FP na WEB_ Década de 1940, Regina Pacis

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FP na WEB_ Década de 1940, Regina Pacis
FULVIOPENNACCHI / DECADA 40
A IGREJA DE NOSSA SENHORA DA PAZ
Pennacchi havia lido e estudado Giovanni Battista Alberti, o conteúdo arquitetônico
de Pienza
e, portanto não tinha dúvidas a respeito do paralelismo das artes –
arquitetura e decoração mural – acreditando que a harmonia racional de todas essas
partes era essencial para não comprometer o resultado final de uma obra. Essa era a
sua definição de beleza.
Sem saber ao certo, recuperava aquele conceito, como havia feito há alguns anos, a
teoria ensinada em Bahaus, que privilegiava o “todo” ao invés de elementos isolados.
Pennacchi teve a oportunidade de transformar em realidade sua crença; primeiro,
graças à excelente transferência que teve com o Padre Milini que aceitou seu projeto
para a Igreja sem reservas; e, depois quando construiu suas duas casas, reeditando
sua releitura da arquitetura campesina toscana do pré-renascimento.
A guisa de comentário gostaria de apontar que o belíssimo afresco de Pennacchi,
numa das capelas laterais da Igreja N. S. Auxiliadora (1959) não tem o mesmo efeito
plástico que sentimos quando vemos afrescos semelhantes pintados em ambientes
menos poluídos esteticamente.
O importante é que aquelas três obras, a Igreja e suas duas casas, vistas em seu
conjunto, seriam suficientes para reservar a Pennacchi um lugar de destaque na arte
moderna brasileira.
Em 1937, a Pia Sociedade dos Missionários de São Carlos Borromeu comemorava o
primeiro cinqüentenário da vinda para o Brasil e acalentava um sonho. Construir um
complexo sócio-religioso-educacional que privilegiasse os menos favorecidos, dando
seqüência à obra iniciada pelo Padre Giuseppe Marchetti; que , em 1894, havia
iniciado o Orfanato Cristóvão Colombo no Ipiranga. Os longos anos de trabalho duro
geravam, a cada etapa vencida, novas energias para “a grandiosa idéia”. Os
Missionários Carlistas não esqueciam o emigrante e o missionário, que, ao exilar-se,
se tornava seu fiel companheiro; companheiro de...
“... gente gloriosa que insistentemente sentia bater em sua carne as palavras
admoestadoras de seus antepassados: A espada pode falhar; somente serve ao
texto de VALERIO PENNACCHI-PENNACCHI / 2009, DIREITOS RESERVADOS.
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homem para desbravar o caminho trancado pelo egoísmo e pela barbárie; mas nossa
civilização descansa à sombra da enxada e do arado, entre as paredes do templo e
da escola, na intimidade da família, contando com nossas sagradas instituições
amparadas pelo direito.”
Contando com a maior perenidade da palavra escrita, cabe aqui resgatar, em parte,
os idealizadores, executores, benfeitores e colaboradores desta gigantesca obra por
meio de uma breve cronologia:
Em 1938, Pennacchi era abordado pelo Padre Francesco Milini , Superior Regional da
Ordem Carlista (1936 – 1946), que, opinando sobre o pré-projeto arquitetônico
originalmente elaborado pelo Engenheiro Leopoldo Pettini e o considerou impróprio e
modesto em relação à importância da imigração italiana, de sua tradição histórica e
artística e da contribuição para o engrandecimento do Brasil. Propôs um novo projeto
arquitetônico e decorativo. A parte técnica continuaria a cargo do Engenheiro
Leopoldo Pettini, a decoração mural (afrescos) seria executada pelo próprio
Pennacchi e as esculturas seriam confiadas a Galileo Emendabili.
A igreja, em estilo românico primitivo, próprio do alto e médio vale do rio Serchio, é
sóbria, articulando grandes volumes. O plano retangular fechado lembra as basílicas
primitivas. Compõe-se de um pórtico, três naves ladeadas por quatro nichos, um
transepto e uma abside, com uma sacristia e uma capela em ambos os lados.
