marmelada - Teatro NU

Transcrição

marmelada - Teatro NU
123
M A R M E L A D A
Uma comédia caseira
Personagens:
ALICE
ERNESTO
VOZ DA MÃE
123
124
Marmelada - Uma Comédia Caseira
CENA 1
Um apartamento do qual se pode ver simultaneamente a cozinha, à esquerda do
público, a sala, à direita, e ao fundo no alto uma espécie de mezanino. Ao acender a luz, o
casal já está em cena, acabando de chegar. Ambos estão com a roupa clássica de
casamento, ele de terno e ela de vestido de noiva branco. Ambos têm uma expressão de
cansaço e parecem acanhados ou desorientados, sem saber como agir. Sentam-se afastados
e executam uma seqüência de movimentos de tédio, quase em "espelho", mas
inadvertidamente. Cada vez que um percebe o mesmo gesto no outro, faz uma alteração,
que é logo imitada, sem querer, e assim por diante. Alice passa a examinar Ernesto
atentamente, dos pés até a cabeça, e em seguida encara-o fixamente, sem expressão. Ao
sentir-se olhado dessa forma, ele desvia o rosto, encabulado.
ALICE
(levantando-se, finalmente)
E agora? Você vai ficar aí parado, com essa cara? É melhor a gente tirar logo esta roupa
ridícula...
ERNESTO
Só a roupa? Toda aquela parafernália... que coisa incrível! Você imaginou que fosse assim?
Você tinha idéia?
ALICE
Eu? Nem por sonho! Foi pior que festa de 15 anos, formatura, concurso de "miss" e parada
de 7 de setembro, tudo misturado...
ERNESTO
Eles são muito loucos...
124
125
ALICE
Louco é você, de me botar nessa fria... Irresponsável!
ERNESTO
(olhando para a gravata que acaba de tirar, como se nunca a tivesse visto) É...
(Compreende então o que ela disse) Irresponsável? Eu? Mas por que eu?
ALICE
Aliás, a família toda! E aquela sua tia? Que figura! Onde ela foi arranjar aquele chapéu?
ERNESTO
Mas sua mãe não ficava atrás! Pensei que ela fosse o próprio bolo do casamento! E ainda
por cima chorava! Onde já se viu? Não foi ela mesma que tramou, arquitetou e cometeu este
casamento? Então, por que chorava?
ALICE
(distraída)
Eu acho que aquilo faz parte da cerimônia... sei lá. (Reagindo, atrasada) E também não foi
só idéia dela, não. Seu pai também fez pressão...
ERNESTO
Claro! Para evitar o escândalo! Escândalo que aliás sua mãe ameaçou fazer!
ALICE
Mas que situação! Tudo isso por uma festinha babaca e um projeto de trepada! Trepada que
aliás eu nem lembro como foi...
ERNESTO
Alto lá! "Festinha babaca", não! Minha festa de aniversário foi o máximo! Agora, quanto ao
resto, eu também não me lembro de nada. Também, todo mundo estava bêbado... e você foi
a primeira a enlouquecer!
125
126
ALICE
É, eu não tenho costume dessas coisas... mas conheci uma maluca... aliás, sua prima... com
um verdadeiro arsenal...(Imitando) "Experimente um, esse você conhece? Prove esse aqui..."
Eu acho que ela estava dando em cima de mim... Só sei que quando me levantei estava
completamente...
ERNESTO
É, e eu fui a vítima. Você só trepa assim, é?
ALICE
Assim, como?
ERNESTO
Bêbada... ligadona, sei lá.
ALICE
Quando não estou a fim, é...
ERNESTO
(sem graça)
Meu pai é um babaca mesmo... "Coitada da menina, você teve a coragem de levá-la pro seu
quarto!" Não sabe ele que eu é que fui levado...
(Reversão de luz. Flash-back de ambos na festa, bêbados.)
ERNESTO
Mim, Tarzan! You, Chita! Mim mostrar toca de Tarzan!
ALICE
Não! Toca de tarzan, não! Cipó! (Fazendo macaquices) Chita quer ver cipó de Tarzan! ( Ela
tenta agarrá-lo, ele se esquiva.) Mostra cipó de Tarzan!
126
127
ERNESTO
(Fugindo dela e se protegendo com as mãos)
Não, cipó de Tarzan, não!
(Reversão de luz. Momento atual.)
ALICE
Não torça as coisas pro seu lado! Você estava bem animadinho! E não me venha com essa
de casamento obrigado. Isso só existe em filme, ou na Real Família Britânica, o que dá no
mesmo!
ERNESTO
Vê se pode! Eu e o Príncipe Charles!
ALICE
Não exagera! Nós dois vamos ter nossas vantagens... senão nem o diabo me obrigava! Mas
essa festa... sabe do que mais? Eu não estou entendendo tudo...
ERNESTO
Que festa fatídica! Que dia aziago! Eu devia ter consultado meu mapa astral... Por falar
nisso, quem lhe convidou pro meu aniversário? Eu só conhecia você de "ôi, como vai?".
Quem lhe convidou?
ALICE
Ninguém. Estava uma sexta-feira sacal, eu não tinha nada pra fazer... Passei, vi o
movimento...
ERNESTO
(ofendido)
Ah! Sei. (Pausa) Coincidência nefasta! (Lembrando-se) Mas então como foi que sua mãe...
ALICE
Ah! Não me pergunte... Eu ainda não sei como foi acontecer aquilo...
127
128
ERNESTO
É. "Aquilo". O que você chama de "aquilo" foi sua mãe entrando no quarto feito uma
desvairada e encontrando a gente nu... aliás, eu acho que a gente nem conseguiu transar... se
eu bem ou mal me lembro... você estava roncando...
ALICE
Estava. E acordei com os gritos... não entendi nada.
(Reversão de luz. Flash-back só para Alice. Ela está parada, meio sonâmbula, diante da
mãe, que não é vista.)
ALICE
Heim? O que foi? O que é que está acontecendo? (Som de bofetada, Alice recua com o
golpe, coloca a mão no rosto) Porra! Que adrenalina!
(Reversão de luz. Momento atual.)
ALICE
Eu não entendi nada...
ERNESTO
E eu? Com o susto, eu fiquei "de cara" na hora! Fiquei bonzinho! E sua mãe... parecia uma
louca... Eu custei a entender qual era a dela...
ALICE
Êi! Pode parar com suas insinuações! Eu sei muito bem o que você quer dizer...
ERNESTO
Mas eu não disse nada!
128
129
ALICE
Não disse, mas pensa! Pensa que minha mãe descobriu seu sobrenome... Mendonça Prado! E
aí, é claro: tinha que ter casamento... Pra quem se chama Mendes... O que é Mendes? Pior
que isso só Silva, ou Santos... Diga, vai, não é isso que você está pensando?
ERNESTO
Você agora viajou longe, heim? E foi sozinha! Eu nem...
ALICE
Pois escuta aqui: eu não sou herdeira dos Mendonça Prado, mas também não sou nenhuma
morta-a-fome! Vamos segurar a onda, cara, já que entramos nessa...
ERNESTO
É. É só sua mãe colaborar! Ela é dose! É overdose! Aliás, eu não sei como você agüenta!
ALICE
E quem disse que eu agüento?
(Enquanto conversavam, eles foram se despindo, de modo que a essa altura estão apenas de
roupas íntimas, mas só agora percebem isso e ficam subitamente envergonhados; em
seguida olham para o público e se espantam ainda mais: cada um pega uma peça de roupa
no chão e coloca-a na frente, cobrindo-se.)
ALICE
Então... boa noite.
ERNESTO
Boa noite. (Vai subindo para o mezanino.)
ALICE
Êi! Onde você pensa que vai? Nada disso! (Ele desce.) Nem pense em dormir aí! (Ela vai
subindo.) Isso se você não quiser despencar durante a noite! Eu costumo dar chutes quando
estou dormindo.
129
130
ERNESTO
(baixo, à parte)
Chutes não, coices!
ALICE
(de cima)
O quê?
ERNESTO
Nada. Eu disse que vou ficar aqui em baixo mesmo. Boa noite.
CENA 2
(De manhã, o telefone toca. Alice, sonolenta, atende.)
ALICE
(bocejando)
Mas quem é que... (irritada) Alô! Mãe? Você está maluca? Sabe que horas são? São cinco
da manhã! Mas será possível? O quê? Foi... Foi, sim. Tudo? "Tudo" o quê, mamãe? Ah! A
noite! Sim, a famosa noite! Claro, eu sei. Sim, sim. Eu sei. É, sim. O que fica. Eu sei. É o
que fica. A primeira impressão é a que fica. Certo. Mas não se preocupe. A impressão foi
ótima. É, eu estou muito bem impressionada, aliás, impressionadíssima. Não precisa repetir,
eu já sei. Claro. Vai dar tudo certo, não se preocupe.
(Alice desliga o telefone, deita-se no chão e começa a fazer ginástica, quando ecoa a Voz da
Mãe.)
VOZ DA MÃE
É fácil para você dizer "não se preocupe". Isso é porque você não tem a experiência de vida
que eu tenho... Conheço casos escabrosos. Eu só estou pensando no seu futuro, na sua
130
131
segurança. Você se lembra o que aconteceu com sua prima de Juazeiro? Uma história que
abalou a cidade... uma tragédia...
(Alice se levanta, procurando de onde sai a Voz da Mãe, até que descobre aberta a porta da
estante da sala. Fecha-a, estancando a Voz da Mãe. Ernesto, que chegou na sala pé ante pé,
espionando, só tem tempo de ouvir o final da fala da Mãe. Está de pijama, com uma xícara
na mão, totalmente despenteado.)
ERNESTO
E o que foi que aconteceu com sua prima de Juazeiro?
ALICE
Ah! Ernesto! Você também? Não torra! (Sai da sala.)
ERNESTO
Credo! Eu só fiz perguntar... (Vai até a estante, à direita, onde está o CD player. Sempre
resmungando, de pijama, descabelado, começa a mexer nas caixinhas de disquetes.) É o
diabo, isso. Queria saber quem inventou uma coisa tão capciosa, tão cheia de segundas
intenções... Casamento! É pior que um incêndio! Os árabes é que têm razão. Mulheres!
Deviam estar todas amordaçadas. Caladas! Só com os olhinhos de fora, e olhe lá! (Ouve-se
um apito. Ele olha para o público, constrangido.) Desculpem. Não... não era isso que eu
queria dizer. Não me entendam mal, por favor. Eu sou até um sujeito com idéias
politicamente corretas... mas vejam só! Um homem... perdão, quero dizer, uma pessoa... tem
a sua vida em paz, arrumada, organizada, e de repente... (com um gesto largo, mostrando o
apartamento em torno) isso! Isso! Essa é a verdadeira tentação do demônio! (Reparando
melhor nos discos) Mas... o que é isso? (Com verdadeiro horror) Minha nossa! Que zona é
essa?
