas, e consequentemente transformar de vizinhanças à nações.” 50 A comunidade não constitui uma formação típica de uma fase da humanidade ou possível de se realizar atualmente em estado puro. Concretamente existe sempre a estrutura de poder, seja de versão dominativa, seja de versão solidária, vigoram desigualdades e papéis estratificados de acordo com uma escala de valores. Há conflitos, interesses particulares. Historicamente as formações sociais apresentam-se como entreveros com características societárias e comunitárias. Nesse sentido, não há realismo na luta por uma sociedade sem classes, totalmente fraterna, sem conflitos, mas somente na luta por um tipo 50 Neil Cole - Church 3.0: upgrades for the futures of the church - pg 162 - Jossey Bass - 2010 JOÃO COSTA 121 de sociabilidade onde seja menos difícil o amor e onde haja melhor distribuição de poder e de participação. A comunidade deve ser entendida como um espírito a ser criado, uma inspiração que alimenta o esforço de continuamente superar as barreiras entre as pessoas e gerar um relacionamento solidário e reciproco. A convivência humana sempre será cheia de tensões entre o aspecto organizatório, impessoal e outro pessoal, íntimo. Lutar para que predomine a dimensão comunitária implica em lutar para que as estruturas e as ordenações não se substantivem, mas ajudem a humanizar o homem e a fazê-lo cada vez mais próximo do outro e dos valores evangélicos. O predomínio do comunitário sobre o societário apresenta-se mais viável em pequenos grupos. Daí a importância do cultivo da comunidade dos discípulos como expressão missional dentro da sociedade eclesial. Para que se mantenha seu vigor renovador, o espírito comunitário precisa ser alimentado e impulsionado. Não basta os missionáios estarem juntos para executarem algumas tarefas. O que constitui um agrupamento humano com características comunitárias é seu esforço de criar e manter a envolvência comunitária, comum um ideal, um espírito a sempre ser recriado, vencendo o rotineiro e o ambiente institucional e castrador. O Evangelho, com seus valores expressos em amor, perdão, fraternidade, a renúncia ao poder opressor, acolhida do outro, entre outros, essencialmente se orienta na criação, dentro das estruturas societárias, do espirito comunitário. Há, entretanto, que se advertir: a institucionalização é um fenómeno inevitável a todo grupo que visa permanecer e estabilizar-se. Com isso, surge a codificação das experiências bem-sucedidas, e por ai a comunidade missional pode ser ameaçada. Para conservar-se, o espírito comunitário precisa revitalizar-se continuamente. Tal tarefa 122 MISSIONAL será facilitada se os grupos se mantiverem relativamente pequenos e não se deixarem absorver pela institucionalidade, que por vezes atende as necessidades das nossas próprias vontades, por meio do ativismo. Cícero Bezerra diz: “O serviço para Deus não é um fim em si mesmo. O trabalho é uma oportunidade para contribuirmos com a geração atual, e testemunharmos das grandes coisas que Deus tem feito.” 51 A vida missional, enquanto significar a presença do comunitário no cristianismo e dentro da Igreja, não pode pretender ser uma alternativa global à Igreja como instituição, mas seu permanente elemento renovador. Ao dizermos que a “igreja missional” não poderá pretender ser uma alternativa global ao institucional, não estamos menosprezando seu real valor renovador no tecido eclesiástico. Tentamos situar seu significado da Igreja universal. Ela sem dúvida significa um aguilhão capaz de mobilizar os aspectos enrijecidos da Igreja como instituição e representa uma chamada para uma vivência mais intensa dos valores autenticamente comunitários da mensagem do Evangelho. Podemos dizer que toda a pregação de Jesus consistiu em reforçar esses aspectos comunitários. Num sentido horizontal, conclamando os homens ao respeito mútuo, à doação, à fraternidade, à simplicidade das relações. Num sentido vertical, abrindo o homem à sinceridade da relação de filho de Deus, à singeleza da oração