A fachada, aberta em cinco arcos, dá para um pórtico retangular, fazendo a
transição para a nave principal. A passagem da nave principal para as secundárias dáse por arcaduras. Tanto a abside quanto os nichos laterais (as capelas secundárias)
são cobertos por uma abóbada em forma de uma semi-calota. As únicas janelas,
semi-circulares na parte superior, estão na parede de entrada e nas laterais do
transepto. O edifício organiza-se ainda por dependências paroquiais, um colégio e um
campanário. Também os afrescos internos são da autoria de Pennacchi1. Nos muros
que dividem a nave central das secundárias estão distribuídas cerâmicas maolicadas
representando as 14 estações da Via-Sacra também em sentido anti-horário, a partir
da Capela do Santíssimo.
1
Vide “Fulvio Pennacchi e a Arquitetura” de Marcos Tognon e “Cronologia” de Margarida
Sant’Anna; textos publicados no livro-catálogo de “Pennacchi – 100 anos”.
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O programa iconográfico foi dirigido pelo Pe. Millini. No altar-mor, ao centro,
encontra-se o Cristo Crucificado. No registro horizontal inferior, estão representados
O Nascimento da Virgem e A Natividade. Na parede oposta ao altar-mor, foram
pintadas cenas do Julgamento Final, com dois registros superpostos: acima, Jesus e
os Apóstolos; abaixo, divididos pela janela da parede de entrada, o Paraíso (entre os
Eleitos, santos e humildes trabalhadores) e a representação do Inferno.
No convento, também afrescado por Pennacchi, nos deparamos com duas obras
majestosas: a Santa Ceia e uma alegoria relativa à visita a fazendas no interior de
São Paulo por Monsenhor Giovanni Batista Scalabrini, o fundador da Ordem.
As publicações mensais do Mensageiro da Paz (outubro de 1939 a novembro de 1946),
gentilmente cedida pelos atuais responsáveis pela paróquia, apresentam-nos em
vários números uma lista exaustiva de pessoas físicas e jurídicas que contribuíram
para a edificação da Igreja. O autor lamenta profundamente não ter espaço para
reproduzi-las na íntegra. Eis uma breve cronologia:
1938: apelo a todos os fiéis! Fundava-se a Associação de Nossa Senhora da Paz,
liderada pela Condessa Elizabetta Castruccio, com a finalidade de angariar fundos
para a construção do complexo sócio-religioso-educacional em adição ao Orfanato
Cristóvão Colombo, já existente e gerido pela mesma ordem.
Pouco se sabe a respeito da Condessa Elizabetta Castruccio além do fato de ser a
esposa do Conde Giovanni Castruccio, «Regio Console Generale» da Itália em São
Paulo à época. Sabemos, sim, que, por meio de seu trabalho incessante, foi uma das
peças fundamentais que proporcionou a transformação do sonho dos Missionários
Carlistas em uma feliz e duradoura realidade. A influência social do casal Castruccio
foi decisiva para o engajamento e contribuição das recém-formadas lideranças
italianas paulistanas que catalisaram o apoio maciço de todos os membros da colônia
italiana por muitos anos! Foi Giovanni Castruccio quem apresentou o Padre Milini ao
Conde Francesco Matarazzo.
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1939: foi escolhido o bairro do Glicério, centro operário entre o Cambucí e a Mooca,
onde os Missionários compraram um terreno de 10.000 metros quadrados. O projeto
Pennacchi foi definitivamente escolhido.
1940: a Cúria Metropolitana concorda com a indicação do Padre Mario Rimondi como
Vigário da Paróquia de N.S. da Paz, o qual colaborará com o Padre Francesco Milini
na organização e no início das obras. Em 20/10/1940, é colocada a pedra
fundamental com a presença de cerca de 5.000 fiéis, autoridades civis e
eclesiásticas.
As lideranças sociais, madrinhas do projeto foram muito bem representadas, pelas
Condessas
Mariângela
Matarazzo,
Marina
Crespi
e
Elisabetta
Castruccio.
Compareceram também à cerimônia a Consulesa Senhora Clemy Biondelli e a ViceConsulesa Senhora Simonis.
1941: as estacas foram cravadas pela Cia. Humberto Benacchio, o embasamento do
edifício ficou pronto, passando-se então à execução das paredes.
1942: início da construção da abóbada conforme projeto Denti-Pettini. Inicia-se o
acabamento interno, em grande parte doada pela Senhora Joaninha dal Pino
Morganti. O grande benemérito da Campanha da Telha foi o Comendador Américo
Samarone, que, por meio da Cerâmica Sacoman, doou todas as telhas necessárias à
cobertura da igreja. O madeiramento e a mão-de-obra necessária para a execução da
cobertura foram conseguidos com as listas distribuídas entre os paroquianos. Marca
também 1942, o início da Campanha do Órgão, que se prolongaria por todo a ano
seguinte liderada pela Família Boggio.
