A racionalizao do Olhar - Esquerda. Direita. Esquerda
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A racionalizao do Olhar - Esquerda. Direita. Esquerda
A invenção da Fotografia, na primeira metade do século XIX, marca uma ruptura definitiva, responsável por modificações no domínio da representação do real, assumindo a função de o reproduzir fielmente e possibilitando a sua propriedade e consequente construção. Ao indiciar um território de representação visual onde a democratização, circulação e proliferação da imagem do indivíduo e do seu corpo se homogeneízam, a fotografia produz e interpõe um sistema de normalização que tende a gerar objectos manuseáveis, com e em função de uma lógica de visibilidade e institui uma clara diferenciação no modo como passa a relacionar o real com o referente representado. Trata-se de redefinir o lugar do observador e respectivamente do observado, instituindo novos modelos de identificação e subjectivação, que passam a dialogar com uma estrutura económica interessada em estratégias de adequação e modelação do espaço individual. «o fotógrafo torna-se o elemento central, não apenas numa nova economia do produto mas na reformulação de todo um território no qual signos e imagens, individualmente separados de um referente, circulam e proliferam. (…) A fotografia é o elemento de um novo e homogéneo território de consumo e circulação no qual o observador se alojou.» Jonathan Crary no ensaio Techniques of the Observer (1990) A fotografia nasce assim associada ao triunfo de uma representação objectiva da realidade, que se efectiva como instrumento de um saber científico absoluto e que passa a integrar, desde a segunda metade do século XIX, praticamente todas as áreas do saber científico. Esse período, que se prolonga até finais da 1ª. Grande Guerra Mundial, é assinalado por uma sequência de desenvolvimentos e sistematizações técnicas que marcam a noção de ciência e a constituição da experiência moderna, ensaiando e testando o meio fotográfico no limite das suas potencialidades. Quando Émile Zola, influenciado pela fotografia naturalista, nos diz que não podemos pretender ter visto realmente qualquer coisa antes de a ter fotografado, sugere uma espécie de rendição do saber e do conhecimento a esta forma de instrumentalização do olhar e uma reflexão sobre o movimento escópico, macro e micro, que passa a constituir o saber científico Wilhelm Konrad Röntgen A reformulação de um entendimento do corpo a partir de uma racionalização do olhar e a incontornável integração de uma cultura visual no seio da ciência moderna, impõem uma inibição de um saber táctil que se deixa substituir por um conhecimento assente na visão e no seu respectivo registo. Esta alteração vem determinar um maior distanciamento sobre o outro e incentiva a concretização de práticas discursivas que justificadas nas palavras de Foucault: aparecem para realizar uma espécie de ortopedia discursiva, permitindo uma intensificação dos poderes através de uma multiplicação do discurso. A descoberta dos Raios X, por Wilhelm Konrad Röntgen em 1895 e a possibilidade de registar imagens do interior do corpo, expondo-as ao olhar público, conduz a um reequacionar do estatuto de privacidade reclamado pelo corpo, que passa a ser revisto numa indiferenciação dos seus limites pela transparência representada da sua superfície. Essa imagem de interioridade, é um indicador da crescente substituição do sentido do tacto pela visão na relação da ciência com o corpo. Gregory Bateson e Margareth Mead A utilização do dispositivo fotográfico pelas primeiras expedições etnográficas, realizadas no início do século xx, e o aparecimento quase simultâneo da fotografia a par da antropologia, demonstram uma aproximação entre ambos os territórios de trabalho e uma importação disciplinar que altera os modelos de observação e inclui a recolha do registo fotográfico na análise e observação do real. Neste caso importa relembrar a inovação que Gregory Bateson (1904-1980) e Margareth Mead (1901-1978) realizaram, quando substituíram o registo escrito pelo registo visual e passaram a utilizar o dispositivo fotográfico e também o fílmico. No entender de Bateson e Mead, a simples observação da sociedade como objecto induz a um acto participante que modifica os padrões de comportamento da comunidade, e reflecte a ideia de