número 8 mai., 2015 - iiLer - PUC-Rio

Transcrição

número 8 mai., 2015 - iiLer - PUC-Rio
número 8
mai., 2015
ISSN 2179-2801
Corpo editorial
Diretor do Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio
Luiz Antonio Coelho
Editor
Alessandro Rocha — Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura / Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio)
Editores deste número:
Hugo Monteiro Ferreira (UFRPE/FUNDAJ)
Aldo de Lima (UFPE)
Editora assistente
Roberta Calixto — Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura / Pontifícia
Universidade Católica (PUC-Rio)
2
Conselho editorial Brasil
Alberto Cipiniuk — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
André Moura — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Benedito Antunes — Universidade Estadual Paulista (UNESP)
César Pessoa Pimentel — Faculdade de Ciências Médicas e Paramédicas Fluminense (SEFLU)
Daniel Coelho — Universidade Federal do Sergipe (UFS)
Evando B. Nascimento — Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Goiandira O. de Camargo ­— Universidade Federal de Goiás (UFG)
Helena Calone — Secretaria de Cultura do Acre
Leonardo Pinto de Almeida — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Marcelo Santana Ferreira — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Marly Amarilha — Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Patrícia Constâncio — Prefeitura Municipal de Blumenau/AMEL
Patrícia Kátia Costa Pina — Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Paula Glenadel Leal — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Ricardo Salztrager — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Rogério da Silva Lima — Universidade de Brasília (UnB)
Rosana Kohl Bines — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Rui de Oliveira — Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
Santinho Ferreira de Souza — Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Sylvia Maria Trusen — Universidade Federal do Pará (UFPA)
Solimar Patriota Silva — Universidade do Grande Rio (Unigranrio)
Valéria da Silva Medeiros — Universidade Federal do Tocantins (UFT)
Vera Teixeira de Aguiar — Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)
3
Conselho editorial estrangeiro
Cecília Avenatti — Pontifícia Universidade Católica da Argentina (UCA – Buenos Aires)
David Acevedo Santiago — Secretaria de Educación Pública (México)
Ernesto Abad — Universidad de La Laguna (Canarias)
Fernando Avendaño — Universidad Nacional de Rosário (UNR – Rosário)
Jacques Leenhardt — L’École des Hautes Études en Sciences (EHESS – França)
Jorge Larrosa — Universidat de Barcelona (UB – Espanha)
Nicolás Extremeva Tapia — Universidad de Granada (Espanha)
4
Sumário
Editorial
7
Hugo Monteiro Ferreira & Aldo de Lima
Estudo teórico
autoformação no programa biblioteca ambulante e literatura nas escolas (bale) 11
Maria Lúcia Pessoa Sampaio , Maria Gorete Paulo Torres
Míria Helen Ferreira de Souza & Grupo GEPPE/ UERN
Uma proposta de leitura com a poesia de Alice Ruiz
28
Patrícia de Farias Sousa & José Hélder Pinheiro Alves
Eliana Kefalás & Susana Souto Silva
Literatura afro-brasileira: currículo e ensino
53
Rosângela Tenório de Carvalho
O encontro com o mundo da leitura: Graciliano Ramos e as memórias de infância 63
Humberto Miranda
Nelma Menezes Soares de Azevêdo & Hugo Monteiro Ferreira
Aldo Lima
Maria Dolores Coni Campos
Marcas da loucura e da emoção em Diário do hospício
107
Daniele Ribeiro Fortuna, Idemburgo Pereira Frazão Félix, Jacqueline de Cassia
Pinheiro Lima, Marcio Luiz Correa Vilaça & Renato da Silva
Dinamização de acervos: de que acervos falamos...
Maria Helena da Rocha Besnosik
5
118
Resenhas
O direito à Literatura reafirma a importância da ficção
na formação dos indivíduos
129
André de Sena
Relato de experiência profissional
Planos de Livro e Leitura: um breve relato nordestino sobre o projeto
“Mais Livro,Mais Leitura nos Estado e Municípios”
132
Roberto Azoubel da Mota Silveira
Entrevista
Entrevista com Raimundo Carrero
138
Hugo Monteiro Ferreira
6
Editorial
Hugo Monteiro Ferreira1
Aldo de Lima2
Quando recebemos o convite da Cátedra UNESCO de Leitura para que editássemos o presente número
LEITURA em REVISTA, entendemos que o eixo norteador dos textos que o comporiam seria menos a inter-relação temática e mais a possibilidade de reunirmos numa mesma cronotopia diversos pesquisadores
sobre leitura da Região Nordeste do Brasil. Oxalá, tenhamos conseguido. Aos pesquisadores do Nordeste do
Brasil se somam outros do Sudeste e, ainda, uma participação em entrevista de um pesquisador português.
O trato dado à temática leitura pelos pesquisadores, de Pernambuco, Alagoas, da Paraíba e do Rio
Grande do Norte, Bahia, Rio de Janeiro e Portugal, deflagra que suas investigações compreendem
leitura como uma atividade de natureza inter e transdisciplinar, uma vez que os aportes de sustentação dos argumentos centrais apresentados nos textos assentam-se numa visão ontológica, epistemológica e metodológica de filiação com princípios e pressupostos não reducionistas.
Compreender a leitura como uma atividade inter e transdisciplinar não implica a negação de outras
concepções leitoras, porém anuncia que o ato de ler transcende espaços e tempos das áreas, dos
saberes e dos conhecimentos, uma vez que visita e revisita constantemente o subjetivo e o intersubjetivo, o individual e o coletivo.
De algum modo, entendemos que os nove artigos teóricos, o relato de experiência, a resenha e as
duas entrevistas, que constituem esse número de LEITURA EM REVISTA materializam uma conexão
de pensamentos e sentimentos os quais traduzem as reflexões e colaborações que os pesquisadores, escritores e professores articulistas, interessados pela leitura como objeto de estudo acadêmico
e como expressão artística e formação da natureza humana, possuem.
Em seu texto Ler é encantar-se, configurar-se e transformar-se numa ‘terceira história’: a autoformação no programa Biblioteca Ambulante e Literatura nas Escolas (BALE), as pesquisadoras Maria
Lúcia Pessoa Sampaio, Maria Gorete Paulo Torres e Míria Helen Ferreira de Souza, da Universidade
Estadual do Rio Grande do Norte, trazem à tona resultados de investigação que pretende analisar a
inter-relação leitura, encantamento e transformação, com vistas aos estudos relativos à autoformação da condição humana por meio da atividade leitora.
No texto Uma proposta de leitura com a poesia de Alice Ruiz, os pesquisadores Patrícia de Farias
Sousa e José Hélder Pinheiro Alves, da Universidade Federal de Campina Grande, propõe a leitura
de poesia como uma atividade importante na reflexão da mediação de leitura em salas de aula do
ensino médio. Como assinalam os autores, os resultados da pesquisa em questão deflagram a situacionalidade da mediação da leitura quando o objeto mediado é a poesia de natureza feminina.
No artigo Leitura Literária em Movimento: Uma Perspectiva para a Formação do Leitor, as pesquisadoras Eliana Kefalás e Susana Souto Silva, da Universidade Federal de Alagoas, explicam que a
1 Professor do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Professor do Programa de Pós-Graduação
em Educação, Culturas, Identidades (UFRPE/FUNDAJ)
2 Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco.
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experiência da leitura, certamente com repercussões na corporeidade de quem lê e de quem ouve,
é imprevisível, e desdobra-se em muitas situações e muitos acontecimentos. A pesquisa foi realizada
em escolas públicas de Maceió.
No texto Literatura Afro-Brasileira, Currículo e Ensino, a pesquisadora Rosângela Tenório de Carvalho, da Universidade Federal de Pernambuco, problematiza a inter-relação currículo escolar e não
escolar com questões imbrincadas com os discursos de fronteira, para os quais a subjetividade e sua
desconstrução têm relação com o currículo praticado.
No artigo O encontro com o mundo da leitura: Graciliano Ramos e as memórias da infância, o pesquisador Humberto Miranda, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, apresenta-nos a percurso
de formação do exercício da leitura de um dos mais importantes escritores da literatura brasileira.
Em seu texto, Humberto problematiza a experiência da leitura e evidencia a infância como momento
essencial na formação do imaginário humano.
Sob a ótica transdisciplinar: a mediação literária na educação infantil é o artigo que os pesquisadores
Nelma Meneses Soares de Azevedo e Hugo Monteiro Ferreira, da Universidade Federal Rural de Pernambuco e Fundação Joaquim Nabuco, apresentam. No texto, reflexões acerca da mediação da leitura
literária e da discussão em torno de temáticas emergentes para crianças de 0 a 6 anos são tratadas.
Em seu texto Antônio Cândido: a crítica do esclarecimento, Aldo de Lima, da Universidade Federal de
Pernambuco, discute a formação do pensamento crítico de Antônio Cândido e sua repercussão na
crítica literária realizada pelo estudioso. O texto traz uma entrevista inédita com Cândido e possibilita ao leitor acesso a informações relevantes sobre esse intelectual sobremaneira significativo para
os estudos da literatura no Brasil.
No artigo Marcas da loucura e da emoção em Diário do hospício 111, os pesquisadores Daniele
Ribeiro Fortuna, Idemburgo Pereira Frazão Félix, Jacqueline de Cassia Pinheiro Lima, Marcio Luiz
Correa Vilaça & Renato da Silva tratam da visão de Lima Barreto sobre a Loucura e sua relação com
a emoção. A análise que o texto oferece faz transparecer a escrita de si como estratégia para a superação das ambiguidades da existência.
Dinamização de acervos: de que acervos falamos... de Malena Besnosik em um tom de conversa,
busca traçar a constituição de um acervo literário, apontando as possiblidades de dinamização deste
acervo a partir de uma trajetória pessoal. Há uma costura de referências teóricas e da literatura com
as minhas experiências como leitora e como professora, na tentativa de fisgar o leitor, mais especificamente, o professor que está na sala de aula, lidando com a árdua tarefa de formar leitores.
Roberto Azoubel da Mota Silveira, do Ministério da Cultura, apresenta um breve relato de como
o projeto “Mais Livro, Mais Leitura nos Estados e Municípios” percorreu estados e municípios do
Nordeste brasileiro. O texto intitulado Planos de Livro e Leitura: Um breve relato nordestino sobre
o projeto Mais Livro, Mais Leitura nos Estados e Municípios contribui com informações sobre essa
iniciativa pública, com vistas à difusão do livro e da leitura.
O livro O direito à literatura, organizado pelo professor Aldo de Lima, é apresentado, através de resenha crítica, produzida pelo pesquisador André de Sena, da Universidade Federal de Pernambuco.
No texto O direito à Literatura reafirma a importância da ficção na formação dos indivíduos, André
de Sena analisa com acuidade o conteúdo desvelado nos capítulos constitutivos da obra resenhada.
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Na seção Entrevista temos duas contribuições distintas, mas, que percorrem o mesmo caminho
da literatura e suas múltiplas relações possíveis. Na primeira o pesquisador Hugo Monteiro Ferreira entrevista Raimundo Carrero, um dos mais expressivos escritores da literatura brasileira contemporânea. Na entrevista, Carrero discorre sobre sua compreensão em torno da leitura, da criação literária, da condição humana e das esperanças e desilusões que engendram tal condição. Na
segunda os pesquisadores Eliana Yunes e Leonardo Agostini entrevistam o professor José Tolentino
Mendonça da Universidade Católica de Portugal, que falou das relações entre literatura e teologia
ressaltando, sobretudo, a dimensão dos sentidos como possibilidade de percepção da realidade.
Esperamos que os leitores da LEITURA em REVISTA tenham, nesse número, momentos de aprendizagem, assim como nós, na condição de editores, tivemos. Antecipadamente, anunciamos desculpas
por quaisquer falhas e agradecemos a colaboração de nossos queridos colegas pesquisadores dessas terras de sotaque e coração tomados pela alegria da vida.
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ESTUDO TEÓRICO
Ler é encantar-se, configurar-se e transformar-se numa ‘terceira história’: a
autoformação no programa biblioteca ambulante e literatura nas escolas (bale) Maria Lúcia Pessoa Sampaio
Maria Gorete Paulo Torres
Míria Helen Ferreira de Souza
Grupo GEPPE/UERN
RESUMO
Falar de leitura como aspecto fundante na formação humana constitui-se num desafio, dada as inúmeras vertentes teóricas que acercam essa temática. Todavia, pauta-se, aqui, na pluralidade das práticas leitoras que ocorrem no Programa
Biblioteca Ambulante e Literatura nas Escolas (BALE). Baseando-se na leitura como prática social dialógica (mediada
pela palavra) e pedagógica (mediada pelo o outro) pretende-se, com este trabalho, responder a seguinte pergunta:
quais os contributos do Programa para o processo de autoformação e transformação dos leitores/mediadores? Com
isso, objetiva-se analisar o papel do BALE e a sua repercussão, por meio de pesquisa qualitativa (BOGDAN e BIKLEN,
1994), bem como bibliográfica (BEZERRA, 2013; SALDANHA, 2013; QUEIRÓS, 2014). Ancoram-se nas discussões acerca
da autoformação (GALVANI, 2002; JOSSO, 2010; SOUZA, 2014), em consonância com o entendimento do papel do outro
como elemento constitutivo de processo de transformação (BAKHTIN, 1989; FREIRE, 1989). Mediante a análise de corpus constituído por narrativas de experiências de vida (JOSSO, 2010) e através de experiências vivenciadas no Programa,
constata-se que ao encantarem-se, os envolvidos se configuram no autoformar-se, transformando-se em leitores que
passam a contar em suas vidas uma terceira história.
Palavras-chave: BALE; Leitura; Autoformação; Transformação.
ABSTRACT
Speaking of reading as a foundational aspect of human development constitutes a challenge, given the numerous theoretical approaches that deal with this subject matter. However, it is pointed here the plurality of reading practices
that take place in the Walking Library Program and Literature in Schools (BALE). Relying on reading as dialogical social
(mediated by words) and pedagogical (mediated by the other) practice, it is intended in this work to answer the following question: what are the contributions of the Program to the process of self-training and transformation of mediators
and readers? In doing this, the objective is to analyze the role of BALE and its impact by means of qualitative research
(BOGDAN; BIKLEN, 1994), as well as bibliographic one (BEZERRA, 2013; SALDANHA, 2013; QUEIRÓS, 2014). Discussions
of self-training (GALVANI, 2002; JOSSO, 2010; SOUZA, 2014) are supported in connection with the understanding of the
role of the other as a constitutive element of the transformation process (BAKHTIN, 1989; FREIRE, 1989). In the course
of the analysis of corpus consists of narratives of life experiences (JOSSO, 2010) and by experiences in the Program, it
appears that by enchanting themselves those involved are put together in self-training, turning into readers who tell
their lives as a third story.
Keywords: BALE; Reading; self-training; transformation.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
Discutir sobre leitura desperta o interesse de pesquisadores das mais distintas vertentes teóricas, sendo consensual a plurissignificação de seu teor que pode causar prazer/desprazer. Isso porque, a leitura
possibilita ao leitor vivenciar mundos encantados, mágicos, fascinantes, mas também o universo de
desilusões, medos e angústias. É nessa direção, que as experiências vivenciadas pelo BALE, configuram-se como desafiadoras, na medida em que favorecem a autorreflexão sobre esta temática em diferentes espaços (escolares e não escolares), nos quais nem sempre decorrem práticas de leitura prazerosas.
Além do conhecimento empírico das autoras, por meio das andanças feitas com o BALE por todo
o Estado do Rio Grande do Norte, pesquisas como as de Bezerra (2012), Saldanha (2013) e Queirós (2014) vem confirmar dados apresentados acerca do Retrato da leitura no Brasil1, os quais têm
demonstrado que a leitura da forma como vem sendo trabalhada nas escolas desconsidera elementos lúdicos indispensáveis para a formação do gosto literário.
Para entender essa situação, recorre-se ao pensamento de Arendt (2005) que explica o fato de que a
educa­ção contemporânea da forma que vem sendo pensada vivencia uma crise. Pois, sendo esta por
natureza conservadora, já que consiste em transmitir os con­teúdos estabelecidos pela tradição e consagrados pelas gerações anteriores, a autora adverte que a educação ocupa um lugar difícil, instável,
e talvez até mesmo paradoxal, na medida em que assume-se como principal responsável pela capacidade humana de conservar e ao mesmo tempo de lutar para transformar o mundo.
Essa crise tão anunciada e debatida, por vezes, recai no debate do campo literário, dada a ausência
de estratégias que fomentem o gosto pela leitura nos espaços escolares e não escolares. É desta
lacuna que emerge a proposta do BALE de formar leitores, autoformando-se, consequentemente,
transformando-se e reconstruindo suas histórias de vida.
E é neste espaço de contradições que no presente artigo, objetiva-se analisar o papel do BALE e a
sua repercussão no processo de autoformação e transformação dos leitores/mediadores, trazendo
como contributos a discussão acerca da leitura, na medida em que debate e apresenta as ações
do Programa BALE, denominadas por “Canteiros”, os quais são definidos por Jolibert (1994) como
“módulos de aprendizagem”.
O trabalho está estruturado nas seguintes secções: (i) na primeira, ler é encantar-se, trata-se da leitura, envolvendo suas múltiplas plurissignificações no contexto do BALE, considerando-a em relação
ao trabalho com o outro como parte constitutiva do próprio ser; (ii) na segunda, ler é autoformar-se,
aborda-se o protagonismo do BALE, evidenciando os estratégias de trabalho imbricadas aos processos autoformativos; (iii) na terceira, ler é transformar-se, apresenta-se o percurso do BALE desde
sua idealização como Projeto até a sua consolidação como Programa, no qual o outro assume papel
preponderante na constituição leitora; (iv) na quarta, ler é reinventar-se numa terceira história,
discute-se as ações que se projetam em “Canteiros”, pontuando-se o trabalho realizado e possíveis
repercussões na proposta e nos envolvidos. Por último, conclui-se que mediante repercussões na
pluralidade dos resultados do BALE, ratifica-se o seu papel formador e sua atuação como política de
leitura que requer continuidade para que este continue inspirando novas gerações de leitores.
1 Pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro com apoio da ABRELIVROS, CBL e SNEL a terceira edição da pesquisa Retratos da Leitura
no Brasil, lançada em 2012 e disponível em www.prolivro.org.br.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
Ler é encantar-se: a leitura e sua plurissignificação no BALE
Pensar a leitura, no sentido amplo, requer entendê-la como possibilidade de autoconhecimento, por
vezes negada, enquanto direito. O ato de ler, quando favorece o engajamento do leitor, transporta-o
a viagens por meio do imaginário que, para Bachelard (2009), é um “ato sumariamente humano”, no
qual o mundo fantástico de aventuras, desejos, emoções, realizações, amores, paixões e des/ilusões
revela ao leitor inúmeros conhecimentos e aprendizados. Ler é uma forma de interpretar o mundo
que oferece sensações plurais, tornando o sujeito mais conhecedor do universo ao qual pertence,
como assevera Queirós (1999:01):
A leitura guarda espaço para o leitor imaginar sua própria humanidade e apropriar-se de sua fragilidade,
com seus sonhos, seus devaneios e sua experiência. A leitura acorda nos sujeitos dizeres insuspeitados
enquanto redimensiona seus entendimentos.
Dessa assertiva, apreende-se a experiência com a formação de leitores do BALE que se constitui
num desafio possível de compreendê-lo como próprio do humano, tanto para os educadores que
coordenam as ações quanto para a família e comunidade engajadas. O Programa é visto como uma
possibilidade de fazer com que os participantes se encantem pelo prazer de ler, especialmente,
quando a leitura disputa espaços com outros atrativos existentes na sociedade.
Diante da necessidade real de incentivo pelo gosto de ler, precisa-se considerar a formação do
leitor como uma atividade que deve ser assumida por diversas instituições (família, escola, igreja,
dentre outras) e não apenas uma responsabilidade da escola, uma vez que dada a essa entidade
a função de ensinar a ler, a leitura se restringe, na maioria das vezes, aos manuais didáticos, vista
como enfadonha e pouco atraente. Urge uma prática de leitura com engajamento dos envolvidos,
tornando-a parte constitutiva da condição de ser dos sujeitos. Assim, é papel da escola criar possibilidades e/ou condições para que a formação leitora e o gosto pela leitura sejam, na prática,
ações consolidadas.
Para Antunes (2009), as instituições escolares não conseguiram, ainda, realizar com proficiência tal
atribuição, pois o que se vê e ouve com frequência são relatos dos próprios professores sobre as
não leituras de seus estudantes. Ademais, considera-se a grande importância dada ao estudo de
gramática realizado de forma descontextualizada, com o uso dos textos como pretexto para outras
atividades fins, de modo que não se atribui sentido ao lido, tornando a leitura unívoca e não plural.
Tratando-se da leitura literária as ações realizadas no BALE envolvem grande número de leitores, principalmente na fase da infância. Por isso, é preciso entender que se trata de um período em que se vive
experiências as quais, provavelmente, serão levadas pelo resto da existência. Assim, a relação com a
leitura precisa ser saborosa, atrativa e lúdica. E, sendo esse o tempo da curiosidade e da imaginação
aguçada, deve-se investir na leitura por prazer, possibilitando a formação de crianças críticas, capazes
de participar da vida social e, acima de tudo, gostar das “aventuras” proporcionadas pela literatura.
Ao refletir que a escola tende a não fazer do ato de ler um momento prazeroso Kleiman (1995) afirma que isso tem efeito negativo no desenvolvimento do gosto pela leitura nos estudantes. A ação
de ler, na perspectiva de formar leitores apaixonados por essa experiência, remete à fruição e à
descoberta de sentidos diversos. Esse prazer e conhecimento proporcionados pelo ato de ler podem
ser alcançados, por exemplo, com a leitura literária. De acordo com Martins (2006), oportunizar aos
estudantes o contato próximo com esse gênero é contribuir fortemente para a sua formação intelectual e, ao mesmo tempo, oferecer possibilidades de encantar-se.
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A experiência com o BALE tem demonstrado que, quando se trata de leitores iniciantes, o gosto
pela leitura pode ser instigado de várias maneiras, com narrativas e poemas curtos como forma de
aproximá-los do gênero. Para ler, como propõe Jouve (2002), especialmente se for para uma criança,
antes de tudo, precisa-se envolver o leitor que ouve a narrativa e explorar os elementos do conjunto
da obra, não apenas aspectos superficiais e fragmentos do texto, somente assim, é possível promover a interligação entre o possível leitor e a obra.
Esse aspecto foi evidenciado na pesquisa de Queirós (2014) que analisou a atividade que envolve o
reconto de histórias como “ato responsivo”, com dados provenientes de diários de leitura produzidos por crianças atendidas pelo Programa BALE. Nesse trabalho, a pesquisadora identificou a compreensão leitora das crianças, por meio de imagens desenhadas, espontaneamente, em diários de
leitura, bem como o repertório de obras trabalhadas pelo BALE ao longo de suas edições. As crianças
manifestaram na pesquisa as diferenças entre as práticas leitoras da Escola versus as que são trabalhadas no BALE. Para os pesquisados as atividades leitoras, desenvolvidas por parte da escola são
vistas como repetitivas e enfadonhas, contrariamente as do BALE, consideradas pelos mesmos como
envolventes, devido ao engajamento e à participação destes como recontadores.
Ainda a respeito das práticas leitoras os resultados encontrados em Saldanha (2013) e Queirós (2014)
são correspondentes, mesmo tendo sido desenvolvidas com públicos diferenciados, uma vez que a
primeira autora investigou como os estudantes de graduação mediadores de leitura no BALE lidam
com a leitura desde a entrada na graduação, apontando as mudanças decorrentes com o envolvimento no BALE (SALDANHA, 2013); o trabalho da outra pesquisadora (QUEIRÓS, 2014) envolveu as
crianças como leitoras/beneficiadas, observando as contribuições do BALE para a formação desses
leitores. Concorda-se, com Queirós (2014) ao afirmar que na pesquisa desenvolvida por Saldanha
(2013) esta autora:
Ampliou essa característica do BALE, ao encontrar, nas atividades de mediação, um ponto de formação
para ambos os envolvidos: mediadores e leitores – através da interação, em que o leitor apresenta-se
como sujeito ativo e respondente, distanciando-se da velha concepção passiva e individual à qual prevalecia nos modelos de leitura tradicionais (QUEIRÓS, 2013:156).
Como inferiu Queirós (2014) a partir do trabalho de Saldanha (2013, a formação no BALE ocorre duplamente, por isso, tem-se investido na autoformação, demonstrando-se que é por meio de estratégias
adequadas da mediação pedagógica que vai desde a forma de se apresentar o livro aos pequenos até
seduzi-los como leitores. Propicia-se aos leitores evocar s habilidades, ao mesmo tempo em que os
tornam objeto e motivo de aprendizagem, de interação e um meio de enriquecer os conhecimentos
e a criatividade. Morin (2010:48) afirma que livros são “experiências de verdade”, nessa configuração
trazem imbricados em suas palavras silêncios ressonantes repletos de elementos que dão sentido ao
viver. Isso comunga com os postulados de Villardi (1997:10 - 11) quando afirma que a aquisição do
hábito de ler é insuficiente, pois “o hábito, por si só, não chega. Há que se desenvolver o gosto pela
leitura”, pois conforme a autora, somente assim é possível se formar leitores “para toda a vida”.
Na perspectiva de formar leitores permanentes é importante traçar percursos que os enlacem ao
objetivo de encontrar o caminho certo. É fomentar possibilidades para que o aprendiz seja construtor de sua própria trajetória. Por isso, é preciso internalizar o pressuposto de que “a vida está
dentro e fora da escola” (MATÊNCIO, 1994:15), proposta fundante nas ações leitoras projetadas pelo
Programa BALE, quando alia o imaginário à realidade, por meio de contações de histórias, ponte
necessária para que a leitura não se dissocie da vida.
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Esse posicionamento comunga com o pensamento de Freire (1989) quando afirma que “a linguagem e a realidade se prendem dinamicamente”. Esse entrelaçamento atribui vários efeitos de sentidos à leitura, visto que, por meio dela as crianças vivenciam a mesma sensação que o autor viveu
de recriar e reviver instantes significativos “no momento em que ainda não lia a palavra” (FREIRE,
1989:09). Agir na perspectiva freireana é utilizar o aprendizado da leitura para auxiliar na interação
com a realidade, interpretá-la, compreendê-la e transformá-la.
Ler é autoformar-se: o protagonismo do BALE
Assumir a autoformação como uma das estratégias de trabalho tem sido um desafio para os envolvidos com o BALE. Essa ideia de formar, ao mesmo tempo, formando-se tem sido concretizada nas ações
desenvolvidas pelo Programa, assim, a autoformação é concebida como um processo de apropriação
da própria formação, de modo singular e plural. Conforme Josso (2010) é nesse processo que cada indivíduo assume o papel simultâneo de ser sujeito e ao mesmo tempo objeto da sua própria formação.
A autoformação se constitui num processo constante e contínuo (GALVANI, 2002) que, no caso do BALE,
formaliza-se na arte de ler e mediar, a partir das descobertas que o leitor/mediador realiza. O autoformar implica em carregar em si o desejo próprio de crescimento pessoal, no assumir a responsabilidade
pelo processo formativo ao longo da vida e disso dependerão as escolhas e as opções tomadas. Nessa
perspectiva, a literatura se reveste por si só nesse espaço de autoformação, haja vista que, através dela,
o leitor seleciona e se apropria do que lê, posicionando-se frente ao mundo. Por meio desse processo,
o leitor conquista sua autonomia e se torna protagonista de sua formação humana, transformando-a.
A proposta de mediação/incentivo de leitura do Programa BALE tem sido realizada de forma sistematizada e, para tanto, se faz necessário que os envolvidos com as diversas atividades dos “Canteiros”, mesmo os que ainda não se consideram leitores proficientes, tomem para si o compromisso
de se autoformar e formar outrem. Com a intenção de formar o outro, o envolvido com o Programa
autoforma-se, mas, para isso, necessita se apropriar de repertório de leitura, assim entendido por
Lima (2002:76):
O repertório diz respeito a todas as referências textuais que podem ser apresentadas sob a forma de alusões históricas, regras, sociais, menções ao contexto sociocultural da obra, enfim, a todo tipo de realidade
extratextual a todos os sistemas de pensamento que o texto escolheu e incorporou, ao lado das alusões
literárias que constituem a realidade intratextual.
Desse enunciado, compreende-se que a leitura deve ser vista num universo de outras leituras e, assim,
concomitantemente forma-se o leitor, ao mesmo tempo em que o mediador se autoforma e se transforma. Dessa maneira, o formador de leitores toma consciência de si e se torna ele mesmo quando se
revela para o outro, como afirma Bakhtin (2003:341) “através do outro e com o auxílio do outro”.
É nessa perspectiva que a condição de “não leitor” tem sido uma porta aberta para se chegar a autoformação, pois, com a compreensão da importância da leitura na vida do sujeito, as lacunas deixadas pela
escola são possivelmente preenchidas. É no contato com o outro e movido pelo desejo suscitado no
BALE de contribuir com a formação leitora, que oportuniza-se formar leitores enquanto se autoforma.
Em conformidade com Pineau (s/d), a autoformação se configura como um processo rotativo inerente a todas as fases do viver. Esse pressuposto associa-se ás propostas de ação do BALE, uma vez
que é de seu interesse fomentar a revelação do espírito aventureiro da criança que, por ser um
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sujeito de incompletudes, como esboça Freire (1996), busca encontrar-se na realidade e na fantasia.
Investir em leitores aptos a se reconhecerem como tal exige o comprometimento com aspectos que
refletem os sentidos plurais da leitura para a vida. Nesse âmbito, o BALE, imbuído do interesse em
fomentar um processo de autoformação distanciado da fragmentação e da redução da formação
leitora, ampara-se em quatro caminhos denominados por Souza (2014) como princípios autoformativos: a identidade, a autonomia a liberdade e o diálogo.
Souza (2014:174) afirma que compreender a vida é indispensável para a elaboração da identidade,
que nada mais é do que uma “construção livre e autônoma” dos ideais, realizada cotidianamente
pelo sujeito no decurso da vida. Nessa vertente, o BALE, por meio das histórias que conta, induz
a elaboração de um processo identitário contínuo, livre e sensível às transformações. As ações de
fomento à leitura são planejadas a partir da certeza de que o sujeito em formação não deve ser subserviente ao teor das histórias que lê, conta, reconta ou ouve, mas incentivado a descobrir valores
existentes nas entrelinhas e isso culmina na formulação de uma identidade projetada por si e para si.
Ao idealizar a sua identidade, o leitor torna-se proprietário da própria natureza e aprende que o
crescimento acontece nas diferenças, respeitando-se o direito de ser quem é com autonomia. Para
Souza (2014), desenvolver o princípio da autonomia requer induzi-lo a entender o seu papel frente a um mundo repleto de naturezas diferentes. Quando o BALE possibilita a participação de seus
integrantes nas histórias contadas, como protagonistas ou expectadores, está evocando a autonomia como constituinte de suas ações, porque ensina que aprender é descobrir mistérios escondidos em fatos declamados ou criados pela própria imaginação humana de modo processual. Freire
(1996:107) ratifica que “a autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir
a ser. Não ocorre em data marcada”. Nesse sentido, o BALE centra suas atividades em experiências
que estimulam a decisão, a responsabilidade e a liberdade de ser.
Ler é sinônimo de liberdade, cidadania, transformação e contribui para a reconstrução das sabedorias
humanas. Para que isso se torne real, é necessário primar pela liberdade como um princípio autoformativo que exige o esclarecimento de que a formação leitora e a autoformação se revelam ao ajudarem a compreender a ideia e não apenas recebê-la (SOUZA, 2014). No BALE, o princípio da liberdade
é atendido quando a oportunidade de criar e recriar compreensões acerca do teor da leitura se evidencia. Aos leitores em formação é dado o direito de interpretar seus textos da forma como defende
Villardi (1999), imprimindo “a própria marca naquilo que leu”. A experiência de ler com liberdade
relatada nas narrativas de vida de membros do Programa BALE tem sinalizado para o amadurecimento dos leitores que, através da leitura, aprendem a dialogar e a viver por meio de suas escolhas.
No trabalho desenvolvido por Saldanha (2013) acerca da formação leitora e de mediadores de leitura, tendo por base a experiência no Programa BALE, a autora objetivou entender como as ações
do BALE contribuem para a formação de futuros professores-leitores e mediadores de leitura, tendo
como público-alvo os bolsistas e voluntários do Programa, estudantes de Letras e Pedagogia, a pesquisadora concluiu que:
As respostas das participantes indicam que a participação destas no programa BALE contribuiu significativamente para essa formação, pois possibilitou vivenciar práticas diversas de leitura realizadas pelo
programa, contribuindo para a constituição de uma imagem de professor leitor, cujo repertório de leitura
melhora a atuação pessoal e profissional devido à experiência em espaços escolares e não escolares que
ampliam as práticas existentes no contexto formativo de graduandos que não experienciam a realidade
desse programa de formação de leitores (SALDANHA, 2014:08).
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
Esse mesmo pensamento é corroborado por outros estudos, como os de Morin (2010), para o qual a
presença do outro na vida de cada pessoa é imprescindível porque contribui para o aprendizado do
diálogo. Sob o enfoque de Souza (2014), o diálogo é um princípio autoformativo pois, por meio dele, o
leitor sente-se estimulado a socializar narrativas e refletir a compreensão humana sobre as coisas da
vida. Comunicar o aprendido ou não, a incerteza, a crítica, a paixão, a alegria e a desilusão é uma carência inata do ser humano, e na ótica de Freire (1996, p. 136) são “saberes necessários à prática educativa”. O BALE entende que o diálogo é uma forma de intervenção no mundo e, por assim ser, promove
atividades que fazem dele um momento de interação, seja entre sujeito e sujeito, ou sujeito e leitura.
Os princípios autoformativos aqui elencados não ocorrem de forma isolada nas ações do Programa, pois, de acordo com Souza (2014:176) “é no estado de encantamento que o homem sonha e
aprende”. A correspondência existente entre eles congrega a intenção do BALE em contribuir para
a autoformação de leitores/mediadores, que ao fazer o uso da palavra (leitura) como prática social
e dialógica, descobre-se ao longo do processo de autoformação (mediado pelo o outro), que são
capazes de se encantarem e a outros encantar.
Ler é transformar-se: da idealização do Projeto a sua consolidação em Programa
O Programa Biblioteca Ambulante e Literatura nas Escolas – BALE teve seu primeiro ano de funcionamento em 2007. Vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Planejamento do Processo de
Ensino-aprendizagem - GEPPE, constitui-se numa ação de extensão do Departamento de Educação
(DE) em parceria com os Departamento de Letras Vernáculas e Estrangeiras (DLV/DLE) do Campus
Avançado “Prof.ª Maria Elisa de Albuquerque Maia” - CAMEAM, da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN), Brasil. A ideia de sua criação adveio do desejo de duas docentes2 que se inspiraram em experiências do
século passado, desenvolvidas pelo Sistema de Bibliotecas Itinerantes (SBI). Portuguesas, criado pela
Fundação Calouste Gulbenkian (1958) como iniciativa de cunho privado. O sistema seguia a ideia de
Branquinho da Fonseca3 e o serviço fez parte do imaginário de diversas gerações portuguesas, na
medida em que possibilitava a leitura de livros para aqueles que não tinham fácil acesso a estes, ou
promovia a leitura junto às Escolas, principalmente, nas aldeias mais distantes que não dispunham
de bibliotecas, tornando-se, posteriormente, política pública com circulação em todo o país.
A realidade da leitura portuguesa, naquela época, assemelha-se ao vivido na atualidade, especificamente, em algumas regiões brasileiras, dada a ausência de bibliotecas públicas nos mais longínquos
lugares de difícil acesso à leitura. O BALE emerge dessa problemática e segue imbuído desse mesmo
desejo e, para tanto, iniciou-se o processo de levar o livro até as comunidades carentes sem acesso
à leitura. Paulatinamente, foram sendo construídas as estratégias lúdicas, envolvendo a interação,
contação e recontação de histórias, que viessem a despertar o gosto pelo ato de ler a pessoas de
qualquer idade. Mas, para transformar o livro em objeto de desejo para leitores desprovidos de
materiais de leitura e sem a cultura do convívio com práticas letradas, as idealizadoras entendiam
que precisavam criar o “moinho” que soprasse esse objetivo para outros leitores.
2 O BALE foi idealizado pelas professoras doutoras Maria Lúcia Pessoa Sampaio e Renata de Oliveira Mascarenhas, pertencentes na
época ao Deparatamento de Educacao e de Letras, respectivamente.
3 Mais informações acerca da criação e funcionamento da Fundação Calouste Gulbenkian, com sede em Portugal, Inglaterra e França
pode ser encontradas no site: http://www.gulbenkian.pt/Institucional/pt/Homepage
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
Isso porque, como assinala Queirós (1999:01) [...] “ler é cuidar-se, rompendo com as grades do
isolamento. Ler é evadir-se com o outro, sem, contudo, perder-se nas várias faces da palavra. Ler é
encantar-se com as diferenças”. Nessa perspectiva, ler implica em mobilizar-se. Com isso as idealizadoras concorreram e obtiveram sucesso no Edital do Programa do Banco do Nordeste do Brasil
(BNB) de Cultura (2007), propiciando, assim, vários adeptos a colocarem em prática o objetivo do
BALE, diferenciando-se do SBI de apenas levar o livro até o leitor, mas sim “viabilizar o acesso ao
texto literário, assim como, estimular o gosto pela leitura em comunidades desprovidas de entretenimentos culturais e de lazer” (SAMPAIO e MASCARENHAS, 2007). Desde sua criação o BALE tem
como foco a mediação da leitura e a promoção do engajamento do leitor com a obra.
Nessa perspectiva, surge o BALE com ações que favorecem a crianças, jovens e adultos, o contato
com obras literárias em espaços escolares e não escolares de forma lúdica, colorida e divertida. Formatado, inicialmente, como Projeto de Extensão da UERN, mas devido a repercussão de suas ações
em 2012, concretiza-se como Programa ao agregar cinco Projetos/Canteiros. Estando em 2014 em
sua 8ª edição, o BALE, conta com três equipes distintas e rotativas, que atuam com o mesmo objetivo de formar leitores de todas as idades, desenvolvendo ações em escolas públicas, comunidade
e diferentes espaços escolares e não escolares, em cinco municípios do Estado do Rio Grande do
Norte, a saber: Pau dos Ferros, Frutuoso Gomes, Umarizal, Patu e São Miguel. O Programa dispõe da
participação da comunidade acadêmica formada por professores que assumem as funções de Coordenação Geral do Programa, Coordenadoras de Equipe e dos Projetos/Canteiros, além dos bolsistas
(com recursos captados em editais públicos), voluntários e sociedade civil.
Em estudo realizado por Bezerra (2013), que analisou os impactos do BALE, com base nas narrativas de diretoras das escolas pesquisadas, foi demonstrado que o Programa tem causado impacto
educacional na cidade de Pau dos Ferros/RN, majoritariamente, nas quatro escolas atendidas pelo
Programa, no período, pelo fato de que todas obtiveram melhoria no Índice de Desenvolvimento
Educacional (IDEB), no ano de 2012. Conforme a autora:
Sua iniciativa de incentivar a leitura por meio do acesso ao livro e da contação de histórias desperta a atenção dos educadores e dos aprendizes. Com efeito, sua atuação se configura como impacto, levando-se em
consideração a realidade enfrentada pelas escolas atendidas e a ausência de políticas públicas de incentivos
culturais e lazer, tornando as atividades do Programa uma ação inovadora, nunca antes vista. […] No que
se refere aos resultados apontados pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, verificamos, por
meio das contribuições da fala das diretoras, que as atividades realizadas pelo BALE têm contribuído para
o melhor desempenho dos alunos, uma vez que eles despertam o interesse pela leitura nos mais variados
gêneros textuais. Essa prática é preponderante para a aprendizagem, principalmente daqueles oriundos de
bairros carentes, os quais, muitas vezes, são esquecidos pelo poder público (BEZERRA, 2013:127).
Como enfatizado nessa pesquisa, ao longo de suas edições, o BALE mantém cem continuidades a
suas ações o objetivo de viabilizar o acesso à leitura do texto literário, ampliando para outros suportes e gêneros, favorecendo a democratização da leitura e a formação de novos leitores. Ao assumir
a formação de novos leitores por meio do acesso ao material literário, principalmente por atender
ao semiárido do Alto Oeste Potiguar, região de difícil acesso a bens culturais, o BALE não se restringe
mais a esse único objetivo de possibilitar o contato ao livro, pois o que se tem observado é que suas
ações têm desencadeado outras possibilidades de formação, dado o protagonismo da equipe que se
autoforma a partir do Programa.
Isso porque, como afirma Queirós (1999) é lendo que se possibilita ao homem configurar-se e contar uma terceira história, construída mediante parceria, a partir do impulso que move a fragilidade humana, na medida em que este inaugura a apropriação da palavra como parte fundante do
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
homem. São essas histórias que ocorrem no interior do Programa, passando a serem narradas na
próxima sessão que expõe, resumidamente, cada edição.
Ler é configurar-se: edições que fomentam a formação leitora no BALE
A preocupação em possibilitar o contato direto com materiais literários que viessem a fomentar o
gosto pela leitura foi o que impulsionou as professoras idealizadoras a pensarem em algo que atendesse aos anseios das crianças, jovens, adultos e idosos, como público-alvo atendido pelo Programa.
Isso se caracteriza como diferencial nas ações projetadas, uma vez que é papel do Programa despertar em diferentes públicos o desejo da leitura.
O BALE vem sendo revestido do protagonismo juvenil, à medida que aos envolvidos (bolsistas, voluntários e coordenadores) é oportunizado “criar e reinventar cada edição”, constituindo-se os “alfaiates” da tessitura da “colmeia”. E, como afirma Sampaio (2012) em entrevista à Revista INFO EXT:
[...] o BALE se assemelha a uma “colmeia”, na qual o trabalho coletivo é o principal diferencial e que a nossa
equipe é composta por inúmeras “abelhas”, coordenadas por valentes “apicultores”, que juntos vão até as comunidades de leitores em “enxames”, conduzindo “favos de mel”, ou seja, o apiário de livros. Nessa colméia
BALE, acreditamos que podemos nos constituir com e por meio da leitura, numa infinita “fábrica de mel”, que
contribuirá na construção do sonho de um Brasil de leitores. Eis o imenso desafio do Programa BALE!
A “colmeia” tem se tornado gigante, porém insuficiente para a demanda de trabalho em comunidades atendidas, nas quais se incentiva o gosto pela leitura através de contação de histórias, encenações teatrais, brincadeiras, músicas, rodas de leitura, dentre outras ações, de maneira lúdica e
divertida. A cada edição, o BALE apresenta como marca o mesmo objetivo, mas com diferenciações
de estratégias e seleção do gênero literário.
Na 1ª edição (2007), o eixo principal foi a leitura de contos de fadas e sua releitura para o cinema. O
Projeto deu os seus primeiros passos com apenas quatro sujeitos, ou seja, as duas professoras idealizadoras, uma bolsista, financiada pelo Edital do BNB e um motorista da universidade que conduzia
o grupo ao seu primeiro destino: o bairro Riacho do Meio (2007). Com o passar do tempo, foi conquistando investimento por meio de editais públicos, contemplados pela equipe, passando a ganhar
mais adeptos, professores, alunos bolsistas e voluntários, principalmente, dos cursos de Pedagogia
e Letras, além de outros Cursos da Universidade.
Para a 2ª edição (2008), o ponto principal foi o trabalho com os contos modernos, relacionando-os
aos contos de fadas. Por ter sido contemplado com o Prêmio Machado de Assis, passou a ser Ponto
de Leitura, por determinação do Ministério da Cultura. Nessa edição o BALE alçou seu primeiro voo
e visitou Portugal, apresentando em evento seus primeiros resultados.
Na 3ª edição (2009), foi priorizada a leitura com foco no humor. A partir de textos humorísticos selecionados pela equipe, foram construídos personagens que provocavam o riso na plateia. Por meio
da Fundação de Amparo à Pesquisa (FAPERN), o BALE percorreu vários municípios do Alto Oeste
Potiguar, tornando suas ações reconhecidas em toda região.
Na 4ª edição (2010), em continuidade ao sucesso do trabalho com textos de humor, foi privilegiada
a arte circense como estratégia de estímulo a atividade de leitura. Nessas ações havia sempre um
palhaço como animador, nomeado PIRULIBALE, que teve participação especial na edição seguinte,
por meio da premiação Agente Jovem de Cultura, do Ministério da Cultura (MinC), além da inser19
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
ção de contação de histórias nas alturas com o uso de pernas de pau. Neste mesmo ano, o BALE foi
divulgado na França, na Universidade de Paris, por meio da coordenação, que desenvolveu estudos
pós-doutoral, acerca da leitura do texto literário no BALE, em comparação com trabalhos desenvolvidos naquela universidade.
A 5ª edição (2011) trouxe como aspecto inovador a ampliação das atividades do BALE ao público docente por meio de momentos de formação, resultando, daí o subprojeto BALE Capacitação.
Mediante conquista de Edital da Fundação Nacional das Artes (FUNARTE) o BALE visitou a região
sudeste do país com o “Conte de lá que eu conto de cá”4. Nessa mesma edição, a equipe formada
por dez membros, financiada pelo BALE_Capacitação e o BNB participaram do IV Fórum Internacional de Pedagogia – IV FIPED, na Universidade Autonóma do México, no qual foram ministradas
oficinas e apresentação de trabalhos.
A 6ª Edição (2012) foi marcada por duas grandes conquistas: a transformação do Projeto em Programa e a sua expansão para um segundo município do estado potiguar, formando-se assim duas
equipes distintas, que se complementavam. A colmeia “baleana5” invadiu o espaço da tecnologia e
investiu na Rádio BALE e para proclamar mais ainda o sucesso das ações, os seus parceiros podiam
acompanhar os resultados dos trabalhos realizados nas escolas por meio do BALE.Net e do site
www.programabale.com.br.