ALICE
(entrando, alegre)
O que você está fazendo acordado, e resmungando, a essa hora da manhã? Você ainda não
tem idade pra isso...
131
132
ERNESTO
(irritado, contendo-se)
Eu resolvi ouvir música, porque não conseguia dormir... e tive a grata surpresa de encontrar
meus CDs numa bagunça! Um mangue!
ALICE
(aproximando-se e olhando)
Eu não estou vendo bagunça nenhuma. Tudo direitinho, um atrás do outro...
ERNESTO
Ah! Pra você está tudo "direitinho", não é?
ALICE
Por que? Tinha algum arranhado, por acaso?
ERNESTO
( falando e andando na direção dela, ameaçador, enquanto ela anda de costas, recuando) Se... por acaso... se algum deles estivesse arranhado, seria um caso de homicídio justificado!
ALICE
Mas então qual é o problema?
ERNESTO
(pegando-a pelo braço)
O problema está aqui, ó... T, de Tchaikovski, devia vir depois de S, de Schubert, não é
lógico? Não é o que se pode esperar de um animal racional? De uma casa racional? Mas
não! B, de Bach, está atrás de Hendel, e Mozart - meu deus! - está atrás de Wagner! E você
ainda diz que está tudo "direitinho"...
ALICE
E está! Porque n vem antes de e, que vem antes de u, que vem antes de r que vem antes de o
que vem antes de t que vem antes de i que vem antes de c que vem antes de o ... neurótico!
(Para si mesma) Ah! Fiquei até sem fôlego! Se a palavra fosse maior, eu sufocava!
132
133
ERNESTO
(ordenando compulsivamente os CDs, desesperado)
Um mangue... oh, meu deus! Os dodecafônicos misturados com os românticos!
ALICE
(à parte)
Como é que eu podia adivinhar? (Para ele) Cara, eu não acredito nisso... Quer dizer que
você guarda os discos em ordem alfabética?
ERNESTO
(subitamente interessado, parando de ordenar os discos)
Por que? Você tem... outra forma melhor?
ALICE
(vendo que ele não entendeu)
Nada, deixa pra lá... (Olhando o relógio) Eu já estou atrasada.
ERNESTO
(só então percebendo que ela está toda vestida para jogar vôlei, de camiseta, mochila,
raquetes, etc.) - Êi! Onde é que você vai assim?
ALICE
(natural)
Eu vou treinar.
ERNESTO
Às cinco e meia da manhã?
ALICE
O treino começa às seis...
133
134
ERNESTO
Você não acha isso... bem, um pouco estranho?
ALICE
O que é estranho?
ERNESTO
Sei lá. Você agora está casada. Não acha que sair assim, sábado de manhã...
ALICE
Mas todo sábado eu jogo!
ERNESTO
Eu entendo... mas, como pessoas casadas, não acha que a gente devia... sei lá...
ALICE
E o que é que as pessoas casadas fazem sábado de manhã?
ERNESTO
Ah! se eu soubesse! Deviam publicar um Manual de Regras para Recém-Casados, aí ficava
mais fácil...
ALICE
Pois eu nem quero saber. Depois do que aconteceu com minha tia... (Vai saindo)
ERNESTO
Êi! Espere, o que aconteceu com a sua tia?
ALICE
Depois eu conto. Agora não tenho tempo.
ERNESTO
Ah! Não! Agora que você começou, conte. Senão eu vou ficar aqui remoendo, imaginando...
134
135
ALICE
Ótimo! Assim você se distrai.
ERNESTO
(contendo-se)
Pensando bem, eu não estou nem um pouco interessado nas histórias da sua família...
ALICE
Ah! Foi bom você falar nisso. Olhe, se a minha mãe ligar, você diz que eu fui à feira, viu?
Ela vai ficar louca de felicidade! (Vai saindo e volta) Mas... você não quer vir comigo?
ERNESTO
Eu? Tá louca. Ficar sentado no sol, suando, vendo uma bola pulando daqui pra lá é o
extremo oposto da minha idéia de lazer...
ALICE
Então tá. Eu fiz a minha parte. De esposa. Convidei. (Ela pára, hesitando.) Então volte pra
cama pra dormir. Você está com uma cara péssima! Deixe os discos que na volta eu arrumo.
De A a Z. Prometo. (Dando uma última olhada nele.) E penteia esse cabelo!
CENA 3
(Assim que ela sai, Ernesto fica um tempo parado, pensando. De repente, começa a rir e a
pular, feliz.)
ERNESTO
Não acredito! Só! Sozinho! Eu tenho meio sábado para ficar sozinho! Pra fazer o que eu
quiser! Aleluia! Vou andar nu pela casa toda! (Canta.) "Gracias a la vida, que me há dado
tanto..." (Dança e canta trechos de músicas enquanto tira o pijama.) Sozinho! Eu não
acredito! (De mãos postas) Oh! Meu deus! Eu me sinto tão feliz... que até me sinto culpado!
Dá vontade de encher a cara! De tomar um porre! (De cueca, vai até a cozinha, dançando,
abre a geladeira, tira uma cerveja, abre a lata e toma um gole. Deposita a lata sobre a
135
136
geladeira e ainda de frente para a porta aberta começa a tirar a cueca, sempre dançando,
quando ouve a Voz da Mãe.)
VOZ DA MÃE
Você tem que tomar muito cuidado, Alice. Mire-se no exemplo de sua prima, coitada. Uma
menina tão bem criada, uma flor de pessoa... Encontra um sujeitinho bem -falante, e aí? Aí,
a tragédia...Um mês, dois meses... seis meses! E ele... nada! A pobrezinha tomava banho, se
perfumava toda, e ele nem tchum! Não adiantou lingerie, ostra crua, incenso afrodisíaco...
nada! E a pobrezinha esperando... esperando... e nada. A cidade toda revoltada... revoltada...
revoltada... (continua a repetir, como um disco arranhado.)
ERNESTO
(fica um instante sem saber o que fazer, fecha automaticamente a porta da geladeira e
percebe que ao fechá-la sufocou a Voz da Mãe.) Tome. (Faz gesto de "dar banana" para a
geladeira) Tome! Tome! Tome!
ALICE
(entrando, com um jornal na mão e vendo Ernesto nu, a dar "bananas" para geladeira.) Mas o que é que é isso? O que é que você está fazendo? Isso é vodu? É magia negra?
ERNESTO
(atrapalhado, cobrindo-se com a cueca que acabou de tirar)
É que eu ia... (apontando a geladeira) eu ia pegar...
ALICE
(depois de colocar o jornal na mesinha de centro)
Pegar o quê? A geladeira está uma igreja... (Avança a mão para abrir a geladeira.)
ERNESTO
(assustado)
Não abra!
136
137
ALICE
Calma. (Percebendo que ele está nu.) Você está muito estranho... mas deixa eu lhe dizer
uma coisa: eu não sou obrigada a ver você desfilando dentro de casa nesses trajes... Isso não
faz parte do nosso...
ERNESTO
(recobrando-se do susto)
E por acaso eu sou obrigado, dentro da minha casa, a me fardar pra ir até a geladeira? Ora, já
se viu? (Enquanto fala, vai catando suas roupas jogadas no chão.)
ALICE
Mas é claro. Nosso casamento, ao fim e ao cabo, é um contrato. Um contrato de cooperação
mútua. Assinado e carimbado, com testemunhas...
ERNESTO
E daí?
ALICE
Daí que... que... andar pelado dentro de casa, com tudo balançando, é assédio sexual...
Artigo tal, parágrafo tal. Isso dá cadeia!
ERNESTO
"Assédio"? Mais essa agora!
ALICE
Sim, senhor: assédio! Você não conhece a lei não, é? É considerado ofensivo, indecoroso
(aponta para a nudez dele), toda palavra ou gesto libidinoso cometido sem o consentimento
de ambas as partes...
ERNESTO
Mas o marido...
137
138
ALICE
Principalmente o marido!
ERNESTO
Isso é o que você queria! Que eu lhe assediasse! Mas eu tenho mais o que fazer.
(Vira-se para sair, tapando-se com as roupas emboladas na frente, mas lembra-se que está
com as costas nuas, vira-se rápido e sai andando para trás.)
ALICE
E tem mesmo! (Alto, para dentro.) Pô, cara, deixa de ser machista e vai fazer um mercado.
Não tem mais nada em casa.
ERNESTO
(reaparecendo)
Ah, é? (Imitando) Pô, Alice, deixa de ser feminista e vai fazer um mercado!
ALICE
( abre a geladeira, vasculha, e acha uma banana)
Olhe o que eu achei!
ERNESTO
Ah, me dá um pedaço!
(Ela faz que "não" com a cabeça. Já está no meio da banana. Ele avança.)
ERNESTO
Alice, eu lhe ofereço a última chance pra me dar um pedaço!
ALICE
(engolindo o resto da banana, de boca cheia)
Desculpe, foi irresistível...
138
139
ERNESTO
Alice!
ALICE
"Amar é: dividir uma banana." Ora, me poupe!
(Ele fica olhando para ela, sem acreditar. O telefone toca. Alice atende.)
ALICE
É o poderoso chefão. (De nariz torcido, entrega o telefone a ele e sai da sala.)
ERNESTO
É sim, papai, é Ernesto. (Afasta o fone do ouvido, como se alguém gritasse do outro lado.)
Quem? Alice? De short? Mas o que é que tem? Não acho indecente, não. Nada disso... (Olha
em volta, baixando a voz) meu casamento vai muito bem, obrigado! Não, não sou cego!
Você é que vê demais! (Alice entra de mansinho, por trás dele, e fica ouvindo.) Sim, eu sei.
Eu sei que seis de janeiro vem aí. E estou tranquilo! Tchau! (Desliga.)
ALICE
Olhe aqui: eu sei que seu pai é um babaca e não dou a mínima pra o que ele diz... mas que
história é essa de seis de janeiro?
ERNESTO
(nervoso)
Heim? O quê? Seis de quê?
ALICE
Seis de janeiro.
ERNESTO
Janeiro? Nããão... Você... você além do mais é surda! Dinheiro! Ele perguntou se eu preciso
de dinheiro...
139
140
ALICE
(olhando pra ele, desconfiada)
Tá. Eu sou surda. Mas por que você disse que não era cego?