Durante a campanha (1942-1943), foram levantados 20.000 cruzeiros.
1943: inicia-se a Campanha para o Revestimento Interno; o altar-mor é consagrado
em abril, com a presença de sua doadora, a Senhora Lia Azevedo, em memória de
seu marido, Joaquim dos Santos Azevedo. Lendo a copiosa correspondência Fulvio
Pennacchi-Filomena Matarazzo, encontramos a seguinte passagem:
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Carta Sobre Igreja N. Senhora da Paz
Resumo sobre várias atividades
Rua 13 de Maio... .16.10.1941
Este é o último projeto da Abside, como você vê , é mais livre e mais arquitetônica,
a variante adicionada foi feita para satisfazer os desejos da doadora.
Aconteceu assim: a Sra. Lia....., de origem romana, casou-se com um brasileiro de
nome Joaquim, filho de portugueses, e manifestou seu desejo de ter registrado pelo
menos uma cena ou uma estátua do pai da Madonna (São Joaquim) homenageando
seu já falecido marido. Começamos a pensar em criar uma cena da vida da
S.Joaquim, surgindo assim a idéia de fazermos a “Natividade da Virgem” a esquerda
e a “Natividade de Cristo” a direita. Eu estou contente desta ultima solução, acho
será mais simples e mais equilibrada da outra.
Carta XIX; Santa Helena
16.12.1941; 16h45.
...Padre Milini viu os desenhos e pinturas (aqui Pennacchi fala da abside) e achou
todos muito bem resolvidos e bem harmoniosos; inclusive o Cristo crucificado e o
detalhe da cabeça segundo ele são já trabalhos já prontos. Ele disse que o Cristo é
verdadeiramente o Senhor morto e que eu me expressei muito bem. Eu, por mim
não estou muito satisfeito porque eu vejo muito mais pintura que o padre Milini.
Carta XX; Santa Helena
18.12.1941; 18h00
...com esta carta mando uma pequena lembrança que eu espero chegue antes do
Natal. Essa pequena novidade com os pastores V. já conhece, trata-se daquelas
figuras que estarão à direita da grande cruz. Este pequeno desenho será
desenvolvido em tamanho maior, as cores naturalmente serão diferentes porque não
sei ainda como vou harmonizá-las. O fundo será de um cinza não uniforme com leves
variações pictóricas
Como V. pode ver aumentei um anjo em ato de devota admiração pelo pequeno
Jesus que já era bastante grande, por desejo da Sra. romana ( Lia de Azevedo). Que
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Sra. chata, o oposto do bom gosto; se V. visse as roupas, os figurinos, as cores e
tecidos e o quanto ele é pretensiosa V. sentiria pena de mim... eu devo
pacientemente sorrir, ser muito educado e gentil. Além de tudo é muito míope, e
examina os desenhos a três centímetros; se ela pudesse enxergar bem me chamaria
de “futurista” e o Padre Milini perderia uma boa oportunidade de construir a igreja.
Essa Senhora, além de tudo, é extremamente contraria a arte moderna, mas eu,
como v. sabe, sou um moderno-antigo.
Hoje, pela trigésima vez (estou exagerando) pintei sobre a mesma prancha a cabeça
de Cristo. Comecei há quase uma hora atrás; o pintei de frente, de perfil a três
quartos, de perfil, com olhar voltado para cima e para baixo... . Hoje a figura está
mais equilibrada e os cabelos se mexem com maior leveza; a parte de baixo, o
tórax, está bem resolvida com uma penumbra interessante.
A grande coroa de
espinhos penetra bem nos cabelos e uma gota de sangue vermelho escuro cai da
fronte, porém a face de Jesus não corresponde ao meu desejo, tem naquele rosto
alguma coisa que não corresponde a Jesus.
Falta-lhe bondade, humildade, aquele espírito generoso e divino. É muito estranho
que eu nesta prancha não consiga concluí-lo de modo que me satisfaça – me parece
um “bom homem” que depois de um árduo trabalho sente necessidade de inclinar o
corpo e procurar o sono. Não consegui nem mesmo exprimir o lado trágico e
doloroso...
