Quem é que usa as calças?

Transcrição

Quem é que usa as calças?
Apontamentos pelos trilhos da Igualdade…
Quem é que usa as calças?
“Mas lá em casa, ela é que usa as calças!” Se leu isto e acha que estamos a falar de poder, então já
suspeita que a liderança é um substantivo feminino habitado por representações sociais de género…
masculino.
Mas vamos por partes, e comecemos pela mais importante, que é aquela em que dou conta de que as
minhas palavras se construíram coletivamente no projeto Lideranças Partilhadas, em que a ESE foi
parceira da Fundação Cuidar o Futuro numa profunda, ampla e longa reflexão em que a igualdade de
género esteve no centro de processos participados de reconfiguração e experimentação de sentidos e
práticas de liderança para a qualidade de vida.
Próxima parte: as calças, então! Se a universalidade do uso de calças nas sociedades ocidentais pode ser
vista como consequência das conquistas dos movimentos pela igualdade de género, a não-universalidade
do uso das saias deve-nos fazer suspeitar que estamos em território minado dos falsos neutros. Se as
calças são de todos e todas, e portanto sem marca de género, limpas já da sua carga simbólica por
décadas de uso paritário, olharíamos para o logótipo que a Sara Botelho criou para o projeto DIIG e
poderíamos ver duas mulheres. Mas não é isso que vemos, não é isso que lemos: o que vemos e lemos é
resultado de sabermos que as calças são símbolo do masculino, e as saias são símbolo do feminino –se
calhar, é por isso que os escoceses usam kilts, e não saias de xadrez…
Sendo as calças símbolo do masculino, “usar as calças” remete-nos para o jogo dos papéis de género, para
o desempenho social enquadrado no conjunto de normas sociais que prescrevem os comportamentos
considerados apropriados ou expectáveis para os homens. Os papéis de género assentam em larga
medida em estereótipos de género, no conjunto de crenças socialmente partilhadas – histórica e
culturalmente situadas - sobre as características esperadas dos homens e das mulheres. Se, aqui e agora,
olhamos para uma mulher em exercício de poder, para uma mulher-líder, e podemos dizer que “usa
calças” com a certeza de que todos e todas vão compreender que estamos a identificar no seu
desempenho social o conjunto de características que, aqui e agora, associamos ao exercício do poder e à
liderança, é porque esse conjunto de características pertence ao estereótipo masculino que partilhamos e
construímos, aqui e agora.
A colagem dos atributos que relacionamos com o poder e a liderança aos atributos do estereótipo
masculino tem consequências imediatas para as expetativas, as perceções e as avaliações em redor do
exercício do poder e da liderança por parte de homens e mulheres. Os homens que confirmam os
atributos do estereótipo masculino – fortes, dominantes, racionais, independentes, ambiciosos,
competitivos, combativos, confiantes, vocacionados para a ação, determinados - encaixam melhor na
expetativa partilhada do que é ser líder, e por isso a tendência é para que encontrem menos resistência
para o exercício da liderança, maior legitimidade socialmente conferida para o exercício do poder. Tendo
oportunidades mais abertas para esse exercício, eventualmente terão mais e melhores oportunidades
para, de facto, desenvolverem competências para a liderança por via de aprendizagem experiencial. Já o
exercício de liderança por parte das mulheres vê-se ainda, aqui e agora, confrontado com o preconceito
de que são menos “naturalmente dotadas” de atributos para a liderança e o exercício do poder. E lá
estarão as honrosas exceções de mulheres-líderes, a quem reconhecemos poder, que “usam as calças”, e
que até usam calças em lugar público de poder pelo que as calças têm de congruente com as expetativas
sociais em relação a um dado lugar profissional e/ou político, confirmando a crença de que uma mulher é
tanto melhor vista como líder quanto mais se aproximar do estereótipo masculino. Mas sempre correndo
o risco de que a sua combatividade seja tomada por obsessão ou histeria; de que a sua determinação seja
lida como teimosia; de que a sua confiança seja presunção ou arrogância; e de que os demais atributos de
líder que a sociedade lhe reconhece não deixem de ser uma mácula na sua feminilidade. Nestas re-leituras
enviesadas pelos estereótipos de género, encontramos as formas subtis de resistência ao exercício da
liderança e do poder pelas mulheres.
Outra expressão da relativa impermeabilidade da liderança e do poder aos exercícios no feminino é a
tendência para a criação de expetativas – estereótipos de género, também - em torno do que de
diferente, novo, melhor ou único as mulheres podem/devem trazer quando são líderes, quando estão em
lugares reconhecidos de poder. Por positivo que seja o reconhecimento da diferença para a desocultação
dos falsos neutros, que são símbolos da dominação masculina, há o risco do enclausuramento na
diferença, e da consequente cristalização de diferenças em desigualdades. Os atributos do estereótipo
feminino – gentis, delicadas, cuidadoras, dependentes, carinhosas, emocionais, afetivas – correlacionamse com formas de liderança que se associam a lugares e processos de apoio à decisão, e não
necessariamente a lugares percebidos socialmente como de decisão final. Os processos de liderança que
se associam ao estereótipo feminino invocam competências relacionais, comunicacionais, de negociação e
escuta que a sua socialização para “usar as calças em casa”, ainda que de avental e exercitando um poder
não autoritário e muitas vezes difuso, lhes possibilitou desenvolver. No espaço público, essas lideranças
processam-se em lugares menos visíveis e menos reconhecidos como de poder.
Olhando para a esfera política, vemos nos números uma tradução concreta destas expetativas diferenciais
relativamente à liderança e aos lugares de liderança de homens e mulheres: a título de exemplo, a
composição da Assembleia da República (AR) eleita em junho de 2011 revela que as mulheres ocupavam
28,7% dos lugares, e apenas um dos grupos parlamentares tinha uma mulher na sua liderança; do total de
308 Presidentes da Câmara eleitos em 2009, apenas 23 são mulheres (7,5%), e a percentagem de
mulheres com assento em Assembleias Municipais ou de Freguesia ronda os 21%1. Temos, pela primeira
vez uma Presidente da AR.
Na esfera profissional, a presença das mulheres nos lugares e em funções tradicionalmente associados ao
exercício do poder e à liderança é também reveladora de percursos diferenciais entre homens e mulheres:
1
Dados compilados pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) em 2011.
em 2011 as mulheres eram 46,8% da população empregada e 46,9% da população ativa, mas só 36,9% das
pessoas que trabalhavam por conta própria eram mulheres, e de entre as pessoas empregadoras apenas
27,2% eram mulheres2. Em 2009 as mulheres representavam 68,1% dos/as trabalhadores/as não
qualificados/as, e 31,4% dos quadros superiores da administração pública, dirigentes e quadros superiores
de empresas3.
E então, por onde é o caminho para a igualdade? Pistas para pensarmos coletivamente: seguir estratégias
assentes na identificação e legitimação de representações sociais de género na liderança, perpetuando a
construção de estereótipos? Ou redefinir e reconfigurar a liderança enquanto processo complexo e plural,
que exige a congregação de competências que, fruto de socializações (ainda hoje) diferenciadas em
função do género, homens e mulheres têm a oportunidade de desenvolver diferencialmente? Procurar e
replicar as “boas práticas” que facilitam a manutenção do status quo no qual os/as líderes “usam calças”?
Ou criar novas práticas em lideranças partilhadas?
Vale a pena pensar nisto...
Por Liliana Lopes, 2013
UTC de Ciências da Educação
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Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE).
Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE).