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Revista Científica
ISSN 2179 6513
Ano 4
Nº 8
A
AMAZÔNIC
Faculdades Integradas do Tapajós
Revista Científica
ISSN 2179 6513
Ano 4
Nº 8
A
AMAZÔNIC
Faculdades Integradas do Tapajós
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Biblioteca Ubaldo Corrêa – Santarém/Pa
PERSPECTIVA AMAZÔNICA-Revista de Publicação Acadêmica da FIT. Santarém Pará: FIT,v.8, n.4, 2014. 149p.
Semestral
ISSN 2179-6513
1. Estudos multidisciplinares. 2. Amazônia. 3. Faculdades Integradas do TapajósFIT.
CDD 050
Selma Mª de Souza Duarte - Bibliotecária - CRB2- 1096
“Contribuir para o entendimento aprofundado das questões amazônicas nos diversos campos
do conhecimento mediante a divulgação de produção científica local que possa subsidiar as
atividades acadêmicas e práticas tendo em vista o estudo da Amazônia para o progresso da
humanidade e o aumento da qualidade de vida da população Amazônica”.
Escopo e Foco
A revista Perspectiva Amazônica publica trabalhos teóricos e teórico-empíricos nas seguintes
modalidades: artigo original, artigo de revisão, resenha, relato de caso e ensaio, em qualquer
área do conhecimento e preferencialmente que tenham relação com a região Amazônica.
Público alvo
O público-alvo é constituído principalmente de profissionais e estudantes da academia
amazônica e brasileira, e, paralelamente, de todas as pessoas interessadas nas questões da
Amazônia nos diversos campos do conhecimento.
Requisitos
Os artigos originais, artigos de revisão, resenhas, relatos de caso e ensaios submetidos à
apreciação da revista “Perspectiva Amazônica” devem ser inéditos, nacional e
internacionalmente, não estando sob consideração para publicação em nenhum outro veículo
de divulgação. Trabalhos publicados ou em consideração para publicação em anais de
congressos podem ser considerados pelo Conselho Editorial e pelos Avaliadores, desde que
estejam em forma final de artigo. Os artigos e documentos podem ser redigidos em língua
portuguesa, inglesa ou espanhola. Para serem publicados, os trabalhos deverão adequar-se
às normas para publicação da revista e serem aprovados pelos Avaliadores.
PERSPECTIVA AMAZÔNICA
Missão
Conselho Mantenedor
Paulo Roberto Carvalho Batista
Presidente
Antônio de Carvalho Vaz Pereira
Vice-Presidente
Ana Paula Salomão Mufarrej
Edson Raymundo Pinheiro de Sousa Franco
Etiane Maria Borges Arruda
Marlene Coeli Vianna
Direção Geral da FIT
Helvio Moreira Arruda
Direção Financeira
William José Pereira Coelho
Direção do Centro de Estudos Sociais Aplicados
Ana Campos da Silva Calderaro
Direção do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde
José Almir Moraes da Rocha
Editor Responsável (Coordenação de TCC e Pesquisa)
Gabriel Geller
Conselho Editorial
Ana Campos da Silva Calderaro
Gabriel Geller
Helvio Moreira Arruda
José Almir Moraes da Rocha
Concepção e Coordenação Gráfica
Thais Helena Medeiros
Publicittá Agência de Comunicação da FIT
Capa
Lígia Augusta
Aluna Curso de Publicidade e Propaganda da FIT
Foto da capa
Reprodução fotográfica livre, do desenho de Margaret Mee -Cattleya violacea,
retratada em 1981, Rio Cuini, Amazonas.
A botanical artist britânica pintou a imensa e vulnerável floresta tropical Amazônia ao
navegar pela calha do Rio Amazonas (1956-1988). Extraída do livro Flowers of the
Amazon Forests: The Botanical Art of Margaret. Garden Art Press in association with
The Royal Botanic Gardens, Kew. Printed in China for the Antique Collectors’ Club Ltd.,
Woodbridge, Suffolk, 2011.
Diagramação
Juliana Azevedo
Thais Helena Medeiros
Impressão: Gráfica Global
Na trajetória de crescimento da Revista, merece destaque a publicação neste semestre do
trabalho “Relato de experiência sobre a construção de um periódico científico de (boa)
qualidade no interior da Amazônia: Revista Perspectiva Amazônica”, que foi apresentado na
Feira de Trabalhos Acadêmicos e Científicos da FIT 2014, no qual foram relatados os
principais desafios desde o início deste periódico, que já tem quatro anos de existência e, com
esta edição, 80 artigos publicados.
A novidade neste semestre é que teremos a nova versão do site da Revista, que será lançado
neste mês de agosto, incluindo agora a versão em “pdf” de cada edição e de cada artigo
isoladamente. Assim, os autores poderão vincular os links para downloads dos seus artigos
na plataforma lattes, os artigos poderão ser compartilhados com maior facilidade e terão
maior chance de constar em resultados nos sites de buscas. Além disso, haverá distribuição
eletrônica da revista por listas de e-mails. Certamente estas medidas servirão para dar maior
divulgação aos bons trabalhos aqui publicados, o que contribuirá com nosso crescimento nos
rankings de qualidade.
Gabriel Geller
Editor Geral
Revista Perspectiva Amazônica
EDITORIAL
Esta oitava edição da Revista Perspectiva Amazônica traz diversos artigos na área de
ciências humanas e sociais aplicadas, analisando de forma aprofundada questões do Direito,
da Antropologia, Filosofia, Sociologia, Metodologia da Pesquisa e Economia, além de um
artigo na área de Tecnologia e Sustentabilidade.
£ Ana Karine Albuquerque de Alves Brito, UFOPA, Mestre;
60000007. Ciências Sociais Aplicadas;
£ Edivaldo da Silva Bernardo, FIT, Doutor, 80000002. Linguística, Letras e Artes;
£ Francisco Edson Sousa de Oliveira, FIT, Doutor, 60000007. Ciências Sociais
Aplicadas; 70000000. Ciências Humanas; 80000002. Linguística, Letras e Artes;
90000005. Multidisciplinar (Sociais e Humanidades);
£ Gabriel Geller, FIT, Mestre, 60000007. Ciências Sociais Aplicadas;
90000005. Multidisciplinar;
£ Hipócrates Menezes Chalkidis, FIT, Mestre, 20000006. Ciências Biológicas;
40000001. Ciências da Saúde; 90000005. Multidisciplinar (Ensino de Ciências);
£ Ivair da Silva Costa, FIT, Doutor; 60000007. Ciências Sociais Aplicadas;
70000000. Ciências Humanas;
£ José Almir Moraes da Rocha, FIT/UEPA/UFOPA, Doutor, 20000006. Ciências
Biológicas; 40000001. Ciências da Saúde; 90000005. Multidisciplinar (Ensino de Ciências);
£ José de Lima Pereira, FIT, Mestre; 60000007. Ciências Sociais Aplicadas;
£ Lidiane Nascimento Leão, UFOPA, Mestre, 60000007. Ciências Sociais Aplicadas;
70000000. Ciências Humanas; 90000005. Multidisciplinar (Sociais e Humanidades);
£ Maria Irene Escher Boger, FIT, Doutora, 60000007. Ciências Sociais Aplicadas;
70000000. Ciências Humanas; 80000002. Linguística, Letras e Artes; 90000005.
Multidisciplinar (Sociais e Humanidades);
£ Marla T. Barbosa Geller, CEULS/ULBRA , Mestre; 10000003. Ciências Exatas e da
Terra (Computação); 30000009. Engenharias;
£ Martinho Leite, FIT, Mestre; 10000003. Ciências Exatas e da Terra (Computação);
30000009. Engenharia;
£ Maura Cristiane e Silva Figueira, FIT, Mestre; 40400000. Enfermagem;
£ Raimunda Nonata Monteiro, UFOPA, Doutor; 50000004. Ciências Agrárias;
60000007. Ciências Sociais Aplicadas;
£ Roberto César Lavor dos Santos, FIT, Mestre;
60000007. Ciências Sociais Aplicadas;
£ Robinson Severo, UFOPA, Doutor; 50000004. Ciências Agrárias;
£ Rodrigo Tenório Padilha, FIT, Mestre; 50500007. Medicina Veterinária;
£ Rosane Tolentino Gusmão Maia, FIT, Mestre; 10000003. Ciências Exatas e da Terra
(Computação); 90000005. Multidisciplinar;
£ Rubens de Oliveira Martins, Ministério da Ciência e Tecnologia, Doutor;
7000000. Ciências Humanas;
£ Síria Lissandra de Barcelos Ribeiro, FIT, Doutora, 20000006. Ciências Biológicas;
40000001. Ciências da Saúde; 90000005. Multidisciplinar (Ensino de Ciências);
£ Thais Helena Medeiros, FIT, Mestre; 60000007. Ciências Sociais Aplicadas;
70000000. Ciências Humanas; 80000002. Linguística, Letras e Artes; 90000005.
Multidisciplinar (Sociais e Humanidades).
AVALIADORES
£ Alexandre Rodrigo Batista de Oliveira, FIT/UEPA, Mestre, 20000006. Ciências
Biológicas; 40000001. Ciências da Saúde; 90000005. Multidisciplinar (Ensino de Ciências);
Multiculturalismo na Amazônia
Francisco Edson Sousa de Oliveira
Possíveis Caminhos para Serem Trilhados na Construção e
Desenvolvimento de um Estudo de Caso
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Petrônio Lauro Teixeira Potiguar Júnior
Responsabilidade Civil do Juiz por Atos Culposos no Exercício da
Atividade Judicial
30
Peter Xavier Hager
Estudos sobre os Impactos das Enchentes na Economia do
Município de Santarém, Estado do Pará, em 2014
44
José de Lima Pereira
Matrimônios, Celibatos, Estratégias e Mercados: Anotações sobre
a Etnologia de Pierre Bourdieu no Béarn
Nirson Medeiros da Silva Neto
A História da Evolução da Escrita no Mundo Ocidental
Edivaldo da Silva Bernardo
Myrlena Bastos Queiroz
Resistência Cultural e Modo de Vida são Elementos Sígnicos
Desvelados pela Análise Semiótica dos Vídeos Premiados no I
Festival de Vídeo FIT
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Thais Helena Medeiros
Valdenildo dos Santos
Percepção Ambiental dos Barraqueiros da Praia do Maracanã em
Santarém - PA
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Bruno Ivair Ferreira Silva
Áurea Siqueira de Castro Azevedo
Anselmo Júnior Corrêa Araújo
Princípios Éticos e Ausência de Sentido na Contemporaneidade
Ivair da Silva Costa
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ciências tecnológicas
TI Verde: Conceitos e Práticas Visando a Integração do
Desenvolvimento com a Preservação do Meio Ambiente
Rosane Tolentino Maia
Normas para Publicação
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SUMÁRIO
ciências humanas e sociais aplicadas
Revista Perspectiva Amazônica
Ano 4 N° 8 p.10-18
Multiculturalismo na Amazônia
Francisco Edson Sousa de Oliveira*
RESUMO
Reflexões conceituais pairam sobre a construção da espacialidade Amazônica, principalmente, quando é
preciso definir marcadores de fronteiras físicas ou ainda no momento de definir uma identidade na paisagem
urbana para as cidades encravadas no meio da floresta ou ao longo das margens dos rios. O referido artigo
pretende mostrar os elementos estruturais que se repetem em outras espacialidades, portanto, com o caráter
universal, mas que ao final definem estruturas regionais com todo o arcabouço de traços e manifestações
artísticas e culturais identificados no homem nativo. Sabe-se que na Amazônia, o Multiculturalismo patenteia
e molda as transformações vivenciadas nas últimas décadas, estabeleceram uma diversidade de formas
espaciais e de conteúdos que evidenciam a complexidade nas relações responsáveis pela nova dinâmica
regional. Esse estudo apresenta definições bibliográficas com a finalidade de delinear alguns elementos
narrativos que declinam essa realidade na Amazônia.
Palavras-chave: Amazônia - multiculturalismo - paisagem
ABSTRACT
Conceptual reflections hover over the construction of the Amazon, especially when it is necessary
to configure physical borders or markers at the moment to define an identity in streetscape for
ingrown cities in the woods or along the banks of the rivers. This article intends to show the
structural elements that are repeated in other spaces, therefore, with the universal character, but
that at the end define regional structures with the whole framework of traits and artistic and
cultural manifestations identified in the native man. It is known that in the Amazon, the
Multiculturalism patents and molds the transformations experienced over the last few decades,
establishing a diversity of spatial forms and content that demonstrate the complexity of relations
responsible for the new regional dynamics. This study presents bibliographic settings with the
purpose to outline some narrative elements that decline this reality in the Amazon.
Keywords: Amazon - multiculturalismo - landscape
*Possui graduação em Letras pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Santarém (1994), Mestrado em Gestão do Desenvolvimento e
Cooperação Internacion pela Universidade Moderna (1999) e Doutorado em Literatura Geral e Comparada – Universite de Limoges (2006).
Atualmente professor – Faculdades Integradas do Tapajós. Tem experiência na área de Administração, com ênfase em Administração Escolar,
Escola Rural e Comunidades.
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Introdução
O multiculturalismo (termo que descreve a existência de muitas culturas numa
região) na Amazônia sempre foi ponto de discussão regional e universal, nessa espacialidade
os ambientes tomam contornos quase que em forma de caricaturas ou arranjos para justificar
o edenismo (visão do paraíso- jardim do Edem) medieval condutores de lendas, crenças e
formas agigantadas da natureza. Essa investigação bibliográfica, objetiva mostrar uma
complexidade de formas que definem, mas não convergem para um modelo agregador de
elementos culturais milenarmente encravados no rio e na floresta.
Inicialmente faz-se um abordagem de traços modernos que influenciaram
decisivamente na cultura e no modelo de desenvolvimento promovendo um alinhavamento
de tipos totalmente descaracterizados, culminando com um antropofagismo (ato de comer
uma parte ou várias partes de um ser humano) nos personagens milenares e lendários da
Amazônia. Posteriormente, menciona-se as ações de grandes projetos na Amazônia, que
confrontam objetivos capitalistas de características universais observadas numa perspectiva
multiculturalista com o desenvolvimento regional praticamente desprovido desses objetivos.
Percebe-se ai uma baixa incorporação de benefícios aos interesses e até uma espécie de
desconstrução no panorama da floresta, assim como também a descaracterização da
paisagem urbana de cidades da Amazônia.
O questionamento da ideia de modernidade e a voga de uma noção – ainda que
duvidosa – de pós-modernidade terminam trazendo consigo a crise das ideias, dos
parâmetros e das crenças básicas, dos absolutos religiosos ou filosóficos, éticos ou estéticos,
que moveram a humanidade por todos os séculos. É o momento fronteiriço a que refere uma
época, uma cultura e uma história que chegam ao fim, enquanto, se inicia outra e, aí, pensar a
literatura do novo milênio é ainda, e cada vez mais, pensar a questão da identidade.
Complexidades e Formas
Se a identidade de uma nação se relaciona a uma série de elementos que vão da
língua à tradição passando pelos mitos, folclore, sistema de governo, sistema econômico,
crença, arte, literatura, passado e presente, mesmo não sendo, portanto, um fenômeno
estanque e isolado, há de perguntar diante da grande movimentação histórico-cultural do
final do século, em qualquer recanto do mundo, a já cantada pela Legião Urbana: “Que
país é este?” até para que possamos responder quem somos nós, apesar de, e com os outros.
Na Amazônia, essa identidade apresenta-se obscurecida, desde a construção das
cidades até a formação de um tipo humano aproximado da vida existente na floresta. O que
existe de fato é uma transitoriedade mergulhando a mágica dos rios de água doce e a
escuridão das florestas. Verifica-se um discurso frenético que não aprofunda, vivido nas
aventuras de garimpos, e nas cidades-empresas.
As transformações vivenciadas pela Amazônia nas últimas décadas
estabeleceram uma diversidade de formas espaciais e de conteúdos que evidenciam a
complexidade das relações responsáveis pela nova dinâmica regional, revelando o
espaço como uma acumulação de tempos e técnicas diferentes. Perpassa nessa
dinâmica uma estreita relação que se estabelece entre o geral e o particular e que é
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marcada por alguns atributos específicos do momento atual, identificado como
período técnico-científico informacional.
Não é preciso muito para saber que aqui, lugar do mundo, já não é o mesmo,
pelo menos o mesmo de antes. Há a queda de barreiras econômicas ao leste Europeu, e
a televisão não cansa de mundializar as imagens da modernização, do progresso e da
cultura que chegou àqueles lugares, implantando novos hábitos, os produzidos pelo
capitalismo ocidental. A China aceita beber Coca-Cola. O Muro de Berlim cai,
reunificando as duas Alemanhas, sem qualquer planejamento prévio. A Glasnost
cumpre seu papel. A União Soviética desfaz-se desfazendo, quase por completo, do
imaginário mundial o perigo de um tal botão vermelho. Os Estados Unidos tornam-se
a única grande potência. Configura-se uma nova ordem mundial reforçada pela
vitória americana na Guerra do Golfo. Decreta-se o fim das utopias, associa-se a elas
o fenômeno da pós-modernidade – nem mau nem bom, apenas ambos. Extingue-se o
grande último império ocidental: o português, e as ex-colônias africanas deixam de
lado o inimigo comum, o colonizador, e descobrem em si inimigos de meta comum, na
luta pelo poder, antes a oceano de distância, e devoram-se. Angola, por exemplo, estar
em Guerra há quarenta anos. Moçambique mal sobrevive aos tribalismos. O Timor
Leste, abandonado pelo mundo, enfim, liberta-se. E, sob a égide da prosperidade e
felicidade geral, a mundialização do capitalismo vai acentuando as desigualdades,
vendendo uma imagem palidamente semelhante, um custo alto para uma
planetarização de destino! Talvez por isso, os estudos literários dos últimos tempos
tenham se fixado tanto no olhar – o do estrangeiro, o do outro, o do viajante, o do
mesmo, até os inquietos... – talvez na busca do conceito camoniano do velho e puro
espelho da alma. Há qualquer coisa mais humanamente essencial num processo
identitário? A verdade é que não somos mais, nós, os do mundo, mais os mesmos, não.
E, nisso tudo, entrou em desuso: o velho refrão: “ainda somos os mesmos e vivemos
como nossos pais”, já não nos servem; não somos nem como nossos pais, que também
já não são mais os mesmos.
Reorganização Espacial Amazônica
Não cabe aqui ignorar a dinâmica do mundo e colocar a Amazônia fora dele,
pretende-se uma análise que toma o ponto de partida a dinâmica imposta á Amazônia
nas últimas décadas, busca-se compreender a reorganização espacial urbana da
região, na qual as solidariedades organizacionais substituem ou se superpõem ás
solidariedades orgânicas de outrora.
Estamos, agora, diante do futuro, até porque o futuro morre quando chega
diante do agora. E, no agora, se redefinem as fronteiras geográficas - antes sinais de
imutabilidade e força! -, as fronteiras históricas, políticas, ideológicas e,
evidentemente, culturais.
O conceito de nação universal, exportado pela Europa, como espaço
limitado por fronteiras naturais e tudo o que havia dentro desse espaço: uma
língua, uma crença, um sistema político e econômico, um certo sentido nacional,
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entra em crise no século vinte. Com os nacionalismos, desaparece o conceito
universal de nação. Surgem os grandes blocos supranacionais, como o Mercosul,
Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai acordam sobre uma futura conformação
hemisférica, a ALCA - Aliança do Livre Comércio das Américas. Entretanto, o
MERCOSUL, muito mais voltado para interesses econômicos-comerciais do
que qualquer outro, muito mais uma União Aduaneira”, tem ainda um longo
caminho de amadurecimento em direção a um verdadeiro mercado comum. Não
esquecer que só tem dez anos. Ou a União Europeia, que começou a se organizar
na década de cinquenta, ponto de referência da atualidade portuguesa,- e tomo
Portugal porque é, hoje, a literatura europeia de ponta, e Saramago o grande nome
que descobre, com Eduardo Lourenço, em a Europa desencantada, que, com o
sem Portugal, seria a mesma. Portugal é que não teria trocado o seu eterno sonho
de V império pelo Eldorado tão próximo e perderia – de novo – o passo da história.
Deve-se considerar que a hierarquia existe tanto em espaços urbanos
“espontâneos” como em espaços planejados. No entanto, há a diferença da
imposição, refletida na forma e nas relações sociais, da cultura e dos valores.
[...] limitam-se ao enquadrinhamento do espaço. Ignorando o que passa na sua
própria cabeça e nos seus conceitos operacionais, desconhecendo em essência o
que passa (e o que não passa) no seu campo cego, ocorre aos tecnocratas
organizar minuciosamente o espaço repressivo.
Na Amazônia, além desse aspecto, relacionado especialmente ao processo de
produção do espaço desses núcleos urbanos, há de se considerar também a relação
entre grandes projetos e o desenvolvimento regional e local, que nos remete, de
imediato, à baixa incorporação regional dos benefícios, que acabam por repercutir
seja no redesenho do poder local, seja no redesenho da própria configuração
territorial, trazendo à tona conflitos de naturezas diversas.
Percebe-se, assim, um aparente contra senso residente na ideia de identificar
as identidades de regiões periféricas como a Amazônia, pois o “perfeito”
funcionamento das funções relacionais e sua interdependência precisam de
transparência, dispensando artifícios ou subterfúgios. ... “A forma não só é expressão
de um conteúdo, refletindo-o e aderindo-se a ele. Ela também sintetiza conteúdos em
movimentos, reunidos, reinterpretados”.
Nesse sentido é que consideramos ser de fundamental importância a análise desses
novos arranjos espaciais urbanos, atentando para os seguintes elementos: a) a concepção
urbanística das cidades Amazônicas e seus contrapontos com o pode-se chamar de
práticas espaciais; b) a relação entre esses núcleos e o entorno imediato; c) os desafios de
gestão e de desenvolvimento local colocado com base no contexto regional recente.
Na primeira situação, poderíamos colocar como hipótese de discussão o
distanciamento que marca o discurso dos planos que concebem essas novas franjas
urbanas avançadas e a especialidade colocada em prática no decorrer do processo de
produção social do espaço urbano.
Na segunda situação, cumpre-nos instigar um esforço de compreensão no
qual as cidades companhias sejam vistas em suas totalidades, ou seja, em hipótese
alguma desvinculadas dos seus entornos, marcadamente segregados, mas que
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reproduz a diferenciação espacial da lógica de urbanização que está colocada para a
realidade brasileira e Amazônica, em específico.
Por outro lado, de acordo com Ruggiero Romano, o próprio conceito de nação
rompe com seus limites rígidos para fixar-se nos fundamentos de identidade. Assim, é
nas idiossincrasias que se passam a distinguir as fronteiras, e elas estão na cultura,
donde se reforça a ideia de que a nação não é uma entidade plenamente formada, mas
sujeita a mecanismos de inclusão e exclusão, o que confere ainda, maior relevância à
questão da identidade nacional, sobretudo quando se fortalece a globalização e a
hegemonia norte-americana, o novo imperialismo, em outras palavras. Esclareça-se
que o velho imperialismo – da antiguidade e do século dezenove – está voltado para a
expansão territorial, o novo tem a característica de expansão e domínio pelo capital.
Interessante notar que o imperialismo velho, trazia consigo uma função de
base filosófica detectada por Edward Said em Cultura e Imperialismo: a nobre função
de levar a civilização a povos bárbaros ou primitivos. Pois o caso americano, na
globalização e no multiculturalismo, também se assenta sobre funções nobres:
justiça, liberdade e prática do bem. E quando se examina com muita precisão o
assunto reconhece-se a superioridade tecnológica e cultural americana, descobre a
superioridade espiritual, presente numa constituição de vocação imperialista que lhe
confere, diante da desordem mundial, um papel regulador em nome da Democracia.
Difícil concordar que o sonho americano não seja paradigma para todas as sociedades
democráticas e tecnicamente avançadas, ou mesmo de um utopismo voltado para
uma sociedade equânime e fraternal! E, entre o que se vende e o que se compra, cá
ficamos nós às voltas com a nossa identidade.
Não se trata, evidentemente, de fazer uma revolução contra a globalização.
Ela é indiscutivelmente irreversível e, sobretudo, seria complicado abrir mão da NET
e das engraçadas séries americanas, principalmente agora que a eficiente Mary Tyler
Moore à casa dos setenta, esticou até a alma e vive condenada a um eterno sorriso.
Loucura seria abrir mão da Internet e deixar de lado as facilidades e maravilhas de
uma vida virtual. Tampouco ninguém é louco o suficiente para fazer uma revolução
contra satélites e o século vinte e um. Ingenuidade não atentar para a fobia – às vezes
quieta e observadora – como forma de resistência. Em algum lugar de nós, os do
mundo, que lá não somos os mesmos, ela está presente. Ainda que entre a cultura que
olha e a que é olhada se produza um espelhamento, ainda que a binaridade
inferior/superior se exponha, ainda assim, o processo todo não é tão pacífico quanto
se imagina. O outro ainda permanece como contrário. O outro ainda é o outro, não
importa o discurso geral de prosperidade que traga consigo. “É como no conto
“Xanda” de Orlanda Amarilis”, que retrata a terra miserável que é Cabo Verde – uma
das terras mais miseráveis do planeta, em que a personagem afirma:
Nós não precisamos de nenhuma moda de estrangeiro linasocente. Já sei, vais
dizer-me nossos patrícios mandam dinheiro de estrangeiros. Já sei tudo isso. Mas
dinheiro de estrangeiro é como coisas e modas de estrangeiro é outra, bô ouvi?
Leia-se em modas, cultura. E essa é a palavra fundamental da resistência da
identidade dos países receptáculos – aqueles que não trazem as três condições
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necessárias para participar ativamente do processo de globalização: não tem
volume para comércio exterior, não têm atrativo para a entrada de capital
estrangeiro e estão distantes do avanço tecnológico. Entenda-se, aqui, que o
próprio Brasil é receptáculo, tanto mais quanto alinhado a um projeto neoliberal.
Mas não há mais como separar, embora a tendência seja a de considerar a
globalização como um processo exclusivamente econômico, dessa mesma
globalização a ideia de planetarização ou mundialização da cultura e o
multiculturalismo terminam sendo fenômenos simultâneos e complementares. Da
mesma forma, não há como fugir do imperialismo norte-americano que, nos
últimos cinquenta anos, impôs sua presença e a essência da sua cultura a todos os
países através do way of life e fez da indústria cinematográfica sua grande difusora.
Observa Edward Said que o imperialismo, o velho, também está intimamente
ligado ao período em que vivemos, porque terminou consolidando, embora a proposta
contrária, uma mescla de culturas e identidades numa esfera global. Nesse sentido, está
na base do multiculturalismo que marca o nosso tempo. E é o mesmo Said quem alerta
para o fato de que a consciência do poder de narrar é outro fato importante no
imperialismo. O poder de narrar ou de impedir que se formem e surjam novas narrativas
é fundamental na relação império versus culturas. As narrativas de emancipação
terminam tornando-se elementos de forte mobilização de povos – veja-se as literaturas
angolanas e moçambicanas principalmente do pré-independência – e em forte forma de
resistência. Até porque a literatura é fonte de cultura, e cultura é fonte de identidade.
Diante do multiculturalismo e do novo imperialismo, o fenômeno se repete, a
literatura tomada como uma expressão simbólica, produto da cultura e da história,
mas também interveniente na história e na cultura – o conceito é de Pageaux representa foco de resistência, e as experiências das ex-colônias na África,
portuguesa no contexto europeu, e latino-americana bem o atestam.
Identidade e Tradição
A busca da identidade nesse fim/início de século, passa necessariamente pela
recuperação de certos valores autóctones de raízes específicas, seja para resgatar a
tradição, como o fazem os escritores das literaturas luso-africanas, por exemplo – e
Mia Couto em Moçambique, Pepetela em Angola Orlanda Amarilis em Cabo Verde.
Na América Latina é a vez das mulheres dialogarem com a história, com a
pobreza e a luta pela sobrevivência nas terras dos caudilhos e das ditaduras militares
e das convulsões sociais, revelando a sua história, buscando situar-se em seus países
numa busca maior de justiça social. É uma voz que vem da margem dos processos
todos e que se propõe a uma releitura, seja da revolução sandinista com Gioconda
Belli; seja da revolução mexicana com Ageles Mastretta. Ao estudar as obras das
últimas e mais da porto-riquenha Rosário Ferré, Márcia Lopes Duarte mostra como
elas subvertem a história oficial dos seus países e, por consequência, do continente.
E aí, como observa Duarte, na esteira de Zuenir Ventura, o discurso feminista muda o
rumo da sua prosa. Não mais a igualdade – prazer/ trabalho/ poder – dos anos
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setenta, quando as mulheres queimaram os soutiens – ou na época era corpinho?
– em praça pública, mas a busca da identidade na diferença, o direito à
diversidade. Discurso esse que se aplica a todas as minorias.
Na verdade, esse diálogo com a história, esse confronto de duas verdades, a
verdade histórica e a verdade da ficção, em que a segunda presentifica e critica a primeira,
no resgate da identidade, é a grande marca da literatura de final/ início de século.
Acredita-se que o que subjaz a esta inquietação é a consciência da nossa
incapacidade final para reconstituir o passado. E que, por isso, não podendo
reconstituí-lo, somos tentados – sou-o eu, pelo menos – corrigi-lo. Quando digo
corrigir, corrigir a história, pois essa nunca poderia ser tarefa de romancista, mas
sim de introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até então
parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter
sido. Certamente se argumentará que se trata de um esforço gratuito, pouco
menos que inútil, uma vez que aquilo que hoje somos não é do que poderia ter
sido que resultou, mas do que efetivamente foi. Simplesmente, se a leitura
histórica, feita por via do romance, chegar a ser uma leitura crítica, não do
historiador, mas da história, então essa nova operação introduzirá, digamos, uma
instabilidade, uma vibração, precisamente causada pela perturbação do que
poderia ter sido, quiçá tão útil a um entendimento do nosso presente como a
demonstração efetiva, provocada e comprovada do que realmente aconteceu.
Analisando Márcio Souza que inicia um romance da literatura crítica da
Amazônia, narrando aquilo que serve de fundo para extensão de sua obra poética:
Quase tudo neste livro bem podia ter acontecido como vai descrito. No que
se refere à construção da ferrovia há muito de verdadeiro. Quanto a política
das altas esferas, também. E aquilo que o leitor julgar familiar, não estará
enganado, o capitalismo não tem vergonha de se repetir.
E porque é assim, esse mesmo diálogo é ainda a grande tendência – uma
tendência cada vez mais acentuada pela globalização e pelo multiculturalismo –
da literatura do novo século. Saber de seu espaço é saber-se quem, e saber-se
quem é o grande desafio do homem do primeiro ao vigésimo - primeiro milênio e
de tantos outros quantos vierem. É da natureza do bicho-homem marcar
território, como forma também de justificar sua existência. E aí, quando a
tecnologia rompe e esvazia as fronteiras, econômicas e culturais, em nome desse
saber encontra resistência, aponta-se como maior foco de resistência da
identidade de uma nação os seus índios, ou seja, os seus seres primeiros, os mais
puros e os mais verdadeiros.
Pois esses índios, aparentemente adormecidos, são a própria alma das
nações e seus povos e, como tal, a garantia da permanência da sua identidade
num processo de planetarização de larga escala. Como alma, vivem dentro de
nós, em algum lugar, neste mundo novo de início de século, senão, como explicar
a indignação quando numa dessas séries americanas, a protagonista avisa: I'm
going to Brazil! E, então, para simpática aos brasileiros – desta grande nação
continental - emenda simpaticamente: Hasta la vista baby! ?
Pois esses índios, aparentemente adormecidos, têm seu lugar assegurado
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na literatura, por isso as narrativas, como as poesias, não são inocentes e
continuarão não sendo, não importa sua vertente ou seu meio.
Na Amazônia, o índio é sempre transportado para um contexto polêmico
nas narrativas, sejam aquelas que o enaltecem ou aquelas que o mutilam, ele
sempre aparece como um elemento de comportamento desconhecido frente às
realidades, a sua convivência nessa espacialidade possibilita à história mostrar
alguns pontos curiosos sobre a sua existencial idade. O índio Caripuna,
personagem de Márcio Souza apresenta-se como um colaborador aos interesses
estrangeiros e quando é chamado a fazer parte do elenco de protagonistas do
cenário da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, atua como
colaborador de uma ideia dominante, que prescreve o dócil e o “selvagem” do
índio.
A resistência do índio aparenta um certo tom de ironia:
Os pequenos camponeses que ficaram sem terra. Querem fazer
barulho. Há um fanático incitando uma rebelião.
Os índios querem se rebelar!
Não os índios, eles não existem, mas os camponeses.
Daremos um jeito. E a Madeira-Mamoré?
Segue dentro do previsto. Lá não há camponeses, só índios.
Em entrevista Caetano Veloso, ao reavaliar o Tropicalismo, reconhece
nele um grande “escândalo antinacionalista”, com “ostensivo desprezo pela
ideia de busca de raízes da autenticidade nacional.” diz ele:
É como se a gente dissesse: Eu considero que, com o desespero da busca da
identidade, a vontade louca de imitar os americanos, a falta de segurança, a
incapacidade de organizar uma sociedade respeitável, com tudo isso acho
que já tenho identidade suficiente. Já estou falando diretamente para o
mundo, como se dizia no Recife numa famosa emissão radiofônica:
“Pernambuco falando para o mundo".
E Caetano considera que talvez a música popular propicie uma maior
irresponsabilidade do que o cinema – quando fala do cinema se refere à terra sem
transe, que marca uma espécie de obsessão com a identidade nacional – e a
literatura. E vai adiante:
O fato de um país deste tamanho falar português e ter
Um autor como Machado de Assis no século 19 e um autor como
Guimarães Rosa no século 20 faz do Brasil
Um grande segredo que nós guardamos e queremos
Revelar. É uma experiência única!
Evidentemente que a escolha de Caetano Veloso não é casual. Machado
de Assis e Guimarães Rosa, cada um a seu modo, seja pelo desvendamento do
panorama social de uma época, o 2ª reinado e os primeiros anos da República,
com grande ceticismo em face da realidade nacional, como em Machado, seja
pela feição notadamente regionalista, como em Guimarães, buscam fixar um
tipo brasileiro numa expressão universal que certifica os elementos na sua
identidade, apontando para uma realidade pelo menos coerente com o valor das
raízes.
E diz Caetano:
Nossa confusão racial e o fato de falarmos português e sermos um país de
dimensões continentais na América do Sul significam um acúmulo de
desvantagens que só pode ser lido como uma graça (...) Qualquer mente
inteligente concluirá que o país que tem um acúmulo considerável de
peculiaridades – desvantajosas em princípios, mas não malditas em si mesmas
– nos leva a desconfiar, com toda a razão, de que tudo significa uma
bênção.(...) É uma experiência única.
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De fato, quem dá conta desta experiência única é a literatura, é o fato de ser a
literatura um velho espelho crítico sempre renascido. É onde a realidade pode ser
revista naquilo o que ela tem de mais significativo. É danação e é salvação, porque seu
silêncio é o silêncio feito de liberdade. É aventura total, dramática, exaustiva,
profunda, arriscada, detonadora de percepções, compreensões e visões inesgotáveis.
E, sobretudo, uma resistente, tal qual o livro.
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Conclusão
Os conceitos de espaços estão rompidos, pelo menos teoricamente, com seus
limites rígidos para fixar-se em outras definições de propriedades. O
Multiculturalismo espacializou a identidade e definiu outras formas para os
elementos que constroem a paisagem urbana das cidades Amazônicas.
Assim, é nas idiossincrasias que se passam a distinguir as fronteiras, e elas
estão internalizadas nos traços culturais, porém, os efeitos encontram-se bastante
obscurecidos por uma nuvem de americanismo que não tem vergonha de se repetir em
todos os espaços planetários.
Então, posto este contexto multicultural do novo Imperialismo, o fenômeno
se repete, a literatura tomada como uma expressão simbólica, produto da cultura e da
história, mas que também faz inferência em ambas, aborda uma profunda reflexão
nos agentes fomentadores do desenvolvimento regional, inclusive, conclama para um
diálogo do presente com a história sobre o estabelecimento conceptivo do discurso
universal engendrado no regionalismo da espacialidade urbana da Amazônia.
Sabe-se que tudo pode ser global, mas o outro é o outro, mas importa o
discurso geral de prosperidade, e o direito de ser lembrado na diversidade com muito
bem revela Caetano Veloso:
O fato de um país deste tamanho falar português e ter um autor como Machado de
Assis no século 19 e um autor como Guimarães Rosa no século 20 faz do Brasil
Um grande segredo que nós guardamos e queremos Revelar. É uma experiência
única! E reveladora na busca necessária da identidade.
Referências
VELOSO, Caetano.
Continente Multicultural. Pernambuco: Governo do Estado, nº 01.
CORDEIRO, Saint e et al.
Cidade e Empresa na Amazônia. Belém: Editora Paka –Tatu, 2002.
LOURENÇO, Eduardo.
A Europa desencantada: Para uma mitologia europeia. Lisboa: Visão, 1991.
SARAMAGO, José.
História e Literatura. Lisboa: Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1990.
SOUZA, Marcio.
MAD Maria. São Paulo: Civilização brasileira S.A. 1980.
BLANCARTE, R.(org.)
Cultura e Identidade Nacional. México: Fundo de cultura econômica, 1994.
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Possíveis Caminhos para Serem Trilhados na Construção e
Desenvolvimento de um Estudo de Caso
Petrônio Lauro Teixeira Potiguar Júnior*
RESUMO
É mister esclarecer que as reflexões que serão desenvolvidas neste trabalho, não são um fim em si mesmo e
que críticas virão para somar ao que aqui será explanado já que a temática tratada , apresenta controvérsias e
opiniões diversas, mas que com certeza, serão recebidas com aplausos e considerações para somar ao que
aqui será oferecido ao leitor. Por isso, este texto traz reflexões introdutórias sobre a concepção,
desenvolvimento e finalização de uma modalidade de pesquisa, elegendo como foco central, o estudo de caso
e os possíveis caminhos que devem ser trilhados para sua construção e finalização. Destacar-se-á também o
debate envolvendo a complexidade da relação homem-sociedade na pesquisa e entre pesquisador e objeto
pesquisado nos pormenores a ser considerado no momento desse tipo de prática investigativa. No debate aqui
proposto, se dará importância aos processos cognitivos como o olhar, o ouvir e o escrever no início, meio e
fim da pesquisa e, em especial, quando se tratar de um estudo de caso e , fundamentalmente como o chegar
de uma pesquisa deve ser um processo de coroação com a intervenção, caso exista, materializado pela
devolução dos resultados da pesquisa aos atores e o local investigado.