um comportamento moldável pela consciência da observação que sobre ele se realiza, estabelecendo-se como um plano de feedback, termo que Bateson aplica para explicar a ideia de retroacção da observação. Numa entrevista, realizada em 1977 entre Gregory Bateson e Margareth Mead, ambos discutem o papel e a consequência da fragmentação e da interpretação na utilização do registo fotográfico, para a determinação da veracidade dos registos de observação que realizavam. Bateson reivindica e esclarece o que lhe importa na utilização do meio fotográfico, dizendo: «A câmara só pode registar 1% das coisas que ocorrem. (…) Eu quero contar esse 1%.» Albrecht Meydenbauer Em 1858 é proposto, pelo arquitecto alemão Albrecht Meydenbauer (1834-1921), o uso da fotografia como instrumento de medição e documentação de edifícios através da aplicação de um sistema de correspondências da escala do próprio edifício, proposta fundamentada na relação geométrica entre a fotografia e o objecto fotografado, aplicado no momento da sua captação pelo princípio da câmara escura. Albrecht Mey-denbauer criou, em 1885, o primeiro instituto para a realização e respectivo arquivo de documentos fotogramétricos – Königlich PreuBische MeBbildanstalt – que passou a guardar até vinte mil imagens fotogramétricas que permitiam, tal como defendia Meydenbauer, a reconstrução rigorosa do espaço arquitectónico, no caso da sua destruição e em simultâneo um registo patrimonial que adicionava à imagem fotográfica a inscrição da sua escala efectiva. Guillaume Duchenne de Boulogne Reconhecido neurologista francês, desenvolveu grande parte do seu trabalho entre 1852 e 1856, com a colaboração do fotógrafo Adrien Tournachon (1825-1902), irmão mais novo do conhecido fotógrafo retratista Gaspar Félix Tournachon Nadar (1820-1910), e publicou a sua obra em França, em 1862, sob o título – Mécanisme de la Physionomie Humaine ou Analyse électro-physiologique de l'expression des passions. O seu trabalho, considerado pioneiro devido à inclusão da electricidade como instrumento de perscrutação fisiológica e terapêutica, introduz uma nova ligação com os habituais métodos de investigação científica quando adiciona a fotografia para a captação de imagens do rosto sobre o efeito de uma electrização pontual e localizada. Este médico interessou-se por investigar detalhadamente, através da adaptação da electricidade como instrumento terapêutico, o modo como se pode aceder e estimular os diferentes músculos faciais e através do registo fotográfico, fabricar um vocabulário de expressões universalmente válido. Tornar perceptível o que estaria por trás da superfície do rosto e o que nele era manifestado e colocado em expressão. As suas experiências tinham como principal objectivo a análise do complexo funcionamento dos movimentos faciais, criando uma espécie de cartografia das expressões do rosto, movimentada pela alma - um mapeamento fotográfico do que seria considerado não visível e repetível -, ao qual interessava dar uma configuração e mais do que ver, poder inscrever. Duchenne de Boulogne fotografava aquilo que se poderia definir como uma diferenciada clivagem muscular de cada emoção e cada patologia ou como ele próprio referia uma espécie de ginástica da alma. O seu método fundava-se no isolamento dos músculos faciais, dominantes e secundários, e no estudo das contracções parciais e combinadas, resultantes da reacção a uma estimulação eléctrica, efectuada separadamente nesses músculos. Realizava posteriormente uma identificação das funções produzidas pelos músculos e respectiva articulação com as várias expressões produzidas, conseguindo com isso identificar trinta expressões primárias controladas por um ou dois músculos. A fotografia consegue intrometer-se e capturar as posturas da alma e redescobrir ou desvelar os preenchimentos da superfície facial, concedendo ao rosto a representação da sua particularidade. O dispositivo fotográfico, opera na possibilidade de uma cientificação do retrato – formando um olhar que observa, intervêm e arquiva –, que dá origem a uma fotografia que se distancia do acto documental e que revê a representação do rosto para lá da inscrição identitária. No interior da clínica a fotografia serve preocupações de representação das expressões, acedendo a instantes de uma privacidade facial e assumindo revelações de uma