Enquanto no Cristo crucificado inteiro eu consegui exprimir muito daquilo que eu
desejo e também as cores são muito austeras e simples e precisas. Na cabeça de
tamanho real também tem a serenidade de Jesus morto (Rebolo, ontem a noite
ficou comovido com essas duas últimas pranchas).
V. vê querida, como é difícil fazer boa pintura e exprimir o que temos na alma.
Em julho do mesmo ano, inaugurou-se a capela do SS. Sacramento – cujo resultado,
apesar de o espaço não ter sido parte integrante do projeto original, foi
extremamente feliz, pois conjugou uma distribuição equilibrada de planos e de
material. Neste moderno existe o espírito do clássico! A atividade foi presidida pela
principal colaboradora, a Senhora Condessa Marina R. Crespi. Dos afrescos que
decoram a capela – o Bom Pastor e a Ceia de Emaús – já nos falou Osório César.
Ainda a respeito foi escrito que,
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“...com a esplendida capela, a Senhora Condessa não somente ligou seu nome a uma
obra de verdadeira religião, mas também mostrou fino gosto artístico e
mecenatismo em favor das artes.”
Essa foi apenas uma das muitas e importantes contribuições da Senhora Condessa.
Seu patronato também apoiou a Campanha Pró Catedral, os projetos relacionados
com o
Congresso Eucarístico Nacional de São Paulo de 1942, a criação da
Universidade Católica, o sustento do Orfanato Cristóvão Colombo, etc., além do
estabelecimento-modelo criado, no bairro da Mooca para beneficiar as famílias dos
trabalhadores; o “Ninho-Jardim Condessa Marina Crespi”! Por uma vida dedicada às
causas da Igreja Católica, a Condessa Marina Crespi foi agraciada por SS. o Papa Pio
XII com a “Cruz Pro Ecclesia et Pontífice”; a mais importante condecoração pontifícia
somente concedida às pessoas que primam pelo amor à Santa Igreja e ao Santo
Padre.
1944-1945: as obras seguem em ritmo mais lento... em julho, 1945, procede-se à
inauguração da fonte batismal, doada pelo Senhor Paolo Matarazzo, desejando
perpetuar a memória de sua mãe, a Senhora Virgínia Matarazzo, e pela Senhora
Condessa Mariângela Matarazzo. Em dezembro do mesmo ano, a Senhora Nicolina
Scuracchio inaugura, em nome de seu esposo – comendador João Batista Scuracchio –
recém-falecido, a capela dedicada a São João Batista.
1946-1954: as capelas dedicadas a Santa Rita, a São Francisco e a Santo Antonio
foram inauguradas em 1946 e 1947, apadrinhadas respectivamente pela Senhora
Condessa Mariângela Matarazzo, pelo senador Andréa Matarazzo, em nome da já
saudosa Senhora Virgínia Geraldi Matarazzo, e pela Senhora Rosina Pozzi. Alguns
anos depois, chegaria a vez da inauguração das capelas dedicadas a Santa Catarina
de Siena, São José e São Carlos Borromeu, apadrinhadas pela Associação Nossa
Senhora da Paz, União Católica Italiana e pelo Doutor Carlos Brunetti.
Estava nascendo juntamente com o edifício da Igreja de Nossa Senhora da Paz, o
maior e melhor conjunto de afrescos jamais produzido no Brasil e, com um bônus
extra, em perfeita harmonia com a arquitetura, uma vez que o próprio projeto
arquitetônico de Pennacchi havia sido aprovado.
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O projeto da Igreja da Paz e dos edifícios anexos dedicados aos serviços sociais
(Jardim da Infância, Escolas para Crianças e Obras Assistenciais para Operários,
Escolas Noturnas para Adultos) foi concebido, em 1939. Pennacchi. modificou muito
o projeto inicial de Pettini conforme pode ser visto pelo anteprojeto publicado na
“Revista Anual do Salão de Maio, número 1, 1939”.
A Cia. Construtora A. Salfati e M. Buchignani se encarregaram da execução da obra.
Algum tempo depois, já com a obra iniciada, Pettini se transferiu para o Rio Grande
do Sul.