ERNESTO
Porque... ele estava furioso... Alguém viu você no seu joguinho de vôlei - eu bem lhe avisei
que iam estranhar! - aí... ele disse que você nem parecia uma recém-casada, tomando chopp,
de short, e no meio de um monte de homens...
ALICE
Ah! Se eu quisesse estar toda vestida no meio de um monte de mulheres, eu não casava, ia
pra um convento! Mas essa agora é muito boa! Quer dizer que eu vou ter que aturar os
detetives da família Mendonça Prado no meu calo? Sem essa, Ernesto! Quer saber do que
mais? Eu estou começando a achar que este negócio não vai dar certo...
ERNESTO
(indo até ela, aflito)
Não, Alice, não ligue pra isso. Eu não estou nem aí pra eles... Olhe, eu sei que não é fácil,
nem pra mim nem pra você... mas eu acho que tenho uma solução. Aqui. Espera. Está aqui.
(Tira um papel do bolso.) Veja. Ontem à noite eu fiquei pensando... e fiz esta lista de
regras...
ALICE
Regras?!
ERNESTO
(animado)
Sim, regras de convivência. É muito simples. É só cada um de nós colocar no papel as coisas
que o incomodam, seus hábitos particulares, seus limites, horários... assim o outro fica
sabendo... e é só respeitar. Ontem à noite, por exemplo. Eu sei que fui grosseiro... me
desculpe. Mas era só ler aqui... ó. Regra número 1: "Nunca me interrompa quando eu estiver
lendo." Pronto! Acabam-se todos os atritos, todos os desencontros... todos os... (percebendo
que ela está calada olhando pra ele há algum tempo) Não é prático? O que é que você acha?
140
141
ALICE
(com ar estranho)
Eu acho.
ERNESTO
Você acha o quê?
ALICE
Acho bom.
ERNESTO
(aliviado)
Acha mesmo? Olhe, eu vou colocar aqui, bem visível. (Vai até a parede e afixa o papel.) E
você tem todo o direito de fazer também a sua lista. (Para o público) Direitos iguais, é claro.
Para mim não existe distinção, discriminação... Direitos iguais! Eu defendo isso: o direito de
cada um ao seu espaço, à sua individualidade... (Animado e carinhoso) Vamos, faça a sua!
Eu prometo respeitar todas as condições. (Vendo-a parada.) É sério! Faça a sua lista...
ALICE
Tá. Mas hoje eu não posso. Eu vou sair.
ERNESTO
Sair? Com quem?
ALICE
Regra número 1: "Nunca me pergunte com quem eu vou sair."
ERNESTO
Claro! É só que... eu estranhei você sair assim... de repente. Está armando um temporal,
você sabia?
141
142
ALICE
Por que será que eu estou com a leve impressão... que você não quer que eu saia? É por
causa do seu pai, é?
ERNESTO
Meu pai? Imagine! Que bobagem! Não, Alice, eu é que estou com a impressão de que você
ficou aborrecida... É por causa da lista? Olhe, se você não quiser... não está mais aqui
quem...
ALICE
Não, de jeito nenhum! Eu adorei a idéia! Aliás... (maldosa) uma coisa assim bem que
poderia ter evitado o que aconteceu com a minha tia...
ERNESTO
(ansioso)
Sim, você ficou de me contar...
ALICE
É, mas agora eu não estou a fim não. (Senta-se no sofá.)
ERNESTO
Ué... Você não ia sair?
ALICE
Perdi a vontade.
ERNESTO
Olhe, se for por minha causa...
ALICE
Por sua causa? Imagine...
142
143
(Ambos olham ao mesmo tempo para o jornal que está na mesinha de centro. Olham-se,
cada qual percebendo a intenção do outro, procuram disfarçar, e subitamente ambos se
atiram na direção da mesinha, mas Alice consegue apanhar o jornal primeiro. Senta-se e
começa a correr os olhos nas notícias. Ernesto, para fingir desinteresse, abre a porta do
armário de bebidas, como se procurasse algo. Ouve-se a Voz da Mãe.)
VOZ DA MÃE
Eu só penso na sua felicidade, minha filha, no seu futuro. A sua prima, coitada, foi
definhando pouco a pouco. A cidade inteira revoltada. E aí... cinco anos depois... isso é pra
enlouquecer uma pessoa! A pobrezinha encontrou o marido inadimplente na escadaria da
Praça Castro Alves, vestido de baiana. Foi um choque tremendo, a menina teve que ser
internada...
ALICE
(vendo que Ernesto está prestando atenção à Voz)
Ernesto, desligue logo isso! Que coisa feia! Isso é pior que ouvir atrás da porta...
ERNESTO
(estanca a Voz da Mãe, fechando o armário)
Eu só queria saber o fim da história...
ALICE
(correndo os olhos no jornal)
"Banquete macabro. Fritou a mãe e cozinhou a sogra. Chegando em casa faminto, no último
Domingo, Ivanildo de Souza..." Etc e tal. Normal. "Teve os ovos depilados enquanto
dormia. Ontem pela manhã Cacilda dos Santos, 30 anos, casada, armada de uma pinça,
atacou seu marido enquanto o mesmo dormia, arrancando um a um os... " Mas esse aqui
dorme, heim? Ao acordar, etc. e tal. Normal. "Sequestrado." Normal. "Desviados trinta
milhões." Normal. (Estalando a língua.) Tsk... tsk... Esse extrapolou... (lendo) "Crítico
teatral espancado por dois atores." Que absurdo!
ERNESTO
(superior)
143
144
Você se importaria de me emprestar o Caderno Cultural?
(Alice lhe entrega o jornal inteiro e sai da sala.)
CENA 4
ERNESTO
(correndo os olhos no jornal) - Música axé. Dança axé. Cinema axé. (Boceja.) Vídeo axé.
Pintura axé. (Boceja.) Moda axé. Horóscopo axé. (Boceja.) Arquitetura axé... (Adormece.)
(Reversão de luz. Alice, com trancinhas e búzios na cabeça, roupa africana, dança num
ritmo violento, avançando para Ernesto. Joga-o no chão, dançando, e está a ponto de pisálo. Black. Ernesto grita, acordando. Ao acender novamente a luz, entra Alice, em trajes
normais, visivelmente aborrecida.)
ALICE
Eu posso saber quem arrumou meu armário? (Vendo que ele olha para ela fixamente.)
Ernesto!
ERNESTO
(ainda despertando)
Heim? O quê?
ALICE
Quem foi que arrumou meu armário?
ERNESTO
(compreendendo afinal a pergunta dela, ainda confuso)
Tem mais alguém por aqui?
ALICE
E em que estava lhe incomodando o meu armário, posso saber?
144
145
ERNESTO
Eu não pude evitar. É um impulso irresistível... Eu não agüentava mais olhar para aquela
bagunça...
ALICE
Pois olhasse pra outro lado, ora essa! Tanto lugar pra você olhar!
ERNESTO
(sério)
Eu tentei. Mas não deu certo. É como eu lhe disse: um impulso irresistível. Quando eu sei
que existe um foco de desarrumação no ambiente, eu me sinto afetado...
ALICE
Mas não é possível... A vida inteira eu tive que aturar minha mãe arrumando as minhas
coisas, se intrometendo... Agora penso que estou livre ao menos disso e me pego casada com
um maníaco por arrumação! É meu karma! Só pode ser!
ERNESTO
Você é toda pelo avesso! Então você acha que arrumado é "pior", você acha?
ALICE
Se eu acho? Mas esse é exatamente o problema! Eu não consigo achar nada! Falar nisso,
cadê minha bola de vôlei?
ERNESTO
(superior)
Está onde sempre deveria ter estado: na última prateleira à esquerda, junto com as raquetes,
joelheiras, chuteiras e toda essa parafernália esportiva que você vive amontoando!
ALICE
Alguma coisa contra?
145
146
ERNESTO
(dando de ombros)
Não é da minha conta...
ALICE
Ainda bem!
ERNESTO
Eu só acho que não fazia mal você cultivar um pouco o espírito...
ALICE
Ah! Sei! E o seu é muito cultivado, né? Espírito de porco!
ERNESTO
Pelo menos, não pego jornal só pra ler a página policial! E nem ando ouvindo esse lixo
sertanejo que você adora: Leandro e Leonardo, Xitãozinho e ... (Apito. Ele se dá conta do
público, assustado.) Nada contra. Absolutamente. Todas as manifestações culturais são
legítimas... São expressões da alma popular...
ALICE
Mas você é muito mascarado mesmo, heim? É assim a sua cabeça. Tudo que é brasileiro é
lixo! Lixo sertanejo, lixo urbano, lixo baiano... Pra você só presta Billy Holliday...
ERNESTO
(para o público)
Não é verdade! Eu venero Hermeto Paschoal, Tom Jobim... (Para ela) Você quer me
queimar, é? Você nem sabe do que está falando. Você ouve mal. Não tem educação musical!
A verdadeira música é universal!
ALICE
Uau! Uau!
146
147
ERNESTO
Você sabe quem é Sarah Vaughn?
ALICE
Claro, quem não sabe? Uma magrinha, branquinha...
ERNESTO
Não! Era gordona e pretona! E divina! Mas não é para o seu bico! Ou melhor, pro seu
ouvido, acostumado a pagode, levada de quintal e rock da caatinga! (Apito. Ele percebe o
público.) Nada contra. Absolutamente. Eu defendo a diversidade... o pluralismo...
ALICE
Pois pra mim aqui tem plural demais, tá sabendo? Um mais um, quando um deles é você, é
demais pra mim! Mas voltando ao armário...
ERNESTO
Sim, voltando ao armário. Eu só tenho uma curiosidade: como é que você consegue procurar
e achar alguma coisa naquele mangue?
ALICE
(debochando)
Eu faço como Picasso: eu não procuro, eu encontro. (Notando que ele estranhou a citação.)
Por esse Picasso você não esperava... diga a verdade! Ou melhor: as coisas me encontram.
Eu abro a porta e elas vêm a mim. Não é mais prático?
ERNESTO
(superior)
Eu sempre tive uma teoria: a organização externa do indivíduo é um reflexo da organização
interna.
ALICE
E daí?
147
148
ERNESTO
Daí que a sua cabeça também deve ser uma bagunça só!
ALICE
Babaca!
ERNESTO
Relaxada!
ALICE
Olha aqui: agora baixou, está entendendo? Você está vendo que agora baixou. Baixou...
baixou...
ERNESTO
Baixou o quê?
ALICE
O nível! O nível da relação, cara! Sabe do que mais? É melhor acabar com essa brincadeira.