Ainda nessa edição, as artes circenses foram retomadas com o retorno do Palhaço PIRULIBALE, como
anunciado anteriormente, por meio da “Turnê: Tem história, hoje? Tem sim, Senhor!” financiada
pela captação de recursos externos por parte de uma de suas ex-bolsistas, que na atual edição, tornou-se coordenadora de um dos Canteiros/Projetos. Nesse período, o BALE, passou a desenvolver
um trabalho conjunto e em parceria com o Museu da Cultura Sertaneja (MCS) e com a Brinquedoteca, ambos sediados na Universidade, a partir do “Canteiro” BALE_Ponto de Leitura e o Cine_BALE_
Musical, que têm se configurado como atrativos diferenciados devido ao fato de que é o público que
vai de encontro ao BALE e parceiros. Destacam-se, também, o BALE Formação, que é um momento
de diálogo entre os contadores de histórias e os docentes dos espaços visitados.
Na 7ª edição (2013), com a iniciativa “Ponto BALE – CTI (Ciência, Tecnologia e Inovação): entre canteiros da leitura e produção”, integrado a Educação Básica, por meio da FAPERN e com financiamento advindo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CNPq/CAPES), o trabalho realizado teve como foco
a formação de leitores/escritores do Ensino Médio e da Graduação. Para aprimorar a leitura e escrita
o Programa inseriu alunos em atividades extraescolares como: contação de histórias, montagem de
oficinas, escrita de textos analíticos sobre obras literárias, produzindo juntamente com alunos da
graduação artigos científicos e outras atividades.
Para as atividades desenvolvidas na 7ª edição, foram criados dois grupos (homônimos) fechados
na rede social Facebook, denominados: ESCRITAS DE SI: Entre Canteiros de Leitura e Produção, nos
quais os discentes faziam uso para lerem e escreverem os textos acerca das obras lidas e também
poderem trocar informações sobre o funcionamento do Programa. Atualmente, o Programa vivencia
4 Mais informacões no site da FUNARTE: http://www.funarte.gov.br/artes-integradas/“conte-de-la-que-eu-conto-de-ca”-em-aguasvermelhas-mg/
5 Termo utilizado entre os membros da equipe.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
a 8ª edição (2014) e inaugura a temática “Mediadores de leitura e de textos em processos de autoformação”, tendo como aliados o Programa de Iniciação à Docência (PIBID) financiado pela CAPES,
que ao BALE se vincula por meio do Canteiro Formação.
Nessa edição, o Programa foi ampliado com mais uma equipe que atua no município de São Miguel,
visitando mais longe, o continente africano para apresentar os seus resultados e ministrar oficinas
para professores de Angola/África. Atraídos pela paixão de voar juntos, como fazem as abelhas, de
compilar adeptos o BALE, pode ser representado, em número de atendimentos desde a sua idealização até a edição em andamento, como demonstrado no seguinte gráfico:
Gráfico 01: O BALE em números de atendimentos
Os números apresentados no gráfico comprovam os registros coletados pela equipe já ultrapassam
vinte mil atendimentos até a edição em curso. É dando continuidade a essas atividades e nesse
universo lúdico de histórias encantadas, com personagens mágicos, interessantes e divertidos que
saem de dentro dos livros através de fantasias, figurinos e adereços, que, aos poucos, o BALE segue
produzindo e espalhando o mel cultivado com muito compromisso e criatividade.
Ler é reinventar-se numa terceira história: ações que se projetam em “Canteiros”
Com o intuito de formar leitores, o BALE além do incentivo ao gosto pela leitura, considera os mais
diferentes modos de ler os diversificados textos que circulam socialmente (verbais e não verbais),
por meio de cinco Ações/Projetos, as quais se denominam “Canteiros”, que se caracterizam como
ações que se encontram sempre em movimento, reinvenção e transformação, a saber:
Canteiro Formação ou Projeto BALE_Formação: através desse trabalho é realizado estudos sobre as práticas de leitura, produção de textos, objetivando a autoformação de
todos envolvidos com o objetivo do Programa. Visando a formar leitores proficientes,
essa ação possibilita aos participantes vivenciarem estratégias lúdicas, motivando-os a
compilarem multiplicadores e encorajando-os a recriarem novas experiências exitosas
de leitura e de escrita. Essa proposta de formação propicia o engajamento das equipes
do Programa, mesmo aqueles que ainda não se considerem leitores proficientes, tomam
para si o compromisso de formar o outro, e assumem a necessidade de formar-se.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
Assim, passam a fazer uso do texto (seja este literário ou não), com a intenção de instigar o gosto
pela leitura no sujeito próximo, deste decorrendo a sua própria formação leitora, como expresso por
uma das voluntárias da equipe, em sua narrativa:
Episódio 1:
O BALE foi um grande mediador em minha vida e a partir dele é que vieram as mudanças que não foram
poucas [...]e devo principalmente ao BALE que me proporcionou tantas mudanças. Embora, ainda me
considere que estou em processo de construção, porque as transformações vêm lentamente, mas eu
estou assim, posso dizer uma leitora. Foram tantas mudanças que até mesmo eu me pergunto se sou eu
mesma hoje, antes uma pessoa que não via sentido na vida e hoje só tenho vontade de querer vencer [...].
Foi a partir de então com muita persistência de Lúcia que comecei a pegar em um livro, coisa essa que eu
não gostava e nem tinha paciência (Macabéa, voluntária desde 2011).
A narrativa destacada evidencia a possibilidade de transformação da história de vida de um dos
sujeitos, proporcionada pela sua participação efetiva no Programa. Esse reconhecimento fica claro
na medida em que relata a sua vivência decorrente do seu contato com as ações do BALE, nesse
processo de construção humana, que ultrapassa a formação leitora, uma vez que as mudanças mencionadas no relato evocam o desejo da narradora de vencer ou atingir o êxito profissional, como
discutido por Galvani (2002). É enfático que a participação do outro para a formação leitora desse
sujeito foi aspecto primordial, visto que a voluntária assegura a que a persistência de outro sujeito
para que a mesma lesse, contribuiu para um processo autoformativo pautado no princípio do diálogo, como discutido por Souza (2014). De igual importância o Programa conta com uma segunda
equipe, conforme descrita a seguir:
Canteiro Contação ou Projeto BALE_Ponto de Leitura: essa ação objetiva estabelecer o
contato direto entre obra e leitor, através da exposição do acervo e da organização de
rodas de leitura semanais em espaços escolares e não escolares. Por meio dessa ação o
acervo do BALE foi automatizado, com o cadastramento de todas as obras disponíveis
(em média cinco mil títulos) no sistema BIBLIVRE. 3.0, software livre licenciado pelo Banco Itaú e apoiado pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN).
Vinculado a essa ação, vem-se desenvolvendo um trabalho diferenciado, envolvendo crianças, por
meio de uma atividade experimental para uma das escolas beneficiadas com o Programa. Trata-se
do Projeto “Mirins Leitores grandes mediadores”, desenvolvido desde 2012, no qual as crianças
contam histórias para outras crianças em rodas de leitura na Biblioteca da Escola, mediados pela
Bibliotecária, que os auxilia na formação de repertório. Essa iniciativa conta com a participação de
leitores mirins do BALE que desenvolvem o trabalho de incentivo com as crianças e os resultados
têm transformado as práticas leitoras da escola atendida.
Outra atividade desenvolvida por esse Canteiro é a promoção do Encontro entre Leitores e Escritores/Autores do BALE, ocorrido em duas edições, vista como uma estratégia desenvolvida para atrair
o leitor para a obra. Este canteiro utiliza estratégias de ação que envolvem o manuseio do livro como
objeto de desejo e a mediação de leitura, a recontação de histórias, possibilitando o contato com a
diversidade de linguagens e a apropriação de repertório de leitura por parte dos envolvidos, como
sugere um dos voluntários:
Episódio 2:
Para instigar o gosto da leitura no outro precisamos conhecer as obras, gostar das obras, para assim, poder
mostrar aos sujeitos o quanto o texto literário pode contribuir com a vida, com a formação, com a intelectualidade (Chaplin, voluntário desde 2011).
Episódio 2:
A cada atividade realizada, a cada texto lido, encenado, a cada poema recitado, sempre ficava a sensação
de que mais ainda poderíamos fazer (Clara, Coordenadora desde 2011).
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O primeiro relato apresentado remete a necessidade de se compreender que a ampliação do repertório
de leitura é indispensável para a formação leitora, como mencionado pelo voluntário que demonstra
ter clareza de que a formação do gosto deve advir do mediador, para a partir deste disseminá-lo para o
público-alvo. No segundo relato, evidencia-se que essa formação leitora nunca se esgota, o leitor está
sempre em contínua formação, de modo que no desejo de formar o outro, também, autoforma-se.
A cada momento vivenciado na contação e recontação, percebe-se o brilho nos olhos não só das
crianças, mas de todos que acompanham o Programa, nesse desejo de despertar no leitor o interesse pelo livro, que pode ser atraído por meio de outros suportes como o cinema, o teatro, a música.
Isso se concretiza na hora do reconto, momento em que se convida um dos presentes para recontar
a história lida/ouvida.
A magia desse momento é intensa, pois em muitos casos além de recontarem a história, o participante altera elementos, demonstrando que o texto só tem vida se lido, “vivenciado”, sentido, de
modo que o livro fechado é algo morto, estático, sem nenhuma função, e só ganha vida através do
ato da leitura, do mediador, já que é nesse momento que o leitor mantém uma relação bastante
próxima com o texto, tendo a possibilidade de reinventá-lo. É fascinante ver a ousadia se sobrepor
a timidez de muitos envolvidos, quando instigados pelos mediadores os recontadores das histórias,
sejam crianças, jovens ou adultos são levados a reviver aspectos por vezes, nunca antes percebidos
pelos leitores mais maduros. No limiar dessa trajetória, os partícipes do BALE acentuam seu desenvolvimento cognitivo pautados na liberdade de escolher o que ler, e fazê-lo de modo autônomo. É
ainda na próxima ação que muitos ousam e se arriscam na reinvenção, como descrito a seguir:
Canteiro Encenação ou Projeto BALE em Cena: é por meio deste Canteiro que são organizadas apresentações teatrais (teatro de fantoches e dramatizações), pernas de pau e
inserção de palhaços que as histórias contadas ganham vida e estes medeiam as atividades que envolvem obras literárias para o público, bem como os saraus que têm sido realizados. Essa ação objetiva formar leitores e produtores de textos, através de atividades
lúdicas e, para tanto, os envolvidos encenam textos literários na tentativa de contribuir
com a formação do outro e acaba se formando, como mencionado na narrativa abaixo:
Episodio 4:
Passaram-se os dias e tivemos uma outra apresentação em Uiraúna/PB, então eu não esperava, mas foi
o pior de tudo, porque na hora da apresentação eu me escondi no meio da multidão para não aparecer
[...]. A partir daí só vieram boas mudanças. Foi no BALE onde perdi minha timidez e conheci muita gente.
Aprendi a me valorizar (Macabéa, voluntária desde 2011).
A situação relatada por Macabéa é apenas um exemplo que ilustra as mudanças que ocorrem com
a maioria dos membros das equipes, que com o BALE conseguem vencer as barreiras pessoais de
timidez, dificuldade de lidar com o público, que mediante a necessidade de trabalhar as ações vão
sendo superadas, naturalmente. O colorido das vestimentas, as músicas, as motivações a cada história lida/contada, proporcionam aos participantes muitas emoções, diversões e, acima de tudo, tenta
disseminar a ideia de que ler, também, pode ser algo divertido e prazeroso. Macabéa é o retrato do
humano que está a se constituir paulatinamente, a se constituir e a compor, entre a imaginação e a
realidade evocadas na literatura, a sua identidade. Sedenta de vontades inúmeras, apoia-se em seus
conflitos, no outro, no livro e nas histórias contadas para viver um processo autoformativo que lhe
assegure a condição de pertencimento que todo sujeito almeja encontrar. A próxima ação objetiva
envolver filmes e músicas, tendo como alcance a aproximação dos leitores dos mais diversos gêneros e suportes textuais, como descrito a seguir:
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Canteiro Ficção ou Projeto Cine_BALE_musical: neste canteiro, evidencia-se que as
adaptações de livros devem ser entendidas como outra leitura ou até mesmo a releitura de obras (em oposição à reprodução), tendo como base a linguagem do cinema,
associando-as à possibilidade de leitura e de produção textual.
Possibilita-se, neste Canteiro o ler por entretenimento, aos fundirem-se as três artes, a literária, musical
e a cinematográfica, as quais urgem incentivá-las, principalmente, em regiões como a que o BALE atua,
ausentes de salas de cinema, consequentemente, da influência cultural que leve o leitor a exercitar
o verbal com o visual, complementados pela música, que fazem do cinema uma linguagem singular/
plural, exigindo que a narrativa literária assuma recursos diferenciados para atrair a atenção do leitor.
Assim, o Canteiro Ficção seleciona filmes baseados em obras literárias adaptadas e trabalhadas nos
demais “Canteiros”. Após exibição de cada filme, tem-se um comentarista que propicia o debate e aproxima os leitores do livro, mediante uma das artes que o leitor é familiarizado, em virtude da televisão.
Episódio 5:
Além dos filmes nos divertir temos a possibilidade de reconhecer aspectos já existentes nas obras lidas,
sem falar que em alguns casos percebemos que o filme traz informações não contidas nos livros (Viviane,
voluntária do Ensino Médio, desde 2013).
A narrativa destacada acima reafirma a importância do “Canteiro” e revela a compreensão que a leitura do cinema não substitui a leitura da obra, mas que pode levar o leitor, através do divertimento
proporcionado pela obra cinematográfica, a buscar contato com a obra escrita, midiática, via ferramentas digitais, tema da próxima ação:
Canteiro Informação ou Projeto BALE.Net: objetiva divulgar as informações de cada atividade, antes, durante e após cada ação desenvolvida, através de release e imagens postadas no blog, web e redes sociais. Possibilita, também, o acesso a textos, disponibilizando obras a serem lidas e trabalhadas com a equipe e o público. Com isso, a comunidade,
em geral, toma conhecimento da relevância de se formar leitores que encontrem nos
mais diferentes textos o gosto e o prazer.
Com essa ação, a repercussão do Programa tem crescido, desde a implantação da proposta de um
blog, posteriormente, transformado no site que divulga todas as atividades. Utilizam-se as redes
sociais, por meio dos grupos criados no facebook, whatsApp, de modo que a comunicação flui entre
membros das equipes, além de circular as informações do BALE sobre atividades realizadas, mediante postagens de fotos, vídeos, etc. como anunciado no próximo episódio:
Episodio 06:
Os grupos criados no facebook são muito importantes porque através deles ficamos informados de tudo
que acontece no BALE. Também postamos nossos textos e lemos as obras disponibilizadas (Paulo, voluntário do Ensino Médio, desde 2013).
A narrativa do voluntário, em destaque, revela a contribuição dessas ferramentas digitais utilizadas
pelo BALE na formação dos envolvidos e de outros. Assim, esse canteiro cumpre o seu papel de
difusor de incentivo à leitura na medida em que incide a repercussão local, regional e até mesmo
internacionalmente, em função dessa visibilidade via web. Conclusão
As experiências até então vivenciadas pelas equipes do BALE têm evidenciado cada vez mais que o
incentivo ao gosto pela leitura pode ser uma atividade prazerosa, tão quanto o próprio ato de ler,
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pois não só estão contribuindo para a formação leitora e intelectual do sujeito, mas contribuindo
para a efetivação de uma sociedade que enxerga no livro suas histórias de vida e, consequentemente, aprender a ser e a conviver harmonicamente em seus espaços naturais.
Dentre os resultados alcançados com o BALE têm-se como principal ganho que a cada edição, o
Programa tem crescido e ampliado as equipes e os atendimentos, de forma quantitativa e qualitativamente. Soma-se a esse fator, o alcance de vários prêmios nacionais, como o Viva Leitura, do BNB
de cultura, por quatro vezes consecutivas, da Fundação Biblioteca Nacional, Fundação Nacional das
Artes, dentre muitas outras premiações conquistadas pelo Programa.
Com isso, a visibilidade do BALE pode ser atribuída pelo fato das equipes virem recebendo convites
para realizar palestras, bem como outras ações de incentivo à leitura em vários espaços escolares e
não escolares, o que tem possibilitado, ainda, o exercício de um trabalho contínuo de estágio para
estudantes, pesquisas sobre acesso ao livro, o funcionamento das bibliotecas escolares, as práticas
de leitura, dentre outras temáticas, realidade que se efetiva não somente nas escolas assistidas, mas
parece que, de grande parte dos alunos da cidade e do Estado.
Em resposta a pergunta formulada que remonta aos contributos do Programa para o processo de
autoformação e transformação dos leitores/mediadores, pode-se afirmar que, conforme mencionado nas narrativas, o BALE vem conseguindo envolver pessoas que afirmavam não gostar de ler, e
quando, por vezes, liam, não tinham muitas expectativas sobre o lido, assim, a leitura passava muitas vezes despercebida, sem muito sentido, cansativa e sem despertar interesse algum.
Essa realidade, a exemplo dos relatos aqui expressos, aos poucos vem mudando a história de vida
de muitos leitores/mediadores, principalmente, daqueles que não gostavam de ler. Até mesmo os
que não liam começam a perceber o encantamento, consequentemente, a transformação, isso porque as práticas leitoras passam a fazer parte, naturalmente do cotidiano dos leitores/mediadores,
devido as demandas do Programa e as estratégias adotadas, assim cada um vai aprendendo e descobrindo, com autonomia, seus interesses, desejos e descobertas. Isso é o principal contributo do
BALE ao criar possibilidades e expectativas positivas sobre o ato de ler.
Apesar do tanto que se fala e se produz sobre leitura, na prática, ainda, há muito a fazer, para valer
a ideia de que ler se constitui um direito de todo e qualquer cidadão. Portanto, compreende-se que
não se pode parar, pois o desejo de ver cada vez mais, sujeitos ávidos por leitura e expectativas
expressas nos rostos de quem divide sua capacidade de encantar-se com um texto, inspirar-se com a
cada prática e reinventar-se sempre para seguir em frente em cada atuação do BALE é prerrogativa
essencial aos que almejam formarem-se, autoformando-se.
Para viver bem na sociedade atual todo sujeito necessita usufruir da liberdade de ser, do diálogo que
promove o encontro do homem consigo e com o outro, da autonomia que sugere o direito de escolha e do entendimento de que o “eu” é uma construção identitária que se tece a partir das relações
com o meio. As pesquisas e experiências vividas com e pelo Programa retratam que o sujeito que se
forma constantemente, necessita da linguagem literária para se autoformar. Isso se confirma na fala
de Morin (2010) quando conclama que literatura é escola de vida.
Para o BALE, formar leitores é apontar o caminho que leva as descobertas do próprio processo autoformativo. As ações de seus “canteiros” ampliam o sentido das coisas e criam sabedorias fundadas
nos princípios de que lendo, contando ou ouvindo as histórias, todos compreendem o inaudito, o
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indizível e o invisível residentes nas entrelinhas das tramas literárias. Portanto, a lucidez de que o
Programa têm fissuras é consensual, porém, as que ficam pelo meio do caminho somente indicam
que o sujeito que se autoforma, por meio do que lê, cresce em sua identidade humana, com autonomia e liberdade, na base do diálogo, enquanto princípios autoformativos defendidos no Programa.
Do que se conclui, a leitura proporciona o encantar-se que transforma.
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Uma proposta de leitura com a poesia de Alice Ruiz
Patrícia de Farias Sousa1
José Hélder Pinheiro Alves2
Resumo
Neste trabalho relata-se uma experiência de leitura com a poesia de Alice Ruiz, tendo como sujeitos colaboradores professoras de Literatura e estudantes do primeiro ano do ensino médio de uma escola pública da rede estadual da Paraíba.
A presente pesquisa objetivou contribuir na formação dos professores no âmbito do trabalho escolar com a poesia de
autoria feminina. Os resultados apontam para uma necessidade de formação literária e metodológica do professor no
trabalho com o ensino de poesia. A experiência com os poemas de Alice Ruiz em sala de aula revelou a postura metodológica das professoras colaboradoras que, partindo de uma vivência de formação, conseguiram realizar atividades de
leituras significativas, privilegiando o diálogo texto-leitor.
Palavras-chave: Ensino de Poesia; Formação de Professores; Poesia de Alice Ruiz.
Abstract
This paper reports a reading experience with Alice Ruiz’s poetry, having as subject teachers of Literature and students of
the first year of high school in a public state school of Paraíba. This research aimed to contribute to the training of
teachers within the school work with the poetry of female authorship. The results point to a need for literary and methodological training of teachers working with the teaching of poetry. The experience with the poems of Alice Ruiz in
the classroom revealed the methodological approach of collaborating teachers who, from an experience of training, could perform readings of significant activities, favoring the dialogue between text and reader.
Keywords: The teaching of Poetry; Teacher Education; Alice Ruiz’s Poetry
1 Mestra em Linguagem e Ensino pela UFCG e professora da Educação Básica da rede estadual da Paraíba.
Contato: [email protected]
2 Pós-Doutor em Literatura Brasileira pela UFMG, professor de Literatura Brasileira e Literatura Infantil da UFCG, onde orienta pesquisas na área de Ensino de Literatura na Pós-Graduação em Linguagem e Ensino. Contato: [email protected]
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A poesia é considerada, na maioria das pesquisas, como o gênero literário menos lido por estudantes e professores (as)3. O acesso ao gênero lírico se dá, quase sempre, através dos livros didáticos
que utilizam a poesia de um modo bastante pragmático. Por outro lado, pesquisas realizadas em sala
de aula revelam que crianças e jovens, quando colocados diante da poesia de modo mais livre, em
que podem pronunciar-se, revelar seus sentimentos, suas intuições, o gosto pela poesia assume uns
valores antes inimagináveis. Assim sendo, concorda-se com Bosi (1996) quando afirma que um bom
leitor de poesia não nasce pronto, feito, mas se forma.
A teoria da Recepção é uma das correntes da crítica literária que tem embasado inúmeras pesquisas
que se voltam para a formação do leitor de literatura. Esta teoria assegura que o texto só existe a partir da atuação do leitor, daí resulta a soberania do leitor na recepção crítica da obra de arte literária.
Com a mudança do foco de investigação para a recepção, o fato literário passa a ser descrito a partir
da história das sucessivas leituras por que passam as obras, as quais se realizam de um modo diferenciado através dos tempos. Trazida para sala de aula, esta concepção coloca em foco não o ensino de
um saber (historiográfico, estilístico), mas a possibilidade do confronto do leitor com o texto. Neste
sentido, pode-se aplicar ao ensino a importante reflexão de Jauss quando afirma a literatura (o texto
literário) “[...] é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura,
liberando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual” (JAUSS, 1994:25).
Outra questão que merece ser tratada diz respeito à poesia de voz feminina, a qual se faz presente
de forma muito tímida no cotidiano escolar. Dentre os escritores que são abordados nos livros didáticos, pouquíssimos são autoras, o que revela uma predominância da voz lírica masculina no âmbito
do ensino da Literatura. A presença no cânone brasileiro tem sido historicamente desfavorável às
mulheres escritoras; por outro lado, no final do século XX a poesia de expressão feminina aparece
no cenário literário com força quantitativa e qualitativa. São representantes dessa produção poética
Cecília Meireles, Cláudia Lidroneta, Gilka Machado, Henriquieta Lisboa, Cora Coralina, Adélia Prado,
Hilda Hilst, Alice Ruiz, Lenilde Freitas, Maria Lúcia Dal Farra, Zila Mamede dentre tantas outras.
Em virtude desta realidade, o presente artigo retoma uma pesquisa4 que teve como proposta realizar um experimento de convivência com a poesia de autoria feminina. Os sujeitos da pesquisa foram
professoras de Literatura e alunos de duas turmas do primeiro ano do ensino médio de uma escola
pública da rede estadual da Paraíba. As questões que nortearam esta pesquisa foram: a experiência
com a poesia repercute na formação de professores de Literatura da educação básica? Que aspectos
da metodologia de trabalho com o texto literário são importantes para promover a leitura da poesia? Como ocorre a recepção da poesia de autoria feminina por alunos do ensino médio?
Para os limites deste artigo, propõe-se relatar uma reflexão sobre a experiência de leitura com a poesia de Alice Ruiz, que foi planejada a partir de encontros de formação5 com as professoras colaboradoras. Serão apresentadas as vivências em sala de aula, as leituras feitas pelos alunos, as discussões,
3 Diversas pesquisas realizadas no POSLE-UFCG revelam essa defasagem na leitura de poesia. Alguns dados podem ser encontrados
nas seguintes dissertações de SOUSA (2013:47) e (MARTINS, 2010).
4 Dados dessa pesquisa são recolhidos da Dissertação intitulada Poesia, Ensino e Formação de Professores: vivência com Vozes da
Lírica Feminina (2013), a qual está disponível no site do Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da UFCG.
5 Os encontros de leitura realizados com as professoras colaboradoras foram de duas horas aulas cada e teve como propósito trabalhar a leitura de poesia de voz feminina, bem como discutir textos de metodologias de ensino de Literatura.
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as atividades propostas, os momentos de interação entre os alunos e os poemas de Alice Ruiz. E
ainda descrever sobre a maneira como as aulas foram conduzidas, se privilegiou uma metodologia
de víeis dialógica, dentre outras questões.
Professor leitor e sua formação literária
A leitura é um elemento fundamental no desenvolvimento da identidade de um professor e constitui
num exercício determinante para o sucesso da prática docente. Isso porque um dos compromissos,
em meio escolar, é o de levar o aluno ao aprendizado da leitura, atuar na formação educacional das
novas gerações. Dessa forma, professor-leitor, leitura, conduta profissional são termos indissociáveis
em contexto de ensino.
Entretanto, em nosso país, a formação de professores no que tange à questão da leitura e, particularmente, da leitura literária revelam fragilidade. De acordo com Silva (2009), o descrédito das
condições de trabalho, o incompatível salário e as políticas educacionais fazem com que os sujeitos
do ensino, sobretudo aqueles voltados para o ensino de literatura, exerçam esse ofício sem serem
leitores e nas palavras do autor “pseudoleitores”.
Segundo o referido autor:
Os resultados desse quadro lamentável e vergonhoso todos sabem: dependência de livros didáticos e
outras receitas prontas, desatualização, redundância dos programas de ensino, homogeneização das condutas didáticas, repertório restrito, ausência de habilidades e competências de leitura, estagnação intelectual, etc (SILVA, 2009:23).
No que diz respeito ao professor enquanto leitor de poesia faz-se necessário o seguinte questionamento “Como se constituí leitor de poesia?”. Esta pergunta segundo Pinheiro (2010) deve ser feita
sempre que se cogitem ações que almejem a formação de leitores. Para o autor:
Um olhar memorialístico reflexivo poderá nos ajudar na hora de sugerir atividades, de formular projetos,
de enfrentar, cotidianamente, o duro trabalho de formação de leitores. Não se tratar de eleger modelos,
mas de buscar nuanças que nos escapam e que podem ser úteis no trabalho de formação de novos leitores
(PINHEIRO, 2010:131).
Essa preocupação com a formação dos professores através da atenção à própria experiência de leitura é uma mudança particularmente significativa. Assim sendo, é preciso olhar sua rica e expressiva
tradição, porém, muitas vezes, esquecem a sua própria vivência com a poesia e a vivência que seus
alunos possam ter (parlendas, cantigas de ninar, brincos, adivinhas, folhetos de cordel, histórias em
quadrinho e etc.). Dessa maneira, somente um professor-leitor, entusiasmado e convicto pode assumir o grande desafio de formar outros leitores críticos e sensíveis. O professor enquanto leitor de
poesia apresenta textos poéticos nas suas leituras, porém se deve estar cientes de que são leitores
literários continuamente em formação.
Michèle Petit (2008) discute a importância das ações de mediações de sujeitos que aproximam o
leitor dos textos, contagiando as outras pessoas com a paixão pela leitura. Para ela, esse mediador pode ser um professor, um bibliotecário, às vezes, um livreiro, um assistente social, um amigo,
enfim, alguém com quem se depara, alguém que se propõe a construir a todo o momento pontes
entre leitor e textos. Tendo em vista que a leitura em suportes virtuais vem sendo muito utilizada
nos dias de hoje, o professor também deve estar preparado para mais esse desafio. Indagada acerca
da tendência de que o livro impresso desapareça em virtude dos avanços das novas mídias, Eliana
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Yunes (2008) assegura em entrevista: “Não é para temer novas modalidades de comunicação. O que
interessa é narrativa, a literatura, o texto, esteja onde estiver, pois é o pensamento e o sentido, a
linguagem, que nos faz humanos”.
Poesia e Ensino
As reflexões que articulam poesia e ensino são poucas e, de um modo mais geral, ainda não conseguiriam imprimir mudanças significativas em contexto escolar. Segundo Aguiar (2008, p. 18), “Ler
ficção e poesia, por conseguinte, não é entrar num mundo mágico, irreal e alienado, mas captar a
realidade mais intangível, aquela sedimentada no imaginário a partir das ingerências do cotidiano
da história individual e social”. Nesse sentido, a experiência com a poesia pode contribuir de forma
satisfatória para o desenvolvimento da imaginação, da sensibilidade, da criatividade e das potencialidades linguísticas do aluno. Assim sendo, é de extrema importância uma prática de leitura significativa com a poesia para o educando.
Entretanto, quando se discute assuntos relativos à poesia e ensino, surgem questionamentos do
tipo: se ela é tão fundamental, por que a escola continua usando-a de maneira inadequada? Quando
a poesia se faz presente na escola é cercada pelo seguimento de metodologias que, muitas vezes,
têm como causa o despreparo de professores e, por conseguinte, o trabalho inadequado com o texto poético acaba por distanciar ainda mais os alunos desta vivência poética ao invés de aproximá-los.
De acordo com Martins (2006), é importante a desenvoltura do professor para transformar o livro
didático em aliado na motivação dos discentes em sala de aula e não somente como único recurso que,
trabalhado à exaustão, pode tornar as aulas cansativas. Dessa maneira, é necessário diversificar as atividades e os recursos didáticos utilizados, para envolver o aluno no âmbito dos estudos literários. Com a finalidade de proporcionar uma vivência com a poesia, as atividades escolares que propõem
sua exploração devem oferecer um ambiente favorável para a leitura poética, possibilitando ao aluno sentir e experenciar seus efeitos estéticos, como o ludismo sonoro, as imagens simbólicas, a
riqueza da linguagem figurada, dentre outros, através de uma relação ativa e constante com o poema. Faz-se necessário também refletir sobre a função social da poesia que segundo Eliot (1991 apud
PINHEIRO, 2007:22):
Para além de qualquer intenção específica que a poesia possa ter, (...) há sempre comunicação de alguma
nova experiência, ou uma nova compreensão do familiar, ou a expressão de algo que experimentamos e
para o que não temos palavras – o que amplia nossa consciência ou apura nossa sensibilidade.
A experiência que o poeta nos comunica, dependendo do modo como é transmitida ou estudada,
pode possibilitar (ou não) uma assimilação significativa pelo leitor. Convém destacar que muitos
pesquisadores vêm apresentando propostas dinamizadoras voltadas para a leitura do texto literário.
Uma delas é a de Colomer (2007) que apresenta uma proposta baseada no diálogo. Trata-se, segundo a autora da “Leitura Compartilhada”.
Compartilhar as obras com outras pessoas é importante porque torna possível beneficiar-se da competência dos outros para construir o sentido e obter o prazer de entender mais e melhor os livros. Também porque permite experimentar a literatura em sua dimensão socializadora, fazendo com que a pessoa se sinta
parte de uma comunidade de leitores com referências e cumplicidades múltiplas. (COLOMER, 2007:147)
Resultados apresentados por Colomer na sua obra Andar entre livros (2007) revelam que a falta de
participação sociofamiliar e um ensino fundamentado na leitura de um corpus reduzido a obras legi31
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timadas, no qual o professor monopoliza a interpretação não abraçam esta ideia de “compartilhar”.
No entanto, nas palavras da pesquisadora espanhola “pode-se afirmar, cada vez com maior segurança e de maneira cada vez mais pormenorizada, que a leitura compartilhada é a base para formação
de leitores” (COLOMER, 2007:106).
Perspectiva Dialógica: passos de uma vivência poética
Com uma perspectiva metodológica que favorecesse uma experiência mais detida com os poemas,
possibilitando ao (a) estudante se colocar, apresentar seu ponto de vista. O experimento de leitura
com a poesia de Alice Ruiz foi realizada entre os meses de março e maio de 2012 com alunos (as) de
duas turmas do 1º ano (turno manhã e tarde) de uma escola da rede estadual do município de Lagoa
Seca – PB. Vale dizer que para relatar as vivências dos (as) alunos (as) com o texto literário nas aulas,
as atividades propostas e as observações e reflexões feitas durante o percurso da pesquisa elegeu-se
algumas categorias de análise.
A primeira delas refere-se o ao modo como foi conduzida a experiência, isto é, que postura metodológica assumiu as professoras colaboradoras; a segunda refere-se ao modo como os alunos interagiram com os poemas e também como sucedeu o nível de percepção (temática, linguagem, imagens,
formal...); por último, observar de que maneira a experiência de leitura se projetou nas produções do
alunado e sua participação nas diferentes formas de experimentar a poesia de Alice Ruiz. A concentração nestes três aspectos possibilitou uma observação mais potencializada de duas questões centrais:
primeiro, se a metodologia adotada favoreceu uma interação com o texto e; segundo, como se deu a
participação dos alunos, tidos normalmente pelos professores, como apáticos e desinteressados.
Os passos para essa vivência teve como ponto de partida o planejamento e a elaboração de uma
sequência didática, que contava com um número expressivo de poemas e horas/aula, pois as antologias estavam divididas em três módulos temáticos contendo 50 poemas recolhidos dos livros Desorientais (1996), Dois em um (2008), Jardim de Haijin (2010) e no site oficial da poetisa na página
http://www.aliceruiz.mpbnet.com.br/, com o total de 12 horas aula.
As professoras Ka e Ro organizaram suas turmas, formadas por aproximadamente 30 alunos, em semicírculo e criaram um clima propício para leitura literária e informaram que iniciariam um projeto de
leitura com os poemas de Alice Ruiz. Perguntaram se eles conheciam essa poetisa, os alunos responderam que não. Foi então que falaram um pouco sobre a escritora, disseram que se trata de uma poetisa/
letrista contemporânea e ressaltaram que a mesma foi casada com o renomado poeta Paulo Leminski.
Após essa conversa inicial, propuseram para seus(uas) alunos(as) uma leitura individual e silenciosa dos poemas que integram a antologia de temática lírico-amorosa. Convém ressaltar, que esse
momento reservado para o “ler sozinho” ofereceu condições para que o alunado pudesse interagir
com a poesia por meio de um encontro íntimo entre ambos, com vistas a sensibilizá-lo, bem como a
proporcioná-lo prazer mediante tal experiência poética.
Lidos os poemas em silêncio, as professoras Ka e Ro ouviram as primeiras impressões de seus alunos,
que asseguram apreço pela leitura da poesia de Alice Ruiz. Depois disso, sugeriram a leitura oral e
expressiva de cada poema, sendo esta realizada por mais de um (a) aluno (a) e também pelas docentes. Era perceptível que cada um dos (as) alunos (as) lia de um modo diferente, alguns em andamento
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ora mais acelerado, ora mais compassado; quanto à altura, ora mais alta, ora mais baixa e sempre
buscando dá um tom adequado à realização oral, o que exigiu deles um ir e vir de leituras dos poemas.
Essa atividade de leitura, por vezes, possibilitou ao aluno encontrar percepções de “sentimento” que
os poemas expressam (PINHEIRO, 2008). A título de exemplificação, o poema “DRUMMONDANA”
foi lido em voz alta na turma do 1º ano F por dois alunos e também pela professora Ka, que após sua
leitura os alunos destacaram o tom de “revolta”, “protesto” sugeridos em tal poema por meio das
diferentes modalizações.
Outro procedimento metodológico constantemente utilizado nessa experiência foi o debate. Sabe-se
que o papel do professor como aquele que media o debate, que levanta questões que enriquecem a
discussão de ideias é das mais importantes. Foi nessa perspectiva de trabalho que as professoras colaboradoras fizeram questionamentos às turmas acerca dos poemas lidos, sendo esta uma estratégia fundamental para promover uma discussão, em que todos os (as) alunos (as) tiveram a oportunidade de
falar, discordar, opinar, questionar, enfim, ser personagem principal de sua própria experiência poética.
A professora Ka perguntou aos seus (uas) alunos (as) se tinha algum poema que chamou atenção deles
ou algo que os incomodou. Eles indicaram poemas diferentes e se posicionaram diante da maneira
como o eu lírico fala de sua experiência amorosa. No compartilhamento das leituras, a mediadora, paulatinamente, fez questionamentos à turma: “Esses poemas são significativos para vocês? Que
experiências amorosas estariam representadas? Seriam perspectivas diferentes de amor?”.
Os (as) alunos (as) responderam que o poema “a luz...” faz alusão às “paqueras”, aos encontros e
afinidades entre pessoas. Em “nesta vida” ressaltaram a experiência de amores passageiros. As leituras que fizeram de “vontade de ficar sozinha” foram relacionadas à saudade, ao sofrimento pela
pessoa amada. Vale destacar o que disse a aluna Ar após ter lido e discutido o último poema citado:
“Vou postar no facebook esse poema”. Essa atitude da aluna-leitora parece revelar que as vivências
postas no poema ativaram algumas reflexões sobre sua própria experiência.
Mais um ganho metodológico obtido durante a experiência foi a reflexão que as professoras colaboradoras fizeram sobre sua prática de ensino. Numa dessas situações a professora Ro relatou: “Gosto
muito desse tipo de aula a partir de um projeto de leitura, pois acho que os alunos participam e se
interessam muito mais do que nas aulas de gramática”. Isso evidencia uma reflexão crítica sobre a
prática, advinda de experiências cotidianas realizadas em sala de aula. Nesse caso, a professora Ro
refletiu sobre esse ensino que, partindo de uma vivência literária significativa, possibilitou maior interação dos (as) alunos (as) que atribuíam sentido aos poemas que liam, quando comparado às aulas
de gramática que muitas vezes são executadas em função do domínio de conceitos e classificações
como fins em si mesmos. Esse momento reflexivo é fundamental, pois segundo Freire (1996, p.18) “é
pensando criticamente a prática de hoje e de ontem que se pode melhorar a próxima prática”.
Nota-se que as professoras envolvidas nessa vivência com a poesia de Alice Ruiz exploram procedimentos metodológicos utilizados nos encontros de formação anteriores, os quais eram calcados no
diálogo. As colaboradoras ao lançarem mão desse percurso metodológico se afastaram das aulas
expositivas sobre autores, estilos de época, contexto histórico, dentre outros, e priorizaram aulas
dialogadas, estabelecidas por meio da relação de troca de experiências entre docente e discente.
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Entre poemas, canções e haikais
O primeiro encontro dedicou-se à leitura de poemas de temática lírico-amorosa, que foram recolhidos do livro Dois em um. Este título chamou atenção da aluna Po, que fez a seguinte observação
“Duas pessoas numa só”. Depois da entrega da antologia a cada aluno, as professoras solicitaram
que fizessem uma leitura silenciosa. Ouviu-se a primeira impressão de uma aluna dizendo “Muito
tocante!”, e depois outro leitor dizendo “São muito bonitos”. Havia uma expectativa positiva naqueles (as) alunos (as) durante o momento da leitura solitária.
Optou-se pela temática lírico-amorosa dos poemas de Alice Ruiz para iniciar essa vivência de leitura,
tendo em vista atender os horizontes de expectativas desses (as) jovens leitores (as). Com a participação e o envolvimento do alunado nas discussões dos poemas, que observaram a maneira como o
eu lírico fala sobre sua experiência amorosa a partir de seus saberes pessoais, acredita-se que esse
objetivo foi alcançado.
Outras ressonâncias positivas aconteceram no início do segundo encontro, antes mesmo da professora Ro entrar na sala de aula, o aluno Ca muito entusiasmado perguntou “Professora hoje tem mais
poemas?”, já o aluno Ir disse “Eu fiz um poema” e a aluna Re “Eu acrescentei versos ao poema “faz de
mim...”. A professora diante da recepção da turma falou que continuariam na companhia de Alice Ruiz,
elogiou a iniciativa dos alunos em produzirem os poemas e sugeriu anunciá-las na rádio da escola.
A experiência com as letras das canções de Alice Ruiz também suscitou leituras significativas. A professora Ro seguiu o mesmo procedimento adotado nas aulas anteriores: leitura silenciosa da antologia,
e em seguida, passou às composições em áudio na voz dos artistas Arnaldo Antunes e Zeca Baleiro. A
turma acompanhou esse momento com bastante animação e alguns até cantaram. Poesia & Música
é, portanto, mais uma sugestão de trabalho, pois concordando com Bordini (1986), a música pode se
transformar num recurso para apreciação da literatura. Ao final da aula, a docente propôs que acessassem a página http://www.aliceruiz.mpbnet.com.br/ para novas leituras da poesia de Alice Ruiz.
Conhecendo e experimentando novas formas de composições poéticas
Para esse módulo III, que continuaria o trabalho com a poesia de Alice Ruiz, havia-se planejado
propiciar a convivência com os haikais da poetisa. O objetivo era fazer uma experiência de leitura e
conversa, como vinha acontecendo nas outras aulas, para a posterior realização de uma produção
textual. A ênfase, então, era nessa composição poética advinda da cultura japonesa, e que tem Alice
Ruiz como uma das expoentes dessa arte aqui no Brasil.
As professoras sempre iniciavam suas aulas relembrando e conversando um pouco sobre as vivências anteriores. Na continuidade da aula, as professoras colaboradoras anunciaram em suas turmas
a ação que seria realizada naquele momento: ler os haikais de Alice Ruiz. Para tanto, apresentaram
os livros de haikais – Desorientais e Jardim de Haijin – e na sequência entregaram uma antologia
para leitura individual e silenciosa. Mas antes disso, elas perguntaram se já haviam lido esse tipo de
poesia, se já ouviram falar.
Na turma do 1º ano A, os (as) alunos (as) responderam que não conheciam. A professora Ro ressaltou que além de poetisa Alice Ruiz é também tradutora e haikaista e já traduziu quatro livros de
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autores e autoras japonesas, nos anos 1980. Depois dessa conversa inicial, a mediadora sugeriu uma
leitura oral diferente: alguns alunos leriam os haikais ligados à natureza acompanhado de uma trilha
sonora - uma música “Instrumental flauta japonesa.1.Mp3” - e outros leriam os haikais ligados a
vivências humanas acompanhado da música instrumental “Romeu & Juliet Love Theme. Mp3”.
Antes da realização oral, a professora Ro deu algumas orientações tais como: leiam devagar o haikai,
concentrado na enunciação, nas pausas para quebras de linhas. Houve um tempo reservado para
a turma se preparar para a leitura. O clima estava propício a um bom trabalho, e quando a leitura
conjunta começou, observou-se a interpretação de cada leitor/a. O primeiro aluno leu com muita
expressividade: “fim de tarde /depois do trovão /o silêncio é maior.” Já nessa primeira leitura fomos surpreendidos pela colação da aluna Al que disse “Essa leitura foi boa!”. A turma participou da leitura
com empolgação. Eles (as) leram em andamentos diferentes, uns mais lentos, outros mais apressados. Mas mesmo assim a leitura grupal saiu muito boa, e sentiu-se, pelo envolvimento da sala, que
gostaram da atividade oral. Após esse momento, a professora Ro solicitou aos alunos que lessem o
haikai que tivessem gostado ou se identificado.
Esse momento de vivência foi importante para os próximos procedimentos metodológicos. A professora Ro selecionou e projetou algumas imagens ligadas à natureza para turma, com vistas à sensibilização dos alunos, que observaram atentamente as cenas (estrada para o sol; casal pôr do sol;
queimadas; beija-flor; pássaros no galho; janela; porta entreaberta; mar e lua cheia).
Depois desse momento de observação, a professora Ro perguntou “O que acharam das imagens? O
que sentiram?”. Os alunos disseram que acharam algumas cenas bonitas, sugestivas e delicadas, já
outras impactantes e tristes. A mediadora informou que todo haikai é constituído de imagens e que
são justamente essas imagens que despertam emoções durante a leitura do poema. A partir das
percepções e sensibilidade de cada aluno diante das cenas apresentadas, a mediadora propôs que
escolhessem uma cena e a transformasse em versos, isto é, produzissem um haikai.
Na realização dessa atividade, a professora Ro mediou o processo de produção sempre com todo o
cuidado para não interferir na descrição poética nos versos de cada educando (a). Era notável que
os (as) alunos (as) não seguiram rigorosamente as regras de composição, a exemplo da métrica
(número de sílabas poéticas), mas se aproximaram do esquema 5-7-5, e isso, já representava um
grande passo, pois se sabe que o haikai deve conter o mínimo de elementos. Alguns registros de
cenas captados pelos alunos foram organizados em banner (ver Anexo A).
Sarau Poético-Musical: compartilhando a poesia de Alice Ruiz...
Os últimos encontros com a poesia de Alice Ruiz foram bastante produtivos, uma vez que sucedeu
de experiências de leitura/produção anteriores. As professoras Ka e Ro convidaram suas turmas para
realizar um Sarau Poético-Musical na escola, a fim de apreciar e divulgar a poesia e a música de Alice
Ruiz, bem como para concluir esse trabalho de convivência com a poesia de autoria feminina.