Trata-se de uma construção baseada na releitura do estilo românico primitivo, com
cinco grandes arcos na fachada, de uma simplicidade «franciscana». Tem altura de
20 metros, 25 metros de largura e comprimento total de 56 metros. Ocupa área de
1.500 metros quadrados, com capacidade para 3.000 fiéis.
O esguio, simples e elegante campanário, tem 36 metros de altura. Internamente a
igreja tem oito altares laterais, uma capela do SS Sacramento e uma sacristia.
Não se trata propriamente de uma obra grandiosa, monumental. O que impressiona é
o perfeito equilíbrio entre proporção e estilo, fruto de uma arquitetura racional e
sóbria.
Um testemunho muito singular dá idéia de como o projeto foi aceito com reservas
por muitas pessoas ligadas à Congregação:
“Sem dúvida, não poucos hão de achar exageradamente moderno e simples esses
muros, a relembrar uma usina; mas, como a nau que demanda bom porto, não é,
também, a igreja a oficina, a usina de onde sairão moldadas e ajustadas, as almas
em demanda da divindade?”
“... pois essa igreja através da rapidez, da nudez das linhas modernas, relembra o
vigor do bandeirante, a simplicidade de costumes, exigidos pelo vigor da vida
dinâmica de seus descendentes. Trabalho, Sobriedade e Paz!”
“São Paulo, centro cosmopolita e industrial... vanguardeiro na ciência, na labuta e
nas artes, será bem a terra que há de mostrar mais esse templo majestoso e rico,
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que há de perpetuar, na simplicidade austera de suas linhas, a característica viril e
trabalhadora de sua gente... virá enriquecer de modo brilhante o patrimônio
artístico da Paulicéia.”
Ângelo (Agostinho Antonio) Marchetti Zioni, 1939.
A Igreja da Paz é uma igreja cristocêntrica ; a abside, o semicírculo de cerca de 400
metros quadrados onde está instalado o altar-mor, mostra três grandes afrescos; o
Cristo crucificado com 6 metros de altura e duas cenas laterais de caráter mariano,
para que relembrássemos o papel de Maria na redenção do gênero humano.
Os dois afrescos laterais medem 2,80 metros de altura por 12 metros de
comprimento. Os puristas não gostariam de ver a imagem da Virgem, que por si só é
um elemento extralitúrgico, colocada no altar-mor; mas não creio que esta interfere
com a severidade do ambiente ou com o caráter dominante do Cristo, além de ter
características próprias de extrema beleza e diafaneidade que muito bem combinam
com a ondulação musical dos afrescos .
Em 1942, Pennacchi executa o primeiro grupo de afrescos da abside: o grande Cristo
Crucificado central ladeado pelas representações do nascimento da Virgem, e de
Jesus, e decora a parede externa da Sacristia com A Anunciação.
Sabemos que Pennacchi era um apaixonado do «dal vero» e que gostava de revelar
paisagens e cenas vivas bem como estudar modelos; mas, quando se trata de compor
um quadro ou uma cena, o modelo que ele vai procurar é a imagem de sua alma,
cujos sentimentos sinceramente transmite.
Eis um vibrante depoimento da época:
“Estão fazendo uma obra de arte... estão erigindo, com tijolos e boa cerâmica,
uma ilha de amor e de silêncio. Construíram-na sem ruídos, criaturas felizes que
fugiram do século e se refugiaram num sossegado post-medivealismo respirando
uma atmosfera de arte românica.
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As iniciativas monumentais criam um mundo à parte em que se integram homens e
coisas na grandeza de um objetivo. A rígida harmonia geométrica das linhas da
fachada desde logo marcam sua severa originalidade no ambiente.
Entro.
Minha sensação é de êxtase. Estou no mais belo templo de São Paulo. Três
admiráveis artistas, Emendabili, Pennacchi e Pettini realizaram religiosamente sua
obra-prima... eles descobriram que os santos devem ser “humanizados” para
entrarem circulantes e compreensíveis nesta zona aflita e terrestre.
A arquitetura é simplesmente admirável. O templo vive dela, das suas linhas
verticais, de uma sobriedade solene e dos arcos dos seus nichos, do seu material
pobre. Nenhuma Igreja nossa, nesse sentido, é comparável, em graça, beleza,
sensação litúrgica, a essa de Nossa Senhora da Paz.
Agora Pennacchi. Esse afresquista revela-se um artista verdadeiramente notável.