Cada um volta pra sua respectiva casa e pronto. Vamos dar por encerrada essa tentativa
frustrada. Afinal, não é assim que se vive? Tentativa e erro. Tenta, não dá, cai de quatro,
levanta, tenta outra vez e aí...
(Ela olha para ele e percebe que enquanto falava ele foi ficando cada vez mais triste,
cabisbaixo.)
ALICE
Mas o que é que há? Que é que você tem?
ERNESTO
É que... eu... fico triste vendo você falar assim... em desistir... ir embora... Eu acho que a
gente não pode... quer dizer, não ainda...
ALICE
Não pode? Como assim, não pode? Cara, o que é que você está me escondendo, heim?
148
149
ERNESTO
Escondendo? Nada, mas é que...
ALICE
É que... desembucha, vai! O que é que eu não sei nessa história? Qual é o lance que eu não
estou sabendo?
ERNESTO
(engasgado)
Não tem lance nenhum... (À parte) Ernesto, você não pode perder o controle! (Para ela) Eu
só acho que seria uma derrota... um fracasso pra nós dois...
ALICE
Fracasso de quê?
ERNESTO
Você sabe... a relação... o ser humano... a experiência... o relacionamento... a ... (Ouve-se a
campainha da porta.) a campainha! Você ouviu?
ALICE
Eu ouvi. Apesar de ser surda. (Saindo para atender) Mas a gente continua... Eu sinto cheiro
de mistério longe.
(Alice sai. Ernesto respira fundo. Alice volta imediatamente, assustada.)
ALICE
Êi! Psiu! Ela está aí!
ERNESTO
(tem um sobressalto, pensando tratar-se da mãe)
Ela quem?!
149
150
ALICE
(com voz espremida, aflita)
A empregada!
ERNESTO
(alto)
Que emprega...
ALICE
Fale baixo! A empregada que minha mãe mandou...
ERNESTO
Ah! Não! Essa não! Isso é totalmente contra os meus princípios.
ALICE
Mas que princípios?
ERNESTO
Considero um comportamento socialmente inaceitável manter uma escrava dentro de casa.
(Ao público.) Isso é coisa de terceiro mundo, de mentalidade casa grande & senzala, uma
escrava lavando, passando, cozinhando...
ALICE
Ah! É? E quem você sugere que faça isso, heim?
ERNESTO
(como se pela primeira vez pensasse na questão)
Ora, nós...
ALICE
Esse "nós" é força de expressão, ou por acaso me inclui? Olha aqui, Ernesto: eu não posso
mandar a criatura ir embora assim, sem mais nem menos...
150
151
ERNESTO
Alice, eu estou falando sério. (Dramático) Ou ela, ou eu! Se aquela mulher entrar nesta
casa... eu saio por aquela porta e você não me verá nunca mais!
ALICE
( surpreendida pelo tom e atitude dele, depois subitamente começando a rir) Eu não
acredito! Você falou igualzinho ao Tarcísio Meira! Que bárbaro! Faça outra vez, faça! Olhe,
eu vou mandar a mulher entrar...
ERNESTO
(encabulado)
Alice, deixa de brincadeira... Alice, não encarna!
ALICE
Não, é sério! Você estava ótimo! Como é mesmo? (Imitando) "Se aquela porta entrar por
aquela mulher..." Não! "Se nesta casa aquela porta nunca mais sair..." Como é, Ernesto? É
muito difícil...
ERNESTO
Paciência, Ernesto, paciência!
ALICE
Meu deus! Com essa palhaçada eu me esqueci da mulher na cozinha! E agora?
ERNESTO
Agora vá lá e diga a ela que você mudou de idéia... que nós não precisamos de ninguém!
ALICE
Ah! Eu já estou entendendo... Você não quer a empregada porque foi minha mãe que
mandou, não é? Você pensa que ela veio lhe espionar, não é? Pensa que todo mundo é como
seu pai, que vive botando detetives atrás dos outros? Paranóico!
ERNESTO
Não é nada disso!
151
152
ALICE
Claro que é! E ainda vem com essa demagogia toda... (Imitando) "comportamento
socialmente inaceitável"... Ernesto, a mulher está lá plantada na cozinha, feito um dois de
paus! Vai lá você, vai...
ERNESTO
Eu?! Pra dizer o quê?
ALICE
Ah! Está vendo que não é fácil?
ERNESTO
(sem muita convicção)
Quem tem que ir é você...
ALICE
Por que eu?
ERNESTO
Porque... sei lá... é o normal, não é?
ALICE
Normal? Já faz tempo que nós não estamos numa situação normal! Ou você ainda não
percebeu?
ERNESTO
Percebi, sim. Normal pra mim era estar agora no meu amado quarto de solteiro, com meus
discos e livros e nada mais, e não tendo que enfrentar este problema ridículo. Uma
empregada na cozinha! E pra Madame Alice parece que é a Rainha de Copas querendo
cortar a sua cabeça! Ora, me poupe! (Acalmando-se) Deixa, eu mesmo vou lá. (Vai saindo e
volta-se) Mas eu estou avisando que ela vai achar meio estranho...
152
153
(Ele sai, ela fica escutando, tentando "pescar" a conversa.)
ERNESTO
(voltando rápido)
Ela foi embora...
ALICE
Claro! Você demorou tanto! Ela deve ter pensado que aqui só tem maluco!
ERNESTO
É... ela foi embora, e eu estou com fome... Alice, você bem que podia ir preparar um prato
qualquer, né?
ALICE
Prato?!
ERNESTO
Oh! Meu deus! Um prato... uma comida qualquer!
ALICE
Ernesto, você pensa que está falando com quem? Que se casou com quem? Com a Tia
Nastácia, do Sítio do Picapau Amarelo? Com a cozinha maravilhosa da Ofélia? Sou eu,
Alice, tá lembrado? Tudo que eu sei sobre esse assunto é que se acende o fogo e se coloca a
panela em cima! A partir daí, tudo pra mim é um negro mistério.
ERNESTO
Bela educação você recebeu, heim?
ALICE
Você vai querer discutir isso agora, com fome? Vai, liga aí e pede uma pizza...
(Black.)
153
154
CENA 5
(Ao acender-se novamente a luz, vê-se em um canto da sala, empilhadas, seis ou sete
embalagens de pizza, vazias.)
ALICE
(vindo de dentro)
Ernesto...
ERNESTO
(desenhando numa prancheta)
Mas o que foi dessa vez?
ALICE
Sinto muito lhe interromper... Mas é o seguinte: a torneira do banheiro desabrochou...
ERNESTO
Como é? Desabrochou?
ALICE
É... quer dizer... desatarrachou... está esguichando água por todo lado...
ERNESTO
Que mulher confusa... E o que é que você espera que eu faça?
ALICE
Ora... que atarrache, que prenda, que enrosque...
ERNESTO
Alice, eu sou um futuro arquiteto, não encanador! Há uma diferença... se é que você
percebe...
154
155
ALICE
Sim, e daí? Depois você pode ficar a noite inteira desenhando...
ERNESTO
(magoado)
Eu sei que pra você não faz a mínima diferença... que você nem se interessa pelo que eu
faço...
ALICE
(sinceramente surpresa)
E por que eu deveria me interessar? Que idéia! Sei lá, podia ser uma das suas "regras":
"Nunca pergunte o que estou desenhando". Tá. E a torneira?
ERNESTO
Já disse. Sou arquiteto, ou pelo menos serei, se você não me enlouquecer até lá. Não sou
encanador.
ALICE
Mas uma torneirinha de nada... Que incompetência! Eu sempre achei que todo marido devia
ter curso médio de Escola Técnica: aprender a consertar tudo dentro de casa.
ERNESTO
Que coincidência! E eu sempre achei que toda mulher devia ter graduação em cozinha e pósgraduação em cama!
ALICE
Currículos à parte, o que interessa agora é que a água está lá dentro esguichando... Eu vou
chamar um encanador, um homem competente!
ERNESTO
Idéia brilhante!
155
156
CENA 6
(É noite. Luz fraca apenas na sala. Ouve-se simultaneamente a Voz da Mãe e Ernesto,
falando em sonho.)
ERNESTO
A água... não... a água... pára com isso! A água...fecha...a água... não... socorro! A água...
fecha a água...
VOZ DA MÃE
Lembre-se que você é responsável por cinquenta por cento da relação. Faça a sua parte. A
felicidade conjugal é construída dia a dia, minuto por minuto... O amor cresce pouco a
pouco, com a convivência, é como uma plantinha que deve ser regada diariamente...
ERNESTO
(descendo do mezanino, assustado)
Alice!
ALICE
Já fechei! Já fechei! Calma! Era o registro da água.
ERNESTO
Credo! Eu sonhei que... que estava me afogando... tanta água! (Percebe que ela está com um
pequeno regador, molhando uns vasos de violetas.) Mas o que é isso? Oh! Não! Mas o que é
que você está fazendo? (Enfurecido, berrando) Alice!
ALICE
O que foi?
ERNESTO
(furioso, mas tentando se conter)
156
157
O que é que você está fazendo com minhas violetas?
ALICE
Eu? Molhando...
ERNESTO
Você o quê?
ALICE
Eu... molhei... normal...
ERNESTO
Por cima? Você molhou as folhas?
(Alice, receosa, confirma com a cabeça.)
ERNESTO
Idiota! Desastrada! Você destruiu minhas violetas!
ALICE
Eu não sabia... Você vive dizendo que eu não me importo com nada... Eu achei que elas
estavam tão sequinhas, esturricadas... eu só queria ajudar... fazer alguma coisa...
ERNESTO
Não ache nada! Não ajude! Por via das dúvidas, não faça nada! É mais seguro! Meu deus,
ela molhou as folhas...
ALICE
(aproximando-se, carinhosa)
Puxa, Ernesto, minha intenção foi boa...
ERNESTO
(de costas para ela)
157
158
Foi... e eu fico aliviado de saber disso. Quando você tiver uma má intenção, me avise...
porque eu quero estar longe...
ALICE
(abraçando-o pelas costas)
Não fica assim, vai... eu só queria lhe agradar...
ERNESTO
Pois então me desagrade, aliás , por favor, me odeie!
ALICE
Pára com isso! Me desculpa...
ERNESTO
Você é uma catástrofe! Eu devia ter pedido garantias de vida a sua mãe.
(O telefone toca.)
ERNESTO
Falando no diabo...
ALICE
(olhando as violetas, penalizada)
Coitadinhas... ( Atende o telefone) Ôi, mãe. Cremilda, que Cremilda? Ah...sim, a empregada.
Não, não tinha ninguém brigando... que idéia! Está tudo bem... é, tudo correndo muito bem...