O convite foi aceito pelas turmas com entusiasmo e logo começaram a planejar como seria aquele
momento. A professora Ro disse aos (as) alunos (as) que no sarau poderiam recitar os poemas de
Alice Ruiz, como também os produzidos por eles. A turma gostou da ideia e um dos alunos sugeriu
também cantar as canções da poetisa, já outros se dispuseram a tocar violão e flauta doce. Para
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tanto, aproveitaram algumas aulas que antecederam o evento para ensaiar. A mediadora orientou
a preparar a leitura, chamando atenção para o ritmo, as pausas e a entonação da voz. Ao final de
tudo, combinaram que todos participariam e a professora colaboradora deixou claro que a atividade
não era uma obrigação, mas ressaltou o quanto seria significativo que a fizessem. A sala de aula foi
o espaço escolhido pela professora Ro e nela seriam expostos os livros, os poemas, as canções e o
release da autora Alice Ruiz, os quais foram projetados em banner.
No dia 20 de abril de 2012 aconteceu o tão esperado evento. O ambiente estava organizado e os
alunos animados para a realização do sarau. A professora Ro anunciou que aquele seria o momento
de maior convivência com a poesia de Alice Ruiz. Depois desse momento inicial, a professora Ro
convidou os alunos a recitarem os poemas. É importante destacar que essa apresentação da poesia
era o momento mais aguardado por todos (as). Assim sendo, cada aluno (a) declamou o haikai de
sua autoria acompanhado de um fundo musical (o aluno We tocando baixinho no violão).
Percebia-se que estavam à vontade e se sentiam valorizados pelo trabalho feito com a poesia; a
maior parte dos alunos decorou os poemas, alguns fizeram gestos na hora da declamação e outros
demonstraram uma boa entonação. Somente alguns alunos leram e ficaram tímidos. O que chamou atenção nessas ações foram o entusiasmo e a satisfação dos alunos durante a recitação. Outro
momento significativo foi quando os (as) alunos (as) cantaram as músicas de Alice Ruiz. É difícil descrever aquele momento, mas podemos dizer que era um modo diferente de experimentar a poesia,
mais corporal, mais coletivo.
Foi nessa atmosfera poética que o último encontro foi encerrado. A pesquisadora conversou um pouco sobre o experimento, questionando aos alunos e também a professora colaboradora se haviam
sido significativas àquelas aulas, se haviam amadurecido em termos de leitura de poemas, se havia
sido interessante a leitura das composições de autoria feminina... Todos responderam positivamente e agradeceram pela oportunidade de participarem do projeto. Esse momento foi concluído com a
recitação do poema “tem os que passam”, de Alice Ruiz pela pesquisadora. Considera-se essa experiência com a poesia de Alice Ruiz nas turmas muito positiva. Os (as) alunos (as) vivenciaram o texto
poético de diferentes maneiras e finalmente tinha-se a confirmação de que um trabalho, dependendo de como é realizado, pode aproximar o (a) educando (a) do texto literário, em especial da poesia.
Considerações Finais
Os dados da pesquisa aqui resumidos tiveram duas motivações que nortearam a sua realização, a
saber: a necessidade de uma proposta de trabalho que vise o gosto pela leitura de poesia, sobretudo,
aquela de voz feminina que ainda não conquistou o espaço merecido nas atividades de sala de aula. E
também o fato de muitos professores não serem leitores de poesia, desconhecendo as possibilidades
de exploração do gênero e, por conseguinte, não aproximando o (a) aluno (a) para tal vivência.
A concretização desta proposta de ensino evidenciou resultados bastante satisfatórios. A condução
da experiência pelas professoras colaboradoras é um deles. Elas formaram rodas de leitura e priorizaram a leitura dialógica dos poemas. Assumindo o papel de mediadoras, como propõe Petit (2008),
realizaram leituras orais e silenciosas, um procedimento básico que favoreceu uma aproximação
do leitor com a poesia. Outra ação metodológica constantemente utilizada foi o debate, em que os
alunos eram motivados a comentar e localizar diversos elementos postos nos poemas de Alice Ruiz,
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
com isso foi possível ver o envolvimento deles nas leituras, a colaboração nas discussões e, ainda, os
sentidos que atribuíram os poemas trabalhados.
Finalmente, este trabalho mostrou que, apesar de toda a fragilidade que atinge o ensino de poesia,
existem possibilidades e alternativas para promover a interação da poesia com o jovem leitor. Um
dos pontos de partida para isso é o professor estar ciente de que somos leitores continuamente em
formação e devemos assumir o grande desafio de formar leitores de poesia. O trabalho com o poema tanto com os professores quanto com os alunos revelou a necessidade de uma formação contínua dos profissionais de ensino, algo que possibilite o estudo conjunto, o planejamento e a troca
de experiências. Para se buscar novas práticas deixando de lado os limites dos livros didáticos se faz
necessário tempo de estudo e de preparação.
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ANEXO A
Banner construído com as produções dos alunos da professora Ro e organizado pela pesquisadora
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Leitura literária em movimento: uma perspectiva para a formação do leitor
Eliana Kefalás1
Susana Souto Silva2
Resumo
O presente artigo propõe-se a refletir sobre o trânsito entre leitura, voz, texto literário e corpo do leitor na formação
literária, a partir de experiências de leitura em performances realizadas em escolas públicas de Alagoas (Brasil). O intuito
é, tomando como ponto de partida as experiências de leitura realizadas, pensar como, no corpo a corpo com o texto literário e, mais especificamente, na leitura em performance (ou leitura em movimento), é possível dar espaço para o que o
texto suscita no corpo de quem o lê (e talvez no de quem o vê e ouve). Quando um texto atravessa o leitor, não se pode
prever o que se passará nessa interação: a experiência de leitura abre-se, nesse sentido, para o imprevisível. Procura-se compreender, neste artigo, de que forma essa imprevisibilidade por vezes presente no contato entre texto e leitor
aproxima a leitura literária de uma certa experiência de dança, aquela que se quer pesquisa, território de descobertas.
Pretende-se, portanto, por fim, compreender o ato de ler o texto literário como uma dança de sentidos que reanima
as palavras do texto e o corpo daquele que as recebe, perspectiva que se contrasta com uma concepção estritamente
informativa do trabalho com a literatura na sala de aula.
Palavras-chave: Formação do Leitor, Experiência Leitora, Leitura, Literatura
Abstract
The purpose of this paper is to reflect on the movement among reading, voice, literary text, and body of the reader in
literary formation, from readings experiences in performance held in public schools in the state of Alagoas (Brazil). The
intention is, taking as the starting point the readings experiences held, to think how, in close practice with the literary
text and, more specifically, in reading in performance (or reading in movement), to make room so the text evokes the
body of those who read it (and maybe in the body of those who sees and hears it). When a text penetrates the reader,
one cannot predict what will happen in such interaction: the reading experience opens up, in this sense, for the unpredictable. This paper tries to explain how this unpredictability, sometimes present in the contact between text and reader,
approaches literary reading to a certain dancing experience, the one that is investigation, a territory of discoveries. The
purpose, therefore, finally, is to understand the act of reading the literary text as a dance of senses that enlivens the
text words and the body of who receives them, a perspective that contrasts with a strictly informative conception of
literature activities in classroom.
Keywords: Formation of the reader, the reader’s experience, Reading, literature
1 Docente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) - Brasil. Doutora em Teoria e História Literária – IEL/
UNICAMP (Brasil). Endereço curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/7409165890861097 Fone: (82) 9984 1987.
Email: [email protected]
2 Docente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) – Brasil. Doutora em Estudos Literários – Fale/Ufal
(Brasil). Fone: (82) 91074144. Email: [email protected].
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Quando o leitor escuta o próprio corpo e o corpo das palavras na leitura, é possível que a experiência
do ato de ler não se resuma a uma concepção informativa do texto, mas se aproxime de algo que lhe
é vital, sua relação com o que Zumthor (2000) define como performance. Este artigo tem o objetivo
de discutir relações entre experiências de leitura e performance, a partir de atividades realizadas em
escolas públicas no estado de Alagoas3.
Acredita-se que é através do contato efetivo com o texto literário que se dá a formação do leitor,
uma formação que carrega em si uma potência de transformação: o leitor, nessa perspectiva, não
sai ileso da leitura do texto, ele é marcado pelas palavras que lê; e essas palavras, por sua vez, são
tingidas pela carnalidade daquele leitor. Se nesse corpo a corpo com o texto literário, a voz e os gestos entram em cena, talvez seja possível aguçar um pouco mais a dimensão transformadora do ato
de ler, pois a voz e o movimento podem levar aquele que lê a experimentações não antes previstas.
Nessa perspectiva, a leitura não é decodificação ou apropriação do texto, mas um encontro fortuito,
no qual não se sabe o que irá se suceder, em especial quando esse encontro se dá entre o leitor e o
texto literário, em que a pretensão de verdade e/ou de objetividade não são centrais ou definidoras.
O intuito deste artigo é, em suma, focar a centralidade do contato com o texto literário como um
caminho para a formação do leitor literário, refletindo sobre a interface entre leitura, texto literário
e corpo do leitor, a partir das experiências de leitura realizadas no referido projeto de extensão.
Letras em folia: preparativos
Roteiro da primeira cena proposta no projeto: cena da caixa falante. No pátio da escola, sob o som
de um sintetizador, entra uma pessoa (vestida com um véu preto translúcido salpicado com tecido
de chita) empurrando uma caixa de madeira sustentada sobre quatro rodas, uma espécie de baú
ambulante: há ali dentro outra pessoa, escondida, munida de um livro de Millôr Fernandes4 (1997)
e de uma lanterna. Na lateral da caixa, o único espaço de abertura é o de um pequeno furo coberto
com uma tela. Aquele que empurra a caixa interage com as pessoas que estão assistindo/participando, convidando-as para aproximar seus ouvidos daquele baú que falava. Depois de alguns participantes experienciarem a audição de textos curtíssimos de Millôr Fernandes que veem de dentro
do baú, abre-se a caixa e, de dentro dela, aparecem pernas (“tatuadas” com palavras do escritor),
depois cabeça, braços, até o corpo ficar todo à vista, enunciando em variados ritmos, sons e gestos
o seguinte trecho: “O que o dinheiro faz por nós não é nada em comparação com o que a gente faz
por ele” (FERNANDES, 1997:78). Paralelamente, uma terceira pessoa pronuncia palavras referentes
a objetos que poderiam ser comprados com dinheiro (ex: um tênis all star vermelho, uma calça
jeans, uma bicicleta, um computador) passando a palavra para o público interlocutor para que cada
um diga o que gostaria de comprar se tivesse dinheiro; os integrantes do público verbalizam seus
desejos de compra enquanto a frase de Millôr é enunciada e performatizada.
3 Trata-se de um projeto de extensão universitária intitulado “Folia das Letras”, aprovado no edital Proext 2008 – Mec/Cultura, e
realizado, no ano de 2009, pelos docentes Profa. Dra. Gláucia Machado, Prof. Dr. Vinícius Meira, Profa Dra. Susana Souto, Profa. Dra.
Eliana Kefalás, Profa. Dra. Maria de Fátima Estelita Barros; com participação do artista e performer Jorge Schultze, pós-graduandos
Marcelo Marques e Ari Denisson, discentes do curso de Licenciatura em Letras, Suzane Alves, Ilka Omena e dos técnicos Tázio Zambi
e Rogério Lira.
4 Millôr Fernandes, escritor, desenhista, tradutor, humorista brasileiro, faleceu em março de 2012. Os textos lidos dentro da caixa são
do livro de bolso intitulado Amostra bem-humorada (FERNANDES, 1997).
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A cena da caixa falante5 era a primeira do roteiro de várias cenas (integrando diferentes campos das
artes e da linguagem) que seriam vivenciadas nas intervenções a serem realizadas em quatro escolas
públicas no Estado de Alagoas (Brasil)6. A essa cena inicial, no roteiro, previa-se a seguinte sequência:
apresentação de uma música do reconhecido grupo alagoano, tocada por seu compositor;
distribuição de cartões pretos e giz molhado, para que interessados escrevam palavras
ou desenhem imagens simbólicas para si; montagem de um mosaico no chão com esses
cartões pretos, cujos escritos se iluminam na medida em que o giz seca; os participantes/público formam, oralmente, frases com aquelas palavras em mosaico (frases que são
gravadas pela filmadora);
projeção do vídeo “Nome”, de Arnaldo Antunes, com o intuito de mostrar como as letras
podem fazer folia no jogo com as imagens e sons;
entrada de outro livro em cena: lê-se, em voz alta e em movimento, a narrativa “Negócio
de Menino com Menina”, de Ivan Ângelo (1994), entremeada por uma tradução simultânea para o espanhol (para aumentar a folia das letras), pela repetição de palavras e de
seus significados retirados de dicionário e por uma percussão tocada ao vivo;
expansão do campo sonoro das letras, sua musicalidade, através do canto lírico da música “Bist Du Bei Mir”, de Bach, enquanto um bailarino dança interagindo com os participantes/público e com aquele mosaico de palavras escritas com giz nos cartões negros
espalhados pelo chão;
declamação, no escuro, iluminada somente por uma vela, de um poema por seu compositor;
projeção, na tela, das gravações em vídeo das frases enunciadas anteriormente pelos
participantes – as pessoas ali presentes veem na tela, suas vozes, suas letras, seus corpos, ou seja, a folia toda.
O roteiro estava estruturado. Em novembro de 2009, partimos7 para o interior do estado de Alagoas para as intervenções nas escolas públicas. A primeira cidade em que ocorreram as atividades foi
Penedo, à beira do Rio São Francisco, perto do litoral sul do estado, umas das cidades mais antigas do
País. O ritual iniciava-se com a montagem de equipamentos e cenários, além da preparação vocal e
corporal: armação de madeira para tela branca, parafusos, datashow para projeção de imagens, cabos
e fios, sintetizador, teclas brancas e pretas esperando o toque inicial de dedos ágeis, violão a postos,
aquecimento vocal e corporal, duas caixas de som grandes, pretas e pesadas, três microfones, roupas
vermelhas e brancas, aludindo a uma espécie de figurino escolar; e ainda, a montagem da caixa.
5 Somente a cena da caixa será tomada como foco, funcionando como ponto de partida para a escrita neste artigo, já que a análise
de outras cenas inviabilizaria uma incursão mais densa na discussão teórica que se pretende tecer, dadas as dimensões propostas
para esta publicação.
6 As cidades cujas escolas foram lugar de intervenção são as seguintes: no litoral, Penedo; no agreste, Jacaré dos Homens; no sertão,
Piranhas; e na cidade de Maceió (capital do estado de Alagoas).
7 Utilizarei, neste artigo, a partir deste momento, nas passagens que tratarem das cenas na escola, a primeira pessoa (do
singular e do plural), pois, como se está aqui falando de corpo, de materialidade da experiência da leitura, seria paradoxal
enunciar essas atividades através de um sujeito indeterminado (que apagaria os sujeitos e seus corpos), já que a experiência,
tal como Larrosa (2002) a concebe, e a performance, na acepção de Zumthor (2000) não podem ser pensadas fora da
concretude e da singularidade da situação, na carnalidade de um corpo atravessando e sendo atravessado pelo mundo.
Vale explicitar também que o grupo que participou deste momento de intervenção nas escolas foi composto por mim, pela professora
doutora Maria de Fátima Estelita Barros (docente do Curso de Canto da UFAL), pelo professor mestre Ari Denisson, pelo compositor,
cantor e doutorando Marcelo Marques e pelo artista e performer Jorge Schultze, nomes que serão citados, com devida anuência de
cada integrante, no decorrer dos relatos assinalados neste artigo.
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Tudo pronto. A intervenção ocorre num período do dia em que não há aula, no final da tarde. Chegam os alunos, muitos, de diversas turmas e idades; comparecem também familiares dos alunos,
além da direção e coordenação da escola. Não há cadeiras suficientes para todos, os alunos ficam
em pé. As pessoas conversam bastante. É-nos solicitado que esperemos chegar algumas pessoas
ligadas à direção da escola. O que se faz num tempo que se abre, num tempo de espera? Começam,
nesse momento, os imprevistos, o que não está no script atravessa o acontecimento. A circunstância
parecia ratificar a necessidade de incorporar algo fundamental na ideia de performance, desenvolvida por Zumthor (2000): a imprevisibilidade.
Se queríamos que aquela montagem (elaborada anteriormente a partir de diversas reuniões, oficinas, cursos, ensaios) se aproximasse do que Larrosa (2002) define como experiência (em contraponto à noção por ele explicitada de “informação”) e do que Zumthor (2000) entende por performance,
era preciso abrir-se ao que ali se desenhava, naquela escola, com aquelas pessoas, naquele horário,
dia da nossa primeira intervenção. Antes de dar continuidade ao relato dessa cena cheia de desafios
e imprevistos, abre-se aqui um espaço para se pensar a leitura e a formação do leitor em sua relação
com as noções de experiência e informação, e com a concepção de leitura como performance, tendo em vista o intuito de compreender a relação dessas noções com a ideia de imprevisibilidade, tão
presente na cena que se estava a narrar.
A leitura entre a informação e a experiência
Muitas vezes, nos espaços escolares, a literatura é prioritariamente concebida em sua instância informativa. Cerceados entre quatro paredes, os estudos literários são enquadrados a uma pedagogia da
transmissão de conteúdos, retira-se do fenômeno literário sua dimensão interativa e carnal, aquela
em que o texto literário atrela-se à vida cotidiana. O contato com o texto, quando ocorre, parece estar,
por vezes, subordinado a dados sobre as obras, ao contexto em que elas se inserem, a classificações.
Nas aulas de literatura, apresentam-se, por um lado, frequentemente, informações sobre o texto; por
outro lado, parecem ser mais raras a leitura efetiva e a “exploração do texto” (RANGEL, 2005:149).
Além de colocar em xeque a concepção informativa sobre a literatura, Rangel (2005) questiona a
abordagem que se faz dos textos, quando, muitas das vezes, toma-se como objetivo central, no
trabalho com a literatura, a proficiência em leitura. Esse autor entende que a noção de proficiência
é necessária para a compreensão do texto literário, no entanto considera-a insuficiente para a formação do leitor, já que há elementos intrínsecos à experiência da leitura literária que não poderiam
ser abarcados pela ideia de proficiência.
De acordo com Rangel (2005), há características específicas à formação de um leitor proficiente (em
textos não literários) que não cabem na leitura da literatura. Um texto literário, muitas das vezes,
não se enquadra em “tipologias textuais” (p.152), e nem necessariamente seria “progressivamente
assimilado” ou “digerido” (p.155), como se poderia esperar na leitura de um artigo de opinião; ou
ainda, na leitura literária, não se tem a preocupação de “fazer previsões acertadas”, já que o que
surpreende em um texto literário é que ele não é previsível:
o que busca o leitor de textos literários? A meu ver, nada. Ou, pelo menos, nada que ele saiba de antemão.
Tem uma vaga esperança de que, no tempo de que não dispõe, possa entretanto ler algumas páginas. Às vezes, termina de ler o que não chega a saber se é um conto longo, um romance breve, uma novela arrastada ou
um poema em prosa [...]. Quando faz previsões, erra bastante; nem por isso perde o rumo ou se irrita; muito
pelo contrário, diverte-se e, muitas vezes, se encontra com as descobertas que faz (RANGEL, 2005:153).
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No percurso da leitura, há, segundo Rangel (2005), uma espécie de errância, uma certa impossibilidade de saber até onde e por onde o texto levará aquele que o lê; ou, ainda, não se pode prever
também por que andanças no mundo o próprio leitor conduzirá o texto. A ideia de proficiência não
consegue abarcar essa errância, tão própria da experiência da leitura, em especial, da leitura literária.
Segundo Rangel (2005), ao se priorizar uma abordagem proficiente no trabalho com a literatura em
sala de aula, deixa-se à margem algo essencial na formação do leitor literário, o contato com a singularidade do texto e as reverberações advindas desse contato. Procurando centrar-se na importância
da leitura e da exploração do texto na escola como estratégia fundamental para a formação do leitor,
Rangel (2005) expõe o conceito de letramento literário como contraponto àquela abordagem por
vezes excessivamente informativa e classificatória do trabalho com a literatura na escola.
Paulino e Cosson (2009), ao delinearem o conceito de letramento literário, ratificam o caráter processual e transformador da leitura do texto de literatura, contrastando-o com o que nomeiam de
“letramento serviçal” (p. 71), por vezes, insistentemente, presente na realidade escolar. Esses autores observam que, na escolarização da literatura, se tende a “negar as produções de sentido imprevistas” em prol de uma homogeneização do conhecimento. Acredita-se mais em um “letramento
funcional” que produza leitores eficazes em conformidade com um modelo de sociedade considerada “já pronta, já organizada, com funções predefinidas para os sujeitos, afastados de quaisquer
produções críticas, subversivas, excepcionais” (p.71). Tal modelo de sociedade e visão de ensino não
comportam elementos tão caros à literatura, tais como, o efeito de estranhamento passível de ser
produzido pelo texto no ato da leitura, através de seus jogos de sentidos, de seus desvios de rota. A
possibilidade da produção do estranhamento parece ser afastada dos bancos escolares, na medida
em que se acredita que a formação deva ser submetida à reprodução e assimilação de informações
e conteúdos sobre o literário.
Em sua concepção sobre o letramento literário, Paulino e Cosson (2009) consideram que a experiência literária se dá justamente através de um movimento que se abre para a desfamiliarização, para
a desconstrução, para o que, na leitura literária, configura-se como outro, desestabilizando compreensões conformadas do mundo e provocando o exercício da liberdade: “operando com a liberdade
da linguagem, dando palavras à liberdade humana, a experiência da literatura proporciona uma forma singular, diferenciada, de dar sentido ao mundo e a nós mesmos” (PAULINO e COSSON, 2009:70).
Dentro dessa perspectiva, pode-se pensar que a leitura literária é potencialmente transformadora,
que o seu “barato” é embaraçar a vida, confundi-la, emaranhá-la em tessituras inapreensíveis, permitindo mais o tropeçar do que um caminhar tranquilo por caminhos seguros e previsíveis. Tropeçar
nas linhas de um texto literário significa cair – ou quase cair – nas travessuras das palavras, em si e
fora de si, no mundo das possibilidades. Esse tropeçar ou mesmo tombar diante do que surpreende
é algo central na noção de experiência apontada por Larrosa (2002) a qual é contraposta ao mundo
quase inequívoco e funcional da informação, tantas vezes afeito à lógica escolar e, consequentemente, ao ensino de literatura.
Pode-se ainda acrescentar que a reflexão sobre a leitura como ato complexo tem grande espaço, ou
deveria ter, na aula de literatura. Já que a leitura é uma atividade presente em todas as disciplinas
escolares, a aula de literatura poderia ser o espaço para refletirmos sobre a multiplicidade de modos
de ler, e de escrever, deslocando/questionando a noção de leitura como algo mecânico, obrigatório,
previsível, e destacando que “ler”, afinal, é algo que não conhecemos de todo.
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Logo no início do texto Notas sobre a experiência e o saber da experiência, Larrosa (2002) defende a
necessidade de separar a ideia de experiência da de informação:
A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la da informação. E o
que gostaria de dizer sobre o saber da experiência é que é necessário separá-lo do saber coisas, tal como
se sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está informado. (2002:22)
Para Larrosa (2002), a informação na sociedade moderna, ou a necessidade de se estar sempre
informado, sufoca a experiência, na medida em que a sistemática pressa, o excesso de novidades e
de fatos circulando não dá ao sujeito a possibilidade de, “suspender o automatismo da ação” (p.24),
e, pois, de se enternecer, de se comover com o que lhe acontece. O sujeito da informação é movido
e consumido por avalanches de estímulos, por excitações fugazes e insaciáveis. Falta-lhe o silêncio,
o tempo da memória, a abertura à fragilidade, à incerteza, ao inapreensível:
Nós somos sujeitos ultra-informados, transbordantes de opiniões e superestimulados, mas também sujeitos cheios de vontades e hiperativos. E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque
estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece (LARROSA, 2002:24)
O sujeito da experiência, na acepção de Larrosa (2002), não é um sujeito armado de certezas ou um
sujeito que se considera de antemão dono de uma situação; é antes o sujeito que deixa que algo lhe
afete e que “produz afetos”, “que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar” (p.24). Esse
sujeito aberto e disponível é marcado por tudo que lhe sucede. Ele não é, pois, nem alheio nem desdenhoso; pelo contrário, sabe do valor do tombo, da queda, do tropeço diante do que lhe escapa.
Nesse sentido, a leitura tida como experiência é a leitura que deixa marcas; nela, as linhas do texto chegam a arranhar o leitor, produzindo nele impressões inauditas. Esse leitor, por sua vez, se é atravessado
ou surpreendido pelo texto, pode sentir vertigens ou alcançar alturas no ato de ler. Se, de modo diverso,
a literatura chega àquele que o lê enquadrada por amontoados de informações a serem assimiladas,
não há aí muito espaço para que o mal/bem-estar das palavras se instale naquele que as recebe. A força
do texto literário e toda a tensão texto-mundo possível de se viver na leitura esmorece-se e esteriliza-se diante de uma concepção informativa do ensino da literatura. A priorização de informações sobre o
literário, segundo Pinheiro (2006), faz com que o ensino de literatura chegue a ser um tormento:
Ora, o ensino da literatura se tornou, para a maioria dos alunos do nível médio, não um encontro pessoal com
uma determinada obra, mas um tormento, uma vez que têm que decorar uma lista relativamente longa de
autores e obras, características de estilos de época, afora as fichas de leitura (que agora mudaram de nome)
para serem respondidas. O mecanicismo é a moeda corrente, com algumas poucas exceções. E esse tormento, nalgumas escolas, saiu do ensino médio e chegou até a sétima série do ensino fundamental. (p.114)
O desencontro entre texto literário, aluno e professor em prol de um espaço estéril de circulação de
conteúdos afasta do trabalho com a literatura na escola a possibilidade de ser experiência. O lugar do
prazer, da subversão, do humor, que poderia ser produzido no contato com o texto, é tomado pela
sobriedade e pela esterilidade. Os sujeitos envolvidos na relação ensino-aprendizagem não são desestabilizados diante de uma provocação literária, são desanimados pela tarefa de fazer e corrigir exercícios, repassar e apreender conteúdos. O texto, exilado do sujeito da experiência e da envergadura do
mundo, cai na rota da conhecida, previsível e, portanto, não saborosa informação. A leitura é menos
aventura, risco, lugar de descobertas do que trajeto rotineiro, cujo percurso se acredita já conhecer de
antemão. A possibilidade da surpresa diante do texto é substituída por uma ação automatizada.
Assim, muitas vezes, a leitura que ocorre dentro da instituição escolar é normativa, uma experiência de
submissão à autoridade do professor/leitor, que estabelece, com o apoio do manual didático, a verdade
do texto, reduzindo o espaço de leitura como experiência de encontro, descoberta, desestabilização.
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Os pontos de articulação do fenômeno literário com a experiência da leitura dependem de uma
certa desautomatização do ato de ler. É preciso, para tanto, revisitar o texto, deixar-se afetar por
ele; permitir que a massa das palavras reverbere-se na voz, no corpo de quem a lê. Para reanimar
as palavras e reinstaurar a força delas no mundo, faz-se necessário um “engajamento do corpo”
(ZUMTHOR, 2000, p.22) ou, em outras palavras, é preciso reconhecer o que, na leitura (mesmo
naquela denominada silenciosa), é performance.
Leitura literária e performance
De volta à cena desafiadora da escola. No mesmo local em que havíamos montado todos os aparatos
que utilizaríamos na intervenção e que seria o local da realização das atividades – no pátio de entrada da escola –, o público de alunos adolescentes, jovens e adultos circulava, conversava, ria, corria.
Sentíamo-nos meio invadidos pelo público (cuja participação na intervenção nos era tão cara e desejada)? Queríamos um público participante e, ao mesmo tempo, silencioso, comportado, controlado?
A espera da chegada de alguém solicitada pela diretoria não combinava com a presença ardente das
pessoas que haviam chegado ali na hora marcada. Ou nos desalinharíamos com a direção e manteríamos o roteiro da nossa montagem ou iniciaríamos as atividades de forma diversa do que fora previsto.
Não foi a entrada triunfal da caixa surpresa que abriu aquele momento, nem houve uma abertura
solene; cantou-se uma música tocada no violão, uma música engraçada, de um coveiro que se apaixona por uma caveira. Estávamos enrolando o público ou ali já era o início da intervenção? O que se
leva em conta, quando se quer conceber uma ação performática? Nós mesmos ficamos também à
deriva, fomos enredados na experiência única de levar o projeto para aquele espaço, naquelas condições concretas, específicas, com aquelas pessoas.
Para Zumthor (2000), algumas categorias são centrais na performance, entre elas, “o tempo, o lugar,
a finalidade da transmissão, a ação do locutor e, em ampla medida, a resposta do público” (p. 35).
A partir de uma definição estabelecida por Dell Hymes, na década de setenta, Zumthor (2000) apresenta ainda alguns traços essenciais da performance: seu caráter de atualização (quando a performance passa do virtual, do imaginado e programado para a concretização, para a realização); sua
instância de emergência, isto é, ela situa-se em um contexto cultural e situacional, emergindo-se
nele e dele; sua reiterabilidade, na medida em que a performance comporta uma repetição que não
é redundância; sua condição de transformação, isto é, ela afeta o meio em que se insere, “não é
simplesmente um meio de comunicação: comunicando ela o marca” (ZUMHTOR, 2000:37).
Além dessas características de atualização, emergência, reiterabilidade e transformação, o autor
supracitado reforça seu caráter de provisoriedade. Em outras palavras, a performance não tem o
intuito de assumir uma completude, ela é antes um “desejo de realização”: “ela [a performance]
refere menos a uma completude do que a um desejo de realização” (ZUMTHOR, 2000:38). O que
move a performance, nesse sentido assumido por Zumthor (2000), é uma potência de ação, seu
“comprometimento empírico” (p.46), sua condição de responsabilidade pelo que acontece em uma
determinada circunstância, com determinadas pessoas, em um certo tempo e espaço. A performance pressupõe um engajamento, um compromisso com o aqui e o agora da situação em que ela se
insere; por isso, é condição para ser performance, uma abertura para a transmutação. Tudo que ela
é pode deixar de ser diante do que se passa.
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No pátio da escola, naquela espera insólita e meio indesejada, a cantoria da música da caveira e do
coveiro apaixonados parecia ecoar, ao mesmo tempo; por um lado, a cova, a morte do que havia
sido preparado, do roteiro estruturado e, por outro lado, a encarnação de algo vivo, tão vivo quanto
aquela paixão (coveiro-caveira), que pode emergir daquilo de que se desapega e se transmuta em
novo; em outras palavras, a situação levava-nos a uma mudança, a um abandono do roteiro cristalizado para o encontro com aquelas pessoas, naquele local, diante daquelas condições. Suávamos, e
nosso suor misturava-se com o suor daqueles alunos.
Diferentemente do que ocorreu em intervenções em outras escolas, a entrada da caixa não foi triunfal naquele pátio. Não foi necessário chamar as pessoas para que chegassem até ela e ouvissem seus
sons; elas se misturavam com a caixa. Eu, Eliana Kefalás, estava, neste momento, ali dentro daquele
baú, lia versos e ouvia vozes. Quando a caixa-baú foi destampada, muitos meninos e meninas estavam me olhando, ali, quase em cima de mim. Eles tocavam a caixa, tocavam-me com seus olhos: a
caixa, as minhas pernas “tatuadas” com palavras de Millôr Fernandes, os rostos de cada um deles
eram, um “montão de mais” (ROSA, 1969:7), um “transbordamento” (ROSA, 1969:4), como diria
João Guimarães Rosa, em um conto de Primeiras Estórias.
Vale a pena aqui fazer uma breve incursão nesse conto de Guimarães Rosa (ROSA, 1969), intitulado
“Margens da Alegria”, porque algo nele parece ecoar aquele momento na escola. O conto narra
alguns episódios de um menino que viaja junto com seu tio para uma grande cidade. Narra-se a
viagem de avião, na qual o menino “fremia no acorçoo, alegre de se rir pra si” (p.3); o cinto de segurança era para ele afago, o azul, o chão quadriculado visto do alto, tudo o encantava, arrebatava-o.
Ao chegar à casa do tio, na grande cidade, ele avista um peru no terreiro:
Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial,
dava-lhe as costas para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda (...) Belo, belo!
Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta” (ROSA, 1969:4).
O peru, no centro do terreiro tomou conta da cena, surpreendera o menino, assustou-o, roubou-lhe a admiração.
Quando vi aqueles meninos transpirando sobre a caixa, senti uma espécie de transbordamento, algo
para além do que eu poderia compreender: o que olhavam? O que lhes chamava a atenção? O que
eles viam e liam? Ali, naquele terreiro da escola, não era eu o peru, não éramos nós o centro das
atenções. Eles nos surpreendiam, tomavam conta da cena, davam sentido ao projeto, que agora, de
fato, se realizava. Aqueles alunos abriam leque sobre nós, estalavam a cauda, fazendo roda. Belo,
belo! Tinham qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. A participação deles era
vigorosa, inapreensível, tudo saía fora do controle, estávamos lado a lado, nós e eles, tateando as
palavras, os versos, as músicas, as imagens e tudo que se passava naquele momento. Quando se
abre a experiência para a performance, parece não haver como fugir dos desafios e da força de uma
circunstância, trava-se uma cumplicidade, um comprometimento acontecido no corpo a corpo entre
pessoas, palavras, espaço, imagens, sons e sentidos.
A concepção de performance como engajamento e compromisso com o que se passa, de forma a se
deixar afetar pelo que acontece, reforça a ideia de que se trata de território de risco, de abertura, de
vulnerabilidade, elementos condicionantes daquela noção de experiência anteriormente mencionada. Larrosa (2002) caracteriza o sujeito da experiência como um “território de passagem” (p.24), no
qual não há como fugir de um certo “padecimento” (p.24), de uma sensação de instabilidade.
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Se, tanto na ideia de performance quanto na de experiência, a mutabilidade, a provisoriedade e a
vulnerabilidade estão presentes, conceber a formação em literatura do ponto de vista desses dois
conceitos implica, no trato com as palavras, aventurar-se, abrir-se e abri-las para o contato consigo,
com o texto e com o que mais permeia essa relação. Trata-se de um contato menos pacífico e pacificador do que dinâmico, variável, poroso, que afeta e é afetado. O jogo das palavras no texto literário, os desvios e os seus desvãos da escritura (BARTHES, 1989) são potencialmente provocadores,
incitam o sujeito, fazem da leitura uma espécie de dança:
Você pode ler não importa o que, em que posição, e os ritmos sanguíneos são afetados. É verdade que mal
conceberíamos que, lendo em seu quarto, você se ponha a dançar e, no entanto, a dança é o resultado
normal da audição poética! A diferença porém aqui é apenas de grau. (ZUMTHOR, 2000:38)
A performance, para Zumthor (2000), recobre tanto a tradição escrita quanto a oral. A distinção
entre a experiência da poética oral (dos cantadores, repentistas, por exemplo) e a tradição escrita
da leitura é apenas uma questão de grau. Enquanto, na oralidade, prova-se uma dimensão máxima da performance, na tradição escrita, em especial na leitura tida como silenciosa, a instância
performática não deixa de existir, ela seria de outra natureza, estaria presente como potência de
movimento, seria, portanto, da “ordem do desejo”: “o que na performance oral pura é realidade
provada, é, na leitura, da ordem do desejo. Nos dois casos, constata-se uma forte implicação do
corpo” (ZUMTHOR, 2000:40).
De que forma, então, na leitura considerada silenciosa, haveria uma implicação corporal? Por que ou
de que modo um corpo sentado lendo um texto literário poderia estar em performance? Ou ainda,
de modo geral, o que, no texto literário, faz da leitura performance?
Leitura como prazer, gozo
“O prazer poético é orgânico”, escreve Zumthor (2000:51), a musculatura, a respiração, o corpo como
um todo é convocado, na atividade de produção e recepção poética, seja na leitura de um texto literário escrito, seja na condição de espectador de uma apresentação de um cantador em praça pública.
Barthes (1989), por sua vez, considera que a leitura do texto literário, nomeado por ele de “escritura”,
é prazer, não um prazer heroico, triunfante, mas um prazer-deriva, movido pelo gozo: “O prazer do
texto não é forçosamente do tipo triunfante, heroico, musculoso. Não tem necessidade de se arquear.
Meu prazer pode muito bem assumir a forma de uma deriva” (BARTHES, 1993:27. Grifo do autor).
Esse prazer acontece porque, na leitura, os desvios do texto literário, suas vias indiretas, os jogos de
sentido podem provocam o leitor. A escritura é um espaço “entre”, é o que Barthes denomina “brio
do texto”: o brio do texto encontra-se onde há um interstício, é, por exemplo, uma fresta entre duas
bordas da vestimenta, na “pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha) [...]; é essa cintilação
mesma que seduz” (BARTHES, 1993:16). O prazer acontece, portanto, porque uma das matérias do
texto literário é esse brio, um lugar provocador, erótico, que, ao mesmo tempo que mostra, esconde:
“O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre?” (BARTHES, 1993:16).
O “lugar mais erótico” não é aquele que se vê explicitamente, mas um lugar indireto, sugerido, que
se insinua. A leitura literária, do ponto de vista do prazer-gozo, um prazer que é deriva, não se rende
a uma vontade de domínio, pois o gozo não é domesticável. Barthes, ao comparar o texto ao corpo,
não se refere a um corpo fisiológico, mas a um corpo erótico:
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Que corpo? Temos muitos; o corpo dos anatomistas e dos fisiologistas; aquele que a ciência vê ou de que
fala: é o texto dos gramáticos, dos críticos, dos comentadores, filólogos (é o fenotexto). Mas nós também
temos um corpo de fruição feito unicamente de relações eróticas, sem qualquer relação com o primeiro: é
um outro corte, uma outra nomeação; do mesmo modo o texto: ele não é senão a lista aberta dos fogos da
linguagem (esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto [...]).
O texto tem uma forma humana, é uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo erótico.
O prazer do texto seria irredutível a seu funcionamento gramatical (fenotextual), como o prazer do corpo é
irredutível à necessidade fisiológica” (BARTHES, 1993:25)
O texto literário, ou a escritura, não se resume a um tecido gramatical, ele é feito de relações eróticas. O que atrai nele são seus poros, seus espaços vazios, seus desvios, sua via inclinada, na qual
tremulam “os fogos vivos” da linguagem. Essa força não domesticável do texto permite que a leitura
literária seja um tanto inquietante, produza calor, mesmo em um corpo sentado em uma cadeira,
lendo, como dizem, solitária e silenciosamente um texto.
Essa leitura “visual e muda” (ZUMTHOR, 2000:39) é tão concreta e carnal como a audição poética, na
tradição oral. Os efeitos do texto no leitor, quando aquele o afeta, arrebata o seu corpo, faz vibrá-lo:
O que produz a concretização de um texto dotado de carga poética são, indissoluvelmente ligadas aos efeitos semânticos, as transformações do próprio leitor, transformações percebidas em geral como emoção
pura, mas que manifestam uma vibração fisiológica (...). O texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o
àquilo que é ele próprio. Então é ele que vibra, de corpo e alma (ZUMTHOR, 2000:62-63)
Essa vibração do corpo é uma espécie de gozo acontecido no corpo a corpo com a escritura literária.
Para Zumthor (2000), o corpo tem algo de “indomável; de inapreensível” (p.92). A leitura, portanto,
está intimamente ligada a essa instância “hesitante, errática” (p.93) do corpo, ela está na raiz do
poético, o que faz do ato de ler uma atividade selvagem, “de descoberta, de aventura” (p.93). Se se
inclui o corpo na produção do conhecimento, por um lado, tem-se que abrir mão do controle, da
domesticação; e, por outro lado, abrem-se as comportas do desejo, da vibração, de uma presença
que chega a comprimir o peito.
Para Zumthor (2000), no contato com o texto, é o corpo que reage: “é ele [o corpo] que sinto reagir
ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos” (p.28). Nessa travessia carnal do
texto, Zumthor (2000) não procura apreender o corpo, domá-lo, ele quer mesmo é escutá-lo:
Eu me esforço, menos para apreendê-lo que para escutá-lo, no nível do texto, da percepção cotidiana, ao
som de seus apetites, de suas penas e alegrias: contração e descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos, sensações de vazio, de pleno, de turgescência, mas também um ardor ou sua queda, o
sentimento de uma ameaça ou, ao contrário, de segurança íntima, abertura ou dobra afetiva, opacidade
ou transparência, alegria ou pena provindas de uma difusa representação de si próprio (p.28-29)
A escuta do corpo, sua percepção no dia-a-dia, permite uma abertura ao mundo, à palavra, ao poético; é justamente essa escuta que faz com que o corpo na leitura reaja como dança.
Leitura como dança
Se supuséssemos que a dança não se restringe à lógica do corpo hábil, virtuoso, cheio de destrezas,
que imita modelos, que quer repetir formas e passos, o que estaria na mira de uma dança? O que
seria essa dança? Para Klauss Vianna, bailarino brasileiro, cuja técnica tem ganhado uma repercussão internacional, o corpo que dança é um corpo em pesquisa, que investiga o movimento e não
aquele que se fixa em objetivos externos, em moldes de movimentos: “Não são as sequências de
posturas dadas por uma pessoa à sua frente que farão de você um bailarino” (VIANNA, 2005:104).
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Muitas vezes a dança prende-se a uma estética que a cristaliza:
o domínio da arte da dança, em nossos dias, obedece a certas regras e convenções em função de um ideal
estético suposto e proposto. Mas é possível pensar a dança para além desses limites, como uma das raras
atividades em que o ser humano se engaja plenamente (...) Mais do que uma maneira de exprimir-se por
meio do movimento, a dança é um modo de existir (VIANNA, 2005:105).
A concepção da dança como “um modo de existir” tem como preceito a ideia de que há uma singularidade no movimento da dança de cada um, uma singularidade ligada às ações cotidianas. Cada
um tem sua maneira de andar, de expressar suas dores, ausências, alegria: “existem pessoas que
agridem o chão ao andar, outras que o acariciam” (VIANNA, 2005:119). A observação dessa movimentação interfere na dinâmica dela. O ato de observar, de escutar o corpo, de acordo com Vianna
(2005), é fundamental para que se saia do automatismo da ação: “por meio da observação e da
percepção dos movimentos mais elementares, criamos um código com nosso corpo, começamos a
sensibilizar as partes mortas e a liberar as articulações” (p.125).
Há um investimento que é cotidiano na observação do corpo. Vianna (2005), desde criança, ficava “horas observando os pés. Os meus e os dos outros. As marcas que deixavam na areia ou no
cimento, quando saíam da piscina” (p.23). Trata-se de uma postura investigativa que escuta o corpo,
retirando-o de uma espécie de dormência sedimentada: “Em geral, mantemos o corpo adormecido.
Somos criados dentro de certos padrões e ficamos acomodados naquilo” (VIANNA, 2005:77).
Para que ocorra a desautomatização do corpo, é necessário acordá-lo, reanimar os sentidos, investindo numa rota criativa dos percursos do cotidiano. Quando se segue em busca de um corpo desperto,
nenhuma rua é igual a outra, o sujeito não é indiferente ao lhe passa, há um corpo a corpo com o mundo. Convoca-se o corpo para uma presença, trata-se, segundo Miller (2007) de “disponibilizar o corpo
para lidar com o instante do momento presente” (p.54). Segundo essa autora, esse acordar o corpo
para a presença pode se dar através do trabalho com os sentidos: “Essa transformação se dá pelo
despertar dos cinco sentidos, mediante os quais nos relacionamos com o mundo e desenvolvemos o
sentido cinestésico, que compreende a percepção do corpo no espaço e no tempo” (MILLER, 2007:54).
Talvez, se concebêssemos a leitura enquanto dança, o texto, ao ser lido, seria mais do que algo para
se informar, mas um lugar de se formar, de se transformar. Pensar a leitura enquanto dança permite uma releitura do ato de ler e da formação do leitor, um reencontro, um acordar-se na vida das
palavras, na medida em que, no encontro entre o corpo daquele que lê e a carnalidade da palavra
literária, funda-se uma experiência inapreensível, que não se sabe onde irá desaguar.
Esse não saber é que configura o que Rangel (2005) compreende como letramento literário, ao afirmar que, na leitura de uma obra, o que importa não é somente acumular informações sobre o texto
ou saber o seu enredo, mas se deixar levar pelos rumos imprevistos que a obra vai trilhando no decorrer da leitura. O âmbito inapreensível do texto abre caminhos arriscados – e, talvez, por isso, instigantes – que percorrem os corpos envolvidos na leitura, caminhos que podem ser percorridos em dança,
na leitura em movimento, quando a matéria da palavra reacende o corpo que estava adormecido.
No corpo presente, o surpreendente
É através de uma “presença ativa” que o sujeito “vê, respira, abre-se aos perfumes e ao tato das coisas”, como nos ensina Zumthor (2000:41), a presença corporal é crucial para que a leitura possa ser
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vibração, performance. Segundo esse autor, há tempos o homem tem anestesiado sua percepção,
seu corpo; esse dormitar dos sentidos têm tornado a leitura frígida e sedentária. A materialidade das
palavras perde sua vitalidade; o texto não reverbera naquele que o recebe. Dissemina-se um conhecimento estéril, descarnado. Apesar do corpo, na nossa sociedade de consumo, ser promovido pela
aparência, pelos “clubes de fitness” (ZUMTHOR, 2000:93), não há como negar sua existência. Da mesma forma, as palavras, sua carnalidade, seu poder de provocação, não podem sempre ser domadas
entre quatro paredes. Há sempre a possibilidade de fugir pelos corredores, de se instalar no pátio da
escola, de abrir caixas, baús, de dar o corpo e a voz ao texto que se enuncia e que se recebe.