Palavras-chave: pesquisa - cultura - estudo de caso
ABSTRACT
Preliminarily, it is necessary to clarify that the reflections developed in this work are not an end in
itself and that criticism is important to sum up to what is here explained, given that the this topic
generates controversy and diverse opinions that are welcomed to enrich this work. Therefore this
text brings introductory reflections about the conception, development and conclusion of a
specific genre of research, choosing as a central theme the case study and the possible ways to be
followed to its building and conclusion. The debate involving the complexity of the relation
between men and society in research and between researcher and the object being researched is
highlighted, as it has to be taken into consideration in this sort of research practice. In the debate
here proposed high importance is given to the cognitive processes as to look, to listen and to write
in the beginning, development and end of the research and, especially, when it is a case study, and
fundamentally how the end of a research shall be a process crowned with the intervention
materialized by the presentation of the results to the researched actors and places.
Keywords: research - culture - case study
*Antropólogo e Mestre pela /UFPA.
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Introdução
Procurar entender modalidades de pesquisa é uma das tarefas nada fácil de
fazer, no entanto, as tentativas explicativas, desde que bem argumentadas, são válidas
por alimentar debates de cunho acadêmico, forçando pensar e resignificar conceitos e
categorias e até mesmo, expor formas diferenciadas de reflexão sobre determinado
tema, em especial, no que se refere a modalidades de pesquisa, como o estudo de caso.
Diante disso, este texto há tempos já estava escrito , mas se revela agora com
algumas adaptações pelo incentivo de minha ex-orientadora da Universidade Federal
Fluminense (UFF), professora Delma Pessanha, que o avaliou de forma positiva.
Assim, partindo deste contexto, entendemos que ele não deveria ser esquecido nas
gavetas acadêmicas diante da necessidade dessa discussão na atualidade, em
especial, no meio acadêmico entre alunos de graduação e pós graduação.
Posto isso, pretendemos apontar diretrizes para a realização de um estudo de
caso, a forma de como ele poderá ser desenvolvido que será revelado em quatro
caminhos que procuraremos esclarecer de forma objetiva e sucinta, cuja base teórica
estará calcada em autores e áreas diversas, dando sentido multidisciplinar do debate e
que pousará no colo dos leitores para avaliações diversas que com certeza serão
válidas. Vamos aos caminhos para a realização do estudo de caso!
Primeiro Caminho: Entender a Relação Homem-Sociedade
na Pesquisa de um Estudo de Caso
Compreender o estudo de caso requer que retomemos alguns pormenores no
que diz respeito a esse tipo de pesquisa, em particular, por considerar que ele se
caracteriza pela escolha de um determinado fenômeno que ocorre com pessoas e
grupos de forma contextualizada em um determinado tempo e espaço. Apesar de sua
conceituação polissêmica, Ventura (2007) categoriza bem o seu significado:
Conforme os objetivos da investigação, o estudo de caso pode ser classificado de
intrínseco ou particular, quando procura compreender melhor um caso particular
em si, em seus aspectos intrínsecos; instrumental, ao contrário, quando se
examina um caso para se compreender melhor outra questão, algo mais amplo,
orientar estudos ou ser instrumento para pesquisas posteriores, e coletivo, quando
estende o estudo a outros casos instrumentais conexos com o objetivo de ampliar a
compreensão ou a teorização sobre um conjunto ainda maior de casos. Os
pesquisadores devem buscar, a partir dessa categorização, tanto o que é comum
quanto o que é particular em cada caso e o resultado final provavelmente mostrará
alguma coisa original em decorrência de um ou mais dos seguintes aspectos: a
natureza e o histórico do caso; o contexto em que se insere; outros casos pelos
quais é reconhecido e os informantes pelos quais pode ser conhecido (p. 384).
Na mesma linha de raciocínio Tarcísio Filho e Airton Filho (2010), também
conceituam o estudo de caso, como:
Em especial, o Estudo de Caso, por si só, caracteriza-se por ser um tipo de
pesquisa que apresenta como objeto uma unidade que se possa analisar de forma
mais profunda. Visa, assim, ao exame detalhado de um ambiente, ou de um local,
ou, ou de uma situação qualquer, ou, ainda, de um determinado objeto, ou,
simplesmente de um sujeito ou de uma situação. Pode, então, ser conceituado
como um modo de coletar informação específica e detalhada, frequentemente de
natureza pessoal, envolvendo o pesquisador, sobre o comportamento de um
indivíduo ou grupo de indivíduos em uma determinada situação e durante um
período dado de tempo (p. 3).
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Nota-se assim que tanto Ventura (2007) como Tarcísio Filho e Airton Filho (2010),
dentre variadas tentativas de autores, conceituam estudo de caso e seguem o mesmo
raciocínio sobre tal conceituação de alguns intelectuais que há anos trabalham com esta
modalidade de pesquisa como Ludke & André (1986); Gil:(2002) ; André (2003) e
Chizzotti (2008); Severino (2002) dentre outros, e que vem se coadunar com o que aqui
será exposto como estudo de caso e as diretrizes para sua construção e desenvolvimento.
Posto a conceituação do estudo de caso, o primeiro ponto a ser considerado
neste tipo de estudo diz respeito a relação homem-sociedade. Este é um contexto que
pede compreensão da construção e (re) construção do mundo material e imaterial do
1
indivíduo em seu meio vivido . Neste sentido, Berger (1985) nos leva a compreender à
relação conflituosa do “eu” com o “outro” e sua jornada como “ser” social, numa
construção marcada pela interiorização, exteriorização e objetivação dos fatos vividos
por ele, registrando seu poder inato e racional de transformar e ser transformado,
2
historicamente, através de suas ações e do exercício de pensar seu próprio pensamento .
Para reforçar sua ideia, Berger (1985) ressalta que na chegada do homem à
sociedade, esta última já esta objetivada, cabendo ao primeiro, se posicionar por
intermédio da produção de símbolos e significados, dando sentido ao seu existencialismo
em um claro empreendimento coletivo, já que sozinho o homem não produz cultura. É a
partir da produção cultural que esse homem visibiliza sua (re) significação no espaço e
no tempo, enquanto um ser histórico que vive o presente, olhando para o passado, na
busca constante de perspectivas futuras, construindo e (des) construindo valores em uma
mutação social constante (MYNAYO,1999; LARAIA, 2001; VENTURA , 2007).
Tais reflexões nos fazem perceber que viver em sociedade, é participar de um
contínuo processo de troca operada pela cultura, legitimada por fatores institucionais,
inerentes a qualquer indivíduo que se defronta com a coercitividade política,
econômica, social e cultural objetivadas no meio social, cabendo ao homem a
construção de sua biografia na sociedade, fatores estes a serem fundamentalmente
considerados na eleição de um problema que será investigado por intermédio de um
estudo de caso (BERGER, 1985; LARAIA, 2001).
Assim, objetivação do indivíduo em sociedade, produto da exteriorização do que foi
interiorizado no consciente individualizado, por si só, é resultante da (re)significação iniciada
3
que é transformada pela ação social individual bem aos moldes weberiano . Esses fatores
garantem a transmissão a outras gerações sobre os modos de vida, mas que sempre estarão
em um processo dialético do mundo objetivado, absorvido e transformado individualmente.
Devemos registrar que o pensamento aqui, evidencia a participação do
indivíduo de forma efetiva na sociedade, demarcando sua identidade enquanto
“eu” no mundo e que suas ações, são dirigidas aos “outros” como um mecanismo
de ação social coletiva, numa demonstração de que o homem e a sociedade são
interdependentes e que se encontra presente na relação entre o pesquisador e o
pesquisado no início e final de um contexto investigativo.
Por outro lado, Cuche (1999) reforça ideia anterior de forma clara já que,
segundo suas reflexões, para entendermos o homem em seu espaço, o único meio
seria a compreensão do que vem a ser cultura que, apesar de seu sentido complexo,
1
Quando nos reportamos as
questões imateriais, o olhar do
leitor deverá ser direcionado
para o contexto cultural que
permeia a vivência do
individuo em seu processo
social a exemplo de
representações sócias , crenças,
valores, saberes tradicionais etc.
2
O conceito “conflito” a qual
nos referimos, diz respeito a
“Teoria do Conflito”, de
Simmel, afirmando que o
conflito é a essência da
existência humana, pois dele
poderá surgir uma proposição
alternativa na dialética
discursiva não precisando,
necessariamente,
ser um contexto negativo na
existência do indivíduo em
sociedade.
3
Aqui referimo-nos a abordagem
sociológica de Max Weber,
quando do uso do
compreensivíssimo elege a ação
social do indivíduo como foco
central de suas observações e
que por si só, é cabível na
proposta de debate aqui
desenvolvida.
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aponta para características pessoais e coletivas de símbolos e significados produzidos
por ele. Isto é reafirmada por Laraia (2001) quando debate o conceito de cultura e que é
de fundamental importância ser entendido no desenvolvimento de qualquer pesquisa.
Outro ponto a ser considerado, está ainda no entendimento existencial do
indivíduo em sociedade, mas lançando um olhar atento para as diferenças e diversidades
que o cerca, rompendo com o paradigma de entender o indivíduo apenas pelo prisma
natural positivista. Agora ele é percebido baseado em seu papel social materializado
pelas ações e, necessariamente, deve-se ter atenção privilegiada no início, meio e fim da
prática da pesquisa seja ela em que área for, nas ciências exatas, ciências biológicas e
ciências humanas, cuja participação de atores sociais seja evidenciada.
Para dar sentido ao que foi mencionado acima, Da Matta (1981) analisa a
concepção e desenvolvimento da ciência e seus diversos objetos e objetivos. Ele analisa
a vivência acadêmico-histórico entre ciências exatas e humanas, em particular o da
antropologia, privilegiando o caráter investigativo tornando visível à importância dos
símbolos e significados dos indivíduos discutidos até o momento. Ele nos incentiva à
compressão do que se entende hoje por pesquisa qualitativa, que leva em conta, a
construção cultural que advém da percepção metodológica “de quem” e “do que” se
deseja investigar. Para este autor, jamais se pode “isolar causa e motivações exclusivas”,
a exemplo das pesquisas em suas diversas áreas. Ou seja, devemos dar ênfase a
valoração individual construída pela relação dialética do homem em sociedade,
esclarecida de forma enfática por Berger (1985), Da Matta (1981) Lévis-Strauss (2001)
sem excluir as diretrizes de análises destes fenômenos sociais, a exemplo da estatística e
suas interpretações contextualizadas, já que os números por si só “falam”.
Ao que é postulado pelos autores mencionados, Cuche (1999) torna mais
enfática tais reflexões, quando ressalta que a “cultura” é “independente das análises
acadêmicas, mas é um produto do próprio homem” e que seu conceito é uma necessidade
semântica e de sistematização para possíveis explicações ao desempenho do homem em
sociedade, em suas teias de significados e conflitos internos e externos que, por
excelência, também são construções na dinâmica da história e da pesquisa. Esta
percepção esclarece que o conceito de cultura e suas variáveis (contracultura,
aculturação, cultura popular etc.) devem ser percebidos como fruto da própria existência
humana, no momento da pesquisa, provocando mudanças em seu entendimento,
atendendo interesses no campo político, econômico social e cultural e que por si só, afeta
o campo da investigação científica, em particular em um estudo de caso.
Tais reflexões são fundamentais para percebermos o mundo dos atores sociais
investigados, devendo ser considerados na construção dos problemas e questões de
determinadas pesquisas, desde o projeto às análises de dados, já que a vivência das
pessoas – investigador e investigado - estão marcadas pelos imponderáveis da vida
social cuja relação com “outro” deve ter como parâmetro o respeito no processo de
investigação até as intervenções pretendidas resultantes de qualquer estudo.
Assim, Man (1973) quando trata do objeto de estudo, em especial nas ciências
humanas, valoriza a necessidade de se ter clareza que a interação e inter-relações sociais
deverão ser as âncoras de análises desta ciência em que a cultura, o patrimônio material e
imaterial, os símbolos e significados que permeiam os atores sociais, compreendendo a
sua complexidade analítica na pesquisa seja ela de que área for.
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Revela-se então que na investigação da vida social, não devemos esquecer também
da sutileza de se trabalhar com categorias (família, idade, velhice etc) para poderemos
entender as representações sociais específicas que acompanham o processo existencialista
do “objeto” de estudo4, conforme nos chama atenção Lenoir (1998) quando faz reflexões
relativas a objeto sociológico e problema social5 na pesquisa que envolve, inclusive, a
institucionalização e legitimação temporal e espacial do patrimônio material e imaterial
que circunda o objeto de estudo que deve ser entendido como tal, na investigação nas
diversas áreas e tipos de pesquisa, a exemplo do estudo de caso6.
Segundo Caminho: Compreender a Cultura no Início, Meio e
Fim do Estudo de Caso
Ao falarmos em patrimônio cultural, será necessário compreendermos suas
dimensões, constituições e o respeito pela transmissão deste importante aspecto da vida social,
devendo ser visualizado na pesquisa, em particular quando se tratar de um estudo de caso.
Consideramos aqui as análises de Lévi-Strauss (2001) acerca do patrimônio
imaterial, apresentando a temática da preservação e transmissão deste patrimônio às
gerações futuras. Devemos ter clareza que, nesse palco da vida real, a dicotomia
relacionada aos termos patrimônio material e imaterial, fazem parte da cultura
individual e de um grupo social a ser investigado.
Compreendendo a cultura como significados atribuídos pelos homens ao mundo
como um empreendimento dotado de valores e saberes, constituídos nas relações do seu
“eu” com o “outro”, eles se materializam pelo patrimônio construído materialmente
como obra de arte e monumentos. Por outro lado a oralidade, memória, saberes
populares e outros processos cognitivos que são passados de geração em geração, nos
alerta para adotarmos uma importante categoria de análise a ser respeitada no momento
da pesquisa, ora expressada por Lévi-Strauss (2001), o “patrimônio imaterial”7.
Deste modo, a desigualdade analítica relacionada ao tratamento do escrito sobre
o oral, da arte erudita sobre a arte popular e do histórico sobre o cotidiano, demarcou a
dicotomia e hierarquia de valores diante do patrimônio imaterial e material, que
apareceram como áreas separadas. No entanto, na última década, iniciou-se a
preocupação em analisá-los não como áreas diferenciadas, mas como um “conjunto
único e coerente de manifestações múltiplas, complexas e profundamente
interdependentes dos inúmeros componentes da cultura de um grupo social” (LÉVISTRAUSS, 200, p.24) e que é fundamental ser compreendido no contexto
investigativo.
Foram necessárias a compreensão e reformulação na perspectiva de um novo
olhar ao componente patrimônio cultural, ou seja, voltar à análise para:
4
Chama-se atenção que “objeto”
esta aspeado , considerando que
as pessoas, em particular
aquelas que são atenção central
da pesquisa , não são passivas,
mas sim se constrói e (re)
constrói, dependendo de sua
postura nos caminhos e (des)
caminhos da pesquisa.
5
Quando determinado fato
social é percebido pelo
indivíduo, seja ele pesquisador
ou não, sem uma investigação
sistematizada, este é
denominado de problema social,
mas quando sofre intervenções
analíticas onde métodos e
técnicas são aplicados para seu
entendimento, este é
denominado de problema
sociológico.
6
É o tipo de pesquisa que versa
sobre um determinado
indivíduo, família, grupo ou
comunidade que seja
representativo de seu universo,
para examinar aspectos variados
da sua vida.
7
Durante muito tempo
convencionou-se a ideia de que
patrimônio cultural estava
relacionado à visão
monumentalista. No entanto,
com base nas discussões
concebidas nas convenções da
Unesco nos anos 50 e fim dos
anos 70 do século passado,
demonstrando a necessidade “à
conservação e proteção do
patrimônio universal de livros,
obras de arte e outros
monumentos de interesse
histórico e científico” (LÉVISTRAUSS,2001:23), deixando
em segundo plano os estudos a
cerca da vida cotidiana das
culturas populares, o patrimônio
imaterial.
os conjuntos culturais complexos e multidimensionais que traduzem no espaço
as organizações sociais, os modos de vida, as crenças, os saberes e as
representações das diferentes culturas passadas e presentes no mundo (LÉVISTAUSS, 2001, p.24).
É necessário ocorrer maior intensificação com preocupações referentes à compreensão
e valorização de aspectos da construção cultural de grupos sociais, reconhecendo sua
importância como seres que constroem a história de sua localidade através das experiências
vividas, recriando aspectos que garantam sua sobrevivência individual ou mesmo coletiva.
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Isso revela, e nos remete, ao modo de como vem sendo discutido, hoje em dia, a pesquisa
qualitativa, que não separa os dados quantitativos das percepções cognitivas dos atores
sociais como aqui é ressaltado. Isto inaugura, há décadas, uma nova postura de se pensar
a pesquisa que comunga essas duas ações da e na pesquisa, inclusive no estudo de caso.
Sendo assim, relacionar diversas categorias sócio-econômicas envolvendo os
atores sociais, seja em que lugar ele estiver, a exemplo dos remanescentes de
quilombos, pescadores, extrativistas dentre outros, cada um com seu modo específico
de apropriação, designa diferenciações, facilitando assim, o estudo das trajetórias
particularizadas que pressupõe universos sociais também distintos. Ou seja, não se
deve valorizar os domínios instrumentais, econômicos etc. em detrimento das
constituições culturais das localidades ou dos grupos sociais. Tal postura, evidencia sua
importância como resultado das trajetórias diferenciadas, de cada grupo ou indivíduo,
com seus interesses, querendo ser reconhecido dentro do seu âmbito, sócio-cultural.
Ou seja, na pesquisa, é necessário o reconhecimento, a dimensão do
patrimônio imaterial pela extrema importância nos processos de intervenção
política elaboradas por instituições, dando aporte para maior sensibilidade no
sentido de perceber as condições e situações diversas vivenciadas por vários atores
sociais, estabelecendo o processo da conquista, do respeito e da troca de saberes
entre pesquisadores e pesquisados, fato este relevante no estudo de caso, pois irá
colocar à prova a antipatia ou simpatia entre pesquisador e pesquisa, fator este
imprescindível para o sucesso ou fracasso de um estudo de caso.
Sendo assim, o papel do pesquisador vai além das simplificações
restritas das análises, devido a importância e expectativas criadas nos sujeitos
pesquisados, referente a possíveis intervenções após os estudos.
Deste modo, um fator importante na pesquisa é a relação da teoria e prática, onde
suas sistematizações e contribuições no campo científico, deverão está somadas ao retorno
de seus resultados à sociedade estudada, fazendo com que ao apresentar a teoria e prática
analisadas, está-se abrindo para uma relativização dos parâmetros epistemológicos. Isto faz
nascer um plano de debate inovador, ou seja, uma relação dialógica entre o pesquisador e o
sujeito pesquisado, contribuindo para uma reflexão crítica e sensível dos resultados e
produtos alcançados com a pesquisa, seja ele em que área da ciência for, já que toda a
pesquisa na essência, nasce e se desenvolve em um contexto social específico.
Portanto, o objeto de estudo não é opaco e mudo, como nos diz DaMatta (1981),
ele também tem suas interpretações e seu ponto de vista, evidenciando assim uma diferença
fundamental relacionado a ciências exatas e naturais, já que a natureza não “fala” direto
com o pesquisador, ao passo que “cada sociedade é um espelho onde a nossa própria
existência se reflete”, tornando esses fatores fundamentais para a construção do objeto em
ciências sociais, reflexão esta também compartilhada por Man (1973), quando faz sua
análise relativo ao objeto de estudo da sociologia e sua inter-relação no meio social.
Notamos então que os instrumentos do cientista social decorrem da qualidade na
abstração; no exercício de construção da teoria; na observação e na constante análise, já que
a preocupação com a temporalidade nas relações humanas deve ser um exercício constante.
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Aqui os processos sempre inacabados, ou seja, nada é determinante, pois a relação
homem-sociedade, conforme Berger (1985), é fundamental e necessária para
lançarmos um olhar diferenciado e particularizado, a fim de perceber que o homem
sofre mudanças, já que é produto e produtor do meio existencial, sendo o estudo de
caso uma das estratégias utilizadas para investigação e percepção focada de qualquer
problemática no contexto da pesquisa e que será ponto de pauta no próximo item.
Terceiro Caminho:
Adotar Meios Cognitivos em um Estudo de Caso
Considerando as questões até aqui discutidas, mesmo que de forma introdutória,
notamos que elas são fatores importantes a serem considerados quando nos reportamos a
um tipo de investigação na vida acadêmica, o estudo de caso. Deve-se esclarecer que aqui
será considerado estudo de caso, as investigações efetivadas com fatores contextualizados
no tempo e no espaço, onde pensa-se em um contato direto do pesquisador e o pesquisado.
Ou seja, o estudo de caso é caracterizado pelo fato de ser uma investigação
focada e um fenômeno com dimensões locais e específicas, mas com as mesmas
dificuldades e complexidades de qualquer fenômeno social que tem efeitos do que
ocorre no global. Isto centraliza o pesquisador no sentido de dar uma diretriz
consistente na pesquisa de campo independente das técnicas que irá utilizar (roteiro
de entrevistas, imagens, documentação, etc.), para que o mesmo não caia no senso
comum e passe a não considerar o fenômeno na sua plenitude.
Neste sentido, os elementos cognitivos como um olhar atento, um ouvir aguçado e
um escrever claro, debatidos por Cardoso (2000), ajudam a fortalecer a análise do objeto
estudado, compreendendo suas alternâncias e dificuldades para melhor analisar a pesquisa
no estudo de caso e, fundamentalmente, entender ou “outro” na investigação realizada.
O olhar atento, desprovido das pré-noções e de outros elementos que podem
interferir na cognição do indivíduo, é uma questão a ser enfrentada e administrada
pelo pesquisador, pois nem tudo que nossos olhos vêem correspondem o que
realmente é de fato (BECKER,1994; OLIVEIRA, 2000 ).
Por outro lado, ouvir aguçado e treinado, deve levar em consideração os elementos
percebidos no olhar. Todavia, esse ouvir deve ser atento, paciente e exige dedicação do
pesquisador, que poderá ajudar a compreensão mais apurada do fenômeno social, sem que
hajam contradições nas informações coletadas, em particular nos estudos de caso.
Já o escrever é a sistematização dos outros processos cognitivos - ver e ouvir –
e é onde o pesquisador vai travar- no bom sentido - as batalhas no campo teóricointelectual com outros autores que também debatem as questões relacionadas ao seu
objeto de pesquisa, materializado pela relação dialógica entre a teoria e a prática ,
que é um processo existencial-interdependente no contexto pesquisado e, em
particular, no estudo de caso, cujo o olhar , o ouvir e o escrever são basilares8.
É através desses instrumentos cognitivos que a investigação em um estudo de
caso pode ser entendida minimamente, pois tais práticas são importantes para
compreensão dos fenômenos sociais que, a cada dia, se tornam mais complexos e de
difícil compreensão em virtude da dinâmica social,
8
Geralmente o escrever finaliza
os métodos cognitivos
descritos por Oliveira (2000),
sendo de extrema importância,
pois é a materialização de todo
processo metodológico de
pesquisa, que demanda um
relativo tempo e dedicação
especial por quem a realizou.
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com velocidade da circulação de informações e a delimitação de espaços
desterritorializados no processo global, cujas reflexões aqui colocadas são
fundamentais para se chegar a termo de determinada pesquisa em qualquer área, em
especial no trato de um estudo de caso.
Outra perspectiva a ser considerada no estudo de caso, são as interferências,
externas-internas no processo de pesquisa e, crucialmente, na hora de se produzir questões
de interesse coletivo. Todavia, o trabalho do pesquisador pode ser encaminhado sem
sustos e atropelos, se o mesmo definir com clareza e critérios, o seu objeto de investigação.
O trabalho de observação social, análise dos fenômenos sociais e suas interrelações cotidianas, por mais simples que possa parecer, não são tarefas para
observadores desatentos. Para Cardoso (2000), trabalhar os sentidos cognitivos do
ser humano – ver, ouvir e escrever - é importante nesse processo, porém realizá-los
corretamente é uma tarefa que exige uma sensibilidade especial do pesquisador
quando envolvido em um estudo de caso específico.
Quarto Caminho: O Compromisso do Pesquisador com o
Local e Atores Investigados em um Estudo de Caso
Assim, para o desenvolvimento investigativo de qualquer problema, o
pesquisador possui uma tarefa das mais dignas nesse processo de construção de
problemáticas sociais de toda ordem: o compromisso prático e ético com o “outro”.
O importante nessa construção, é mostrar para à sociedade que uma pesquisa
não se encerra nela mesma; ou seja, devemos mostrar também que esta não é única e
exclusivamente para satisfazer vaidades pessoais, mas sim que o que esta sendo
pesquisado é de suma importância para a sociedade.
Outro ponto importante é trabalhar questões de relevante interesse, isto é,
análises de interesse de grupos representativos na sociedade. Não é uma tarefa
simples, pois o trabalho do pesquisador vai de encontro ao mundo pré-concebido que
geralmente determina o que deve ser trabalhado, conforme discute Berger (1985).
Assim, a tarefa de (des)construção da realidade pré-concebida exige um exercício
intelectual diferenciado que, dependendo das próprias características desse objeto de
análise, dos atores envolvidos; da localização e acesso dessa realidade investigada.
Dentro da perspectiva aqui discutida, juntamente com outras informações e
diversos métodos de investigação, a tarefa de (des)construção da realidade social
poderá ser encaminhada em uma direção que não venha a gerar equívocos nem
precipitações, sob a ótica analítica. Um ponto importante refere-se às imposições que,
geralmente os atores envolvidos na pesquisa acabam sendo sujeitos, pelas mais
diversas interferências que, dentro de um processo social, são inevitáveis, em
especial quando se investiga casos particularizados.
As interferências geralmente acabam de uma forma direta e até mesmo indireta,
determinando os procedimentos a serem adotados pelo pesquisador, implicando em
consequências negativas na qualidade do trabalho, pois direciona os objetivos para aspectos
que nem sempre são do agrado e interesse de quem vai realizar a tarefa, o pesquisador.
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Isso acaba comprometendo o resultado de um determinado estudo e o pesquisador
paga um preço injusto por trabalhos e resultados que, muitas vezes, não eram de seu
interesse, mas que por essas interferências acabam dando um outro sentido para a
pesquisa e, fundamentalmente, não atendem a demanda dos grupos investigados.
Dentro dessa sensibilidade do pesquisador, não pode ser deixar de
compreender a objetivação da sociedade, haja vista que ele vai analisar um mundo
pré-concebido isto é, que já existia antes de fazer suas inferências. Esse mundo, que o
faz defrontar com uma realidade, às vezes, foge do seu próprio controle,
influenciando-o, no momento da execução do seu olhar dependendo do contexto que
envolve o grupo social envolvido na pesquisa.
Nessa perspectiva, o elemento desse mundo pré-concebido ou objetivado,
tem um poder determinante de influenciar positivamente ou negativamente os
conceitos no contexto analítico do pesquisador que estão relacionados com seu objeto
de investigação no momento da escrita.
Outro elemento fundamental nessa análise, refere-se ao aspecto temporal e
inacabado do objeto a ser investigado, já que, qualquer objeto de estudo nas ciências
sociais deve ser considerado sempre em processo contínuo de construção, mesmo que seja
um estudo de caso específico. Ou seja, os fenômenos sociais apresentam complexidade
maior, de difícil interpretação que o torna imprevisível para análises superficiais.
Para amenizar as questões mencionadas anteriormente, a interdisciplinaridade está na agenda do dia e onde questões instrumentais e sociais são claramente
imbricadas e por si só, influenciam no processo da pesquisa seja ela de que área for,
dependendo do foco nela contido e do modo como se observar a realidade investigada. Ou seja, a complexidade dos fenômenos sociais extrapola os limites espaço temporais, pois o mesmo não ocorre da mesma forma no lugar, instante e tempo, que
podem ser reproduzidos com as mesmas características, em regiões geográficas
diferentes e ao mesmo tempo. Por tudo isso, o fenômeno social nas ciências humanas
é singular e único e que deve interagir com as demais áreas do conhecimento (DA
MATTA, 1985) dando suporte para o entendimento que o retorno é basilar para quem
pretende desenvolver qualquer pesquisa, inserindo neste contexto o estudo de caso.
Portanto, a objetivação da sociedade sobre o mundo pré-concebido e a
complexidade do fenômeno social no espaço e no tempo formam outros elementos
também importantes dentro da análise do objeto no estudo de caso, onde o olhar , o
ouvir e o escrever são cognições que devem estar imbricadas no início, meio e fim
deste tipo de estudo, em particular no claro entendimento do por quê? Para que? E
que resultados estes tipos de estudo trarão para os atores envolvidos no mesmo e para
a localidade investigada?
Para não Concluir
Apesar de uma discussão ainda introdutória, este fórum de debate atravessa o
tempo e o espaço e é fundamental entendermos isso, independente de qual campo
científico pertençamos e que, “eu” o “ser”, tanto do pesquisador quanto do objeto
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pesquisado, são fatores presentes na investigação que, em muitos casos, nos põe
diante dos imponderáveis da vida e nos deixa em um constrangimento que transborda
nosso controle enquanto ator social. Este fator poderá ser evitado com uma boa base
teórica, fundamental para evitarmos cair em armadilhas na empreitada investigativa.
Devemos ter clareza que a alteridade e, principalmente, o protagonismo dos
atores sociais investigados devem ser fator imprescindível a ser considerado no
princípio, meio e fim de um processo investigativo em um estudo de caso,
principalmente se há pretensão de uma intervenção prática ou, pelo menos uma
proposição, em que conceitos como cultura, patrimônio material e imaterial,
problemas e fenômenos sociais devem ser levados em conta, evitando desregular o
cotidiano vivido dos atores sociais onde a postura ética será condição primeira
somada a relação de parceria no processo de construção do conhecimento.
A clareza de que o objeto de estudo nas ciências sociais, exatas e naturais, em sua
maioria, vivem o presente, olhando para o passado na busca de perspectiva futura, deve
ser um processo perseguido pelo pesquisador a fim de apontar possibilidades de melhoria
na qualidade de vida dos atores sociais investigados, cuja observação no estudo de caso
devem ser parâmetros metodológico e técnicos para empreitada analítica.
Além das questões acima, os passos cognitivos, o olhar , o ouvir e o escrever ,
devem estar sincronizados já que do uso destes sentidos, se materializam nas análises
resultantes das observações e dos dados coletados e que por si só serão basilares para
as intervenções e proposições futuras no tempo e espaço vivido.
Os métodos e técnicas acima citados, permitiram uma reflexão mais
direcionada, impossibilitando a pulverização de ideias e, principalmente, uma
possível intervenção equivocada no futuro, o que acarretará uma desvalorização da
investigação acadêmica, comprometendo, deste modo, as gerações futuras no que
diz respeito ao desejo e prática do contexto investigativo tendo como âncora
fundamental a pesquisa qualitativa que se pauta justamente nas premissas básicas até
aqui discutidas, pautada em particularmente, no estudo de caso.
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Revista Perspectiva Amazônica
Ano 4 N° 8 p.30-43
Responsabilidade Civil do Juiz por Atos Culposos
no Exercício da Atividade Judicial
Peter Xavier Hager *
RESUMO
Este artigo apresenta como objetivo principal encontrar fundamentos fáticos e jurídicos para se determinar a
responsabilidade civil do juiz no exercício da função jurisdicional em razão dos danos causados por erros
judiciários ou mesmo pela demora na resolução da lide. Compreendendo uma análise histórica da
problemática, a partir da completa irresponsabilidade do Estado até a sua atual responsabilidade objetiva por
atos jurisdicionais. Realizando uma análise da soberania do Poder Judiciário, da coisa julgada, da falibilidade
humana, da independência do juiz e da ausência de normas específicas como prováveis obstáculos
encontrados para a formação de uma jurisprudência a respeito da responsabilização do Estado e do magistrado
em nosso sistema judiciário. Abordando, de forma mais específica, a responsabilidade civil do magistrado na
modalidade culposa, e como consequência a responsabilização do próprio Estado, e possíveis formas
alternativas de solucionar este problema encontrado na função típica do Poder Judiciário. Fazendo a utilização
de pesquisa bibliográfica, descritiva e histórica, e de material doutrinário, legal, prático e jurisdicional.
Palavras-chave: responsabilidade civil - responsabilidade estatal - responsabilidade do juiz
ABSTRACT
This article presents as main goal to find factual and legal grounds to determine the civil liability
of the judge in the exercise of the judicial function because of damage caused by miscarriages of
Justice or even for the delay in the resolution of the dispute. Understanding a historical analysis of
the problem, from the complete irresponsibility of the State until its current strict liability for
judicial acts. Conducting an analysis of the sovereignty of the Judiciary, of res judicata, of human
fallibility, the independence of the judge and the absence of specific standards as proba ble
obstacles to the formation of a jurisprudence regarding the accountability of the State and the
magistrate in our judicial system. Addressing, in a more specific, the civil liability of the
magistrate in wrongful mode, and as a result the State's own accountability, and possible ways to
solve this problem found in the typical function of the judiciary. Making use of doctrinal material,
legal, judicial and practical.
Keywords: civil liability - State responsibility - responsibility of the judge
*Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA); Especialista em Direito Processual Civil e Trabalhista pelas Faculdades
Integradas do Tapajós (FIT); Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires (UBA); professor de Direito Processual
Civil nas Faculdades Integradas do Tapajós (FIT). E-mail: [email protected] / [email protected]
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Introdução
O trabalho foi desenvolvido e estimulado pela carência de pesquisas e de
demandas judiciais que pleiteassem a responsabilidade do magistrado no
exercício de suas funções típicas. Sendo indiscutível a importância do debate
sobre o tema da responsabilidade pessoal do juiz, pois é crescente o número de
juízes que compõe o Poder Judiciário Brasileiro, e consequentemente, são
inúmeras as hipóteses de erros judiciais em suas decisões ou omissões.
Tentar-se-á, igualmente, sem pretensão de exaurir discussões ainda vigentes, fazer
um esboço histórico pelo qual se delineou a questão da responsabilidade civil dos
magistrados no Brasil, explicando o que motivou determinado posicionamento doutrinário
ou jurisprudencial em cada momento em que surgiam as inovações legislativas.
Antes, entretanto, de se ponderar sobre a questão da responsabilidade do
magistrado, necessária se faz a averiguação de alguns pontos e opiniões acerca da
responsabilização do Estado sobre os atos jurisdicionais. A partir dessa superação,
pretende-se, pois, demonstrar que a irresponsabilidade civil do juiz diante de toda e
qualquer conduta culposa decorrente do cargo - exceto na limitada hipótese de
persistência de omissão - viola o art. 37, § 6º da Carta Suprema, que prevê a
responsabilidade do agente estatal em caso de dolo e de culpa estrita, dispositivo que
seria inaplicável ao juiz apenas diante da interpretação da lei e dos fatos.
Conseguir disponibilizar informações suficientes sobre as principais questões
acerca da função jurisdicional que se mostrem essenciais á definição do sistema
possivelmente mais adequado de responsabilidade civil a ser aplicado a seus profissionais.
Desta forma, desmistificando a irresponsabilidade civil do magistrado por atos culposos, e
tentando atenuar, ou ao menos relativizar, uma velha barreira que diz que a responsabilidade
civil por atos do poder judiciário seria o último reduto da irresponsabilidade civil do Estado.
Por intermédio dessa sistemática, procurar-se-á disponibilizar uma
dissertação a mais pragmática possível e com a utilização de pesquisas bibliográfica,
descritiva e histórica, retratando a evolução do pensamento jurisprudencial e algumas
necessárias discussões acadêmicas, porém, sem se descuidar do necessário
aprofundamento nos momentos em que o texto o exigir.
Da Irresponsabilidade a Responsabilidade Objetiva do
Estado por Atos Jurisdicionais
Atualmente, pelo fato de ser evidente a falibilidade do Estado, não podemos
mais aceitar a irresponsabilidade civil do Estado como a doutrina e a jurisprudência
anterior pregava, e que vigorou durante muito tempo. Era denominada de teoria
regalista, feudal ou da irresponsabilidade, onde seu fundamento era o fim básico do
Estado, em que um funcionário causando danos a terceiros, fazia-o sob sua própria
responsabilidade, e não responsabilizando o ente do qual era preposto.
Assim,
Os lesados não tinham o direito de interpor ação contra o Poder Público e, num
primeiro momento, nem mesmo contra o causador do dano.
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Posteriormente, passaram a dispor da possibilidade de acionar apenas o próprio
funcionário causador do dano para reclamar a respectiva reparação, mas jamais
contra o Estado, cuja ação quase sempre restava frustrada frente à insolvência do
funcionário, que não possuía patrimônio particular suficiente para reparar o dano
(NANNI, 1999, p. 98).
Constata-se então que, nas constituições brasileiras de 1824 e a de 1891, os
agentes do Estado eram direta e unicamente responsabilizados pelos prejuízos
provocados por casos de omissão ou abuso no desempenho de suas funções. O Estado
nenhuma responsabilidade assumia perante terceiros prejudicados por atos de seus
servidores, pois a responsabilidade pecuniária era considerada um obstáculo perigoso á
execução de seus serviços. Dessa forma, a Constituição Política do Império do Brasil
de 1824 em seu art. 179, assim declara e inscreve: “[...] XXIX - os empregados
públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticados no exercício
das suas funções e por não fazerem efetivamente responsáveis aos infratores”.