Não aconteceu nada... Minha mãe, escute... Pára de falar um minuto! Eu sei, minha mãe... de
forno e fogão, eu sei. Sim, se prende pelo estômago, claro. Ela é maravilhosa, eu sei. Mas
não ia adiantar... Por quê? Porque... porque... (Ela olha para ele pedindo ajuda, ele cruza os
braços como quem diz "se arranje", curtindo, vingativo, a situação.) porque... ela está
acostumada a cozinhar para você, a fazer certos pratos e... (tendo a idéia, rápida) o Ernesto
não come carne!
(Ele se assusta com a solução dela, apontando para si mesmo, dizendo "eu ?")
158
159
ALICE
Pois é isso, algumas pessoas não comem, minha mãe, o que se pode fazer? Não comem
carne, está acabado. Mas por que você não pode ter sossego? Não confia? Mas não confia
por quê? Ora, minha mãe, ele não come carne de vaca, de galinha... não tem nada a ver uma
coisa com outra... (Desliga.)
ERNESTO
Mas isso é o cúmulo! Mata minhas violetas e ainda por cima me chama de vegetariano!
ALICE
Sinto muito! Foi a única idéia que pintou na minha cabeça...
ERNESTO
Pois eu vou sair agora e comer um filé enorme... o maior que eu encontrar!
(Sai.)
CENA 7
ALICE
Coitado! Tão jovem e tão neurastênico... Mas, descontando aquele ar de superioridade
insuportável, até que ele é simpático. Eu vou fazer uma surpresa pra ele! (Pega um livro que
estava escondido.) Vamos ver: duas xícaras de farinha de trigo... (Com o livro na mão vai
até o armário da cozinha e olha.) Tudo bem. Duas colheres de azeite. Certo. Dois ovos.
Uma lingüiça média. (Pausa. Pensa.) Pronto. Começou a complicar... O que é uma lingüiça
média? Um palmo? Bom, a grande deve ser assim... (Confusa, falando para o livro) Custava
alguma coisa ser mais explícito? Dizer: 15, 20 centímetros? Assim fica difícil...
VOZ DA MÃE
Não faça nenhuma bobagem. Um passo em falso e tudo está perdido. Quem ama deve saber
adivinhar os menores desejos do ser amado, elogiar sempre as suas qualidades... Amar é
159
160
esquecer de si mesmo em benefício do outro; amar é colocar os próprios prazeres em
segundo plano, é abrir mão dos nossos caprichos e interesses mesquinhos, é doar-se
completamente...
(Alice fecha a porta do armário da cozinha, que deixou aberta, e pára a voz da mãe. Ouve
barulho e percebe que Ernesto está chegando. Guarda correndo os utensílios de cozinha e
esconde o livro no armário da sala.)
CENA 8
(Quando Ernesto entra, ela já está deitada no tapete, com o head-fone no ouvido, de olhos
fechados, batendo os pés no ritmo da música. Ele traz um embrulho de presente na mão.
Joga-o perto dela e sai para a cozinha.)
ALICE (assustando-se)
Ai! Que é isso?
ERNESTO
Abre!
ALICE (sem ouvir)
Heim?
ERNESTO (tirando-lhe o fone de ouvido)
- Abre!
ALICE (abre o embrulho, tira um vestido e examina-o)
Que é isso?
ERNESTO
Um vestido!
160
161
ALICE
Que é um vestido eu estou vendo, mas pra que é isso?
ERNESTO
A gente não vai sair, hoje de noite? Trouxe pra você!
ALICE
Pra quem?
ERNESTO
Pra você!
ALICE
Pra mim?
ERNESTO (começando a se impacientar)
É! Pra você.
ALICE
Pra mim ?
ERNESTO
Pronto! Começou.
ALICE
Eu só estou perguntando!
ERNESTO (irritado)
Quem é que usa vestido aqui? Eu ou você?
ALICE (espantada, olhando para si mesma)
Que eu saiba, nem eu nem você!
161
162
ERNESTO
Você não vai vestir?
ALICE
Você comprou este vestido pra mim? Eu não acredito.
ERNESTO (rindo)
Comprei!
ALICE
Pra mim?
ERNESTO
Foi! Gostou? É lindo, né?
(Ela sobe para o mezanino, vai para a frente de um espelho e coloca o vestido sobre o
corpo.)
ERNESTO (falando de baixo, da sala)
É lindo, né? Eu sabia que você ia gostar... desde aquele dia que a gente passou na porta
daquela loja, e você ficou olhando... Eu vi que você tinha gostado... (Estranha o silêncio
dela.) Não é lindo?
ALICE (descendo)
É horrível! A roupa que eu gostei estava do lado desse... disso aqui! Ah! Meu deus! Onde eu
tava com a cabeça na hora que... Agora eu sei porque é que acontece tanta tragédia conjugal!
Porque só de pensar que você comprou isso aqui, pensando em mim, eu tenho vontade de te
matar...
ERNESTO
Espera aí... Você está...
162
163
ALICE
Tô sim, estou com raiva! Sei que você faz isso pra... é por causa das violetas, heim? É
vingança? Que é que você tem contra mim, heim, cara? Eu ia ficar parecendo um monstro,
dentro disso aqui... A baleia assassina... Você sabe qual é o meu número?
ERNESTO
Bem... pra falar a verdade...
ALICE
Claro que não! Porque você não deve ter se dado ao trabalho de olhar uma roupa no meu
armário, pra ter uma idéia de... Isso aqui, no mínimo, é tamanho 52! Olha pra mim! Eu tenho
cara de sair, de noite, dentro isso aqui? Pra quê? Pra ficar ridícula, dos seus amiguinhos? Se
você tivesse um pouquinho mais de sensibilidade...
ERNESTO (com um berro)
Porra!
(Silêncio.)
ERNESTO
Sensibilidade? Você tem a coragem de falar de sensibilidade?
(Ela, assustada, nega com a cabeça.)
ERNESTO
Você quer dizer que eu sou insensível porque comprei esse vestido pra você? Responde!
(Alice concorda com a cabeça e depois nega, atrapalhada.)
ERNESTO
Insensível porque me atrapalhei com o modelo?
(Alice tenta responder, depois se cala.)
163
164
ERNESTO
Insensível porque errei um número, que nem deve ser assim tão diferente do seu?
(Ela diz que não sabe, encolhendo os ombros.)
ERNESTO
Insensível, eu?
(Ela tenta escapar.)
ERNESTO
(indo atrás dela)
Por que te trouxe um presente, achando que você ia gostar de sair com uma roupa nova?
Tentando fazer com que a gente curtisse uma noite legal, pelo menos uma noite legal?
Achando que talvez... a gente... que pudesse ser diferente! Que eu e você... que nós dois... Eu
só posso ser insensível... porque uma pessoa que se casa com você não pode ter
sensibilidade... você tá entupida de razão: eu sou uma pessoa sem nenhuma sensibilidade!
Insensível! (Cantando) "Insensível... você diz!"
ALICE
Tá, desculpa, eu...
ERNESTO
Imagina! Você, se desculpar? Eu é que... claro! Você é uma pessoa muito sensível! Mas não
se preocupe. Eu invento uma desculpa qualquer lá pro pessoal... Você não precisa ir
comigo! Aliás, eu até prefiro que você não vá! (Apito. Para o público.) Todos são
testemunhas da minha infinita paciência, e tolerância! Eu creio no diálogo! Mas a mocinha aí
é dose! (Baixo, à parte.) Oh! Meu Deus! Chega 6 de março mas não chega 6 de janeiro!
164
165
CENA 9
(Mais embalagens vazias de pizza, amontoadas num canto da sala. Ernesto está sentado à
mesa, desenhando. Alice ronda, à certa distância, tentando contato, mas ele continua
concentrado no trabalho.)
ALICE (criando coragem)
Hoje à noite vai começar...
(Ele a interrompe com um gesto. Com uma das mãos, faz o número três e com a outra
aponta o lugar onde estão fixadas as regras de convivência.)
ALICE (vai até indicação e lê)
"Não me interrompa quando estiver desenhando."
(Ele continua a trabalhar. Ela, como criança repreendida, senta-se afastada, observando-o.
Ele termina de desenhar e começa a arrumar a mesa, guardar papéis, etc. Ela espera o
momento de puxar conversa. Ele pega um livro e começa a ler. Fecha o livro e vai até a
cozinha. Traz água e começa a regar as plantas. Ela faz menção de falar, pára. Vai até a
lista de regras, vê se não está infringindo nenhuma.
ALICE
Tá um dia lindo, né?
(Ernesto faz que "sim" com a cabeça.)
ALICE
Hoje é lua cheia.
(Silêncio.)
ALICE
Você tem que fazer alguma coisa, hoje à noite?
165
166
(Ernesto faz que "não" com a cabeça.)
ALICE
É que... hoje começam a passar aqueles documentários sobre a Segunda Guerra, lá no ICBA.
ERNESTO
Hum, hum.
ALICE
Tava pensando que a gente podia ir ver...
(Silêncio.)
ALICE
Foi você mesmo que disse que era interessante.
ERNESTO
É.
ALICE
Vamos?
ERNESTO
Pode ser.
ALICE
Dizem que o de hoje é ótimo. É sobre... como é mesmo? Ah! sobre os campos de
concentração. "Câmara de Gás".
(Ernesto olha para ela.)
166
167
ALICE
É o título... "Câmara de Gás". Depois a gente podia ir comer aquele filé que você adora, lá
em Dadá.
(Ernesto olha para ela.)
ALICE
Me desculpa? Eu sei que fui grossa... casca grossa...
ERNESTO
Foi!
ALICE
Eu devia ter sacado que...
ERNESTO
Devia!
ALICE
Eu falei muita besteira...
ERNESTO
Falou!
ALICE
Eu sei que você não ia fazer aquilo só pra me irritar...
ERNESTO
Sabe?
ALICE
Claro. Você é bastante sensível para...
167
168
ERNESTO
Sou!
ALICE
Me desculpa?
(Silêncio.)
ALICE
Você também vive me criticando... dizendo que eu sou maluca... desorganizada... que não
cuido do espírito...
(Silêncio.)
ALICE
Você acha que é bom ter alguém dizendo que você não sabe fazer isso... que não tem tato
com aquilo... te chamando de relaxada, casca grossa...
(Silêncio.)
ALICE
Tudo que vem de você é ótimo, limpo, superior, espiritual, transcendental, excepcional... e
pra mim só fica o anormal... desigual... irracional... mal... mal...
(Silêncio.)
ALICE
Eu sei que exagerei... mas eu tô pedindo desculpa...
(Silêncio.)
ALICE
Eu também não sou assim tão insensível como você pensa... (Vai saindo.)