interioridade quase espectral que, como explica Georges Didi-Huberman, se reinventa numa unidade temporal própria, «é através destas pequenas coisas do olhar e do tempo que a fotografia inventa a si própria uma proximidade bem real com a loucura» Jean Martin Charcot Jean Martin Charcot (1825-1893), aluno de Duchenne de Boulogne, tornou-se em 1862 director da La Salpêtrière de Paris, uma clínica que reunia pacientes de diferentes patologias do foro psicológico, onde adoptou as experiências fotográficas do seu mestre, dando-lhes seguimento com um método que privilegiava a visibilidade atenta da patologia aliando o registo visual técnico como elemento central na constituição da experiência médica. Charcot alterou o modo de olhar para a histeria através de uma taxionomização de gestos e expressões, definindo um sistema onde reinventava a instantaneidade e eficácia do olhar a partir do dispositivo fotográfico e do diferimento que caracteriza a sua temporalidade. No desenvolvimento da sua investigação constrói, entre 1877 e 1890 e com o apoio de Paul Regnard, uma espécie de fábrica de imagens no interior da La Salpetrière, equipando-a com os recentes aparatos de registo óptico e laboratorial da época e promovendo assim um triplo projecto: científico, terapêutico e pedagógico. Ao associar o termo de teatro das paixões à análise fotográfica do ataque histérico, pela excentricidade e exagero nos movimentos, gestos e expressões faciais dos pacientes, que o próprio incitava, Charcot passa a utilizar a fotografia para fragmentar e isolar esses diferenciados momentos a que se acometia o ataque histérico, procurando descodificar visualmente as origens da patologia. Para ele cada paciente era considerado como uma espécie de corpo maquínico que podia ser fisicamente activado e regulado. Alphonse Bertillon A incorporação da técnica fotográfica no sistema judicial francês, onde se iniciam os primeiros ensaios fotográficos do que constitui o sistema de identificação criminal, que a partir de 1888, é adoptado pelas principais instâncias policiais de grande parte do território europeu. O juiz e antropólogo francês Alphonse Bertillon, responsável pela implementação deste sistema, começou por criar um sistema de identificação e tipificação do criminoso, através da sistematização do retrato de identificação criminal. Esse estudo, organizado e compilado na Tableau Synoptique des Traits Physionomiques, é realizado com base na medição, segmentação e caracterização dos traços fisionómicos do criminoso, registados fotograficamente. Bertillon estabelece uma forma de registo que confere e organiza a identidade do indivíduo, e adiciona-lhe um arquivo, inerente a essa identidade. Esses registos, agrupados e sistematizados em diversas tabelas anatómicas constituem-se como um primeiro gesto de arquivo que colecciona a imagem técnica do corpo e a sua inscrição fragmentada. Como primeira máquina moderna de vigilância, a Fotografia, é assimilada nos seus primórdios como instrumento privilegiado para a execução de formas de controlo e dominação sobre o indivíduo que passa a ser identificado e trabalhado, através da sua reprodução. O acto mecânico de reprodução é entendido, não apenas como um olhar sobre o outro de que resulta a transferência e representação, mas um mapeamento do outro – uma inscrição que pressupõe uma organização, categorização e identificação. A formulação de um arquivo, uma enciclopédia de imagens que nos conduz à presença do outro – enquanto espaço e enquanto corpo. Marc Garanger A representação de um rosto através do dispositivo fotográfico e a sua consequente transformação em elemento plano, redefine o modo como se passa a aceder a esse mesmo rosto, tanto pelo retratista como pelo retratado. As mulheres argelinas que foram fotografadas em 1960, por Marc Garanger ao serviço do estado francês, quando se procedeu à constituição de um arquivo sistematizado de todos os habitantes locais, são testemunho disso mesmo, um modelo de relação que se pontua pelo olhar e é por ele determinado e constituído. Philippe Dubois explica-o indicando que as mulheres fixam o seu olhar na própria objectiva que as viola e procura roubar-lhes a identidade… elas assumem plenamente o olhar que o ocupante lhes dirige, com tudo o que veicula a ignomínia, mas sobretudo devolvem-no, reenviando-o a ele (nós) próprio(s).