Assim como na Constituição Federal de 1891:
Art. 82. Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e
omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela
indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus
subalternos.
Parágrafo único. O funcionário público obrigar-se-á por compromisso formal, no
ato da posse, ao desempenho dos seus deveres.
É importante expor que, em seguida passou-se a responsabilizar o Estado,
com fulcro na teoria civilista subjetiva, segundo os ditames do direito civil, relativo
aos atos dos prepostos e mandatários, baseada na culpa. Do art. 15 do então Código
Civil, derivou o entendimento de que a teoria da culpa foi implantada como
fundamento da responsabilidade civil do Estado ligada, portanto ao caráter subjetivo.
Nas Constituições Federais de 1934 e de 1937, passou ser adotada a
responsabilidade solidária. O interessado podia mover a ação em desfavor do Estado,
do agente público ou de ambos, ou então requerer o cumprimento de sentença contra
ambos ou apenas um deles, segundo o seu critério de conveniência e oportunidade.
Desta forma a Constituição Federal de 1934 tratava:
Art. 171. Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a
Fazenda nacional, estadual ou municipal por quaisquer prejuízos decorrentes de
negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos.
§ 1º Na ação proposta contra a Fazenda pública, e fundada em lesão praticada por
funcionário, este será sempre citado como litisconsorte.
§ 2º Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá execução contra o
funcionário público.
E de maneira semelhante, a Constituição Federal de 1937 em seu Art. 158,
assim declara e inscreve: “Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente
com a Fazenda nacional, estadual ou municipal por quaisquer prejuízos decorrentes
de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos”.
A partir da promulgação da Constituição de 1946, ocorreu a grande alteração para
a responsabilidade objetiva do Estado, introduzida normativamente da seguinte forma:
Art. 194. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis
pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade causem a terceiros.
Parágrafo único. Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do
dano, quando tiver havido culpa destes.
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Sendo assim a responsabilidade estatal passou a ser objetiva, cujas disposições
constitucionais foram praticamente reproduzidas na Carta de 1967 (art. 105) e na emenda
n. 1 de 1969 (art. 107), ao passo que os funcionários causadores do dano respondiam
regressivamente quando tivessem agido com culpa.
Finalmente, a Constituição Federal de 1988 assim tratou a matéria:
Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecera aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte:
[...] § 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes,
nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o
responsável nos casos de dolo ou culpa.
Portanto, adotou a teoria da responsabilidade objetiva e determinando de forma
expressa a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público, estendendo-a ás de
direito privado, prestadoras de serviços públicos. Colocando também os agentes
causadores do dano como responsáveis, quando agirem com culpa ou dolo,
vislumbrando-se que o Poder Público responde objetivamente (não se perquire o
elemento subjetivo da conduta do agente como pressuposto da responsabilidade estatal;
responde o Estado independentemente de terem agido com dolo ou culpa, isto é,
objetivamente), deste perante o terceiro lesado, ao passo que os agentes somente podem
ser responsabilizados com fulcro na responsabilidade subjetiva, sendo necessária a
apuração da conduta do agente e sempre levando em consideração a sua intenção.
Entretanto, mesmo sendo determinada a responsabilidade objetiva desde a
Constituição de 1946, sustentava-se a irresponsabilidade do Estado pelos atos e omissões
dos juízes, sob a fundamentação de que esta adviria da independência da magistratura, da
soberania do Estado, e de outros argumentos. O próprio Supremo Tribunal Federal
propagou durante muito tempo que o Estado não era civilmente responsável pelos atos
do Poder Judiciário, com exceção dos poucos casos previstos em lei, sob o fundamento
de que não existe disposição legal específica para tanto (NANNI, 1999).
Segue uma das ementas neste sentido:
C O N S T I T U C I O N A L - A D M I N I S T R AT I V O - C I V I L –
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: ATOS DOS JUÍZES - CF,
ART. 37, § 6º. I – A responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos dos
juízes, a não ser nos casos expressamente declarados em lei. Precedentes do
Supremo Tribunal Federal. II - Decreto judicial de prisão preventiva não se
confunde com o erro judiciário, CF, art. 5º, LXXV, mesmo que o réu, ao final da
ação penal, venha a ser absolvido. III - Negativa de trânsito ao RE. Agravo não
provido (STF, RE 429518 AgRg/SC, 2ª T., Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 1
28.10.2004).
Além disso, apesar de ser incontestável e incontroverso que a Constituição
Federal de 1988 reconhece que o Estado é civilmente responsável pelos atos
jurisdicionais que causem danos aos particulares, e que a referida Carta Magna não
trouxe qualquer limitação no art. 37 no que tange aos atos jurisdicionais, existem
ainda argumentos da irresponsabilidade (VENOZA, 2012).
O primeiro destes argumentos a favor da irresponsabilidade era a soberania do
Poder Judiciário, porém soberano não são os Poderes do Estado, e sim a unidade da
República, separada em três poderes por construção política, pragmática, de racionalização
das funções e de controle recíproco, de onde se conclui a impropriedade do argumento.
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Apesar do argumento da segurança jurídica, adquirida com a estabilidade da
sentença, que impediria a reclamação contra o Estado em uma ação indenizatória por
iniciar um novo litígio sobre o caso com decisão já transitada em julgado, esta referida
coisa julgada não seria justificativa para impedir ou dificultar a responsabilidade do
Estado, já que a responsabilidade não se origina obrigatoriamente em decisões
definitivas e imutáveis, pois outras existem, ainda no curso do processo, que podem
ocasionar lesão aos sujeitos da relação processual.
A falibilidade humana poderia justificar o cometimento de erros pelos magistrados
em suas funções típicas, entretanto isso acaba por reconhecer a possibilidade de erros, e
consequentemente a responsabilização Estatal, que não pode se furtar a reparação.
O risco assumido pelos jurisdicionados, decorrente do funcionamento do
aparelho judiciário, também é levantado por alguns, como fundamento da
irresponsabilidade, porém as atribuições do Poder Judiciário só pelo mesmo podem
ser executadas, consequentemente deve ser responsabilizado pelos danos causados.
A independência da magistratura, critério de não submeter os juízes a pressões
que possam paralisar a autonomia funcional tornando-os receosos de tomar decisões
pelas futuras consequências, também não pode ser considerada um obstáculo a
responsabilidade estatal, pois a responsabilidade do juiz advém de previsão legal, e a
independência estaria garantida, pois num primeiro momento, a responsabilização
seria do Estado e não de seus magistrados.
Desta forma,
Desenvolveu-se uma doutrina de suporte ao sistema de responsabilidade civil
instituído, principalmente, a partir de 1988, por meio de conceituadas opiniões,
como as de que só se justificaria uma jurisdição em que o controle do Poder
Judiciário pela sociedade e pelos próprios juízes é um requisito da democracia e,
além disso, será a garantia de eliminação das ações e omissões, que ocultadas ou
protegidas pelo pretexto da preservação da independência, impedem o Judiciário
de ser um verdadeiro Poder democrático (DALLARI, 1996, p. 75).
Por derradeiro, alguns juristas comentam que a falta de texto legal expresso seria
justificativa para não responsabilizar o Estado por atos típicos de seus agentes, o
Supremo Tribunal Federal confirmou várias vezes que o Estado não pode ser civilmente
responsável pelos atos do Poder Judiciário, salvo quando tiver previsão em legislação
formal, pois a aplicação da justiça é fundamento da soberania e essencial a ordem
pública e manutenção estrutural do Estado. Entretanto, a própria Constituição Federal
traz em seu artigo 37, § 6º, a possibilidade de aplicação geral da responsabilização por
qualquer ato ou omissão praticados por qualquer um dos Poderes do Estado e em todas
as esferas, sendo por isso sem importância a previsão legal. Além disso, é principio
universal de Direito que todo prejuízo, praticado injustamente, deve ser reparado.
Desta forma, os argumentos pela irresponsabilidade anteriormente relatados,
não possuem respaldo jurídico, consequentemente tratando da relação entre Estado de
Direito e responsabilidade, podemos sintetizar:
Por tudo isso não cremos que se possa, no moderno Estado de Direito, colocar
qualquer dúvida sobre a existência do princípio da responsabilidade do Estado
nos casos em que falte texto expresso de lei dispondo sobre a matéria.
Igualmente, parece-nos sem fomento jurídico satisfatório buscar apoio em regras
do direito privado para sustentar-lhe a espinha dorsal do Estado de Direito
(BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 478).
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Não se estabelece distinções entre conduta dolosa ou culposa, porque ambas,
independentemente da atuação jurisdicional podem ocorrer na esfera civil ou penal,
desde que tenham causado dano, originam o dever de indenizar, visto que o art. 5º da
Constituição Federal estabelece que “o Estado indenizará o condenado por erro
judiciário”, não fazendo distinção em razão da esfera de atuação do magistrado.
Segundo Canotilho (1998), o Estado poderia especificamente ser
responsabilizado por atitudes ilícitas dos magistrados, mesmo em situações que não
se enquadrem nas de responsabilidade penal ou disciplinar dos mesmos. Assim,
No entanto, podem descortinar-se hipóteses de responsabilidade do Estado por
actos ilícitos dos juízes e outros magistrados quando: (1) houver grave violação
da lei resultante de <<negligencia grosseira>>; (2) afirmação de factos cuja
inexistência é manifestamente comprovada pelo processo; (3) negação de factos,
cuja existência resulta indesmentivelmente dos actos do processo; (4) adopção
de medidas privativas da liberdade fora dos casos previstos na lei; (5) denegação
da justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do magistrado no cumprimento
dos seus deveres funcionais (CANOTILHO, 1998, p. 463).
Nossos tribunais também reconhecem a responsabilidade civil do Estado
pelos atos jurisdicionais:
R E S P O N S A B I L I D A D E C I V I L D O E S TA D O - AT U A Ç Ã O D E
MAGISTRADO - REPARAÇÃO DE DANOS - INDENIZAÇÃO - 1. A
ausência de prequestionamento dos arts. 49, inciso I, da Lei Orgânica da
Magistratura e 131 do Código de Processo Civil atrai o óbice das Súmulas 282 e
356/STF. 2. Como o valor da indenização por dano moral é de difícil aferição, o
quantum declinado pelo autor na inicial, a título de dano moral, é sempre feito
por estimativa, sem que isso desfigure a certeza do pedido. 3. Afastada a
indenização por danos materiais, mas concluindo-se pela existência do dano
moral, pode o Tribunal fixá-la por estimativa, independentemente do pedido
formulado pelo autor, podendo vir a ser fixada em quantum inferior ao requerido,
inclusive, sem que isso represente sucumbência parcial. Precedentes. 4. É
possível majorar ou reduzir o valor fixado como indenização, em sede de recurso
especial, quando entender irrisório ou exagerado, por se tratar de discussão
acerca de matéria de direito, e não de reexame do conjunto fático-probatório.
Precedentes. 5. Estando a indenização fixada em valor excessivo, deve ser
reduzida para o valor certo de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), importância
que está em harmonia com o entendimento pacífico desta Corte. 6. Recurso
especial conhecido em parte e parcialmente provido (STJ, REsp 299.833/RJ (2001/0004193- 0) - 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, DJU 15.12.2006).
O Estado como sujeito de direitos que presta a função jurisdicional, tem o
dever de reparar os danos causados aos jurisdicionados decorrentes de suas
atividades, e esses danos podem se originar de atos ilícitos, comissivos ou omissivos,
infringindo o dever de legalidade, bem como se originar de atos lícitos, quando o ato
praticado comissivo ou omissivo, causaram prejuízo ao jurisdicionado, e como
exemplo típico dessa responsabilidade estatal tem a ocorrência de uma denegação de
um pedido de medida liminar em mandado de segurança e o consequente perecimento
do direito do impetrante (NANNI, 1999).
Assim,
El compromiso de “afianzar la justicia” estabelecido em el Preámbulo y el precepto
general del derecho alterum nom laedere no admiten excepciones. De allí se sigue
que la garantía de independência o imparcialidad no puede constituir um obstáculo
AL deber de resarcir a cargo del Estado-juez. La admisión de dicha
responsabilidad, aun cuando sea restrictiva y este sujeta – em algunos casos – a
ciertos requesitos, ES la saludable tendencia que exhiben diversos fallos em
materia de reparación estatal (GUERSI, 2003, p. 68).
Desta maneira, é indubitável que o Estado tem o dever de ressarcir os danos
provocados por seus representantes e mandatários, pois do contrário seria estimular o
erro e a impunidade.
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Responsabilidade Civil do Magistrado no Exercício da
Função Jurisdicional
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O objeto principal deste artigo, a responsabilidade pessoal do juiz, é um assunto
pouco analisado em todos os ramos do Direito. Pois é tarefa extremamente difícil
responsabilizá-lo, isso porque tentar aplicar sanções e penalidades a tal representante
judicial é quase uma afronta ao conceito de justiça tendo em vista que os juízes são
considerados, por muitos, como seres superiores que suportam o “peso da justiça” e
detêm o poder de decidir questões de extrema importância, além de não falharem em
seu ofício, exceto alguns erros de ordem material, que podem ser facilmente corrigidos.
Os magistrados, no entanto, não são isentos de responsabilidades por suas
irregularidades comportamentais, sendo estranha ao direito, não encontra suporte
jurídico, pois a imunidade representaria a própria inversão dos ditames por ele
indicados, sob pena de se instaurar uma impunidade. Coerente seria a conciliação da
necessidade de exigir a responsabilidade civil dos juízes pelos erros que cometa, com a
independência e a autoridade que precisam para exercer suas funções, impedindo
vinganças pessoais e manobras vexatórias das pessoas que foram julgadas, ou não deixar
os juízes permanentemente expostos ao simples descontentamento da parte vencida, e o
foro terminaria por se transformar numa multiplicação exacerbada de ações contra eles.
O equívoco é que se tem usado a independência do juiz como escudo para
defender a sua irresponsabilidade, principalmente por atos culposos. Trata-se, pois, de
uma evasiva, um pretexto para agasalhar o último reduto da irresponsabilidade civil, típico
de regimes tiranos e absolutamente incompatíveis com Estados democráticos de direito.
Com a possibilidade de responsabilização direta do magistrado ocorre
inegavelmente uma pressão psicológica eficaz, pois atinge pessoalmente o magistrado
em seu patrimônio, diferente do que ocorre, por exemplo, no sistema de duplo grau de
jurisdição e no recursal em que a decisão do juiz é controlada, sem qualquer
consequência para o magistrado, salvo as raríssimas hipóteses em que a reforma ou a
anulação de uma decisão produza efeitos na esfera disciplinar (FILHO, 1996).
Outro aspecto diz respeito sobre em quem incidiria a responsabilização, pois
se a ação ou omissão é proveniente de um magistrado de primeiro grau, a questão é
incontroversa, mas se for cometido em um julgamento colegiado, surge à
controvérsia se existiria a possibilidade de responsabilização. Não podemos
generalizar o ato doloso, estendendo-o a todos os membros do colegiado, pois neste
caso, quando não for possível individualizar o agente que agiu contra a lei, não se
poderá responsabilizar qualquer magistrado de forma individualizada, mas somente o
Estado, quando cabível (NANNI, 1999).
O principal fundamento legal de responsabilização pessoal do juiz é o Código
de Processo Civil, como se observa abaixo:
Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando:
I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
II – recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar
de ofício, ou a requerimento da parte.
Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no n. II Sá
depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a
providência e este não lhe atender ao pedido dentro de 10 (dez) dias.
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Assim, o art. 133 do CPC, responsabiliza o juiz quando atuar com dolo ou
fraude e, de oficio ou a requerimento da parte. Passa o magistrado a ter o dever de
reparar o prejuízo ocasionado ao jurisdicionado, mediante apuração em perdas e danos,
que engloba tanto os danos emergentes, como os lucros cessantes, e categoricamente, o
dano moral. Sempre que possível, deve-se procurar uma readmissão de forma
específica e abrangente, ou seja, reconstituindo a situação anteriormente existente,
como se o dano nunca tivesse advindo. E este dano pode ser sofrido não só pela parte,
mas também por outros sujeitos do processo, como o advogado, procurador, membro
do Ministério Público, defensores públicos e pessoas jurídicas de direito público.
As primeiras condutas, dolosa ou fraudulenta, podem ser ocasionadas tanto de
uma atitude comissiva quanto omissiva, em qualquer tipo de processo ou
procedimento, em qualquer fase, e não somente na sentença. O dolo, esta relacionado à
violação de um dever de ofício (não necessariamente um proveito pessoal a ser
auferido pelo juiz), enquanto a fraude se relaciona a malicia do juiz, com intuito de
fraudar a lei ou as partes (envolve uma ligação do juiz com uma das partes ou com
terceiro estranho ao processo), mediante engano. Como exemplo, temos quando, por
animosidade à parte autora, o juiz denega um pedido liminar, originando prejuízos; ou
quando, por omissão, que não se declara impedido em virtude de presunção absoluta de
parcialidade (NANNI, 1999).
As hipóteses do inciso II, do art. 133, prevê a responsabilização do juiz
quando recusa, omiti ou retarda, sem justo motivo, providencia que deva ordenar de
ofício ou a requerimento da parte. Esta hipótese será abordada no tópico seguinte de
maneira específica.
Existe ainda, especificamente, o artigo 49 da LOMAN (Lei Orgânica da
Magistratura Nacional) praticamente repete o artigo 133 do Código de Processo Civil,
apenas substituindo a palavra “juiz” por “magistrado”, consequentemente as
considerações feitas são aplicáveis aos dois dispositivos. Porém, a importância
específica do dispositivo da LOMAN, está apenas na ampliação da aplicação, da
referida responsabilidade, a todos os ramos do direito, como o criminal, militar,
eleitoral, e não apenas aos magistrados contidos no regime do Código de Processo
Civil. Em todos estes dispositivos legais a referida responsabilidade pessoal do
magistrado é flagrantemente diferente da responsabilidade dos demais agentes
públicos, pois possui disciplina especial.
Ponto importante a ser abordado dentro da responsabilidade civil do juiz, seria
determinar a legitimação passiva da ação de reparação de danos. Essa ação não tem o
objetivo de intrometer-se na outra ação que originou a conduta faltosa do juiz, que
continua inalterável, ainda que passada em julgado, serve a ação contra o juiz apenas
para apurar sua atitude contrária ao direito dentro de um processo específico, e não
como um substituto recursal para se obter uma reforma do julgado.
Desta maneira, o lesado é que deve escolher pela interposição da ação contra o
magistrado, com base nos casos previstos em lei, ou somente contra o Estado, que
fora das previsões legais não pode acionar regressivamente o juiz, ou ainda contra
ambos. Entretanto, se impetrada com base na responsabilidade objetiva do Estado,
apenas este pode se enquadrar no lado passivo, não sendo permitida a inclusão do
agente no litígio; e quando a pretensão indenizatória é realizada com base em ato
doloso ou culposo do agente público, nas hipóteses previstas em lei para
responsabilização do magistrado, não há na legislação nenhum obstáculo a
cumulação subjetiva da ação, podendo até mesmo o funcionário faltoso ser
processado de forma isolada.
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A respeito do tema, podemos expor acertadamente, o seguinte:
A pesar de reconocerse en nuestro país - a diferencia de lo que ocurre en otras
naciones, com el Brasil - la existencia de una opción para el particular
damnificado entre inicial la acción por responsabilidad civil del magistrado o
funcionario o por responsabilidad del Estado basada en la culpa o dolo del
magistrado o funcionario, la doctrina se ha manifestado en general reacia a la
acumulación de ambas acciones. (TAWIL, 1993, p. 188).
Infelizmente a regra ainda é que o particular que sofreu o dano provocado pelo
juiz deverá impetrar a ação de indenização em face do Estado, e não contra o magistrado.
Esse entendimento foi estipulado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 327.904,
da rel. do Min. Carlos Britto, julgado em 15.08.2006 (Primeira Turma, unânime), bem
como no RE 344.133/PE, da rel. do Min. Marco Aurélio, apreciado em 09.09.2008
(Primeira Turma, unânime), arestos em que o Pretório Excelso determinou que a pessoa
que suporte o dano não pode ajuizar ação, diretamente, contra o agente público.
Responsabilidade Civil do Juiz por Atos Culposos
Provavelmente, o ponto mais importante deste artigo seria a difícil
caracterização da responsabilidade pessoal do juiz mediante culpa, prevista, num
primeiro momento, no inciso II, do art. 133, do Código de Processo Civil, e que
abrange a maior parte dos casos de atos ilícitos praticados pelos magistrados. A culpa,
na hipótese em análise, decorre da falta de descumprimento do dever legal do juiz
(deveres processuais) de determinar as providências referidas no respectivo inciso e
de cumpri-los nos prazos legais (art. 35, II, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional
- LOMAN, e art. 189, do Código de Processo Civil - CPC).
Contudo, a intenção do art. 133 do CPC e do art. 49 da LOMAN não é limitar
a responsabilidade civil do juiz, por atos jurisdicionais, às hipóteses de dolo e
omissão precedida de interpelação, e sim apenas determinar que, nessas situações,
existe a responsabilidade civil direta e pessoal do juiz. E este é o único entendimento
compatível com o art. 37, § 6º, do Texto Constitucional, que não exclui os atos
culposos em geral, tal como fazem os dispositivos legais em tela.
Existe, também, a possibilidade da ocorrência da mora, característica do
direito das obrigações, e que se desponta não só por meio da demora, mas também
quando a obrigação não for cumprida no tempo, lugar e forma convencionados. Os
jurisdicionados possuem o direito, como um credor, de receber a prestação
jurisdicional nos prazos fixados em lei, caso contrário será configurado a mora do
juiz. Contudo, para que a mesma seja constituída, o dispositivo legal exige prévia
interpelação, ou seja, depois que a parte por intermédio do escrivão requerer ao juiz
que determine a providência em dez dias, pode então o juiz sanar a obrigação, isto é,
purgar a mora. Desta forma, tipificada a hipótese como mora, estamos diante da culpa
do juiz, pois esta é incipiente na mora do devedor, como seu requisito subjetivo.
Quando a mora do juiz advir de recusa, ou seja, não ocorrendo qualquer
manifestação, deve a parte requerer ao mesmo que determine a providência. Se este
realizá-la, o problema estará solucionado; se continuar sem se manifestar, estaremos
perante uma omissão; e se recusar de forma direta e expressa, terá ainda que se ter
ponderação para afirmação de que o juiz responde pelos prejuízos, pois a recusa pode
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advir da livre análise cabível ao magistrado, de que o pedido, por exemplo, não está
fundamentado em lei (a ação do magistrado pode basear-se na interpretação que o
mesmo atribui à lei em que a parte se fundamenta para pedir a providência). Sendo
assim, a recusa, mesmo expressa, não dará lugar a qualquer reparação porque está dentro
da liberdade de julgar que possui o juiz, podendo o mesmo avaliar os fatos, as provas e o
direito. Ainda, segundo o mesmo jurista, a omissão como fundamento da mora do juiz,
significa postergar, deixar de fazer, ou seja, é a inércia do juiz frente ao ato que deveria
praticar de ofício ou a requerimento da parte; a ausência no prazo determinado na lei, por
si só, já indica a omissão, possibilitando a parte que faça a interpelação do juiz, para uma
possível responsabilidade do magistrado; e a última das atitudes do juiz é retardar,
demorar, adiar, ou seja, quando a providência for tomada fora do prazo previsto em lei,
desta forma tardiamente, onde também bastará o não atendimento no prazo e o pedido de
que a providência seja tomada no prazo de dez dias (NANNI, 1999).
Como se trata da configuração de culpa, essa aceita causas excludentes de
responsabilidade, ou seja, o caso fortuito, a força maior e, especificamente no
dispositivo legal em análise (inciso II do art. 133, do CPC), o justo motivo (a
prestação se torna incapacitada, não por motivo do devedor, mas por cominação de
acontecimento alheio ao seu poder, extingue-se a obrigação, sem que se torne o credor
merecedor de ressarcimento). Enfatizando-se que o justo motivo normalmente é o
amontoamento de serviços (excesso de processos pendentes de julgamento) no Poder
Judiciário e o número insuficiente de julgadores, impossibilitando o juiz de cumprir
os prazos processuais. Outro justo motivo seria o fato da própria parte não tomar
determinada providência para que o processo tivesse andamento (o que poderia
configurar abandono da causa e a consequente extinção do processo sem resolução do
mérito), ou seja, neste caso nada pode ser imputado ao magistrado.
Apesar desses fatores (justo motivo) serem possíveis, não basta, para inibir a
responsabilização, a simples arguição dos mesmos, há absoluta necessidade de sua
comprovação, sendo assim, cabe ao julgador da ação de ressarcimento de danos,
verificar se o justo motivo foi determinante para que aquela providência reclamada
não tenha sido tomada no prazo legal. E sempre devemos levar em consideração que
mesmo reconhecido o justo motivo para inibir a imputabilidade frente ao juiz, este
não será argumento para livrar a responsabilidade do Estado, que é objetiva e assim
não admite dispensa (NANNI, 1999).
Nas situações de denegação de justiça por parte do juiz, seja quando o juiz
nega a aplicação do direito, ou quando descuida propositalmente o
desenvolvimento de um processo, ou ainda, quando recusa, omite ou se atrasa no
cumprimento de ato de ofício, transcorrido o prazo legal, temos de relatar que, se a
demora ocorre por conta exclusiva da negligência do juiz, a responsabilidade é
deste, e passível de sanções pecuniárias, administrativas e penais, sem prejuízo
do disposto no art. 133, II, e parágrafo único, do Código de Processo Civil. Mas se
a procrastinação se dá por culpa do juiz e da falta do serviço, como comumente
ocorre, responde o Estado, com ação regressiva em desfavor do magistrado
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descuidado. Entretanto, com relação ao magistrado, é admitida a exclusão de sua
responsabilidade (quando existir justo motivo), enquanto que com relação ao
Estado a morosidade não admite a escusa, pois determinado o dano e a ausência de
decisão num prazo razoável, decorre o dever estatal de repará-lo.
Outro ponto a ser examinado é a responsabilidade do juiz pelo descumprimento
de seus deveres legais previstos nos ordenamentos jurídicos (Constituição Federal, Lei
Orgânica da Magistratura Nacional, Código de Processo Civil, Lei de Organização
Judiciária, Resoluções do Conselho Nacional de Justiça), ou seja, cominações de
comportamento que se não cumpridas caracterizam ato ilícito e, se causar danos a
outrem deve ser indenizado. Este assunto é pouco abordado por estudiosos e juristas,
pois sempre atenta-se para os deveres do juiz como um dever interno relacionado
unicamente ao Poder Judiciário (comumente fala-se em sanção disciplinar), porém, a
observância desses deveres pelo magistrado estende-se em relação a todos os
jurisdicionados e sujeitos processuais, como as partes, os advogados, os membros do
Ministério Público, as testemunhas, etc. (NANNI, 1999).
A responsabilização pelo descumprimento de seus deveres refere-se à
responsabilidade subjetiva, com a necessidade de demonstração de que o magistrado
agiu com dolo ou culpa. A configuração do dolo seria a vontade de violar um dever,
conscientemente o juiz obrou contra o direito, infringindo um dever jurídico. Entretanto
para o enquadramento quando na modalidade culposa, seria a inobservância do
comportamento que deveria ser seguido nas relações da vida em sociedade, ou seja,
segundo parâmetros sociais ou profissionais de conduta.
Para apurar a infringência dos deveres do juiz na modalidade culposa, temos
que adotar um juízo crítico de graduação de culpa, definindo-se quando seria possível,
com maior ou menor intensidade, a configuração de sua responsabilidade. Desta
maneira teríamos a culpa leve como violação de uma diligência ordinária, e a culpa
grave como violação de uma diligência mínima (ou seja, a não observação de regras
básicas de uma dada atividade profissional; uma ignorância inescusável ou uma falta de
diligência que ultrapassa totalmente o limite normal, distinguindo-se do dolo pela falta
de intenção). Porém, a culpa do juiz, dada a especialidade de sua função que apresenta
dificuldade singular, somente geraria responsabilidade no caso de culpa grave, e, além
disso, é impossível determinar previamente quando ocorrerá este grau de culpa (esta
verificação dependerá de cada caso em concreto submetido ao julgador, devendo ser
provada e quantificada para dar condições a eventual reparação de dano causado).
Igualmente corrobora com esse entendimento, a importante e necessária análise
de Canotilho (1998), que pondera sobre a responsabilidade dos magistrados em vários
países, e concorda com a obrigação de indenização na ocorrência de privação
inconstitucional ou ilegal da liberdade, e nas hipóteses de erro judiciário, onde o
Estado-juiz pode e deve ser responsabilizado em outras hipóteses de culpa grave
(conduta gravemente negligente), quando resultassem prejuízos consideráveis aos
particulares. Entretanto, o mesmo doutrinador, adverte sobre a necessidade de cautela
(onde devem ser afastados de plano os casos de responsabilização por atos de
interpretação das normas jurídicas, e na valoração dos fatos e das provas), caso
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contrário, existiria a possibilidade de paralização do funcionamento da justiça ou de
atingir consideravelmente a independência dos magistrados.
Dentro desses casos, temos primeiro o dever do juiz que é cumprir a lei. Desta
forma, uma decisão que claramente contraria a lei configuraria uma grave violação de
seu dever, realizada sem um mínimo de diligência que deve ser exigida do juiz
(profissional preparado, letrado, concursado, etc.), não se admitindo tal
comportamento, provocando a obrigação de ressarcir possíveis prejuízos provocados
em razão da decisão, configuraria a culpa grave. Seriam os mais graves e inescusáveis
erros de direito, como a aplicação de normas claramente declarada inconstitucional ou
revogada, e até mesmo, casos de interpretação jurídica incontrovertidamente sem
fundamento. Como exemplo, poderíamos citar o caso de um magistrado aplicar os
dispositivos da Lei n. 6.649/79, que cuidava das locações de imóveis urbanos, a um
contrato de locação de hoje, que é regido pela Lei 8.245/91.
Um fato a ser analisado é a existência de erro grosseiro quando o magistrado se
utiliza de uma interpretação de lei revogada ou ab-rogada por um Tribunal Superior,
mas que outro Tribunal aplique. De fato, os magistrados têm de ser livres na
interpretação da lei, porém isso não significa que podem atuar arbitrariamente, pois
assim seriam verdadeiros opressores e não agiriam em favor da sociedade, que é seu
dever, dever do Estado-Juiz (LASPRO, 2000).
Outra hipótese de responsabilidade do juiz em razão do descumprimento de seus
deveres, importante de ser comentada, é o dever do magistrado de tratar com urbanidade
as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os
funcionários e auxiliares da Justiça, previsto no inciso IV, do art. 35, da Lei Orgânica da
Magistratura Nacional, conduta conhecida hodiernamente por “juizite”. Não podendo
assim fazer menção pessoal, seja quanto a suas qualidades, defeitos, ações, etc., ou,
ofensa moral, podendo ser configurado não só o dano material, mas também dano moral.
Mesmo que a legislação não aborde o assunto com maior propriedade,
definitivamente percebemos que a doutrina majoritária, e parte da jurisprudência, entendem
que, ao menos, nos casos de culpa grave há a responsabilização do magistrado. E tem
entendido o Supremo Tribunal Federal em matéria trabalhista a equiparação da culpa grave
ao dolo, proferindo a súmula 229 e julgados nesse sentido, conforme jurisprudência verbis:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. CULPA
GRAVE EQUIPARAÇÃO AO DOLO. SÚMULA 229--STF. TENDO-SE
COMO HAVENDO OCORRIDO CULPA GRAVE DO EMPREGADOR
NO ACIDENTE DO TRABALHO, DE QUE RESULTA MORTE, E
TENDO SIDO O EVENTO POSTERIOR A LEI N.5316/67, APLICA-SE A
JURISPRUDÊNCIA CONSUBSTANCIADA NA SÚMULA 229-STF,
SEM EXAME ANTE A LEI N. 6367/76, AINDA NÃO VIGORANTE A
ÉPOCA.
(STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 107774 SP. Relator (a):
ALDIR PASSARINHO. Julgamento: 30/05/1986. Órgão Julgador: Segunda
Turma. Publicação: DJ 27-06-1986 PP-11620 EMENT VOL-01425-03 PP00545).
Sendo assim, por analogia ao que entende o Supremo Tribunal Federal em
matéria trabalhista, e utilizando esta decisão em matéria de responsabilidade civil
pessoal do juiz, já que o respectivo Tribunal entende ser a culpa grave análoga ao
dolo, este é condição para a responsabilização do magistrado. Desta forma, estaria
também, de outro modo, individualizada a responsabilidade do magistrado quanto a
atos negligenciados, imprudentes e de imperícia em situações de culpa extremada.
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Considerações Finais
O Estado inicialmente era tido como irresponsável por atos ou omissões de
seus agentes e representantes, incluindo os membros do Poder Judiciário. Com o
decorrer do tempo, este entendimento foi suplantado, passando-se por várias teorias
até chegar-se à teoria do risco, a qual serviu de base para a responsabilidade objetiva.
No Brasil, hodiernamente, os textos constitucionais adotam a teoria da
responsabilidade objetiva do Estado desde a Constituição Federal de 1946, com
previsão na atual Constituição no art. 37, § 6º.
Fundamentalmente a liberdade de julgar deve continuar inabalável, porém,
um ato praticado mediante culpa, contrário à lei, infringindo o dever jurídico do
magistrado, indubitavelmente ocasiona a sua responsabilidade pessoal, e não apenas
a do Estado, não tendo nenhum respaldo a alegação da coisa julgada, da falibilidade
humana, da independência do juiz e da ausência de normas específicas como
obstáculos encontrados para a esta referida responsabilização e a consequente criação
de uma fundamentação jurisprudencial nesse sentido.
Sendo acertado, com base nos fatos e argumentos levantados, defender a
responsabilização do magistrado também nas hipóteses culposas, que não se limitam
às elencadas no inciso II, do art. 133, do Código de Processo Civil, onde a realização
meramente culposa do juiz ocorre quando este viola o seu dever de profissional de
diligência. Desta forma, segundo Nanni (1999), é insuficiente até mesmo o duplo
enquadramento da responsabilidade civil do juiz apenas nas hipóteses dos artigos 133
do Código de Processo Civil e 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional,
corroborando injustificadamente com a irresponsabilidade, pois a aplicação prática
desses dispositivos não se mostra factível, vez que, enquanto são poucas as hipóteses
de dolo do magistrado, muitas são as situações em que a conduta negligente ou
imprudente do magistrado termina por causar dano injusto aos jurisdicionados.
Sendo assim, provada a negligência ou imprudência do juiz, e independentemente de
prévia interpelação, a vítima deve demandar o Estado ou diretamente o próprio
magistrado, ou mesmo ambos. São as hipóteses de culpa que formam a maior
motivação para se aprofundar a análise, critica e consequentemente o
desenvolvimento da responsabilização pessoal do referido profissional.
Constantemente percebemos o aprimoramento do instituto da responsabilidade
civil, em relação à responsabilização do Estado por erro judicial por meio de lei, teoria e
julgados já proferidos nesse sentido, e também quanto à responsabilização do magistrado
(seja qual for a atitude errada, para reparar o dano causado, e se colocar um limite nos
comportamentos do mesmo enquanto ser humano e passível de erros) consoante a lei em
casos de culpa grave ou dolo, sempre analisando novos entendimentos que surgem no
sentido de expandir esse rol de responsabilização, visando equiparar a profissão às
demais profissões, do ponto de vista de democracia e igualdade social.
Excelente conclusão é tomada por Zaffaroni (1992), quando defende que a
ciência jurídica latino-americana deveria aprofundar a análise da estrutura
institucional do Poder Judiciário, e esse Poder deveria ser menos ausente nos estudos
e pesquisas realizados nas universidades, ampliando assim a investigação sociológica
dos magistrados e suas funções sob a perspectiva politica.
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O Poder Judiciário precisa de uma nova estruturação e ampliação, melhoras
que permitam a agilidade da prestação jurisdicional (ao menos o cumprimento dos
prazos previstos em lei), principalmente em uma sociedade que recorre cada vez mais
às portas desse Poder. Além disso, o aprimoramento doutrinário e jurisprudencial
constante dos nossos magistrados é um ponto essencial para um melhor exercício de
suas funções. Deste modo, não permitindo que se conspurque esta vital atividade, e ao
mesmo tempo preservando-a como requisito obrigatório para almejarmos uma vida
mais digna e justa.
Observa-se, entretanto, que é necessário resguardar também o próprio
julgador, que necessita de independência e autonomia para realizar seu ofício, desta
forma a jurisprudência deve levar em conta as causas excludentes de
responsabilidade como o caso fortuito, a força maior e o justo motivo, além das
possíveis condutas de má-fé dos possíveis lesados que busquem acionar o juiz
somente com a intenção de prejudicá-lo, ou quando absolutamente infundadas,
aplicando nestes casos, as penas processuais cabíveis.
Finalmente, é fundamental a busca pelo balanceamento entre independência e
responsabilidade, para conseguirmos punir os magistrados imprudentes. Sendo
importante que os jurisdicionados, percam o receio no insucesso da demanda e
busquem a responsabilização dos faltosos (mesmo nos casos de conduta culposa),
criando limites no atuar do juiz, pois também é ser humano passível de falhas, e estas
obrigatoriamente devem ser reparadas. Desta forma, exigindo a compensação pelos
prejuízos cunhados, e consequentemente, a própria evolução, engrandecimento e
aprimoramento da função judicial.
Referências
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.
Curso de Direito Administrativo. 30. Ed. Malheiros: 2013.
CANOTILHO, J. J. Gomes.
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 1998.
DALLARI, Dalmo de Abreu.
O Poder dos Juízes. 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
FILHO, José Carlos A. Almeida.
A Responsabilidade Civil do Juiz. 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
GUERSI, Carlos A.,
Responsabilidad de los jueces y juzgamiento de funcionarios. Bs. As., Astrea, 2003.
LASPRO, Oroeste Nestor de Sousa.
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Revista Perspectiva Amazônica
Ano 4 N° 8 p.44-60
Estudos sobre os Impactos das Enchentes na Economia do Município de
Santarém, Estado do Pará, em 2014
José de Lima Pereira *
RESUMO
Este estudo tem como objetivo avaliar os impactos das enchentes na economia do município de Santarém, no
Estado do Pará, em 2014, bem como mensurar os prejuízos causados pelas constantes inundações a toda
sociedade, incluindo-se os setores produtivos (empresários e profissionais liberais) e os consumidores, aqui
representados por um universo de 125,3 mil domicílios. O estudo tem como base a “Teoria do
Desenvolvimento Econômico”, que dispõe sobre a oferta e a demanda por produtos e serviços em época de
enchentes no município. A metodologia escolhida foi a pesquisa de dados primários e secundários, a partir do
método Heurístico com amostra de 174 agentes econômicos que foram entrevistados no período de 05 a
25/04/2014, com nível de confiança de 97,31%. O instrumento utilizado foi o questionário estruturado com
sete perguntas objetivas e um grupo de questões que teve como alvo definir o perfil dos entrevistados por setor
da economia, segmento, classe econômica e renda e/ou receita mensal. O estudo foi desenvolvido com o uso
de planilhas, gráficos, imagens das atuais enchentes e a análise de dados, a partir de uma série de dados e
apresenta como resultado, um prejuízo econômico para a população de R$ 308,7 milhões em 2014.
Palavras-chave: enchente - impactos - economia - município
ABSTRACT
This study aims to evaluate the impact of the floods on the economy Santarem, Pará State, in 2014,
as well as measure the damage caused by the constant flooding the entire society, including the
productive sectors (businessmen and professionals) and consumers, here represented by a
population of 125.3 thousand households. The study is based on the “Theory of Economic
Development”, which deals with the supply and demand for products and services in times of
flooding in the city. The methodology chosen was the research of primary and secondary data
from the heuristic method with a sample of 174 economic agents who were interviewed between
04/05-25/2014, with a confidence level of 97.31%. The instrument used was a structured
questionnaire with seven objective questions and a group of questions that targeted define the
profile of respondents by sector of the economy, industry, economic class, and monthly income.
The study was conducted with the use of spreadsheets, graphs , images and analysis of the current
flood of data from a dataset and has as a result, an economic harm to the population of US$ 129.7
million in 2014 .
Keywords: flood impacts - economics - city
*Mestre em Economia (UNAMA) e aluno especial do doutorado em Desenvolvimento Regional (NAEA/UFPA); Conselheiro do Conselho
Federal de Economia (COFECON); Pesquisador de desenvolvimento econômico regional; professor de pós graduação de Instituições de
Ensino Superior (IES) como UEPA, UFMT, ULBRA e UNAMA; Secretário Executivo e Pesquisador do CEAMA; Diretor do Instituto de
Gestão e Tecnologia (IGT); Perito Judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Comarca de Santarém. Email: [email protected].
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Introdução
As enchentes com inundações em áreas urbanas são uma constante em muitas
cidades brasileiras e as causas são variadas como assoreamento do leito dos rios,
impermeabilização das áreas de infiltração na bacia de drenagem ou mesmo os
fatores climáticos.
Os governos por sua vez procuram combater os efeitos de uma cheia nos rios,
construindo represas, diques, ou mesmo desviando o curso natural dos rios e mesmo
com todo esse esforço, as inundações continuam acontecendo, causando prejuízos de
vários tipos com impactos significativos na economia.
Segundo Dourojeanni (2014) as enchentes com inundações sem precedentes nas
bacias do rio Amazonas e Tapajós podem ter sido influenciadas pela mudança climática
e os seus efeitos podem ou não ter sido agravados pelas grandes centrais hidroelétricas.
Ainda segundo ao autor, o que vem ocorrendo todo ano na Amazônia são
enchentes e estiagens cada vez mais fortes em consequência do crescente
desmatamento nos Andes ocidentais, ou seja, na Bolívia, Peru, Equador e Colômbia e,
claro, no próprio Brasil.
Em Santarém como nas demais cidades da Amazônia, no decorrer dos anos, a
gestão pública não tem incentivado a prevenção destes problemas, já que à medida que
ocorre a inundação o município declara estado de calamidade pública e recebe recursos
a fundo perdido que não há a necessidade de realizar concorrência pública para gastar.
Para se resolver o problema da zona urbana da cidade, se faz necessário
implementar medidas não-estruturais que demandam da interferência em interesses
de proprietários de áreas mais baixas e de risco, que politicamente é complicado a
nível local e regional.
Enquanto isso não acontece, percebe-se que os impactos sobre a população e a
economia dos municípios da região no decorrer dos anos, vem sendo causados,
geralmente, pelas ocupações inadequadas dos espaços urbanos, o que contemplaria
imediatas mudanças nos Planos Diretores das cidades com restrições a loteamentos
com áreas de riscos de inundações, restrições à invasões de áreas ribeirinhas, que
pertencem ao poder público, pela população de baixa renda, além das ocupações de
áreas de alto risco, que sofrem com mais frequências, com prejuízos significativos e
que, por cadeia, acabam afetando toda a economia local.
Além dos prejuízos econômicos ao município, que neste estudo se chegou a
R$ 308,7 milhões em: perdas de postos de trabalho, perdas de estoques de
mercadorias das empresas, redução drásticas no nível de vendas, elevação do índice
de inadimplência, dificuldades de abastecimentos além de outros, outros prejuízos
sociais mais significativos também foram contabilizados, dentre os quais: perdas
materiais e humanas, interrupção das atividades econômicas nas áreas inundadas,
contaminação por doenças de veiculação hídrica (leptospirose, cólera, diarreias e
outras) e a contaminação da água pela inundação de depósitos de material tóxico na
agricultura, estações de tratamentos de água, além de tantos outros.
Foi em busca de se conhecer, de forma científica, toda a problemática das
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inundações em Santarém que as entidades: ACES, CDL e SINDILOJAS se uniram
para mensurar os reais impactos das enchentes na economia do município e assim
poder dividir com a população e o poder público municipal, as consequências, seus
efeitos e o tamanho do prejuízo à toda população.
O Estudo foi realizado na zona urbana do município de Santarém com
entrevistas diretas com 174 agentes econômicos (empresário, profissionais liberais e
consumidores) no período de 05 a 25/04/2014. O nível de confiança da pesquisa
chegou a 97,31% e o método utilizado foi o Heurístico.
Contextualização Problemática
As constantes elevações das águas dos rios Tapajós e Amazonas tornou-se
motivo de preocupação para centenas de famílias que residem em comunidades
localizadas nas zonas de várzea, nas áreas mais baixas do zona urbana de Santarém
causando impactos significativos na economia do município.
Se por um lado os ribeirinhos temem ser afetados pela enchente da mesma
forma como aconteceu no ano de 2009 quando foi registrada a maior cheia da região,
onde muitas propriedades foram alagadas, afetando diretamente a agricultura e a
pecuária, por outro, empresários do setor produtivo já começam a contabilizar prejuízos
com perda de estoque de mercadorias, perda de negócios e a consequente redução nas
vendas, elevação das taxas de inadimplência, gastos com mudanças de endereços ou
com investimentos em obras emergentes contra cheias, dificuldades de abastecimento,
demissão de pessoal e a elevação dos preços provocando maior taxa de inflação.
Com a proposta de buscar solução para amenizar o problema das enchentes e
seus impactos causados na economia do município, as entidades: ACES – Associação
Comercial e Empresarial de Santarém, CDL – Câmara de Diretores Lojistas de
Santarém e SINDILOJAS – Sindicato do Comércio Lojista de Santarém, entidades
importantes que representam o setor produtivo da economia de Santarém e região, se
uniram em busca de entender as reais consequências das enchentes na vida de
empresários, profissionais liberais e consumidores do município, através de um
estudo que apresentasse toda problemática e seus impactos e também servisse de base
para uma tomada de decisão e implementação de políticas públicas.
Para que se possa conhecer um pouco mais das três entidades que representam
as classes de empresários do município e região, abaixo uma síntese descritiva da
ACES, CDL e SINDILOJAS:
ACES – ASSOCIAÇÃO COMERCIAL E EMPRESARIAL DE
SANTARÉM, entidade com 69 anos de atividades ligadas no apoio e ao
desenvolvimento do setor produtivo de Santarém e da região Oeste do Pará, que
conta com mais de 500 associados e que representa 59,3% do Produto Interno
Bruto Municipal e 18,6% do PIB regional, e que tem como foco dar
encaminhamento às medidas para fortalecer e ampliar a economia, contribuindo
para o ambiente de negócios e atraindo novos investimentos para os municípios;
(i) CDL – CÂMARA DE DIRIGENTES LOJISTAS, entidade associativa
de lojistas de Santarém que tem como objetivo defender e prover serviços os seus
representantes como o serviço de proteção ao crédito além de outros. A CDL
Santarém está ligada à Federação Nacional dos Dirigentes Lojistas e hoje
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representa mais de 30% do PIB Municipal e é também responsável pela maior
parte da geração de emprego e renda do segmento comercial do município e;
SINDILOJAS – SINDICATO DO COMÉRCIO LOJISTA DE SANTARÉM,
entidade de 24 anos que tem a missão de fortalecer a categoria lojista do município,
contribuindo para o desenvolvimento e a consolidação do comércio local com trabalhos
voltados para a modernização do setor e que hoje representa mais de 27% do PIB
Municipal, além de ser o principal fomentador de emprego e de renda do município.
Ainda prospectando sobre as enchentes de 2014, a Coordenadoria
Municipal de Defesa Civil (COMDEC) vem informando do
beneficiamento de madeira em tora doada pelo Instituo Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) ao
município de Santarém para atender as comunidades ribeirinhas com
alagamento de suas casas em decorrência das enchentes para que as
famílias possam levantar os assoalhos das casas atingidas pelas águas.
Por outro lado, no início desta semana, a Agência Nacional de Águas (ANA)
revelou que o nível do rio Tapajós em Santarém atingiu medidas próximas as das
enchentes de 2009 e a tendência é que as águas continuem subindo (Figura 1).
Imagem das cheias na Av. Tapajós em Imagem das cheias em Alter do Chão em
Santarém.
Santarém.
Maromba utilizada pra salvar o gado das Agricultura invadida pelas águas nas
enchentes.
enchentes.
Águas invadindo o centro comercial de Ponte improvisada de madeira nas atuais
Santarém.
cheias.
Imagem das cheias no Rio Ituqui em Cheias na Av. Tapajós
Santarém.
Fonte: CEAMA (2014)
Figura 1 –Conjunto de imagens das cheias em Santarém
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Diante do atual cenário e atentando para o fato de não se ter solucionado de
forma permanente o problema que persiste há muito tempo, e levando-se em conta a
situação de penúria por que passa a sociedade santarena em decorrência das
enchentes, as perguntas que se fazem são as seguintes:
Que prejuízos já estão sendo contabilizados na economia do município de
Santarém? Quem são os mais afetados pelas enchentes em Santarém? Qual o tamanho
dos prejuízos causados às empresas, profissionais liberais e aos domicílios
(consumidores) na economia do município?
Metodologia
Para responder a estas perguntas, foi necessário utilizar-se de uma seleção de
procedimentos metodológicos, dentre os quais:
Local da pesquisa
A pesquisa foi desenvolvida entre empresas e consumidores em domicílios na
zona urbana de Santarém, município que possui área 17.901,51 km², com população
de 288.462 hab. (IBGE, 2014), Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 3,219 bilhões em
2013 (CEAMA, 2014, apud SEPOF/PA 2014).
SANTARÉM
Área: 17.901,51 km² (já excluindo Mojuí dos Campos);
População: 288.462 habitantes;
Demografia: 70,3% na zona urbana e 29,7% na zona
rural;
PIB: R$ 3,219 bilhões (p.m.);
PIB Per capita: R$ 11.159,18;
Renda per capita: R$ 6.161,91
Setor Primário (agricultura, pecuária e extrativismo):
35,01%;
Setor Secundário (indústria de transformação):
14,85%;
Setor Terciário (comércio e serviço): 50,14%.
Localização: Oeste do Estado do Pará;
Situação: cidade polo que centraliza a economia de
26 outros municípios totalizando 1,4 milhão de
habitantes;
Domicílios: 125.250 unidades, 4.656 obras em
andamento;
16 instituições de ensino superior com 33.312
alunos matriculados em 69 cursos sequenciais,
graduação e pós-graduação; 76.830 alunos nos
ensino médio (normal e técnico);
11.918 micros e pequenas empresas; 1.073 médias
e 119 grandes empresas; 2.589 profissionais
liberais; 643 órgãos públicos (incluindo as escolas
Fonte: CEAMA (2014)
municipais).
Figura 2 –Dados macroeconômicos e de localização de Santarém
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Hoje o município conta com 16 instituições de ensino superior que juntas
somam 33.312 alunos matriculados em 69 cursos (INEP, 2014) e mais 76,8 mil
alunos nos ensinos técnico, médio e fundamental (INEP, SEDUC/PA e SEMED,
2014). Tem 125.250 domicílios (CEAMA, 2014), 4.656 obras em andamento
(CREA, 2014), frota de 74.419 veículos, 31.358 motocicletas, 1.584 máquinas e
implementos agrícolas, 11.311 embarcações registradas no Ministério da Marinha
(MM) e 26.995 não registradas entre grandes e pequenas. A cidade é considerada o
polo da economia regional do Oeste do Estado do Pará.
É o segundo município mais importante do Pará e o principal centro
socioeconômico do oeste do Estado. Pertence à mesorregião do Baixo Amazonas e à
microrregião homônima. Situa-se na confluência dos rios Amazonas e Tapajós. Está
localizado à meia distância entre as principais capitais da Amazônia (Belém e
Manaus), distando aproximadamente 800 quilômetros em linha reta. Poeticamente é
conhecida como “Pérola do Tapajós”.
Foi fundada em 22 de julho de 1661, sendo então a segunda cidade mais antiga
do norte do país (atrás apenas de Belém). Em 1758 foi elevada à categoria de vila e
quase um século depois em consequência de seu notável desenvolvimento foi elevada
à categoria de cidade em 1948. Está incluída no plano das cidades históricas do Brasil.
Universo de amostra
O universo da pesquisa compreende a totalidade de micro, pequenas
empresas, os micros empreendedores individuais (11.918), as médias empresas
(1.073), as grandes empresas (119), os profissionais liberais (2.589) e os domicílios
(125.250) – Tabela 1.
Item
1
2
3
4
5
Descrição
Micro e pequenas empresas
Médias empresas
Grandes empresas
Profissionais liberais
Domicílios
TOTAL
Universo
11.918
1.073
119
2.589
125.250
140.949
Web (%)
8,46
0,76
0,08
1,84
88,86
100,00
Amostra
90
8
4
11
61
174
%
51,72
4,60
2,30
6,32
35,06
100,00
Fonte: CEAMA (2014)
Tabela 1 –Universo de amostra da pesquisa
A amostra foi definida levando-se em conta o universo da população por
segmento econômico, com índice de 97,31% de confiabilidade, distribuídos em: 90
micros e pequenas empresas (51,72%); 8 médias empresas (4,60%); 4 grandes
empresas (2,30%); 11 profissionais liberais (6,32%) e 61 domicílios representados
por pessoas físicas (35,06%), totalizando 174 entrevistados. A Equação 1 definiu o
número de entrevistados de cada segmento com margem de erro de 2,69%:
2
é
ù
N .P.Q. Za / 2 )
n=ê
2ú
2
ë (N - 1)e + P.Q.(Za / 2 ) û
(1)
49
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Onde:
n = tamanho da amostra;
N = tamanho da população;
P = proporção de casos de interesses observados na população;
Q = 1 – P. Quando P é desconhecido, utilizando a proporção de 50% (P = 0,5);
Zα/2 = nível de confiança;
ɛ = margem de erro (2,69%).
Período de realização da pesquisa
A pesquisa foi realizada no período de 05 a 25/04/2014, na zona urbana do
município, por cinco pesquisadores, com a coordenação do Pesquisador e
Economista José de Lima Pereira.
Instrumento
O instrumento de coleta de dados na realização da pesquisa de campo foi o
“Questionário”, estruturado com 07 perguntas objetivas, com hipóteses prováveis
aos anseios dos agentes econômicos do município (segmentos produtivos dos três
setores da economia compreendendo os consumidores), com informações
importantes que viessem oferecer as respostas necessárias ao estudo (Figura 3).
ITENS
01
02
03
04
05
06
07
TEMAS CENTRAIS DO QUESTIONÁRIO
Setor, segmento, classe, renda e/ou receita mensal dos agentes econômicos;
Ocorrência de prejuízos causados por enchentes em Santarém;
As cheias e os impactos destas na economia do município em 2014;
Os reais impactos das cheias para a economia do município em 2014;
As perspectivas de prejuízos causados pelas cheias em 2014;
A importância do estudo;
Observações importantes.
Figura 3 –Assuntos componentes da estrutura do questionário
Métodos
Para o estudo que teve como foco “Os impactos das cheias na economia do
município de Santarém em 2014”, levou-se em conta os aspectos históricos e a
correlação destes com os dados estatísticos, de forma primária e secundária, a partir
do número de entrevistados, permitindo-se assim o entendimento do fenômeno das
cheias e seus impactos em Santarém, projetando assim perspectivas para uma
solução definitiva para as áreas baixas na sede do município e as expectativas para
um novo cenário na economia com a retomada de seu crescimento econômico.
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Histórico
Método que consistiu investigar os fatos e acontecimentos ocorridos pelos
impactos das cheias na economia do município, verificando-se possíveis projeções de
sua influência no cenário local e regional.
O referido método ofereceu ainda a possibilidade de análise da organização da
sociedade e das instituições permitindo-se entender a dinâmica histórica de sua
evolução, transformação e supressão das atividades econômicas de extrema
importância ao desenvolvimento da sociedade que em determinada época do ano,
muda o trânsito e as rotinas de milhares de consumidores e das empresas de uma
forma em geral; atormenta a vida de empresários com a elevação do índice de
inadimplência, maiores investimentos em infraestrutura interna, queda nas vendas,
desligamento involuntário de pessoal além de outros tormentos.
Estatístico
Método que se aplicou ao estudo a partir dos fenômenos aleatórios,
especialmente nos conjuntos de procedimentos apoiados em teorias de amostragem e,
como tal, indispensáveis no desenho do cenário na época de enchentes, dando-se
aspectos relevantes da realidade local e regional, objeto pretendido para medir o grau
de correlação entre dois ou mais fenômenos: o atual momento por que passam
consumidores e ofertantes de bens e serviços, a partir de dados primários, com
amostragem de 174 entrevistados ligados aos segmentos produtivos, profissionais
liberais e à sociedade em geral, projetando-se um erro padrão de 2,69%.
Análise de dados
Para análise dos resultados, foram utilizados mapas geográficos, tabelas e
gráficos estatísticos com dados comparados, que foram fundamentais na observação
dos dados, demonstrando-se com clareza as respostas decorrentes da insatisfação dos
empresários e consumidores de Santarém e região em época de grandes cheias.
Mensuração dos prejuízos
Para medir os custos com investimentos em infraestrutura interna, perda no
volume de negócios, de estoques, inadimplência e os reais prejuízos decorrentes das
constantes cheias no município e região, utilizou-se a Equação 2, que teve como suporte
básico os dados absolutos dos agentes econômicos em número de frequências e os
valores médios (média geométrica) de seus respectivos prejuízos de cada agente, sendo:
δ = ? (F . β)
(2)
Onde:
δ = Prejuízo com enchentes (em R$);
F = Frequência do prejuízo por segmento econômico;
β = Média geométrica dos prejuízos dos agentes econômicos.
51
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Resultados
Os resultados do estudo estão analisados com base nos dados da pesquisa de
campo no período de 05 a 25/04/2014, tendo como parâmetro a distribuição da amostra
por setor, por segmento, por classificação de atividade e por receita e/ou renda mensal.
As análises foram definidas em dados quantitativos e qualitativos, tendo
como foco o valor médio dos prejuízos em decorrência das enchentes; os
quantitativos das frequências; os investimentos em infraestrutura interna e/ou
prejuízos financeiros inerentes aos impactos das enchentes na economia do
município e o grau de importância do estudo.
Distribuição da Amostra
Entre os 174 entrevistados na pesquisa, 58% pertencem ao setor terciário da
economia, empresas ligadas ao segmento comercial, de serviço e domicílios; 28%
referem-se às atividades do setor primário (agricultura, pecuária e extrativismo) e
14% são ligadas ao setor secundário (indústria de transformação), Figura 4.
Fonte: CEAMA (2014)
Figura 4 –Distribuição da amostra por setor da economia
Entre os entrevistados, 23% são do segmento de empresas comerciais e de
serviços, incluindo os bancos; 35% formados pela mostra de domicílios; 11% de
empresas e/ou pessoas ligadas à pecuária; 15% à agricultura; 2% de empresas ligadas ao
extrativismo (pedra, seixo, fibras etc.) e 14% às indústrias de transformação (Figura 5).
Fonte: CEAMA (2014)
Figura 5 –Distribuição da amostra por segmento da economia
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Levando-se em conta a classe econômica, 35% dos entrevistados foram de
domicílios; 52% de micro e pequenas empresas do mais diversos segmentos da
economia local; 5% referente à mostra de médias empresas; 6% de profissionais
liberais e de grandes empresas e 2% de órgãos públicos (Figura 6).
Fonte: CEAMA (2014)
Figura 6 –Distribuição da amostra por classe da economia
Frequência de Prejuízos Econômicos com as Enchentes
Entre os entrevistados e levando-se em conta a margem de erro de 2,69%
sobre os resultados, 91% afirmaram que tiveram prejuízos com as enchentes nos
últimos anos; 7% da amostra se manifestaram não terem tido prejuízos e 2% dos
entrevistados foram indiferentes ou não quiseram responder (Figura 7).
Fonte: CEAMA (2014)
Figura 7 –Prejuízos com as enchentes nos últimos anos
Impactos das Enchentes na Economia
Segundo os entrevistados, 90% disseram que as cheias de 2014 já estão
causando impactos na economia do município, com prejuízos significativos; 8%
disseram que ainda não tiveram qualquer tipo de prejuízo e 2% foram indiferentes ou
não quiseram responder (Figura 8).
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Fonte: CEAMA (2014)
Figura 8 –Prejuízos com os impactos das enchentes em 2014
Entre os agentes econômicos entrevistados que admitiram prejuízos com as
enchentes, 14,29% disseram ter a redução das vendas (e/ou compras) como um dos
principais problemas causados com as cheias em 2014; 13,84% apontaram a
inadimplência de seus clientes e, por conseguinte, junto aos seus fornecedores;
11,27% apontaram perda de negócios; mais de 9% apontaram perda parcial e/ou total
de bens móveis, dificuldades de abastecimento e ociosidade de pessoal; mais de 6%
apontaram gastos com proteção de enchentes, perda de estoque de mercadorias e
perda parcial e/ou total de bens imóveis (Figura 9).
Figura 9 –Principais prejuízos com os impactos das enchentes em 2014 (em %)
A Tabela 2 demonstra a distribuição das frequências em sete intervalos de
valores que vai de: até R$ 5 mil, até R$ 10 mil, até R$ 20 mil, até R$ 30 mil, até R$ 40
mil, até R$ 50 mil e acima de R$ 50 mil.
Entre a amostra de agentes econômicos entrevistados que admitiram
prejuízos com as enchentes em 2014, do total de 896 frequências, 330 foram
tabuladas com prejuízos diversos (itens 1 ao 13) de até R$ 5 mil; 238 com prejuízos
até R$ 10 mil; 188 com prejuízos de até R$ 20 mil; 109 com prejuízos de até R$ 30
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mil; 88 com prejuízos de até R$ 40 mil; 83 com prejuízos de até R$ 50 mil e 15 com
prejuízos acima de R$ 50 mil.
Fonte: CEAMA (2014)
Tabela 2 –Planilha de distribuição de frequência por intervalo de valores:
amostra de 174 entrevistados
Pelos dados relativos à amostra, verificou-se que os impactos econômicos no
município de Santarém, somente com 174 entrevistados, os prejuízos já chegam a R$
12,2 mil nos itens analisados, que na repartição das faixas de valores estão assim
distribuídos: R$ 1,5 milhão entre os entrevistados com gastos até a média geométrica
de R$ 4,458 mil; R$ 2 milhões com gastos de até R$ 8,6 mil; R$ 2,9 milhões com
gatos de até R$ 17,2 mil; R$ 2 milhões com gastos até 24,6 mil; R$ 1,6 milhão com
gastos de até 33,6 mil; 1,5 milhão com gastos de até 43,3 mil e R$ 1 milhão com gastos
até 63,2 mil de média geométrica (Tabela 3).
Fonte: CEAMA (2014)
Tabela 3 –Planilha de distribuição de valores por intervalor de gastos:
amostra de 174 entrevistados
Tomando por base o universo da população e a quantidade de empresas do
município em relação à metodologia adotada para o estudo (agentes econômicos), do
total de 22.581 frequências, 8,2 mil foram tabuladas com prejuízos diversos (itens 1
ao 13) na média geométrica de até R$ 4,458 mil; 5,8 mil com prejuízos acumulados
até R$ 8,589 mil; 4,2 mil com prejuízos de até R$ 17,259 mil; 2 mil com prejuízos de
até R$ 24,589 mil; 832 com prejuízos de até R$ 43,274 mil e; 384 com prejuízos de até
R$ 63,258 mil (Tabela 4).
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Fonte: CEAMA (2014)
Tabela 4 –Planilha de distribuição de frequência por intervalo de valores: universo
Dos Impactos Econômicos Totais
Considerando o universo de 11,9 mil micro e pequenas empresas; 1,073 mil
médias empresas; 119 grandes empresas; 2,589 mil profissionais liberais e 125,2 mil
domicílios no município de Santarém, a partir da amostra de 174 agentes econômicos
entrevistados com margem de erro de 2,69%, chegou-se ao resultado final dos
impactos das cheias na economia do município em 2014 (Tabela 5).
Fonte: CEAMA (2014)
Tabela 5 –Planilha de distribuição de valores por intervalo de gastos: universo
Pelos resultados das Tabelas 4 e 5, que representam o universo de agentes
econômicos do município, 8,2 mil frequências foram tabuladas com prejuízos
acumulados de até R$ 4,458 mil, totalizando um impacto de R$ 36,5 milhões na
economia; 5,8 mil foram tabuladas com impactos de até R$ 8,589 mil, totalizando R$
49,9 milhões de prejuízos com a atual cheia; 4,2 mil frequências toram tabuladas com
gastos de até R$ 17,259 mil, totalizando R$ 72,9 milhões; 2 mil frequências com gastos
de até R$ 24,589 mil, totalizaram R$ 48,8 milhões; 1,2 mil frequências foram tabuladas
com gastos de até R$ 33,589 mil, totalizando R$ 40,8 milhões; 832 frequências foram
tabuladas com gastos de até R$ 43,274 mil, totalizando R$ 36 milhões e 384 frequências
foram tabuladas com gastos de até R$ 63,258 mil, totalizando R$ 24,3 milhões.
Do universo de 140,9 mil agentes econômicos entre empresas, profissionais
liberais e domicílios (Tabela 1), com diversas faixas de gastos com as atuais enchentes, os
impactos econômicos no município de Santarém em 2014 atingiram R$ 308,7 milhões.
Na distribuição por classe entre os agentes econômicos, R$ 19,5 milhões foram
os impactos na economia do município por profissionais liberais; R$ 159,7 milhões
foram os impactos entre as micro e pequenas empresas; R$ 14,2 milhões por médias
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empresas; R$ 7,1 milhões por grandes empresas e R$ 108,2 milhões foram os impactos
já absorvidos na economia pelos domicílios (Tabela 6).
Fonte: CEAMA (2014)
Tabela 6 –Planilha de distribuição de valores por classe de gastos: universo
Entre os segmentos econômicos, do total de R$ 308,7 milhões de impactos na
economia do município, R$ 33,7 milhões foram absorvidos pela pecuária, incluindo a
morte de animais, passagem de gado antecipada, despesas com pastagem, construção
de marombas1, fretes além de outros custos; R$ 46,1 milhões são os impactos na
agricultura especificamente com perda de parte ou a totalidade das safras, despesas
com proteção à enchentes além de outras; R$ 5,3 milhões no segmento de
extrativismo, que envolve a produção de argila para cerâmica, seixo e outros produtos
ligados ao setor. Na soma do setor primário os impactos das enchentes na economia
do município chegou a R$ 85,1 milhões (Tabela 7).
1
Maromba é um jirau alto, feito
de tábuas ou troncos, onde se
põe o gado durante as grandes
enchentes na região amazônica.
Serve também para pôr a salvo
plantas, animais domésticos e
objetos de utilidade do
ribeirinho (Dicionário Informal,
2014).
Fonte: CEAMA
Tabela 7 –Planilha de distribuição de valores por segmento econômico
No segmento industrial que representa o setor secundário da economia, os
impactos das enchentes atingiram o valor de R$ 44,3 milhões, principalmente nas
atividades ligadas à aquisição de matérias primas, insumos e principalmente no
processamento, na logística e na venda.
No setor terciário da economia do município, o segmento comercial somou
impactos de R$ 34,8 milhões; o setor de serviços, R$ 36,2 milhões, principalmente
com a queda nas vendas, inadimplência, dificuldades de abastecimento, perda de
estoques e nos gastos com a proteção à enchentes.
No segmento de domicílios, que envolve um universo de 125,2 mil, os
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impactos das enchentes que envolve a inadimplência, ociosidade, redução de
receitas, gastos com proteção à enchentes além de outros, os prejuízos já atingem R$
108,2 milhões, impactando fortemente a economia do município.
Importância da Pesquisa
Quanto à importância da pesquisa como forma legítima de se contribuir para a
mitigação e/ou a solução dos problemas relacionados às constantes enchentes, 12%
dos entrevistados avaliaram a pesquisa como MUITO IMPORTANTE; 85%
entenderam a pesquisa como IMPORTANTE e 3%, acharam o estudo SEM
IMPORTÂNCIA ou não quiseram responder (Figura 10).
Fonte: CEAMA
Figura 10 –A importância da pesquisa em 2014
Impactos das Enchentes x PIB e Orçamento Municipal
Tomando-se como base o valor do Produto Interno Bruto (PIB) do município
que equivale a R$ 3,219 bilhões (CEAMA, 2014 apud SEPOF/PA, 2014 e IBGE,
2014), o Orçamento Municipal de 2014 com relação aos impactos das cheias,
verificou-se que com relação ao PIB, os impactos representam 9,59% e com relação
ao Orçamento Municipal, os mesmo impactos representam 48,48% (Figura 11).
Descrição
PIB Municipal
Orçamento Municipal
Valores
3.219.841,59
636.700,00
Impacto
308.663,22
308.663,22
%
9,59
48,48
Fonte: CEAMA, 2014 apud SEPOF/PA, 2014 e IBGE, 2014
Figura 11 –Quadro comparativo dos impactos das enchente na economia com relação ao PIB
e Orçamento Municipal (Em R$ 1.000,00)
Considerações Finais
Finalizando este estudo que teve como foco avaliar os impactos das enchentes
na economia do município de Santarém em 2014, bem como descrever as
consequências dos prejuízos causados à população pelas constantes inundações nas
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áreas mais baixas das zonas urbana e rural, a partir de pesquisa de campo junto às
empresas do segmento produtivo, profissionais liberais e os domicílios, chegou-se a
um resultado que remete ao nível de preocupação com o cenário.
Neste período de cheias (2014), segundo da dados da pesquisa, levando-se em
conta a metodologia escolhida, se apurou um prejuízo econômico de R$ 308,7 milhões
em: redução nas vendas (R$ 43,6 milhões), inadimplência (33,9 milhões), perda de
negócios (R$ 44 milhões), perda parcial ou total de bens móveis (R$ 30,7 milhões),
dificuldades de abastecimento (R$ 29,3 milhões), ociosidade de pessoal (R$ 28,2
milhões), gastos com proteção d enchentes (R$ 20 milhões), perdas de estoques de
mercadorias (R$ 19,3 milhões), perda parcial ou total de imóveis (R$ 18,6 milhões), gastos
com mudança de endereço (R$ 14,5 milhões), perdas de postos de trabalho (R$ 12
milhões), elevação dos custos com transportes (R$ 7,6 milhões) e outros (R$ 6,9 milhões).
Tomando como base os segmentos econômicos, no setor primário, a pecuária já
acumula prejuízos de R$ 33,7 milhões; a agricultura, R$ 46,1 milhões e o extrativismo,
R$ 5,3 milhões. No setor secundário, a indústria já acumula prejuízos de R$ 44,3 milhões
e no setor terciário, o comércio acumula prejuízos de R$ 34,8 milhões, o setor de serviços,
R$ 36,2 milhões e os domicílios aparecem com o maior prejuízo, com R$ 108,2 milhões.
Em outra ótica, todos os modelos econômicos, estatísticos e matemáticos foram
devidamente testados, não deixando dúvidas sobre os valores aqui apresentados.
O estudo finaliza concluindo tratar-se de uma pesquisa importante (97%) e
que os atuais prejuízos econômicos (R$ 308,7 milhões) representam 9,59% sobre o
valor do Produto Interno Bruto Municipal (R$ 3,219 bilhões) e 48,48% sobre o valor
do Orçamento Municipal de 2014 (R$ 636,7 milhões).
Por fim, considera-se que, a partir da situação problemática estabelecida, suas
justificativas e principalmente a seleção dos procedimentos metodológicos, o estudo
atingiu os objetivos previamente definidos, sem qualquer contratempo ou
imprevistos que viessem colocar em xeque os resultados aqui efetivamente avaliados.
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Matrimônios, Celibatos, Estratégias e Mercados: Anotações Sobre a
Etnologia de Pierre Bourdieu no Béarn
Nirson Medeiros da Silva Neto *
RESUMO
A partir de uma releitura dos trabalhos etnológicos de Pierre Bourdieu sobre a sociedade camponesa do Béarn,
o artigo apresenta um esforço compreensivo de algumas das contribuições oferecidas pelo eminente
sociólogo francês à antropologia, sobretudo aos estudos do parentesco, que são de sobeja importância para
aqueles que desejam iniciar-se neste campo científico. Após uma breve reflexão geral sobre a teoria da prática
de Bourdieu, realiza-se uma análise descritiva das obras bourdieusianas acerca do Béarn, que oferecem
significativos contributos à etnologia dominante em meados do século XX, especialmente ao estruturalismo
antropológico, a saber: 1) a etnografia de um universo camponês e familiar ao pesquisador, assim como a
tentativa de romper com as explicações mecânicas, formalistas e abstratas; 2) a construção da noção de
estratégias matrimoniais, que traz para a etnologia e aos estudos do parentesco a possibilidade de superação do
modelo de regras caro ao estruturalismo, buscando entender as regularidades das ações, fundadas no habitus e
em um senso prático; e 3) a introdução da noção de mercado de bens simbólicos, que percebe os espaços
sociais, inclusive aqueles onde se realizam as alianças matrimoniais, como universos relativamente
autônomos e que, no entanto, sofrem determinações mais ou menos dissimuladas de outros campos – como,
por exemplo, o econômico – e das intencionalidades dos sujeitos.
Palavras-chave: Pierre Bordieu - campesinato - parentesco
ABSTRACT
A partir de una lectura del trabajo etnológico de Pierre Bourdieu sobre la sociedad campesina de
Béarn, el artículo presenta un esfuerzo de comprensión de algunas de las aportaciones realizadas
por el eminente sociólogo francés a la antropología, especialmente a los estudios de parentesco,
que son de importancia para los que quiere poner en marcha en este campo científico. Después de
una breve reflexión general sobre la teoría de la práctica de Bourdieu, llevó a cabo un análisis
descriptivo de las obras sobre el Béarn, que ofrecen importantes contribuciones a la etnología
dominante en la segunda mitad del siglo XX, especialmente el estructuralismo antropológico, a
saber: 1) la etnografía de un universo campesino y familiar a lo investigador, así como el intento de
romper las explicaciones mecánicas, formalistas y abstractas; 2) la construcción de la noción de
estrategias matrimoniales, lo que trae a la antropología y a los estudios de parentesco la
posibilidad de superar el modelo de reglas que caracteriza el estructuralismo, que buscan
comprender las regularidades de las acciones, fundada en habitus y en un sentido práctico; y 3) la
introducción de la noción de mercado de los bienes simbólicos, que explica los espacios sociales
como universos relativamente autónomos y que, sin embargo, sufren influenza más o menos
encubierta de otros campos – como, por ejemplo, lo económico – y de las intenciones de los sujetos.
Keywords: Pierre Bourdieu - campesinado - parentesco
*Doutor em Ciências Sociais, área de Antropologia, e mestre em Direito/ Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA),
Especialista em Metodologia da Educação Superior pela Faculdade de Tecnologia da Amazônia (FAZ); Bacharel em Direito pelo Centro
Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
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Introdução
Pierre Bourdieu nasceu na cidade de Denguin, região do Béarn, em França,
filho de Albert Bourdieu, carteiro e funcionário dos correios, procedente de uma
família de parceiros rurais, e Noémi Duhau, pertencente a uma família camponesa
prestigiosa, cujo pai era dono de uma serraria e de uma transportadora de madeira.
Sua origem social camponesa, somada à experiência enquanto militar na guerra de
resistência à colonização da Argélia contra a França e à passagem por instituições
educacionais como a Escola Normal Superior, influenciaram profundamente suas
disposições intelectuais (BOURDIEU, 2005a), contribuindo para uma trajetória
singular enquanto sociólogo que dispensa maiores apresentações, dado que é já
vastamente conhecida dentro e fora do campo científico. O que, no entanto, poucos
leitores de suas obras costumam recordar é que a sociologia deste notável intelectual
francês apresenta, em sua primeira fase, um período marcadamente etnológico e que
imiscui-se em um tema muito caro à antropologia: o do parentesco – valendo lembrar,
a propósito, que o autor jamais concebeu uma separação rígida entre sociologia e
etnologia. É neste período que se encontra o trabalho Celibato e condição camponesa,
publicado originalmente na revista Études rurales, primeiro de três artigos que
versaram, respectivamente, sobre o enigma social do celibato dos primogênitos
decorrente da degeneração das tradições camponesas, as estratégias matrimoniais
bearnesas e os efeitos da dominação econômica e da urbanização no mercado de bens
simbólicos da região do Béarn, inclusive no mercado matrimonial. É sobre estes três
trabalhos, bastante diferenciados e que, todavia, apresentam a similaridade de
abordarem a temática do parentesco na sociedade bearnesa, que tratarei nas linhas
abaixo, buscando identificar as singulares contribuições oferecidas pelo autor à
antropologia e ao estudo do parentesco, que são de sobeja importância para aqueles
que desejam iniciar-se neste campo científico.
Antes, porém, de tratar da etnologia de Bourdieu no Béarn e de avaliar seus
principais contributos, é imperioso fazer algumas anotações introdutórias. A
migração de Bourdieu para a sociologia, mediatizada por uma passagem de sucesso –
embora hoje um tanto olvidada – pelo campo antropológico, iniciou-se com o período
em que o autor esteve a serviço do Estado francês na Argélia. Havia concluído a
formação em filosofia e ministrava aulas no liceu de Moulins quando, aos 25 anos, foi
convocado a prestar serviço militar, sendo designado para exercer suas atribuições
burocráticas na colônia francesa que à época encontrava-se em guerra contra a nação
colonizadora. Assim, as primeiras experiências de Bourdieu no campo das ciências
sociais – aliás, de forma análoga a outros tantos etnólogos – deram-se justamente
neste momento, em uma circunstância de guerra colonial, em que o jovem intelectual
ocupava uma posição subalterna e desconfortável entre funcionários militares de uma
nação a impor um processo de colonização (BOURDIEU, 2005a). O inaugural
trabalho etnológico sobre a Argélia veio à tona em 1958, intitulado Sociologia da
Argélia, sendo sucedido por Trabalho e trabalhadores na Argélia (1963),Os
62
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desenraizados (1964), Esboço de uma teoria da prática (1972) e Senso Prático (1980)
– para citar só os mais importantes e consagrados –, os dois últimos elaborações
teóricas e posteriores inspiradas na experiência argelina.
Durante este período antropológico, Bourdieu realizou, paralelamente aos
estudos acerca da Argélia, pesquisas etnológicas em sua região natal, o Béarn,
escrevendo o já mencionado artigo sobre celibato e condição campesina, datado de
1962, seguido de As estratégias matrimoniais no sistema das estratégias de
reprodução (1972) e Reprodução proibida (1989), retomados mais tarde na obra O
baile dos celibatários, publicada postumamente em 2002. Com estes trabalhos
Bourdieu assume o desafio de fazer etnologia de um universo social familiar, em um
momento em que o “olhar distanciado” era quase um dogma antropológico, e de uma
sociedade rural européia, um espaço social raramente investigado pela antropologia
da época que privilegiava sociedades distantes e exóticas (BOURDIEU, 2004a).
Nestes artigos, o sociólogo francês, partindo do desafio de superar o modo de
pesquisa estruturalista, oferece importantes contribuições para a superação da
perspectiva etnológica consagrada por Claude Lévi-Strauss, principal referência da
antropologia de então. Nas próximas páginas, revisitarei estas obras, fazendo uma
breve análise com o fito de identificar justamente o modus operandi do pesquisador e
as interpretações deste que o levaram a transpor os limites do estruturalismo lévistraussiano, ainda que, certamente, partindo, em alguma medida, da própria matriz
teórica do baluarte da antropologia estrutural.
Priorizarei os contributos bourdieusianos que considero os principais, em se
considerando a etnologia dominante em meados do século XX, especialmente a de
Lévi-Strauss: 1) a etnografia de um universo camponês e familiar ao pesquisador, assim
como a tentativa de romper com as explicações mecânicas, formalistas e abstratas que
caracterizavam os trabalhos lévi-straussianos; 2) a construção da noção de estratégias
matrimoniais, que traz para a etnologia e aos estudos do parentesco a possibilidade de
superação do modelo de regras caro ao estruturalismo, buscando entender as
regularidades das ações, fundadas no habitus e em um senso prático; e 3) a introdução
da noção de mercado de bens simbólicos, que percebe os espaços sociais, inclusive
aqueles onde se realizam as alianças matrimoniais, como universos relativamente
autônomos e que, no entanto, sofrem determinações mais ou menos dissimuladas de
outros campos – como, por exemplo, o econômico – e das intencionalidades dos
sujeitos. Nos tópicos que seguem discorrerei detidamente sobre cada uma destas
contribuições de Bourdieu à etnologia e aos estudos do parentesco, iniciando, porém,
com uma breve reflexão geral sobre a teoria da prática bourdieusiana.
A Teoria da Prática ou Praxiologia
A etnologia de Bourdieu não se torna compreensível sem o entendimento prévio
do que o autor chamara de praxiologia ou teoria da prática. Esta teoria pretende superar
os limites da antropologia dominante em meados do século XX, notadamente da
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antropologia estruturalista cunhada por Lévi-Strauss. De acordo com Bourdieu (2003),
a antropologia estrutural, cuja versão mais forte é a lévi-straussiana, visa construir as
relações objetivas que estruturam as práticas e suas representações ao preço de uma
ruptura com o conhecimento primeiro e, portanto, com os pressupostos tacitamente
assumidos que conferem ao mundo social o caráter de evidência e naturalidade. A
praxiologia, por sua vez, procedendo à construção das relações objetivas (estruturas) à
semelhança do estruturalismo, dá um passo além em face deste, buscando reconstituir
as relações entre as estruturas e as disposições (habitus) nas quais aquelas são
atualizadas e tendem a ser reproduzidas, através do processo de interiorização da
exterioridade e da exteriorização da interioridade. Assim, não somente se toma as
práticas como fatos acabados, determinados por uma estrutura abstrata – isto é, um
modelo elaborado teoricamente pelo pesquisador para explicar a realidade –, mas
busca-se o princípio gerador concreto e real da ação dos sujeitos. Para Bourdieu
(2004b) este princípio gerador das ações consiste no que ele chamou de senso prático,
uma espécie de “sentido do jogo”, um domínio prático da lógica ou da necessidade
imanente de um jogo, que se adquire pela experiência de jogar e que funciona sob os
“véus” da consciência e do discurso. A praxiologia, portanto, não visa reintroduzir na
pesquisa sociológica o sujeito e seus projetos e cálculos conscientes/racionais, mas sim
o agente socializado e suas estratégias mais ou menos “automáticas” fundadas em um
senso prático aprendido socialmente.
Assim, o sociólogo francês rompe com a ideia de ação sem agente,
inconsciente, que o estruturalismo supõe. De acordo com o autor, as estratégias dos
agentes não são nem produtos de um programa inconsciente (estrutura), como pensara
Lévi-Strauss, nem produtos de um cálculo consciente/racional. Ao contrário, são
produtos do senso prático de um jogo social particular, historicamente definido e que se
adquire desde a infância, participando dos espaços sociais (BOURDIEU, 2004b). Em
outras palavras, o que Bourdieu (2008) deseja afirmar é que as ações dos agentes não
derivam simplesmente de códigos inconscientes de conduta previamente estabelecidos,
mas sim resultam do habitus, ou seja, das disposições adquiridas no processo de
socialização que se manifestam como esquemas de pensamento, ação, percepção e
apreciação socialmente compartilhados. O agente, assim, é uma espécie de “jogador”
que conhece não somente as regras (oficiais, codificadas, “jurídicas”) do jogo, mas
também as regularidades (o que se produz com certa frequência estatisticamente
mensurável), e age motivado por avaliações, conforme o estado das regras e
regularidades do jogo, de quais as melhores “jogadas” a serem postas em prática
(BOURDIEU, 2003; 2004b).
O agente socializado, então, age não somente orientado por regras, e sim
igualmente por interesses, conquanto procure manter as aparências de que está agindo
em obediência tão-somente às regras estruturadas. Na realidade, lembra Bourdieu
(2004b), embora possua uma certa liberdade de ação, o agente precisa atuar de
conformidade tanto às regras quanto às regularidades do “jogo social”, por isso que o
sentido de suas ações, quando em descompasso com a estrutura, acaba sendo
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retraduzido (transfigurado, refratado) a fim de se ajustar à lógica do universo social
onde as práticas são efetivadas (BOURDIEU, 2004c). Os comportamentos mais
subjetivos dos agentes possuem limitações objetivas, e o limite das ações decorre
justamente do habitus, que dá ensejo à compreensão do sentido do jogo ou senso prático
incorporado pelo indivíduo, mantendo o agente a um só tempo livre e coagido em sua
ação, pois o jogo social possui exigências objetivas, coativas – algo, decerto, já
vislumbrado por Émile Durkheim (1999) quando tratara da coercitividade dos fatos
sociais –, no entanto permite uma infinidade de atos estratégicos possíveis. Mesmo
quando inexiste um código que prescreve regras explícitas ou subjacentes, conscientes
ou inconscientes, as coações e exigências do jogo se impõem àqueles que detêm o
sentido do jogo, o senso de necessidade imanente do jogo, ainda que busquem, com
certa liberdade, os melhores meios para realizar seus interesses (BOURDIEU, 2004b).
No jogo social de que fala Bourdieu (2004b), um conjunto de pessoas
participa de uma atividade que, sem ser necessariamente produto da obediência
apenas a regras, obedece a certas regularidades. O jogo é o lugar de uma necessidade e
de uma lógica imanentes. Nele não se faz qualquer coisa impunemente, por isso é
preciso se conhecer o sentido do jogo. Assim, no jogo social as condutas são regradas,
sendo, por isso, naturalmente acertada a intuição de Lévi-Strauss de que os sujeitos
movem-se obedecendo a regras; porém, isto não significa dizer que as ações
decorram somente de regras, pois, mais do que isso, estão sujeitas à observância de
regularidades. Em outras palavras, a regularidade, que é apreendida estatisticamente,
está relacionada ao sentido do jogo a que o agente se submete espontaneamente
quando se reconhece na prática “jogando o jogo”. Isto não tem necessariamente a ver
com a obediência a uma regra (costumes, ditados, provérbios, códigos, ou quaisquer
outros fatos normativos). A regra, diferentemente da regularidade, é formal,
considera a forma das operações sem se vincular à matéria, às especificidades das
ações, tendendo a indicar fórmulas “universais” aplicáveis às particularidades das
práticas dos agentes (BOURDIEU, 2004b).
Para Bourdieu (2004b), se somente levarmos em conta as regras, como o faz a
perspectiva lévi-straussiana, tem-se uma ideia muito inexata da rotina ordinária das
práticas sociais, inclusive das manipulações a que são objeto as próprias regras.
Evidentemente, o “bom jogador” considera, nas suas escolhas, o conjunto das
propriedades pertinentes tendo em vista a estrutura a ser reproduzida, ou seja, as regras.
Todavia, a fim de maximizar a probabilidade de alcançar seus interesses, age
estrategicamente, levando em conta também a regularidade das práticas sociais e o
conjunto das estratégias adotadas pelo grupo ao qual pertence e no qual atua. Desta
forma, as estratégias dos agentes são a resultante de relações de força no interior dos
grupos de que são componentes, e estas relações só podem ser entendidas recorrendo-se
à história destes grupos, particularmente das estratégias utilizadas anterior e
regularmente no interior deles. As práticas, assim, (cor)respondem ao conjunto de
necessidades inerentes a uma posição na estrutura social e ao estado do jogo social
(BOURDIEU, 2004b). Em outras palavras, as ações dos agentes fazem parte de um
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mercado de bens simbólicos, um espaço relativamente autônomo em relação às
pressões externas, que detém propriedades específicas e funciona no sentido de
reproduzir suas especificidades, estando, contudo, submetido a relações de força com
outros universos sociais, dos quais assimila, no mais das vezes dissimuladamente,
propriedades e as incorpora, de maneira transfigurada, sob a aparência de que não
subvertem sua ordem interna.
Bourdieu (2004b) demonstra então, com a teoria da prática, que os grupos
sociais existem ao mesmo tempo na realidade objetiva das regularidades e das coações
instituídas (regras), nas representações e em todas as estratégias de regateio,
negociação, blefe, golpe, etc., destinadas a modificar as representações. Ou seja, são a
um só tempo estruturas estruturadas, no melhor sentido estruturalista de universos
sujeitos a relações objetivas, e estruturas estruturantes, enquanto espaços que – mesmo
que tendam à reprodução das estruturas dadas – admitem ações estratégicas dentro dos
limites das regras e regularidades que compõem um mercado de bens simbólicos
(BOURDIEU, 2005b). E é a partir desta reflexão teórica mais geral que Bourdieu vai
estudar o tema do parentesco no Béarn, fazendo-o em três momentos distintos. No
primeiro, ainda não tão distante da perspectiva estruturalista, buscando compreender a
lógica dos matrimônios e do celibato na sociedade bearnesa, assim como objetivando
entender os fatores que levaram o sistema social camponês à anomia, convertendo os
primogênitos (destinados socialmente ao casamento, segundo as regras camponesas)
em celibatários. No segundo momento, Bourdieu introduz a noção de estratégia, já
confrontando diretamente o modelo de regras lévi-straussiano. E, por último, no
terceiro, demonstra como o parentesco no Béarn está relacionado a um mercado de
bens simbólicos relativamente dependente da economia tradicional camponesa, sendo
posto em risco justamente quando a economia de mercado e seu sistema simbólico são
introduzidos na sociedade bearnesa. Passarei a tratar, doravante, do que considero mais
significativo nestes três artigos para os estudos do parentesco.
A Lógica das Relações Matrimoniais na
Sociedade Bearnesa
O primeiro artigo que Bourdieu escreveu sobre parentesco na sociedade
bearnesa foi intitulado Celibato e condição camponesa. O autor, neste trabalho, já
manifesta um claro desejo de atuar contra a fascinação que as elaborações de LéviStrauss, sobretudo na França, exerciam sobre as pesquisas etnológicas. Um dos
passos mais significativos dados aqui pelo sociólogo francês no sentido de uma
mudança de ponto de vista – do observador distanciado para o que exercita a
reflexividade – foi o de pesquisar uma sociedade camponesa europeia, algo raro para
a antropologia dominante à época, especialmente porque se tratava de um universo
social absolutamente familiar ao pesquisador, que havia nascido e crescido no seio do
sistema simbólico que visava, enquanto etnólogo, compreender. Além disso, o uso de
recursos como a fotografia, o mapa e a estatística foram inovações à antropologia
praticada até então que Bourdieu (2004a) atribui a esta obra. Todavia, quanto aos
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resultados da interpretação bourdieusiana do parentesco no Béarn, o golpe mais
significativo na perspectiva lévi-straussiana sobre as alianças matrimoniais, como
bem lembra Klaas Woortmann (2004), consistiu na descoberta de que o celibatário
não era uma espécie de marginal, alguém posto fora da estrutura social, como pensara
Lévi-Strauss. Ao contrário, Bourdieu demonstra, através de uma curta mas bela
etnografia, que o celibatário era uma peça fundamental para a reprodução social
bearnesa;aliás, em certos casos, constituía condicio sine qua non da preservação do
patrimônio da “casa” camponesa e, por seguimento, do sistema simbólico campesino.
Apesar disso, o então jovem sociólogo francês, em Celibato e condição camponesa,
ainda não supera totalmente o modelo de regras lévi-straussiana, deixando para
artigos posteriores a elaboração de sua noção de estratégia. Senão vejamos.
Segundo a etnografia de Bourdieu, no Béarn as alianças matrimoniais
obedeciam a um imperativo fundamental: a salvaguarda do patrimônio da maysou, que
é análoga à “casa” analisada por Lévi-Strauss, tratando-se, pois, de uma unidade de
parentesco, uma linhagem, mais do que uma família ou grupo doméstico
(WOORTMANN, 2004). Por esta razão, não admitia-se qualquer espaço para o
indivíduo e suas ações sentimentais ou afetivas, como diria Max Weber (1999), visto
que a “casa” era um todo que englobava seus membros individuais. Assim, o verdadeiro
sujeito das alianças matrimoniais, neste caso, era então a maysou, como assevera
Bourdieu (2004a, p. 21): “La familia era la que casaba y uno se casaba con una familia”.
A maysou, explica Woortmann (2004), corresponde à casa (no sentido de edificação) e
à terra, incluindo aí também o nome e a tradição da linhagem, e, de acordo com as
representações nativas, a “casa” deveria sempre permanecer na linhagem, perpetuando
seu nome, por isso que o casamento apresentava-se como a ocasião por excelência em
que as preocupações com a perpetuação da maysou pululavam intensamente. Por tal
motivo, o matrimônio era regido por regras muito estritas e rigorosas, dado que poderia
comprometer o futuro da exploração familiar, sendo momento de uma transação
econômica da máxima importância que haveria de contribuir para reafirmar a
hierarquia social e a posição da família dentro da sociedade camponesa. Logo, sua
primeira função consistia em assegurar a continuidade da linhagem sem comprometer a
integridade do patrimônio familiar (BOURDIEU, 2004a).
A linhagem, no universo simbólico bearnês, consistia, per se e antes de tudo, em
uma série de direitos sobre o patrimônio. O portador destes direitos, o herdeiro,
preferencialmente seria o primeiro filho varão. Somente em casos excepcionais o direito
à primogenitura transferir-se-ia a outro filho homem ou à primeira filha mulher, isto é,
quando o primogênito optasse por deixar a maysou, indo viver na cidade, ou quando se
tivesse na “casa” apenas filhas mulheres. Em se tratando de uma sociedade camponesa,
é perfeitamente compreensível a concessão do privilégio aos filhos homens, não só por
se assegurar a continuação do nome, mas sobretudo por considerar-se que um homem
está mais capacitado para dirigir as atividades agrícolas, que competiam à mão de obra
masculina na região do Béarn. A despeito disso, a continuidade da linhagem e do
patrimônio da “casa” poderia ser garantida tanto por um homem quanto por uma mulher,
pois o matrimônio de um segundo filho com uma herdeira cumpria perfeitamente esta
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função, de forma similar ao casamento de um primogênito com uma segunda filha.
Estes eram, com efeito, os dois principais arranjos matrimoniais que contribuíam para a
reprodução do sistema simbólico bearnês (BOURDIEU, 2004a).
Por força do imperativo descrito no parágrafo anterior, era necessário que o
herdeiro fosse capaz de exercer seu direito e garantir sua transmissão. No caso do
primogênito não ter filhos ou falecer sem descendência, pedia-se a um segundo filho
maior de idade, que ainda encontrava-se solteiro, que casasse para assegurar a
continuidade da estirpe. É por esta razão que não eram infrequentes os casos que a
viúva do primogênito casava-se com o segundo filho. De qualquer sorte, o título de
herdeiro ou cabeça de família (capmaysoué) recaia automaticamente sobre o filho
varão (ou mulher, em casos excepcionais) mais velho. Esta regra, no entanto, poderia
ser flexibilizada em prol dos interesses da “casa” quando o filho maior não se
demonstrasse digno de sua posição ou quando existisse uma vantagem real que um
dos outros filhos se tornasse herdeiro. O capmaysoué possuía uma autoridade moral
considerável aceitada de modo quase absoluto por todo o grupo, por isso não detinha
muito poder de escolha senão o de acatar sua designação como aquele que seria
responsável para garantir a continuidade da maysou, dotando-a da melhor direção
possível. É ele a encarnação da “casa”, seu chefe, o depositário do nome da família e
dos interesses do grupo, assim como de sua posição e imagem perante a sociedade
bearnesa (BOURDIEU, 2004a). Tratava-se, pois, no dizer de Woortmann (2004), do
guardião da maysou, um sujeito histórico/prático a quem competia assegurar a
permanência da “casa” e a perpetuação de seu patrimônio.
Os filhos segundos, homens ou mulheres, tinham igualmente direitos sobre o
patrimônio, porém estes direitos não passavam de virtualidades, só se tornando reais
quando contraíam casamento. O adot (ou, em português, dote) designava em bearnês
a parte da herança que correspondia a cada filho, a dotação que disporia para a
consecução de um matrimonio, quase sempre em dinheiro, mas excepcionalmente
em terras. O quantum do dote era determinado pelo valor do patrimônio e pelo
número de filhos. Ainda assim, o capmaysoué possuía o poder de incrementar ou
reduzir a parte de herança do primogênito ou dos filhos segundos, devendo-se
considerar também que a parcela patrimonial pertencente aos filhos solteiros nunca
deixava de ser apenas virtual, permanecendo integrada ao patrimônio da “casa” até
seu matrimônio ou até a morte dos pais. Por força disso, Bourdieu conclui que devese evitar a tentação, a que Lévi-Strauss incorre, de se construir modelos rígidos nos
quais se ajustam todas as ações. No caso do cabeça de família bearnês, há sempre uma
margem considerável de arbítrio em suas decisões, não obedecendo a um modelo de
regras fixo, abstrato e formal, inclusive observável em outras sociedades, senão ao
princípio fundamental que o impulsiona a salvaguardar o nome, o status social e o
patrimônio da família (BOURDIEU, 2004a).
Bourdieu adverte, porém, que a ideia de repartição do patrimônio da maysou
pode induzir a erros na interpretação do sistema cultural bearnês. Na realidade, a
repartição efetiva era tomada como uma calamidade que somente ocorria, em última
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instância, por ocasião de desavenças familiares ou pela introdução de novos valores. De
fato, a função de todo o sistema consistia em reservar a totalidade do patrimônio para o
primogênito, as partes ou dotes dos filhos segundos constituindo apenas compensações
concedidas pela renúncia aos direitos sobre a terra. A sucessão do patrimônio da “casa”
baseava-se na primazia do interesse do grupo, ao que os indivíduos tinham que
submeter seus interesses pessoais, ou contentando-se com o adot, ou emigrando da
mayson E ainda quanto aos fatores econômicos, o número de mulheres casáveis na
família era particularmente relevante, pois estas constituíam, para os bearnêses, uma
ameaça de desonra, haja vista que haviam de ser dotadas, além de que, por viverem uma
existência doméstica, não ganhavam seu sustento, não trabalhavam na exploração
agrícola como os homens e iam-se quando casadas. (BOURDIEU, 2004a).
O sistema matrimonial do Béarn também operava obedecendo a outros dois
princípios fundamentais, segundo Bourdieu: 1) a oposição entre o primogênito e os
segundos filhos; e 2) a oposição entre casamento de baixo para cima e casamento de
cima para baixo. A primeira oposição já foi suficientemente discutida nas linhas
anteriores. A segunda, da qual ainda pouco se falou, constituía o ponto de encontro
onde se cruzavam a lógica do sistema econômico, que tendia a classificar as “casas”
em grandes e pequenas, conforme o tamanho das terras, e a lógica das relações entre os
sexos, a qual conferia supremacia aos homens, particularmente na gestão dos assuntos
familiares. Os matrimônios no Béarn pesquisado por Bourdieu estavam relacionados,
de um lado, ao lugar ocupado por cada um dos contraentes na linha sucessória de sua
respectiva família e ao tamanho desta, e, de outro, à posição relativa de ambas as
famílias na hierarquia social, em função do valor e da dimensão de suas terras.
Seguindo este princípio, os matrimônios tendiam a ser celebrados entre famílias que
se equiparavam do ponto de vista econômico. Entretanto, não era apenas o fator
econômico (dimensão das terras) que tomava-se em conta para determinar a posição
social de uma família; considerava-se igualmente o manifesto das virtudes que
legitimamente espera-se dos camponeses poderosos, a dignidade no comportamento,
o sentido de honra, a generosidade, a hospitalidade, etc. Contudo, quando se tratava de
casamento, a situação econômica se impunha como fator predominante, dada a
necessidade de perpetuação do patrimônio da maysou (BOURDIEU, 2004a).
Os fatores econômicos possuíam particular relevância no matrimônio do
primogênito. Com este casamento, o capmaysoué haveria de conseguir angariar um dote
suficiente para poder pagar o adot dos demais filhos e filhas (ou irmãos e irmãs) menores
sem ter que recorrer à repartição ou amputação das terras da família. Tratava-se de uma
necessidade que atingia a todas as “casas” independentemente de sua posição social e
econômica, porque o dote dos segundos filhos crescia proporcionalmente com o valor do
patrimônio e também porque a riqueza dos camponeses do Béarn não era traduzida em
dinheiro efetivo, demasiado escasso, mas sim em terras. Assim, a escolha do esposo (ou
esposa) do herdeiro (ou herdeira) tinha uma importância capital, visto que contribuía
diretamente para determinar o quantum do dote que poderiam levar consigo os segundos
filhos, o tipo de matrimônio que poderiam contrair, a facilidade ou dificuldade de fazê-lo
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e o número de filhas/irmãs e filhos/irmãos casáveis.E ainda quanto aos fatores
econômicos, o número de mulheres casáveis na família era particularmente relevante,
pois estas constituíam, para os bearnêses, uma ameaça de desonra, haja vista que haviam
de ser dotadas, além de que, por viverem uma existência doméstica, não ganhavam seu
sustento, não trabalhavam na exploração agrícola como os homens e iam-se quando
casadas. (BOURDIEU, 2004a).
Uma outra regra que integrava a lógica matrimonial bearnesa e que possuía
um pertinente impacto para a vida econômica camponesa era a do tournedot, o direito
de devolução do dote, no caso de extinção do matrimônio sem deixar descendência.
Isto poderia acontecer quando o primogênito falecia sem deixar filhos, pois sua
esposa tanto tinha o direito de permanecer na “casa” e conservar a propriedade do
dote no seio desta, quanto de reclamar a propriedade do dote para si e deixar a
maysou. Se a esposa falecia sem filhos, também haveria de devolver o dote que
recebera. O tournedot representava, como se pode deduzir, uma grave ameaça para as
famílias camponesas, notadamente para aquelas que haviam celebrado casamento de
baixo para cima e receberam um dote muito elevado. Esta era uma das razões que
levavam os camponeses a evitar casamentos entre famílias com condição econômica
muito desigual. Por isso, um enorme conjunto de regras consuetudinárias tendiam a
garantir a inalienabilidade, imprescindibilidade e intocabilidade do adot. Estas
regras, por exemplo, autorizavam o pai a exigir uma garantia para salvaguardar o dote
e exigiam condições para que o dote se mantivesse seguro e conservasse seu valor. A
devolução do dote, que dificilmente não era ao menos parcialmente dilapidado com o
passar do tempo, poderia constituir um sério fator de perda do patrimônio da família
(BOURDIEU, 2004a).
O dote, de acordo com Bourdieu, possuía uma tripla função entre os
camponeses do Béarn: 1) era confiado à custodia da família do herdeiro ou da
herdeira, que encarregava-se de sua gestão, e tinha que integrar-se ao patrimônio da
família fruto do matrimônio, só retornando à “casa” donde partira nos raríssimos
casos de separação ou em razão do falecimento de um dos cônjuges, e isto apenas em
inexistindo descendência, pois quando haviam filhos o dote era por eles herdado; 2) o
valor do dote determinava os direitos de seu portador no novo domicílio, pois, quanto
mais elevado, mais assegurava poderes na “casa” onde residiriam os nubentes, o que
levava os camponeses a evitar o aceite de dotes muito elevados, a fim dos varões não
se tornarem “criados” de suas esposas, dada a condição social superior desta; 3) last
but not least, o dote possuía uma função econômica de sobeja relevância, pois não
raro era um fator decisivo na salvaguarda do patrimônio da maysou, garantindo que
os filhos/irmãos segundos pudessem casar-se sem a necessidade de fragmentar as
terras da família. Destas três funções decorre a exigência de que o primogênito,
herdeiro e guardião da maysou, não deveria casar demasiado acima, por temor de um
dia precisar devolver o dote ou de perder a autoridade em seu lar, nem casar
demasiado abaixo, por medo de desonrar-se com uma união desacertada,
impossibilitando o casamento de seus irmãos e irmãs (BOURDIEU, 2004a).
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De acordo com as práticas matrimoniais à época correntes no Béarn, o casamento
entre herdeiros quedava fora de qualquer cogitação – a um turno, porque implicava o
desaparecimento do nome de uma das famílias e de uma linhagem, e, a outro, por razões
econômicas –, assim como o matrimônio entre filhos segundos. Portanto, a regra entre os
camponeses bearnêses consistia no casamento entre um herdeiro e uma filha segunda ou
entre uma herdeira e um filho segundo, os não herdeiros(as) carregando consigo sempre o
dote a fim de possibilitarem o matrimônio com uma(um) herdeira(o). Estes dois arranjos
matrimoniais cumpriam os imperativos fundamentais do sistema bearnês, tanto
econômicos quanto culturais, as “casas” camponesas conservando a integridade de seu
patrimônio e perpetuando seus nomes. O primeiro, todavia, cumpria os imperativos
melhor do que o segundo, visto que no matrimônio do filho segundo com a herdeira
ocorria uma ruptura, no âmbito dos interesses econômicos, entre o filho e sua família de
procedência, pois, mediante uma compensação, o nubente renunciava a todos seus
direitos sobre o patrimônio, e era a família da herdeira que se enriquecia com a transação,
recebendo o adot e uma nova mão de obra. Vale ressaltar, a propósito disso, que se o dote
do filho segundo era elevado e se ele conseguia se impor por seu trabalho e sua
personalidade, acabava honrado e tratado como verdadeiro amo; caso contrário, teria que
sacrificar seu dote, seu trabalho e, às vezes, o nome de sua família em beneficio da nova
maysou, submetendo-se à autoridade de seus sogros. Por isso que aos filhos segundos de
famílias pobres não restava outro destino social senão ir-se para a cidade atrás de
emprego ou o fatídico celibato (BOURDIEU, 2004a).
Bourdieu adverte novamente que este sistema não funciona de maneira
mecânica, como levaria a pensar a perspectiva adotada por Lévi-Strauss. Existe sempre
uma certa margem com a qual se pode jogar, em que os afetos e os interesses pessoais
acabam imiscuindo-se. Os indivíduos, naturalmente, se movem dentro dos limites das
regras postas pela lógica do sistema, de tal modo que se pode construir um modelo ideal
das ações possíveis – e nisto a orientação lévi-straussiana está absolutamente correta –,
todavia este modelo representa não o que deve ser, nem mesmo o que ocorre de fato,
mas apenas o que se tenderia a fazer nos casos típico-ideais, como diria Weber (1999),
em que estivesse excluída qualquer intervenção de princípios alheios à lógica do
sistema, tais como os afetos e os sentimentos (BOURDIEU, 2004a). Acontece, porém,
que na prática as ações dos sujeitos nunca correspondem perfeitamente ao modelo
construído pelo pesquisador, haja vista que são sempre contaminadas por pressões
externas ao sistema, ainda que isto se dê de forma dissimulada.
Entre as pressões externas ao sistema matrimonial do Béarn, isoladamente
considerado, estavam os fatores econômicos. As hierarquias sociais que a consciência
comum bearnesa distinguia, e que tanto determinavam as possibilidades de
matrimônio, não eram totalmente dependentes nem totalmente independentes de suas
bases econômicas. É por este motivo que nomeava-se de uniões desacertadas aquelas
que não tomavam em consideração os interesses econômicos; é por isso também que as
famílias de pouco renome podiam fazer grandes sacrifícios para casar a um de seus
filhos com a integrante de uma maysou relevante. Contudo, o primogênito de uma
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família relevante podia rechaçar um partido mais vantajoso do ponto de vista
econômico para casar-se com alguém que ocupava sua mesma posição social. Isto
ocorria porque a oposição entre “casas” relevantes e humildes se situava no âmbito da
ordem social e, por seguimento, era relativamente independente das bases econômicas.
Havia na sociedade bearnesa, destarte, uma oposição entre desigualdade de posição e
desigualdade de fortuna. A primeira impossibilitava, de direito, determinados
casamentos considerados desacertados, em nome de razões socioeconômicas. A
segunda se manifestava em cada matrimônio particular, fazendo com que matrimônios
acertados socialmente não se consumassem por impedimentos econômicos, de fato,
dado o risco de dilapidação do patrimônio da maysou. Assim, assevera Bourdieu mais
uma vez criticando teses de Lévi-Strauss, os casamentos nunca podem ser resumidos
apenas à lógica das alianças, nem tampouco somente à lógica (econômica) dos
negócios (BOURDIEU, 2004a).
As Estratégias Matrimoniais Camponesas
No artigo de 1962, como é de ver-se no tópico anterior, Bourdieu certamente
intui e esboça algumas de suas principais contribuições à etnologia e aos estudos do
parentesco, de certa forma ultrapassando fronteiras estabelecidas pela antropologia
estrutural. Todavia, ainda parte, em alguma medida, da matriz levi-straussiana para
construir algumas de suas elaborações, utilizando parcialmente o modelo de regras caro
aos estruturalistas, mesmo que procure ir para além dele, vislumbrando a
impossibilidade de explicações estritamente mecânicas, formalistas e abstratas, tais
como as que se preocupam demasiadamente com a construção do mapa formal das
genealogias a fim de compreender as regras ou representações que determinam,
inconscientemente, as ações. Em As estratégias matrimoniais no sistema das estratégias
de reprodução, Bourdieu já visualiza, de forma agora melhor elaborada, que as práticas
camponesas que intentam garantir a reprodução das linhagens e do patrimônio das
“casas” apresentam certas regularidades que não permitem que sejam consideradas
apenas como produtos da obediência a regras. O autor, então, passa a perceber como
necessária a ruptura com o juridicismo da tradição etnológica que tende a tratar as
práticas como mera execução de uma ordem, de um plano ou de um modelo de regras
inconsciente (BOURDIEU, 2004a). Logo, a perspectiva teórica que fez do intelectual
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francês conhecido no campo científico e para além dos muros da academia apresentase, então, mais claramente definida no tocante ao estudo do parentesco no Béarn.
O artigo de 1972 identifica o sistema das disposições inculcadas pelas
condições materiais e pela educação familiar, isto é, o habitus, como o princípio gerador
e unificador das práticas, fruto das estruturas que estas práticas tendem a reproduzir, de
tal modo que os agentes só podem reproduzir – ou melhor, reinventar consciente ou
inconscientemente – as estratégias já comprovadas que, porque têm regido as práticas
desde sempre ou desde há muito, parecem inscritas na natureza das coisas. Para
Bourdieu, portanto, somente o habitus, enquanto manifestação de esquemas que
orientam todas as opções – sem, no entanto, conseguir sua explicação completa e
sistemática –, pode contribuir para a compreensão das ações dos campesinos bearnêses,
ainda que ao custo de uma ruptura com o modelo de regras que, aliás, só existe enquanto
tal nas teorias dos etnólogos. Assim, as alianças matrimoniais no Béarn devem ser
compreendidas como resultado de estratégias, mais do que de regras, orientadas à
perpetuação da maysou e do patrimônio que havia de continuar sendo integralmente
transmitido de geração para geração (BOURDIEU, 2004a).
Por seguimento, o matrimônio bearnês não era fruto da observância de regras
ideais, senão produto de estratégias que, lançando mão dos princípios profundamente
interiorizados de uma tradição particular, reproduziam, mais inconsciente do que
conscientemente, esta ou aquela das soluções típicas que garantiam a especificidade da
tradição camponesa. O matrimônio sempre colocava ao capmaysoué um sério problema
econômico e social que poderia alcançar o patrimônio e o nome da família e que só seria
satisfatoriamente resolvido em se recorrendo a todas as possibilidades oferecidas pelas
tradições sucessórias e matrimoniais do Béarn. Evidentemente que o cabeça de família
podia valer-se das regras formais que o estruturalismo acredita poder reconstruir, mas, na
prática, o comum era que as soluções ideais-típicas oferecidas pelo mapa das
genealogias fossem submetidas a todas as manipulações necessárias para justificar, ex
ante ou ex post, as alianças mais conformadas aos interesses da linhagem, quer dizer, à
salvaguarda ou, até mesmo, ao incremento de seu capital material e simbólico. Desta
forma, para Bourdieu o que importa, no caso do Béarn, são menos as regras do que os
caminhos efetivamente percorridos pelos sujeitos reais das relações de parentesco. Logo,
o que torna o parentesco concreto e efetivo não são as genealogias construídas pelos
etnólogos, mas sim os caminhos cultivados pelos sujeitos socializados (BOURDIEU,
2004a). Por isso, a perspectiva bourdieusiana propõe-se a centrar sua atenção no que
Woortmann (2004) chamara de parentesco prático, isto é, nos caminhos cultivados.
As estratégias matrimoniais bearnesas, de acordo com Bourdieu, sempre se
propunham a realizar um “bom casamento” e não apenas um simples casamento, ou
seja, visavam otimizar os benefícios e minimizar os custos econômicos e simbólicos
do matrimônio enquanto uma transação de tipo muito peculiar. Estas estratégias
eram regidas, em cada caso, pelo valor do patrimônio material e simbólico que podia
ser investido e revertido com a transação, de conformidade com o sistema de
interesses próprios dos diferentes sujeitos envolvidos, considerando-se o capital
material e simbólico de sua família, o número de filhos homens e mulheres, se o
nubente é varão ou varoa, primogênito o filho segundo.
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O casamento no Béarn, conforme a interpretação de Bourdieu, por conseguinte, era
um fato econômico e político, visando não apenas a preservação da “casa”, mas
também da honra da família e sua posição na hierarquia social. Era parte de um jogo
social, análogo ao jogo de cartas. Cada casamento consistia, pois, em um lance, o
resultado de estratégias que dependiam dos matrimônios anteriores, e implicavam
invariavelmente um risco representado, entre outros fatores, pelo dote, posto que,
como já visto, havia sempre a possibilidade deste ser devolvido (BOURDIEU,
2004a; WOORTMANN, 2004).