Nos muros desta igreja realiza-se, em sucessivas obras de arte, com um senso de
medida, de cor, de composição que bem demonstra como ele compreendeu que em
tais obras pintura e escultura meros ornamentos concludentes são ancilas humildes
da arquitetura. Não pode haver individualismo nesse todo orgânico
que é uma
catedral. Não há solistas nessa execução sinfônica. O todo, a unidade concepcional,
domina as partes.
O altar-mor com sua admirável decoração no grande nicho central é uma realização
arquitetonicamente magistral...”
(Paulo) Menotti Del Picchia, da Academia Brasileira de Letras.
A decoração interna em afresco da Igreja da Paz causava um frisson entre os jovens
artistas, intelectuais e colecionadores paulistanos. Todos queriam conhecer os
trabalhos de um jovem pintor (Pennacchi tinha 36 anos!) que fazia as “monumentais
decorações” nos muros daquela Igreja.
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Os afrescos monumentais da Igreja de Nossa Senhora da Paz
“... entrando-se pela nave central da Igreja, vê-se logo, nos muros abobadados da
abside, no lado esquerdo, a decoração da cena da Natividade da Virgem.
É um grupo impressionante, não só pela grandiosidade das figuras pintadas, que
medem cada uma, 2,5 metros de altura, mas ainda pelo caráter um tanto
primitivista do desenho... É prodigiosa a imaginação do artista, procurando nas
cores suaves, de tons baixos, na concepção do justo equilíbrio do grupo... ilustrar
com sentimento de elevada ternura, esse faustoso acontecimento bíblico.
No eixo da abside, vê-se um fresco enorme que representa um Cristo crucificado de
6 metros de altura. É um nazareno de fisionomia serena, não torturada... esguia de
composição arcaica... pode ser visto de todas as direções da nave e impressiona não
só pela expressão de suavidade nas nuances do colorido da genial pintura a fresco,
como pela gigantesca estatura do mesmo.
O senso proporcional e do equilíbrio é perfeito em todos os membros da figura....
na capela do SS estão pintados, nos muros laterais, dois grandes frescos que
constituem para mim, a obra mais genial do artista... principalmente o fresco da
esquerda que representa a Ceia de Emaús.
As tintas empregadas são de tons baixos com predominância do ocre... os desenhos
são trabalhados com certa independência e largueza... há neles essa técnica de
liberdade dos primitivistas que tanto nos encanta pela sinceridade de suas
produções.
Conheço Pennacchi quase na intimidade e vi, em seu estúdio, todos os seus
trabalhos antigos e modernos. A série a óleo e a tempera de suas paisagens rurais
apresenta uma delicadeza de tons maravilhosa... nas composições de caráter
religioso Pennacchi é verdadeiramente um mestre, e as gerações futuras terão
sempre de admirar suas obras... é também um ótimo retratista.
O seu auto-retrato e o retrato do pintor Bonadei revelam não só a segurança do
desenho como a técnica vigorosa que imprimem à figura nuances e o espírito da sua
personalidade.”
Doutor Osório César, 1942.
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E as campanhas perduraram2... as doações continuavam a fluir ininterruptamente...
a progressista elite ítalo-paulistana acreditava no projeto e nos executores; e os
fiéis, que se espelhavam no exemplo das lideranças..., não esmoreceram. Por minha
ótica... que vitória para os Missionários Carlistas!
Um pintor novo, uma igreja nova!
“... não é um edifício majestoso, que provoque exclamações retumbantes ...
obedece ao legítimo espírito cristão! Embaixo do monumental Cristo de 6 metros de
altura, em linha horizontal, numa elegante formação arquitetônica, continuam os
afrescos de Fulvio Pennacchi ...
... num ritmo musical, ondulante, as figuras se dividem em dois grupos
harmonicamente equilibrados... as imagens de 2,5 metros de altura aparecem
hieráticas penetradas de límpida espiritualidade... o colorido suave, com a
predominância do branco, contribui para criar uma atmosfera de inexcedível
diafaneidade.
Elogiável é a atitude do Padre Milini, que não receou entregar a um pintor
moderno, profundamente imbuído de espírito religioso, a construção e a pintura do
seu templo, que constitui, realmente, um feito inédito na arquitetura de nossas
igrejas!”
Ciro Mendes, 1943.