simples e do amor generoso para com o Pai. Não se preocupou muito com o aspecto institucional, senão com o espirito que deve ser vivido em todas as expressões do convívio humano. A Igreja, em sua globalidade, é a coexistência concreta e vital da dimensão social e institucional com a dimensão comunitária. Nela há uma organização que transcende as comunidades particulares, atendendo à comunhão 51 Cícero M. Bezerra - Conversas Sobre Espiritualidade - pg 79 - 2001 JOÃO COSTA 123 de todas elas. Há uma autoridade, símbolo da unidade do mesmo amor e da mesma esperança, há um credo, expressão da mesma fé fundamental, há metas globais, comuns a todas as comunidades locais. As reflexões sociológicas ganham relevância para a teologia, por desfazerem ilusões e por manterem os termos instituição e missão sobre bases realistas. A Igreja que nasce no povo é a mesma Igreja que nasceu nos apóstolos. O que muda nela é a sua aparição sociológica no mundo, sua forma de expressão litúrgica, ministerial e organizacional, não muda a coexistência permanente de um aspecto mais estático, institucional, permanente com o outro dinâmico, carismático e vital. Persistirá na Igreja sempre, e isto expressa sua vitalidade, a perseverante vontade de impregnar de espirito comunitário o aspecto institucional e organizacional da Igreja. O problema da Igreja não reside, na verdade, no contraposto Igreja como instituicao/Igreja em missão. Haverá sempre a persistência de ambos os pólos. O real problema reside no modo como se vive tanto o comunitário quanto o institucional: se um quer absorver o outro, tolhi-lo e liquidá-lo, ou se ambos respeitam e abrem mutuamente suas fronteiras num constante movimento em que se deixam questionar. Essa última atitude não deixará que o institucional assuma características enrijecedeoras e venha a predominar, e também não permitirá que o comunitário/missional degenere num puro utopismo, pretendendo que a Igreja global se transforme numa missão. A convergência desses dois modelos eclesiologicos, por assim dizer, e sua interação dialéctica contribuíram para que a Igreja como totalidade tomasse consciência profunda de sua ação missionária, especialmente entre os pobres deste mundo, uma majoritária massa a 124 MISSIONAL ser alcançada, de cuja paixão ela participa, servindo-os. Pedro Arruda, um irmão que viveu bem essa tensão, diz que: “As 95 testes de Lutero, de certa forma, perderam a importância até mesmo entre os seus muitos seguidores, que praticam de maneira descarada aspectos que foram nelas denunciados. Penso que uma única afirmação poderia ser pregada na porta de todos os templos cristãos denunciando o maior erro da Igreja: “Sedes perfeitos em unidade para que o mundo creia”. Quando alcançarmos esta prática, o ciclo da Reforma estará completo. Jamais podermos considerar a unidade como um elemento que podemos produzir por nós mesmo, pois ela tem o caráter e a natureza divina, e como tal, só Deus pode produzi-la em nós. Ela é o resultado de comunhão, e esta só pode ser encontrada na prática de uma só vontade: a de Deus. Assim, a prática da vontade de Deus gera a comunhão, que por sua vez produz a unidade.” 52 Pedro Arruda - A Comunhão Nossa de Cada Dia: A reforma da unidade da igreja - pg 112 - CCC Edições - 2010 52 JOÃO COSTA 125 capítulo 12 Ágape “Deus é o maior bem do ser humano, e o amor por Ele á a única alegria que pode satisfazer nossas almas” Jonathan Edwards “Pai, meu desejo é que aqueles que me deste estejam comigo onde eu estiver, para que vejam a minha glória, a qual me deste, pois me amaste antes da fundação do mundo. Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheço; e estes reconheceram que tu me enviaste. E fiz que conhecessem o teu nome e continuarei a fazê-lo conhecido; para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu também neles esteja.” João 17.24-26 O mundo carece de amor. A aldeia global, e sua pretensa proposta de horizontalização de valores, buscam desesperadamente amor. Desde as expressões originalmente lúdicas que se manifestam numa libertinagem que grita por atenção, até as microrevoluções pulsantes nas esferas da política e da economia, culminando no colapso do ecosistema, a criação geme por uma manifestação que traga redenção. E esta manifestação é o amor. A oração de Jesus expressa a vontade soberana do Senhor, que sobrepõe os desejos escusos e confusos da humanidade. O teólogo luterano Gottfried Brakemeier constata que: “Embora seja condição humana universal, a carência de salvação se agudiza em situações concretas, muito em analogia aquela experimentada pelos seguidores de Jesus no barco. É sentida com especial gravidade por pessoas e grupos vítimas da fome, da doença, do crime. Assim aconteceu com o povo de Israel no Egito, ao viver submetido ao jugo da escravidão. Assim testemunha 126 MISSIONAL a lamentação de autores de Salmos, trazendo diante de Deus suas agruras. Assim documentaram os gemidos de torturados, oprimidos, sofredores de todos os tempos. Na America Latina, o flagelo da injustiça, da exclusão social, da absoluta miséria de amplas parcelas da população, confere ao brado por salvação, particular intensidade. A violência, quase “normal” deste continente, é um dos temíveis sintomas da mesma. Junta-se o clamor todo o assim chamado “Terceiro Mundo”, ou seja, o mundo pobre, explorado, “subdesenvolvido”. Esta é a razão por que o Conselho Mundial de Igrejas colocou a Conferencia Mundial de Missão, realizada em Bangkok, Tailandia, em 1973, sob o tema: “Salvação Hoje”. Qual o significado de salvação em meio às dramáticas rupturas sociais e crises e sentido do mundo globalizado?” 53 A perfeição comunitária na Trindade é o veio de esperança para a humanidade. E ela se manifesta ao homem, com o romper do tempo/espaço quando Jesus ora inclusive, por aqueles que iriam crer na mensagem dos seus primeiros discípulos. Sabemos ao longo da História bíblica que essa mensagem não criou uma religião, mas efetivamente, transformou o mundo. Cremos, na conclusão da História bíblica, que o desfecho desta jornada, com o estabelecimento pleno da Cidade de Deus, onde a glória de Deus será vista por nós, sem mais nenhuma barreira, pois como vemos nos momentos finais da oração sacerdotal, “estaremos” Nele, imergidos em sua realidade plena no Reino vindouro. A devoção que há na pessoa de Jesus a inspiração faz com que nosso altar tenha como nascedouro o lugar secreto, o quarto. Mas, enquanto comunidade de discípulos, esse altar vai ser o cenário de atuação do sacerdócio de todos os santos, que não se restringe a subcultura religiosa, mas vai ganhar nas ruas e nas extensões múltiplas que alcançam os confins da terra, através da mensagem encaranada do Evangelho do Reino de Deus. Newbigin diz: Gottfried Brakemeier - O Ser Humano em Busca de Identidade: Contribuições para uma antropologia teológica - pg 191,192 - Editora Sinodal/Paulus - 2002 53 JOÃO COSTA 127 “Jesus proclamou o Reino de Deus e enviou seus discípulos a fazerem o mesmo. Mas isso não foi tudo. Sua missão não dizia somente respeito a palavras, e o mesmo acontece conosco. Se o Novo Testamento falasse somente da proclamação do Reino, poderia não haver nada que justificasse o adjetivo “novo”. Os profetas e João Batista também proclamaram o Reino. O que é a “novidade” é que em Jesus o Reino é presente (…). No Novo Testamento nós não estamos apenas lidando com a proclamação do Reino, mas também com a presença do Reino.” 54 Essa presença do Reino se dá pela nossa ação missional, que acima é movida pelo amor que em primeiro lugar nos alcançou e nos faz enxergar a carência de um mundo decaído. A grande comissão, que predominantemente lemos pela perspectiva de Mateus, é encarada e vivenciada no aspecto da evangelização, que diversas vezes se limita a um programa isolado em nossas igrejas. A vida em missão é vida de amor sacrificial, não se contenta em apenas olhar para Jesus, o missionário definitivo, o cordeiro pascal. O seu novo e vivo caminho nos redime, mas também nos envia. John Stott, falando sobre missões nessa geração