A presença desse projeto em nossa vida, na Universidade Federal de Alagoas, com envolvimento de
docentes e estudantes de vários cursos, Letras, Canto e Teatro ampliou um percurso de descoberta
de novos caminhos, tanto pelos corredores da universidade, quanto pelas estradas do estado de Alagoas, ampliando as nossas margens da alegria, as nossas veredas da experiência. Dele saímos todos
renovados, perplexos, cansados, mas também marcados pelos olhares, vozes, paisagens, sons que
nos habitaram e que nós habitamos, desde que o projeto foi concebido até a sua provisória finalização, na medida em que nada que promove o diálogo parece de fato acabar, pois passa a constituir
nossos corpos, nossos olhares pra sala de aula (a nossa, antes de tudo), para o texto, para o mundo.
Nesse lugar difuso dos corredores e pátios, em que há espaço para as pessoas andarem, correrem,
em que cabe o suor, o cruzamento de olhares, o tato, o contato, instalamos a tentativa de experienciar a dimensão poética da palavra literária, dimensão em que ela congrega sonoridades, canto,
música, dança e imagens. Foram quatro os pátios de escolas visitados. Em cada um, diversos contatos distintos. A pele das palavras lidas, sonorizadas e performatizadas transformavam as leituras,
a maneira de dizer e de reverberar no corpo os textos. Ali, no escuro, dentro do baú, eu, Eliana,
encontrava – e perdia – maneiras de dizer as mesmas palavras, às vezes, repetia de modo automatizado algumas delas, noutras a minha voz desdizia o desenho sonoro que eu imaginava a fala de um
texto: a boca, suas cavidades; as cordas vocais; a respiração, as dobras do corpo trapaceavam-me; as
pessoas lá de fora escondiam surpresas; sempre antes do baú se abrir, o corpo estremecia. Que as
páginas de nossos livros, como se fossem baús, possam nos esconder dentro delas para que possamos acolher nelas nossos corpos e saber que dali saltaremos – nós e as palavras que incorporamos
–, para um mundo sempre surpreendente, inesperado, assustador. Belo, belo!
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Referências
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Literatura afro-brasileira: currículo e ensino
Rosângela Tenório de Carvalho1
Resumo
Neste artigo, apresentam-se breves considerações sobre a literatura afro-brasileira no contexto do currículo escolar. O
objetivo é problematizar a relação entre currículo e literatura afro-brasileira, tendo como foco os estudos sobre diferença cultural. É enfatizada a entrada da literatura afro-brasileira no currículo escolar para que a experiência de si seja
pensada como um empreendimento de dessubjetivação numa visão em que as práticas curriculares são tidas como
operadoras de processos de subjetivação.
Palavras-chave: Literatura afro-brasileira, currículo, cultura, subjetivação
Abstract
The goal of this article is to present some brief remarks about African-Brazilian literature in the context of the school
curriculum and to discuss the relation between curriculum and African-Brazilian literature focusing on the studies about
cultural differences. It emphasizes the entry of African-Brazilian literature in the school curriculum so that the experience of the self is thought as a development of desubjectification based on the idea that curricular practices are operators
of subjective processes.
1 Doutora em Ciências da Educação pela Universidade do Porto. Professora da Universidade Federal de Pernambuco.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
No campo dos discursos de fronteira, a exemplo dos discursos pós-colonialistas, de gênero, de raça, da
educação indígena, da educação do campo, da educação popular, dos estudos queer, das versões críticas
e pós-críticas do currículo, dos estudos culturais, entre outros, interpela-se a escola como espaço-tempo
na produção e reprodução de subjetividades multidimensionais associadas ao conhecimento curricular.
Nesse campo, ao qual estou associada, chama-se atenção para a escola como um lugar onde se aprende quais são os conhecimentos verdadeiros a serem legitimados, os conhecimentos provisórios, locais,
populares, conhecimentos a serem substituídos e/ou deslegitimados. Alerta-se, assim, para a escola
como um lugar onde se aprende a dizer-se branco, negro, heterossexual, homossexual, mulher, homem,
alfabetizado, analfabeto. A nosso ver, esse processo estabelece-se na configuração do privilégio de determinados saberes a partir da renúncia pelos sujeitos da educação de outros saberes (CARVALHO, 2011).
Sob o enfoque dos discursos de fronteira se reconhece que o currículo escolar e não escolar operam por meio de ferramentas pedagógicas que atuam como técnicas de produção dos sujeitos, tais
como: as lições, os conteúdos, os signos, as situações didáticas, os processos de avaliação, os espaços possíveis, os interditos, os dizeres admitidos e os dizeres silenciados. E tais ferramentas se movimentam como um conjunto complexo de relações sociais e culturais permeadas pelas relações de
saber/poder/ser, fazendo operar a “maquinaria” da escola.
Esses discursos têm uma relação imanente com as práticas discursivas dos movimentos sociais populares na luta pela afirmação cultural.
Os movimentos sociais no Brasil são entendidos como forças sociais que em sua prática discursiva
têm possibilitado diferentes formas de organização social e cultural nas últimas décadas do século
XX e início do século XXI, considerando-se os objetos sociais e culturais que problematizam, tais
como o sindicalismo, as questões da terra (propriedade e uso), o racismo, a ecologia, a ética, a estética, o feminismo, a educação, entre outros; a instituição de organizações sociais e culturais, a exemplo da Central Única dos Trabalhadores (CUT); dos Movimentos Sociais de Educação; do Movimento
das Escolas Comunitárias; do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua; dos Movimentos
dos Homossexuais: gays e lésbicas; do Movimento Ecológico; do Movimento Ética na Política, do
Movimento Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida; dos Movimentos Indígenas; dos
Movimentos Negros; a produção e emergência de novos sujeitos sociais e culturais, a exemplo dos
intelectuais em atuação específica junto aos movimentos sociais, dos Sem Terra, dos Caras-pintadas,
dos Sem Teto, dos Povos das Florestas, dos Meninos e Meninas de Rua, do Educador e Educadora
Popular, do Professor e da Professora Indígena, dos Quilombolas (CARVALHO, 2004).
Sob o preceito do valor ético intercultural, realçam-se conquistas dessas lutas na legislação no campo educacional com efeitos diretos no discurso curricular. De fato, há uma legislação desde meados
dos anos 1990 que interpela a escola em sua prática de justiça social e cultural: a Lei n.º 9.394/96, de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional; a Lei nº 10.558, de 13 de novembro de 2002, do Programa
Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, e a Lei 10.639, de janeiro de
2003, que altera o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/96). Esta última
preconiza o conhecimento da história e da cultura afro-brasileira no currículo da Educação Básica no
Brasil, destacando as áreas de educação artística, história brasileira e literatura:
O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a educação das relações étnico-raciais […] se desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e modalidades de ensino […], particularmente,
Educação Artística, Literatura e História do Brasil, […]. (BRASIL, 2003:21).
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Essa temática da literatura, implicada com outras temáticas como território, alteridade e identidade,
indica uma nova dimensão no trato com as questões da cultura afro-brasileira. Território e diáspora
são apresentados como conteúdos de registros de histórias ainda não contadas. Porém, esses são,
de fato, novos objetos de saber para o currículo nacional: remanescentes de quilombos, comunidades e territórios negros urbanos e rurais (BRASIL, 2004).
A legislação proposta provoca várias questões no âmbito do discurso curricular: o que é cultura afro-brasileira; qual o conceito de cultura que se deseja pôr em funcionamento; quais séries discursivas
sobre cultura afro-brasileira se quer na experiência curricular; com que abrangência e diversidade
a presença negra na cultura brasileira pode ser incluída em um currículo da Educação Básica; quem
vai selecionar os textos literários; quais os vários ângulos não apenas da negritude das expressões
culturais brasileiras, mas também da presença de negros e mulatos em nossas artes e letras, como
diz Heloisa Buarque de Hollanda, a partir da leitura do texto A mão afro-brasileira: significado da
contribuição artística e histórica, organizado por Emanoel Araújo e publicado no contexto das realizações em torno do Centenário da Abolição da Escravatura no Brasil.
Advirto que não tenho como responder a essas questões. O que apresento constitui uma aproximação com a temática a partir da experiência como professora das disciplinas Teoria Curricular, Análise
do Discurso, e Educação, Sociedade e Cultura e, também, de pesquisas que desenvolvo, assim como
de pesquisas de graduandos, mestrandos e doutorandos que tenho acompanhado. Nesse sentido,
apresento uma breve discussão sobre a relação entre currículo e literatura afro-brasileira na seção
escolarização da literatura afro-brasileira, para, em seguida, tecer algumas considerações finais.
A escolarização da literatura afro-brasileira
No Brasil, o discurso da diferença cultural produziu-se num contexto histórico de exacerbação de dizeres
do Outro, tanto nos registros dos povos europeus (escritos e pinturas) como nos registros sobre formas
singulares de acolhimento do Outro ocidental. Há registros também de resistência das populações nativas ao utilizarem rituais de antropofagia, ritos “pagãos” como formas de estranhamento a relações marcadamente injustas, opressoras e de violência, rituais de sincretismo religioso e formas de organização
política de resistência das quais as sociedades dos Quilombos são um exemplo, o que nos faz afirmar
que a construção das diferenças culturais se dá em processos permanentes de luta política e cultural.
Entendemos que a epistemologia da colonização sofreu transformações significativas condicionadas por processos sociais, políticos, econômicos e culturais dos séculos mais atuais, em particular a
partir do século XIX, com a consolidação dos dispositivos da sociedade disciplinar como as ciências,
a escola e o próprio currículo. Entretanto, podemos dizer que há uma epistemologia colonial que,
em sua regularidade enunciativa, mantém-se, isto é, está presente no campo curricular no âmbito
das relações entre saberes, nas formas de inferiorização: dos emigrantes do campo para a cidade;
das mulheres; dos homens e mulheres de cor; dos homens e mulheres em suas orientações sexuais
diferentes do que está autorizado como relações normais; dos povos indígenas.
Nessa perspectiva, ressaltamos a luta cultural que se dá em diferentes momentos em confronto com
a epistemologia colonial predominante no Brasil. Nos anos 1920 emergem uma epistemologia estética anticolonial e novos objetos de saber e novas formas de enunciação da diferença cultural da alma
arlequinal do povo brasileiro e o sentimento de que “só a antropofagia nos une” (ANDRADE, 1928:3).
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No campo específico da educação, nos anos 1960, os enunciados da pedagogia do oprimido no discurso de Paulo Freire trazem a problematização da cultura e da possibilidade do diálogo cultural. Assim,
Freire constrói a primeira versão no campo da educação para problematizar a relação currículo-cultura
na perspectiva da teorização crítica e assim possibilita a germinação teórica nos discursos pela educação que consideram a diferença cultural seja de raça, gênero, etnia, sexualidade, 30 anos depois.
Com efeito, nos anos mais recentes, sob o signo do diálogo cultural e da negociação, o jogo de poder
e o desejo de melhoria do humano a partir da sua relação com o conhecimento e a democracia de
saberes consolidam a reflexão da diferença cultural. Emerge com mais força uma gramática específica que associa a diferença cultural sustentada no discurso dos Direitos Humanos e da Democracia
– o que confere a esse debate os arranjos históricos da modernidade, em particular as ideias de
emancipação, razão, liberdade, autonomia, democracia, direitos humanos – e arranjos discursivos
do pensamento pós-moderno que realçam as culturas locais, a contingência e o sujeito descentrado.
Emergem também temáticas no campo das ciências humanas, versões discursivas em disputa sobre
o dizer da diferença cultural.
No contexto dessas temáticas, vamos identificar implicações nos artefatos curriculares, particularmente nas políticas culturais, para o seu uso, ou seja, o discurso curricular orienta o modo de tratamento do que se escreve e do que se lê na escola. De certo modo, o monoculturalismo é problematizado e possibilidades de um debate sobre o currículo multicultural ou intercultural entram na
pauta da escolarização.
Essas proposições, associadas às políticas públicas educacionais, em particular a legislação, têm efeito direto na linguagem literária. Entre esses efeitos, está a inclusão da literatura afro-brasileira no
currículo escolar.
No âmbito desse currículo, a entrada da literatura afro-brasileira pode ter pelo menos três tons: a literatura afro-brasileira como uma habilidade para convivência no mundo “civilizado”; uma literatura afro-brasileira para a transformação (mediante uma análise da dinâmica de classe); uma literatura afro-brasileira
para pensar a experiência como um empreendimento de dessubjetivação, ou seja, uma literatura que
faça pensar a historicidade própria da experiência no modo de dizer foucaultiano (CASTRO, 2009).
O primeiro tom está associado ao que se reconhece como multiculturalismo fundado na perspectiva
compensatória: por exemplo, na visão compensatória é reconhecida a multiculturalidade de alunos
e apregoada a tolerância na convivência com o diferente e na valorização das culturas locais. Esse
tipo de discurso tem engendrado proposições de educação face ao multicultural que, na visão de
Canen et al., (2000), podem ser vistas como um multiculturalismo preservacionista; ou, no dizer de
Leite (2000), como um multiculturalismo passivo; ou ainda, na perspectiva de Silva (2000), como
uma atitude multicultural liberal ou humanista. Shäffer (1999), apoiada na concepção de diferença
de Deleuze, alerta-nos para as consequências de se tomar a diferença como valor absoluto, atribuindo-lhe um valor em si mesma, como se ela fosse “boa per si”, pois, por um lado, “dessa crença para
o pensamento conservador, há um espaço muito curto” (p. 24), e, por outro, esse modo de tratar a
diferença com um valor absoluto pode terminar por dar origem a “guetos”, contribuindo para processos de exclusão social. Nesse modo de pensar e atuar, a literatura afro-descendente é um concessão da parte de quem tolera o outro. Por outro lado, o mercado editorial no campo da educação
também tem ganhos monetários e o reconhecimento de suas ações “politicamente corretas”.
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Uma literatura afro-brasileira para transformação (pela análise da dinâmica de classe) também é um
dos tons desse debate. No Brasil, a exemplo do que ocorre em diversos países, quando se fala dos
grupos sem escolarização, está a se falar (em sua maioria) de mulheres, pobres e afro-brasileiras
e/ou descendentes de grupos indígenas, fato que revela que os processos de exclusão social, em
sua maioria, dão-se de forma multifacetada. Esse fato confere a validade às versões da teorização
crítica, que defendem que “é preciso desenvolver uma opção por uma visão do oprimido em muitos níveis: gênero, orientação sexual, raça, idade, classe, nacionalidade e grau de limitação física”
(McLAREN, 1993:37). Parece ser interessante que seja considerada a problematização proposta por
Freire segundo a qual “a compreensão crítica das chamadas minorias de sua cultura não se esgota
nas questões de raça e de sexo, mas demanda também a compreensão nela do corte de classe”
(FREIRE, 1998:156), mesmo que em seu discurso o educador privilegie o conceito de classe ao afirmar: “[...] sem, contudo, o corte de classe, eu, pelo menos, não entendo o fenómeno racial nem o da
sexual, em sua totalidade, nem tampouco o das chamadas minorias em si mesmas” (p. 37).
Para Silva (2000), autores como Homi Bhabha e Edward Said contemplam em suas análises, tal como
as versões pós-modernas e pós-estruturalistas, “o questionamento das relações de poder e as formas de conhecimento que colocaram o sujeito imperial europeu na sua actual situação de privilégio”
(p. 131), reconhecendo que essa versão pode ser um “importante elemento no questionamento e
crítica dos currículos centrados no chamado cânone ocidental das grandes obras literárias”.
Outras perspectivas no campo da literatura podem contribuir para se pensar o uso crítico da literatura e sua relação com as subjetividades dos sujeitos da educação. Nesse sentido, diz Machado (2000)
que pensar a literatura em sua função de arrancar o sujeito de si mesmo, num empreendimento de
dessubjetivação, significa, também, a possibilidade de transgressão e de profanação, pois é na experiência literária que o jogo da transgressão aparece como possibilidade de contestação da cultura.
A entrada da literatura afro-brasileira no âmbito do currículo escolar, em termos de pensar a experiência de si como um empreendimento de dessubjetivação, requer, portanto, uma visão das práticas curriculares como operadoras de processos de subjetivação. Recorremos aqui a Agamben, quando este diz:
Eu penso que tão interessantes como os processos de subjetivação são os processos de dessubjetivação.
Se nós aplicamos também aqui a transformação das dicotomias em bipolaridades, poderemos dizer que o
sujeito apresenta-se como um campo de forças percorrido por duas tensões que se opõem: uma que vai
até a subjetivação e outra que procede em direção oposta. O sujeito não é outra coisa que o resto, a não-consciência desses dois processos. Está claro que serão as considerações estratégicas aquelas que decidirão, a cada momento, sobre qual polo fazer a alavanca para desativar as relações de poder, de que modo
fazer jogar a dessubjetivação contra a subjetivação e vice-versa. Letal é, por outro lado, toda política das
identidades, ainda que se trate da identidade do contestatário e a do dissidente. (AGAMBEN, 2006:131).
Aquelas práticas curriculares atuam em redes de autoridade cultural instituídas nos rituais da escola. Se o currículo de cultura branca constituiu-se pela exclusão da cultura negra como alteridade, a
literatura em direção à cultura negra não seria uma forma de ultrapassar fronteiras e de possibilitar
a problematização das experiências de si? Parece-nos ser o caso de trabalhar com essa última possibilidade, acolhendo o discurso literário como um enunciado aberto a diversos sujeitos, como um
enunciado em sua proximidade com o mundo e, ao mesmo tempo, um enunciado que responde a
exigências específicas ao interior do discurso da arte.
Sabe-se que a seleção da literatura afro-brasileira na escolarização por meio do currículo passará
a incorporar as regras do discurso curricular, a gramática própria específica do currículo. Contudo,
sendo a cultura um sistema de significação realizado – o que faz com que cada campo discursivo
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tenha o seu sistema de significação –, a própria literatura leva para o currículo a sua singularidade
de função poética. Nesse sentido, nos associamos a Larossa para dizer que o texto literário não corre
o risco de subordinação ao logos pedagógico (LAROSSA, 1998). Larossa, tal como Deleuze, defende
que “a diferença está ente dois logos pedagógicos: o que faz pensar e o que transmite o já pensado”
(p.159). Ele nos convida a olhar, como Deleuze, para uma relação sensível e apaixonada com aquilo
que faz pensar, o pensamento como aprendizagem. Propõe Larossa, na pedagogização do texto literário, uma seleção dos textos que privilegie sua multivocidade, sua plurissignificatividade.
Entretanto, defendo um texto literário afro-brasileiro que tenha a força do texto escrevível de que
nos fala Roland Barthes, um tipo de texto no qual o leitor ocupa o lugar de coprodutor, e não de consumidor. Nesse tipo de texto, o leitor entra plenamente no encantamento do significante, na volúpia
da escritura (BARTHES, 1992). Assim, a posição que tomo neste texto sobre o modo de entrada da
literatura afro-brasileira no currículo escolar, de certa maneira, faz parte da rede discursiva sobre o
que é a literatura afro-brasileira.
Sabemos que há um debate sobre o que é a literatura afro-brasileira. Para Brose (2008), as noções de
literatura afro-brasileira e de literatura negra são noções em construção no país, e os critérios para as
seleções de textos literários afro-brasileiros também são variados: o da representação do negro no
texto, seja na poesia, em peças teatrais e em narrativas, desde os relatos acerca do Novo Mundo até
a literatura contemporânea; o da cor da pele do escritor, que poderia provocar a expressão de uma
perspectiva negra e brasileira, caso o escritor assumisse publicamente a sua negritude. São os escritores brasileiros, diz a autora, que se nomeiam escritores negros e que proclamam a literatura negra,
isto é, afro-brasileira, ressaltando sua africanidade; são os intérpretes e porta-vozes dos anseios, dos
sentimentos e ressentimentos da maioria anônima dos brasileiros de origem africana (BROSE, 2008).
Fonseca (2006), respondendo ao debate sobre literatura negra e literatura afro-brasileira, afirma
que a expressão “literatura afro-brasileira” parece seguir uma tendência que se fortalece com o
advento dos estudos culturais. O uso de expressões como “afro-brasileiro” e “afrodescendente”
procura diluir o essencialismo contido na expressão “literatura negra” e transpor a dificuldade de
se caracterizar essa literatura sem assumir as complexas discussões suscitadas pelo movimento da
negritude em outro momento histórico. Para a autora, embora sejam privilegiadas visões sobre o
Brasil “mulato”, “moreno”, “não branco”, as discussões revelam a dificuldade de a cultura brasileira
lidar com a sua própria imagem. Por isso, a questão posta pela literatura espera ainda uma resposta
a ser dada pela definição do que somos: negros, afro-brasileiros ou afro-descendentes?
O currículo, numa perspectiva cultural tal como estamos tratando aqui, vai associar a temática da
cultura afro-descendente a uma formação discursiva, o que significa dizer que se trata de um discurso em uma dispersão; ou seja, um conjunto de enunciados sobre o que é literatura afro-brasileira em
sua regularidade – em uma ordem, correlações, posições e funcionamento entre os objetos, tipos de
enunciação, conceitos, escolhas temáticas, tal como concebidos por Foucault sobre uma formação
discursiva (FOUCAULT, 1995).
Dentro dessa dispersão, aproximo-me do enunciado que afirma que:
a literatura negra se define, assim, na medida em que o(a) autor(a) negro(a) tor­na-se sujeito de seu próprio discurso. Deixa de ser personagem secundário, deixa de ser o “ele/ela” para ser protagonista, tornando-se o “eu” que tem a posse de suas falas. Mas a passagem do ser o “outro” na produção literária para
um “eu” requer necessariamente a experiência histórica do ser negro. (HATTNHER, 2009:79-80).
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Essa aproximação ocorre não porque entendemos que a literatura afro-brasileira dê conta de expressar a realidade do estar sendo negro ou negra na sociedade. Nesse sentido, seguimos Borges (apud
ANTUNES, 1982:11) para dizer que “nenhuma linguagem é capaz de expressar a realidade em sua
integridade”; ou seja, Borges, em sua poética, reconhece “a inutilidade do esforço para transferir ao
plano do discurso literário toda a realidade” (ANTUNES, 1982:19). Por outro lado, não vamos pensar
na literatura afro-brasileira como algo destinado, por sua natureza, a desmantelar os dispositivos
de poder. A literatura é um discurso de poder como outro qualquer e, como um discurso, funciona
como “elementos ou blocos táticos no campo das correlações de força” (MACHADO, 2008:127).
Outro aspecto que nos interessa levantar é que a literatura afro-brasileira está numa constelação
discursiva na qual o tema do racismo é o foco. Na perspectiva do nosso texto, não é o racismo
individual que levaria a uma proposta curricular centrada numa simples terapêutica de atitudes
individuais consideradas erradas. A proposta curricular que estou sugerindo deve centrar-se na discussão das causas institucionais, históricas e discursivas do racismo e das subjetividades. Estou me
referindo ao racismo de Estado:
Um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre seus próprios elementos; sobre seus
próprios produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social. (FOUCAULT, 2002:73).
Como defende Silva (2000), a questão do racismo não é uma questão de verdade ou falsidade, mas
uma questão de representação, de inscrição processada em uma relação de poder. Nesse sentido, é
preciso sair de uma abordagem essencialista da questão da identidade racial.
A perspectiva pós-colonial tem nos ajudado a problematizar, no campo literário, as obras escritas
do ponto de vista dos dominadores – narrativas que constroem o Outro colonial como objeto de
conhecimento e sujeito subalterno – e as obras escritas por pessoas pertencentes aos grupos colonizados – narrativas de resistência ao olhar e poder imperiais. Os estudos de Fanon (1975, 1979) são
exemplos relevantes dessa perspectiva pós-colonial.
A nossa tarefa é, portanto, a de estarmos atentos a formas aparentemente benignas de representação do Outro nos currículos – as formas superficialmente vistas como “multiculturais”, pelas quais
o Outro é “visitado” de uma perspectiva do turista – ou a “um tipo de currículo que trabalha esporadicamente e de forma fragmentada temas da diversidade cultural” (SILVA, 2000:134); ou, ainda,
como afirma Leite (2002:143), a uma organização curricular que permita promover “um olhar do
‘diferente’ como algo de estranho e exótico”.
Conclusão
Entendemos que o espaço conquistado no campo das lutas culturais é uma realidade positiva não
pelo que pode significar como ponto de chegada, mas, principalmente, porque representa uma nova
etapa nas lutas culturais, agora não apenas para a conquista dos espaços no processo de escolarização, mas, também, para manter uma vigilância permanente nas formas de regulação no campo da
diferença cultural. A luta cultural que acontece agora vem sob uma exigência: os saberes e poderes
dos novos atores sociais que entram em cena. Nesse sentido, seguimos Hollanda (2002) quando constata a pluralidade de vozes e de dicções multiculturais que se firmou nos últimos anos do século XX:
dicções étnicas, etárias, regionais definidas por preferências sexuais, políticas, de classe, comportamento,
‘atitude’, e mais uma gama infinita de posicionalidades, mostram não apenas a vitória política das mino59
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rias mas também um fato novo e de insofismável importância: entra agora em cena a presença de novas
competências e saberes definindo outros códigos e valores no circuito da criação e circulação dos produtos literários. (HOLLANDA, 2002).
Para finalizar o texto, recorro ao meu autor predileto do momento, Will Eisner, em sua emocionante
novela gráfica Ao Coração da tempestade, na qual diz sobre o antissemitismo:
Podemos questionar se tudo isso prova a existência de um novo mundo, livre do preconceito, ou se simplesmente evidencia que os mesmos ódios ancestrais continuam dentro de nós. Prefiro me apegar à esperança de que as crianças criadas no mundo de hoje não podem mais assumir com tanta facilidade uma
atitude de superioridade social, não têm mais permissão para discriminar ninguém (EISNER, 2010:9).
60
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O encontro com o mundo da leitura: Graciliano Ramos e as memórias
de infância
Humberto Miranda1
Resumo
O artigo O encontro com o mundo da leitura: Graciliano Ramos e as memórias de infância recupera a memória de si que
tem o grande autor da literatura brasileira. Tomando como ponto de partida o livro Infância, Graciliano Ramos, de forma
narrativa, produz uma memória traumática, ressentida, onde as imagens do pai foram construídas como aquele que
ensinava a partir da lógica da palmatória, que utilizava do castigo físico como forma de ensinar. Analisando os relatos de
memórias de Graciliano torna-se possível adentrar no mundo da infância do escritor, nas nuances de seu convívio social,
a concepção de educação que lhe era própria, e como foram construídas as práticas de alfabetização, daquele momento
sócio-histórico.
Palavras-chave: Graciliano Ramos, Infância, narrativa de si, educação.
Abstract
The article the date with the world of reading: Graciliano Ramos and childhood memories reclaims the memory that has
the greatest author in Brazilian literature. Taking as a starting point the book Childhood, Graciliano Ramos, of narrative
form, produces a traumatic memory, resentful, where images of the father were built as one who taught from the logic
of paddling, which used physical punishment as a way of teaching. Analyzing the reports of memories of Graciliano
becomes possible to enter in the world of the writer’s childhood, the nuances of your social conviviality, the conception
of education that was their own, and how they built the literacy practices of socio-historical moment.
Keywords: Graciliano Ramos, Childhood, narrative of themselves, education
1 Doutor em História Professor do Departamento de Educação/UFRPE
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Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-se o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou – e
o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de letras,
ia jogar solo. À tarde pegava um côvado, levava-me para a sala de visitas – e a lição era tempestuosa. Se
não visse o côvado, eu ainda poderia dizer qualquer coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedaço de madeira,
negro, pesado, da largura de quatro dedos. (RAMOS, 2008: 111)
No “teatro da memória”, Graciliano Ramos constrói lembranças de si, do tempo de infância e da sua
iniciação no universo da leitura. Ao produzir as imagens do menino que foi obrigado a ler, ele constrói cenas cotidianas, trazendo as lembranças do tempo em que o seu pai procurou, mesmo “sem
vocação para o ensino”, alfabetizá-lo a partir da “pedagogia do côvado”. Ao narrar seu encontro com
o mundo da leitura, o escritor construiu um relato permeado por cenas de tortura e de dor.
O côvado, instrumento de medição utilizado por diferentes civilizações antigas, que tinha como comprimento o antebraço, da ponta do dedo médio ao cotovelo, se tornou uma ferramenta punitiva utilizada para as práticas de castigo físico. As cenas dos maus-tratos marcaram o seu primeiro contato
com as letras, com as sílabas e com as palavras.
Graciliano Ramos nasceu na cidade de Quebrangulo, no estado de Alagoas, em 27 de outubro de
1892. Filho de Sebastião Ramos e de Maria Amélia Ferro Ramos. O seu tempo de criança foi vivido
entre os interiores de Alagoas e Pernambuco. Na sua trajetória profissional foi comerciante, funcionário público e se tornou um dos mais reconhecidos escritores brasileiros.
Em 1938, Graciliano lançou o romance autobiográfico Infância, livro de memórias do seu tempo de
menino. Este romance foi dividido em micro-capítulos, que narram o cotidiano de uma criança e o
universo que a norteia. Este livro representa um importante documento para a escrita da história da
infância. Através da análise das memórias de Graciliano, pretendo historicizar como foram construídas as práticas de alfabetização no Brasil oitocentista.
Em Infância, Graciliano Ramos constrói uma narrativa memorialística do seu encontro com a leitura,
elaborando “memórias de si”, onde ele se torna “sujeito e objeto” da experiência narrada, buscando um
enredo marcado por uma “sequencia de acontecimentos com significado e direção”. Como afirma Pierre Bourdieu, “produzir uma história de vida” é tratar “a vida como uma história” (BOUDIEU, 2006: 185).
Desse modo, a narrativa de Graciliano se apresenta como uma fonte para escrita da história. Ela traz
consigo a construção de um passado, elaborado a partir das memórias do romancista. A partir da
análise do discurso construído nos relatos de memórias é possível debater como foram construídas
as relações sociais e políticas, vivenciadas nos sertões do Brasil oitocentista.
Analisar os relatos de memórias de Graciliano me permitiu adentrar no mundo da infância do escritor, um mundo marcado pelas práticas adultocêntricas que, nas nuances do convívio social, produziram um sentido de infância, uma concepção de educação, e como foram construídas as práticas de
alfabetização, daquele momento sócio-histórico. Como fala o historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior, nos dias de hoje a relação entre a literatura e a história é bastante estreita. Ao analisar
as práticas historiográficas contemporâneas, ele afirma:
Desde que o estruturalismo e a chamada virada linguística colocam a linguagem e a narrativa no centro
das discussões, no campo das ciências sociais, os historiadores vêm se debatendo com o fato de que
escrevem, de que utilizam a linguagem, de que narram e de que a narrativa é formada através da qual
constroem a própria noção de temporalidade e, portanto, articulam o próprio passado e seus eventos.
(ALBUQUERQUE JR, 2007: 43).
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Para Ramos, o encontro com o mundo da leitura foi marcado pelas lembranças do côvado, que o
reprimia; que o fazia silenciar diante da postura autoritária do pai. O ato de ler e a prática de ensinar
a ler podem ser considerados práticas humanas e sociais, que foram sendo construídas e reconstruídas ao longo de tempos e espaços. No tempo de infância de Graciliano Ramos, o “ensinamento das
primeiras letras” poderia ser iniciado em casa e era nesse lugar físico e social que ele teve o contato
com o mundo da leitura.
Ao narrar tal experiência, Ramos produz uma memória traumática, ressentida, onde as imagens do pai
foram construídas como aquele que ensinava a partir da lógica da palmatória, que utilizava do castigo
físico como forma de ensinar. Ao lembrar-se dos momentos do ensinamento da leitura, ele relata:
Sozinho não me embaraçava, mas a presença do meu pai emudecia. Ele endureceu algumas semanas, antes
de concluir que não valia a pena tentar esclarecer-me. Uma vez por dia o grito severo me chamava à lição.
Levantava-me com o baque por dentro, dirigia-me à sala, gelado. E emburrava: a língua fugia dos dentes,
engrolava as consoantes difíceis: o T era um boi, o D uma peruinha. Meu pai rira da inovação, mas retomara
depressa a exigência e a gravidade. Impossível contentá-lo. E o côvado batia nas mãos. (RAMOS, 2008: 112).
A partir de seus relatos sobre a infância, a casa não representava o local de aconchego e carinho e a
relação entre pai e filho foi construída a partir de cenas dos maus-tratos. Ao analisar o processo de
alfabetização de Graciliano Ramos, Ilca Vieira de Oliveira afirma que o menino Graciliano conheceu
as letras “através da dor”. O encontro com o mundo das letras foi narrado a partir da dor, quando “a
leitura aparece como um exercício de punição, o menino não consegue superar o medo de cometer
erros, pois sempre haveria castigos para ele” (OLIVEIRA, 2008, 327).
Ao rememorar como foi o processo de alfabetização, ele fala da dor, do peso do côvado, que atordoava e “emudecia” ao ser chamado “à lição”. Graciliano Ramos constrói uma memória da alfabetização, ele buscou pintar com cores fortes o autoritarismo patriarcal. As relações familiares foram
pintadas com a cor da aridez, que permeavam as relações entre pais e filhos, quando o poder do pai
aparece de forma evidenciada.
As lembranças de Ramos retratam o tempo em que o processo educacional das crianças era praticado a partir da lógica da palmatória. Como lembra o historiador Philippe Áries, tal prática foi
amplamente reproduzida no período medieval, quando a sociedade ocidental estabeleceu “castigo
corporal” como instrumento pedagógico, que deveria ser aplicado contra aqueles que desafiavam
os padrões disciplinares, as normas de conduta, estabelecidos no mundo escolar. Mesmo sendo
questionada no período na modernidade, a prática era bastante utilizada na educação das crianças.
Debruçar-se sobre as memórias de Graciliano, fez-me analisar a sobre a educação domestica praticada nos sertões do Brasil, nos fins do século XIX. Para o historiador Durval Muniz de Albuquerque
Junior, pensar as práticas educacionais neste espaço e tempo é refletir sobre as relações de gênero,
quando a família era marcada por papeis definidos entre os homens e as mulheres, sendo a figura
do pai era considerada central na educação do filho homem. Esta forma de pensar a família permite
problematizar a construção das relações entre pais e filhos. Ao analisar tais relações, o historiador
Durval Albuquerque Junior afirma que:
A autoridade absoluta do pai, e em torno do seu poder, vontades e explicativas, tudo girava. Pai, que era para
ser respeitado, que para ser visto como homem de verdade, não podia voltar para casa afrontado. Nem mesmo a esposa aceitava a fraqueza do marido. Uma família que definia rigorosos e polares papéis para homens
e mulheres, mundos que começaram a se separar na mais tenra infância. (ALBUQUERQUE JR, 2003: 243).
Desse modo, ao narrar cenas dos maus-tratos, Graciliano construiu imagens do cotidiano de uma
família marcada pelos costumes do patriarcado. As imagens construídas são permeadas pela autori65
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dade paterna demarcadora de um poder sobre a vida e o corpo do menino. Pai que buscava ensinar
a partir da lógica da palmatória, que se revelava como um instrumento para prática do castigo físico.
Para além das cenas dos maus-tratos, Graciliano ressalta como o seu processo de alfabetização foi
marcado pelo tecnicismo, pelo uso das cartilhas do ABC, pela repetição mecânica das frases que
deveriam ser memorizadas. Nas suas lembranças, ele constrói uma crítica ao método de ensino.
Afirmando que as lições representavam o “mastigar os conceitos sisudos”, como: “Preguiça é a chave da pobreza” ou “Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém”.
As memórias de Graciliano me fizeram investigar como foram construídas a “escolarização da leitura” e as práticas de alfabetização construídas no fim do século XIX. Ao estudar/pesquisar a história
da leitura e da alfabetização, Razzini afirma que a antiga alfabetização era marcada pela leitura soletrada das palavras, quando o aluno era levado a memorizar letras, sílabas e palavras das chamadas
“cartas de ABC”. A historiadora ainda afirma que:
Antes da Proclamação da República, a leitura escolar havia amealhado como um patrimônio moral dos contos,
fábulas e provérbios, legitimadas pela religião, cujo legado se perpetuaria nos livros didáticos de literatura infantil e atravessaria o século XIX e o século XX, resistindo na escola até a década de 1960. (RAZZINI, 2009: 108)
No capítulo Leitura, Graciliano buscou pintar com cores mais fortes as lembranças da dor. Ao relembrar as cenas do processo de alfabetização, produziu uma memória permeada por ressentimentos.
Ao relembrar das lições do ABC, ele afirmou: “se duas letras estivessem juntas, o martírio se reduziria, pois, libertando-me da primeira, a segunda acudia facialmente” (RAMOS, 2008: 112-113). Em
forma de poesia, Graciliano narrou a dor, afinando que:
As pobres mãos inchavam, as palmas vermelhas, arroxeadas, os dedos grossos mal se movendo. Latejavam, como se funcionassem relógios dentro delas. Era preciso erguê-las. Finda a tortura sentava-me num
banco na sala de jantar, estirava os braços em cima da mesa, procurando esquecer as palpitações dolorosas. (RAMOS, 2008: 113)
Para o protagonista desta história, lembrar-se da infância foi falar da dor, foi narrar o sofrimento.
Para Arlette Farge, “a fratura que a dor formou é também um laço social, e os indivíduos o gerem
de múltiplas maneiras”. Desse modo, afirma a autora, ao buscarmos refletir sobre a dor do outro,
“sobre esses momentos de sofrimento e sobre essas palavras em que se exprime a dor, é preciso não
acreditar de antemão que é o excesso que se visita, logo o extraordinário, o histérico, esse dejeto
inevitável de toda dificuldade social” (FARGE, 2011: 17).
Na produção das lembranças do tempo de criança, dedica um espaço para narrar o seu encontro
com a escola. E, ao lembrar daquele momento da vida, afirmou:
A notícia veio de supetão; iam meter-me na escola. Já me haviam falado disso, em horas de zanga, mas
nunca me convencera de que realizassem a ameaça. A escola, segundo informações dignas de crédito, era
um lugar onde enviavam as crianças rebeldes. (RAMOS, 2008: 118)
A escola – “lugar das crianças rebeldes” -, foi descrita como um espaço da ordem. Nas memórias de
Graciliano, a escola era o lugar onde as crianças que desafiavam a ordem estabelecida eram disciplinadas. Um espaço onde a instrução era praticada sob o comando de um professor possuidor de
poderes. De lá, os meninos “trelosos” eram domesticados.
É importante entender o discurso de Graciliano Ramos a partir da sua relação com a História da Educação. O cotidiano pedagógico dos primeiros grupos escolares foi marcado por práticas de controle
sobre o comportamento das crianças. De acordo com Moysés Kuhlmann Junior, as atividades eram
marcadas por regras específicas, que deveriam ser repetidas diariamente, tais como: “a entrada
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(com canto e saudação); o repouso, o recreio, a refeição, os pensamentos, méritos e cantos de despedida; e a saída”. (KUHLMANN JUNIOR, 2011:121)
Nesse sentido, a escola era vista como o lugar da instrução e do controle sobre o cotidiano das
crianças. Ler e escrever – assim como aprender as quatro operações matemáticas -, fazia parte da
proposta pedagógica dos primeiros grupos escolares. Para além da instrução, as escolas também se
tornaram um espaço para a reprodução de técnicas voltadas para o controle sobre o comportamento das crianças, que deveriam se tornar dóceis e úteis à nação.
Ao construir lembranças da escola, ele narrou:
Achava-me numa vasta sala, de paredes sujas. Com certeza não era vasta, como presumi: visitei outras semelhantes, bem mesquinhas. Contudo pareceu-me enorme. Defronte alargava-se um pátio, enorme também, e
no fim do pátio cresciam arvores enormes, carregadas de pitombas. Alguém mudou as pitombas por laranjas. Não gostei da correção: laranjas, provavelmente já vistas, nada significavam. A sala estava cheia de gente.
Um velho de barbas longas dominava uma negra mesa, e diversos meninos, em bancos sem encostos, seguravam folhas de papel e esgoelavam-se: - um b com a – b,a: ba; um b com um e – b, e:be. (RAMOS, 2008: 10)
Nesse trecho, Graciliano reproduz as imagens dos espaços escolares. As paredes, o pátio, a sala de
aula... Tudo parecia grande, para o menino pequeno. Na construção memorialística desses espaços,
o narrador produz indícios de como foi produzida as relações sociais, onde o professor ocupava o
lugar central, onde os meninos reproduziam as lições do “b a ba”.
Mas, a escola também foi narrada como o espaço do encontro com o “outro”; com o “menino corajoso”, que “resisti, debatia-se, mordia, agarrava-se à porta e urrava, feroz”. Ao lembrar-se do menino, o “bicho brabo”, afirmava que não tinha a mesma coragem, haja vista que tinham o “domado”.
Afirmava que: “na civilização e na fraqueza, ia para onde me impeliam, muito dócil, muito leve,
como os pedaços da carta do ABC, triturados, soltos no ar” (RAMOS, 2008:120)
Foi na escola que Graciliano conheceu Dona Maria. Para ela, ele dedicou um capítulo de sua autobiografia. Quem foi Dona Maria? A mulher que ensinou ao Graciano a ler, sem utilizar a palmatória.
Ao narrar sua relação com a professora, ele afirmava:
A mulher gorda chamou-me, deu-me uma cadeira, examinou-me a roupa, o couro cabeludo, as unhas e os
dentes. Em seguida abriu a caixinha branca, retirou um folheto:
- Leia
- Não sei senhora, respondi confuso.
Ainda não havia estudado letras finas, menores que as da carta de A, B, C. Necessário que esclarecessem
as dificuldades. Dona Maria resolveu esclarecê-las, mas parou logo, deixou-me andar só no caminho desconhecido. Parei também, ela me incitou a continuar. Percebi que os sinais miúdos se assemelhavam aos
barrões da carta, aventurei-me a designá-los, agrupá-los, numa cantiga lenta que a professora corrigia. O
exercício prolongou-se e arrisquei-me a perguntar até onde era a lição. (RAMOS, 2008:121)
Ramos levou-me a conhecer uma experiência marcada pelo prazer. A professora experiente o proporcionava o prazer de aprender, de conhecer as letras, as sílabas e as palavras. A lembrança da dor
foi substituída pelo prazer. O medo e o temor foi trocado pelo respeito e pela admiração.
De acordo com suas memórias, as práticas de alfabetização eram marcadas pelo contato direto com
a professora, que lhes dava uma atenção individual; que buscava ensinar-lhes o ABC com paciência
e dedicação. Como afirma os estudos de Marcia de Paula Gregório Razzini, os primeiros grupos escolares foram marcados pelo ensino individual, quando a professora “ensinava separadamente cada
aluno, um após outro, dedicando poucos minutos a cada um para a sua particular e lenta progressão
nos estudos, enquanto os outros deveriam trabalhar em silêncio” (RAZZINI, 2009:103).
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Desse modo, ao produzir as memórias do seu tempo de criança, Graciliano possibilita a análise de
como as práticas de alfabetização foram vivenciadas no seu tempo e espaço. Ainda de acordo com a
análise de Razzini, as formas de ensinar a ler no Brasil oitocentista foram marcadas pelo método que
valorizava a cultura oral, quando:
Entre as formas de se realizar a leitura (individual e coletivamente, oral e silenciosamente), percebe-se
uma atenção especial com a leitura oral e coletiva, possibilitada pelo ensino simultâneo. Considerando
que toda a turma passa a seguir silenciosamente a leitura oral de um aluno de cada vez, o professor tem a
oportunidade de corrigir posturas e diferentes acentos de fala, oferecendo a todos um modelo oral a ser
imitado. (RAZZINI, 2009:110)
Nesse processo, a professora ou o professor possuía um lugar central na construção do processo
de alfabetização. Ela(e) ditava as regras, as posturas, o modelo a ser seguido. Mas, como Graciliano
construiu as memórias de sua professora?
Ramos constrói imagens de Dona Maria como aquela que tinha a “alma de criança”, produzindo
memórias de como foi construída sua relação com a professora. Ao relembrar o cotidiano escolar, o
romancista afirmou:
Agora livre das emanações ásperas, eu me tranquilizava. Mas não estava bem tranquilo: tinha a calma precisa para arrumar, sem muitos despropósitos, as sílabas que se combinavam em períodos concisos. Dominava
os receios e a tremura, desejava findar as obrigações antes que estalasse a cólera da professora. Com certeza
ia estalar: impossível manter-se um vivente naquela serenidade, falando baixo. (RAMOS, 2008:122)
Ao “inventar” um cotidiano, Ramos constrói as lembranças da superação, da professora que o fez
aprender as primeiras letras a partir de outra forma de ensinar. Foi no convívio com Dona Maria
que o “medo” foi substituído pela “tranquilidade”, e essa relação o fez mudar a forma de observar o
mundo da leitura. Para o autor, o sentido das letras e das palavras foi modificado.
Ramos procurou em todo momento valorizar a sua relação com a professora, construindo lembranças saudosas de Dona Maria. Na construção das memórias, ele afirmou:
A escola exigia palmatória, mas não consta que o modesto emblema de autoridade e saber haja trazido
lágrimas a alguém. D. Maria nunca o manejou. Nem recorria às ameaças. Quando se aperreava, erguia o
dedinho, uma nota desafinava a voz carinhosa – e nós alarmávamos. As manifestações de desagravo eram
raras e breves. A excelente criatura logo se fatigava de severidade, restabelecia a camaradagem, rascunhava palavras e algarismos, que reproduzíamos. (RAMOS, 2008: 124)
Para Graciliano, a professora desafiava o sistema punitivo da escola. A imagem construída sobre
Dona Maria era da professora que não construía uma relação a partir do principio do autoritarismo,
que utilizava métodos de correção baseado no castigo físico. De acordo com o discurso produzido
pelo romancista, a professora estabelecia o respeito por meio da forma que se relacionava com as
crianças, contribuindo no processo de ensino-aprendizagem.