As trocas matrimoniais, então, faziam-se dentro de um jogo, que admitia
riscos, e o sucesso neste jogo dependia da habilidade dos jogadores. Quem jogava,
todavia, não eram os indivíduos considerados nos seus interesses, sentimentos e
afetos, e sim a maysou, objetivando manter a integridade de seu patrimônio e seu
nome. Contudo, a “casa” bearnesa era encarnada por um sujeito mais concreto, o
capmaysoué, guardião e herdeiro não só de sua materialidade, como também da honra
da linhagem. Este herdeiro precisava dominar o senso prático, o sentido dos variados
jogos que articulavam e contrapunham as diversas “casas”, incluindo o jogo muito
peculiar dos casamentos. O sucesso no jogo dependia, além da maestria do
capmaysoué, do número relativo de filhos e filhas existentes na casa a cada geração. A
paridade na quantidade de filhos e filhas, ou o maior número de varões, significava
sempre anunciação de melhores probabilidades de sucesso. A existência de um
quantitativo de filhas maior do que o de filhos, a seu turno, constituía prenúncio de
dificuldades a serem enfrentadas no jogo dos matrimônios. E isto porque, dentre
outras razões já expostas associadas à valoração negativa das filhas mulheres no
sistema simbólico bearnês, era o dote recebido pelo casamento do filho primogênito,
o herdeiro – o do varão sempre maior do que o da varoa – que assegurava casar e dotar
os filhos segundos, fossem homens ou mulheres. O cabeça da “casa” necessitava
conhecer, pois, o sentido do jogo para realizar boas alianças, casando o herdeiro com
uma mulher de outra “casa” preferencialmente superior, mas não demasiadamente
acima, que garantisse, pelo pagamento do adot, o casamento das filhas e filhos
segundos, evitando as alianças desacertadas que resultassem em desonra ou
dilapidação do patrimônio da maysou (BOURDIEU, 2004a; WOORTMANN,
2004).
De forma geral, além do imperativo fundamental de salvaguardar a maysou, o
jogo social impunha ao capmaysoué a observância de dois princípios básicos em suas
estratégias. O primeiro consistia na primazia dos homens sobre as mulheres, o que
levava ao fato de que a condição de herdeira só pudesse recair sobre uma varoa na
absoluta ausência de filhos varões, já que as filhas, independentemente de sua ordem
de nascimento, estavam sempre condenadas a serem filhas segundas. Com efeito, o
direito a ser um cabeça de família só podia caber a um homem, ao maior dos agnatos
ou, em sua ausência, ao marido da herdeira – uma espécie de herdeiro através da
mulher –, que convertia-se em representante da linhagem de sua esposa e tinha que
sacrificar em alguns casos até seu nome de família, para tanto. O segundo princípio
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básico constituía na primazia do primogênito sobre os filhos segundos. Este princípio
estava intimamente relacionado ao fato de o patrimônio ser o verdadeiro objeto das
decisões econômicas e políticas da família. Ele afirmava a indivisibilidade do poder
sobre a terra, outorgado ao primogênito, o que decorria, na realidade, da
indivisibilidade da própria terra e determinava ao primogênito que se convertesse em
seu defensor e guardião. Assim, o princípio implicava que a terra pertencia ao
primogênito e este à terra (BOURDIEU, 2004a).
No jogo das trocas matrimonias do Béarn, portanto, o primogênito era uma
peça particularmente importante. Constituía aquele que permanecia na “casa”,
convertendo-se em guardião da maysou; era, ainda, o herdeiro e futuro transmissor do
patrimônio. Tratava-se, contudo, mais de uma construção social do que de uma
posição natural, pois em dadas circunstâncias outro filho mais jovem podia ser
transformado em herdeiro. Na realidade, o pai “fazia” o herdeiro ou primogênito,
segundo sua vontade, a conveniência ou as contingências do jogo social e econômico,
manipulando as regras oficiais, inclusive as jurídicas, os usos e os costumes do
sistema a fim de maximizar as chances de perpetuação da maysou. Por outro lado, o
filho segundo, não raramente celibatário – principalmente quando de uma família
pobre –, embora não ocupasse um papel central, comumente exercia uma função
importante na reprodução social no Béarn. Construído pelo habitus, era resignado
porque designado pelas regras e regularidades do sistema, tendo internalizado as
disposições naturalizadas que o colocavam na condição de pessoa detentora de uma
espécie de “menoridade adulta”. O celibatário não representava apenas mão de obra,
ainda que representasse isto também; era necessário para garantir a continuidade das
alianças matrimonias, na hipótese de falecimento do herdeiro, que conduziria ao fim
dos laços estabelecidos pelo casamento, com o perigo sempre presente de ocorrência
do tournedot caso o primogênito não deixasse descendência, o que poderia restar
evitado com o matrimônio da viúva com o filho solteiro (BOURDIEU, 2004a;
WOORTMANN, 2004).
Bourdieu vai, assim, além da noção abstrata de aliança matrimonial sem
sujeitos concretos lévi-straussiana, focalizando cada casamento no contexto das
particulares histórias matrimoniais das “casas” camponesas. De acordo com o autor, os
casamentos no Béarn, diferentemente do que pensaria um estruturalista, eram
construções de um sujeito ativo, o capmaysoué, visando evitar as más alianças e obter
um dote máximo com o matrimônio do primogênito, assim como gastar o mínimo
possível com o dote dos filhos e filhas segundos, o que poderia inclusive redundar no
celibato destes filhos – mais comum e desejado para os varões do que para as varoas,
pois aqueles constituíam mão-de-obra extremamente necessário em um mundo social
onde o dinheiro era escasso, enquanto as mulheres não se dedicavam ao trabalho
agrícola, senão ao doméstico, sendo economicamente onerosas para a maysou. Este
jogo, pautado em um senso prático, não alcançava, porém, a ordem do discurso: davase conforme o habitus, excluindo o conflito entre dever e sentimento e fazendo com que
os indivíduos só percebessem no cônjuge qualidades que, na verdade, travestiam os
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reais critérios adotados: a busca pela reprodução do patrimônio, da honra e do nome da
linhagem. Isto não significa que não existissem discordâncias, mas estas funcionavam
na dissimulação e transfiguração do destino construído social e culturalmente como se
fosse uma livre escolha. Por isso, Bourdieu afirma que o etnólogo não deve tomar como
verdade sagrada o discurso público, oficial, simplesmente construindo relações lógicas
que se opõem às relações práticas. Mas sim compreender o senso prático e as estratégias
dele decorrentes, que produzem no discurso uma transfiguração dos interesses reais.
Assim, é preciso ir-se para além do discurso público dos nativos, relacionando, no
entanto, as práticas e os discursos a princípios culturais centrais, que lhes organizam
Celibato, Dominação Econômica e o
Mercado Matrimonial Bearnês
Tudo sobre o que se dissertou até então toca mais diretamente ao estado do
sistema simbólico bearnês anterior ao período que Bourdieu realizara sua pesquisa,
em meados do século XX.Entretanto, um dos fatores primaciais que levaram o
sociólogo francês a interessar-se por voltar, enquanto etnólogo a sua região natal, fora
as modificações profundas que o mercado matrimonial do Béarn vinha sofrendo em
função do processo de urbanização e, concomitantemente, da introdução da
economia de mercado e de seu sistema de valores. Já no artigo Celibato e condição
camponesa Bourdieu se perguntara o que levou o sistema matrimonial campesino à
anomia, fazendo-o operar de sorte a converter em celibatários aqueles agentes
designados pelas regras sociais ao casamento preferencial, isto é, os primogênitos.
No artigo de 1989, Reprodução proibida, o autor oferece outra significativa
contribuição à antropologia e aos estudos do parentesco dedicando-se a buscar uma
forma de compreender o fenômeno social dos primogênitos celibatários da sociedade
bearnesa. Bourdieu explica tal fato demonstrando a ocorrência do que chamou de
unificação do mercado de bens simbólicos, ou seja, da miscigenação do sistema
simbólico dos camponeses do Béarn com o sistema de valores que, dentre outros
motivos, acompanhou o processo de urbanização e de incorporação, no modo de vida
campesino, dos princípios que fazem operar a economia de mercado, bastante
distintos dos que acompanhavam a economia de subsistência tradicional camponesa.
Para finalizar o presente trabalho, discorrerei brevemente sobre este terceiro
momento das reflexões bourdiesianas acerca dos campesinos bearnêses.
A anomia – para usar o termo de Durkheim (1999) de que Bourdieu valeu-se
no artigo de 1962 – do sistema matrimonial do Béarn ocorrera, segundo o sociólogo
francês, em razão de um conjunto de processos, tanto econômicos quanto simbólicos,
que contribuíram para a abertura objetiva e subjetiva do mundo camponês, fenômeno
este que veio a neutralizar progressivamente a eficácia dos fatores que tendiam a
garantir a autonomia relativa do universo bearnês e possibilitavam a resistência ao
sistema de valores dominantes no meio urbano. Tais fatores, por exemplo, estavam
relacionados à parca dependência dos camponeses em relação à economia de
mercado, sobretudo no que respeita ao consumo, ao isolamento geográfico, à
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precariedade dos meios de transporte, às dificuldades de deslocamento, ao
confinamento em um universo social de base local, para não citar outros. Referido
confinamento objetivo e subjetivo propiciava uma espécie de particularismo cultural
baseado na resistência ao modo de vida urbano, notadamente em matéria de língua (os
camponeses, tradicionalmente, comunicavam-se entre si em bearnês e não em
francês), religião e política. A unificação do mercado de bens simbólicos resultou, por
um lado, em uma força de atração exercida pelas realidades urbanas dominantes e por
seu sistema cultural e, por outro, em uma força de inércia que diferentes agentes
incorriam em razão de seus habitus, quer dizer, de seus esquemas tradicionais de
percepção, valoração, ação e apreciação (BOURDIEU, 2004a).
Os camponeses do Béarn viviam em um microcosmos social relativamente
fechado que cerrava-se ao macrocosmo da sociedade moderna capitalista do entorno.
Este relativo isolamento dotava os camponeses de hierarquias sociais próprias, havendo
seus dominantes e seus dominados, assim como seus conflitos de “classes”, que
apresentavam uma certa independência das relações que se davam no espaço externo. A
unificação do mercado de bens simbólicos apresentou como primeiro efeito o
desaparecimento dos valores campesinos capazes de colocar-se frente aos valores
urbanos e mercadológicos dominantes. Assim, para referir apenas alguns exemplos de
impactos do novo estado de coisas material e simbólico, a exploração agrícola passou a
depender cada vez mais do mercado de bens industriais (maquinarias e etc.), de
empréstimos que comprometiam o equilíbrio financeiro da empresa agrícola e as
induzia à adesão a certos tipos de produtos e mercados, da evolução geral dos índices de
preços de que os camponeses não tinham qualquer controle, da intervenção econômica
dos poderes públicos em um universo social, algo naturalizado, que partilhava de uma
ilusão de autonomia em relação às intervenções do Estado. A subordinação crescente da
economia camponesa à lógica da economia de mercado, que provocou profundas
transformações materiais no mundo rural bearnês, como é de ver-se, foi acompanhada,
como que por uma relação de causalidade circular, de mudanças profundas no sistema
simbólico que determinaram a degeneração da autonomia campesina e, com isso, a
debilitação de sua capacidade de resistência à urbanidade (BOURDIEU 2004a).
Na medida em que o mundo finito e fechado dos bearnêses objetivamente se
abre, os véus subjetivos – isto é, de cada indivíduo –, que tornavam impensável a
miscigenação entre o espaço rural e o urbano, começam a também ser retirados.
Todavia, as vantagens associadas à vida urbana só existem e atuam sobre os camponeses
quando se tornam percebidas e valoradas, e isto somente ocorre se são apreendidas em
função de categorias de percepção e de valoração (habitus) que fazem aquelas vantagens
deixarem de passar inadvertidamente, ignoradas, convertendo-se em não apenas
visíveis, mas também desejáveis. A força de atração do modo de vida urbano, pensa
Bourdieu, só pode exercer-se em mentes previamente treinadas a notar seus atrativos.
Ou seja, é a conversão coletiva da visão de mundo, em muito cara ao processo de
escolarização, que confere o reconhecimento hegemonicamente outorgado aos valores
da urbanidade. Evidentemente, a conversão coletiva aos novos valores é também o
produto histórico de inumeráveis conversões individuais. E os agentes que, no Béarn,
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opuseram menos resistências às forças de atração externas, que perceberam antes e
melhor as vantagens associadas à cultura urbana, foram aqueles destinados socialmente
a sentirem um menor apego objetivo e subjetivo pela terra e pela maysou, quer dizer, as
mulheres, os filhos segundos e os camponeses pobres (BOURDIEU 2004a).
A revolução econômica e simbólica no meio rural foi muito particularmente
sentida no mercado matrimonial, onde a transformação do sistema de valores tornou-se,
de acordo com Bourdieu, especialmente dramática. Os herdeiros das famílias relevantes,
designados culturalmente a serem mais apegados às tradições – aliás, a serem seus
guardiões –, restaram condenados ao celibato, enquanto vítimas conjeturais das
circunstâncias históricas que transformaram o mercado matrimonial camponês outrora
rigorosamente protegido por imposições e controles manifestos nas representações e
práticas tradicionais.Ao empreender uma desvalorização brutal do modo de produção
material e de reprodução social camponês, ou seja, de tudo aquilo que as famílias
campesinas podiam oferecer – incluindo sua linguagem, seus modos, seus
comportamentos e até sua corporeidade –, a unificação do mercado de bens simbólicos
neutralizou os mecanismos sociais que garantiam aos camponeses, sobretudo aos
primogênitos, o monopólio de fato do mercado matrimonial, um mercado então restrito
que proporcionava-lhes todas as mulheres necessárias para a reprodução social do grupo.
Ao empreender uma desvalorização brutal do modo de produção material e de
reprodução social camponês, ou seja, de tudo aquilo que as famílias campesinas podiam
oferecer – incluindo sua linguagem, seus modos, seus comportamentos e até sua
corporeidade –, a unificação do mercado de bens simbólicos neutralizou os mecanismos
sociais que garantiam aos camponeses, sobretudo aos primogênitos, o monopólio de fato
do mercado matrimonial, um mercado então restrito que proporcionava-lhes todas as
mulheres necessárias para a reprodução social do grupo. O mercado matrimonial de antes
não obedecia a leis mecânicas – como um estruturalista poderia pensar –, mas possuía
mecanismos suficientes para estar protegido das “anarquias”, sendo por isso que a
iniciativa do matrimônio não pertencia aos indivíduos, senão a suas famílias, em nome
dos interesses das “casas”, o que resguardava o mercado das fantasias ou azares dos
sentimentos. O habitus também contribuía para a salvaguarda do mercado matrimonial,
visto que a própria educação familiar já predispunha aos jovens a submeterem-se às
cominações parentais e a perceber os pretendentes e o casamento segundo as categorias
de percepção (as “lentes”) da cultura camponesa (BOURDIEU 2004a).
De acordo com a interpretação de Bourdieu, o controle do grupo sobre os
intercâmbios matrimoniais se afirmava na restrição do mercado de casamentos, que
era então medido em distância geográfica e, o mais significativo, em distância social.
Mesmo que, neste aspecto, o mundo campesino não possuísse autonomia absoluta, os
cabeças de família conseguiam conservar o controle da reprodução do grupo,
assegurando que a quase totalidade dos intercâmbios matrimoniais ocorressem no
seio de um mercado extremamente reduzido e homogêneo em termos de condições
materiais de existência e de habitus, o que garantia a perpetuação dos valores
fundamentais do grupo. Todavia, este mundo hermeticamente fechado, com a
unificação do mercado de bens simbólicos, foi paulatinamente se abrindo. E com a
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abertura do mercado matrimonial e a difusão de novos valores, notadamente urbanos,
os jovens citadinos, com sua desenvoltura e sua hexis corporal (incluindo o físico,
elementos posturais e o vestuário) levavam grande vantagem sobre os camponeses,
inaugurando uma concorrência absolutamente desigual. Além disso, o jovem citadino
era capaz de circular em diferentes mercados matrimoniais, enquanto que os
campesinos bearnêses estavam confinados a um meio rural limitadíssimo e
submetidos agora a competências, dentro de seu próprio campo de ação, de que seus
concorrentes estavam simbolicamente melhor apetrechados (BOURDIEU 2004a).
Foi este contexto que tornou o sistema anômico, notadamente porque os
camponeses, em especial os primogênitos de famílias relevantes, continuaram
aplicando os princípios antigos às situações sociais novas. As respostas de seu
habitus, não coincidindo mais com o mundo exterior, passaram a contrapor-se a este
mundo, invertendo seus efeitos e fazendo-os atuar contra o próprio sistema cultural
bearnês. Isto ocorrera porque a crise no universo dos valores não engendrou
automaticamente a tomada de consciência das transformações. Ademais, a anomia se
explica porque as alianças matrimoniais começaram a operar no Béarn com
princípios contraditórios, os camponeses desejando resistir à nova ordem, mas se
convertendo, ao mesmo tempo, em cúmplices do processo de degeneração dos
valores e do estilo de vida tradicional. Tal paradoxo manifestava-se quando, por
exemplo, os camponeses desejavam que seus filhos casassem com camponesas,
embora pretendessem que suas filhas esposassem citadinos. Assim, o grupo não
almejava para suas filhas o que almejava para seus filhos ou, em outros termos, não
queria seus filhos para suas filhas, mesmo que quisesse suas filhas para seus filhos.
Esta contradição ocasionava naturalmente o celibato dos herdeiros, o êxodo rural e o
abandono dos valores tradicionais, fatos tidos pelos campesinos como calamidades
sociais, fazendo dos bearnêses cúmplices de sua própria degenerescência, isto é,
colocando-os em uma situação patente de violência simbólica (BOURDIEU 2004a).
Considerações Finais
A análise dos três artigos bourdieusianos sobre o parentesco na sociedade
bearnesa, que por agora findo, conduz-nos à conclusão de que os principais
contributos que Bourdieu oferece nestes textos à etnologia praticada em meados do
século XX poderiam ser assim resumidas: 1) a prática da etnografia em uma
sociedade camponesa europeia e familiar ao pesquisador, buscando fugir do
mecanicismo e formalismo das explicações estruturalistas, sobretudo as lévistraussianas; 2) a descoberta de que o celibatário, diferentemente de um sujeito que se
encontra em uma posição anômala dentro da sociedade – como os etnólogos
costumavam vê-los antes dos trabalhos bourdieusianos –, pode, em alguns grupos,
exercer uma função relevante para a reprodução social; 3) a percepção das
regularidades e das estratégias dos agentes socializados, especialmente a partir das
noções teóricas operativas de habitus e senso prático, em oposição ao modelo de
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regras e das construções de mapas formais de genealogias, ao estilo de Lévi-Strauss; e
4) a visualização das estratégias matrimoniais como sendo partes constituintes de um
mercado de bens simbólicos sempre tendente à autonomização, embora sujeito às
pressões externas, ainda que de forma dissimulada, tais como as econômicas e as
derivadas dos afetos e sentimentos subjetivos.
Estas três contribuições aos estudos antropológicos do parentesco foram
publicizadas em momentos muito distintos da obra bourdieusiana, que vão do jovem
pesquisador recém ingresso nas ciências sociais através da etnologia, até o intelectual
maduro do final da década de 1980. Todavia, mesmo que em Celibato e condição
camponesa possamos ver um Bourdieu ainda não tão distante da matriz estruturalista – a
buscar, de certa forma, desvelar a lógica do parentesco bearnês – e em Reprodução
proibida um Bourdieu absolutamente seguro de como ir além do estruturalismo –
verificando as interfaces entre o mercado matrimonial e a economia de mercado –, penso
não equivocar-me ao afirmar que os artigos apresentam uma coerência entre si enquanto
esforços, em graus diferentes de êxito, de superação da práxis etnológica de Lévi-Strauss.
De qualquer forma, lidos em conjunto, como na obra O baile dos celibatários, oferecem
elementos significativos para se pensar, parafraseando o próprio Bourdieu, o ofício de
antropólogo, no caminho do que o autor chamou de uma antropologia reflexiva.
Referências
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El baile de los solteros. Trad. Thomas Kauf. Barcelona: Anagrama, 2004a.
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Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Trad.
Denice Bárbara Catani. São Paulo: UNESP, 2004c.
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A História da Evolução da Escrita no Mundo Ocidental
Edivaldo da Silva Bernardo *
Myrlena Bastos Queiroz **
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo refletir a respeito da história da evolução da escrita no mundo ocidental
considerando as implicações a respeito de sua origem, as formas de escrita de acordo com a cultura e o
aparecimento da escrita na América do Sul. No texto, são ressaltadas as concepções teóricas de alguns
estudiosos da área da linguística, antropologia, arqueologia e filologia voltadas para o campo de estudo da
escrita, e que a definem como uma linguagem que tem função política, econômica e social, como fonte de
poder ou compartilhamento do conhecimento e do saber entre os povos.
Palavras-chave: origem da escrita - formas de escritas - escrita na América do Sul
ABSTRACT
This paper proposes a reflection about the history of the evolution of writing in the Western world
considering the implications regarding its origin, forms of writing according to the culture and the
emergence of writing in South America. The text highlights theoretical conceptions of some
scholars in the field of linguistics, anthropology, archeology and philology related to the field of
study of writing, who define it as a language that has political, economic and social role as a
source of power or knowledge sharing and of knowledge itself among the people.
Keywords: origin of writing - forms of writing - writing in South America
* Doutor em História e Literatura pela Universidade de Leon/ Espanha; professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
Email: [email protected]
** Especialista em Língua, Cultura e Sociedade pela UFOPA e em Linguagem na Educação Infantil e nas Séries Iniciais pela UFPA.
E-mail: [email protected]
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Introdução
A escrita é uma das mais antigas tecnologias inventada pelo homem, vista
como um instrumento de ascensão social. Como uma linguagem, ela é indispensável
ao homem pelo valor cultural, político, econômico, religioso, literário e social. Neste
sentido este trabalho propõe uma reflexão da escrita como fonte de poder no ensino,
numa abordagem sociointeracionista, considerando a natureza, função e uso da
escrita como práticas sociais indispensáveis ao ser humano.
A linguagem escrita é imprescindível ao ser humano. Pesquisas realizadas no
campo de estudo da escrita, afirmam que, por ser uma linguagem, há diferentes
concepções que vão da mais técnica a mais humanista. Na perspectiva humanista
existe uma visão mítica e evolucionista. Quanto a ser mais técnica, a escrita tornou-se
um objeto de pesquisa envolvendo todas as diferentes áreas do conhecimento.
Assim, este artigo intitulado “A escrita como fonte de poder no ensino”
apresenta uma discussão da escrita sob o ponto social, político, econômico e
linguístico. Neste sentido, “A história da evolução da escrita no mundo ocidental”
apresenta as implicações a respeito da origem da escrita, as formas de escrita de acordo
com a cultura e o aparecimento da mesma na América do Sul, no intuito de mostrar o
poder da escrita no mundo ocidental, como fator de desenvolvimento comercial,
cultural, político e econômico, assim como possibilitou a comunicação entre os povos.
A História da Evolução da Escrita no Mundo Ocidental
1 As Implicações a Respeito da Origem da Escrita
Para se compreender a história da evolução da escrita no mundo ocidental é
preciso entender as implicações sobre sua origem. A escrita para alguns estudiosos
como Mandel (2011) vem ser a expressão do pensamento. Neste sentido, embora
tenha sido um instrumento de poder entre os homens, à medida que se espalhou entre
os povos tornou-se uma forma ideal de compartilhar o conhecimento.
Para outros estudiosos, como Tfouni (2010, p.12), ”a escrita é um produto
cultural por excelência”, quando se entende cultura como “materialismo histórico”,
com poder de decisão, historicidade, de construção e transformação da natureza.
Vista desta forma a escrita exerce uma influência, uma evolução, mas ao mesmo
tempo permite uma aproximação entre os povos.
Quanto à sua natureza, as pesquisas realizadas na área da história da antropologia,
sociologia, psicologia e linguística entre outras, mostram que no campo de estudo da escrita há
uma perspectiva mais técnica e outra mais humanista, e mais orientada pela história da cultura.
Na perspectiva de ser mais técnica, Gnerre (1991) afirma que a escrita tornouse um objeto de pesquisa nos últimos tempos, com o aumento de programas de
alfabetização e educação, devido a pressões políticas e econômicas, e a padronização
da escrita de muitas línguas sem tradição escrita, passando então a ser objeto de
reflexão de fundamentação histórica e ideológica na sociedade.
Quanto ser mais humanista, o campo de estudo da escrita se desenvolveu a
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partir de um ponto de vista mítico. Neste caso, Gnerre (1991, p. 42) afirma que
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[...] a partir de uma visão evolucionista e mítica da escrita. Evolucionista, porque
opera a partir do pressuposto da existência de uma série linear de estágios da
história da escrita, que, iniciando com os símbolos “pictográficos” e
“ideográficos”, alcançando o nível mais alto de abstrações com a escrita
alfabética; mítica porque assume que a escrita, e em especial a escrita alfabética,
que representa um marco substancial numa perspectiva cultural e cognitiva.
Assim, percebemos que na sua origem a escrita sofreu uma evolução desde os
símbolos até chegar à forma que o alfabeto é hoje, o que explica também o
aparecimento do “Homom-sapien” relacionado com o aparecimento da linguagem oral
e escrita feita por alguns pesquisadores de concepção evolucionista (GNERRE,1991).
Assim, as marcas gráficas deixadas pelo homem primitivo em objetos,
cavernas e rochas, não deixam dúvida que havia uma necessidade do homem de se
comunicar, registrar os acontecimentos ou até mesmo de expressar suas ideias. Neste
sentido, afirma Mandel (2011, p.17) que
o homem primitivo rodeado por um meio ambiente ainda não dominado tinha
tendência em dar um sentido místico às ações mais comuns e estabelecia uma
relação oculta entre os mais diversos acontecimentos. Nos sinais mnemônicos
mágicos, assim como nas marcas de propriedade.
Assim, as marcas feitas pelo homem primitivo permitiu uma forma
independente e autônoma da escrita em que a história passa a considerar como marco
fundamental na divisão entre a história e pré-história.Entretanto, para muitos
pesquisadores não se pode afirmar que as marcas gráficas deixadas pelo homem
primitivo se constituem um sistema.
O assunto de conceituar ou não um sistema em que envolve a escrita é tão
complexo que Gnerre (1991) explica que, no século XVI, os europeus, ao estudar os
hieróglifos Nahuati e Maia, tiveram dúvidas se deviam ou não adotá-los como
sistema, devido aos costumes e hábitos desses povos serem diferentes dos deles.
Neste sentido, somente no século XVII, com o conhecimento da escrita e da cultura
chinesa, permitiu-se conceituar povos com “ausência de escrita/escrita nãoalfabética/escrita alfabética” (GNERRE,1991, p. 36).
Considerando que a escrita não seguiu de uma linha de evolução cronológica
específica de nenhum sistema, Cagliari (1995) afirma que, não existe uma data que
defina sua origem. Historicamente, o que marcou o surgimento da escrita foi o
sistema de contagem, feito pelos homens primitivos por meios de marcas feitas de
cajados ou ossos usados para contar animais, numa época em que estes já possuíam
rebanhos e domesticavam animais.
Esses registros com o tempo evoluíram e foram usados no comércio, nas
trocas e vendas de produto, o que fez com que surgissem os números, os símbolos
para os produtos, e nomes para os proprietários. Segundo Cagliari (1995), as marcas
gráficas deixadas pelo homem primitivo são conhecidas como os códigos escritos
mais antigos deixados pelo homem e estão divididas em três fases distintas: a
pictográfica, ideográfica e alfabética.
A fase pictográfica caracteriza-se por desenhos associados à imagem que
quer se representar. As evidências desta escrita encontram-se em inscrições antigas
como os que existem nos cantos de Ojibwa na América do Norte, representando um
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Revista Perspectiva Amazônica
catecismo Asteca (CAGLIARI, 1995).
No que se refere à fase ideográfica, esta se caracteriza pela escrita através de
desenhos especiais que representavam não somente a imagens, mas a ideia que se
queria representar. Conhecidos como ideogramas Cagliari (1995, p.108) explica que
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esses desenhos foram ao longo da sua evolução perdendo alguns dos seus traços
representativos das figuras retratadas e tornaram-se uma simples convenção de
escrita. As letras do nosso vieram desse tipo de evolução. Por exemplo, o aera a
representação da cabeça de um boi na escrita egípcia [...] o dera a figura de uma
porta [...]o X representava o peixe [...]
Desta fase merecem destaque e escrita egípcia ou hieroglífica, a mesopotâmia
(suméria), as escritas da região do mar Egeu (por exemplo, a cretense), a chinesa de onde
se originou a escrita japonesa e a dos Maias na América Central (CAGLIARI, 1995).
Os estudos de Cagliari (1998) afirmam que sistemas de escritas dos sumérios,
dos egípcios, dos chineses e dos Maias foram criados de forma autônoma e
independente, sem o conhecimento prévio de outros povos. O autor afirma, ainda,
que todos os demais sistemas de escrita foram criados a partir de contato de pessoas
com algum outro sistema de escrita.
Quanto à escrita alfabética, ela é fruto da evolução dos ideogramas, caracterizase pelo uso das letras e assumem a função de um sistema de escrita de representação
fonográfica. Pode ser considerada uma das maiores invenções humanas, e foi por meio
do alfabeto que nasceu e se fundamentou a nossa cultura e nossas sociedades
modernas. Conforme Cagliari (1995) entre os sistemas alfabéticos mais importantes
destaca-se o semítico, o indiano e o grego-latino. Deste último nasceu nosso alfabeto.
Conforme Cagliari (1995) os gregos adaptaram o sistema de escrita dos
fenícios, juntando as vogais e as consoantes criando o sistema de escrita alfabético.
Do grego veio o alfabeto latino, de onde se originou o nosso alfabeto e o cirílico
(grego) e também o russo. A forma como vemos hoje o alfabeto é uma forma
modificada, pois houve muitas transformações nos silabários, os sinais específicos de
representação das sílabas. Como, por exemplo, quando Cagliari (1995, p. 117) afirma
que,“O sistema de escrita do português, como já vimos, usa vários tipos de alfabeto;
apesar disso não é totalmente alfabético, usando, além das letras, outros caracteres de
natureza ideográfica, como os sinais de pontuação e os números”.
Assim, as letras do sistema de escrita em português têm um uso alfabético, ou
seja, cada letra corresponde a um segmento fonético, mas podem também perder a
relação um a um entre símbolo e som.
Na Mesopotâmia também coube aos Sumérios, há 3.300 anos antes de Cristo
a forma mais antiga considerada independente e autônoma da escrita. Estes
desenvolveram um tipo de escrita denominada cuneiforme, feita com objetos em
forma de cunha em tabletes de argilas, que evoluiu e outros povos passaram a adotar
como aconteceu com os babilônicos, hititas e árabes ao criarem cerca de 350
caracteres, assim como, também os persas que foram os primeiros a construir um
grande império, que mais tarde foi conquistado por Alexandre o Grande.
Entretanto, os fenícios criaram um sistema de escrita a partir de outro povo. O
sistema de escrita alfabético adotado pelos fenícios possui muitos sinais da escrita
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egípcia, formando assim um número reduzido de caracteres com sons consonantais
permitindo escrever palavras apenas com consoantes, que depois influenciou a escrita
árabe e o hebraico até hoje. Na Idade Antiga os fenícios utilizaram a escrita em suas
transações comerciais e foram considerados como um dos grandes precursores da
escrita, pela forma como mantinham contato com outros povos (CAGLIARI, 1995).
No Egito, a escrita surgiu também de forma autônoma e independente, por
volta 3.000 antes de Cristo. Eles foram os precursores de três formas de escrita: a
hieroglífica, a hierática e a demótica. Conforme Vainfas (2010), a princípio a escrita
hieroglífica exerceu um caráter religioso, com inscrições em monumentos e templos,
considerada a escrita sagrada.
Conforme Vainfas (2010), os hieroglíficos deram origem à forma hierática,
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uma escrita cursiva muito usada em textos literários, jurídicos e administrativos que
eram grafadas no papiro, um tipo de suporte feito com papel feito com as fibras de
uma planta aquática. Por último, a forma hierática também evoluiu para a forma
demótica que passou a ser usada na administração, criando assim uma camada
burocrática denominada escriba.
Muitos historiadores afirmam que a escrita egípcia era de alta complexidade,
a qual possuía uma combinação de pictogramas e ideogramas, ou seja, desenhos que
representavam objetos concretos e ideias abstratas. Afirma Vainfas (2010) que a
escrita egípcia somente foi decifrada em 1822, quando o linguista francês Jean
François Champollion se dedicou aos estudos das inscrições da Pedra de Roseta,
surgindo assim a Egiptologia uma nova ciência.
Afirma Cagliari (1998)que de forma autônoma e independente por volta de
1500 a.C a China, por ser considerada um povo civilizado e poderoso, criou um sistema
ideográfico que revolucionou os estudos sobre a escrita alfabética e não alfabética. Os
Maias também tiveram um sistema de escrita independente, num espaço de tempo em
que a ciência ainda não determinou. Afirma o autor que todos os demais sistemas de
escrita foram criados a partir de contatos que pessoas tiveram com outros povos.
Introduzida na Grécia e na Jônia no século VIII a.C a escrita alfabética
originou-se de uma evolução do sistema ideográfico. O processo foi lento, mas
deixou mudanças culturais bem significativas em relação à escrita daquela sociedade,
que antes era de tradição oral, segundo explica Tfouni (2010). Desta forma, a difusão
da escrita alfabética no ocidente levou séculos para se firmar.
Devido ao aparecimento lógico-empírico e filosófico, da formalização das
disciplinas de história e lógica decorrente da própria democracia, permitiu que a
Grécia passasse por um radical processo de transformações culturais e político-sociais.
Neste sentido,Tfouni (2010) explica que só foi possível reconhecer a sociedade grega
como letrada no século V e VI a.C, consolidando-se, assim, a escrita fonética.
Explica Mandel (2011)que com os romanos, assim como com os gregos, foi
diferente, eles adaptaram sua escrita às suas particularidades linguísticas e culturais.
Nesse sentido a escrita romana foi criada para o latim da Roma antiga, o que permitiu
a origem de inúmeras transcrições ortográficas contemporâneas, entre elas, a do
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Revista Perspectiva Amazônica
português brasileiro. Essas transcrições têm em comum um conjunto de grafemas
fonológicos, a que chamamos de alfabeto romano latino ou ocidental, conforme
Gramática descritiva-grafologia de Radames (2013).
A forma autônoma e independente da escrita não aconteceu da mesma forma
nas sociedades. No entanto, alguns questionamentos são feitos por alguns estudiosos
a respeito de como a escrita foi utilizada, comprovando a forma como cada sociedade
a adotou. Neste sentido,Tfouni (2010, p. 15) questiona que
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se a escrita, está associada, desde sua origem [...] ao jogo de dominação/ poder,
participação/ exclusão/ que caracteriza ideologicamente as relações sociais. Ela
pode também ser associada ao desenvolvimento social, cognitivo e cultural dos
povos, assim como a mudanças profundas nos seus hábitos comunicativos.
Numa visão mais humanista, Valverde (1997 apud TFOUNI, 2010) afirma
que o uso da escrita pelos sumérios, foi fundamental para o seu desenvolvimento
comercial e cultural e se expandiu aos povos vizinhos como a Índia e a China. Isto é
confirmado quando Tfouni (2010) explica que as argilas utilizadas dentro dos
templos dos sumérios são exemplos de registros das relações de trocas e empréstimos
de mercadorias, que historicamente coincidem com as grandes inovações como a
roda e com a organização da agricultura e da engenharia hidráulica, provando o
intercâmbio cultural e comercial do sistema de escrita adotado por eles.
Contrapondo-se em parte o que pensa Tfouni (2010), afirma Cagliari (1998)
que os sistemas de escrita, até então estabelecidos na história dos povos, nunca foram
privilégio de ninguém, pois a ideia de que na Antiguidade somente sacerdotes, reis ou
pessoa de grande poder dominassem a escrita e a usassem como segredo de Estado é
falsa. Cagliari (1998, p.13) e ainda explica que
essa é uma idéia errada e estranha, que não faz sentido algum, bastando lembrar
como argumento que a escrita é um fato social, é uma convenção que não
consegue sobreviver à custa de um punhado de pessoas. Os fatos históricos
também mostram o contrário. Quando um faraó enche todas as paredes e até
colunas com escritas exibe isso publicamente, não pensa, certamente, que essa
seja a melhor maneira de guardar um segredo de Estado.
Na concepção de Cagliari (1998) o povo podia ler o que estava escrito, como um
interlocutor, como exemplo, temos o Código de Hamurabi, criado pelos babilônicos, que
foi publicado em praça pública como um código de leis, para que o povo soubesse sob
quais leis viviam e como deveriam agir na sociedade. Assim, o autor reafirma sua posição
quando diz que, os que acreditam que a escrita era só privilégio das pessoas poderosas é
pelo fato de ter chegado ao nosso conhecimento as grandes obras da Antiguidade.
Pelo evolucionismo, conforme Gnerre (1991), a escrita se desenvolve por
estágios, iniciando primeiramente com os símbolos “pictográficos” e
“ideográficos”até alcançar o nível mais alto de abstração que é a escrita alfabética.
Enquanto, mítica, os estágios da escrita, principalmente a alfabética, representam um
avanço fundamental na perspectiva cultural e cognitiva. Aderindo a concepção de
Gnerre (1991) afirma Tfouni (2010, p.13) que
historicamente a escrita data a cerca de 5.000 anos antes de Cristo. O processo de
difusão e adoção dos sistemas pelas sociedades antigas, no entanto, foi lento e
sujeito, é obvio, a fatores político-econômicos. O mesmo se pode dizer sobre os
tipos de códigos escritos criados pelo homem: pictográficos, ideográficos ou
fonéticos, todos eles, quer simbolizem diretamente os referentes concretos, quer
“representem' o pensamento (ou “idéias”), ou ainda os sons da fala, não são
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Revista Perspectiva Amazônica
produtos neutros, são antes resultado das relações de poder e dominação que
existem em toda sociedade.
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Assim, compreendemos que os códigos e as marcas gráficas feitos em
diferentes suportes, pelo homem primitivo mostram que o homem fez uso da
linguagem escrita como um meio de sobrevivência, para comunicar e expressar suas
ideias ou pensamentos.Os sistemas de escrita criados pela sociedade antiga
determinaram o poder e a influência social, política e econômica destes povos, a ponto
de evoluírem e chegarem até nós tal como conhecemos o nosso sistema de escrita.