declarou: “A forma crucial como a Grande Comissão foi entregue a nós (apesar de ser a mais negligenciada, por ser a mais custosa), é a joanina. Jesus havia antecipado isso em sua oração no cenáculo quando disse ao Pai: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18). Agora, provavelmente no mesmo cenáculo, mas depois de sua morte e ressurreição, ele transforma sua oração-declaração em uma ordem: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”(Jo 20.21). Nessas duas sentenças, Jesus fez mais do que traçar um paralelo vago entre sua missão e a nossa. Precisa e deliberadamente, Ele fez de sua missão um modelo para a nossa, dizendo: “assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”. “Portanto, nossa compreensão da missão da Igreja deve ser deduzida da nossa compreensão da missão do Filho.” 55 Leslie Newbigin - The Open Secret: An introduction to the theology of mission - pg 40 Eerdmans - 1995 55 John Stott - A Missão Cristã no Mundo Moderno - pg 27 - Editora Ultimato - 2009 54 128 MISSIONAL Algo de novo está acontecendo na presente geração de cristãos no Brasil. Está surgindo uma sede ou um despertamento para um testemunho vigoroso e encarnado do Evangelho. Através de iniciativas pequenas e silenciosas, ou na condição de movimentos e comunidades que estão se organizando, onde os dons espirituais têm sido buscados e manifestos de forma relevante, naturalmente sobrenatural, nota-se o surgimento de um genuíno amor. Esta nova sensação vem carregada de certa inconformidade com tudo o que é demasiadamente institucional e pesado para ser mobilizado para uma nova e expandida visão do Evangelho. Tem-se a impressão que está nascendo uma profunda sintonia com o espírito das primitivas comunidades cristãs e missionais, no sentido de avançar com um mínimo de engessamento denominacional e o máximo de criatividade. Essa profusão missional e criativa já começa com a iconoclastia dos próprios membros que formam essas comunidades, onde ter o nome destacado pelas suas obras não é uma meta. Se a comunidade de Jerusalém nos serve como um modelo de formação espiritual entre os discípulos, a comunidade de Antioquia é a comunidade do envio intencional, guiado pelo Espírito Santo, dos primeiros missionários que de fato alcançaram os confins da terra. Michael Green descreve: “A pregação aos samaritanos e prosélitos religiosos como o eunuco etíope e Cornélio é realmente notável, mas pode ser considerada uma ampliação dos laços de Israel com os “estrangeiros dentro de casa”. O mesmo não ocorre com a pregação a pessoas totalmente pagãs, começada em Atioquia, conforme somos informados. Isto é uma mudança decisiva, e a Igreja de Jerusalém aceitou-a, e até enviou uma comissão de um homem para aprová-la, acabando por reconhecer que os adeptos gentios da fé não precisavam cumprir a Lei de Isarel nem trazer a marca da aliança, a circuncisão; a própria fé e o batismo associavam as pessoas ao Messias, sejam judias ou gregas.” 56 56 Michael Green - Evangelização na Igreja Primitiva - pg 138 - Editora Vida Nova - 1989 JOÃO COSTA 129 No capítulo 13 de Atos vemos o envio dos primeiros apóstolos, Saulo e Barnabé, enquanto eles jejuavam e oravam durante um culto de adoração a Deus (Atos 13.1-3). A linguagem de pentecostes foi comum entre aqueles que ali estavam. Mas no início do relato sobre a Igreja em Antioquia vemos algo muito interessante: “Os que foram dispersos pela tribulação que se deu por causa de Estêvão foram para a Fenícia, Chipre e Antioquia, anunciando a palavra apenas aos judeus. Mas havia entre eles alguns que tinham vindo de Chipre e de Cirene, os quais, entrando em Antioquia, falaram também aos gregos, anunciando o evangelho do Senhor Jesus. E a mão do Senhor era com eles, e um grande número de pessoas creu e se converteu ao Senhor” (Atos 11.19-21) - percebam que alguns que tinham vindo de Chipre e Cirene, é que foram as vozes missionais, que não conseguiam conter o Evangelho na sua cápsula exilada. Por mais que Atos 13 destaque os nomes e os dons dos irmãos que ali