A escola construída por Graciliano era o espaço físico e social marcado pela pedagogia da violência. A análise social construída por Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, fala-nos dos abusos
cometidos contras as crianças nos espaços escolares. De acordo com Freyre, nas antigas escolas:
Houve verdadeira volúpia em humilhar a criança, em dar bolo em menino. Reflexo da decadência geral para
o sadismo criado no Brasil pela escravidão e pelo abuso do negro. O mestre era o senhor todo-poderoso. Do
alto da sua cadeira, que depois da independência tornou-se uma cadeira quase de rei, com a coroa imperial
esculpida em relevo no espaldar, distribuída castigos com ar terrível de um senhor de engenho castigando
negros fujões. Ao vadio punha de braços abertos; ao que fosse surpreendido dando uma risada alta; humilhava com chapéu de palhaço a cabeça para servir de mangação à escola inteira. (FREYRE, 2003: 507-508).
Para Freire, as humilhações e constrangimentos cometidos por professores e professoras, podem ser
analisados como práticas culturalmente construídas, que representam desdobramentos de uma socie68
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dade escravocrata. De acordo com seus estudos, muitas vezes a palmatória e a vara possuía “um espinho ou um alfinete na ponta, permitindo o professor furar de longe a barrigada perna do aluno”.
Mas, Dona Maria desafiava esta lógica tradicional. Através dos relatos do tempo da escola, Graciliano me permitiu conhecer “outras” práticas, possibilitando escrever “outra” História das práticas de
alfabetização. Para além da palmatória, que marcou a sociedade patriarcal - que acabava de abolir a
escravidão -, o cotidiano escolar nos sertões do Brasil oitocentista também poderia ser construído a
partir das relações afetivas. Saudoso, ele relembra:
Na paz misericordiosa os meus desgostos ordinários se entorpeceram, uma estranha confiança me atirava
à santa de cabelos brancos, aliviava-me o coração. Narrei-lhe tolices. Dona Maria escutou-me. Assim amparado, elevei-me um pouco. (RAMOS, 2008:127)
Debruçar-se sobre Infância, fez-me conhecer a construção de uma narrativa memorialística, Graciliano rende uma homenagem aos métodos utilizados por Dona Maria, construindo a imagem da professora como um adulto de referência, de uma pessoa que conquistou o seu respeito e da meninada.
Não foi o menino que narrou o seu encontro com o mundo da leitura, mas o adulto que construiu
a imagem do menino, produzindo um enredo, onde a dor e o prazer marcaram o seu processo de
alfabetização. Foi nesse processo, que o universo da casa se encontrou com o da escola, levando-me
a perceber que na construção dessas memórias, esses espaços se entrecruzam.
Graciliano faz-me refletir sobre as relações familiares, a cultura escolar e as práticas de ensino, construídas no interior do Brasil, no fim do século XIX. De uma alfabetização que se construía na escola,
mas que podia ser iniciada em casa. Lembranças marcadas pela cultura patriarcal, caracterizada pela
violência, mas também por pessoas que buscavam driblar as normas que foram tradicionalmente
estabelecidas. Memórias que nos faz conhecer “outras” histórias da leitura e das práticas dos leitores.
Historicizar as práticas de alfabetização é conhecer as múltiplas formas de conceber a importância
da leitura na vida das pessoas. Tais práticas devem ser analisadas a partir da perspectiva do tempo e
do espaço. Desse modo, ao narrar suas memórias de infância, do seu primeiro contato com o mundo
da leitura, Graciliano construiu um importante documento para a história da alfabetização no Brasil,
possibilitando pensar as práticas da alfabetização para além da análise das cartilhas.
Mas, Graciliano nos possibilita encontrar sua trajetória, percorrendo os caminhos que nos levam à
sua casa, às ruas das cidades pequenas dos sertões, e às escolas do interior do Brasil. Se o primeiro
encontro do escritor alagoano com o mundo da leitura foi marcado pela dor e pelo sofrimento, na
construção da sua trajetória ele conheceu o prazer de ler. Graciliano aprendeu ler as palavras e o
mundo, fazendo das palavras uma poesia e construindo as memórias de sua trajetória de vida.
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Referências
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. São Paulo: Edusc,
2007.
_____. Nordestino: uma invenção do falo. Maceió: Edições Catavento, 2003.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2ª Ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos
e abusos da História Oral. Rio de janeiro: Editora da FGV, 2006.
FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, 2003.
KUHLMANN JUNIOR, Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre:
Editora Mediação, 2011.
OLIVEIRA, Ilca Vieira.O menino e as Letras em Infância de Graciliano Ramos. Eutomia: Revista online de Literatura e Linguística. Ano 1, nº 1, p.322-331, 2008.
RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 2008.
RAZZINI, Marcia de Paula Gregório. Livros e leitura na escola brasileira do século XX. In: STEPHANOU, M. & BASTOS, Maria Helena Camara. Histórias e Memórias da Educação no Brasil V. III – Seculo XX. São Paulo: Editora Vozes, 2008. P. 100-113.
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Sob a ótica transdisciplinar: a mediação da leitura literária na educação infantil
Nelma Menezes Soares de Azevêdo1
Hugo Monteiro Ferreira2
Resumo
Neste artigo propomos identificar algumas características da transdisciplinariedade presentes na mediação da leitura
literária na Educação Infantil. Ao mediar uma atividade de leitura na educação infantil, o professor possibilita ao aluno
compreender o que está sendo lido, permitindo que se aproxime de novas perspectivas ou opiniões. O homem não mais
se satisfaz com ideias restritas, o que o leva a buscar sempre mais, ampliando a esfera do saber. A ideia de transdisciplinariedade pressupõe transpassar os limites colocados entre as disciplinas curriculares. Sendo assim, o presente texto
procura explorar questões relacionadas à mediação da leitura literária nas salas de educação infantil, baseada numa prática transdisciplinar. Espera-se, com esse estudo, contribuir com a investigação do tema proposto e provocar reflexões
para uma ação transformadora na educação.
Palavras-chave: Transdisciplinariedade. Educação Infantil. Mediação da leitura literária.
Abstract
In this paper, we propose to identify some of transdisciplinary features present in the mediation of literary reading in
kindergarten. To mediate a reading in the kindergarten, the teacher allows the student to understand what is being
read, allowing to approach new perspectives or opinions. The man no longer satisfied with restricted ideas, which leads
him to seek more and more, expanding the sphere of knowledge. The idea of ​​transdisciplinarity assumes trespass the
limits placed between curriculum subjects. Thus, this paper explores issues related to the mediation of literary reading
in child education, based on a transdisciplinary practice. It is hoped that this study contribute to the investigation of the
proposed theme and cause reflections for a transforming action in education.
Keywords: Cross-Disciplinarity. Childhood Education. Mediation of literary reading.
1 Aluna do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação, Culturas, Identidades – PPGECI (UFRPE/FUNDAJ)
2 Professor do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Professor permanente do Programa de
Pós-Graduação Educação, Culturas, Identidades - PPGECI (UFRPE/FUNDAJ)
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Para aprender é indispensável que hajam clima e ambiente adequados, constituídos por marco de
relações em que predominem a aceitação, a confiança, o respeito mútuo e a sinceridade, pois, como
afirma Zabala (1998), o ensino deve ser um processo de construção compartilhado de significados.
As relações adulto-criança e criança-criança pressupõem contextos comunicativos em que os conhecimentos são construídos e os afetos desenvolvidos, onde o aluno cresce e se constitui como sujeito da cultura que o cerca e o professor se recria profissionalmente. Entretanto, os indivíduos não
podem apenas se relacionar uns com os outros; os relacionamentos precisam conter interesse ou
envolvimento mútuo cujos pretextos se tornem significativos à criança.
Paulo Freire, nos seus estudos, afirma que um aspecto fundamental na educação é o diálogo. Para
que se tenha uma educação humana e transformadora, é necessário conceber uma ação dialógica.
Segundo ele, “o sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história” (FREIRE, 1996:154).
Pensar o ambiente de aprendizagem como espaço de convivência e de transformação onde se ensine a dialogar e refletir, é o que se propõe a transdisciplinariedade. Entretanto, conduzir a mediação educativa numa perspectiva transdisciplinar não é fácil, uma vez que é uma abordagem pouco
conhecida e consequentemente não trabalhada em sala de aula.
Nessa perspectiva, identificar e refletir sobre algumas características da transdisciplinariedade na
mediação da leitura literária na educação infantil constitui o principal objetivo deste estudo. O mundo da realidade literária, em que a palavra vem revestida de fantasia, de vitalidade lúdica, de componentes questionadores e críticos, é dotado de uma força comunicativa potente. Quando bem orientada, com ludismo e dinamicidade, ao invés de uma leitura impessoal, a leitura tem a possibilidade
de proporcionar uma percepção crítica da realidade.
As bases teóricas que sustentam este trabalho remetem à ideia de uma transdisciplinaridade pelo
viés do conceito de complexidade abordado por Morin (2005), estudos realizados por Nicolescu
(1999) e Moraes (2010). Já, a discussão sobre mediação da leitura literária e educação infantil será
fundamentada em Tébar (2011), Garcia (1992), Zilberman (2009) e Oliveira (2011).
Dessa forma, organizamos o trabalho em quatro partes. Na primeira, apresentamos algumas definições
sobre a transdisciplinariedade. Na segunda parte, a educação infantil como lugar propício para abordagem transdisciplinar é discutida, para então, na terceira parte, apresentarmos, através da mediação da
leitura literária, algumas características transdisciplinares. Na última parte trazemos nossas conclusões.
Transdisciplinariedade: diálogo para a construção do conhecimento
Os estudos sobre transdisciplinariedade são recentes. Contudo, vêm sendo discutidos em diferentes
áreas do conhecimento, sobretudo na área educacional.
É a partir de Piaget, em 1970, que o termo transdisciplinariedade foi apresentado publicamente
num Seminário Internacional, na Universidade de Nice, provocando uma série de pesquisas sobre
seu significado e as implicações por trás desta nova ideia. De acordo com os coordenadores do
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
CETRANS3, uma definição para a transdisciplinariedade seria:
A Transdisciplinariedade é uma teoria do conhecimento, é uma compreensão de processos, é
um diálogo entre as diferentes áreas do saber e uma aventura do espírito. A Transdisciplinariedade é uma nova atitude, é a assimilação de uma cultura, é uma arte, no sentido da capacidade de articular a multirreferencialidade e a multidimensionalidade do ser humano e do mundo.
[...] A transdisciplinariedade transforma nosso olhar sobre o individual, o cultural e o social, remetendo
para a reflexão respeitosa e aberta sobre as culturas do presente e do passado, do Ocidente e do Oriente,
buscando contribuir para a sustentabilidade do ser humano e da sociedade (CETRANS, 2002: 9-10).
Na construção histórica dessa nova teoria, A Declaração de Veneza foi o primeiro documento internacional elaborado que faz referência à transdisciplinariedade, em 1986. No ano de 1994, foi formulada a Carta da Transdisciplinariedade trazendo 14 artigos entendidos como princípios fundamentais
da transdisciplinariedade.
Os elementos norteadores para o exercício efetivo da transdisciplinariedade constam nos quatro pilares
para a educação do século XXI, elaborado por Jacques Delors, no Relatório para a UNESCO, em 1996. Esse
documento sustenta a importância de que o contato entre grupos diferentes (socialmente, economicamente, etnicamente, culturalmente, etc.) se faça num contexto igualitário e propõe, para isso, a existência de projetos comuns “que façam com que se ultrapassem as rotinas individuais e que permitam um
realce daquilo que é comum entre esses grupos, em vez das suas diferenças” (DELORS et al, 1996:85).
O profissional da educação deve ter em mente os quatro pilares da educação (aprender a conhecer,
aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser) e torná-los sua meta enquanto educador,
conferindo aos alunos a liberdade de pensamento, discernimento, imaginação e, sobretudo, sentimento,
humanizando o indivíduo. A transdisciplinariedade acrescenta outros dois pilares: aprender a participar
e aprender a antecipar. Mas é a partir do I Congresso Mundial da Transdisciplinariedade, realizado em
Arrábida, Portugal, e do I Congresso Internacional, realizado em Locarno, Suiça, é que foram definidos
os três pilares da metodologia transdisciplinar: Complexidade, Lógica do Terceiro Incluído e Níveis de
Realidade, cujo entendimento será fundamental para compreender a teoria da transdisciplinariedade.
A teoria da complexidade vem sendo estudada por Edgar Morin. Se pensarmos sobre a etimologia da palavra complexus, poderemos entender o significado em sua plenitude, visto tratar-se do que é tecido junto. É
o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações. São traços da ambiguidade, da incerteza.
Na área educacional esse pensamento não deve ser diferente. De acordo com Moraes,
Acreditamos que a complexidade como fator constitutivo da realidade e da vida é, portanto, inerente à
ação do sujeito, ao seu pensamento e ao objeto com que trabalha. [...] É a complexidade que nos ajuda
a melhor compreender e explicar a realidade educacional, esclarecendo-nos que esta não é apenas feita
de racionalidade e de fragmentação mas também de processos intuitivos, emocionais, imaginativos e
sensíveis. Isto porque, nós, seres humanos, somos também feitos de poesia e de prosa, de emoção, de
sentimento, de intuição e de razão, e tudo isto, orgânica e estruturalmente, é articulado em nossa corporeidade (MORAES, 2010: 183-184).
Isso nos faz refletir que, no pensamento complexo, as contradições têm espaço de acolhimento sem
preconceito. Na transdisciplinariedade todos os saberes são igualmente importantes, superando o
preconceito introduzido pela hierarquização do conhecimento e reconhecendo diferentes níveis de
realidade no processo cognitivo.
3 O CETRANS é o Centro de Educação Transdisciplinar da Escola do Futuro da USP (universidade de São Paulo) e seus coordenadores
são Maria F. de Mello, Vitória Mendonça de Barros e Américo Sommerman.
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Conforme a abordagem transdisciplinar, a Realidade é estruturada em diferentes níveis. Para Nicolescu
(2002), é necessário distinguir o significado das palavras Real e Realidade para um melhor entendimento sobre os diferentes níveis de Realidade e compreensão do axioma do terceiro incluído. Real
seria aquilo que é, enquanto Realidade diz respeito à existência na nossa experiência humana. O ponto
de vista transdisciplinar nos permite considerar uma realidade multidimensional e multirreferencial.
A lógica clássica dos diferentes níveis, de acordo com Nicolescu (1999:12) está fundamentada em três
axiomas: “1. O axioma da identidade: A é A; 2. O axioma da não-contradição: A não é não-A; 3. O axioma
do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (“T” de ‘terceiro’) que é ao mesmo tempo A e não-A.”
A compreensão do axioma do terceiro incluído, existe um terceiro termo que é, ao mesmo tempo,
A e não-A, é esclarecida quando a noção de níveis de Realidade é introduzida. “A lógica do terceiro
incluído nos diferentes níveis de Realidade induz a uma estrutura aberta da unidade dos níveis de
Realidade” (NICOLESCU, ibidem:52).
A Carta da Transdisciplinaridade adotada no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade
em 1994, em seu artigo 2º, informa que qualquer tentativa de reduzir a realidade a um único nível
regido por uma única lógica não se situa no campo da transdisciplinaridade.
Para Moraes (2010), devemos considerar a transdisciplinariedade como um princípio epistemológico para a reconstrução dos saberes capaz de superar fronteiras disciplinares na tentativa de um
conhecer mais global e de uma melhor compreensão da realidade, aquilo que está além dos limites
do conhecido ou das fronteiras estabelecidas. Ou, segundo Barbosa e Horn,
[...] o século atual inicia questionando a compartimentalização dos saberes e apontando a passagem de
um paradigma disciplinar para um interdisciplinar ou transdisciplinar ou, como afirmaria Morin, para a
religação dos saberes. Para resolver os complexos problemas que a humanidade construiu, como a pobreza, as epidemias, o terrorismo, o aquecimento global, é preciso que, cada vez mais, as disciplinas entrem
em conexão, compartilhem os seus conhecimentos, estabeleçam confrontos e abram suas fronteiras em
função da compreensão e da tomada de decisões (BARBOSA e HORN, 2008:24).
Nesta perspectiva, é importante não aceitarmos as simplificações e pensarmos a escola como espaço privilegiado para a aquisição, a problematização e o diálogo do conhecimento.
A Educação Infantil como espaço para abordagem transdisciplinar
No decorrer do tempo, as mudanças que a sociedade sofreu modificou a maneira de pensar o que é
ser criança e a importância que foi dada ao momento específico da infância. Em relação à educação,
algumas mudanças também ocorreram.
Durante muito tempo, a educação da criança foi considerada uma responsabilidade das famílias
ou do grupo social ao qual ela pertencia. E por muito tempo não houve nenhuma instituição responsável por compartilhar esta responsabilidade. Aos poucos, surgiram arranjos mais formais para
atendimento de crianças fora da família, em instituições privadas e públicas, devido a alguns fatores.
Em primeiro lugar, podemos citar a urbanização, a industrialização, a participação da mulher no mercado de trabalho e as modificações na organização e na estrutura da família contemporânea. Outro
fator seria o reconhecimento, pela sociedade, da importância da educação infantil.
Contudo, a integração da Educação Infantil no âmbito da Educação Básica, como direito das crianças e
suas famílias e dever do Estado, é fruto de muitas lutas desenvolvidas especialmente por educadores
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
que, ao longo dos anos, transformaram-se em ação concreta, legalmente legitimada, cumprindo, assim,
uma demanda social que incide sobre educação e cuidados para com as crianças do 0 aos 6 anos.
De acordo com o Plano Nacional de Educação, a educação das crianças menores de 7 anos tem uma
história de mais ou menos cento e cinquenta anos. A mobilização de organizações da sociedade civil,
decisões políticas e programas governamentais tem sido meios eficazes de expansão das matrículas
e de aumento da consciência social sobre o direito, importância e a necessidade da educação infantil.
Isto posto, o novo contexto educacional para a educação infantil requer estruturas curriculares abertas e flexíveis, que envolvam, também, sensibilidade e uma visão de criança como alguém capaz e
com direitos próprios. Para tanto, é preciso que se atenda ao IV princípio norteador das propostas
pedagógicas de educação infantil, visando a complexidade dos contextos em que as crianças vivem,
na sociedade brasileira, conforme descrito abaixo:
IV – Ao reconhecer as crianças como seres íntegros, que aprendem a ser e conviver consigo próprio, com
os demais e o próprio ambiente de maneira articulada e gradual, as Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil devem buscar a interação entre as diversas áreas de conhecimento e aspectos
da vida cidadã, como conteúdos básicos para a constituição de conhecimentos e valores (MEC, 1998:70).
Entretanto, a escola que temos, em sua maioria, não está preparada para lidar com a diferença, com
o novo. Como é repetitiva, não sabe transformar e criar segundo as necessidades emergentes, não
se projeta para o futuro.
A escola deve ser sensível à diversidade, pronta para trabalhar com realidades variadas, conforme Nicolescu (1999) aborda no Manifesto da transdisciplinariedade. Assim, introduzir na escola
de educação infantil um currículo apenas disciplinar, ou somente continuar mantendo-o, é seguir
na contramão da construção do conhecimento, em que conhecer é estabelecer um diálogo com as
diferentes interpretações, com as incertezas, refutar a verdade única.
Por consequente, será a função do professor, enquanto mediador, a de facilitar diálogos com os
saberes, respeitando-se a diversidade e as características de cada aluno, uma prática que certamente terá êxito através da leitura de textos literários.
A mediação da leitura literária e algumas características transdisciplinar
Antes de discorrer sobre o tema proposto, importa conhecer alguns autores que a princípio fornecem uma fundamentação conceitual sobre mediação. A partir do conhecimento de que o ritmo das
nossas aprendizagens cresce em quantidade e em qualidade quando vem marcado por bons e experientes professores mediadores, podemos entender mediação “como uma posição humanizadora,
positiva, construtiva e potencializadora no complexo mundo da relação educativa” (Tébar, 2011:74).
O autor apresenta a definição de mediação com base em pesquisas do teórico Feuestein4, que centra
seus conceitos numa visão antropológica e social positiva. Tratando-se de mediação, Tébar ressalta:
A mediação é um fator humanizador de transmissão cultural. O homem tem como fonte de mudança a
cultura e os meios de informação. O mediador se interpõe entre os estímulos ou a informação exterior
para interpretá-los e avaliá-los. Assim, o estímulo muda de significado, adquire um valor concreto e cria
4 Reuven Feuerstein é diretor do Centro Internacional para o Desenvolvimento do Potencial de Aprendizagem (International Center
for the Enhancement of Learning Potential – ICELP), em Jerusalém. O professor Feuerstein é responsável pela teoria da modificabilidade cognitiva estrutural (MCE) e da experiência de aprendizagem mediada (EAM) (TÉBAR, 2011).
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
no indivíduo atitudes críticas e flexíveis. A explicação do mediador amplia o campo de compreensão de
um dado ou de uma experiência, gera disposições novas no organismo e produz uma constante retroalimentação informativa (feedback ). Trata-se de iluminar a partir de diferentes pontos um mesmo objeto do
nosso olhar (TÉBAR, ibidem:77).
Partindo da premissa de que a mediação é a ação intermediadora entre as pessoas e a realidade,
afirmamos que a mediação feita pelo professor envolve três componentes: o aluno e o saber; o aluno e o meio; o aluno e seus colegas de sala de aula.
Em se tratando da mediação leitora, considera-se relevante a definição de Garcia,
Mediar a leitura é estar no meio de uma atividade essencial à escola, à vida, sem tomar nas mãos as rédeas do
processo, como se fosse o professor o único a saber o caminho; é estar presente mesmo que sutilmente ausente; é saber que o ato de ler é condicionado por condições e características psicológicas, sociais, econômicas
e intelectuais de cada indivíduo e, nesse sentido, cada leitura faz parte de um todo maior (GARCIA, 1992:37).
Da mesma forma, Maia (2007:19), ao ampliar a noção de mediação, afirma que, “como mediação,
entende-se tanto o envolvimento afetivo do professor com a obra literária, como a realização de práticas
de leitura para/com a criança, em que o diálogo entre texto e leitor, mesmo iniciante, seja incentivado”.
Sendo assim, percebe-se na visão desses autores, que a mediação é uma atividade necessária no
fazer pedagógico, pois, tem o objetivo de construir habilidades no sujeito, a fim de promover autonomia expressiva a cada um dos participantes do processo de leitura.
Refletir sobre a mediação leitora leva-nos a formação de leitores. Sabemos que a família e a escola
são duas instituições sociais que exercem papel fundamental na promoção da democratização e
incentivo à prática da leitura.
No que diz respeito à família, ela apresentaria a leitura como fonte de prazer e despertaria o interesse da criança através da contação de histórias, da leitura expressiva de um poema, entre outras
práticas. Na hipótese da família não ter interesse pelos livros, a escola deve ser parceira da família
proporcionando momentos de incentivo e estímulo à leitura e, principalmente, preenchendo a referida lacuna deixada no convívio familiar.
A escola é a instituição educacional mais sistemática de nossa sociedade, sendo, então, de sua responsabilidade, a formação de leitores. Segundo Zilberman,
Para a criança, que, enquanto não lê, depende exclusivamente da voz adulta que decodifica o mundo ao seu
redor para ela, também a aprendizagem da leitura repercute como possibilidade de emancipação. Os bens
culturais, que privilegiam a transmissão escrita, tornam-se acessíveis para ela [...] (ZILBERMAN, 2009:27).
Deve-se ter em mente que a leitura precisa ser pensada como objeto e instrumento de conhecimento bem como um meio para o prazer, o desfrute e a distração.
A função primordial da escola sempre foi a transmissão do saber acumulado pelo homem. Esse
saber muitas vezes é registrado no livro e só através da leitura é possível chegar até ele, seja de forma memorativa, seja de forma crítica. De acordo com Silva (2003:28), a leitura, quando realizada de
maneira frequente, rigorosa e significativa, pode nos permitir:
I-Caminhar pela cultura através das janelas da escrita.
II-Enxergar melhor os caminhos e construir novos caminhos para a nossa existência em
sociedade.
III-Perceber crítica e objetivamente a nossa incompletude, o nosso inacabamento, a nossa inconclusão como seres humanos e como professores.
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IV-Aumentar o nosso poder enquanto cidadãos e participar ativamente dos rumos da
sociedade.
Para Moraes (2010), precisamos de espaços que provoquem no aluno momentos de fruição, alimentem o seu saber interior, o autoconhecimento e a autoformação. O texto literário é esse espaço de
pluralidade de vozes, do diálogo e da reflexão. Provoca e promove três dimensões fundamentais que
caracteriza a transdisciplinariedade no ensino: o conhecer, o interagir e o fazer.
De acordo com essas considerações, é necessário esclarecer que tratamento, através da mediação
leitora, deve ser dado ao texto literário na educação infantil. A literatura, como matéria educativa,
deverá ser trabalhada para garantir a função essencial de construir e reconstruir a palavra que nos
humaniza. Conforme Ferreira,
A utilização da literatura na escola como sendo um elo entre níveis de Realidade não torna a literatura
um mero instrumento didático, visto que não é todo instrumento didático que poderá exercer tal função.
A literatura pode exatamente porque é capaz de inter-relacionar dimensões que não estão situadas num
mesmo nível de Realidade, porque é de natureza complexa e porque é uma fábrica incessante de significação (FERREIRA, 2007:112).
Ao mediar uma atividade de leitura, na educação infantil, o professor está possibilitando que o aluno
compreenda o que está sendo lido, permitindo que se aproxime de novas perspectivas ou opiniões. No
encontro com a literatura, é possível ampliar, transformar ou enriquecer sua própria experiência de vida.
Como arte, a literatura é criadora, imaginativa e representa o mundo, o homem, a vida através da
palavra, o real é pensado simbolicamente.
O homem não mais se satisfaz com ideias restritas, o que o leva a buscar sempre mais, ampliando
a esfera do saber. E a transdisciplinariedade se propõe transpassar os limites para o conhecimento,
podendo o texto literário, que é por excelência espaço para o conhecimento, proporcionar significativa aprendizagem, quando os educadores que tiverem o compromisso com a educação infantil
exercerem a sua função mediadora com a leitura literária enfatizando os três pilares da metodologia
transdisciplinar: Complexidade, Lógica do Terceiro Incluído e Níveis de Realidade.
Conclusão
Para concluir, mesmo que provisoriamente, é preciso observar que a mediação da leitura literária,
na educação infantil, tendo presente características transdisciplinares, requer olhares amplos que
reconheça a multidimensionalidade do ser humano.
Para a transformação do pensar e do modo de ser, deve-se trabalhar com os indivíduos formas diferenciadas de percepção da realidade da qual fazem parte. Trabalhar com a literatura abre caminho
para a exploração de significados e sentidos. Cria condições para as crianças religarem saberes e
reconstruírem realidades. A ação transdisciplinar propõe a articulação da formação do ser humano
na sua relação com o mundo, com os outros e consigo mesmo visando a paz e a colaboração entre as
pessoas e entre as culturas, tudo isso sem desconsiderar as contradições, as incertezas, os diferentes
níveis de realidade.
Em suma, é no diálogo, que a leitura do texto literário proporciona, que poderemos modificar nossas
atitudes e pensamentos transgredindo uma estrutura consolidada como verdade única e indiscutível.
77
Referências
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BARBOSA, Maria Carmen Silveira; HORN, Maria da Graça Souza. Projetos pedagógicos na educação
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Tese de Doutorado: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Programa de Pós-Graduação em
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NICOLESCU, Basarab. Fundamentos metodológicos para o estudo transcultural e transreligioso In
CETRANS (coord.). Educação e transdisciplinariedade II. São Paulo: TRIOM, 2002.
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MORAES, Maria Cândida; NAVAS, Juan Miguel Batalloso (orgs.). Complexidade e transdisciplinaridade em educação: teoria e prática docente. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2010.
MORIN, Edgar; ALMEIDA, Maria Conceição; CARVALHO, Edgar de Assis (orgs.). Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
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TÉBAR, Lorenzo. O perfil do professor mediador: pedagogia da mediação. São Paulo: Editora Senac
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ZABALA, Antoni. A prática educativa – como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.
ZILBERMAN, Regina; RÖSING, Tânia. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo:
Global, 2009.
78
Antonio Candido: a crítica do esclarecimento
Aldo Lima
Resumo
O artigo tem como assunto a crítica literária de Antonio Candido e sua contribuição para o ensino de Literatura. Apresenta alguns componentes do momento histórico-cultural que influenciou o seu pensamento e compreende sua crítica
como uma crítica do esclarecimento. No final, é anexada uma entrevista que o observador literário (como assim se
apresenta Antonio Candido) concedeu ao autor deste artigo.
Palavras-chave: Antonio Candido, crítica literária, Aufklärung, ensino de literatura.
Abstract
The article is about Antonio Candido‟s literary criticism and his contribution to the teaching of Literature. It presents
some components of the historical-cultural moment, which has influenced his thought and we understand his criticism
as a criticism of enlightenment. At the end, attached, one can find an interview that the literary observer (as Antonio
Candido introduces himself) has given to this article‟s author.
Keywords: Antonio Candido, literary criticism, Aufklärung, teaching of literature.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
I
[...] Devo ser de fato tão antiquado, que venho sendo definido em algumas instâncias como “ilustrado”, devidamente entre aspas, e como alguém preso a uma visão de tipo teleológico da história e do pensamento.
Devo esclarecer que, ao contrário do que se poderia pensar, considero esta restrição um elogio. Ela quer
dizer que me mantenho fiel à tradição do humanismo ocidental definida a partir do século XVIII, segundo a
qual o homem é um ser capaz de aperfeiçoamento, e que a sociedade pode e deve definir metas para melhorar as condições sociais e econômicas, tendo como horizonte a conquista do máximo possível de igualdade social e econômica e de harmonia nas relações. O tempo presente parece duvidar e mesmo negar
essa possibilidade, e há em geral pouca fé nas utopias. Mas o que importa não é que os alvos ideais sejam
ou não atingíveis concretamente na sua sonhada integridade. O essencial é que nos disponhamos a agir
como se pudéssemos alcançá-los, porque isso pode impedir ou ao menos atenuar o afloramento do que há
de pior em nós e em nossa sociedade. E é o que favorece a introdução, mesmo parcial, mesmo insatisfatória, de medidas humanizadoras em meio a recuos e malogros. Do contrário, poderíamos cair nas concepções negativistas, segundo as quais a existência é uma agitação aleatória em meio a trevas sem alvorada.
(Antonio Candido - Alocução na outorga do Prêmio Juca - PatoIntelectual do Ano – 2008)
A cafeicultura transformou São Paulo no grande centro da economia brasileira dos últimos decênios
do século XIX aos primeiros do século XX. As exportações do café proporcionarão o surgimento
de uma burguesia urbana que transformará a economia e a imagem da cidade através de novos
personagens no seu cotidiano. Surge uma arquitetura, um mobiliário, uma moda, um estilo de vida
que dão à Capital paulista um feitio aristocrático até então quase exclusivo das antigas oligarquias.
Este cenário é também composto por uma maquinaria de motores a óleo, pelas chaminés, pelo filho
do imigrante “louramente domando um automóvel”1, por um incipiente operariado, por um consumidor do sofisticado comércio europeu no melhor estilo belle epoque, pela cidadania anônima, pelo vaivém maquinal (arlequinal): “Os caminhões rodando, as carroças rodando,/ Rápidas as ruas se desenrolando,/ Rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos.../ E o largo coro de ouro das sacas de café!...”2
Uma pauliceia desvairada, pretensamente cosmopolita, aristocrática e burguesa, invadida por personagens diversas que ampliavam e protagonizavam seu dia a dia mestiço, foi um dos conteúdos que o
Modernismo fixou no seu projeto estético; o outro, o Brasil antropofágico, macunaímico. Este, visivelmente, o tema mais polemizado e metaforizado pelos modernistas de 22 e por alguns de seus adeptos.
Em O movimento modernista, Mário de Andrade assinala que:
o espírito modernista que avassalou o Brasil, que deu o sentido histórico da Inteligência nacional desse período, foi destruidor. Mas esta destruição, não apenas continha todos os germes da atualidade, como era
uma convulsão profundíssima da realidade brasileira. O que caracteriza esta realidade que o movimento
modernista impôs, é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa
estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora
nacional (ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1967:33).
Ressalta ainda que nada disto representa exatamente uma inovação e de tudo encontramos exemplos na história artística do país. A novidade fundamental, imposta pelo movimento, foi a conjugação destas três normas num todo orgânico da consciência coletiva [grifo do autor]. [...] O espírito
modernista reconheceu que si [sic] vivíamos já de nossa realidade brasileira, carecia reverificar nosso instrumento de trabalho para que nos expressássemos com identidade (ANDRADE, 1967:33).
Estas observações do autor de Lira Paulistana serão confirmadas com a prosa modernista: José Lins
do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, Clarice Lispector – dentre outros
1 [...] “Passa galhardo um filho de imigrante/ Louramente domando um automóvel”. O domador, de Mário de Andrade. In: Pauliceia
desvairada.
2 Do poema “Paisagem nº. 4”. In: Pauliceia desvairada.
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exemplos – até a poesia do próprio Mário de Andrade, de Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Raul Bopp, Cassiano Ricardo, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira; em Murilo Mendes, Jorge
de Lima, Joaquim Cardozo e João Cabral de Melo Neto. Em Carlos Drummond de Andrade, cujo livro
de estreia Alguma poesia, publicado em 1930, proporia uma “nova arte poética sob a forma de um
enigma figurado: No meio do caminho tinha uma pedra (MARTINS, 1977:270), além de irreverente
em Política literária (poema dedicado a Manuel Bandeira) e brasileiro (no contexto da brasilidade
reclamada pelas utopias nacionalistas do movimento) em Europa, França e Bahia.
Confirmam-se, ainda, através da extensa, e documental, correspondência que os intelectuais e escritores mantinham entre si e com o mestre do Modernismo Brasileiro, Mário de Andrade. Além de
se corresponder intensamente com seus pares, sabe-se que Mário não deixava de responder aos
pretensos escritores que desejavam ouvir sua crítica. Nestas correspondências, explanava suas
lições, defendia seus pontos de vista assim como lia atentamente os iniciantes. Lembremo-nos das
suas cartas ao então jovem Fernando Sabino na década de 1940.
A criação de revistas, ou periódicos, como queriam Oswald de Andrade e outros de seus pares, foi
um meio através do qual os jovens intelectuais promotores e adeptos da Semana de Arte Moderna
tiveram para a divulgação dos seus projetos estético- político-ideológicos não apenas em São Paulo
como para todo o País. O tema recorrente do nacionalismo é uma marca registrada em quase todas
estas revistas a exemplo de Klaxon, publicada em 1922; Estética em 1924; Terra Roxa e Outras Terras
em 1926; A Revista, de Belo Horizonte, é outro importante periódico dos pressupostos do Modernismo. É publicada em 1925 com um editorial assinado por Carlos Drummond de Andrade.
Abrangente em suas especulações acerca do Brasil, por ter criado um ambiente artístico-cultural
que colocou a cultura brasileira no centro dos debates e das reflexões dos artistas e simpatizantes
do movimento, “o Modernismo revela, no seu ritmo histórico, uma adesão profunda aos problemas
da nossa terra e da nossa história contemporânea. De fato, nenhum outro momento da literatura
brasileira é tão vivo sob este aspecto; nenhum outro reflete com tamanha fidelidade, e ao mesmo
tempo com tanta liberdade criadora, os movimentos da alma nacional” (CANDIDO, 1969: 9).
Com efeito, o Modernismo não poderia deixar de influenciar o quadro dos estudos sociais que
seriam realizados na década que lhe segue. Se 1922 apresentou um projeto de uma literatura empenhada3 em aprofundar e polemizar um pensamento estético e literário no contexto da brasilidade
e de um espírito nacionalista cujas utopias se patenteiam sobretudo no Manifesto Antropófago, na
Poesia Pau-Brasil, em Macunaíma, a década de 1930 dar-nos-á um pensamento social, científico,
que explica a formação da nossa sociedade e do nosso caráter.
Segundo Carlos Guilherme Mota, neste decênio acontece o redescobrimento do Brasil [o qual]
“pode ser registrado na própria sucessão das produções historiográficas posteriores à Revolução
de 1930. A Revolução, se não foi suficientemente longe para romper com as formas de organização
social, ao menos abalou as linhas de interpretação da realidade brasileira – já arranhadas pela intelectualidade que emergia em 1922, com a Semana de Arte Moderna de um lado, e com a fundação
do Partido Comunista, de outro” (MOTA, 1985: 27-28).
3 A expressão é tomada a Antonio Candido (in: Formação da literatura brasileira; momentos decisivos 1750-1880. 11. ed. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. p. 28) cujos conteúdo e signif icado explicam, no contexto deste estudo, para além do Arcadismo e do
Romantismo, as utopias do Modernismo do Tupy or not tupy that is the question e do Sou um tupi tangendo um alaúde !
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Manifestado especialmente pela arte, mas machando [sic] também com violência os costumes sociais
e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de
um estado de espírito nacional (ANDRADE, 1967: 221).
Em 33, são publicados Evolução política do Brasil, de Caio Prado Júnior – [que atuou] “como choque
revelador, por ter sido a primeira tentativa de síntese da nossa história baseada no marxismo” (CANDIDO, 1979:3) e Casa- grande e senzala, de Gilberto Freyre – cuja força revolucionária e impacto libertador fez Antonio Candido referir-se a ele como „grande livro‟: [...] que coordenava os dados conforme
pontos de vista totalmente novos no Brasil de então (CANDIDO, 1979: 12). Em 36, Sérgio Buarque de
Holanda publica Raízes do Brasil, “construído sobre uma admirável metodologia dos contrários, que
alarga e aprofunda a velha dicotomia da reflexão latino-americana. [...] Com este instrumento, Sérgio Buarque de Holanda analisa os fundamentos do nosso destino histórico (CANDIDO, 1979: 14-15).
As influências modernistas, no sentido de se redescobrir e explicar4 o Brasil, não se encerrarão no
âmbito dos estudos sociais. Elas continuarão no cenário cultural e, naturalmente, nas realizações
artístico-literárias.
É também deste decênio o chamado Romance de 30 que traz entre suas produções o romance
do Nordeste e nele as tensões provocadas pela ruína do patriarcalismo rural capitalista e o advento de um “novo” capitalismo que embora tenha substituído determinada paisagem física (notadamente a mudança do engenho para a usina) não substituirá a humana, brutalmente explorada no
aproveitamento de uma mão- de-obra extremamente barata e sem oportunidade de qualificação
profissional porque se assim acontecesse o produto do capital haveria de ser melhor dividido entre
o usineiro e o lavrador, entre o proprietário e o trabalhador.
Não obstante o entrechoque destas paisagens, o drama humano protagonizado por este romance
iguala suas personagens como vítimas da brutalidade e das injustiças do capitalismo, do fetiche e
da reificação ao mesmo tempo em que as universaliza na necessidade humana de investigar e interrogar a vida e suas contradições. Neste sentido tomemos Paulo Honório (São Bernardo) e Mestre
Amaro (Fogo morto) como ícones desses conteúdos universais.
Quanto a uma crítica literária modernista, Wilson Martins argumenta que ela faz parte da terceira
década do Modernismo, os anos 30-40. Ele a analisa a partir três períodos:
[...] No primeiro período, apenas um crítico excepcional se destacou: Tristão de Athayde (Alceu Amoroso
Lima); no segundo, alguns modernistas, romancistas e poetas como Mário de Andrade, por exemplo, realizaram uma crítica ponderável, mas, por assim, dizer, subsidiária no conjunto de suas atividades e, deliberadamente, uma “crítica de artistas”. Os anos 40 marcarão, entretanto, o aparecimento de uma evidente
“geração de críticos”, na qual os nomes marcantes seriam Álvaro Lins e Antonio Candido (Op. cit. p. 18).
Da “geração de críticos” identificada por Wilson Martins, Antonio Candido é o autor de uma obra
crítico-literária que expressa seu amplo interesse pelos conteúdos estético-sociais do Modernismo,
uma obra empenhada em explicar (no sentido registrado por Carlos Guilherme Mota, op. cit. p.
o Brasil através da sua Literatura.5
4 Palavras tomadas a Carlos Guilherme Mota. Op. cit. p. 26-27.
5 O ensaio VI do livro Literatura e sociedade, de 1965, intitulado “Literatura e cultura de 1900 a 1945” (Panorama para estrangeiros),
[...] merece ser reconhecido como o primeiro ensaio de interpretação sobre o significado do modernismo para a literatura e cultura
do Brasil, elaborado por um não modernista, pioneirismo que me parece não ter sido apontado suficientemente até hoje pela histo-
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
II
Antonio Candido se apresenta como um homem dependente do decênio de 19306: foi o decênio no qual eu implantei, defini minhas raízes; um decênio extremamente participante (Antonio
Candido, o observador literário. Org. Aldo de Lima. Recife: Editora Universitária/UFPE, 2013. p. 38).
Conclui-se então que foi como um homem dependente do decênio de 30 que criou discípulos, formou opiniões, interveio na vida política e sociocultural deste Brasil que sempre interrogou, quis
compreender, e percebeu, embora formado em Ciências Sociais e Professor de Sociologia, que
melhor o compreenderia, melhor o interpretaria através do seu sistema literário.
Por isso pensou e escreveu sobre a formação da literatura brasileira desde a sua sistematização,
observando-a até o século XX através de alguns de seus mais importantes escritores a exemplo de
Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Clarice
Lispector, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Orides Fontela, dentre outros.
Motivado pela razão e pelo compromisso com um trabalho crítico, inquiridor e influente de seu
tempo, Antonio Candido defendeu em sua estreia no jornal Folha da Manhã – para o qual escreveu,
entre janeiro de 1943 a janeiro de 1945, suas Notas de Crítica Literária em rodapé que:
[...] De um modo ou de outro, porém, compete ao crítico assumir com clareza o papel que lhe impõe o
seu tempo. [...] Assim, portanto, o esforço para esclarecer os acontecimentos presentes é a obrigação
primeira do intelectual que não sente a vocação da atividade direta e que, por outro lado, não quer
encerrar-se num marginalismo que tanto tem de cômodo quanto de pouco louvável. Entre as inúmeras
vias para se chegar aos acontecimentos, entre as várias maneiras de abordá-los, por que não colocarmos
a da compreensão das obras do pensamento e da sensibilidade? Nascidas de exigências imperiosas do
espírito humano, trazem em si a essência dos sonhos, das aspirações e das tentativas de uma época. É
nelas que se aninham as vagas possibilidades do futuro e que são julgadas as tentativas do passado. Tácita
ou explícita, consciente ou inconscientemente, nelas se encontram as mais variadas manifestações da
inteligência e do coração dos homens. Sem elas, é impossível compreendê-los, pois que nelas se condensam os seus mais diversos anseios, as suas vitórias, as suas derrotas, as suas fraquezas e a sua força. Ao
entrar neste mundo ao lado do mundo, crítico e leitor se sentem como que suspensos ante o peso da sua
tradição e a riqueza das suas possibilidades. Penetrá-las, clarificá-las, relacioná-las, torna-se então uma
tarefa cuja importância só é ultrapassada pela daqueles que as vão realizar. Assim compreendida, pois
que a ela incumbe uma parte desse trabalho, a crítica – literária, artística, filosófica, científica – nos parece
como um instrumento de conhecimento e um guia de caminhos difíceis, e a sua utilidade não pode ser
negada (CANDIDO, 2002: 27-28).
Ainda nesta Ouverture, como ele nomeou seu texto de estreia, o jovem crítico literário, então com
25 anos, declarava aos seus leitores que, embora reconhecesse no trabalho crítico “uma qualidade
pessoal”, “um dado psicológico”:
[...] rejeito integralmente – como por mais de uma vez já o tenha feito em artigo – o conceito impressionista que faz da crítica uma aventura da personalidade, um passeio através das obras e dos autores com o
riografia literária brasileira” (FANTINATI, Carlos Erivany. Aspecto da literatura brasileira: o ritmo estético. Itinerários. Araraquara, nº.
30, p. 31- 47, jan/jun., 2010).
6 “Quem viveu nos anos 30 sabe qual foi a atmosfera de fervor que os caracterizou no plano da cultura, sem falar de outros. O movimento de outubro não foi um começo absoluto nem uma causa primeira e mecânica, porque na História não há dessas coisas. Mas
foi o eixo e um catalisador: um eixo em torno do qual girou de certo modo a cultura brasileira, catalisando elementos dispersos para
dispô-los numa configuração nova. Neste sentido foi um marco histórico, daqueles que fazem sentir vivamente que houve um “antes”
diferente de um “depois”. Em grande parte porque gerou um movimento de unificaçãocultural, projetando na escala da Nação fatos
que antes ocorriam no âmbito das regiões. A este aspecto integrador é preciso juntar outro, igualmente importante: o surgimento
de condições para realizar, difundir e “normalizar” uma série de aspirações, inovações, pressentimentos gerados no decênio de
1920, que tinha sido uma sementeira de grandes mudanças” [grifos do Autor] (Candido, Antonio. A Revolução de 30 e a cultura. In: A
educação pela noite & outros ensaios. 3. ed. São Paulo: Ática, 2000: 181-182).
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
intuito exclusivo de penetração e de enriquecimento pessoal. [...] Por estas e por outras é que eu prefiro o
crítico partidário, que tem um credo – político, religioso, filosófico ou literário – ao eterno disponível,
que o é sob o pretexto de não cair no sectarismo e permanecer aberto a todas as sugestões das obras
(cf.: Vinicius Dantas. Op. cit. p. 24, 25, 26).