Portanto, as marcas gráficas e os símbolos deixados pelas civilizações antigas
são fundamentais para compreendermos que a evolução da escrita que surgindo ou
não de forma independente e autônoma tornou-se um sistema altamente
convencionado pelas sociedades antigas que a adotaram, tornando-se uma das grandes
e mais antigas invenções já criadas pelo homem, que permite a memorização, a
comunicação, o conhecimento e o saber entre os povos.
2 As Formas de Escritas de Acordo Com a Cultura
Para se discutir as formas de escritas, de acordo com a cultura é fundamental
termos como referência a diferença de tempo entre a escrita não convencionada e a
convencionada, assim como as funções que coube a escrita desde a Antiguidade até os
nossos dias, pois é nas formas diante do desenvolvimento cultural do mundo
ocidental que percebemos sua evolução a ponto de compreendermos sua influência
em determinadas sociedades.
Estudiosos como Graff (1995) citado por ANDRADE (2005) aderindo à
concepção de Eric Havelock, afirma que, houve um atraso quanto a origem da escrita
na humanidade, devido a um fator biológico-histórico, em que se pode observar que
há uma diferença acerca de um milhão de anos para o aparecimento do homo-sapiens,
enquanto que a escrita teria surgido a 5.000 anos depois.
AfirmaTfouni (2010) que no ocidente a escrita apareceu por volta de 600 a.C,
chegando até nós um pouco mais de 2.500 anos. Isto nos mostra que houve um espaço
enorme entre a escrita não convencional, usada pelo homem primitivo, e a escrita
convencionada, sistematizada, determinada pela sociedade, tal como se apresenta o
nosso sistema alfabético atual.
Segundo Fromkin&Rodman (1993) quando o homem começou a indagar
sobre sua própria natureza percebeu que existia um elo entre a escrita e a linguagem,
assim os antropólogos acreditam que o homem existe há pelo menos um milhão de
anos e talvez cinco ou seis milhões de anos. Entretanto, os primeiros registros escritos
que foram decifrados datam apenas seis mil anos, são os escritos deixados pelos
sumérios, que datam quatro mil anos antes de Cristo, pelo que se observa que estes
registros não esclarecem a origem da linguagem.
Afirma Fromkim&Rodman (1993) que os primeiros estudos sobre a origem
da linguagem desenvolveram uma teoria de origem divina ou de desenvolvimento da
espécie ou ainda como uma invenção humana. No entanto, não há uma reposta
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Revista Perspectiva Amazônica
definitiva cujas especulações sobre a linguagem concluíram que a escrita é a única
evidência que temos de língua antiga, é que historicamente a fala precede a escrita por
enorme período de tempo. Pois os estudos sobre a linguagem afirmam que, de fato as
comunidades que existem atualmente possuem uma língua sem um sistema de escrita.
Gnerre (1991, p.8) faz algumas considerações de natureza política, histórica e
antropológica a respeito da relação linguagem, escrita e poder. Afirma que
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a associação entre uma determinada variedade linguística e a escrita é resultado
histórico indireto de oposições entre grupos sociais que eram ou são “usuários”
(não necessariamente falantes nativos) das diferentes variedades e ainda
confirma que os estudos linguísticos já provam que “escrever nunca foi e nunca
vai ser a mesma coisa que falar”.
Assim a escrita associada à variedade “culta” foi durante a Idade Média uma
exigência de ordem política e cultural das nações europeia. Desta forma, como sistema
Mandel afirma que (2011. p. 23)“[...] todas as escritas refletem a imagens dos homens e das
sociedades que as destilaram, tanto em suas verdades quanto em seus sonhos”. Segundo o
autor, a maioria das sociedades desde a mais remota Antiguidade atribui às formas da
escrita três grandes funções desigualmente repartidas, mas que se complementam, como a
expressão do poder político, poder espiritual e a de poder individual.
Na civilização egípcia apresentam-se as três funções da escrita. A primeira
encontrada sob a forma hieroglífica lapidar e monumental com alta expressão de
poder político-religioso. A segunda está na forma literária hierática como expressão
do poder espiritual e administrativo. A última é a forma demótica corrente sob a
expressão de poder individual. Entende-se que estas três funções servem para
demonstrar a influência que a escrita egípcia exerceu em outras culturas.
Afirma Mandel (2011), que na Mesopotâmia as funções da escrita não ocorreram
da mesma forma que no Egito. Os acadianos, sucessores dos sumérios, substituíram a
escrita pictográfica (relativamente decifrável) pela escrita cuneiforme, que era complexa,
pelo que foi usada durante um regime de poder totalitário por funcionários do governo
sob a forma impessoal e abstrata, como a que se observa nas gravuras monumentais e
lapidares, em textos literários, administrativos e comerciais cravada em argilas frescas.
Em relação à troca de escrita pelos acadianos, explica Mandel (2011. p.27) que
transformar a escrita pictográfica relativamente legível em uma escrita
complexa e ilegível (exigindo dos escribas vários anos de aprendizagem) pode
apenas ser explicada pela vontade política dos acadianos em recuperar a escrita
em proveito dos escribas ou dos funcionários a serviço do poder local.
Quantos aos fenícios semitas, explica Mandel (2011), que prevaleceu a escrita
acrofônica, uma forma de escrita linear, um sistema emprestado dos egípcios para
qualquer uso tanto fosse comercial como administrativo e eram feitas nos mais diversos
suportes. Entre os gregos, estes adequaram a escrita acrofônica, herdada dos fenícios e a
adaptaram a sua própria língua, adquirindo uma forma geométrica, abstrata e de uso
lapidar. Como mostra Mandel (2011, p.47) “[...] foi o alfabeto fenício que os gregos,
etruscos e romanos adaptaram a escrita às suas particularidades lingüísticas e culturais”.
Cagliari (2010) confere aos gregos a invenção do alfabeto, pois estes
adaptaram o sistema de escrita dos fenícios que utilizaram vários sinais da escrita
egípcia. Conforme Mandel (2011, p.7), o “nosso alfabeto é filho do hieróglifo” e
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Revista Perspectiva Amazônica
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adotaram um sistema que junta as vogais às consoantes apresentando o inventário
menor de símbolos, permitindo assim a maior possibilidade combinatória de caracteres
na escrita já criado pelo homem. Depois foi adaptada, modificada pelos romanos
constituindo-se no sistema alfabético greco-latino de onde se origina o nosso alfabeto.
A escrita na Grécia antiga era vista como a “linguagem dos deuses”, Mandel
(2011, p.75) uma escrita sagrada, reservada a elite de intelectuais. Os escribas
escreviam textos referentes aos deuses, aos ritos, textos jurídicos, atos oficiais,
administrativos e comerciais em uma escrita manuscrita relativamente rara feita em
papiros, transformados em livros, considerados textos únicos, pois não podiam ser
copiados (MANDEL, 2011).
Na sociedade romana, a escrita se adequou à nova estrutura social, aderiu um
critério de uso da escrita parecido com a dos egípcios dividindo-a em três categorias,
comparável a dos gregos. Segundo Mandel (2011, p.29) ”[...] o poder político se
expressando pela escrita monumental, a escrita livresca refinada reservada ao literário
e ao administrativo, por último, a escrita no cotidiano”. O que prova uma das inúmeras
razões das modificações dos caracteres gráficos ocorridas aos longos dos séculos.
Aos romanos foi notável à função que a escrita assumiu. Conforme Mandel
(2011, p.55), “engrandeceram a escrita herdada dos gregos e a tornaram mais legível
pela separação das palavras ritmando os textos, dentro de uma dinâmica considerada
histórica”.. Desta forma, Roma, além de impor deliberadamente a todos os países
conquistados o latim e sua escrita, fez surgir, também, as línguas romanas em
substituição as línguas locais, pois queria torná-la legível a todo custo, espalhando
por todo império em monumentos, como o “arco do triunfo”, com inscrições de honra
a Roma, na forma de escrita lapidar, homenageando os bons funcionários do governo
com a finalidade de marcar seu domínio pela língua e pela escrita aos povos
conquistados. Afirma Mandel (2011. p. 73) que
A vontade de enfraquecer as culturas particulares neutralizando-as não é uma
invenção nova. Ao longo da história, toda vez que um poder vitorioso, político ou
religioso queria alienar um povo vencido começava por privá-lo de sua língua e
de sua escrita, impondo-lhe a dos vencedores com seus conceitos próprios.
Para o autor os conquistadores não estavam errados em querer impor sua
língua, pois a primeira reivindicação de um povo que quer recobrar a sua liberdade é o
uso de sua língua e de sua escrita. Estes são os primeiros indícios de sua liberdade. Foi
assim que aconteceu com o império de Carlos Magno, que na tentativa de unificar o
pensamento do ocidente Cristão impôs a todo império o latim e a “minúscula
carolíngea” (MANDEL, 2011. p.8). Esta imposição dividiu a Europa em duas
correntes do pensamento: ao Norte o pensamento escolástico, representada por uma
escrita de estilo gótico, vertical, pesada, e ao Sul do pensamento humanístico com
uma escrita redonda, leve a qual herdou nossa sociedade (MANDEL 2011).
Uma das invenções que favoreceu estas correntes do pensamento foi o
aparecimento do papel, a criação do livro e a da imprensa, pois antes os livros eram
escritos a mão, depois surgiu à técnica de impressão. Os livros impressos a princípio
não mudaram as formas escriturais em uso, mas causaram uma revolução, pelo que
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questionava o poder do clero e a da impressão dos textos bíblicos (MANDEL. 2011)
A invenção do sistema alfabético pelos povos do Meio-Oriente surgiu à cerca
de 1.200 anos antes de J.C. Foi uma etapa decisiva na história da humanidade. Ao
decompor a linguagem falada num determinado número de símbolos fônicos (ou letras)
o alfabeto permitiu que se registrassem com uma mesma escrita todas as línguas
daquela região criando vínculos muito fortes de comunicação entre os povos
(MANDEL, 2006).
O alfabeto pode ser considerado segundo Mandel (2011, p.3) “o primeiro
ato de humanismo mediterrâneo”, é a origem e fundamento de nossa cultura e das
nossas sociedades modernas. Para Mandel (2011) a escrita é o espelho dos homens
e das sociedades pelo que se observa que desde tempos mais remotos, diversos
sistemas de registro do pensamento, abstratos antecederam ao que chamamos de
escrita. Afirma Mandel (2006, p.1) que
Na gestualidade de sua escrita pessoal, o scriptor, através de um total
investimento corporal e espiritual, deixa a marca da sua personalidade e da sua
inserção em uma cultura. Em outro nível o da comunicação social, numa escrita
mais elaborada, lapidar ou livresca destinadas a um público mais amplo, e na
medida em que uma sociedade nela se reconhece e a adota, a escrita se torna
escrita daquela sociedade e reflete a imagem de uma certa identidade cultural.
Portanto, as funções que a sociedade atribuíram à escrita desde a antiguidade
é um caminho longo e complexo. A princípio pode ser vista como um instrumento de
poder do governo, mas ao se espalhar entre os povos torna-se a pedra fundamental da
partilha do conhecimento e do saber. Seja por motivo social, político, religioso ou
econômico fez e faz parte de todas as culturas de todos os povos.
3 O Aparecimento da Escrita na América do Sul
Para falar do aparecimento da escrita na América do Sul se faz necessário
compreender como ocorreu a ocupação na América. Os estudos arqueológicos e
filológicos sobre a escrita na América ainda são recentes. Assim, algumas concepções
prevalecem e outras servem como ponto de reflexão entre pesquisadores de todas as
áreas, entre elas a linguística com seus estudos voltados para a linguagem.
Os estudos em relação à ocupação da América conceberam duas teses. A
primeira é a de que o “gênero humano” teria se desenvolvido na própria América,
teoria denominada “autóctone”. Esta teoria que ainda não foi comprovada
cientificamente, mas que se destaca pelo fato de existirem pesquisas que mostram
indícios de várias comunidades indígenas com línguas que ainda não foram
decifradas. Assim como mostra Vainfas (2010, p.18) que
ainda no século XIX realizaran-se as primeiras pesquisas arqueológicas no
Brasil, chefiadas por Peter Lund. Mais tarde foram descobertos vestígios de um
grupo de seres humanos que ficou conhecido como Homem da Lagoa Santa.
Em 1995, localizou-se um crânio. Para grande surpresa, as pesquisas
demonstraram que era, até então, o fóssil mais antigo da América, com idade
entre 11 mil e13 mil anos. Além disso, os estudos indicaram tratar-se de uma
mulher, a quem os arqueólogos denominaram Luzia.
A segunda teoria é a do “alóctone” que defende a ideia de que a América teria
sido povoada por povos milenares a partir de migrações. Esta tese é a mais aceita, e
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Revista Perspectiva Amazônica
advém de uma concepção colonialista com fundamentos bíblicos (VAINFAS, 2010).
Para Vainfas (2010) a ocupação na América possui explicações
fundamentadas na bíblia e ocorreu que no século XV, no período em que os europeus
chegaram neste território, afirmando que a origem dos povos americanos seria
descendente das tribos perdidas de Israel. Esta teoria perdurou até o século XVI,
quando os jesuítas começaram a questionar e defender a ideia de que o continente
americano teria sido povoado pelos asiáticos. Depois esta teoria foi desenvolvida
durante o século XIX, pelo etnólogo norte-americano D.G Brington, afirmando que o
povoamento da América ocorreu há 40 mil anos pelo estreito de Bering.
Embora as pesquisas mais recentes provem a existência de fluxos migratórios
no continente americano pelo estreito de Bering entre 15.000 a 10.000 a.C no início do
século XX a teoria do Paul Rivet, fundador do Museu do Homem em Paris, sugeriu
haver outros focos de povoamento entre 6.000 e 3.000 a.C, vindo da “Ásia, da
Austrália, do arquipélago do Pacífico, as ilhas polinésias e melanésias” (VAINFAS,
2010, p.19).
Segundo Vainfas (2010) as hipóteses de Paul Rivet permitiu um campo amplo
para o estudo da escrita. Neste sentido, os estudos de Rivet foram aperfeiçoados no
século XX, e explicam o fato de haver na América mais de 2.600 línguas em poucas
dezenas de milênios e até as pesquisas atuais comprovam que houve focos de
povoamento entre 3.000 e 2.500 a.C, vindos das ilhas do Pacífico.
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O povoamento da América foi, então, fruto dos habitantes que viveram no
período da Pedra Lascada como mostram as escavações realizadas no México e Estados
Unidos nas quais foram encontradas pontas de sílex, um tipo de lança usada por
caçadores e coletores e que datam há cerca de 15.000 anos. Foram encontradas também
no México e na região andina da América do Sul, diferentes técnicas de agricultura e de
caça o que mostra que estes povos não possuíam o mesmo padrão de conhecimento
técnico e cultura material em relação à forma de sobrevivência (VAINFAS, 2010).
No sentido de compreender como surgiu a escrita na América, as
pesquisas arqueológicas são fundamentais para a história, pois ajudam a
desvendar hábitos, costumes, modos de vida, a cultura dos primeiros grupos
humanos da América, assim como sua linguagem. A exemplo temos “A caverna
das mãos”, imagem encontrada no extremo sul da atual Argentina, considerada
como um dos principais exemplos de registro rupestre já encontrado no
continente americano. Estima-se que tenha sido feita “entre 9.500 e 13.000 anos
atrás por ancestrais dos índios Tehuelche, da Patagônia” (VAINFAS, 2010, p.
21).
Existe uma polêmica quanto à interpretação desta imagem da caverna das mãos.
Para alguns historiadores, a pintura é a produção de um ritual de sacrifício de um jovem
membro do grupo e outros afirmam serem as mãos do próprio autor. Independente das
duas versões, temos um registro escrito através de pinturas, o que demonstra ser uma
escrita ainda não convencionada, mas feita de forma autônoma (VAINFAS, 2010).
Como exemplo de uma escrita de forma autônoma, temos os astecas, povos
seminômades, que no século VIII se deslocaram do noroeste do México até o
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Revista Perspectiva Amazônica
território do lago Texcoco no vale do México, onde construíram um grande império.
Sua cultura e saber tiveram influência nos mais diversos campos. Criaram um
calendário que organizava a contagem do tempo e possuíam um sistema de escrita
diferente, onde cunhavam um sistema pictórico que combinava uso de objetos e
figuras e outros hieróglifos sistematizados por símbolos e sons (SOUSA, 2013).
Observa-se, que a escrita dos astecas estava extremamente ligada à cultura,
pois em seu sistema de escrita utilizavam ideogramas e pictogramas, ou seja, pinturas
que exprimiam ou simbolizavam ideias. Por exemplo, “a morte para os astecas, era
representada como um cadáver preparado para um funeral, no caso a cremação”
(VAINFAS, 2010. p. 222)
Não obstante, a escrita dos povos Maias é considerada por muitos especialistas,
entre todos os sistemas de escrita da Mesoamérica, como uma das mais desenvolvidas.
Seu sistema de escrita possuía um intercâmbio cultural com o povo Olmeca, povo que
tinha ocupado anteriormente a região mexicana ente 1.500 a 400 a.C. Quanto ao sistema
de escrita dos povos Maias não era alfabético, mas continha um extenso número de
caracteres que representavam sons ou símbolos (HISTÓRIA DO MUNDO, 2013).
Os pesquisadores até o momento, ainda não decifraram todos os códigos usados na
escrita Maia. Somente partes dos códigos foram traduzidos com auxílio de computadores.
Esta dificuldade ocorre porque os povos Maias usavam um mesmo caractere para
representar dois ou mais símbolos e sons, e ao mesmo tempo um mesmo conceito poderia
ser representado por caracteres diferentes (HISTÓRIA DO MUNDO, 2013).
Contudo, afirmam os pesquisadores que a escrita para os Maias servia como
forma de comunicação e de religiosidade. Acreditavam que a escrita era um presente
dos deuses e que deveria ser destinada a uma parcela privilegiada da população. O
que explica a forma soberana que a escrita adquiriu nesta sociedade. Os estudos
também mostram que eles usavam diferentes tipos de materiais como pedra, madeira,
papel e cerâmica para registrar informações (HISTÓRIA DO MUNDO, 2013).
Os Maias também fabricavam livros e códices confeccionados a partir de
fibra vegetal, resina e cal. De uma forma geral, os documentos Maias
contemplavam os registros de fatos cotidiano do povo. Uma das funções assumidas
pela escrita deste povo era o registro do tempo para organizar o período de
celebração religiosa. Por meio da escrita, eles buscavam registrar outros
conhecimentos e rituais religiosos que foram destruídos em grande parte, quando
foram dominados pelos colonizadores espanhóis (HISTÓRIA DO MUNDO,
2013)
Quantos aos Incas, no século XII, estes povos ocuparam um lugar localizado
onde hoje é o Peru. São considerados pelos historiadores como os povos sedentários
que mais se destacaram nesta região. A história afirma que, mesmo sem conhecer a
escrita, os Incas construíram um grande império, e junto com outros povos
subjugados construíram um Estado altamente avançado. Explica Gray (2013) que a
cultura inca era muito rica. Eles até criaram uma técnica de agricultura em formas de
terraços, acompanhado de um sistema de irrigação.
Segundo Gray (2013) apesar da falta de uma língua escrita, os Incas usavam um
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conjunto de nós em uma corda, cada nó representava um número. Assim esses nós
usados pelos incas, também indicavam os registros das quantidades dos conteúdos
nos armazéns, aplicavam também nos resultados de censos e quantidade pagantes de
impostos. Neste sentido, conforme Cagliari (1998), se o aparecimento da escrita,
como afirmam alguns pesquisadores, é originário de um sistema de contagem, com
esse tipo de escrita adotado pelos Incas, eles podem ser considerados como um povo
que não têm conhecimento da escrita alfabética, mas possui uma forma independente
de escrita (GNERRE, 1991).
O aparecimento da escrita na América do Sul, corresponde a um período que é
denominado pré-colombiana em que se destacaram civilizações bem avançadas como
os Incas. Muitos estudiosos consideram que em outras regiões da América do Sul,
como o Brasil e boa parte de outros povos como os Ameríndios, não possuíam o mesmo
nível de complexidade social em relação o uso da escrita. Neste sentido, a classificação
mais adequada é de Pré-história, até a descoberta dessas sociedades pelos europeus.
Assim, a teoria de que América foi o último lugar do planeta a ser habitado por
grupos humanos, com exceção da Antártida é questionado por muitos pesquisadores que
estudam antigas civilizações, os quais admitem a possibilidade de o continente
americano ter sido visitado, também, por povos do Oriente Médio. No caso do Brasil, por
exemplo, os estudos científicos provam que foi visitado pelos sumérios e fenícios, através
de descobertas como a de um vaso conhecido como “Fuerte Magna” descoberto na
Bolívia e que contém inscrições em sumérios feitas em escrita cuneiforme, também
conhecida com “a pedra de Rosetta das Américas”, além desta a descoberta de um
monólito de Pokotia, nome que significa “oráculo” são provas suficientes de que a escrita
na América tem uma relação com a escrita de outros povos (SCHOEREDER, 2012,
p.1).
No entanto, Schoereder (2012) afirma que, apesar de o que está escrito no vaso
e no monólito datarem há cerca de 3.500 mil anos a.C ou até mais, ainda não é prova
suficiente para afirmar que teríamos encontrado uma escrita que surgiu da relação
com outros povos, e admite a possibilidade deste povo ter desenvolvido seu próprio
sistema de escrita, apesar de tal afirmativa ser mal vista pelos arqueólogos mais
ortodoxos. A estes estudos Schoereder (2012, p.1) comenta que,
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Schwenhagen, também austríaco, é o autor do livro Antiga História do Brasil:
1100 a.C. a 1500 d.C., hoje dificilmente encontrado. Ele concentrou suas
atenções no norte e nordeste brasileiro, entendendo que Sete Cidades não é
apenas uma formação natural, mas foi ocupada por civilizações em épocas
recuadas. Ele afirmou ter encontrado inúmeros sinais da passagem dos fenícios
pelo Brasil, especialmente na correlação entre o idioma fenício e resquícios
dessa linguagem que poderiam ser percebidos nos idiomas nativos.
Outros fatos ainda instigam os cientistas que admitem a possibilidade de
haver na América uma escrita autônoma e independente, pois como afirma
Schoereder (2012, p.1) quando
Já em 1641, Maurício de Nassau pedia que o cientista Elias Ackerman estudasse
os sinais encontrados na Pedra do Ingá, na Paraíba, em 1598. Mais pesquisas
foram feitas em 1874, pelo historiador Francisco Adolpho Vernhagen e, mais
recentemente, o professor José Anthero Pereira Jr. Ninguém conseguiu chegar a
um resultado definitivo sobre o que as inscrições significam ou qual sua origem,
mas diz-se que existe uma representação da constelação de Órion.
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Revista Perspectiva Amazônica
Assim, no Brasil, os estudos sobre o aparecimento da escrita ainda são
recentes, os que existem estão relacionados a colonização do território brasileiro. São
estudos que afirmam que os primeiros registros escritos que chegaram até nós foram
através dos colonizadores com a descoberta do Brasil. Atualmente os estudos destes
inscritos foram questionados pela sociedade, a ponto de afirmar que o termo de Préhistória Brasileira parte de uma referência europeia, que desconsidera que há milhares
de anos houvesse indígenas ocupando o território Brasileiro (JUNIOR, 2013).
O termo mais adequado para o aparecimento da escrita denomina-se História
Pré-Cabralina no Brasil, se atentarmos para o fato de que devemos respeitar as
civilizações indígenas e suas culturas, pois habitaram no território brasileiro antes da
chegada dos europeus.
No entanto, afirmar que o Brasil e outros povos que constituem a América não
conheciam a escrita é complexo, pois os estudos atuais mostram que as marcas gráficas
e símbolos criados pelo homem primitivo, que os pesquisadores denominam de Protoescrita é uma forma de escrita que não possui significado linguístico, considerado um
estágio anterior ao sistema de escrita. Entretanto, os antropólogos afirmam que todos
os sistemas de escrita estudados até então provam que foram criados a partir do contato
direto de um povo com outros sistemas de escrita como afirma Cagliari (1998).
Segundo Junior (2013), o primeiro pesquisador a se interessar pelo passado
brasileiro foi o Dinamarquês Peter Wilhelm Lund, que se instalou na Lagoa Santa em
Minas Gerais e realizou vários trabalhos de escavações entre 1834 e 1880, entre os
quais já encontrou muitos vestígios da vida Pré-Cabralina. Neste sentido Vainfa (2010,
p.18) também confirma que “no século XIX realizaram-se as primeiras pesquisas
arqueológicas no Brasil”, chefiadas por Lund e assim foram descobertos vestígios de
um grupo de seres humanos, que ficou conhecido como “Homem da Lagoa Santa”.
A partir destas escavações foram feitas outras e no que se refere à ocupação do
território Brasileiro há o reconhecimento do surgimento de grupos humanos há 60 mil
anos. Porém, alguns estudiosos discordam desta teoria e continuam com a ideia
tradicional de que a ocupação da América veio da África e se espalhou pelo mundo
chegando à América pelo estreito de Bering. As pesquisas atuais descartam a teoria
pelo fato de que o fóssil humano mais antigo encontrado no Brasil está em lagoa
Santa, em Minas Gerais e data apenas 12 mil anos, conhecida como a famosa Luzia.
Considerada, também, com o fóssil mais antigo do continente Americano e precursor
de novas teorias (JUNIOR, 2013).
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Outras pesquisas confirmam que existiram outras ocupações humanas em diferentes
áreas do território nacional no período de 4 mil anos até a chegada de Cabral, por
encontrarmos uma agricultura muito difundida e o uso de cerâmica, que também já tinha sido
usada na Amazônia. Por isso é que os arqueólogos dividem a ocupação na Amazônia em três
períodos: o pré-cerâmico entre 12 mil a 3 mil anos atrás, um período cerâmico entre 3 mil
anos a.C, e um período cacicados completos entre mil antes de Cristo e a chegada dos
portugueses (JUNIOR, 2013).
Considerando que a linguística cumpre um papel importante ao estudar a
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Revista Perspectiva Amazônica
escrita e que estudiosos como Cagliari (1998) e Gnerre (1991) descobriram a
existência de comunidades sem escrita como os incas ou que a escrita não era
totalmente alfabética é que Souza (2006, p.1) explica que
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alguns estudiosos definem a escrita como parte do comportamento comunicativo
humano de transmitir e trocar informações; ou seja, a escrita pode ser vista como
uma forma de interação pela qual uma ação das mãos (com ou sem um
instrumento) deixa traços numa superfície qualquer; nesse sentido, a escrita pode
ser concebida como uma forma não apenas alfabética para representar idéias,
valores ou eventos. Entendido assim, a escrita sempre esteve presente nas culturas
indígenas no Brasil na forma de grafismos feitos em cerâmica, tecidos, utensílios
de madeira, cestaria e tatuagens. Por outro lado, a escrita propriamente alfabética,
registrando no papel a fala e o som, foi introduzida no Brasil pela colonização
européia, e desde o século XVI está presente de formas variadas nas comunidades
indígenas; porém, foi apenas nas duas últimas décadas que surgiu o que pode ser
chamado de fenômeno da escrita indígena no sentido do aparecimento de um
conjunto de textos alfabéticos escritos por autores indígenas.
Diante das pesquisas científicas realizadas por pesquisadores de diversas
áreas, entre elas a arqueologia, filologia e a linguística, percebemos a relação
intrínseca entre a origem dos povos da América, com indícios de escritas usadas por
estes povos, num período que corresponde ao que a história denomina de Pré-história.
Compreendemos que, por muitas vezes, a escrita tinha um valor de registro de
memória, de comunicação, religioso ou até mesmo de divisão de classes como ocorreu
entre os povos maias e astecas. Por outras, percebe-se que em outras comunidades há um
desconhecimento de um sistema de escrita alfabético.
Conforme os estudiosos, estes povos apresentam uma forma independente de
registrar informações, de contagem e de comunicação. Por meios de marcas deixadas,
em pinturas ou símbolos, representando sons ou não, deixaram para nós um legado
escrito de grande valor cultural, pois muitos escritos foram decifrados, outros ainda
se encontram em estudo. Mostrando a humanidade a influência, o poder que a escrita
Considerações Finais
O trabalho realizado proporcionou uma análise sobre a escrita como fonte de
poder no ensino. Para melhor compreensão do tema, a priori estabeleceu-se uma reflexão
das implicações sobre a origem da escrita, considerando as primeiras manifestações
gráficas do homem primitivo querendo contar, medir, comunicar, registrar, entre outros.
Neste sentido, na medida em que cada povo a usava para dominar, conquistar e
principalmente para comunicar, aos poucos por uma razão política, econômica e social
passou a ser sistematizada, ou seja, convencionada.
Com a evolução da escrita no mundo ocidental, surgiram vários alfabetos e pelo
seu caráter elitista e dominador era imposto a cada povo dominado, após uma guerra.
Mais notável, ainda, foi a expansão de um modelo único de alfabeto fônico que fez a
escrita decompor em sílabas as palavras e o império Romano o expandiu aos povos
conquistados e isto resultou nas formas gráficas dos escritos de documentos jurídicos que
registravam acordos de paz ou guerras, dentre outros. Portanto, a escrita naturalmente vai
se tornando uma grande fonte de poder entre as nações.
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Ano 4 N° 8 p.81-96
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Resistência Cultural e Modo de Vida São Elementos Sígnicos Desvelados
Pela Aanálise Semiótica Dos Vídeos Premiados no I Festival de Vídeo FIT
Thais Helena Medeiros *
Valdenildo dos Santos **
RESUMO
Neste trabalho, tecemos argumentações teóricas sobre a fotografia, enquanto um sistema de significação que
provoca a ação do/no outro, e seu desdobramento na contemporaneidade que são os vídeos produzidos para o
espalhamento nas plataformas do ecossistema digital. Nesse viés, tem na semiótica pierciana, principalmente
via Lucia Santaella, o fundamento de interpretação do diálogo com o domínio empírico que conforma o
conjunto de vídeos premiados no I Festival de Vídeo FIT, realizado pelas Faculdades Integradas do Tapajós.
Antecede breve argumentação sobre a realidade social e cultural de onde emergem as produções
audiovisuais.
Palavras-chave: vídeos - plataformas digitais - Semiótica Pierciana
ABSTRACT
In this work, we weave theoretical arguments about photography as a system of signification that
causes action of others/ on the other, and its deployment in contemporary times that are the videos
produced for the scattering in the digital ecosystem platforms. This bias has on pierciana
semiotics, mainly via Lucia Santaella, the basis of interpretation of the dialogue with the
empirical domain that conforms the set of award-winning videos in FIT I Video Festival, held by
the Faculdades Integradas do Tapajós. Foregoing brief discussion on the social and cultural
reality from which these media productions emerge.
Keywords: videos - digital platforms - Piercian Semiotics
* Professora, MSc. Thais Helena Medeiros é professora de semiótica da comunicação e coordenadora do Curso de Jornalismo das
Faculdades Integradas do Tapajós (FIT)/ Santarém/ PA.
** Professor adjunto II, Curso de Letras, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS)/ Três Lagoas/MS; líder do Grupo de Ensino
e Aprendizado de Línguas e Leituras Semióticas (GEALLES).
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Introdução: O Vídeo nas Práticas Pedagógicas e as
Plataformas Digitais
A análise semiótica do conjunto de vídeos premiados no I Festival de Vídeo
1
FIT , Faculdades Integradas do Tapajós (FIT), evento realizado em Santarém, no
Pará, emerge nas experiências da disciplina semiótica, que, por solicitar os
1
Mais informações e acesso
aos vídeos premiados ver em
Detalhes
em
facebook.com/festivaldevide
www.facebook.com/festivaldevi
ofit
deofit
1
fundamentos das teorias precursoras por parte dos professores, da parte dos
estudantes, por sua vez, pede a experimentação. Assim, sua prática nos estudos de
comunicação, aliada a proliferação da imagem e da linguagem híbrida dos vídeos no
ecossistema digital apoia os processos de (re)significação e a recuperar a crítica ao
deslindar e decifrar os sentidos que operam na compreensão do mundo a nossa volta,
qualificando os estudantes na sequência da vida profissional.
A transmutação e geração de ideias contextualizadas na fotografia e nos vídeos
para o compartilhamento, via multiplataformas no ecossistema digital, é característica
original da realidade contemporânea. Atrelado a esse gênero de comunicação tão
presente no exercício profissional de jornalistas, publicitários e internautas, conformamse os aparatos tecnológicos. Os mesmos que democratizam a informação via penetração
intensiva do consumo de aparelhos celulares e seus dispositivos de acesso à mobilidade:
internet e suas mídias sociais, cloud e analytics. Instrumentos e ferramentas que, com o
apoio dos conteúdos humanizados, tornam-se veículos de transformação, de revolução,
de explicação de matérias complexas, de diluição de problemas contraditórios e
desenvolvimento socioambiental, político, cultural e econômico.
Nesse fluxo plural de interações, os instrumentos e seus resultados
transformados em sujeitos motivam e incitam a experimentação (artística e estética)
dos(as) estudantes e consumidores; provocam o fomento de práticas pedagógicas
inovadoras entre os professores e promovem a integração entre a academia e
mercado. Mas, o que está por traz desses assuntos materializados em pequenos
vídeos, autorais, biográficos ou micronarrativas do cotidiano que falam a noção da
localidade num mundo tão global?
Perseguindo essa questão é que confrontamos, na primeira parte deste
trabalho, as leituras da cultura com as noções dos instrumentos ou objetos conectados
às subjetividades, na formação de associações e redes de socialidades. Na sequência,
propomos uma análise semiótica e inspirada em Santaella (2010), visto seu domínio
empírico ter emergido dos exercícios colocados em prática na sala de aula do quarto
semestre dos cursos de jornalismo & publicidade e propaganda, como atividade
prática e instrumental pedagógico da disciplina Semiótica da Comunicação, cadeira
que é ministrada pela professora Thais Helena Medeiros, na FIT. Nesse escopo,
traçamos reflexões sobre os sentidos da imagem respaldada em teóricos que
estudaram a fotografia como sujeitos emissores de significações, que antecederam e
cunharam o que é, hoje, o vídeo com seus movimentos, sons e efeitos, tanto da área
semiótica quanto do âmbito das humanas. Seguindo nessa organização, estabeleço
algumas considerações finais extraídas a partir da terceiridade pierciana.
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O Olhar Adentro da Realidade Social
Não é subitamente que a humanidade depara-se com uma realidade convulsiva.
O processo se iniciou com a supremacia do capitalismo no mundo, deflagrando um
mundo global: na economia e nas formas e modos de vida. Esse momento recebe muitas
nomenclaturas, conceitos e paradigmas vindos de vozes das mais diversas áreas de
produção do conhecimento, principalmente a sociologia e a antropologia. Em comum,
os estudiosos sentem que o mal estar pode ser tudo menos novo (LIPOVETSKY,
2011). Mesmo porque, este último emerge das estruturas do velho (WILLIAMS,
2011).
É Lipovetsky (2011) quem adverte que, após a modernidade ter impregnado o
mundo com suas marcas indeléveis de capitalismo, a constituição de cultura altera-se por
completo. Diz ele que “a era hipermoderna transformou profundamente o relevo, o sentido, a
superfície social e econômica da cultura” (2011, P. 7). Sim, porque para falar de semiótica, é
necessário dizer de onde falamos (SANTAELLA, 2005, 2010; Santaella & Nöth, 2004),
sob quais os sistemas simbólicos nos amparamos para validar nossas análises (GEERTZ,
1997).
Na busca de nossas localidades divisamos um “mundo sem fronteiras dos
capitais e das multinacionais, do ciberespaço e do consumismo” (LIPOVETSKY,
2011, p.9). Acrescenta ainda o autor que:
(...) A cultura se impõe como um mundo econômico de pleno direito. Culturamundo significa o fim da heterogeneidade tradicional da esfera cultural e a
universalização da cultura mercantil, apoderando-se das esferas da vida social,
dos modos de existência, da quase totalidade das atividades humanas. Com a
cultura-mundo dissemina-se em todo o globo a cultura da tecnociência, do
mercado, do indivíduo, das mídias, do consumo; e, com ela, uma infinidade de
novos problemas que põem em jogo questões não só globais (ecologia,
imigração, crise econômica, miséria do terceiro Mundo, terrorismo...) mas
também existenciais (identidade, crenças, crise dos sentidos, distúrbios da
personalidade...). A cultura globalitária não é apenas um fato; é, ao mesmo
tempo, um questionamento tão intenso quanto inquieto de si mesma. Mundo que
se torna cultura, cultura que se torna mundo: uma cultura-mundo. (2011, P. 9).
É fato que a cultura-mundo de Lipovetsky (2011) anda a intercambiar modos
de viver e de consumir o mundo, aqui na Amazônia de Santarém, justo ao nosso lado.
Os teóricos da cultura bem apontam sua dinamicidade e, por que não, seu hibridismo
num mundo transcultural (GARCIA CANCLINI, 2006; HANNERS, 1997). A
despeito das categorias de classificação do mundo, digamos que também é fato que
existam barreiras, traços de um modo de vida que se distinguem desse mundo global,
que resistem e persistem na interação. Traços que singularizam e que permanecem na
interação global, mesmo que a despeito das relações conflituosas que se acoplam
nessa interação (APUDURRAI, 2008).
Tais elementos de um modo de vida singular habitam no mesmo lugar que
emergem as magias da tecnologia social e instrumental das novas mídias “móveis
digitais e das conexões sem fio, originando novos fenômenos comunicacionais”. A
profusão dos “dispositivos móveis transforma radicalmente o processo de
comunicação local e global, altera a produção e distribuição de conteúdos em um
ambiente de convergência, multiplicidade de suportes e da expansão da mobilidade”
(SILVA, 2009, p.70). A mobilidade aqui é entendida “como uma conexão entre seu
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Mas, essa mobilidade, diz ele na mesma seção, é transferida para outras “vertentes
como transporte, migração e estudos do turismo para a mobilidade física; e
internet, mídia e telefone móvel para a mobilidade informacional”.