adoravam o Senhor, o fervor missional de Antioquia nasce entre anónimos, que tinham essencialmente, como capacitação missionária, a mão do Senhor. Este avanço espontâneo e livre do Espírito Santo representa ameaça para aquelas comunidades históricas que estão fortemente estruturadas e organizadas para controlar seus fiéis através de fichários e manuais proselitistas de suas próprias tradições confessionais. Fato é, que hoje, especialmente no meio urbano, manifesta-se uma livre busca por preferências espirituais. Isto é bom e ruim ao mesmo tempo. Tem o lado positivo porque desafia as comunidades a se atualizarem para as novas necessidades missionárias, com o objetivo de alcançar um mundo carente de Deus. O lado negativo é que pessoas são levadas a consumir espiritualidade de acordo com gostos ou pecados que impedem uma verdadeira conversão ao Evangelho. Entendemos que nossa jornada nasce na devoção e desemboca na missão, porque é apenas ouvindo o Senhor que vamos saber trilhar neste estreito e tênue caminho. O desafio da Igreja, neste momento, é 130 MISSIONAL encontrar o equilíbrio. Não se “ancorar” no equilíbrio, para justificar intolerância e omissão. Ficar ancorado na rocha eterna do Evangelho, mas simultaneamente possuir um coração aberto e sensível para agir criativamente a fim de não perder as novas oportunidades que surgem, sendo missionários que vislumbram pela fé, o cumprimento da missão, no Grande Dia, o casamento do Cordeiro com sua Noiva, a Igreja. Onde todo joelho se dobrará e toda língua confessará que Jesus Cristo é o Senhor. JOÃO COSTA IMPERDÍVEL!!! Acesse o site da Rede Missional e faça o download gratuito do Guia de Estudos do livro Missional. São 13 lições com aplicações práticas sobre cada capítulo do livro. Ideal para ser usado para reflexão em pequenos grupos! ACESSE E FAÇA DOWNLOAD! www.redemissional.com www.editorainterferencia.com 131 132 MISSIONAL JOÃO COSTA CATÁLOGO www.editorainterferencia.com 133 134 MISSIONAL JOÃO COSTA 135 Percepção Enxergando um Deus imutável em meio a um mundo mutante Autor: J. C. Ryle 64 páginas Formato: 14 X 21 cm “Essa obra se opõe à idolatria religiosa de se tentar chegar a Deus sem Cristo, mesmo frequentando a igreja. Estar na igreja não quer dizer necessariamente que a vida está sendo transformada pelo Evangelho. Por isso, essa obra é extremamente relevante para o contexto evangélico brasileiro. Estudiosos e observadores do fenômeno religioso tem falado e escrito muito sobre o crescimento da igreja evangélica brasileira e seu potencial numérico para os próximos anos.” Juan de Paula, Pastor batista e professor de teologia. Músicos, calados! Porque música é enfeite de louvor. Autor: Márcio de Souza 64 páginas Formato: 14 X 21 cm “Sem dúvida alguma uma das vertentes mais importantes desse livro é a ênfase do Pr. Márcio, ele mesmo um músico, à vida de adoração pessoal de quem pretende servir na área da música. É a isso que o autor chama de “Músico sem música”, ou seja, esse princípio espiritual de que o músico deve ser um adorador na vida antes de se colocar frente ao povo de Deus.” Stênio Marcius, músico e poeta. 136 MISSIONAL Confiança em tempo de crise Aprendendo a viver sob os cuidados do Pai. Autor: Claudio Alvares 64 páginas Formato: 14 X 21 cm “No livro ‘Confiança em tempo de Crise’, o pastor Claudio nos ensina através da vida de Elias de que o Deus da Bíblia independente da circunstância que estejamos vivendo se faz presente em nossas vidas, suprindo as nossas necessidades de forma extraordinária.“ Renato Vargens O Sangue Autor: Dwight L. Moody 64 páginas Formato: 14 X 21 cm “Que Deus nos ajude a dar importância ao sangue de Seu Filho. A Deus lhe custou muito dar Seu Filho, e vamos procurar que não chegue ao mundo a notícia de que ele está perecendo por falta Dele? O mundo pode nos abstrair, mas não a Cristo. Preguemos a Cristo em tempo e fora de tempo. Vamos aos enfermos e aos que morrem e apresentemos ao Salvador que veio para buscá-los e salvá-los, que morreu para redimir-lhes.“ Dwight L. Moody