Ao contrário do que se pudesse ajuizar a respeito destas opiniões, por exemplo, a antevisão de
uma crítica ideológica e sectária, nelas, o mais importante a assinalar é que mesmo considerando
o natural e inevitável amadurecimento intelectual e existencial do Autor, já se encontram algumas
das utopias7 de um projeto humanista, crítico-literário,dialeticamente construído, ao longo de uma
vasta e erudita produção ensaística que levaria o Crítico até a compreensão da Literatura como
aspecto orgânico da civilização8, confirmação e síntese do que já defendera a respeito das obras
do pensamento e da sensibilidade; como [...] obras e atitudes que exprimem certas relações dos
homens entre si, e que, tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos
íntimos9; como um direito inalienável10.
A observação desse conteúdo intrínseco, orgânico, da Literatura faz o conjunto da sua obra, do seu pensamento, mover-se sob uma extensa lição de humanismo à medida que a maior personagem do seu trabalho de observador literário não é a Literatura e suas fôrmas, mas o seu maior protagonista: o ser humano.
O ser humano no conjunto das relações histórico-sociais; o ser humano e suas utopias; o ser humano cuja
humanidade a Literatura tem a capacidade de confirmar, como defende em A literatura e a formação do
homem, e cuja comprovação de tese, digamos assim, está demonstrada, por exemplo, em Ficção
e confissão, conjunto de estudos através do qual pretendeu “captar a visão do homem na obra de
Graciliano Ramos” e onde, ao considerar o autor11 como uma possibilidade de explicação do vasto
mundo (a confissão e a ficção) ele ratifica, como grande tema de sua crítica, o ser humano histórico.
Trata-se de um humanismo que tem esclarecido como a nossa Literatura metaforizou a construção
da identidade e do caráter nacional; as nossas interrogações diante da vida e de suas finalidades;
diante das nossas semelhanças e dessemelhanças; diante das nossas igualdades e desigualdades.
A dois séculos d’ O Uraguai, Estouro e libertação, O poeta itinerante, Carta marítima, Esquema de
Machado de Assis, Inquietudes na poesia de Drummond, Ficção e confissão, Dialética da malandragem, De cortiço a cortiço, A educação pela noite, O homem dos avessos, No raiar de Clarice
Lispector, Poesia, documento e história, Os olhos, a barca e o espelho, Sagarana são algumas das
altas observações literárias escritas por Antonio Candido a respeito da Literatura que criamos para
estilizar nosso ethos, promover nossa humanização, confirmando por que seu Autor é recorrente e
indispensável para os Estudos Literários e para os estudos sobre a Literatura Brasileira.
7 Ressaltando que o conceito de utopia é aquele presente nas lições de Karl Mannheim: “um estado de espírito é utópico quando
está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre”. Mannheim adverte no entanto [...] “que não devemos
encarar como utópico todo estado de espírito que esteja em incongruência com a situação imediata e a transcenda (e, neste sentido,
„afastado da realidade‟). Iremos referir como utópicas somente aquelas orientações que, transcendendo a realidade, tendem, se se
transformarem em conduta, a abalar, seja parcial ou totalmente, a ordem de coisas que prevaleça no momento” (Ideologia e utopia.
4. ed. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1986. p.116).
8 Cf. Formação da literatura brasileira; momentos decisivos. 6ª. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. p.23.
9 Cf.: Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7. ed. São Paulo: Nacional, 1985. p. 139.
10 Cf.: Vários escritos. 4. ed. revisada pelo autor. Duas Cidades/Ouro sobre Azul. São Paulo/Rio de Janeiro, 2004. p. 191.
11 “Apesar de a crítica mais em voga (reagindo contra certos exageros de origem romântica) afirmar que a obra vale por si, e em si
mesma deve ser considerada, independente da pessoa do escritor, não nos furtamos à curiosidade que este desperta. Se cada livro
pode dar lugar a um interesse apenas imediato, isto é, esgotado pelo que ele pode oferecer, uma obra, em conjunto, nos leva quase
sempre a averiguar a realidade que nela se exprime e as características do homem a quem devemos esse sistema de emoções e fatos
tecidos pela imaginação” (Ficção e confissão. 3. ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006: 69).
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III
Embora a crítica tenha como uma de suas finalidades ilustrar, esclarecer, o conceito esclarecimento
que adotamos para designar a crítica literária de Antonio Candido, situa-se no sentido da Aufklärung,
que não é apenas um conceito histórico- filosófico, mas uma expressão familiar de língua alemã, que
encontra um correspondente exato na palavra portuguesa esclarecimento [grifo meu] em contextos
como politische Aufklärung (esclarecimento político). As duas palavras designam, em alemão e em
português, o processo pelo qual uma pessoa vence as trevas da ignorância e do preconceito em
questões de ordem prática (políticas, religiosas, etc.); [...] o esclarecimento que resulta da reflexão e da crítica (ALMEIDA, Guido Antonio de. In: Dialética do esclarecimento, de Theodor W. Adorno
e Max Horkheimer. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar: 1985: 7-8).
A Aufklärung colocou a Razão como modo apropriado de iluminar a consciência e promover
a maioridade do ser humano. Aufklärung, Iluminismo, Esclarecimento são conceitos cujos significados expressam um conhecimento crítico- reflexivo acerca do mundo, das relações histórico-sociais,
das realizações humanas. É no domínio destes significados que compreendemos a crítica do autor
de Literatura e sociedade como uma crítica do esclarecimento, embora adotando a Aufklärung tãosomente neste significado de esclarecimento porque ao responder à pergunta: o Sr. coloca a sua
crítica literária no contexto da Aufklärung?, ele responde que talvez seja possível dizer isto. Como
outros, eu me esforço para apresentar uma visão crítica elaborada conforme a razão analítica, mas
não segundo o ponto de vista linear caro à Aufklärung (cf. entrevista anexa).
Nesta visão crítica elaborada conforme a razão analítica está uma de suas grandes contribuições
para o ensino da Literatura, que não deixa de reconhecer e realçar sua legitimidade como aporte no
processo de apropriação crítico-reflexiva do mundo histórico pelo ser humano. O direito à literatura
e A literatura e a formação do homem são ensaios emblemáticos que confirmam esta legitimidade.
A citação abaixo, que encerra este artigo, apoia não apenas o argumento sobre esta crítica que
designamos do esclarecimento como bem assinala que:
No cerne do estudo e do ensino da literatura está o problema crítico. De um modo geral, o problema literário apresenta três aspectos: a criação artística, o público e, entre ambos, uma série de intermediários
cuja função é esclarecer e sistematizar. É o papel que compete às diferentes modalidades de crítica, desde
a história literária até a resenha de jornal, e delas depende em boa parte a formação e o desenvolvimento da consciência literária. O ensino da literatura pode e deve ser considerado um aspecto da crítica,
e por isso os problemas desta são para ele de importância capital [grifo nosso] ( O método crítico de Sílvio
Romero. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. p. 9).
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Entrevista
Professor,
• o Sr. coloca sua crítica literária no contexto da Aufklärung?
• a respeito das funções:
qual a função da crítica?
ela pode limitar-se tão-somente a julgar?
• como o Sr. conceitua sua crítica literária? Quais teorias influenciaram seu
trabalho de observador literário?
• por que a crítica literária é seu instrumento para dialogar com o ser humano, suas utopias, suas necessidades e realizações históricas? Por que exatamente a literária? Sendo mais claro, por que a Literatura como instrumento
deste diálogo?
• somados estes anos de um vigoroso e fundamental percurso de crítico
literário, que juízo o Sr. faz hoje da sua obra crítica, do seu pensamento que
continua a formar discípulos?
• fale-me do Professor Antonio Candido em sala de aula. De quais
estratégias o Sr. se auxiliava para problematizar a Literatura como matéria de leitura, estudo e pesquisa; como forma e fonte de conhecimento e
de prazer estético?
• por que o Sr., embora com vários estudos dedicados à poesia, tomou o
romance como fôrma predileta para o exercício da sua crítica literária?
• sua crítica literária colabora para teorizarmos a cultura brasileira e uma
consciência nacional?
Professor, permita-me conversar com o Sr. fora do contexto da crítica literária embora saiba que a relação entre o crítico e o cidadão Antonio Candido
seja, naturalmente, indissociável:
• o Sr. vê na prática da leitura literária uma ação política e um exercício de
cidadania?
• se fosse solicitado para fazer um verbete sobre Leitura, Leitura literária
e Leitor o que o Sr. escreveria a respeito destas palavras?
• o que é fundamental para se formar leitores de Literatura? Muito obrigado.
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As correções do texto da entrevista são de autoria do próprio Professor.
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Revendo acervos, partilhando memórias: Eu me lembro...
Maria Dolores Coni Campos1
Resumo
Recorrendo a acervos e reminiscências pessoais o texto busca interações entre recordar/refletir/conhecer/ser. Compartilha histórias e fatos vividos através da memória e da crítica, em processo desafiante de leituras na perspectiva de
formar leitores cidadãos.
Palavras chaves: Acervo, memória, afeto, culturas, compartilhamento, construção, reflexão, autonomia.
Abstract
Referring to personal collections and reminiscence, this content seeks interactions between remembering/reflecting/
knowing/being. It shares stories and facts lived through memory and criticism, in a challenging reading process under
the perspective of forming citizen readers.
Keywords: Collection, memory, affection, cultures, sharing, construction, reflection, autonomy.
1 Mestre em Educação UFF/ RJ, especialista em Leitura PUC/ Rio. Tem artigos e livro publicados. Realiza seu trabalho em Encontros de
Conversas com diferentes públicos trabalhando Educação entrelaçada de Leituras. .
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Uma de nossas brincadeiras de criança era essa: Eu me lembro... E cada participante do grupo que
brincava, no mesmo instante desse comando, teria que se lembrar de um acontecimento em sua
vida e, se demorasse de expressá-lo, perdia a vez, ganhando uma sanção.
Inspirada, nessa brincadeira, inicio este texto na intenção de salientar as questões sobre a memória
e os acervos pessoais. Recorro a Nanci Nóbrega, identificando-me quando ela se refere aos acervos:
Na transformação da Natureza, seja através do trabalho, seja por meio da linguagem, o Homem foi construindo seu Acervo. A cada passo de seu caminho no mundo, foi angariando referências, repertórios. Seus
desejos, seus sonhos, seus feitos; suas emoções e fantasias; seus produtos e máquinas e equipamentos. E
as palavras que cria para descrevê-los. E as histórias vividas no mundo exterior ou no mundo interior – e
suas lembranças. Tanto por meio de seu espírito mágico, quanto através de seu espírito prático, está em
eterna construção de seus acervos pessoal e social 2.
São essas referências e repertórios – acervos - que nos acompanham ao longo dos nossos anos de
vida e vão sendo nossos aliados quanto à nossa formação de leitor.
Relembrando aquela brincadeira de infância, evoco seu comando: Eu me lembro...
E como se fora uma repentista, crio versos que trazem reminiscências da cidade onde vivi a infância
e parte de minha juventude. Eles vão permear meu texto:
Junho vinha chegando
trazendo frio e chuva
era o inverno se anunciando
na pacata Curralinho3.
Não obstante a friagem
xales, casacos, capotes
saídos das gavetas e baús;
o clima é de certa alegria.
Os versos que chegam contando histórias estão impregnados de cultura e nos falam de Memória. Necessário se faz conversarmos um pouco sobre a importância da Memória e da Leitura na formação do leitor
até porque uma está atrelada à outra. Então vejamos o que nos dizem os especialistas da leitura:
Etimologicamente, ler vem do latim legere e significa ler e colher. Portanto, ‘ Ler’, significa colher conhecimentos e o conhecimento é sempre um ato criador, pois me obriga a redimensionar o que está estabelecido,
introduzindo meus mundos em novas séries de relações e em um outro modo de perceber o que me cerca4.
E Sutter acrescenta: Se legere era colher e armazenar, legere, no sentido de ler também implica o
ato de colher e de armazenar. Mas colher o quê? E armazenar onde? Poderíamos dizer que aqui o
ato de colher é o ato de colher conhecimentos que são armazenados na memória, o grande celeiro
dos nutrientes da vida pessoal e da história coletiva de uma sociedade? Para nós é justamente isso
que o ato de ler significa5.
Assim, fazendo uso da memória vamos lendo a vida através da riqueza de sua multiplicidade: lemos
os gestos da pessoa, seu silêncio, seus cheiros, suas palavras, sua maneira de ser. Podemos realizar
2 NÓBREGA, Nanci: Natureza e Cultura. O Homem em Movimento; artigo para o Programa Leia Brasil- Rio de Janeiro, 1997
3 CURRALINHO era a localidade que o poeta Castro Alves frequentava por ocasião das férias, se hospedando no Casarão de sua família
atualmente uma Casa de Cultura. Hoje, Curralinho recebeu o nome do poeta. É a cidade de Castro Alves, cidade da infância da autora
e de seus irmãos.
4 VARGAS, 1997,p. 6 in QUEVEDO, Hercílio F. Ler é função essencial(ou não?)in Leitura e animação Cultural repensando a escola e a
biblioteca. ROSING, Tania M. K.e BECKER, Passo Fundo:UPF, 2002:
5 SUTTER, Miriam. Pelas Veredas da Memória: revisitando ludicamente velhas palavras. In YUNES, Eliana (org) Pensar a Leitura: Complexidade. Rio de Janeiro: Ed.PUC-RIO;São Paulo:Loyola, 2002p.71
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leituras através de um filme, uma imagem, uma música, uma pintura; lemos através de versos e de uma
fala oral, de um texto escrito. Lemos o céu, o mar, a natureza, a arte. Realizamos leituras do mundo
como bem sinalizou Paulo Freire, leitura que extrapola o texto escrito e realiza um caminho mais amplo
na direção do infinito. E Yunes reafirma: Ler é realizar a experiência de se pensar pensando o mundo6
E retomando a lembrança da nossa brincadeira: Eu me lembro...continuo contando em versos:
Curralinho, lugarejo
do recôncavo da Bahia,
cultivava comercio e fumo.
Seguia uma mesma rotina,
a noite, era pra família
ou pro cinema local:
cada dia, filme novo,
suspense, romance, emoção.
O povo muito festeiro
promovia quermesses no largo,
comemorava a padroeira
e também o Senhor do Bonfim
desfilando em cordões,7
conduzindo Boi, Leão, Sereia
Beija Flor, Pavão, Burrinha
competindo sua graça,
beleza e animação.
Lembro-me, de quando criança, de nossa casa, na Rua do Jardim; ela ficou no meu imaginário entre
vivências e mistérios. Penso nessa casa onde moramos por alguns anos: era grande com cômodos
amplos, salão enorme, dormitório dos meninos. Acompanhando as crianças, Helena, Isaura e Elza
dormiam perto. Elas três eram encarregadas de tomar conta de nós. Lena, Zara e Elza (como as chamávamos carinhosamente) moravam conosco e também ajudavam nossos pais nos afazeres da casa.
O salão dormitório era também palco de nossos teatros e brincadeiras de casinha, de boneca, de
escola... E também era local de assombração: Foi nesse salão que nós, surpreendemos, um dia, uma
mão preta, cabeluda, de alguém querendo entrar. Será que era para nos pegar?
A sala de jantar era imensa e conjugada com a de estar, onde o rádio imperava, dando notícias no
Repórter Esso, tocando músicas, anunciando propagandas. Papai adorava escutar seu radiozinho.
Tínhamos que ficar em silêncio para não atrapalhá-lo ao ouvir as óperas e as notícias que o rádio trazia.
Às vezes ele dava ênfase às propagandas, havia uma que nunca esqueci: era a do xarope para tosse. O
rádio anunciava bem assim: Tosse um, tosse dois, tosse mil, só quem não tosse, é quem toma Bromil.
A cozinha era o reino de Elza. Cozinheira de mão cheia, discípula e afilhada da vovó, Elza era a mestra
em iguarias. Nossa mãe não a poupava de elogios. A cozinha da casa era espaçosa, ostentava seu
grande fogão a lenha que dava lugar aos ensopados, molhos pardos, mal assados, da famosa canjica
de São João. O bom forno assava perus, leitões, carneiros, bolos, pudins e muito mais. Eu ficava a
imaginar a triste sina dos pobres bichinhos lá do quintal, do galinheiro, criados e, sevados a fim de
irem para a panela e o forno! Triste sina! Os cheiros exalavam da cozinha amiga. Quando Elza fritava
os bifes tão apreciados por nosso pai, de longe já adivinhávamos o que se passava naquele recinto e
atraídos pelo chamariz do seu cheiro, chegávamos rapidinho àquela cozinha na intenção de provar
6 YUNES, Eliana. Informare v.5 nºI julho/ dezembro: 1999 p.13
7 Cordões também chamados de ranchos e ternos. Eram vários cordões que saiam nas festas populares, cada um trazendo um tema:
Boi, Leão, Sereia, Beija Flor, Pavão, Burrinha entre outros.
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um pedacinho. Eu pedia um belisco e Elza me entregava uma lasca do bife fumegando. Eu o lambuzava na farinha e engolia ligeirinho. Depois, queria mais, mais e mais até ser expulsa da cozinha
ameaçada pela Nêga, que ia chamar nossa mãe, caso eu não saísse e deixasse de tamanha gulodice.
Guardo tantas recordações! Essa casa ficou gravada dentro de mim. Durante muito tempo sonhei
em voltar a ela: entrar, percorrer, conferir, rever, recordar... Um dia me deram a triste notícia de
que teria sido derrubada. Sofri a perda; mas consolo-me ao percebê-la em meu coração e em meu
acervo de memórias.
Recordo também do dia em que nos comunicaram que a cegonha ia trazer mais um irmão ou irmã.
Que bom que seria mais um ou uma para aumentar as brincadeiras naquele quintal, lugar paradisíaco: árvores, flores, bichinhos, terra, água... Entretínhamo-nos até então de brincar de casinha,
de cozinhado, de preparar perfumes coloridos feitos com as plantas, flores e frutos. Gostávamos de
brincar na gangorra arrumada por nosso pai que a colocara no galho da árvore. Brincadeiras criadas,
inventadas, somadas. Mas nesse dia do mês de março, quando a ordem dada era a de que não saíssemos do quintal até sermos liberados, nossos pensamentos não estavam voltados para nenhuma
brincadeira. O que nos interessava, naquele inesquecível dia, era entender os mistérios que envolviam o clima da nossa casa. Eu tinha apenas cinco anos e lembro-me bem.
Não resistimos à tentação de decifrar os segredos e, lideradas pelo irmão mais velho, fomos investigar o que estava acontecendo naquela atmosfera misteriosa. E, assim, pelo lado de fora da casa,
chegamos até as frestas das janelas, foco das atenções. Não vimos nada, mas sentimos quase tudo:
Preocupações, no ar de tensões e gemidos e até de gritos de dor. Parecia que vinham da parte de
nossa mãe que chorava alto: Escutamos a voz do meu pai no comando dos acontecimentos: Tragam
mais água quente, tragam panos limpo e fervidos...
Lena e Zara viravam-se indo pra lá e pra cá. Havia também uma pessoa estranha no ambiente, voz
de mulher que falava com nossa mãe: faça força dona, força. Soubemos depois que era da parteira.
Afinal o que vem a ser uma parteira? (perguntávamos uns aos outros). Entre mandos e dores escutamos a criança chorar e todos alegres exclamaram juntos: nasceu, nasceu! É outra menina. (éramos
então quatro meninas e um só menino, o mais velho).
Corremos de volta ao quintal disfarçando-nos em travessuras e tentando dar conta das brincadeiras
como se nada tivéssemos vivenciado. Bem mais tarde, Lena vem nos liberar trazendo a notícia de
que a cegonha, finalmente havia trazido uma menina. Fomos levados até o quarto para conhecer o
bebê. Eu fiquei a imaginar: por onde a cegonha passara que ninguém a viu?
Selma Maria, é o nome dela, afirmou nosso pai, todo de branco em indumentária de médico, nos
apresentando a nova irmãzinha. Ela era lourinha, lourinha e vermelhinha! Aprendia a mamar no peito de nossa mãe. A partir daí, todos os dias eu ia assistir o banho da menininha. Quem dava era Isaura porque, segundo mamãe, ela era especial no lidar com criança recém-nascida. O banho era um
ritual: Zara colocava um turíbulo no quarto e acendia pedaços de carvão. E, nas brasas acesas, ela
ia colocando incenso exalando no quarto um perfume marcante. Depois, pegava as roupinhas que
ia vestir na criança e as perfumava naquela fumaça que saia do vaso de barro. Na água do banho,
Zarinha colocava um pouco de alfazema como perfume e banhava a criança nessa água perfumada.
Nossa irmãzinha parecia que, cada vez, gostava mais do banho, só não gostava de ser retirada dessa
água cheirosa reagindo, ao sair da banheira, com um choro forte e já esperado por nós, seus irmãos.
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Depois, era a vez de vesti-la com as roupinhas: a fralda, a camisa de pagão e por último, a camisola
bordada. Por fim, era a vez do penteado: com uma escova bem macia, Zara ia alisando as penugens,
insinuando um cacho no alto da cabeça. O banho era concluído quando um algodãozinho de cheiro de
lavanda era passado no cabelinho e nas roupas que envolviam a criança. A mamãe carinhosamente acolhia sua filhinha dando-lhe o peito. Hora de mamar e dormir. O silêncio imperava na casa inteira. Eu ficava encantada com todo esse ritual. Assistia fascinada, captando, cada gesto de delicadeza, de ternura,
de cuidado, de sabedoria. Lições que impregnaram minha vida, minha existência para todo o sempre.
Recorro a Paulo Freire e, em especial a seu livro Cartas a Cristina,8 quando ele realiza uma construção literária através de cartas registrando e analisando criticamente sua trajetória de vida, um trabalho centrado na memória. No prefácio desse livro, Nogueira providencialmente esclarece:
Não é à toa que começo falando sobre memória. Peço ao (à) leitor (a), que se recorde disso. Iremos averiguar, através do livro, o que Paulo Freire faz com o trabalho sobre memória. Os gregos a denominavam Mnemosyne. Pensei cá com meus botões, é importante relembrar o significado deste trabalho com Mnemosyne:
Mnemosyne ou Mnemósina vem do verbo grego mimnéskein ‘lembrar-se de’. Ela personifica a memória. Profundamente amada por Zeus, ela concebeu as Musas. Buscando nome para as filhas (as Musas),
Mnemosyne derivou de men-dh que, no grego clássico, quer dizer: fixar o espírito sobre uma ideia, fixá-lo
como arte-criação. O vocábulo que deu nome às filhas da Memória (Musa) relacionou-se, portanto, com o
verbo manthámein que significa aprender, aprender mediante o exercício do espírito poyético.9
Descobrimos nestas citações, acima, que até a palavra memória traz um acervo em sua etimologia
e sua história. E voltando a Paulo Freire e as suas Cartas à Cristina vamos confirmar a importância
de uma visita às nossas memórias e acervos, como fontes que guardam um material poderoso que,
uma vez pinçados e refletidos criticamente poderão impulsionar possíveis mudanças em nós. Vejamos um pouco de Paulo Freire em sua 1ª carta:
Quanto mais me volto sobre minha infância distante, tanto mais descubro que tenho sempre algo a aprender dela. Dela e da adolescência difícil. É que não faço este retorno como quem se embala sentimentalmente numa saudade piegas ou como quem tenta apresentar a infância e a adolescência, pouco fáceis,
como uma espécie de salvo- conduto revolucionário. Esta seria, de resto, uma pretensão ridícula.
No meu caso, porém, as dificuldades que enfrentei, com minha família, na infância e na adolescência, forjaram em mim, ao contrário de uma postura acomodada diante do desafio, uma abertura curiosa e esperançosa diante do mundo. Jamais me senti inclinado, mesmo quando me era ainda impossível compreender a origem de nossas dificuldades, a pensar que a vida era assim mesmo, que o melhor a fazer diante
dos obstáculos seria simplesmente aceitá-los como eram. Pelo contrário, em tenra idade, já pensava que
o mundo teria de ser mudado. Que havia algo errado no mundo que não podia nem devia continuar.10
Volto à brincadeira de infância e ao comando:
Eu me lembro...
Nem é bom lembrar as outras festas
nos clubes, nas ruas
as passeatas: as famosas micaretas.
Saudade dos circos que chegavam,
trazendo alegrias e dramas.
Saudade dos parques de diversões,
dos barquinhos, sombrinhas,
roda gigante, carrossel.
Saudade do auto-falante
8FREIRE, Paulo: Cartas a Cristina- reflexões sobre minha vida e minha práxis. Direção, organização e notas de Ana Maria Araujo Freire.
2ªedição São Paulo:Editora UNESP, 2003
9 NOGUEIRA, Adriano S. in tópico extraído de seu prefácio para o livro Cartas a Cristina-Reflexões sobre minha vida e minha práxis,
de Paulo Freire; São Paulo; Editora UNESP, 2003 p.11 e 12
10 FREIRE,Paulo: Cartas a Cristina Reflexões sobre minha vida e minha práxis; organização e notas de Ana Maria Freire. 2ªed.São
Paulo: Editora UNESP, 2003
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informando hora certa,
comunicando nascimento,
casamento, aniversário, passamento;
oferecendo canções aos eternos namorados.
Saudade dos peregrinos ciganos...
saudade das bandas de música
desfilando nas ruas, avenidas, jardins.
Eu sou Lira, dizia um, garoto da cidade apreciando a Lira.
Acho mesmo que sou Bomfim, reformulava ele
ao assistir inebriado, outra banda desfilar.
Você é mesmo vira-folha retrucavam amigos e irmãs:
Quem é Lira não pode ser Bonfim.
Eu me lembro também do consultório do meu pai localizado na sala de frente da nossa casa, na Rua
do Jardim. Para separá-lo do ambiente onde a família convivia, necessário se fez colocar um portão
de ferro. Era bom ter o papai bem perto, nos livrando das doenças. Até que um dia, algo inesperado
se deu, mudando minha forma de pensar:
Apareceu um senhor, vindo da roça com o queixo caído. Trazia um pano que começava na cabeça e ia
até debaixo do queixo onde era amarrado. Só o rosto ficava de fora. Parecia um mascarado, um fantasma ou quem sabe, um bandido perigoso... Assim que Papai começou a cuidar do recém-chegado
homem, ele botou a boca no mundo: gritava, gemia, berrava: acabe com isso doutor.
Eu, dentro de casa, entretida que estava não tive mais sossego. Fiquei atenta aos urros daquele
senhor levando-me a pensar na vida e nas dores que atravessam o mundo.
Levou muito tempo para que o senhor se acalmasse. E quando tudo serenou, Papai mandou que ele
ficasse descansando no divã do consultório até sentir-se em condição de voltar para casa. Nosso pai
entrou na sala de jantar exausto e também buscou sua cadeira de lona. Elza veio, ligeira lhe trazer
um suco de laranja e mamãe ofereceu-lhe uma xicrinha de café. Eu levei muito tempo para aliviar
esse acontecimento dentro de mim. Passei a ficar com medo de tudo. Durante muito tempo, à noite,
ficava seguindo Lena, aonde ela fosse. Ela era a última a dormir porque se encarregara de fechar
todas as janelas e portas que eram muitas! Eu só conseguia ir para a cama quando Lena fosse.
Sozinha, fiquei a imaginar que a grade de ferro dividindo os espaços entre consultório e nossa casa,
protegendo-nos dos tristes acontecimentos que podiam ocorrer decorrentes do atendimento às
doenças, não cumpria sua função porque deixava vazar os sofrimentos, os gritos das pessoas humanas. A partir daí comecei a querer entender mais sobre a ameaça da morte. Dei graças a Deus quando o consultório foi transferido para outra rua, bem distante de nossa casa. Aos poucos, voltei às
minhas bonecas e ao devaneio de brincar de professora.
Mas, nada como um dia após o outro, diz o ditado popular. Passei a gostar de ir ao novo consultório
do papai. Uma curiosidade enorme me levava a tentar chegar perto da estante dos livros, aos quais, as
crianças não tinham acesso. Qual seria o conteúdo deles? Será que iam dar respostas a meus anseios?
Eu e minha irmã mais nova íamos ao consultório do papai, aos sábados, dia de feira local. Ficávamos
na sala de espera aguardando nosso pai nos atender. E quando ele se desocupava e aparecia nos chamando a seu encontro, pedíamos a ele, um dinheirinho (quatro centavos) para comprar panelinhas de
barro, na feira, para os cozinhados no quintal. Mas na verdade, bem no fundo eu queria mesmo era
confirmar o novo espaço e ambiente do consultório. Estar perto de nosso pai, vendo-o com roupa de
médico, cuidando, salvando, curando as pessoas. Eu então pensava: Que felicidade ter um pai médico!
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
Viajando nessas memórias volto a ouvir Paulo Freire e a sua parceria com Sérgio Guimarães quando editaram em dois volumes o livro: Aprendendo com a própria história. Sérgio como jornalista
entrevista Paulo Freire sobre sua vida e sua obra. E a partir dessa entrevista, as histórias de vida vão
surgindo sendo possível revisitá-las e também, refleti-las criticamente. Daí a inspiração para seu
título: Aprendendo com a própria história. São os acervos e a memória, em jogo, na tentativa de
compreendermos as pessoas como sujeitos pessoais e sociais.
O Sérgio Guimarães, no processo de construção dessa obra, acima mencionada, em diálogo contínuo com Paulo Freire reflete:
O objetivo nosso, a meu ver, ao fazermos um livro como este, é de provocar, estimular, cutucar a leitora, o
leitor, a que façam esse exercício, que examinem a própria história, que procurem rever as próprias ações,
as próprias reflexões, o seu próprio ser num espaço-tempo determinado. A ideia é estimulá-los a examinar,
a esmiuçar, a desocultar aspectos que ainda não tinham sido vistos, lembrados, e que poderiam não apenas
explicar a evolução do que aconteceu depois da própria ação, mas também facilitar o próprio avanço, a
partir do momento em que a consciência, a reflexão se dá, e que pode se traduzir numa outra ação.
E Paulo Freire interagindo com o Sérgio responde: Exato. Eu concordo inteiramente com o que você
diz, e até junto uma outra coisa a qual você falou ontem, quando nós apenas conversávamos sobre
como poderíamos trabalhar hoje, ...É algo que tem a ver com a questão da compreensão profunda
da linguagem. Da linguagem como invenção do homem, e não individual.11
Então, me parece que nossas memórias, frutos de nossas experiências, quando partilhadas com
outras e outros deixam de ser nossas e vão ao encontro do coletivo. E aí, as ressonâncias acontecem.
São leituras contínuas permeando nossas vidas estimulando-nos a crescer cada vez mais. Eliana
Yunes acrescenta: Lembrar é uma forma de reconhecer-se... Na memória está nossa “raiz” e ela é
bem mais que o registro dos acontecimentos pessoais: há uma memória coletiva, outra institucional,
além de que consideramos particular.12
E voltando ao comando da brincadeira de infância eu evoco: Eu me Lembro...retorno aos versos:
Voltando de novo a Junho,
mês de férias, da meninada ouriçada,
olhos vibrantes, brilhantes
como estrelinhas de luzes!
Junho, tempo de fogos,
de cantos e ladainhas.
Junho mês de festejos
dos santos fogueteiros!
Santo Antônio casamenteiro,
santo dos achados e perdidos.
São João, meigo, amigo,
anunciado ao mundo por uma fogueira,
tocha ardente de luz e fé.
São Pedro, santo primeiro,
porteiro do céu, amigo das viúvas
e das solitárias também.
Há bem pouco tempo resolvi fazer uma grande arrumação em parte do meu acervo de trabalho
que guardo comigo, em meu apartamento do Rio de Janeiro, onde resido. Acervo constituído de
diferentes textos, documentos, cartas, panfletos, projetos, programas, uma multiplicidade de papéis
11 FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio: Aprendendo com a própria História V.2. São Paulo: Paz e Terra, 2000p. 28 e 29.
12 YUNES, Eliana:(org.) Pensar a Leitura. Complexidade. Rio de Janeiro. Ed.PUC-Rio: São Paulo: Loyola, 2002 p.28.
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de vários enfoques além de muitos livros. Meti a mão na massa e fui realizando uma investigação
em cada item que me chegava às mãos. Levei dias e dias nessa labuta, na tentativa de descartar o
que me parecia inútil e dando uma disposição seletiva ao que acreditava valer a pena guardar. Fui
colocando, os papéis em pastas e pastas. Foi um trabalho penoso e difícil que me trouxe lembranças
e comoção. Quantas reminiscências! Nesses guardados se encontra parte da minha trajetória de
vida13.Foi nesse processo de arrumação que recebi a visita de um sobrinho que viajava com a família
para o exterior. O avião fez conexão aqui no Rio de Janeiro, por algumas horas, e eles aproveitaram
para estar conosco, no intervalo da viagem.
O casal vinha com duas filhinhas, uma de cinco anos e a outra de sete. Ao chegarem à nossa casa,
de imediato, as meninas se detiveram em frente a uma mesa que se localiza na entrada de nosso
apartamento. Nessa mesa, venho dispondo de alguns objetos de estimação que fazem parte do meu
acervo afetivo e estético. A menina mais velha escolhendo uma das peças ali disposta quis saber seu
significado. Percebi que teria que contar a história daquele vidrinho de perfume e logo desconfiei
que essas duas meninas, Laura e Sophie, iriam me levar a realizar uma viagem de volta ao tempo,
através de memórias.
Respondi à pergunta de Laura para as duas sobrinhas que, atentas, aguardavam por minha explicação. E passei a contar que aquele vidrinho eu vinha guardando, há mais de cinquenta anos, com
todo carinho. Havia sido uma oferta de um aluno quando eu atuava numa segunda série do antigo
primário, (hoje ensino fundamental, 1960). E contei-lhes ainda que esse menino trouxeza de sua
casa, esse vidrinho de perfume, dentro de sua mão fechada, e que, ao me entregar me dissera: É
seu, tia Dolores, eu peguei no lixo da minha casa para você.
As meninas se entreolharam curiosas como cúmplices do meu aluno. E eu acrescentei para elas que
o mais importante, para mim, teria sido receber uma comprovação de afeto vindo do delicado gesto
do garoto ao me oferecer o perfumezinho. Logo, logo as meninas, sagazes que eram, descobriram
que encima daquela mesa havia um manancial de histórias. E a partir daí foram escolhendo e apontando, um a um dos objetos ali dispostos, a mesmo tempo que me solicitavam saber o que representavam. Eu, como se fora uma boa contadora de histórias, fui compartilhando, em narrativas, a
história de cada objeto: Esse pequeno santuário que ganhei de uma irmã; ele vem guardando diferentes santinhos, todos são ofertas de várias pessoas amigas; e sobre estes três pequenos elefantes,
o primeiro veio da Índia e quem me ofertou foi uma amiga cujo esposo havia chegado de viagem
daquele país asiático, registrando histórias fabulosas, O segundo elefante eu mesma comprei em
Puttaparthi, na minha viagem também à Índia, ocasião em que vivi situações muito novas e instigantes; o terceiro veio da África e foi presente de uma prima...E assim fui relatando em curtas sínteses
a história de cada peça: pedrinhas e conchas catadas nas areias de Busca Vida (praia em Salvador
onde passamos momentos inesquecíveis na casa de uma irmã que abrigava familiares e amigos em
fins de semana, feriados, festas marcando significativas histórias, recordações, saudade!
A mesa ainda acolhia: um Santo Antônio esculpido de um pedaço de madeira retirado de uma árvore do parque, em Salvador, onde trabalhei; a amiga que me ofereceu é uma artista e trabalhava
comigo, na época. Um Deus Menino que veio de Cuba. Pequenas figuras de barro vindas do Vale do
13 Uma pasta para cada item dos encontros importantes: Escolinha de Arte do Brasil, (R.J) Instituto Silo Meireles (R.J); Centro Educacional Carneiro Ribeiro/ Escola Parque (BA); Escola Maria Amélia Santos; (BA) Nuclearte/ Neasc; (BA)Secretaria de Educação do Estado
da Bahia e do Município de Salvador (BA);Proler ( 1994 )(RJ) Livraria da Torre(BA); Mombaça ( BA); UFF(R.J); Cádetra Unesco de Leitura
da PUC-Rio(R.J.); Encontros , cursos, oficinas que venho realizando no Rio de Janeiro entre outras experiências.
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Jequitinhonha em Minas Gerais. Castiçais e sino de diferentes procedências, um azulzinho especial
vindo da Suíça, oferta de uma sobrinha querida. Vasinho com terra do Monte de Oliveira, oferta de
um amigo que esteve em Jerusalém quando visitou o local onde Jesus também esteve; esse amigo
me contou que ajoelhou-se embaixo do pé de oliveira para colher um punhado da terra santa e com
ela encher o pequeno vaso. Nessa mesa também tem um potinho de vibuthi, a cinza sagrada, trazida
da Índia. Um terço guardado dentro de caixinha de madrepérola, oferta da madrinha portuguesa
Um anjinho como lembrança da minha mãe. Figuras de barro trazidas da Argentina. Uma pedra colorida que veio da Itália. Um patinho de cerâmica, herança de uma amiga de infância. Uma borboleta
que pisca- luzes, que chegou pelo Natal. Um passarinho chamado Francisco, oferta de uma amiga.
O menorah (candelabro) que veio de Israel e me foi ofertado por uma colega de um curso que frequentamos juntas. O menorah é um símbolo da cultura dos judeus e seu significado é relevante para
seu povo. Esta mesa ainda acolhe uma diminuta foto do Sai Baba, um guru indiano que nos remete a
histórias extraordinárias. Bem no alto da mesa fica um Jesus Crucificado, muito antigo, oferta de um
amigo que me disse ter sido presente do nosso mestre Augusto Rodrigues. A Nossa Senhora Aparecida foi oferta da pessoa que me ajudava nos afazeres domésticos. Estas são algumas entre outras
peças, todas registram suas trajetórias de chegada.
Esta mesa, tão acolhedora, vem guardando uma riqueza de histórias impregnadas de diferentes
saberes e culturas, razão pela qual a coloco, em destaque, na entrada da nossa casa. E através dela
faço uma homenagem a um inesquecível amigo, Fernando Lebeis. Esta peça, tão valiosa, que vem
acolhendo e preservando tantos conhecimentos foi herança desse notável contador de histórias que,
ao partir, deixou todos aqueles que trabalham com memória, acervos e cultura popular, mais empobrecidos. Mas a ênfase especial dada pelas duas crianças recaiu sobre a imagem de Nossa Senhora
Aparecida. Despertou-lhes atenção nessa imagem, seu manto bordado, solto, que dava condições
de ser retirado e retornado, ao corpo, com facilidade. As crianças me pediram que eu contasse, com
detalhes, sua história. Recebi com alegria essa solicitação, pois havia retornado poucos dias antes,
do Santuário de Aparecida o que possibilitou me familiarizar um pouco mais da história da aparição dessa imagem aos pescadores, no rio Paraíba do Sul, perto de Guaratinguetá, (S P). Visitando
o Santuário de Nossa Senhora Aparecida, tomei conhecimento com mais detalhes não só de seu
surgimento como também de seus milagres, da devoção de muitos que a visitam em agradecimento
e solicitação de graças. A Nossa Senhora da Conceição Aparecida tornou-se a Padroeira do Brasil.
Chegara a hora do almoço e saímos todos. Ao voltarmos, as meninas retornaram à mesa e aos
acervos pedindo-me que eu voltasse a contar, de novo, a história de Nossa Senhora Aparecida. E
assim fui ampliando para elas o meu conhecimento sobre essa história. Mas era a hora da partida.
Despedimo-nos, trocando afetos. A família voara deixando-me certa alegria. Refleti sobre o poder
e a magia da nossa imaginação, e em estado contemplativo lembrei-me das palavras do saudoso
escritor Bartolomeu Campos de Queirós: O riacho doce, manso e estreito do meu quintal me fazia
imaginar o mar intenso, salgado, mas para ser assim extenso era preciso estar abaixo de todas as
águas, abaixo do meu riacho. Com as palavras, morando no meu silêncio, eu podia realizar quase o
absoluto dos meus desejos14. Respirei fundo...
Tempos depois, a avó paterna dessas garotas, minha irmã, me telefona e me conta que a professora
da menina menor, Sophie, explicando em sala de aula sobre o feriado de 12 de outubro, dia da Crian14 QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de: Nos Caminhos da Literatura Palestra realizada no Seminário Prazer em Ler de Promoção da
Leitura iniciativa do Instituto C&A e da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil( FNLIJ) – São Paulo: Peirópolis, 2008 p. 159 e 160
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
ça, mobilizou a menina a pedir a palavra a sua professora e relatar para todos da classe que aquele
também era o dia do aniversário da aparição de Nossa Senhora Aparecida. E com espontaneidade
passou a contar a história que conhecera, há pouco, sobre essa imagem.
Como é rico o trabalho com acervo e memória! quantas leituras e leituras que chegam até nós,
encharcando nossas vidas, nos fortalecendo!. Oportuno se faz revermos as palavras de Eliana Yunes
quando afirma que: “A leitura é uma pratica cultural que se adquire e enriquece na interação com os
outros e com o mundo”15 E ainda retomando Yunes registramos:
Dizemos pois, que este clima de troca, rememorações, diálogo resulta numa ambiência de leitura. Pois
ai, lemos mais que o texto, o quadro, o filme, lemo-nos, lemos o mundo, tiramos os olhos do papel para
refletir, pensar. Este ambiente interno e externo estimula práticas e vivências de leituras insuspeitadas e
arranca o leitor da mesmice de ler o lido...A ambiência é pois mais que o ambiente, nele estão mobilizados
os afetos e as trocas16.
Costumo afirmar que quando duas, três ou mais pessoas se agrupam para trocar ideias, compartilhar pensamentos, fazeres e saberes, naturalmente uma ambiência se dá e um encontro se realiza.
Às vezes, estas acontecem espontaneamente no cotidiano do nosso viver, outras vezes, esses encontros são planejados, provocados por múltiplas intenções e por diferentes instituições, movidos por
necessidade em torno de um assunto, um tema, uma causa, um projeto, uma tarefa, uma ideia, um
interesse em comum. O ponto central dessa ambiência é a do encontro com o outro e a valorização
da pessoa humana e do seu aprimoramento como leitor crítico do mundo, um cidadão. Este trabalho de troca de experiências é movido pelas memórias e acervos e que, uma vez compartilhados,
afetam o outro, aquele que participa dessa ambiência, dando-lhes oportunidades de reflexões mais
aprofundadas, de transformações e superações. É um trabalho de educação no entrelace com a leitura podendo ser realizado tanto com as crianças como com os jovens, os adultos, os idosos. É um
trabalho democrático em seu cerne.
Nessas ambiências trabalhamos a escuta, exercitamos nossa voz, trocamos afetos, contamos e cantamos histórias e canções, brincamos, lemos textos informativos e literários, temos a oportunidade
de ler nós mesmos e o mundo como nos ensinou Paulo Freire nos seus círculos de cultura. Esse é um
caminho para a conquista da nossa autonomia e de nossa liberdade. Retomo a Nanci Nóbrega com
seu alerta: “Nenhum acervo é completo; nenhum acervo se esgota”17e com o meu viés de repentista
finalizo esse texto compartilhando ainda, acervos pessoais, em versos:
Junho, mês das crianças
brincarem na chuva com barquinhos de papel,
baterem lama, caminharem nos regos,
molhando as costas, a cabeça, o corpo, a alma,
chegando sonsinhos em casa
ouvindo da mamãe, com aflição
Vão enxugar a cabeça,
mudar a roupa, trocar esses sapato.
Venham tomar um aperitivo
para ficarem quentinhos e não caírem doentes.
Só isto valia tudo: carinho da mamãe
e a bebidinha na goela gostosa, fortinha
só liberada às crianças em tais ocasiões.
15 YUNES, Eliana: Era uma vez.a leitura in Leitores a Caminho formando agentes de leitura: Rio de Janeiro: Editora PUC- Rio. 2011 p.33
16 YUNES, Eliana: Práticas Leitoras – a experiência de Viver a Letra: Entrevista ao Diário do Paraná, Julho, 2001.
17 NÓBREGA, Nanci Gonçalves: Dinamização de Acervos: Tudo que já foi é o começo do que vai vir in Leitores a Caminho- formando
agentes de leitura: YUNES,Eliana(org.): rio de Janeiro:Editora PUC-Rio; 2001 p.139
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Nunca as chuvas nem o frio
impediram São João chegar
e ser muito festejado
com muita comida e licor,
pamonha, amendoim aos montões,
laranja, bolos, cuscuz,
canjica, milho assado ou cozido,
delícias de São João.
Fogueira na porta da casa
ostentando sua árvore,
carregadinha de brindes,
hora de pular o tição,
fazer comadre, compadre
jurando amor e perdão.
Bandeirinhas, bandeirolas
enfeitando os arraiais,
Tantos fogos coloridos! Traques, bombas
estrelinhas, rodinhas, chuvinhas,
pistolões soltando tiros, riscando o ar,
levando beleza, surpresa,
incerteza na sua condição.
No meio disto tudo, balão, balão, balão
belo, leve, fugaz
pontilhando os céus,
percorrendo caminhos.
Olhares encantados,
mesclas de inquietação
quanto ao destino final.
Muita música, quadrilha, animação,
sanfona, zabumba, pandeiro, viola, violão
todos dançando forró,
casas abertas, preparadas,
mesas postas e fartas
assim se aguardava quem de casa em casa
buscava descontração.
A nossa história se passa no meio desta folia
nesse lugar de cercados,
de serras esverdeadas, azuladas,
onde o poeta cantou um dia.
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Referências Bibliográficas
CAMPOS, Maria Dolores Coni. Conversas com as Babás: histórias de Lena, Elza e Zara. Ilustrações
de Ciro Fernandes e Dolores Campos. Rio de Janeiro: Editora Arco Iris / HP Comunicações, 2007.
FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina-reflexões sobre minha vida e minha práxis. (org. e notas) de FREIRE, Ana Maria Araujo .2ºed. São Paulo:Editora UNESP, 2003.
FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Aprendendo com a própria história. V. 2 São Paulo: Editora Paz
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NÓBREGA, Nanci Gonçalves. O Homem em Movimento. Artigo para o Programa Leia Brasil. Rio de
Janeiro, 1997.
NÓBREGA, Nanci Gonçalves; ORRICO, Evelyn Goyannes Dill.( Coord. Temática) INFORMARE: Cadernos do Programa de Pós- Graduação em Ciência e Tecnologia. UFRJ-Escola de Comunicação v.5
n.1(1999)-Rio de Janeiro: CNPq / IBICT – UFRJ / ECO. 1999 -(Informação & Texto: novas e antigas
leituras).
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Nos Caminhos da Literatura. Palestra realizada no Seminário:
Prazer em Ler.( realização)Instituto C&A(apoio)Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil- São
Paulo: Peirópolis, 2008.
_________________________ Indez. Belo Horizonte: Miguelim, 1989.
________________________O Olho de vidro do meu avô. São Paulo: Moderna, 2004.
ROSING, Tania M.K e BECKER, Paulo Leir (orgs).Leitura e animação cultural- repensando a escola e
a biblioteca (edição bilíngue). Passo Fundo: UPF, 2002
YUNES, Eliana (org).Pensar a Leitura: Complexidade. Rio de Janeiro: Ed.PUC-Rio; São Paulo: Loyola,
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_________ Práticas Leitoras- a experiência de Viver a Letra. Entrevista ao Diário do Paraná, jul,
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________ (org) Leitores a Caminho- Formando Agentes de Leitura. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio,
2011.
________Tecendo um leitor, uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009.
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Marcas da loucura e da emoção em Diário do hospício
Daniele Ribeiro Fortuna1
Idemburgo Pereira Frazão Félix2
Jacqueline de Cassia Pinheiro Lima3
Marcio Luiz Correa Vilaça4
Renato da Silva5
Resumo
Este artigo analisa o livro Diário do hospício de Lima Barreto sob o ponto de vista da loucura e da relação entre discurso e
emoção. O escritor não apenas relatava seus sentimentos, mas a partir de seus textos parecia tornar suas emoções mais
concretas: esperança por uma vida melhor e resistência em relação às dificuldades que a vida lhe impunha. Este texto
apresenta ainda uma breve discussão sobre as escritas de si.
Palavras-chave: Escrita de si; Lima Barreto; Discurso; Emoção; Loucura
Abstract
This article analyzes the book Diário do Hospício by Lima Barreto from the point of view of madness and the relationship
between discourse and emotion. The writer not only reported his feelings, but from his writings he seemed to make his
more concrete emotions: hope for a better life and resistance in relation to the difficulties that life imposed him. This
paper also presents a brief discussion of the writings of the self.
Keywords: Writings of the self; Lima Barreto; Emotion; Madness
Resumen
Este artículo analisa el libro Diário do hospício de Lima Barreto desde el punto de vista de la locura y da relación entre
discurso y emoción. El escritor no sólo relataba sus sentimentos, pero a partir de sus textos parecia hacer sus emociones
más concretas: la esperanza por una vida mejor y la resistencia en relación con las dificultades que la vida le imponía.
Este texto presenta aún una breve discusión sobre las escrituras del yo.
Palabras-clave: Escritura del yo; Lima Barreto; Discurso; Emoción; Locura
1 Pós-doutora em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Doutorado em Letras pela Universidade do Estado do Estado
do Rio de Janeiro, com estágio de doutorado-sanduíche na Georgetown University, em Washington, D.C., EUA. Atualmente é professor Adjunto Doutor I da Universidade Unigranrio, atuando na graduação em Comunicação Social e no mestrado acadêmico e doutorado em Letras e
Ciências Humanas. É ainda Jovem Cientista do Nosso Estado (2015-2017) e bolsista de produtividade em pesquisa 1A (Unigranrio / Funadesp).
2 Doutor em Letras (Literatura Comparada) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de Produtividade em Pesquisa FUNADESP/UNIGRANRIO. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da UNIGRANRIO e
do Núcleo de Artes Nise da Silveira, da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
3 Pós Doutora pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Sociologia
pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2006), tendo nos anos de 2003 e 2004 feito seu Doutorado Sanduíche no
Instituto de Urbanismo de Paris, Universidade de Paris XII. Atualmente é Professora e Pesquisadora da Escola de Ciências, Educação,
Letras, Artes e Humanidades da UNIGRANRIO, é Coordenadora Geral do Programa nos Cursos de Mestrado e Doutorado.
4 Doutor em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Professor Bolsista de Produtividade em Pesquisa 1A - UNIGRANRIO/FUNADESP. Coordenador do Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da UNIGRANRIO. Atualmente é professor adjunto doutor I da Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO), atuando no curso de graduação em Letras e no Programa de
Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas.
5 Pós-doutor em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, doutor em Ciências, sub-área História das Ciências e da
Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa 1A - UNIGRANRIO / FUNADESP. Atualmente é
professor adjunto doutor I da Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO), atuando no curso de graduação em Pedagogia e História e
no Mestrado Acadêmico em Letras e Ciências Humanas da Escola de Educação, Ciências, Letras e Humanidades.
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“Contamos histórias porque afinal de contas as vidas humanas precisam e merecem ser contadas”.
Esta frase de Paul Ricoeur (1994:116) nos remete a uma tendência de várias áreas das Ciências
Humanas e Sociais, que têm trazido ao debate as experiências a relação entre as experiências individuais e coletivas. As chamadas escritas de si, marcadamente, diários e autobiografias tornaram-se
objeto de estudo, não apenas da história, mas também da literatura.
O presente texto tem por objetivo refletir sobre a maneira como questões aparentemente corriqueiras e frágeis podem atingir profundamente os seres humanos, provocando sérias consequências.
Partindo da análise da obra Diário do hospício, de Lima Barreto, escrito no período em que o autor
foi internado no Hospício Nacional de Alienados, no bairro da Urca, Rio de Janeiro, intenta-se apontar para a forma como o autor de Cemitério dos vivos sentiu-se excluído, marginalizado.
Deste modo, se excluído, fora, a partir de uma estigmatização, considerado alguém que poderia ser
salvo e auxiliado por uma sociedade dita normal e que tem por princípio a obrigação de ajudar. Pois,
Não somente esta forma de exclusão é relativa, mas ela se revela, sobretudo, nela mesma, das relações
de interdependência entre as partes constitutivas de uma larga estrutura social [...]. A exclusão singular
(...) pela comunidade que os assiste é característica da função que eles preenchem na sociedade como
membros dela numa situação particular. (SIMMEL, 1998:16)
Simmel aqui se refere ao pobre, mas podemos transferir suas ideias também para os considerados
loucos. Afinal, querer definir o excluído em função de critérios únicos é fugir de seus contextos específicos e singulares, esquecendo-se que os sujeitos são historicizáveis:
[...] a exclusão não designa um estado ou uma categoria de pessoas, mas um processo. Existem numerosas
maneiras de ser ‘incluso’ ou ‘excluso’. A sociedade moderna se caracteriza pela multiplicidade e a fluidez
dos papéis e das participações. (SCHNAPPER, 1996:27)
Ser excluído caracteriza um processo dialético num movimento com a própria inclusão. Aquele
que é excluído, portanto colocado à margem da sociedade, pode ser considerado mais vulnerável
a problemas de saúde, ou até mesmo ideologicamente (CASTEL, 1996:37). O marginal nunca estará
totalmente inserido na sociedade e sempre, de uma forma ou de outra, será estigmatizado.
Torna-se importante, entretanto, antes de abordar efetivamente a obra de Lima Barreto, pôr em
discussão a questão das escritas de si, constituída por autobiografias, diários, cartas, dentre outras,
para depois, tratar da relação entre emoção e exclusão social. Interfere nessa discussão a problemática da estudada por Michel Foucault (2012) sobre a reverberação de uma verdade – ao menos,
a verdade do autor – e um lugar de concretização das emoções, presentes nas autobiografias e diários. A necessidade de compartilhar experiências parece impulsionar os escritos a compartilhá-las.
O diário, por muito tempo, foi considerado como gênero menor, em termos literários, por afastar-se da ficcionalidade e aproximar-se dos estudos sobre memória, dentre outros relacionados mais
especificamente à história. No caso dos estudos sobre Lima Barreto, nas últimas décadas, os diários,
biografias (e também as epístolas) passaram a ter um papel relevante.
As escritas de si e sua atualidade
Pode-se entender como escritas de si, de acordo com os estudos de Ângela de Castro Gomes (2014),
como os gêneros que trabalham com a exposição de aspectos íntimos de um autor social, como as
autobiografias, diários e cartas, que, a priori, não têm intenções literárias. Gomes aproxima o debate
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sobre a escrita de si dos estudos históricos. Mas, em termos de literatura contemporânea, deve-se
entender escrita de si, como:
narrativa em que um narrador em primeira pessoa se identifica explicitamente como o autor biográfico,
mas vive situações que podem ser ficcionais – se delineia como um exercício literário típico da modernidade. Nele, as fronteiras entre real e ficção se diluem, e os interstícios desses dois campos engendram
um espaço de significação que problematiza a ideia de referência na literatura. Nesse sentido, a ficção se
apropria da autobiografia para ressaltar o caráter falho de ambas, quer dizer, revela a impossibilidade de
uma representação plena da realidade. (ARAÚJO, 2011:11)
A partir do que se disse anteriormente, afirma-se que os diários e autobiografias, apenas na contemporaneidade começaram a sair das canônicas listas dos gêneros considerados menores. Nos anos 1970, a
autobiografia foi incluída nos manuais escolares, passando a ser integrada ao “cânone literário da escola,
ao lado do romance, do teatro, da poesia” (LEJEUNE 1998 apud SOUSA 2012:150). Mas, como aponta Gusdorf (1991:9), atualmente, a autobiografia já figura como “um gênero literário firmemente estabelecido”6.
A importância da autobiografia, segundo Loureiro (1991:2), reside no fato de que esta é “uma forma
essencial de compreensão dos princípios organizativos da experiência, de nossos modos de interpretação da realidade histórica em que vivemos”.7 Dessa forma, a experiência de cada sujeito pode contribuir para que a realidade do período em que se passa a narrativa de vida seja melhor compreendida.
Além disso, seguindo o pensamento de Arfuch (2010:56), “confissões, autobiografias, memórias, diários íntimos, correspondências traçariam, para além de seu valor literário intrínseco, um espaço de
autorreflexão decisivo para a consolidação do individualismo como um dos traços típicos do Ocidente”.
O diário é um gênero que apresenta grande proximidade em relação à autobiografia, pois também
se constitui como foco importante de pesquisas. Tanto um quanto o outro têm vários pontos em
comum. A definição de Lejeune (1991:48) é esclarecedora. O autor entende a autobiografia como
“relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, enfatizando sua
vida individual e, em particular, na história de sua personalidade”8. Geralmente, o diário é um relato
de situações presentes. Em pouquíssimos casos, ele faz descrições complexas do passado.
Mais do que um simples espaço no qual o autor narra a sua vida, o diário torna-se parte fundamental de sua existência. De acordo com essa visão, escrever transforma-se em uma necessidade para
o narrador do texto. Nesse sentido, se a linguagem é constitutiva do sujeito, o discurso formulado
a partir dela pode reverberar a realidade – pelo menos, a realidade do indivíduo que se expõe nas
páginas de seu texto. É importante salientar que se considera, seguindo a visão de Foucault, que
“o discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios
olhos” (FOUCAULT, 2012:46). Ainda de acordo com Foucault (1966:405), “onde houver discurso, as
representações expõem-se e justapõem-se; as coisas assemelham-se e articulam-se”. Só se pode
conhecer as coisas e sua ordem “através da soberania das palavras” (FOUCAULT, 1966:405).
Dessa forma, a experiência se concretiza por meio de sua relação com o discurso. É por meio do discurso ainda que o sujeito expõe suas emoções. Por isso, escrever pode ser parte fundamental para quem
utiliza o discurso para compartilhar com o diário – e seu(s) leitor(es) – suas experiências e sensações.
6 Tradução nossa. No original: “La autobiografía es un género literario firmemente establecido (...)”
7 Tradução nossa. No original: “(...) autobiografía (...) como una forma esencial de comprensión de los princípios organizativos de la
experiencia, de nuestros modos de interpretación de la realidad histórica en que vivimos”
8 Tradução nossa. No original: “Relato retrospectivo en prosa que una persona real hace de sua propia existencia, poniendo énfasis
en su vida individual y, en particular, en la historia de su personalidad.”
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Emoção e discurso
O filosofo francês Michael Foucault (1978) analisa como o tempo e o espaço foram relacionados à loucura. Para Foucault, o espaço seria um meio de produção da loucura. Segundo o autor, no período denominado como Época Clássica, acreditava-se que a natureza tinha influência determinante na manifestação
da insensatez. O ar, a atmosfera, o calor e o frio seriam responsáveis por alterações no indivíduo que
conduziriam à loucura. Mas o meio também se transforma: de natural passa a ser artificial, um construto
do homem social. As construções das instituições sociais e a normalização imposta demarcariam novas
fronteiras psíquicas de normalidade e patologia mental (GANGUILHEM, 1995). De acordo com Foucault:
Quando o século XIX decidir fazer com que o homem desatinado passe para o hospital, e quando ao
mesmo tempo fizer do internamento um ato terapêutico que visa curar um doente, fa-lo-á de um golpe
de força que reduz a uma unidade confusa, mas para nós difícil de deslindar, esses temas diversos da
alienação e esses múltiplos rostos, da loucura, aos quais o racionalismo clássico sempre havia permitido a
possibilidade de aparecer. (FOUCAULT, 1978:134).
Haveria, neste sentido, duas formas de identificação do louco, uma que isenta e tira a responsabilidade, e a outra que culpa moralmente e exclui. O animal humano é negado e excluído, paradoxalmente mostrado como o mal do homem. A cultura terá seu papel na delimitação da loucura. Ela será
responsável via socialmente e juridicamente pela produção dos insanos, os que seriam considerados
“os não capazes de escolher”. (FOUCAULT, 1978:151)
O hospício é, assim, considerado como a morada dos desatinados, a casa de custódia dos espíritos
selvagens e perigosos. Mas esse espaço, assim como o conceito da loucura, é produzido e transformado pelo tempo e pelas sociedades ocidentais. Foucault (1978), na sua análise sobre a loucura,
apresenta primeiramente a questão como um conceito evolucional, não no sentido progressivo ou
acumulativo, e sim de transformação. Trabalha períodos históricos como a Idade Média, no qual o
louco era identificado como um blasfemador, sofria efeitos de possessões malignas. O louco medieval era um profano (FOUCAULT, 1978:93). Na renascença, após um breve período de “liberdade
sexual”, a loucura passou ser associada a “distúrbios” da sexualidade. Na Época Moderna, o aparecimento de instituições normalizadoras da sociedade, como família, casamento e casas de internações, retira por completo o caráter profano da loucura para conceder identidade patológica que será
sacralizada no discurso médico do século XIX.
Sendo assim, a relação entre emoção e discurso é importante para compreendermos a importância
da escrita para Lima Barreto. O escritor não apenas relatava seus sentimentos, mas a partir de seus
textos parecia tornar suas emoções mais concretas: esperança por uma vida melhor e resistência em
relação às dificuldades que a vida lhe impunha.
Nesta breve reflexão sobre as relações entre emoção e discurso, convém recorrer a Rezende e Coelho (2010), que argumentam que, por meio do discurso, podemos “dramatizar, reforçar ou alterar
as macrorrelações sociais que emolduram as relações interpessoais nas quais emerge a experiência
emocional individual” (REZENDE; COELHO, 2010:78). É neste sentido que o trabalho das pesquisadoras possibilita pensar numa “micropolítica de emoção”. No mesmo trabalho, as pesquisadoras afirmam de forma bastante consistente que “as emoções surgem perpassadas por relações de poder,
estruturas hierárquicas ou igualitárias, concepções de moralidade e demarcações de fronteiras entre
os grupos sociais” (REZENDE; COELHO, 2010:78). Fica evidente, portanto, que em diferentes práticas sociais e atividades culturais e artísticas, o discurso é empregado como ferramenta essencial de
manifestação, representação, e simbolização de emoções.
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Em trabalho recente, Fortuna (2015) discute o papel fundamental das emoções na sociedade, considerando que estas são, no entanto, submetidas a regras sociais que influenciam a manifestação
objetiva das emoções. O trabalho de Fortuna (2015:76) ilustra que “Em um ambiente de trabalho,
por exemplo, é preciso ser cordato, mesmo que sentindo raiva ou tristeza. É preciso ainda parecer
equilibrado, ainda que haja uma sensação de instabilidade”. Em outras palavras, as emoções são
filtradas ou passam por certo nível de ocultação ou disfarce em diferentes atividades sociais, já que
a sua manifestação plena pode, em muitas situações, romper com padrões socialmente aceitáveis,
o que pode contribuir para rótulos como excentricidade, desequilíbrio, egocentrismo ou loucura.
Podemos considerar, assim, que as manifestações artísticas, entre elas a literatura, permitem um fértil
campo para manifestações mais livres e variadas das emoções, sob menor influência dos padrões e das
críticas sociais. Se na vida real, as emoções podem representar, conforme aponta Fortuna (2015), instabilidade, na obra literária, a emoção encontra suporte mais comum como manifestação do lirismo.
Considerando que o foco nesta parte do trabalho é a emoção, é necessário que examinemos algumas concepções teóricas sobre o tema. Le Breton (2009:113) argumenta que “a emoção é a própria
propagação de um acontecimento passado, presente ou vindouro, real ou imaginário, na relação do
indivíduo com o mundo”. O autor evidencia nesta afirmação a reação entre o pessoal (indivíduo) e
o social/coletivo (o mundo).
Miller (1997:8), afirma que as “emoções são sentimentos que se relacionam a maneiras de se falar
desses sentimentos, a paradigmas culturais e sociais (...)” Esta colocação chama a atenção para
paradigmas culturais e sociais. Assim, não podemos considerar que as formas de manifestação e
recepções das emoções se enquadrem confortavelmente em um molde estável em diferentes situações em contextos. Neste sentido, Korsmeyer (2011) apresenta reflexões sobre as emoções como
modelos de comportamento que aprendidos ao longo da vida e que refletem ideologias, códigos
morais e crenças religiosas. Desta forma, toda manifestação emotiva que ultrapasse certos modelos
sociais e culturalmente aceitáveis previamente estabelecidos pode gerar instabilidade e proporcionar um campo para caracterizações e críticas negativas. Fortuna (2015:77) trata desta questão de
forma objetiva e bastante ilustrativa ao apontar que:
Em determinados grupos sociais ocidentais, por exemplo, é recomendado que o indivíduo se comporte de
forma ‘adequada’ no que diz respeito às emoções. No luto, o choro é esperado – mas com um certo comedimento. No nascimento, a emoção – porém, sem um entusiasmo excessivo. As emoções apresentam,
portanto, uma dimensão cultural, podendo variar, assim, de grupo social para grupo social.
Apresentando reflexos da emoção sobre o corpo, Coelho (2010:266) destaca que “as emoções são
pensamentos de algum modo ‘sentidos’ em rubores, pulsações, movimentos de fígado, mente, coração, estômago, pele”. Assim, se as discussões anteriores enfatizam aspectos sociais e culturais, esta
nos permite refletir sobre as relações das emoções sobre questões fisiológicas (FORTUNA, 2015). Le
Breton (2009:121) considera que a “mudança corporal é a expressão direta da percepção do fato
excitante e que a emoção decorre da consciência dessa mudança”.
Fortuna (2015:78) discute o corpo como espaço de reflexo direto de emoções, argumentando que
“para cada emoção, uma repercussão física diferente”. O trabalho prossegue, afirmando que:
Com isso, emoção e corpo são instâncias indissociáveis. As emoções que sentimos se refletem no corpo,
ainda que, muitas vezes, tentemos esconder. Algumas emoções podem ser camufladas. Com habilidade,
é possível disfarçar tristeza, alegria, insatisfação. Mas há emoções extremamente fortes e que são impossíveis de se esconder, como o medo, por exemplo. (FORTUNA, 2015:78)
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Marcas de loucura e exclusão em Diário do Hospício
Embora não possa ser considerado, efetivamente, um doente mental, Lima Barreto foi internado
por duas vezes no Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro. O motivo de tais internações,
que entristeciam o autor, principalmente pelo fato de que era levado pela polícia, era o alcoolismo.
Foi no período de segunda internação, entre dezembro de 1919 e fevereiro de 1920, que escreveu O
Diário do Hospício. Outra obra que trata diretamente da loucura, denomina-se Cemitério dos Vivos.
Neste texto, Barreto utiliza, simultaneamente, aspectos reais e fictícios.
A história de Lima Barreto está cercada de momentos em que a loucura interfere de maneira definitiva. Desde a infância, quando seu pai dirigia, na Ilha do Governador, um hospital de alienados, Lima
Barreto acostumou-se a conviver com suas figurações. Mais tarde seu pai passa a ter problemas
mentais, o que dura até a morte. Como se pode perceber, a problemática da loucura é um tema
recorrente na biografia e na bibliografia de Lima Barreto.
Considerado um escritor Pré-modernista, Lima Barreto se mantém na linha realista, mas seu texto
funde várias estéticas, como ocorre com outros escritores do mesmo período literário, como Graça
Aranha e Euclides da Cunha.
Conhecido, principalmente, por seu romance Triste fim de Policarpo Quaresma, como se sabe, Afonso Henriques de Lima Barreto, nasceu no Rio de Janeiro e teve suas obras lançadas no início do século XX. Criticado
por seus contemporâneos, afeitos, ainda, ao paradigma literário parnasiano, após o advento do Modernismo, começa a ser respeitado, principalmente por sua inclinação ao trato de assuntos e aspectos relacionados
aos cidadãos da periferia, principalmente dos subúrbios. Ele próprio, um suburbano, com uma capacidade
jornalística reconhecida por seus colegas de ofício, assumia essa condição, de maneira crítica. Se em seus
romances encontramos situações da periferia e do centro da cidade ficcionalizados, em suas crônicas, muitas vezes, de forma direta criticava seus contemporâneos, principalmente os “falsos doutores”, literatos e
o poder público. Juntando a essa condição de morador da periferia, inúmeros problemas pessoais, principalmente os relacionados ao alcoolismo, fizeram com que o escritor sentisse na pele, em seu cotidiano, um
marginal. Se obtivera certo reconhecimento como jornalista, suas atitudes, que incluem tratamentos em
casas psiquiátricas, demonstram um forte descontentamento de sua parte. Inserido no rol dos chamados
“escritores malditos”, Lima Barreto, ao invés de utilizar essa alcunha como escudo, arma, ou mesmo como
forma de promover seus trabalhos, como tem ocorrido com alguns “escritores da periferia”, na atualidade,
ao contrário, internalizava essa “marginalidade”, sem saber ou querer digeri-la. (FRAZÃO, 2011:8)
Os motivos que levavam Lima Barreto ao Hospital dos alienados, e mesmo a base temática do Diário
e de O Cemitério dos vivos, estão centrados, principalmente, em aspectos relativos à sua identidade
de Negro, pobre e suburbano. É contundente a passagem em que o autor descreve o momento em
que um dos “alienados”, que se chama e se sente “caranguejo”, afirma que, realmente não é nada.
Em uma de suas anotações, no Diário do Hospício, Lima Barreto narra uma passagem em que um paciente,
ao se revoltar contra uma agressão, tem um ataque de nervos, rasga suas vestes e quase chorando, profere palavras que sintetizam a condição do louco como refugo humano. Um interno, Caranguejo, aleijado,
cansado das perseguições que sofria, alterado, dizia: “- Eu não sou nada! Ponha tudo isso fora”.. (Barreto,
2010, p. 86). O Diário deixa que se perceba que o louco, internado em um hospital de “alienados”, torna-se
um realmente um “refugo humano”,. As roupas e seu corpo, maltratados pelo tempo, sem valor social não
servem para nada. Aleijado, em condição sub-humana, esse louco percebe sua condição e conclui, em sua
crise, algo mesmo tempo desesperador e coerente. (FRAZÃO, 2011: 9-10)
O autor de Isaías Caminha incomodava-se pelo fato de ter sido internado à revelia, em função de problemas com o álcool. A polícia o levou para lá, após o escritor ter exagerado na bebida. Em seu diário,
ele afirma: “Não me incomodo muito com o Hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da
polícia em minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco (...)” (BARRETO, 2010:44).
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Segundo Bosi (2010:12), os textos de Lima Barreto mostram que:
a polícia é um instrumento que serve de veículo para encaminhar o suposto demente a um lugar apartado,
na medida em que ele é confundido com o marginal. Por algum tipo de comportamento considerado anormal, deve ser retirado da sociedade e encerrado em uma espécie de depósito onde os seres ‘normais’ não
o vejam nem mantenham com ele qualquer contato. O aparelho policial aparece, mais de uma vez, como
a aparece, mais de uma vez, como a primeira triagem, que separa o joio do trigo social.
Segundo Ganguillem (1995), a capacidade do homem em se adaptar às normas sociais é a condição
existencial dele. Ou seja, quando o homem não consegue se flexibilizar, ele passa a ser considerado
anormal. As normas e regras sociais sofreram um processo complexidade a partir do século XIX, com
o aperfeiçoamento cientifico das áreas do direito e da medicina. O Estado contará com instituições de
seleção, classificação e repressão dos inimigos da ordem social, indivíduos que foram conduzidos à margem da sociedade. Os hospícios contaram com apoio de um aparato policial para preencher muitos dos
seus leitos (SILVA, 2013). O aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século XIX para XX
é um exemplo significativo das associações de instituições assistenciais e repressoras (CARRARA, 1988).
Na Era Clássica, a doença do espírito não era separada da sua essência. A loucura pertencia à desordem biológica e moral. No século XIX, a doença é da natureza do organismo, o desatino fará parte
do discurso da normalidade, num nível psicológico. Para Foucault (1978), o louco e a loucura eram
perigosos e ameaçavam a ordem social. Os indivíduos resistentes ou descrentes das instituições
normalizadoras eram criminosos. A transformação na sociedade burguesa produziu também o fortalecimento dos mecanismos de controle e coerção.
[...] Numa palavra, o medo da loucura, que no século XVIII era o temor das consequências de seu próprio
devir, aos poucos se transforma no século XIX, a ponto de ser obsessão diante das contradições que, no
entanto, são as únicas que podem assegurar a manutenção de suas estruturas; a loucura tornou-se a
paradoxal condição da duração da ordem burguesa, da qual ela constitui, do lado de fora, no entanto, a
ameaça mais imediata [...] (FOUCAULT, 1978:376).
Estar internado incomodava menos Barreto que a arbitrariedade de ser internado contra sua
vontade, e ainda por cima, como se fosse um criminoso. Na verdade, este é o início de uma
estadia que, por vezes, o texto do escritor revela pouco incômoda. Embora questione a eficácia
da medicina e dos médicos no que diz respeito à loucura, ele demonstra sofrimento maior por
suas questões pessoais e existenciais do que pela internação propriamente dita. Parece, inclusive,
considerar o hospício um local aprazível: “O Hospício é bem construído e, pelo tempo em que o
edificaram, com bem acentuados cuidados higiênicos. As salas são claras, os quartos amplos, de
acordo com a sua capacidade e destino, tudo em arejado, com o ar azul dessa linda enseada de
Botafogo (...)” (BARRETO, 2010:50).
Entretanto, em alguns momentos, seu texto deixa entrever desamparo, solidão e vergonha – “Todos
nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor” (BARRETO, 2010:45). O escritor também se diz arrependido pelo comportamento que culminou com a sua internação: “Arrependo-me
de tudo, de não ter sido um outro, de não seguir os caminhos batidos e esperar que eu tivesse sucesso, onde todos fracassaram” (BARRETO, 2010:94).
Barreto divide com o leitor as desventuras pelas quais passou em razão da bebida: “Tenho vergonha
de contar algumas dessas aventuras (...) Resvalava para a embriaguez inveterada, faltava à repartição semanas e meses. Se não ia ao centro da cidade, bebia pelos arredores de minha casa, desbragadamente. Embriagava-me antes do almoço, depois do almoço, até o jantar, depois deste até a hora
de dormir” (BARRETO, 2010:64).
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Em seu diário, ainda, o autor de O triste fim de Policarpo Quaresma, vagueia entre os relatos do
passado e os comentários sobre a sua vida presente no hospício. Ele tece inúmeras considerações
sobre os médicos que ali conhece e a sua atuação. Nesse sentido, não observamos exatamente
sujeição às regras médicas, mas resistência e uma busca por manter-se ativo, lúcido. Todos os dias,
ele procura ler e escrever, ou no seu quarto ou na biblioteca – suas referências à biblioteca e a livros
são inúmeras. Tenta conversar com os companheiros de infortúnio – embora nem sempre consiga –
e também com os funcionários, que, muitas vezes, os fazem passar por situações constrangedoras,
como a nudez parcial ou total.
Para Bosi (2010), Lima Barreto consegue relativizar os vexames que enfrenta no hospício e, ainda que
esteja cercado de loucos indigentes, vestindo trapos ou mesmo nu, é capaz também de não se sujeitar
aos médicos. Aliás, o escritor parece não acreditar neles – “Conheço loucos, médicos de loucos, há perto de trinta anos, e fio muito que a honestidade de cada um deles não lhes permitirá dizer que tenha
curado um só”. (BARRETO, 2010:90) –, muito menos no sistema de saúde psiquiátrico – “(...) o nosso
sistema de tratamento da loucura ainda é o da Idade Média: sequestro” (BARRETO, 2010:90).
Entretanto, é possível perceber em seu texto um grande paradoxo: ao mesmo tempo em que se apega à realidade, muitas vezes, parece delirar ou querer se entregar ao sofrimento. Se a emoção, como
considera Le Breton (2010), afeta diretamente o corpo, este, em algum momento, dará mostras dos
sentimentos que o afligem, ainda que tentemos reprimi-los.
O escritor reflete sobre a loucura:
Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente
uma impressão geral dela. (...) Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só. (...) Todas essas
explicações da origem a loucura me parecem absolutamente pueris. Todo problema de origem é sempre
insolúvel. (...) Até hoje, tudo tem sido em vão, tudo tem sido experimentado; e os doutores mundanos
ainda gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os colos e os brilhantes, que a ciência
tudo pode. (BARRETO, 2010:67-68)
Em certos trechos da obra, é possível perceber seu desespero, uma espécie de torpor que toma
conta dele: “(...) queria matar em mim todo o desejo, aniquilar aos poucos a minha vida e sumir-me
no todo universal” (BARRETO, 2010:83).
Mas a contradição maior aparece quando se refere a sua mulher. Segundo Bosi (2010), fazendo alusão a Francisco de Assis Barbosa, Lima Barreto não só nunca foi casado, como apresentava tendência
à misoginia. O crítico literário afirma ainda que é justamente quando o escritor mergulha em seu
passado e relembra todo o sofrimento pelo qual passou, que “o texto confessional cede a um lance
de ficção” (BOSI, 2010:26).
Se o discurso, como vimos anteriormente, é a reverberação da verdade (FOUCAULT, 2012), então,
mais do que ficção, a fala de Barreto talvez seja fruto de um delírio. O solteiro e um tanto celibatário
Lima Barreto – segundo Bosi (2010), mais uma vez, ele teria tido apenas encontros ocasionais com
prostitutas – afirma, em seu diário, ter sido casado, demonstrando, inclusive arrependimento por
não ter amado a esposa: “Não amei nunca, nem mesmo minha mulher que é morta e pela qual não
tenho amor, mas remorso de não tê-la compreendido (...)” (BARRETO, 2010:84).
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Considerações finais
A partir do que vimos aqui, podemos perceber como a linguagem é instrumento de poder e representação. Cada cenário descrito estabelece dois lugares: o do autor e do leitor. Leitor de um texto
que não necessariamente deve estar escrito, mas apresentado de tantas formas. No diário, portanto
escrito, o texto revela não só a intenção de Lima Barreto de descrever o lugar e sua passagem pelo
manicômio, mas também a sua percepção e a de quem o lê, já que o espaço de quem está de fora da
escrita é que vai dar sentido a ela. O papel do espectador torna-se o papel daquele que manda, que
revela o que realmente entende por ter lido e o assimila. O leitor manda no que percebe.
Deste modo, nossa leitura desse período vivido pelo escritor reforça a ideia de que a sua fala demonstra
impotência e descrença diante da loucura e de tudo o que a cerca. Por vezes, ele parece se sentir parte
dessa realidade – “O que há em mim, meu Deus? Loucura? Quem sabe lá? (BARRETO, 2010:65) –, admitindo que tem problemas. Por outras, considera-se lúcido, diferente dos sujeitos com quem aí convive:
“De mim para mim, tenho certeza que não sou louco (...)” (BARRETO, 2010:44). Ou ainda: “Estou entre
mais de uma centena de homens, entre os quais passo como um ser estranho” (BARRETO, 2010:59).
O diário talvez seja a válvula de escape de Barreto: um mundo à parte em meio a um ambiente
caótico e sem esperança. Porém, ainda que se veja ‘protegido’ pela segurança do papel, sua própria
escrita é reflexo do desalento que o acomete.
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Referências bibliográficas
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Dinamização de acervos: de que acervos falamos...
Maria Helena da Rocha Besnosik 1
Resumo
camente, o professor que está na sala de aula, lidando com a árdua tarefa de formar leitores.
Palavras-chaves: Literatura, Leitura, Dinamização, Acervos
Abstract
-
Keywords:
______________________________
1 Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia(1981), especialização em Alfabetização pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais(1994), mestrado em Educação pela Universidade Federal da Bahia(1989) e doutorado
em Educação pela Universidade de São Paulo(2002). Atualmente é Professor Titular da Universidade Estadual de Feira de Santana.
Tem experiência na área de Educação.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
Iniciando a nossa conversa
Estava quieta em meu canto, como nos diz o ditado popular, quando fui provocada a sair da minha zona
de conforto e registrar traços, marcas, experiências, fragmentos de uma vida leitora ora como fogo
brando, ora em chispas como nos diz Eduardo Galeano em um dos seus contos em o Livro dos Abraços.
Sempre que falamos em acervo, pensamos, imediatamente, nas bibliotecas, o que não é um equívoco, mas gostaria, num primeiro momento, de fazer uma reflexão sobre o tema em outra direção.
Falar em dinamização de acervo nos remete à figura do leitor, pois sem ele os textos nas mais diversas linguagens ficam sem vida, como nos assinala Eco e Chartier. Humberto Eco, em Seis passeios no
Bosque da Ficção, afirma que o texto é uma máquina preguiçosa, que se precisa da figura do leitor
para funcionar. Chartier, em Cultura escrita, literatura e história, se dedica à compreensão das práticas de apropriação do texto que se configuram no ato da leitura e propõe que cada leitor se apropria
do texto de maneira diferente, singular, a depender da época, do contexto e da sua materialidade.
Portanto, faz-se necessário pensar em acervos no plural, posto que além dos acervos reunidos ao
longo da história das civilizações, há um acervo pessoal construído ao longo da nossa existência.
Inicio, então, falando um pouco da minha história como leitora e de como fui construindo este acervo, parafraseando Eco quando nos convida a pensar em uma biblioteca interior.
Na infância, tive a grande alegria de conviver com as minhas duas avós: uma contava histórias e a
outra lia livros. Das histórias contadas guardo gratas lembranças que mais tarde, quando adulta, reencontrei recolhidas por Câmara Cascudo no livro Contos Tradicionais do Brasil, publicado pela Ediouro.
Lá estavam O compadre da morta; A moura torta; A mulher do piolho; O homem que botou um ovo e
muitas outras histórias que, na voz da minha avó, embalaram as minhas noites antes de dormir.
Já com a minha avó materna aprendi a amar os livros e por meio dela fui apresentada a autores e personagens que povoaram o meu mundo infantil. Muitos deles ainda guardo na memória: Cazuza de Viriato
Correia, um autor maranhense, que conta a história de um menino que sai da roça para a cidade grande.
Eu ficava encantada com as aventuras de Cazuza, me identificando com o personagem. As reinações de
Narizinho de Monteiro Lobato, o primeiro de uma série de que aprendi a gostar e a me deliciar com as
aventuras de Emília, Pedrinho, Narizinho e toda a turma do Sítio do Pica-pau-amarelo. Também conheci
a Condessa de Ségur, uma autora francesa nascida na Rússia, que ficou muito conhecida com os seus
livros As meninas exemplares e Os desastres de Sofia. Ah! Como me identifiquei com aquelas meninas,
apesar de se tratar de uma realidade bem diferente da minha, mas com conflitos próprios daquela idade.
Como gostava de ficar quieta, compartilhando com os personagens as suas histórias ao modo de
Proust em Sobre a Leitura. Diz Proust que o que guardamos na memória das nossas leituras da infância está relacionado aos lugares, aos momentos e às pessoas que nos introduziram neste mundo. Os
contos ouvidos e os livros lidos certamente contribuíram para a minha formação como leitora e os
guardo até hoje nesta minha biblioteca interior.
Já na adolescência continuei realizando as minhas leituras, às vezes, indicadas pelos professores e,
às vezes, escolhidas por mim mesma a partir dos meus desejos. Nesta fase, um livro que me marcou
muito foi A Boa Terra de Pearl S. Buck. Este livro chegou às minhas mãos por meio de uma outra
menina, colega de escola, que pegou este livro da estante de sua mãe. Ela me emprestou e eu fiquei
fascinada pela história. Pearl Buck era uma autora americana que viveu muito tempo na China e
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escreveu um romance que transporta o leitor para conhecer a China no início do século XX. O livro
com 318 páginas não tinha gravuras, mas fui fisgada pela narrativa.
Essas leituras foram puxando muitas outras leituras e me constituindo uma leitora em alguns
momentos compulsiva, não chegando, é claro, ao extremo do personagem de Ítalo Calvino em Os
Amores difíceis, mais especificamente no conto “A aventura de um leitor”, que conta a história de
Amedeo, um leitor que já não conseguia se conectar à realidade, por estar muito envolvido com
as suas leituras. Esse tipo de leitor nos remete à Emma, personagem de Flaubert no livro Madame
Bovary. Emma já não vivia a sua vida, mas sim a dos personagens dos livros que lia.
Mexer na memória, buscando esse acervo pessoal, nos faz pensar que nós todos possuímos uma
história como leitores e que, na prática, somos dinamizadores de acervos à medida que fazemos, de
certa forma, circular essas nossas leituras.
O texto literário: o seu lugar nos acervos
Caro leitor, continuemos nossa conversa, agora refletindo como os mais diversos sujeitos constroem, ao longo da vida, os seus acervos a partir do contato com o texto literário, na perspectiva do
que Antonio Candido chama de processo de humanização no seu texto O direito à literatura no livro
Vários escritos. Candido chama a atenção para o fato de que a literatura não é boa, nem má, não
nos torna melhores, nem piores, mas nos humaniza, porque nos faz viver. Por isso, o crítico defende
a literatura como uma necessidade universal que precisa ser satisfeita como um direito do cidadão.
Michele Petit, em Os jovens e a leitura, insiste em nos fazer refletir sobre a leitura do texto literário
como uma “experiência singular” e que nem todas as pessoas na sociedade têm a oportunidade de
viver essa experiência, por falta de condições financeiras, por falta de incentivo ou desejo. Diante
desta constatação, sem dúvida, amplia-se o nosso papel social.
Assim, gostaria de convidar o leitor deste texto a pensar qual é a nossa responsabilidade, e falo do meu
lugar de professora, no sentido de contribuir para que crianças e jovens possam ter acesso a textos literários que oportunizem ao leitor uma experiência estética conforme defende Jauss no texto A Estética da
Recepção: Colocações Gerais, publicado no livro A Literatura e o Leitor, organizado por Luiz Costa Lima.
Pensemos, então, que este encontro com o texto literário pode acontecer nos mais diversos lugares
e não somente na escola e na biblioteca. A minha experiência com a escola e com professores tem
mostrado que a relação com o texto literário tem sido mais intensa nos anos iniciais da Educação
Básica. Observo que há uma preocupação dos professores em oferecer aos seus alunos textos que
possam ajudar na expansão da capacidade de fantasiar, de imaginar, de se surpreender, de estranhar e, com o passar dos anos, esta mesma escola toma como referência currículos engessados que
fazem uma ruptura com a possibilidade de ‘ler por ler’ e, daí em diante, tudo que se lê transforma-se
em atividades que devem ser obrigatórias. Didatiza-se a leitura do texto literário.
Na pesquisa que nós do Núcleo de Leitura Multimeios da Universidade Estadual de Feira de Santana
realizamos no período de 2008 a 2011 em um Colégio de médio porte da cidade de Feira de Santana, os alunos classificaram algumas leituras literárias solicitadas pelos professores como maçantes e
cansativas. Leituras que fazem parte de um acervo que podemos considerar essencial para a consti-
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tuição de um sujeito crítico, criativo e que poderiam aflorar no leitor uma experiência com a palavra
de maneira mais intensa.
No entanto, a forma como o texto é apresentado, infelizmente, não fisga o leitor; muito pelo contrário, o tem afastado de viver esta experiência. Mas, também não podemos afirmar que os jovens
não leem. Pelo contrário, os jovens estão lendo, na maioria dos casos, não o acervo autorizado pela
escola, mas guiados pelo desejo da narrativa. Estão lendo o que é proposto pela mídia, os best sellers e um acervo que faz parte das rodas de conversa, sejam presenciais ou virtuais. Esse acervo é
comentado e recomendado entre os jovens, a exemplo de Nicolas Sparks com os seus livros Diário
de uma paixão, Um amor para recordar, Noites de tormenta, A escolha, só para citar alguns. Além
da série Crepúsculo de Stephenie Meyer, O monge e o executivo de James C. Hunter e tantos outros
que circulam de mãos em mãos nas preferências dos diversos leitores.
A intenção aqui não é estabelecer nenhuma crítica ou juízo de valor. De forma alguma. Podemos
criticar qualquer leitura, mas como nos recomenda Daniel Pennac em Como um romance, que os
jovens comecem com romances açucarados e cheguem a Balzac. José Paulo Paes também nos alerta
neste sentido de que o leitor é constituído de muitas leituras desde Adelaide Carraro até um Dostoiévski. Portanto, sabemos que temos um acervo a descobrir e a movimentar.
Recentemente, ouvi um depoimento de uma jovem leitora que já leu vários livros do Nicolas Sparks,
que se encantou com a série, mas admite que não tem mais vontade de continuar lendo os livros
deste autor, pois tem percebido que toda a sua narrativa segue o mesmo esquema e por isso não
mais a surpreende. Esta experiência nos coloca diante de uma leitora mais autônoma, mais crítica,
que descobre que esta leitura não mais a inquieta, não causa estranheza e, assim, vai à busca de
outros autores e outras narrativas.
É importante salientar que estamos inseridos em uma sociedade de modelo capitalista, na qual o
cotidiano das pessoas tem como mote o consumo. Os bens culturais fazem parte deste rol de bens
de consumo. A nossa tarefa é qualificar o consumo, é tornar este consumo consciente, contribuindo
para a formação de sujeitos mais críticos. Por que estou trazendo esses elementos para uma reflexão? Porque consumimos livros, literatura, cinema, música e precisamos pensar no que nos tem
sido oferecido. A literatura de massa, produzida em grande escala, de certa forma, contribui para
a formação de leitores, mas precisamos ampliar o nosso leque de leituras para que elas não sejam
apenas um entretenimento passageiro, mas que, ao mesmo tempo, divirtam e nos façam pensar.
Observando crianças e jovens que circulam nas bienais e feiras de livro, tenho me deparado com
leitores que, muitas vezes, por falta de orientação, buscam ‘o mais fácil’. Adquirem livros produzidos
para serem descartados que, numa primeira leitura, não encantam pela palavra o leitor. Em uma
semana, são esquecidos. São livros produzidos em série sem nenhuma preocupação com o sujeito
leitor, mas com a intenção clara de comercialização.
Muitos têm sido os programas de distribuição de livros nas escolas e nas bibliotecas públicas, mas a
presença do livro não significa a existência do leitor. Há todo um trabalho que precisa ser realizado
para que os livros saiam das estantes e comecem a povoar a vida dos sujeitos.
A escola tem sido considerada, segundo Angela Klemain, como a mais importante agência de letramento e, portanto, um espaço oportuno para ir além do processo de alfabetização, ou seja, da codificação e decodificação das palavras, ir mais fundo em busca dos sentidos das palavras. Os dados de
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pesquisa e as conversas com os professores têm mostrado que os livros de literatura que chegam
às escolas, muitas vezes, não chegam nas mãos do leitor. Por outro lado, os alunos se queixam dos
acervos das bibliotecas pela falta de textos diversificados e pela falta de pessoal qualificado que os
ajude nas suas escolhas de leitura.
A pesquisadora Aparecida Paiva, no livro que organizou Literatura fora da caixa e no capítulo Políticas públicas de leitura: pesquisas em rede, faz uma análise dos programas do governo federal que
têm como objetivo a distribuição de livros, principalmente de literatura, e conclui com uma reflexão
sobre a falta de uma política para a formação de mediadores de leitura, professores e bibliotecários.
Recordo um depoimento de uma professora sobre uma situação vivida por ela durante a vigência do
programa Literatura em minha casa, cujo objetivo era possibilitar que o livro chegasse à casa dos alunos
e que a leitura fosse compartilhada entre os familiares. A professora contou que descobriu que um de
seus alunos levava o livro e vendia. Ela ficou muito preocupada e percebeu que não bastava colocar o
livro na mão do aluno sem um trabalho sobre o valor deste bem e da importância da circulação do livro.
Neste sentido, Aparecida Paiva chama atenção sobre a importância desses programas, pois contribuem para a democratização do acesso, oportunizando a circulação de um acervo de qualidade,
para uma população cuja a única oportunidade do contato com o livro, na maioria das vezes, é na
escola. No entanto, a autora nos alerta sobre a necessidade de um investimento na formação de
mediadores de leitura, e isso é da responsabilidade de todos nós.