Em 1945, Pennacchi termina todos os afrescos das capelas laterais que serão
inauguradas durante os anos seguintes. Ao ritmo musical, ondulante, do altar-mor, é
adicionado o perfeito equilíbrio da composição da capela dedicada a São Francisco,
2
A título de registro, para facilitar a relação e não levando em conta a inflação de 1940-1942,
nem a troca da moeda de mil-réis para cruzeiro feita em outubro de 1942, a obra havia sido
orçada em 1 milhão de cruzeiros em 1940. Ao final de 1943, já haviam sido gastos cerca de
1,21 milhão de cruzeiros, que trazidos, de forma conservadora para valor presente, se
transforma na expressiva soma de 850.000 dólares.
A Organização dos Missionários Carlistas, porém, apresentava naquele ano déficit de
aproximadamente 265.000 cruzeiros (164.000 dólares em valor presente), o que vale dizer que
os gastos de construção da Igreja totalizavam a expressiva quantia de 1.114.000 dólares
aproximadamente. Padre Milini decide, então, que no ano vindouro as obras seriam
paralisadas e todas as contribuições seriam utilizadas para saldar as dívidas.
texto de VALERIO PENNACCHI-PENNACCHI / 2009, DIREITOS RESERVADOS.
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onde se respira uma atmosfera de um ciprestal evocando o pátio umbro posto ao lado
da Igreja.
Dramática e contundente a representação de São Carlos Borromeu que assiste aos
leprosos, onde os enfermos contorcidos em espasmos incontroláveis se dirigem ao
santo fazendo-o depositário do suposto poder de um milagre que os salve.
Outro texto, publicado em 1949, assim se refere à Igreja Nossa Senhora da Paz:
“... quem trabalhou nesta Igreja se reportou ao estilo românico. A difícil tarefa de
Pennacchi foi resolvida, aparentemente, de maneira fácil e espontânea... a técnica
do afresco é uma das mais difíceis e implica em uma excepcional segurança na
composição... as problemáticas da perspectiva e das proporções, as figuras são três
vezes maiores que o tamanho natural foram equacionadas após cuidadoso estudo ...
... quanto ao estilo, Pennacchi é completamente pessoal, mesmo lembrando os
grandes do passado. Quem procurar estudos anatômicos detalhados, ou mesmo
mantos e vestimentas suntuosas, ficará decepcionado porque nessas pinturas não
existe matéria... aqui a arte não está a serviço do figural, mas a serviço da
expressão espiritual.
O tema relativo ao Paraíso e ao Inferno foi resolvido de maneira estática, muito
diferentemente às representações consuetudinárias... é a mais complexa das
composições quer pelo número de elementos, quer pela área que ocupa na parede
em frente do altar-mor.
E quando pensas de ter visto tudo, quando já te faltam palavras para externar tua
admiração, eis que se apresenta, no refeitório da casa paroquial, a obra-prima de
Pennacchi:
A Última Ceia...
um tema intenso e assombroso que faz tremer os pulsos de qualquer artista que
decide enfrentá-lo. Lembramo-nos de Masaccio e da influência que aquele artista
poderia ter tido sobre Pennacchi... . Com esses trabalhos, pode-se definir
Pennacchi como o maior «affreschista» do Brasil; ele, que do afresco soube
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ressuscitar as qualidades, apenas conhecendo-o e sem ter tido, anteriormente, a
oportunidade de executá-lo».
Conde Giuseppe Scapinelli, 1949.
Em 1951, na edição de Atualidades e Comentários da Folha da Manhã, aparece um
depoimento emocionado:
Nossa Senhora da Paz... Os murais da verdade do Senhor
“Repudiados os inúteis ornatos e monumentalidade vazia das formas ... o
tradicional religioso colocado no movimento modernista ... Um templo único no
mundo!
... mas entremos no templo. A primeira impressão é de uma grandeza esmagadora,
pois jamais poderíamos conceber tanta beleza com tanta simplicidade.
Os murais de Fulvio Pennacchi inspirados no florentino da pré-renascença são os da
verdade do Senhor. São cenas impressionantes não somente pela grandiosidade das
figuras mas também pelo caráter primitivo da composição.
... a Igreja da Paz deve ser vista, demoradamente, por todos os católicos e,
principalmente por aqueles que não o são.”
texto de VALERIO PENNACCHI-PENNACCHI / 2009, DIREITOS RESERVADOS.