168
169
ERNESTO
Espera! (Ela pára.) Você ainda quer sair hoje à noite?
ALICE
Pode ser...
ERNESTO
Mas vamos ver outro filme, senão a gente não vai conseguir comer aquele filé, depois...
ALICE
Por quê?
(Ernesto ri, encantado com a distração dela.)
ERNESTO
Agora, pelo amor de Deus, você pode me dizer afinal o que foi que aconteceu com a sua tia?
ALICE
Bobagem. Vinte anos de casamento. Um dia... (frisando) Sábado de manhã... ela pegou o
despertador da cabeceira... daqueles antigos, grandes, pesados... e picou na cabeça de meu
tio. Depois pediu o desquite.
ERNESTO
E por quê?
ALICE
Foi o que a família quis saber. Aí ela disse que não aguentava mais acordar todo sábado de
manhã e meu tio perguntar: "Beeeeem, o que é que a gente vai fazer hoje?
ERNESTO
Só por isso?
169
170
ALICE
Você diz "só", é? Imagine 20 anos com isso no ouvido! "Beeeem..." É de matar! Aliás eu
acho que foi pelo desgosto que ele morreu do jeito que morreu...
ERNESTO (curiosíssimo)
E como foi?
ALICE
Ah, não! É uma história muito triste... não vou contar agora não. A gente fez as pazes, está
num clima tão leve...
ERNESTO
Conte, Alice, por favor.
ALICE
Não, é um caso muito triste, já disse. Que curiosidade! ( À parte) Agora ele me paga!
(Toca o telefone. Ernesto sai, irritado.)
CENA 10
ALICE
Ôi, mãe! Tá, sim. Tudo às mil maravilhas. Ontem ele me deu até um presente. Verdade! Um
vestido! O quê? Horrível. Claro que eu agradeci...Heim? Consumado? Claro que está
consumado. Consumadíssimo! Que anulação coisa nenhuma! Que idéia! Ernesto? Esquisito?
Não acho não. Não tem nada de esquisito. Ele só é ... assim... sensível. É. Uma pessoa
sensível. Minha mãe, eu vou desligar que ele já deve estar chegando. Tchau.
(Alice olha em volta, vai até a estante. Ao abrir a porta, ecoa a Voz da Mãe.)
170
171
VOZ DA MÃE
Como é que você quer que eu tenha sossego? Ainda por cima, um homem que não come
carne! Eu só estou pensando no seu futuro. Um passo em falso, e tudo desaba! Lembre-se do
fim que teve o marido de sua prima, coitada. Ai, ai, eu não lhe digo é nada...
(Alice fecha a porta, estancando a Voz da Mãe. Depois abre-a com cuidado, constata o
silêncio, passa a remexer e encontra uma pilha de vídeos.)
ALICE (olhando os vídeos, espantada)
Uau!
(Ernesto entra em casa com uma "quentinha" de comida na mão.)
ALICE
Surpresa! Você não vai acreditar no que eu achei!
ERNESTO
O que será dessa vez? (Vendo a pilha de vídeos na mão dela.) Onde foi que você pegou isso?
Você andou mexendo nas minhas coisas?
ALICE
Não, é que eu fui procurar um... o... Ah! se alguém me contasse eu não ia acreditar... quer
dizer que você gosta de filmes de sacanagem? Por que nunca me disse?
ERNESTO (encabulado e irritado)
Eu não gosto... quer dizer... não é meu, é de um amigo que me deu para guardar...
ALICE
Jura? Mas que estranho... que coincidência! Ele também se chama Ernesto? Porque está tudo
com seu nome!
171
172
ERNESTO (`a parte)
Maldita mania minha de botar etiqueta em tudo! (Para ela) Me dá isso aqui! Você não tem
direito! Você invadiu o meu espaço!
(Ele avança para tomar os vídeos e ela foge, lendo os títulos, subindo em cadeiras, no sofá.)
ALICE
Aqui tem coisa que até o diabo duvida! Nossa! "Penetrações diabólicas"! "Ato de Quatro"!
Esse é bom. "O amor que fica". "Vulva Assassina". Credo! (Vai lendo outros títulos e
comentando, enquanto foge dele.)
ERNESTO
Você agora extrapolou! Bisbilhotando nas minhas coisas! Me dá isso aqui! Isso é invasão!
Eu tenho direito à privacidade!
ALICE (vendo que ele está furioso, ela pára de fugir)
Deixa de ser dramático! Eu adorei.
ERNESTO
Você... gosta?
ALICE
Adoro! Tem um que é bárbaro. É um castelo... e o cara tem uma coleção de chicotes
incríveis...
ERNESTO (sem pensar)
"Flagelações frenéticas".
ALICE
Isso! Você tem?
ERNESTO
Nem conheço.
172
173
ALICE
Mas eu nunca podia imaginar que você...
ERNESTO (agarrando os vídeos)
E pode continuar sem imaginar! Não se meta com minhas manias.
ALICE
Mas eu não ligo... você pode ser maníaco à vontade!
ERNESTO (agarrado com os vídeos)
E não me chame de maníaco!
ALICE
Ah! Deixe disso. Vamos assistir um, juntos?
ERNESTO (espantado com a idéia)
Assistir? Com você?!
ALICE
Claro! (Explicativa) Vídeo: ver, assistir... é feito pra isso, não?
ERNESTO
Você enlouqueceu de vez. Mas nem morto!
ALICE (ofendida)
Está bem, eu já sei. Eu sou uma estranha, não é isso? Não posso compartilhar as suas
manias...
ERNESTO (tocado)
Não, não é isso! Você não entendeu! Não é você... sou eu! Eu nunca assisti um filme de
sacanagem com outra pessoa. Com ninguém! Eu ia morrer de vergonha!
173
174
ALICE
(intrigada)
Mas então... pra que... (entendendo) Ah! Não... não me diga que você tem todos esses filmes
pra ver...
ERNESTO
(com timidez encantadora)
Sozinho.
ALICE
Cara, você é muito louco... quer dizer que... com outra pessoa...
ERNESTO
Eu não posso nem imaginar alguém olhando pra minha cara e me vendo... eu vendo isso...
ALICE
(imitando o desprezo dele)
"Isso"?
ERNESTO
Sim, "isso". Como disse Santo Agostinho...
ALICE
Santo Agostinho? Ele também gostava de sacanagem?
ERNESTO
Não dá pra conversar com você! Você é tão... tão literal!
ALICE
Tá bom. Mas o que foi que seu santo disse?
174
175
ERNESTO
Ele não é meu santo, mas ele disse: "O mal está no escândalo do mal. Pecar em segredo até
nem é pecar." Ou qualquer coisa parecida.
ALICE
Taí, dessa eu gostei. Mas se nós estamos casados, onde está o pecado?
ERNESTO
Lá vem você outra vez, tomando tudo ao pé da letra. Além do mais, mesmo casados, você é
você e eu sou eu.
ALICE
Que original! Mas... e o contrato?
ERNESTO
Contrato?
ALICE
O contrato indissolúvel. Você não ouviu o que o padre disse? Unidos para sempre, na
riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, na tristeza e na alegria, na briga... e na
pornografia!
ERNESTO
(com raiva de ter prestado atenção às bobagens dela)
Não torra!
ALICE
(só então vendo a embalagem)
Que é isso? Comida?
ERNESTO
Não. É um crocodilo, não está vendo?
ALICE
175
176
(comovida)
Oh, Ernesto, que gracinha... Como você adivinhou que eu sou louca por lazanha?
ERNESTO
(fingindo indiferença)
É melhor botar no micro-ondas. Já deve estar gelada... pelo tempo que você perdeu com essa
palhaçada...
ALICE
(provocante)
Pois a gente podia recuperar o tempo perdido...
ERNESTO
(já meio derretido)
Nem vem. Se for aquela história outra vez...
ALICE
(pegando um vídeo)
Unzinho só... Já pensou que "massa" a gente comendo lazanha e... heim?
ERNESTO
(rindo, atraído por ela)
É. É muita "massa" pra mim. Puxa, eu não consigo ficar com raiva de você... Você é tão...
ALICE
Então você topa? Vamos? Quer experimentar?
ERNESTO
( aproxima-se rindo, sedutor)
Por que você acha que lazanha combina com sacanagem?
(Toca o telefone.)
176
177
ALICE
Ai, que saco! A pior coisa do mundo é um tarado enrustido!
(Alice vai saindo e Ernesto vira-se para atender ao telefone. Quando ele pega o fone, ela
retorna na ponta dos pés e fica escondida embaixo do mezanino.)
CENA 11
ERNESTO
Ah! Não! (Atende.) Alô! Mas o que foi agora, papai? (Afasta o fone, como se ouvisse gritos.)
Olhe aqui... Não, não quero... Jogar areia nos seus olhos por que? De dia e de noite? De dia e
de noite o quê? Não sei porque, é um casamento normal... Antro? Que antro? Pelourinho?
Não, o Pelourinho não é "antro", não senhor, e ela é maior e vacinada! Quem lhe disse?
Quem lhe disse que eu não tenho pulso? Você vai ver! Vai adiante, sim. Eu também aposto.
6 de janeiro. Pois eu aposto! Você vai ver... Pois espere sentado! (Desliga.)
ALICE (surgindo atrás dele, de repente)
Muito bem. Pode ir falando.
ERNESTO
Ai, que susto!
ALICE
Pode falar.
ERNESTO
Mas você...
ALICE
Ouvi, sim. Apesar de surda. Ouvi. 6 de janeiro. Qual é o babado, o mandu, a maracutaia que
a santa esposa aqui está por fora?
177
178
ERNESTO
Não fale assim... eu ia te contar... mas uma coisa e outra...
ALICE
Sim, e outra coisa e uma... Fale. Que é que tem 6 de janeiro?
ERNESTO
É que meu irmão mais novo, Onofre, vai fazer 21 anos...
ALICE
Normal. Vamos cantar parabéns, muitos anos de vida... e daí?
ERNESTO
É que... meu pai já tinha determinado que eu, por ser o filho mais velho... ia pegar a direção
da fábrica...
ALICE
"Das fábricas", você quer dizer.
ERNESTO
Pois é. Das fábricas... (estranhando) Como é que você sabe?
ALICE
Quem faz as perguntas agora sou eu. Continue. Aliás... espere aí... Você disse que era o mais
velho... e sua irmã? Não é ela a mais velha?
ERNESTO
(Com desdém)
Ernestina? Não... ela é mulher... ela não conta.
ALICE
Como é?
178
179
ERNESTO
(assustado, percebendo o que disse)
Para meu pai, entenda bem! Ele é um velho retrógrado, jamais ia passar a presidência pra
uma mulher. (Ao público) Que isso fique claro: pra mim, uma mulher pode chegar a ser uma
executiva tão competente quanto um homem! Principalmente se ela desenvolver
determinadas habilidades... digamos... masculinas.
ALICE
Ernesto, pára com esse discurso idiota! Continuando. Então, o papai já tinha decidido que
entre os dois machos da casa o mais velho ia tomar conta do destino das empresas. Ótimo
pra você. E daí?
ERNESTO
Acontece que ele não gosta da idéia de um filho solteiro na direção. Pra ele, solteiro é
sinônimo de irresponsável.
ALICE
É bem a cara dele. E daí?
ERNESTO
Daí... ele vivia insistindo que eu tinha que me casar, "assumir responsabilidades", como ele
diz.
ALICE
E daí...
ERNESTO
Daí que... quando aconteceu aquela confusão toda... a festa, a bebedeira, sua mãe fazendo
escândalo... Bom, apesar de ser um mal-entendido... Você compreende, não é? Bom, eu vi
ali a chance de fazer a vontade dele... pelo menos por um tempo... até que ele me entregasse
a presidência.
ALICE (fria)
179
180
Sei.
ERNESTO
Daí, você sabe... eu casei.
ALICE
Sei. Comigo. (Contendo-se) E como é que seu irmão entra na história?
ERNESTO
É que... se meu pai descobrisse que foi tudo uma armação, que eu me casei "de mentirinha",
que a gente mal se conhecia... ele ia ficar furioso... e com certeza passava a presidência pra
meu irmão, Onofre... com certeza... ele ia ficar puto da vida... ah! se ia... Ele odeia mentira!
ALICE (dura)
Nisso ele tem razão. Continue.
ERNESTO
E ele já está desconfiado... Chegou a apostar comigo que eu não conseguia ficar casado nem
um mês... que eu era cheio de manias, que eu não ia aturar ninguém... que ninguém ia me
aturar...
ALICE (dura)
Nisso também ele tem razão.
ERNESTO
Mas acontece que meu irmão só pode assumir o cargo se tiver... quando tiver 21 anos...
ALICE
Ah! 6 de janeiro...
ERNESTO
Pois é. E até lá eu tenho que estar casado... e bem casado... Você entende?
180
181
(Silêncio.)
ERNESTO
Você me entende, não é?
ALICE
Será que eu ouvi mesmo o que eu ouvi? Não, é sério. Eu quero saber se eu estou sonhando.
Quer dizer... que você precisava me aturar até 6 de janeiro...
ERNESTO
Aturar? Não, não fale assim.
ALICE
Suportar, agüentar, ter saco... que diferença faz?
ERNESTO
Alice, entenda. Isso foi antes... eu não te conhecia...
ALICE
Nem me conhece agora! (Furiosa) Se me conhecesse, ia saber que minha primeira regra de
convivência é: "Não minta pra mim!". Você! Você! Ai, que ódio! Com a sua listinha cretina
de regras, arrotando superioridade... e me tratando como imbecil! Eu te odeio! (Bate nele.)
ERNESTO
Não! Alice, escuta!
ALICE
Sim, me tratou como imbecil... e o pior é que eu sou imbecil. Idiota! Cretina! Burra! Cavala!
Égua!
ERNESTO
Alice, me perdoa, eu sei que devia ter te contado...
181
182
ALICE
Você sabe? Mas como foi que eu não desconfiei? Por isso você era tão tolerante comigo!
Ninguém nunca me aguentou nem dois dias!
ERNESTO (decepcionado)
Você me achou muito tolerante, foi?
ALICE
Insuportavelmente! Mas agora eu entendi... Calhorda! Você nem pensou que podia ter
contado comigo? Que eu podia ser sua cúmplice? Que eu podia te ajudar, encarar junto a
coisa toda?
ERNESTO
Tive medo, não sei. Você é tão imprevisível! Afinal, eu nem sei porque que você ficou
comigo até hoje!
ALICE
Não sabe porque também é cretino, burro, cego! (Bate nele.)
ERNESTO
E por que foi? Conta pra mim!
ALICE
Não digo. E não digo também o que aconteceu com meu tio! Você nunca vai saber!
ERNESTO (aproximando-se)
Venha cá...
ALICE
Não encoste em mim! Você me tratou pior do que uma estranha, Ernesto! E eu, babaca,
querendo segurar a onda, a atmosfera do "lar doce lar"... comprei até um livro de receitas!
Mas que jumenta que eu sou!
182
183
ERNESTO
Você comprou o quê?
ALICE (melodramática)
Nada. Coisas do passado. Agora eu sou uma nova mulher. Aquela Alice está morta.
ERNESTO
Não fale assim. Você precisa entender que as coisas mudaram...
ALICE
Ah! Isso com certeza. Sim, mudaram. E mudaram pra pior! Pelo menos pro seu lado! Porque
agora eu vou jogar areia no seu brinquedo. (Vai para o telefone.)
ERNESTO
Alice, olha pra mim...
ALICE
Já olhei demais. Até já decorei a sua cara. (`A parte) Ah! Ele vai ter que me paparicar muito!
(Começa a discar.)
ERNESTO
Por favor, Alice! Falta tão pouco, agora! Me dá uma chance!
ALICE
Você teve todas! Teve todas as chances de não me tratar como uma cretina! Mas se passou!
Preferiu esconder o jogo. Pois agora eu vou ligar para a residência dos Mendonça Prado e
devolver ao mequetrefe do seu pai todos os elogios que ele me tem feito. (Ele coloca o dedo
no telefone, desligando.) E tira a mão daí!
ERNESTO
Não faça isso, Alice!
ALICE
183
184
(Interrompendo a discagem)
Mas antes eu tenho uma novidade pra você. Eu podia ir embora sem lhe dizer nada, mas não
vou perder esse gosto! Você está se julgando um grande estrategista, um refinado malandro,
um maquiavélico armador...
ERNESTO
Eu não sou nada disso!
ALICE
E não é mesmo! Sabe por quê? Por que você acha que eu lhe aturei até hoje, heim? Pelos
seus belos olhos, ou por sua vasta cabeleira?
(Ernesto passa discretamente a mão nas entradas do cabelo.)
ALICE (cruel)
Você... engoliu aquela história da festa? Acha mesmo que eu entrei lá por acaso? Pois fique
sentadinho aí, pra não cair do cavalo! Agora eu vou dizer tudo! Eu vou embora, mas antes
vou desarmar este circo todo!
ERNESTO (temeroso)
Alice... lembre-se que tudo que você disser poderá ser usado contra você...
ALICE
E eu com isso? Agora dane-se tudo! Tem um ventilador aí? (Grita.) Eu quero falar na frente
do ventilador! (Baixo, em tom narrativo) Eu não aguentava mais minha mãe azucrinando
meu ouvido, falando do "império" dos Mendonça Prado, do ótimo partido que você era... A
princípio eu não liguei, mas minha mãe é dessas criaturas que quando querem alguma coisa
não largam o osso da vítima até conseguir! Virou uma idéia fixa. Insistia que eu pelo menos
tentasse me aproximar, e mais isso, e mais aquilo... Aí, quando eu soube da festa do seu
aniversário... eu me fiz convidar por aquela sua prima... lembra? A doida da festa... "Quer
experimentar esse aqui? É a maior viagem..." Claro que eu sabia que ela estava de olho em
mim...
184
185
ERNESTO
Mas que bandida! Que delinqüente! Que mulher falsa!
ALICE
Sua prima?
ERNESTO
Não! Você! E eu me sentindo culpado, feito um idiota! Sem saber como lhe contar!
ALICE
Só que agora empatou o jogo. Estou cheia de tudo isso! Quero que vá você, seu pai, sua
prima, minha mãe... todos para o inferno!
ERNESTO
Mas Alice... como você pode fazer isso comigo?
ALICE
Ah, é? (Imitando) Mas Ernesto... como você pode fazer isso comigo? (Com raiva contida)
Eu tenho engolido muito sapo, mas chega! Você pensa que eu não sei o que seu pai vive
dizendo de mim? Que ele nunca se enganou comigo, que sempre achou que eu tinha pinta de
marginal... Até que eu tenho um pé no sub-mundo! Imagine! Que não sabe se eu tomo
banho, e que no meu cabelo nunca entrou um pente! (Lembrando) Mas isso me fez lembrar o
que eu ia fazer. (Vai para o telefone.) Quando eu acabar de dizer tudo que tenho aqui
engasgado ao Senhor Ernesto, vai sobrar caco de Mendonça Prado pra todo lado!
ERNESTO
Alice, não faz isso! Olha... a gente já chegou até aqui, não foi? Falta tão pouco... seis de
janeiro! Olha.... eu juro que não vou ficar magoado com o que você disse. É. Eu...
compreendo o que você fez. E digo mais: eu perdôo você!
ALICE (sinceramente surpresa)
Você me perdoa?! Mas ele é incrível! (Começa a discar.) Mais essa agora. Pois não me
perdoe não! Me odeie!
185
186
ERNESTO
Desligue isso, Alice!
ALICE
Pois tente me impedir! (Recomeça a discar.)
ERNESTO
Alice! Eu vou repetir : é a última chance de você me atender!
(Alice arrebita o nariz e continua discando.)
ERNESTO
(para o público)
Muito bem. São todos testemunhas de que eu tentei! Por todos os meios legais e emocionais
compatíveis com um relacionamento maduro e uma visão correta do convívio conjugal. Pois
bem.
(Ele atravessa para a direita, atrás de Alice, vai até a porta da sala e tranca-a. Atravessa
novamente e vai até o quarto.)
CENA 12
ALICE
Alô! O senhor Ernesto está? O pai, sim, o pai. O filho e o espírito santo já estão aqui. Heim?
Estou dizendo que é da parte do filho dele!
(Ernesto volta do quarto, vestindo um enorme casaco, estilo "gangster", e apontando um
revólver.)
ALICE
Tá bom. Eu aguardo na li... (Vê Ernesto.) Ernesto! Você está fantasiado de quê?
186
187
ERNESTO
(Pega o fone com a mão esquerda e desliga.)
Senta aí!
ALICE
Eu não acho a menor graça... Isso aí é de verdade?
ERNESTO
Senta aí! E eu não vou repetir.
ALICE (sentando)
Tudo bem. Mas eu continuo não achando gra...
ERNESTO
Sentada, e calada! Você agora vai fazer o que eu quiser! Está ouvindo? O que eu quiser!