Tive a oportunidade de conhecer uma biblioteca no interior da Bahia que foi instalada numa antiga
estação de trem. O espaço era maravilhoso, com um acervo diversificado que incluía os clássicos e
os modernos escritores, mas, infelizmente, sem leitores. Observei que boa parte dos livros estava
intacta, faltava quem os folhasse, quem os acolhessem, quem desse vida a eles. Não havia um trabalho de dinamização deste rico acervo e as pessoas não enxergavam o espaço da biblioteca. Fiquei
triste e pensando no que poderia ser feito para mudar a situação.
Definindo a dinamização de acervos como reflexo de um conjunto de ações voltadas para a circulação de leituras, é possível pensar em ações planejadas, estruturadas, inseridas nos sistemas de
ensino (escolas, bibliotecas), como também ações que se originam do desejo e da sensibilidade de
ampliar a rede de leitores e de práticas leitoras que incluem os mais diversos espaços.
O autor de livros infantis e também ilustrador André Neves conta, em uma de suas conversas com os
leitores, que na sua infância a sua relação com os livros aconteceu dentro de sua própria casa. Sua mãe
era professora, retirava em empréstimo os livros da biblioteca da escola onde ensinava e os levava para
casa para oferecer aos seus filhos. De quinze em quinze dias, ela renovava este acervo e assim eles tiveram a oportunidade de conhecer vários autores e vários títulos. Estamos diante de uma dinamizadora
de acervo, sem uma ação planejada, mas o efeito da sua sensibilidade leitora fez circular vários livros.
Uma experiência que vivi e que ilustra como um acervo pode ser mobilizado sem planejamento prévio aconteceu com uma moça que trabalhava na minha casa e só tinha até o quarto ano primário.
Sua relação com textos literários era bem pequena. Sua experiência maior era com os textos religiosos, por ser evangélica. Comecei a observar que os meus livros expostos na estante desapareciam
e, algum tempo depois, apareciam. Passado um tempo, ela me confessou que de, tanto limpar os
meus livros, sentiu vontade de lê-los, começou a levá-los para casa e o desejo de ler mais foi se
instalando. E assim ela leu 1808 de Laurentino Gomes; Os catadores de Concha de Rosamunde Pil122
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cher; As Boas mulheres da China de Xinran; A vida de Frida Kahlo, por quem se apaixonou e quis ver
também o filme. Muitos outros livros foram lidos, muitas outras vidas sendo vividas. Como bem nos
lembra Luiza de Maria em Leitura e Colheita, a leitura possibilita um diálogo com outros mundos,
com outros modos de vida, com outras percepções da realidade; possibilita viver outras experiências que, muitas vezes, não temos condições de viver realmente.
Acervos: o lugar dos mediadores de leitura
Cabe perguntar: Com quantos livros se constrói um leitor? Com que tipos de textos? Que tipo de leitor/
leitora sou eu professor/professora? Que autores e títulos fazem parte do meu repertório de leitura?
Que livros de literatura indico para os meus alunos? Que estratégias utilizo para mobilizá-los para a leitura? São perguntas que necessariamente não precisamos responder, mas precisamos pensar sobre elas.
Na tentativa de pensar sobre estas perguntas, busco elencar algumas estratégias que podem contribuir para a dinamização de acervos, principalmente, de texto literário.
Os Círculos de Leitura são uma prática que surge no interior do Programa de Incentivo à Leitura
(PROLER), em 1992. A prática consiste na leitura em voz alta do texto literário por um leitor guia e
depois abre-se para uma conversa sobre o texto lido. Esta prática vem sendo replicada em vários
cantos no Brasil e a nossa experiência aqui na Bahia, mais especificamente na Universidade Estadual
de Feira de Santana, por meio do Núcleo de Leitura Multimeios, tem trazido resultados animadores
na circulação desse acervo literário.
Esta experiência já foi realizada com professores da zona rural dos municípios de Candeias, Santanópolis e Antonio Cardoso, com as leituras dos textos literários circulando entremeadas a leituras
de textos da literatura oral, sejam os contos populares, o cordel, as cantigas de roda e os festejos
religiosos. Durante esses encontros com os professores, levávamos uma mala com livros e após a atividade fazíamos o empréstimo para os professores. Entre os livros, estava lá Grande Sertão: Veredas
de Guimarães Rosa. Uma professora pegou este livro e falou: ‘ - um dia ainda leio você’. Talvez ela
estivesse em um processo de preparação para poder enveredar no universo das palavras de Rosa.
Entre o acervo desta mala estavam: A Moça Tecelã de Marina Colasanti; Escolha o seu Sonho de Cecília Meireles; Os tambores de São Luís de Josué Montello; Felicidade Clandestina de Clarice Lispector;
Ana Terra de Erico Verissimo; Dom Casmurro de Machado de Assis; O Ateneu de Raul Pompéia;
Uma vida em segredo de Autran Dourado; Primeiras Estórias de Guimarães Rosa; Antologia Poética
de Manuel Bandeira; O amor nos tempos do cólera de Gabriel Garcia Márquez; Poesia Reunida de
Adélia Prado; Romance Negro e Outras Histórias de Rubem Fonseca; São Bernardo e Vidas Secas
de Graciliano Ramos e muitos outros. Esta mala recheada de livros se constituía como a grande
oportunidade de acesso à leitura de muitos textos. A cada encontro, a palavra era aberta para quem
desejasse falar da sua leitura, o que estimulava a novos empréstimos e novas leituras.
Esta atividade se ampliou e começou a ser realizada pelas próprias professoras, sem a nossa presença; novas leituras e novos textos começavam a circular nas comunidades rurais. Hoje, os círculos
fazem parte de uma ação junto a mulheres rurais de Antonio Cardoso que recebem o benefício da
Bolsa Família do Governo Federal. Muitos textos literários já foram lidos e comentados. Essas mulheres se reúnem para ler e conversar. Multiplicam-se os textos, circulam as palavras.
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Uma outra estratégia que tem contribuído para uma maior circulação de textos são as leituras realizadas no início das aulas. Como professora do curso de graduação em Pedagogia, no início das
minhas aulas sempre leio um conto para os meus alunos. Leio os textos em voz alta para aproximá-los do texto literário, sem nenhuma exigência, sem nenhuma obrigação de fazer uma tarefa. Desta
simples ação, ao término da aula, muitos procuravam a biblioteca em busca do conto lido, ou em
busca de outras leituras. Fiz isto durante vários anos e continuo fazendo, buscando multiplicar leitores, movimentando acervos. Quantos autores ficaram conhecidos... Clarice Lispector com Laços
de Família; Fernando Sabino, com sua Companheira de Viagem; Lygia Fagundes Telles com Os meus
Contos prediletos e outros.
São muitas as estratégias que podem ser utilizadas com a intenção de fazer circular uma série de livros
ou mesmo de linguagens com o objetivo de contribuir na constituição de leitores proficientes. Aqui me
restringi a alguns exemplos que fazem parte da minha própria experiência como mediadora de leitura.
A constituição de um acervo pode até ter data para começar, mas para terminar, jamais! Minha
experiência como leitora vem a cada dia reforçando essa ideia e compartilho agora com vocês a
minha grata surpresa quando recentemente conheci um autor que muito me impressionou pela agilidade de lidar com as palavras e como as consegue dominar. Fui apresentada a Ronaldo Correia de
Brito por um amigo gaúcho que gostou muito da sua forma de escrever. Este autor nasceu no Ceará
e mora hoje em Recife. Ele não só se identifica com o Nordeste, mas fala de questões universais que
fazem parte do cotidiano, da vida de indivíduos inseridos na sociedade contemporânea. O seu trabalho se materializa nos contos e nos romances.
Nos contos, saboreio as palavras que constroem imagens nos livros O Livro dos Homens e Faca. Lá estão
histórias que falam da vida de homens e mulheres que enfrentam as agruras da vida, matando, morrendo, amando, chorando, se alegrando, vivendo. Meu encantamento com esse escritor foi tanto que desejei compartilhar inclusive no curso de Direito, no qual sou professora de Metodologia do Trabalho Científico, com uma turma especial para assentados da reforma agrária. Li um conto do Ronaldo, O que veio de
longe. A experiência foi singular, pois ao terminar de ler, os alunos aplaudiram. Na verdade, houve uma
identificação com a história, com o contexto e, mais que isso, com a experiência da palavra bem colocada.
As suas histórias impressionam, pois ele não trabalha com o previsível, a sua narrativa leva o leitor
a querer chegar ao fim da história, pois não sabemos como vai terminar, por mais que o autor apresente pistas para o leitor.
São muitos os autores que contribuem para que a experiência com a palavra vire um verdadeiro
encantamento, pois a palavra gera imagens e se transforma em emoção. E aí quero compartilhar
também com vocês alguns autores baianos que fui conhecendo aos poucos, pois não estão tão disponíveis para os leitores. É claro que alguns são bem conhecidos, como Jorge Amado e João Ubaldo
Ribeiro, mas temos uma representação muito ampla que, infelizmente, não compõe nem as prateleiras das bibliotecas públicas, nem das bibliotecas escolares.
Quando li As Velhas de Adonias Filho, um autor também do Sul da Bahia, mas não tão conhecido
como Jorge Amado, compreendi realmente a dimensão de um autor regional, mas ao mesmo tempo
universal. Uma narrativa magistral sobre mulheres fortes, que enfrentam as situações do cotidiano
com espirito de luta, mas ao mesmo tempo demonstrando delicadeza e sensibilidade. Muitos outros
autores vão compondo uma lista que precisa ser conhecida e lida dos autores mais antigos aos mais
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contemporâneos como Eurico Alves Boaventura, Xavier Marques, Herberto Sales, Ruy Espinheira
Filho, Carlo Barbosa, Hélio Pólvora, Állex Leilla, Nádia São Paulo, Jorge de Souza Araujo, Ubiratan
Castro de Araújo, Elieser César, Gustavo Rios, Lima Trindade, Mayrant Gallo, Tom Correia, Dênisson
Padilha Filho e muitos outros.
E por que não falar também da literatura infantil e juvenil baiana? No ano passado, tive a grata satisfação de participar de uma banca de mestrado de uma dissertação na qual a mestranda investiga os
autores baianos, analisando as peculiaridades das suas obras. Hoje esse trabalho está publicado no
livro intitulado Os caminhos da Literatura infantojuvenil baiana: em sintonia com o leitor e sua autora,
Normeide da Silva Rios, nos presenteia com a oportunidade de conhecermos muitos autores e títulos
desconhecidos e sequer referidos seja nas escolas ou mesmo nas Universidades. No final do livro, a
autora apresenta uma lista de autores e títulos por ano de publicação que se torna uma referência
valiosa para que professores e professoras possam contribuir na indicação junto aos pequenos leitores.
A certeza que tenho, se é possível ter certezas, é de que um acervo é formado por muitos textos, o
que não inclui só a prosa, mas também a poesia. Não só os consagrados como Carlos Drummond
de Andrade, Manuel Bandeira, Castro Alves, Fernando Pessoa, Adélia Prado e outros, mas também
poetas escondidos pela falta de visibilidade, como acontece com os cordelistas que não têm espaço
para mostrar a sua produção. Câmara Cascudo no livro Os cinco livros do povo relata que no sertão
nordestino no século XIX, nas casas dos sertanejos, no momento do serão noturno, a literatura de
cordel fazia parte das leituras familiares. Estava, portanto, entre as leituras preferidas.
Uma professora da zona rural que participava de um projeto de extensão coordenado pelo Núcleo
de Leitura Multimeios relatou que ainda tinha guardado na gaveta um cordel que sua mãe lia para
ela. São livretos que circulam entre os moradores da zona rural, divertindo e ao mesmo tempo provocando uma reflexão sobre um dado tema da realidade. Fazem parte de um acervo da literatura
popular que anda de boca em boca, de geração a geração.
Uma conversa que não termina
Caros leitores e caras leitoras, já estamos chegando ao final de nossa conversa, que para mim foi um
verdadeiro desafio, mas ao mesmo tempo um prazer, poder desfiar e tecer fios, talvez como A moça
tecelã, em busca da circulação de um acervo que nos proporcione enredar os sujeitos para perceber
o amor e o gosto pela leitura e, principalmente, da leitura do texto literário.
No presente texto, são várias as referências de livros e autores que já li nas bibliotecas, que já comprei porque os queria mais perto de mim, que tomei emprestado de amigos, de alguns que já não
possuo mais porque os emprestei e não foram devolvidos.
O autor Miguel Sanches Neto nos faz refletir sobre a nossa relação com os livros e com o espaço das
bibliotecas. Seu livro Herdando uma Biblioteca, com relatos que ora tendem para ficção, ora para
realidade, nos inspira a pensar de uma maneira mais crítica sobre a realidade do acesso ao livro
numa sociedade tão excludente como a nossa. Neto nos conta do tempo que passava dentro da
biblioteca de sua pequena cidade, passeando entre os livros, “sem conteúdos predefinidos”, sendo
sujeito de suas próprias escolhas. Quantos de nós tivemos a oportunidade de viver esta experiência?
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A partir das provocações e reflexões que tentei fazer, gostaria de convidar professores e professoras
a pensar no nosso papel de mediadores de leitura e, portanto, dinamizadores de acervos. Os acervos estão aí, nas bibliotecas, nas casas, nas livrarias, nas salas de leitura e cabe a cada um de nós
pensar politicamente no nosso nível de participação para que o processo de dinamização aconteça
de maneira mais democrática.
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NETO, Miguel Sanches. Herdando uma Biblioteca. Rio de Janeiro: Record, 2004.
PAIVA, Aparecida. (Org.) Literatura fora da Caixa: O PNBE na escola- distribuição, circulação e leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2012.
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PROUST, Marcel. Sobre Leitura. Campinas, SP: Pontes, 1991.
RIOS, Normeide da Silva. Os Caminhos da Literatura Infanto juvenil Baiana: em sintonia com o
leitor. Salvador: EDUFBA, 2012.
127
RESENHAS
O direito à Literatura reafirma a importância da ficção na formação
dos indivíduos
André de Sena1
O direito à Literatura é o título do livro organizado pelo Prof. Dr. Aldo de Lima, do Departamento
de Letras da Universidade Federal de Pernambuco, que oferece ao público em geral – e não apenas
aos estudiosos de Literatura – as insofismáveis razões através das quais o ato de se ler um livro de
ficção pode ser comparado, num mesmo grau de importância, ao direito à liberdade de expressão e
usufruto dos bens mais inalienáveis para os indivíduos (moradia, saúde, segurança, lazer etc.).
Publicado pela Editora Universitária da UFPE, o livro é composto por oito artigos de estudiosos de renome do universo acadêmico nacional e propõe um olhar até certo ponto ainda inaugural no horizonte
teórico brasileiro, no momento em que busca compreender a seminalidade relativa ao conhecimento
ficcional, aquilo que mais arraigadamente nos torna humanos no processo da escrita e recepção de uma
obra artístico-literária, para além das inumeráveis teorias sobre gêneros, séries e modalidades literárias.
Assim, adentra um terreno fecundo e híbrido entre a Teoria e historiografia literárias, a Antropologia, a
Sociologia e a Educação, sem efetivamente poder ser circunscrito em apenas um desses territórios.
O livro foi inicialmente inspirado na obra de Antonio Candido, um dos maiores estudiosos da Literatura no País, que gentilmente cedeu um artigo de sua autoria, originalmente publicado na década
de 1980, para abrir a edição e, também, nomeá-la, consciencioso a respeito da divulgação de ideias
e uma discussão que continuam, hoje, mais do que nunca atuais.
Em seu artigo, Candido não fecha os olhos aos profundos problemas sociais que assolam as sociedades contemporâneas, ressaltando que vivemos numa época ainda “profundamente bárbara” em
vários aspectos, mas, por outro lado, pela primeira vez na História, detentora dos efetivos meios
para importantes mudanças. Apoiando-se na terminologia de Louis-Joseph Lebret, o crítico analisa o
que chama de “bens incompressíveis” (a exemplo de “alimento, a casa, a roupa”) e “bens compressíveis” (a exemplo dos “cosméticos, os enfeites, as roupas supérfluas”), ressaltando que “cada época
e cultura fixam os critérios de incompressibilidade” que as norteiam. Pensando na Literatura como
um bem “indispensável de humanização”, enformadora do “homem em sua humanidade”, a partir
de uma série de análises que observam a ficção não apenas em sua dinâmica intelectual, crítica e
lúdica, mas também como potencializadora do equilíbrio da psiquê, a defende como essencialmente
um bem incompressível, visto que “negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade”.
Por sua vez, o Prof. Aldo de Lima, em artigo intitulado “O ensino da Literatura e a pedagogia do Digesto”, tece uma análise de como as formas literárias são gestadas a partir de uma dinâmica social sui
generis, no sentido de que a arte não apenas imita a vida, mas a configura. Segundo o estudioso, “a tragédia, a epopeia, o soneto, o haicai, o romance e o conto são fôrmas em cujos conteúdos as sociedades
humanas indagam sobre si próprias através de um texto, oral ou escrito, que não só lhes proporciona
o prazer lúdico-estético, como expressa os elementos mais característicos, mais longínquos de suas
antropologias”. Por outro lado, seguindo as pegadas de Bamberger, Lima defende que a leitura literária
“também constitui uma busca além da realidade”, enveredando no âmbito do simbólico, do trans1 Professor doutor em Letras/UFPE
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
cendente, do abstrato, lado ainda pouco explorado pelos manuais didáticos que continuam a seguir a
lógica do estilo “digest reading”, ou “digesto”, na qual o resumo subsume a reflexão crítica e estética.
O Prof. Anco Márcio Vieira, em seu artigo “A literatura como espaço do discurso, do debate e
do contraditório”, partindo inicialmente das teorias poéticas de Aristóteles que redimensionam
positivamente o ficto diante do facto, observa que a ficção, ao tempo que “nasce da insatisfação
do Homem ante a realidade que lhe cerca”, aparece como garantia da liberdade de pensamento,
visto que em “todos os momentos em que as sociedades tenderam para um pensamento único, em
que o contraditório foi banido, a literatura – e as artes de maneira geral – quando não foi afugentada, foi objeto do máximo controle e desqualificação. Afinal, controlar a literatura [...] é controlar
a possibilidade de que o homem possa pensar uma realidade segunda”. Em suas elucubrações a
respeito das especificidades dos territórios da ficcionalidade, Vieira – da mesma forma que Antonio
Candido – ajuda a compreender conceitualmente o difícil problema da estética frente a ética: como
compreender, por exemplo, toda a literatura gauche, as obras malditas e iconoclastas, diante dos
livros ficcionais que defendem ostensivamente os direitos humanos, e geralmente a estes associados? Talvez o tema merecesse um artigo à parte, mas fica evidente que a ficção pode enveredar na
ambiência do insólito, do não-mimético e explorar os temas e imagens mais esdrúxulos e contraditórios, corroborando sua dimensão humana e dialética.
O artigo da Prof.ª Eliana Yunes, “A Literatura está mesmo em perigo?” dá prosseguimento indireto
às análises de Aldo de Lima, no tocante aos problemas do ensino e letramento literários na era dos
resumos que parece criar, ipsis litteris, uma “literatura menor”; e de Anco Márcio Vieira, no que
toca ao tertium quid proposto pela ficcionalidade, no sentido de que “indubitavelmente, a arte, a
ficção, a literatura propiciam este ver duplo, ver outro mundo [que] dinamiza a cultura muito além
dos sulcos semeados originalmente”. O escrito da Prof.ª Yunes aparece como motivante diálogo em
relação a uma obra do crítico búlgaro Tzvetan Todorov (“A literatura em perigo”), a respeito da individualidade e do poder da Literatura em propor caminhos dentro da realidade.
“A literatura no território dos direitos humanos”, dos professores Graça Paulino e Rildo Cosson, toca
num dos pontos nodais que O direito à Literatura busca sondar: a concepção “restrita de literatura
e de direitos humanos” ainda vigente tanto nos documentos oriundos das esferas oficiais quanto no
cotidiano do ensino brasileiros, bem como a problemática do acesso aos livros num País em que os
mesmos ainda são privilégios de poucos e geralmente associados aos bens supérfluos (“compressíveis”, segundo a aludida terminologia de Lebret). Também realizam leituras de obras paradigmáticas
que, ao longo dos tempos, comprovam a noção de que as mais diversas criações estéticas, das mais
dessemelhantes séries, têm o condão de interferir diretamente na realidade, de forma construtiva.
Os três últimos artigos, dos professores Marisa Lajolo (“Leitura e literatura: direito, dever ou prazer?”), Roberto Acízelo de Souza (“E a literatura, hoje?”) e Vera Teixeira de Aguiar (“Leitura literária:
da teoria à prática social”), abordam os mesmos temas, com contribuições originais, seja ao discutir
a dinâmica e o imaginário das Bienais de livro contemporâneas; ao analisar o quid essencial da ficção; ou apresentar casos concretos e bem sucedidos de letramento literário.
O direito à Literatura afirma-se, assim, como obra de referência em sua intersecção entre a teoria
da ficção e os Direitos humanos, em artigos a um tempo profundos e acessíveis ao grande público,
fundamentais para se estimular e pensar, na teoria e na práxis, o diálogo criativo que a Literatura
propõe desde sempre.
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RELATO DE EXPERIÊNCIA
PROFISSIONAL
Planos de Livro e Leitura: um breve relato nordestino sobre o projeto
“Mais Livro, Mais Leitura nos Estado e Municípios”
Roberto Azoubel da Mota Silveira1
Resumo
O artigo relata a experiência de divulgação na região Nordeste do projeto “Mais Livro, Mais Leitura nos Estados e Municípios”, iniciativa do MEC, MinC e Instituto Pró-Livro, cujo objetivo era estimular e fornecer orientações para a elaboração
de planos setoriais de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas.
Palavras-chave: Instituto Pró-Livro, Leitura, Literatura, Biblioteca
Abstract
The article reports the experience of disclosure in the northeastern region of the project “More Book, Read More in
the States and Municipalities”, an initiative of the MEC, MinC and Instituto Pró-Livro, whose goal was to stimulate and
provide guidance for the preparation of sectoral plans Book, Reading, literature, and libraries.
Keywords: Instituto Pró-Livro, Reading, Literature, Library
1 Roberto Azoubel da Mota Silveira é doutor em Letras (Literatura Brasileira) pela Pontíficia Universidade Católica do Rio
(PUC-RJ) e atualmente trabalha como assessor técnico na Representação Regional Nordeste do Ministério da Cultura
(RRNE-MinC).
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Como muitos de nós sabem, foi no dia 10 de agosto de 2006 que os então ministros da Cultura e
da Educação, Gilberto Gil e Fernando Haddad respectivamente, instituíram por meio da Portaria
Interministerial Nº 1.442 o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), dando continuidade a toda
mobilização e aos debates do Viva leitura empreendidos em 2005 (com esse documento jurídico-administrativo se retomava uma parceria que não acontecia na área da leitura desde a separação
dos dois Ministérios na década de 1980). Estruturado em quatro eixos2 (contendo vários sub-eixos),
as ações dos dois ministérios passaram a ser guiadas na tentativa de responder a cada um deles.
Entre os eixos do PNLL, irei nesse texto me deter no terceiro, intitulado Valorização institucional
da leitura e incremento de seu valor simbólico, mais precisamente no seu sub-eixo 3.2. Ações para
converter o fomento às práticas sociais da leitura em política de Estado. É aqui, neste ponto, que o
documento prevê, entre outros desafios, a criação de marcos legais (leis do livro federal, estaduais e
municipais; decretos e portarias etc.) e a estruturação de políticas que visem a formulação, a coordenação e a execução da política setorial em todos os entes federativos. Farei considerações que
dizem respeito a tais objetivos, restringindo-me as dificuldades que pude observar nos processos
de implantação dos planos estaduais e municipais de livro e leitura na região nordestina do país, na
condição de assessor técnico da Representação Regional Nordeste do Ministério da Cultura (RRNE-MinC), responsável, entre outros setores, pelo do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas.
“Mais Livro, Mais Leitura nos Estado e Municípios”
Praticamente três anos após a criação do PNLL, no ano de 2009, os ministérios parceiros somados ao
Instituto Pró-Livro (uma associação de caráter privado e sem fins lucrativos, mantida com recursos
constituídos, principalmente, por contribuições de entidades do mercado editorial), lançaram o projeto “Mais Livro, Mais Leitura nos Estado e Municípios”, no intuito de responder a alguns propósitos
previstos no sub-eixo 3.2. referido acima. O objetivo do projeto era estimular e fornecer orientações
para a elaboração de planos setoriais de LLLB, mobilizando, capacitando e assessorando prefeituras
e governos (através de suas secretarias de educação e/ou de cultura) para o desenvolvimento e
implantação desses instrumentos. A iniciativa estava calcada em quatro ações/componentes:
Mobilização: por meio de Fórum Nacional seguido de Fóruns Regionais;
Portal eletrônico na Internet com as seguintes funções: informação e credenciamento
dos agentes responsáveis nos estados e municípios pela elaboração dos respectivos planos; guia eletrônico (passo a passo); formação, monitoramento e assessoria à distância;
rede social de colaboração e mapeamento da implantação dos Planos no país inteiro;
Formação dos agentes: por meio de oficinas regionais (presenciais) e formação à distância; videoconferências; palestras; guia de orientação e assessoria a distância;
2 Eixos diagnosticados e definidos após 150 reuniões públicas em todo o País, das quais participaram dos debates tanto
representantes de toda a cadeia produtiva do livro – editores, livreiros, distribuidores, gráficas, fabricantes de papel,
escritores, administradores, gestores públicos e outros profissionais do livro –, bem como educadores, bibliotecários,
universidades, especialistas em livro e leitura, organizações da sociedade, empresas públicas e privadas, governos estaduais, prefeituras e interessados em geral. Para lembrar, são eles:
Eixo 1 - Democratização do acesso;
Eixo 2 – Fomento à leitura e à formação de mediadores;
Eixo 3 – Valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico;
Eixo 4 – Desenvolvimento da economia do livro.
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Guia para o desenvolvimento e a implantação dos PELL e PMLL (orientação passo a
passo), publicação disponibilizada em formatos digital e impresso.
Efetivar o projeto Mais Livro, Mais Leitura nos Estado e Municípios era fundamental como estratégia de efetivação do PNLL, conforme podemos constatar nas palavras do Fabiano dos Santos Piúba,
então diretor de Livro, Leitura e Literatura, do Ministério da Cultura (na época DLLL/SAI/MinC)3: “O
Plano Nacional do Livro e Leitura só ganhará ressonância e efetividade se estados e municípios abraçarem as mesmas preocupações, criando as condições para que a política do setor seja implantada”4.
Fóruns regionais e encontros do setor LLLB no Nordeste
Entre meados de 2009 e final de 2011, de Natal-RN a Aracaju-SE, de Santana do Ipanema-AL a Tururu-CE (só pra citar algumas cidades em que estive presente com a pauta em questão), tive a oportunidade de expor o projeto “Mais Livro, Mais Leitura nos Estado e Municípios” e orientar gestores
públicos e membros da sociedade civil interessada na direção da construção dos seus respectivos
planos municipais de livro e leitura em fóruns regionais (previstos pelo projeto) e encontros do setor
LLLB por boa parte da região Nordeste. Foi uma rica experiência, na qual fui criando não só intimidade com o projeto, como também, ao atuar nas pontas da federação, conhecendo as riquezas das
diversas realidades locais. Nesse período, fiz algumas anotações críticas sobre a política, observações que dividi com a DLLL/SAI/MinC no final do ano de 2010. Descrevo aqui algumas delas:
1) Pareceu-me lógico que o Mais Livro, Mais Leitura nos Estado e Municípios deveria, em
um primeiro momento, priorizar os PLLs municipais e só posteriormente se preocupar
com os Estaduais. Isto porque, se em determinado Estado os municípios (ou pelo menos
boa parte deles) já tiverem seus diagnósticos do setor realizados - etapa prevista pelo próprio projeto na elaboração dos planos -, será mais fácil e procedente para o órgão estadual
responsável recolher tais levantamentos no intuito de construir o seu respectivo plano.
2) Considerada essa prioridade inicial dos Planos Municipais do Livro e da Leitura, é preciso também levar em conta a escassez de pessoal e recursos financeiros de todos os entes
federativos envolvidos – se, hipoteticamente, todos os municípios brasileiros, ou mesmo
de um estado, resolvessem elaborar seus PLLs, não teríamos suporte para tanto. Diante
dessas condições, conclui que seria importante investir com mais vigor na implantação
dos planos em municípios estratégicos, considerando estes últimos aquelas cidades cuja
sociedade civil já se encontra mais organizada em torno da questão do Livro, da Leitura e
da Literatura, ou seja, com fóruns, associações ou quaisquer outros agrupamentos/instituições ligados ao setor. Enfatizo: no tempo em que convivi com o projeto, tive a certeza
de que sem haver uma sociedade minimamente atuante em representações de interesse
comum os planos não decolam. Pauto também como municípios estratégicos aqueles que
pertencem a territórios integrados que, não raras vezes, formam bacias culturais (neles
não é difícil encontrarmos gestores da área cultural articulados entre si, formando seus
fóruns culturais regionais). No Nordeste temos alguns exemplos, como são os casos da
3 Em 2011 Fabiano dos Santos Piúba foi convidado para o posto de subdiretor de Leitura, Escrita e Bibliotecas do Centro
Regional para o Fomento do Livro na América Latina e Caribe (Cerlalc), voltando a assumir a diretoria da DLLLB/MinC
em agosto de 2013.
4 In: http://www.brasilcultura.com.br/cultura/mais-livro-mais-leitura/. Página consultada em 07/10/14.
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Região Metropolitana do Recife, o Cariri Paraibano, a Bacia Leiteira Alagoana, entre outros.
Creio que utilizar esses espaços microrregionais, elegendo inicialmente um município em
cada um deles como piloto na experiência de implantação do seu Plano Municipal do Livro
e da Leitura, seria uma forma estratégica de fortalecer o projeto e disseminá-lo com mais
consistência entre as demais cidades que os compõem.
3) Por fim, penso que seria mais interessante trabalhar a implantação dos PLLs (municipais e estaduais) como parte integrante dos Planos de Cultura dos respectivos entes
federativos. Isso porque, com a aprovação no Congresso Nacional do ProCultura5, há a
previsão dos repasses de recursos financeiros via fundo a fundo culturais, desde que
os Estados e municípios implantem uma estrutura básica do nosso Sistema Nacional de
Cultura (SNC), conhecida como o CPF da cultura: Conselho, Plano e Fundo. Com isso,
o prognóstico é que teremos a instauração da política pública cultural andando a passos mais rápidos do que nos dias que correm. Atrelar, portanto, os planos setoriais (no
nosso caso, os de LLLB) aos (necessários) Planos de Cultura (estaduais e municipais) é
uma forma de garantir que eles serão construídos e com brevidade. Essa opinião decorre também da reação de estranheza com que, não rara as vezes, percebia o público
presente nos eventos em que expus o Mais Livro, Mais Leitura nos Estado e Municípios
ao apresentar uma proposição de uma política setorial planejada nos entes federativos
que sequer tinham (e muitos continuam sem ter) planejamentos mais gerais (ou mesmo
órgãos gestores) para a área cultural. As recepções para tal propostas nessas realidades
soavam, comumente, como que partindo de um discurso ainda bastante utópico.
Conclusão
No início de 2011, com a passagem do governo Lula para o governo Dilma, ocorreram mudanças
tanto na estrutura administrativa como no corpo técnico que conduzia as políticas de LLLB no Ministério da Cultura e no PNLL. Com essas alterações, as iniciativas em torno do projeto Mais Livro, Mais
Leitura nos Estado e Municípios foram rapidamente se enfraquecendo até chegarmos ao fim da
realização dos Fóruns (Nacional e Regionais) e do fechamento do portal eletrônico na Internet. Se
com a pioneira inicativa o sonho de termos políticas planejadas para o setor espalhadas pelo país
já se vislumbrava bastante difícil, sem ela se torna impossível. Ainda que tenha apontado acima
dificuldades de implantação uma determinada política pública, não seria o caso de abandoná-la, e
sim de aperfeiçoá-la (tal procedimento não parece ser um ponto forte das nossas administrações
governamentais). Seu princípio era e continua sendo nobre. Há uma esperança em retomá-la com
o retorno das lideranças que a instituiu aos seus postos originais de trabalho. Torçamos. Ainda que
dependamos dos ventos políticos que nortearão o país.
5 O Projeto de Lei nº 6.722, criado em 2010, institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (ProCultura)
como o novo marco regulatório que irá substituir a Lei Rouanet. Sua intenção é tornar mais igualitária a distribuição de
verba para a cultura entre estados e municípios, como também aos produtores independentes ou de pequeno porte. O
PL se encontra em tramitação no Congresso Nacional.
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Referências Bibliograficas:
- PNLL: textos e história / José Castilho Marques Neto(org.). - São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2010.
- Portal Brasil Cultura. “Mais Livro, Mais Leitura”. Página consultada em 07 de outubro de 2014,
<http://www.brasilcultura.com.br/cultura/mais-livro-mais-leitura/>.
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ENTREVISTA
Entrevista com Raimundo Carrero
Hugo Monteiro Ferreira
Raimundo Carrero é certamente um dos melhores escritores brasileiros. Sua literatura propõe singular reflexão sobre a condição humana. Detentor de inúmeros prêmios literários, Raimundo Carrero é pernambucano, nascido na cidade Salgueiro e membro da Academia Pernambucana de Letras.
Na entrevista que nos concedeu, Carrero expõe seu modo de entender a leitura, a literatura e a
vida humana. Nos seus contos e romances e em suas novelas, o ficcionista tem a condição humana
como seu principal tema e é sob essa condição que ele se inscreve no imaginário do ser humano.
HMF: Em que momento da sua vida, você se descobre leitor?
RC: Na minha infância. Em Salgueiro. No meio da minha família. Quando encontro a linguagem
e me dou conta de que ela me mantém vivo nesse mundo. É nesse momento, exatamente aí,
que me sinto leitor. Leio a vida e sou lido por ela. Todo escritor ler a vida de um jeito que o faz
leitor. Meus irmãos, todos eles, me ensinaram a ler livros. Os livros são essenciais para o leitor,
mas a leitura não se restringe a eles. Leitura é mais do que livro e é muito mais com os livros.
Tudo num ser humano ler. Todos os sentidos. Me descubro leitor na medida em que mergulho
nas memórias. As memórias que me constituem são a matéria da minha leitura. Em Salgueiro,
ouvindo histórias, vou começando a me dar conta de que leio a vida e sua redondeza.
HMF: O que é leitura para você?
RC: É tudo. Um homem que não ler não pode ser homem. A cidadania humana precisa da leitura,
seu combustível para a engrenagem da vida. Acho que a leitura revolucionou a vida humana e
como escritor, faço disso a minha verdade nos livros. A leitura tem uma importância grande na
vida do ser humano, pois nela são forjados os sentidos que damos as coisas e também percebemos nas coisas. Sem a leitura, talvez não fossemos o que somos. A leitura, seja qual seja, mas
a de literatura, em particular, pode fazer com que o ser humano se torne mais sensível, pois as
questões mais profundas da mente humana podem ser tocadas pela leitura de um bom texto
literário. A leitura, sendo assim, tem possibilidade de mudar o coletivo, pois alterar o individual.
HMF: O que é o escritor?
É um sujeito que tenta se dizer através da sua linguagem, mas não consegue de modo exato. A
gente escreve o que não confessa. Escrevemos o que tentamos dizer para o mundo através de
todas as coisas que pensamos, sentimos e fazemos. Um escritor é alguém que sobrevive a si
mesmo através do que põe no papel. A realidade é o material do escritor. Não se escreve o que
simplesmente se inventa, mas se inventa a realidade na escrita. O escritor é um inventor. O escritor é uma pessoa que não suporta a realidade do modo como ela se apresenta e tenta, por meio
de um mundo suprarreal, refazer o que sente e o que pensa, o que vê e o que explica. Fernando
Pessoa, com sua imensa sabedoria, disse que o poeta é um fingidor que finge muito bem. Mas finge porque não suporta viver o que se lhe apresentam como realidade. O escritor é um sonhador.
HMF: A ficção se sustenta na realidade?
Sim. É o que eu digo, não seria o escritor que sou, não estou afirmando que sou um bom ou
um ruim escritor, mas não seria o que sou, não fossem, por exemplo, as minhas irmãs. De
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.8, mai., 2015
algum modo, conviver com elas, e elas eram matéria do real, me fez escrever o que ponho em
livros como Bernarda Soledade a tigre do Sertão. A realidade com a qual eu vivo é a substância
da minha invenção como escritor. Tudo que escrevo tem a ver com o que sinto e penso, seja
consciente, seja inconsciente, seja acordado, seja em sonho. A ficção se sustenta na realidade
e sem a ficção a realidade também não se mantém de pé, pois a primeira precisa da segunda
e a vice-versa. A vida é ficcional na medida em que não é de todo concreta, como pensam
alguns. A vida é bastante inventada.
HMF: Roberto W. Penteado escreveu um livro cujo título é Os filhos de Lobato – o imaginário
infantil na ideologia do adulto (Editora Dunya). Nesse livro, Penteado entrevista várias personalidades do cenário nacional que se disseram leitoras de Lobato na infância. Penteado assinala que
seus entrevistados foram influenciados pelo universo ficcional de Lobato, durante a fase adulta
de suas vidas. Nesse sentido, caso você concorde com Penteado, um político brasileiro que ler
Raimundo Carrero, que tipo de influência sofre em sua vida?
RC: Um político que ler literatura se torna mais humano. Retira-se do campo exclusivamente da
burocracia e passa a entrar no campo da alma humana. Um político que não ler não deve ser
político. Os grandes estadistas sempre foram grandes leitores. A leitura amplia a capacidade de
enxergar para além da técnica do cargo e das funções, dos interesses pessoais em detrimento dos
coletivos. Político que não ler literatura não serve para ser político, pois certamente não consegue
compreender o humano no que ele tem de menos técnico, de menos previsível, de menos burocrático. Política sem leitura é nada para a sociedade. Um político que não lê não pode ser político.
HMF: O que você pensa de a ideia que afirma que os brasileiros não leem ou leem pouco?
RC: Acho uma grande invencionice. Não é isso que vejo quando vou às escolas e converso com
os jovens leitores. Ando muito pelo estado de Pernambuco e Brasil, fazendo palestras, conversando com leitores e leitoras, e vejo que as crianças e os jovens leem e leem bastante. Em
Pernambuco, nós temos grandes livrarias, livrarias médias e livrarias menores. Se não tivéssemos leitores, certamente não teríamos livrarias. Talvez tenhamos dificuldade em ler aquilo
que é autorizado pelas instâncias escolares e acadêmicas, mas certamente lemos, e muito. É
verdade que não somos como os Estados Unidos, país cuja matéria central é fazer tudo para
vender, por isso vendem tanto e de tudo, porém temos uma gurizada que lê.
HMF: Você acha que livros como Harry Potter, Sagra Crepúsculo, Jogos Vorazes, são exemplos do
que você fala?
RC: É preciso entender que a literatura nem sempre é a mesma em todas as partes do mundo.
Mas se os livros são publicados e republicados, impressos e reimpressos, comentados, discutidos, analisados, compreendido, então é porque, se ruins ou se bons, eles são lidos. Como eu disse, Os Estados Unidos se fundamentam na ideia de vender, de produzir, de consumir, comercializar. Os livros, como qualquer produto numa sociedade dessas, são feitos para vender. No Brasil,
não fazemos literatura com a mesma intenção. É o que penso. A literatura, na perspectiva com a
qual convivo, é uma obra de arte e a obra de arte tem um compromisso com a ética humana que
necessariamente o produto feito para vender a qualquer custo e sob qualquer lógica não tenha.
Quando se faz uma obra de arte não se pretende ensinar nada a ninguém.
HMF: Como escritor você então não quer ensinar nada a ninguém, é isso?
RC: Sim, é isso. Quero escrever e pronto.
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HMF: Mas então você não pretende criar discípulos? Nas suas oficinas de criação literária, você
não pretende formar escritores que acompanhem a sua compreensão sobre a leitura, sobre a
escritura?
RC: Não pretendo formar discípulos, mas ajudar na reflexão de bons escritores e de boas escritoras. Pelas oficinas, passaram pessoas que já sabiam tudo sobre escrever literatura, eu tão-somente, lhes disse isso, através das aulas. Passaram pessoas que possuíam a latência da
escritura e precisavam desenvolver essa latência. As oficinas vêm de ofício, ou seja, fazer a
matéria bruta ser lapidada e se transformar em arte. É importante se compreender que a
condição humana pressupõe uma condição artística, nem sempre consciente, esclarecida; às
vezes, turva, confusa, as oficinas pretendem ajudar nesse processo de conscientização da arte
do escritor. Um escritor é um artesão e todo artesão necessita de talento e técnica, as oficinas,
portanto, servem para que os alunos e as alunas entendam essas questões e possam produzir
arte a partir de suas compreensões e interpretações da realidade.
HMF: Você é certamente um dos escritores brasileiros mais premiados. Acredita que seria mais
conhecido, caso morasse no eixo Rio de Janeiro-São Paulo?
RC: Eu fiz uma escolha de ficar em Salgueiro e Recife. Há muito, recebi proposta para ir embora
daqui e radicar minha vida no Sudeste do Brasil, local onde certamente eu seria mais conhecido,
mas não me apeteceu. O lugar e o espaço no qual vivo são matérias de minha literatura. A escolha de ficar não me trouxe arrependimento. Vivo do meu ofício e me sinto feliz com aquilo que
consegui. Sou um escritor, só isso. Meus livros são hoje distribuídos em todo o Brasil e alguns
já traduzidos para outras línguas. Não tenho do que me queixar. Viajo muito. Às vezes, até fico
cansado. Mas acho que se eu tivesse ido morar no Rio ou mesmo em São Paulo, eu seria mais
cultuado, mais difundido, porém não é isso o que almejo. Só sou um escritor, nada além disso.
MHF: Se a vida lhe desse uma única alternativa, continuar vivo, mas não poder continuar escrevendo? O que você diria para ela?
RC: Prefiro a morte. Não há para mim, o menor sentido em continuar vivo, se não posso continuar escrevendo. É isso.
HMF: Obrigado, querido amigo. Você me inspira.
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Entrevista com José Tolentino Mendonça
Eliana Yunes
Leonardo Agostini
Pensar as relações entre a literatura e a teologia poderia parecer algo profano e até apócrifo há
menos de 50 anos. Contudo novas perspectivas sobre a linguagem, o tratamento do discurso tanto
das ciências quanto das artes estar posto menos na discussão de sua veracidade e mais no modo
como as apresentamos, fizeram com que fosse possível falar em interdisciplinaridades, mesmo
quando os “objetos” dos estudos parecerem tão díspares como neste caso. Seja a vida humana,
seja a pessoa de Deus, somente com os recursos da linguagem humana podem ser apresentadas as
aproximações incompletas e provisórias desta totalidade inalcançável em criatura e Criador.
Convencer-nos de que o vazio entre o Real e sua expressão só pode ser preenchido a partir de abordagens que encontram linguagens humanas diversas, como as da matemática e das ciências, da
ficção e das artes, abre espaço para termos menos certezas e mais humildade ao enfrentarmos os
mistérios que só se alargam com as descobertas e invenções. Neste caso as declarações e assertivas
dadas em certo tempo e espaço na História mostram-se cada vez mais inacabadas e pendentes de
novos olhares que apreendam os horizontes que se rasgam.
Disto não escapa a teologia que debruçada sobre a linguagem fortemente metafórica das sagradas escrituras perscruta o que não sabe ou entende de Deus numa ‘revelação’ do Ser em discurso humano, seja na sua
produção, seja na sua recepção. Porque a palavra da ou sobre o divino está dirigida aos homens para que
ouvindo, escutem, olhando, vejam. E o filtro desta verdade insondável é a própria vida criada, inteligente e
sensível, que se manifesta nos discursos – plurais – que cercam esta relação complexa com o mistério.
Daí que bastante longe do solipsismo engendrado pelo ‘cogito cartesiano’, a linguagem sem ser o Real
descreve e/ou postula a realidade de múltiplas perspectivas. As linguagens a que recorremos convocam
todas, o desejo de conhecer mais e melhor sobre tudo, porque onde estiver a verdade, aí não estará o
erro que nos engana e faz sofrer. A linguagem funciona como recurso que se ajusta continuamente às
experiências que nos dão e ver/ler dimensões antes insuspeitadas. E quanto mais esta linguagem se abrir
ao indizível, mais se aproxima do não-dito que abarca o dito da condição de nossas vidas imperfeitas.
Deste lugar de perguntas fala a teologia que muito sincera e desejosa de ser fidedigna do sagrado,
incorre em leituras que resvalam para o doutrinário e queimam o ardor da inspiração e da súbita epifania que se antepõe ao Real. Deste lugar liberto e sabidamente imperfeito a literatura quer pescar
a perfeição inacessível, mas entrevista pelo discurso poético – e por que não? – apofático com que
tentamos exaustivamente – e em vão – dar conta da vida e de seus desdobramentos.
Podemos pois postular que tendo ‘objetos’ distintos, a literatura por conta de lidar com a palavra e imaginar a vida em equilíbrio a partir da apresentação dos desequilíbrios humanos pode oferecer à teologia
caminhos alternativos à discussão metafísica para apurar a Palavra que nos é dirigida como interrogação
e expressão metafórica de uma verdade que intuímos mas não temos senão pressagiar. Talvez se pudesse
dizer, singelamente, que a literatura pode ensinar à teologia seus métodos de construção do sentido e
que dela pode aprender a extensão inesgotável do transcendente que nasce já do imanente.
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