(Ouve-se apito. Ele fala para o público.) Tudo bem. Eu sei que os fins não justificam os
meios. Mas não é uma questão de meios. É uma questão de princípios. E qual foi o princípio,
heim? Eu, feliz e solteiro, embriagado e irresponsável, na minha (para ela, furioso)
excelente festa de aniversário, quando surge uma louca, filha de uma demente, tarada,
desocupada, chincheira e... gorda!
ALICE
Espera aí! Eu não sou gorda!
ERNESTO
Ah, não? Você é tudo que eu quiser! E daí? Vai fazer o quê?
ALICE
(baixo e rápido)
Por enquanto, nada.
ERNESTO
Heim?
187
188
ALICE
Nada!
ERNESTO
Antes de tudo, o vestidinho. Veste, anda, vai! Veste!
ALICE
Ah! Não! Isso não! Prefiro morrer...
ERNESTO
Prefere? O vestido, já disse. Eu gastei 150 paus naquela droga e você vai vestir!
ALICE
150? Por isso?
ERNESTO
(esquecendo momentaneamente a situação)
Você achou caro? Mas eu dividi em três vezes, no cartão, sem juros...
ALICE
(vai falando e aproximando-se dele)
Mesmo assim. É um assalto! Homem é assim, não sabe pechinchar... Se você tivesse me
levado junto... Não é melhor a gente devolver?
ERNESTO
(olha para o revólver, e lembra-se do que estava fazendo)
Não tente me enrolar! Senta aí!
ALICE
(sentando-se novamente)
Ernesto, pára com isso! Vira esse negócio pra lá... é de verdade mesmo? Isso não combina
com você! Seja idiota, mas seja coerente!
188
189
ERNESTO
Calada! Você vai ficar aqui, quietinha! Até 6 de janeiro! Até o dia da minha libertação!
ALICE
Você não está vendo que não vai dar certo? Vire essa coisa pra lá, Ernesto! Olhe, vamos
conversar... Eu preciso ir lá dentro, você me deixou nervosa! (Vai se levantando devagar.)
ERNESTO
Êpa! Onde é que você vai?
ALICE
Já disse, estou nervosa, vou pegar um calmante!
ERNESTO
Não faça nenhuma gracinha! Estou avisando! Desde quando você toma calmante?
ALICE (baixo e rápido)
Eu vou pegar um baseado.
ERNESTO
O quê?
ALICE
Um... baseado. Pra ver se entro na sua viagem.
ERNESTO
Nada disso. Você não vai queimar outra vez aquela coisa fedorenta perto de mim!
ALICE
Então... deixa eu fazer xixi. É um minuto... (Torna a se levantar, devagar.)
ERNESTO
Alice, fique aí! Eu não estou brincando!
189
190
ALICE
Mas eu preciso fazer xixi!
VOZ DA MÃE
E não esqueça, minha filha, "ruim com ele, pior sem ele". É preciso ter paciência. Pense no
seu futuro. Cada um na vida carrega a sua cruz. Um descuido agora, e tudo está perdido. Eu
estou com um pressentimento horrível! Ontem sonhei com cobra, e toda vez que eu sonho
com cobra, é dito e certo: traição! Eram cobras enormes, coloridas, igualzinho daquela vez
que sua tia foi assaltada na saída do shopping, lembra, eu acho bom você se cuidar, porque
esse sonho não falha, é aviso de algum perigo, desgosto, contrariedade, mau-olhado,
falseta...
ERNESTO
Desligue esse negócio!
ALICE
(aproveitando a confusão, sai correndo para dentro)
É a gaveta! Eu vou fechar! A gaveta do quarto! (Gritando de dentro) Eu já vou, já vou! É um
minuto!
ERNESTO
(gritando ao mesmo tempo que a Voz da Mãe e as falas de Alice)
Volte aqui, Alice! Estou avisando, volte aqui!
(Começa a tocar a campainha da porta, ainda junto com a Voz da Mãe.)
ERNESTO
Ai, meu deus! O rapaz da pizza! Eu esqueci!
(Cessa a Voz da Mãe, Alice reaparece, estranhamente calma. A campainha continua
tocando.)
ALICE
Acho que é o homem da pizza. Quer que eu atenda?
190
191
ERNESTO
Quieta! Sentada aí! (Enquanto fala, tira dos bolsos do casaco duas meias de seda e com elas
amarra Alice na cadeira.) Você vai ficar aqui, bonitinha, e se der um pio, ou fizer um
ruído... (fica perdido, sem saber como terminar a ameaça) eu... (rápido) mato você e ele
também!
ALICE
E o quê que o pobre homem tem a ver com isso?
ERNESTO
Calada, eu já disse! (Vai até a porta.) Obrigado.
(Volta com a pizza e começa a comer em frente a ela, com a mão esquerda, o revólver na
direita.)
ALICE
(depois de um tempo, de olho grudado na comida, mais e mais aflita a cada pedaço que ele
come)
Ernesto...por mim, não, tudo bem. Você não quer que eu coma, tudo bem. Mas eu vou lhe
ajudar a pensar, já que você não pode fazer isso sozinho... Se eu morrer de fome, até 6 de
janeiro, não vai adiantar nada, está entendendo? (Aflita, vendo que ele já chegou na metade
da pizza) Você tem que chegar lá casado, e não viúvo, está entendendo?
ERNESTO
Ah! Você quer comer, não é? (Desamarra-a.) Pois venha. Você vai comer. (Tira do bolso
uma coleira.) Quer comer, não quer?
ALICE (reconhecendo)
Mas isso é... isso é...
191
192
ERNESTO
Exatamente. "Algemas do Desejo". (Com risinho sádico.) Você assistiu? (Coloca-lhe a
coleira.)
ALICE
(enquanto ele a puxa pela coleira, até a pizza, que colocou no chão.)
Ernesto, pára com isso, já chega! Eu não vou mais embora, eu juro! Nem telefono pra
ninguém! Ai!
ERNESTO
Vai, come! Anda! Está vendo como eu sou bonzinho? Você não me deu nem nem um
pedaço de banana, sua cadela!
(Ela come, de quatro, enquanto ele fala; levanta os olhos, com medo, mas continua comendo
vorazmente.)
ERNESTO
Não me deu nem um pedaço! E ainda me chamou de vegetariano! Mas eu lhe dou, está
vendo? (Agarra os cabelos dela, abaixando sua cabeça no prato.) Tome! Tome! Aqui, ó!
Calabresa! Escarola! Catupiry! Vai, come!
ALICE
Chega, Ernesto, pára, já chega!
ERNESTO
(levantando-a até a cadeira)
Ainda tem aqui, ó! Três azeitonas! Tem que lamber o pratinho! Não pode deixar nada!
Cuidado pra não sujar o vestidinho lindo! Isso, assim... Muito bem. E agora... a sobremesa! (
Abre o casaco, de frente para ela e de costas para o público.)
(A luz vai baixando.)
192
193
ALICE
Mas o que é isso?! Erneeesto! Isso não! Eu vou gritar! Olha que eu grito! Hum! Ai!
Erneeeesto! Assim não... Ai! Erneeeesto! Espera... Ai, meu Deus! Erneeeesto! Ai! Hum!
ERNESTO
Você vai me pagar por tudo! Isso! Assim! Quieta! Isso é pelas minhas violetas! Assim...
Mais... Isso... Assim.... Você vai ver o vegetariano agora... Quietinha, assim...
(A luz continua baixando, enquanto se ouvem simultaneamente as falas anteriores, que vão
diminuindo juntas.)
CENA 13
(Quando a luz novamente se acende, Alice está amarrada na cadeira e amordaçada. Ernesto
entra, cantando, com uma garrafa de champanhe pela metade, um copo na outra mão.)
ERNESTO
"Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre mim!" Enfim! Livre! (Desamarrando-a)
Sentiram muita falta de você na festa. E estimam suas melhoras dessa gripe terrível. Pronto!
Você também está livre!
(Ela fica parada, olhando para ele.)
ERNESTO
(depois de olhar para ela um tempo, fala com o mesmo jeito doce e terno de antes) Eu sinto
muito, mas... você não quis colaborar... Quer um copo? (Vendo que ela continua parada)
Você... você está com ódio de mim, não é? E tem razão! Mas Alice, olha, você não acredita
que eu ia te fazer mal, não é? Quero dizer... você não acha que eu ia atirar em você, não é?
Eu só não podia deixar que você estragasse tudo, entende? ( Pausa. Ela continua olhando
para ele, parada.) Você acha? Não me olha desse jeito! Eu não ia fazer nada, juro!
193
194
ALICE
(explodindo, mas em tom de deboche)
Mas é claro que você não ia fazer nada!
ERNESTO (ofendido)
Como é que você pode ter certeza? Você não pode ter certeza! Nunca poderá ter certeza!
ALICE
Mas eu tenho certeza!
ERNESTO
Ah! Você quer jogar, não é?
ALICE
Mas isso é só o que eu quis, o tempo todo, você não percebeu? Claro que não percebeu.
Você só cuida de projetos. Você e minha mãe, iguaizinhos. Terráqueos. Eu sou de outro
planeta. Estou aqui a passeio, só pra me distrair.
ERNESTO (confuso)
Aqui, onde?
ALICE
No mundo, idiota!
ERNESTO
E por que você tem certeza que eu não ia...
ALICE
Porque você é um incompetente! Não faz nada direito! (Pegando uma caixinha na estante)
Aqui. Aqui minha certeza. A caixa de balas do revólver! Completa! Não falta nem
umazinha!
ERNESTO (desmoronando)
194
195
Onde você achou?
ALICE
Fácil. No seu armário. Você é tão organizado... estavam na segunda gaveta, à esquerda. Tão
fácil.
ERNESTO
E quando foi que... que você viu...
ALICE
Quando eu fui fazer xixi.
ERNESTO (compreendendo)
Então quer dizer que... todo o tempo... todo esse tempo... tudo aquilo... você sabia.
ALICE
Claro. Sabia. Todo o tempo.
ERNESTO
Então você... se você sabia... você...?
ALICE (sorrindo)
Claro. O jogo.
ERNESTO (meio idiota, meio temeroso)
E agora? O que é que você quer fazer?
ALICE
Agora vamos começar tudo de novo.
(Entrega a Ernesto um chicote, a mordaça e as meias com que estava amarrada.)
ERNESTO (hesitando)
195
196
E... é?
ALICE
É...
ERNESTO (compreendendo)
É?
ALICE
É.
ERNESTO (fascinado)
É?!
ALICE
É!
ERNESTO (encantado)
É!
(Ela vai até a cadeira e fica na posição de ser amarrada.)
ALICE
(vendo que ele continua hipnotizado, olhando para ela)
Ernesto, o que é que você está esperando? Que saco!
FIM
196