Quando os cursos de jornalismo & publicidade e propaganda propoem um
festival de vídeos tipo filmetes de curta duração –um formato de interação com
múltiplas linguagens, conhecimentos e práticas–, buscou-se o novo nessa realidade
de informação móvel, fundindo espaço e tempo (SILVA, 2009), e confluindo um
circuito de fenômenos conectados” (SAMAIN, 2012, p.14). Nesse sentido, “a
técnica não é nada se não serve a fins que ela supõe e que ela não explica” (Deleuze,
2013).
E os dados estatísticos asseguram a tendência. Segundo o documento divulgado
pela Revista de Jornalismo ESPM (ESPM/ COLUMBIA JOURNALISM REVIEW,
2013, p.11), o Brasil possui um índice de 36,6 aparelhos móveis para cada cem habitante e
a
“ocupa a 44 posição entre os 194 países, acima da média mundial de 22,1”. O município
de Santarém é parte dessa realidade. De acordo com Moran (2011) e da pesquisa no
âmbito do mestrado que realizei em localidades no Rio Arapiuns (MEDEIROS, 2013),
os celulares estão presentes, também, em localidades no interior dos rios Tapajós e
Arapiuns, abrindo o leque disponível das mídias comunicacionais junto com o rádio e a
televisão e vislumbrando a inclusão digital e a utilização de softwares livres (SILVEIRA
E CASSIANO, 2003). Hoje em dia, com a entrada de um canal de televisão aberta
digital, os próprios telefones celulares também acessam essas mídias.
Nesse sentido, esses objetos (aparato tecnológico: celulares, câmeras, as
multiplataformas ou redes sociais como o Facebook, Twitter, Youtube, blogs com suas
infinidades de SMS, fotos, vídeos) podem mesmo conformar uma associação com os
humanos (LEMOS, 2011). Além de mediadores, ferramentas ou gêneros “podem
exercer um ou outro papel a depender das associações criadas”, mas antes são geradores
de ação, ou como prefere Lemos (2011, p.14), são actantes. Conforme conceitua a
semiótica greimasiana, “actante pode ser concebido como aquele que realiza ou que
sofre o ato, independentemente de qualquer outra determinação” (GREIMAS e
COURTÉS, 1983, p.12). Retornamos em Lemos ao explicar essa relação:
O sujeito não se mistura ao objeto, e para ser sujeito, deve mesmo ser o mais
“independente possível” dos objetos, deve se livrar das amarras para achar seu
“núcleo” velado no interior. Esse é o ponto crucial do equivoco: a dicotomia que
separa sujeito e objeto (como se isso fosse possível). No entanto, se retirarmos os
objetos, não encontraremos mais sujeitos (LEMOS, 2011, p.15).
Nesse sentido, mesmo pautando a crítica na produção e consumo, há que se
considerar a relevância desses objetos como ferramentas transformadoras da
realidade econômica, sociobiodiversa e cultural, conforme os acontecidos na
Primavera Árabe (LEMOS, 2011) como o mais recente levante do povo ucraniano.
Da parte deste último, iluminaram a praça convertida em campo das manifestações
com seus celulares em detrimentos de velas! Se é possível a pronunciação das
localidades culturais como indicativos de aportes econômicos em modelos de
desenvolvimento diferenciado, esses objetos agem como mediadores e tradutores de
outros sujeitos?
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Uma Análise Semiótica Pelo Viés Pierciano: Referenciais e
Significações
Diante dessa realidade social, introduzimos a análise semiótica dos vídeos
premiados no I Festival de Vídeo FIT ancorada em Santaella (2010) quando desvenda que
o vídeo situa-se no paradigma fotográfico, “suas imagens são fruto do registro das coisas,
eventos ou situações de fato existentes. (...) Aquilo que está nele retratado existe na
realidade” (p.112). Ao unir “inextrincavelmente” a fala e a imagem, o pequeno vídeo de
caráter local revelando grandes realidades “insere-se na tradição dos sistemas de signos
que nascem da mistura entre linguagem verbal e imagem, caracterizando-se, portanto,
como uma linguagem híbrida, tanto quanto são híbridos o cinema e a televisão” (p.113).
Os teóricos que estudam a imagem, convergem que é a fotografia o ponto de
partida para as reflexões em torno das inovações tecnológicas de disseminação de
conteúdo em quaisquer plataformas de interação comunicacional no mundo
contemporâneo. Conforme Barthes (1984, p.13), desde o princípio a fotografia é
inclassificável se quisermos produzir seu corpus. Encontra-se no limiar do empírico e
expressa o exterior ao objeto, “sem relação com sua essência, que só pode ser (caso
exista) o Novo de que ela foi o advento, pois essas classificações poderiam muito bem
aplicar-se a outras formas, antigas, de representação (BARTHES, 1984, p.13). Na
sequência, o autor lança que é próprio da imagem “o que nunca mais poderá repetir-se
existencialmente”. É o que vemos ali, “o Particular absoluto”.
As traduções e interpretações das fotografia encantam, nos fazem viajar por
dimensões, possibilitam vermos por dentro e de dentro de um tempo singular,
também expõem os discursos dominantes, assim como coloca o aparato instrumentalrealizador-objeto em relação com a técnica e estética. Samain (2012), por exemplo,
compreende a imagem como sujeitos, diz ele (p.24) que “é cigana e misteriosa. De
antemão, ela nos inquieta, sobretudo, se ela é uma imagem forte, isto é, uma imagem
que, mais do que tentar impor um pensamento que 'forma, formata, põe em forma' (o
que se denomina de 'ideologia'), nos coloca em relação com ela. Uma imagem forte é
uma 'forma que pensa e nos ajuda a pensar'”. É sujeito que manipula por sedução, em
primeira instância e, questionando sobre “se a imagem é uma forma que pensa, o autor
argumenta que ”por pertencerem a um sistema, participam não apenas de um tempo e
de um contexto singulares, mas sobremaneira de um circuito de pensamento”
(SAMAIN, 2012, p.32). Mas, também as imagens produzem sujeitos conectados,
“sujeitos pensantes que não pensam por palavras. Emitem significações, são
significações silenciosas”, (COLI apud SAMAIN, 2012, p. 41).
Interligando os vídeos nessas reflexões sobre as imagens, reintroduzo
Santaella (2010), ao esclarecer que os mesmos carecem de
um tratamento semiótico, uma vez que é na semiótica que podemos encontrar
meios para a leitura, não só dos diferenciados tipos de signos, mas também dos
modos como eles podem amalgamar na formação de linguagens fronteiriças que
se originam da junção entre vários sistemas de signos (p.113).
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Assim, o olhar na natureza triádica de Charles Pierce, desponta-se num
percurso analítico e metodológico relativos às naturezas das mensagens. Como é
sabedor, o signo de um filme é “qualquer coisa de qualquer espécie que representa
uma outra coisa, chamada de objeto do signo, e que produz um efeito interpretativo
em uma mente real ou potencial, efeito este que é chamado de interpretante do signo”
(p.114). Já Deleuze (2013) apresenta o vídeo pelo cinema explicando que
A narração no cinema é como o imaginário: é uma consequência muito indireta,
que decorre do movimento e do tempo, não o inverso. O cinema sempre contará o
que os movimentos e o tempo da imagem lhe fazem contar. Se o movimento
recebe sua regra de um esquema sensório-motor, isto é, apresenta um
personagem que reage a uma situação, então haverá história. Se, ao contrário, o
esquema sensório-motor desmorona, em favor de movimentos não orientados,
desconexos, serão outras formas, devires mais que histórias (:80).
A análise inicia-se pela face da referência, ou o quali-signo/ primeiridade
pierciana, representando suas qualidades internas. É mesmo Barthes (1984, p.15) que
diz que “a fotografia sempre traz consigo o referente, ambos atingidos pela mesma
imobilidade amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em movimento: estão colados
um ao outro, membro por membro”. E completa que
A Fotografia pertence a essa classe de objetos folhados cujas duas folhas não
podem ser separadas sem destruí-los: a vidraça e a paisagem, e por que não: o
Bem e o Mal, o desejo e seu objeto: dualidades que podemos conceber, mas não
perceber (eu ainda não sabia que, dessa teimosia do Referente em estar sempre
presente, iria surgir a esses que eu buscava) (BARTHES, 1984, p.15-16).
Por esse escopo, o conjunto dos 06 melhores vídeos do I Festival de Vídeo FIT
revela um localismo em sua maioria. O documentário jornalístico não profissional, “A
2
Margem” , reflete o urbano Bairro Uruará/ Porto dos Milagres e as consequências das
obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) infringidas aos seus moradores.
O vídeo documentário categoria jornalístico profissional, “Gambá de Pinhel”3, mostra a
mistura das Festividades do Gambá com a de São Benedito, suas danças, ladainhas e
demais elementos ritualísticos. Cerimônias praticadas na localidade de Pinhel, lugar onde
se confluem as culturas nativas ao lado do aldeamento colonial, situada na margem
esquerda do Rio Tapajós, na área da Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns. O primeiro
acontece em Santarém e o segundo no município de Aveiro. O vídeo, categoria livre
ficção/experimental, “Quem Decide é o Bar”4, de Jaraguá do Sul/ Santa Catarina, retrata
uma localidade interiorana, onde um bar, construído de tábuas e na beira de uma estrada
5
interiorana de chão batido, é decidido no jogo da bocha . Esses três filmetes tinham como
regulamento serem produzidos com até dez minutos de duração.
O premiado com o videoclipe "Cultura Raiz, Semente Digital"6, e que é o oficial
do MC/Toaster Alienação Afrofuturista, trabalho que é resultado da parceria feita entre o
cantor brasileiro e os franceses do Fresh Poulp Souk System. Foi gravado na Pandora
House, em Curitiba, e é resultado de trabalho realizado pelos alunos do curso de Cinema
do Centro Europeu. A música é uma somatória da parceria entre um cantor brasileiro e os
franceses do Fresh Poulp Souk System. Foi inscrito pelo egresso do curso de Publicidade
e Propaganda da FIT, Cássio Santana e que um é dos assistentes de direção do vídeo. Traz
uma narrativa de imaginários de lugares outros, enunciados na letra da música tipo
reggae e nos movimentos e tempos da imagem, pela diversidade de sotaques e línguas.
Como é característico do gênero, empregam uma linguagem onde sobressaem os efeitos
de ilhas de edição, ao ritmo alongado do reggae.
2
Disponível em
youtube.com/watch?v=xMw5PI
HighQ
3
Disponível em
youtube.com/watch?v=bhfiBRe
7_LQ
4
Quem Decide é o Bar não está
disponível na web a pedido de
seus produtores.
5
Sobre bocha, ver em
pt.wikipedia.org/wiki/Bocha
6
Disponível em
youtube.com/watch?v=1kZOT
BCTlEM
102
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O vídeo escolhido pelo Júri Popular foi o clip “Brand New Day”7, remaker da
música de mesmo nome e interpretado originalmente pela americana Lorena
Simpson, acompanhada de um grupo de dança. A gravação teve como palco um dos
galpões abandonados (por isso, empoeirado) e gasto pelo tempo da antiga indústria
Tecejuta, às margens do Rio Amazonas, em Santarém. Na versão inscrita no I Festival
de Vídeo FIT, a música é interpretada por um casal de jovens dançarinos, do grupo
Classe A. Principia com frames fotográficos em imagem macro de onde a câmera
posicionada no chão capta imagens de quatro objetos em primeiro plano. Uma pena
que flutua e aproxima seu cabo rente ao traço da linha de uma marca em linguagem
verbal e geométrica onde se lê Classe Rick Versage & Racy Ottomi. Esse texto,
apareceu-nos em desconexão com o vídeo em si, porém o movimento segue rumo a
uma outra fotografia. Agora, um tênis surrado, uma expressão de irreverência juvenil
conecta-se ao tênis usado pelo casal. Na sequência, entra rolando em outra imagem
fotográfica, um fardo de fibra. Então, o movimento em tomada macro aproxima o
papel timbrado da Tecejuta de onde a linguagem verbal expressa um formulário de
recebimento de mercadoria. Após esse prólogo de imagens em movimento, o som fica
frenético e a câmera abre para a performance do casal de bailarino. Percebe-se, pelos
signos apresentados nas fotos a convergência do velho com o novo. O passado
ressignificado no presente e não menos em decadência que o primeiro.
Os dois videoclipes evidenciam a interação de línguas e linguagens de edição.
Entretanto, "Cultura Raiz, Semente Digital" é um clipe oficial distinguindo de “Brand
New Day” que é remaker. Mas, a confluência dessas vozes e linguagens está
impresso, também, no vídeo documentário “Gambá de Pinhel”, de onde as ladainhas
cantadas são em latim. A categoria livre clip se encaixa no que Deleuze (2013)
descreveu como formas possíveis de trabalhar o vídeo, devires de linguagens
diferenciadas. Traz consigo representações do mundo das produções estéticas e de
efeitos tecnológicos e que abraçam públicos jovens bem definidos.
O VT “Trânsito”8 é resultado de exercícios práticos de sala de aula, inscrito na
categoria publicitária não profissional. No alinhamento com o regulamento do evento, o
aspecto primordial da classificação não profissional era possibilitar as experimentações das
disciplinas práticas dos cursos de jornalismo & publicidade e propaganda da FIT. Exibe
uma reprodução, a partir do olhar interpretativo dos estudantes, ao rever o comercial do
Banco Bamerindus, de 1976. As categorias não profissionais, caso deste VT inscrito pelo
estudante de publicidade e propaganda Ricardo Augusto Fernandes Da Costa, incorporam
o objetivo maior do evento, que é estimular os professores e estudantes a gerarem
conteúdos a partir do modos de viver e ver o mundo do cotidiano local, pela produção de
vídeos conformando recursos pedagógicos das diversas áreas do conhecimento.
Os quali-signos desses vídeos estão referenciados pela aparência a primeira
vista, os sentidos dos signos. Pierce (2005, p.24) nos convoca a pensar o que existe
“no instante presente” como “se estivesse completamente separado do passado e no
futuro”. À essa condição do signo denominou Primeiridade, Oriência ou
Originalidade: “seria algo que é sem referência a qualquer outra coisa dentro dele, ou
fora dele, independentemente de toda força e de toda razão” (PIERCE, 2005, p.24).
Ano 4 N° 8 p.97-109
7
Disponível em
youtube.com/watch?v=95Dt5Ar
gacw
8
Disponível em
youtube.com/watch?v=GqAVw
ciQEcE
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E, nesse sentido, os vídeos “A Margem” e “Gambá de Pinhel” utilizam
câmeras abertas e sem entrevistas. O segundo produto captura as imagens sem
rebuscamentos de edição e efeitos. Já o primeiro, se utiliza de recursos nos frames
fotográficos, pelo formato e pelo tratamento e captura da imagem. Em ambos, a
câmera está parada ou com “sucessão imagética e sonora” (SOUSA, 2011, p.92). O
primeiro abre com a marca da produção, tendo em segundo plano o som ambiente de
crianças brincando. As produções de subjetividades (GUATTARI, 1986), ações e
modo de vida que dão sentido ao mundo dos moradores do Bairro Uruará, beira rio da
várzea do Rio Amazonas, são características marcantes das periferias das cidades
amazônicas e paisagem de fundo das crianças que brincam dentro da água que
também inunda suas casas. O mesmo é um retrato dos traços penetrantes da vida dos
moradores durante as obras do PAC, com suas transformações e hábitos fronteiriços
entre urbanicidade e ruralidade. O objeto audiovisual expõe a existência dos
moradores à beira rio, onde as biografias são reveladas em micronarrativas e, no caso
de “Quem decide é o Bar”, pela sua inspiração de caráter mítico ficcional.
A imagem de abertura do segundo vídeo apresenta um dos personagens da
dança tocando um tambor, o gambá –de origem Bantu, mas semelhante ao tambor de
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crioula do Maranhão , de onde seu tocador, o gambareiro, senta-se em cima dele para
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Colaboração do especialista
em História da África e
Diáspora Africana no Brasil,
percussionista e pesquisador de
etnomusicologia, fro-brasileira,
Antonio Obafemi Garrido
extrair o som. “Gambá de Pinhel” exibe a tradição das festas de santo –com suas
folias, mastros e ladainhas, rei congo e esmolação– caracterizada pela expressão
narrativa e imagética de seus próprios personagens, neste caso o Santo Benedito.
Interessante apresentar a percepção do naturalista inglês Henry Bates às vistas da
festa do sairé, nas imediações de Parintins, ao navegar pelo Rio Amazonas, em meado
do século XIX. A mesma corrobora com a festa da comunidade de Pinhel que é
representada no vídeo, situada na ilharga do Rio Tapajós, inclusive no alinhamento
dos instrumentos musicais.
Os negros, devotos de um santo que tinha a sua cor –Santo Benedito– fizeram sua
festa a noite toda cantando e dançando ao compasso de um tambor comprido
chamado “gambá” e do caraxará. O tambor era feito com um pedaço de pau oco,
fechado numa das extremidades por um couro esticado; era colocado horizontalmente
no chão, e o tocador montava nele, percutindo-o com os nós dos dedos (1979, p.124).
O vídeo representa um pouco da visão do naturalista, exibindo como a cantiga
e a dança têm referências na multiplicidade dos arranjos étnicos, confluindo a cultura
africana, indígena e europeia colonial, além da interferência do mundo que está
presentificado na realidade social contemporânea naquela localidade. É cantada pelo
gambareiro em uma unidade de diferentes versos, característica musical daquele
ritual. Na repetição dos versos, duas ou mais vezes, segue o convite para a
participação do coro que estribilha. Reproduzimos um desses versos abaixo:
Cantador
Seu Felício chegou
Seu Felício chegou
Coro
Mata a galinha, depena orubú
Depena orubú, depena orubú
Cantador
Seu Felício chegou
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Coro
Mata a galinha, depena orubú
Depena orubú, depena orubú
Cantador
Depena orubú, depena orubú
Coro
Mata a galinha, depena orubú.
O enquadramento, a decupagem e montagem seguem tratamentos menos
complexos que os utilizados para capturar a imagem em Quem Decide é o Bar, que
conta com uma direção de fotografia que sensibiliza o espectador. As tomadas de
câmera movimentam-se no cotidiano, na vida ou na festa e dança, oferecendo o caráter
real para os espectadores. “Quem decide é o Bar” ainda insere o mitológico na história.
Os três vídeos preferem as gravações diurnas, salvando “Gambá de Pinhel”
que tem uma fotografia noturna da lua com cenas na aurora. “A Margem” utiliza
cortes bruscos; imagens sobrepostas umas nas outras, com frames imagéticos
quebrando a linearidade do documentário. As imagens buscam o encantamento e a
celebração da vida, enfatizando os closes ao deixarem-se sobressair personagens
centrais. Os cortes são naturais ao longo dos filmes, sem grandes elaborações
tecnológicas. Nesse sentido, Deleuze (2013, p.79) acrescenta que no cinema “a
técnica não é nada se não serve a fins que ela supõe e que ela não explica”. Pensamos,
mesmo, que essa descrição assemelha-se ao retrato do cotidiano daquelas localidades
expostos nos filmetes. O que diferem, nesse sentido, dos dois videoclipes que brincam
com os jogos de cortes e montagem, de profundidade e planos.
O VT (a regra era não ultrapassar 2 minutos) utilizou a câmera parada e focada
diretamente na atriz que dita um texto sobre o trânsito: um casal com problemas de
relacionamento e que está refletido no cotidiano ao correr demais com o carro. Diz
Santaella, que “esse aspecto puramente qualitativo de um signo e, no nosso caso dos
vídeos, é sempre apreendido pelo espectador”, tal como o estamos realizando agora
(2010, p.118). As cenas das pessoas em plano aberto são predominantes em relação às
cenas de paisagem, onde a câmera segue seus personagens principais.
Excetuando “Gambá de Pinhel” que possui um narrador, os dois filmes de
Santarém abrem os microfones para o som ambiente, o cotidiano da vida sem um
script antes definido como é em “Quem Decide é o Bar”, e por certos aspectos
também os vídeoclipes. Esses aspectos é que dão a conotação qualitativa dos signos,
assim como a multiplicidade de linguagens imagéticas. Santaella ressalva que um
signo, “um existente só o pode ser através de suas qualidades. Por isso mesmo,
existentes dão corpo a quali-signos. Onde houver um existente, haverá um qualisigno” (p.120), como servem para representarem seus referentes.
À relação do signo com seu modo existencial Santaella (2010) ensina que cada
vídeo é “um existente com características próprias”. E vai mais longe ao inserir que “as
características próprias de cada um se constituem nas qualidades específicas e peculiares de
imagem e de fala que estão nele corporificadas” (p.120). É isso que faz com que cada vídeo
tenha suas especificidades próprias, “cada vídeo é único e assim deve ser explorado”
(p.121). Isolados, cada um deles é um sin-signo, o que Pierce sugeriu como a secundidade.
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Os dois videoclipes distanciam em suas linguagens e expressões discursivas e não
verbais. O “Cultura Raiz Semente Digital”, protagonizado pelo artista, denuncia o
cotidiano pela música colocando o anti-racismo ao lado da transmissão da cultura afro
pelo estilo da música raggae. Ao escreverem o texto musicalizado na convergência
acústico-digital de “(...) em que o bem que vence o mal, minha cultura é a raiz, minha
semente é a digital, Afro Futurista é de on the floor, fazendo minha arte com muito amor”,
expõe a evidência da transmissão do saber fazer, dos saberes que nada mais são que as
técnicas que a globalidade está possibilitada pela música. Ao mesmo tempo que a imagem
mostra um afrodescendente, com cabelos rastafári, ensinando a arte de mixar para um
garoto, intercalam frames fotográficos sobrepostos do intérprete e de uma pista de dança,
mesclados com tomadas em câmera lenta do frenesi no embalo da música. Após gravar
num pendriver com aparência muito usada e reciclada como produto da experiência,
demonstrando uma forma tecnológica despreocupada com o cenário artificial, um outro
frame expõe, em macro, a mão que entrega o objeto fechando-o naquela pequena mão.
Outros movimentos, na repetição do refrão irão contar o menino colocando o objeto num
som e dançando com outros garotos em um campo murado, tipo futebol, no alto do morro.
A dança é caracterizada por movimentos de rua e do rap enfatizando a tradição cultural
afrodescendente de bairros periféricos nas grandes cidades brasileiras.
A mistura das línguas expressadas na letra da música aponta para a noção do
mundo interconectando culturas (HANNERZ, 1997), no caso, Brasil-França. O vídeo
“Brand New Day” ensina que viver é uma arte metamorfoseando e transmutando o já
existente, o novo que é também cópia e ao se tornar como tal exibe a arte da dança. Os
vídeos clipes estão mais para os públicos jovens; sendo que os demais podem transitar
entre consumidores de áreas como a cultura e o turismo, reforçando o caráter da
manutenção dos elementos culturais e públicos.
Até aqui, observamos o quanto a significação determina os elementos do
signo, desvelando seus objetos. Sendo assim, Santaella (2010) reforça que o
paradigma fotográfico permite que os vídeos expressem o aspecto indicial com mais
protuberância do que o icônico. Acentua que “os vídeos, tanto como as fotografias, de
fato, indicam, apontam para os objetos e situações fora deles que estão neles
retratados. Assim sendo, os vídeos dirigem a retina mental do espectador para as
paisagens, cenas e situações que eles registraram” (p.125). Apesar de coexistirem, o
interpretante atento o perceberá via as qualidades do referente e o modo como é
capturado pelas imagens de cada vídeo. As imagens e as fotografias são, portanto,
retratos da realidade e, por isso, se conectam fisicamente com suas qualidades,
demonstrando a relação icônica representada pela secundidade.
Considerações Finais
Como Santaella (2010) nos encaminha, o interpretante final “se refere ao
resultado interpretativo ao qual todo intérprete está destinado a chegar se a
investigação sobre o signo for levada suficientemente longe” (p.134). A autora
completa com o que Pierce (2005, p.40) explora ao preconizar que “o corpo de um
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símbolo transforma-se lentamente, mas seu significado cresce inevitavelmente,
incorpora novos elementos e livra-se de elementos velhos”. Da mesma forma, que
entendemos as considerações finais num artigo científico têm o caráter interpretativo
do autor ao atribuir o fechamento conclusivo do objeto.
Os vídeos documentários, reportagem, ficção, clipe e VT publicitário
representam ideias exploradas da realidade por seus produtores. Mais que isso,
representam simbolicamente e materializam os desejos e vontades nas múltiplas
expressões culturais. Imagens que abrigam devires múltiplos e tornam público o
inusitado, realidades sociais em evidentes transformações, agindo como objetos
mágicos desses jovens produtores.
Identificamos que o evento em análise tem o caráter de experimentação
pedagógica e de processos participativos, o que foram entendidos ao lado dos
fundamentos freireanos (1996). O ensino de graduação, no formato tradicional
presencial e teórico, é afetado diretamente pela ineficiente relação com a trajetória
educacional dos estudantes. A práxis ensina que o tempo da ciência não é o da prática,
preconizado por Bourdieu (2013). Adianta o autor que “a prática científica está tão
destemporalizada que tende a excluir até mesmo a ideia do que ela exclui: uma vez
que ela não é possível senão em uma relação com o tempo que se opõe ao da prática,
ela tende a ignorar o tempo, e, dessa maneira, a destemporalizar a prática”
(BOURDIEU, 2009, p.135). Assim é que o festival de vídeos vem temporalizar a
prática social de estudantes e professores, mercado e sociedade.
Com ênfase nas narrativas locais, micro histórias e biografias, os vídeos locais
premiados retrataram a cultura local e o modo de vida dos habitantes, tornando tênue
a linha fronteiriça do espaço e tempo via ecossistema digital, ao premiar vídeos do sul
e sudeste brasileiro. O conjunto de vídeo vencedores demonstra a emersão das
questões correlatas de mistura ou hibridismo, caráter da realidade social
contemporânea. Coloca em pauta o referencial simbólico da religião católica, com as
afronicidades lado a lado das indianidades dos ameríndios, distinção das formações
sociais na região do Baixo Amazonas. O ressurgimento de categorias sociais nas
localidades pode estar referenciado aos processos de ambientalização na Amazônia,
bem como dos movimentos sociais intensificados a partir da década de 90, com o
advento da Rio 92, e pelas regulamentações governamentais de segurança do
patrimônio social e cultural no país (ALMEIDA, 2008; LEITE, 2004).
Por outro lado, os vídeos exibiram a produção de subjetividade juvenil,
exemplificado no premiado da categoria Júri Popular; e reforça a proposta de que o
público jovem é o primeiro a ser considerado nas edições vindouras. Mas, as
ressignificações culturais não estão isoladas. Junto que essa questão sobressaiu,
também, as subjetivações denunciadoras da inoperância do poder público que chega
pifiamente aos habitantes de áreas periféricas, subtraindo-os dos direitos a que são
detentores às facilidades aos serviços. Por essas significações, apresentando
múltiplas subjetividades, é notável que os vídeos locais expressam os dilemas sociais
da contemporaneidade, e como tais, podem atuar na promoção da transformação da
vida cotidiana, como bem demonstrado em casos na rede de espalhamento mundial.
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Compreendemos que vivenciam rumor de uma sociedade em latência, que se
fragmenta e pulsa, criando laços em redes, formando as socialidades (MAFFESOLI,
1995). Essa mesma, é escrita com s minúsculo na compreensão de Lemos (2011),
remetendo-se a Bruno Latour, e desvelando a emergência das temáticas locais tipo
narrativas digitais “que buscam explorar ao máximo o uso de novas tecnologias para
contar histórias e transformar o mundo a volta” (CARVALHO, 2014, p.18-22).
Desta maneira, este trabalho procurou mostrar a relevância das localidades,
realidades menos densas, porém com densidade na produção de sentidos,
significações, subjetividades.
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Percepção Ambiental dos Barraqueiros da
Praia do Maracanã em Santarém-PA
Bruno Ivair Ferreira Silva *
Áurea Siqueira de Castro Azevêdo **
Anselmo Júnior Corrêa Araújo***
RESUMO
O objetivo do estudo foi conhecer a percepção dos barraqueiros que atuam na praia do Maracanã acerca de seus
problemas ambientais. Desta forma, foram realizadas pesquisas bibliográfica, documental e de campo. A partir dos
dados coletados por meio da aplicação de 11 questionários aos barraqueiros, constatou-se que 73% dos informantes
percebem ambientalmente a praia poluída e a ação que mais desenvolvem, a fim de evitar tal problema, é a limpeza do
local e a coleta de lixo. No entendimento de 82% dos barraqueiros a problemática ambiental da praia pode afetar
negativamente a sua vida de alguma forma, especialmente ao desenvolvimento de seu trabalho. Além disso, 64%
acreditam que o maior responsável por resolver os problemas da praia é o poder público, embora a totalidade dos
entrevistados se reconheça como agente contribuinte para a melhoria da qualidade ambiental do local. Com isso,
conclui-se que os barraqueiros percebem as dificuldades apresentadas na seara ambiental da praia, mas é necessário
maior envolvimento dos mesmos na construção de um espaço ambientalmente sustentável.
Palavras-chave: percepção - poluição - problemática ambiental
ABSTRACT
The objective was to study the perception of stallholders who work at the Maracanã beach about
its environmental problems. Thus, bibliographical, documentary and field surveys were
conducted. From the data collected through the application of questionnaires to 11 stallholders, it
was found that 73% of respondents perceive that the beach is environmentally polluted and the
most developed action in order to avoid this problem is the cleaning of the place and the garbage
collection. In the opinion of 82% of stallholders environmental problems of thee beach can
negatively affect their life in some way, especially the development of their work. Moreover, 64%
believe that the most responsible entity for solving the problems of the beach is the government,
although all the respondents recognize themselves as contributing agents to improve the
environmental quality of the site. Thus, it is concluded that the stallholders realize the difficulties
presented in the environmental situation of the beach, but need greater involvement in building an
environmentally sustainable space.
Keywords: perception - pollution - environmental problem
*
Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Tapajós (FIT).
Especialista em Educação e Gestão Ambiental. Turismóloga; acadêmica de Engenharia Florestal da Universidade Federal do
Oeste do Pará (UFOPA).
***
Acadêmico de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
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Introdução
É histórico o fato de que o homem sempre dependeu dos recursos da natureza
para suprir suas necessidades mais básicas, sendo que, em geral, eram utilizadas
técnicas rústicas no manejo do ambiente. Porém, conforme Romeiro (2003), o passo
colossal da capacidade humana em intervir no meio ambiente se deu com a Revolução
Industrial, haja vista que a tecnologia impôs uma nova maneira de produção a partir do
uso dos recursos da natureza. A consequência do desenvolvimento industrial e
tecnológico sobre o meio ambiente vem sendo, assim, a sua progressiva degradação, a
qual se intensifica mediante a constância do comportamento insensato humano.
Em paralelo aos agravos ambientais surge também a preocupação com a
preservação e conservação ambiental, as quais vêm ganhando espaço dentro dos
debates mundiais. O desafio emergente, então, é a busca por novos métodos e formas de
lidar com o meio ambiente, a fim de que os impactos ambientais possam ser reduzidos.
Dentro deste contexto, não apenas se inserem a adoção de tecnologias ecologicamente
corretas, o manejo sustentável dos recursos naturais, a elaboração de leis mais protetivas
ao meio ambiente, punições por infração ambiental, dentre outros, como atuais
exigências para a solução dos problemas ambientais. Faz-se necessário, primeiramente,
o entendimento por parte dos indivíduos de que suas ações afetam o meio ambiente e
que a mudança de suas atitudes é crucial para o alcance da sustentabilidade ambiental.
Neste sentido, a percepção ambiental é fundamental para compreender como os
indivíduos visualizam o meio ambiente e a forma como se relacionam com ele. A
percepção ambiental, de acordo com Bassani (2001), pode ser entendida como a
experiência sensorial direta do ambiente em um dado momento pelos indivíduos, em um
processo que implica estruturação e interpretação da estimulação ambiental. Assim,
cada indivíduo visualiza o meio ambiente de forma diferente e com ele mantém relações
também diferenciadas, dado o caráter particular de suas percepções e experiências no
meio. Desta forma, objetivar a conservação ambiental de qualquer localidade também
requer o entendimento de como a sociedade a concebe e interage com ela.
A praia do Maracanã está situada em um bairro de mesmo nome no município de
Santarém-PA, distando aproximadamente 10 km do centro da cidade. É uma das praias mais
próximas do centro urbano, oferecendo barracas de vendas para receber os visitantes.
Contudo, são visíveis vários problemas de diversas ordens no local, que vão desde as precárias
condições de acesso até a falta de segurança no lugar, o que poderia comprometer a imagem
da popular praia. Problemas na seara ambiental também são frequentes na praia, como a
disposição inadequada de resíduos sólidos e a poluição sonora, o que afeta de maneira geral,
visitantes, moradores do bairro e a comunidade em geral. Logo, pela necessidade da
conservação ambiental e da mudança de comportamento do indivíduo em relação ao meio
ambiente, torna-se importante, então, dar maior ênfase aos problemas ambientais.
É neste cenário que se inserem importantes atores sociais que oferecem serviços de
suporte durante o passeio dos visitantes: os barraqueiros. Como agentes que convivem quase
que diariamente na praia do Maracanã por razões laborais e, por conseguinte, conhecem e
convivem com os problemas do lugar, é imprescindível o entendimento por parte dos
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barraqueiros de que não cabe somente ao poder público, residentes do bairro e visitantes o
papel de zelar pela praia. Mais que isso, é necessário o reconhecimento de que também
fazem parte do problema e, principalmente, são peças fundamentais na busca de soluções.
No entanto, foi preciso compreender, primeiramente, como os barraqueiros
visualizam ambientalmente a praia do Maracanã, visto que, através do conhecimento
da percepção ambiental de um grupo de indivíduos, torna-se possível entender o seu
posicionamento frente aos problemas ambientais e a partir disso, sugerir ações mais
precisas que tendam a modificar ou estimular o comportamento. Isto posto justificou
a realização desta pesquisa, haja vista que os barraqueiros devem assumir um papel
importante no estímulo às ações de proteção à praia do Maracanã, mas o
entendimento deste papel depende da percepção ambiental que os mesmos possuem
em relação aos problemas ambientais da praia.
Sendo assim, a presente pesquisa objetivou conhecer qual a percepção dos
barraqueiros que atuam na praia do Maracanã acerca dos problemas ambientais da
mesma. Como objetivos específicos, buscou-se avaliar se os barraqueiros
reconhecem a problemática ambiental da referida praia, verificar quais as ações
tomadas frente a esta problemática e identificar se os barraqueiros têm a sensibilidade
de que são agentes contribuintes para a proteção ambiental do local.
Fundamentação Teórica
Segundo Coimbra (2004), as relações do ser humano com o mundo natural
são determinadas pelas mais diversas concepções que, em geral, focalizam o homem
como elemento externo e superior ao meio ambiente. Considerando os recursos da
natureza como infindáveis, desde há muito tempo o homem sempre se apoderou dos
mesmos sem a preocupação de sua utilização sustentável, o que denota a visão de que
o meio ambiente existe apenas para suprir as suas necessidades. Como resultado, temse o desenvolvimento de vários problemas que convergem para a intensificação da
crise ambiental. Assim, de acordo com Silva e Leite (2008), ao longo de sua evolução
histórica, o ser humano tem perdido afeto pelos sistemas naturais e sociais, relegando
o fato de que também faz parte destes sistemas.
De acordo com Marin (2008) apud Rauber (2011), o termo percepção é
derivado do latim perception, sendo definido na maioria dos dicionários da língua
portuguesa como: ato ou efeito de perceber; combinação dos sentidos no
reconhecimento de um objeto; recepção de um estímulo; faculdade de conhecer
independentemente dos sentidos; sensação; ideia; imagem. Neste sentido, percepção
vem a ser o ato de perceber uma realidade de forma profunda, interiorizando e
compreendendo aquilo que ela representa, ou seja, a percepção antecede a atribuição de
significado. Palma (2005) complementa afirmando que a percepção apresenta sempre
um objeto externo, que é a qualidade dos objetos percebidos tanto pelas sensações que
ele é capaz de trazer, como aquilo que as representações coletivas impõem.
À luz deste juízo, Coimbra (2004, p. 539) assegura que “a percepção é o
primeiro passo no processo de conhecimento”. Com isso, se a percepção é infiel, o
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conhecimento não atingirá seu objetivo, em razão do entendimento seguir uma
direção equivocada. Isto também se adequa a percepção do meio ambiente, haja vista
que a percepção errônea da realidade proporciona e incentiva o uso irresponsável dos
recursos ambientais o que, por conseguinte, ajuda a sustentar a crise ambiental.
A percepção ambiental tem se destacado como processo que integra a
Psicologia com a Sociologia e a Ecologia, ajudando no entendimento dos anseios,
satisfações e desprazeres da sociedade concernentes ao meio e aos elementos
pautados na qualidade de vida e ao bem estar social (ARAÚJO, ARAÚJO e
ARAÚJO, 2010). Neste sentido, Silva e Leite (2008) ponderam que a percepção
ambiental envolve a forma de olhar o ambiente, consistindo na maneira de como o ser
humano compreende as leis que o regem. Tal olhar, assim, é decorrente de uma
imagem resultante de conhecimentos, experiências, crenças, emoções, cultura e
ações. A percepção ambiental, então, é fruto da sensibilização humana tomando por
base o ambiente em que está inserido e as relações com ele mantidas.
Para Coimbra (2004) a percepção do meio ambiente é, de uma só vez,
processo e resultado: como processo, ela é o ponto de partida para o conhecimento
ambiental e como resultado, pode significar também todo o conhecimento adquirido
a respeito do meio ambiente. Como fator existente em todas as ações do ser humano, a
percepção é capaz, então, de influenciar o seu modo de se relacionar com o meio
ambiente. Nesse sentido, as reações e as respostas cada indivíduo sobre o meio em
que vive são diferentes umas das outras, visto que são diferenciados os processos de
concepção do meio e das experiências nele vivenciadas. E, diante do cenário atual em
que despontam as ações insustentáveis contra o meio ambiente, é importante
compreender a maneira como os indivíduos visualizam e lidam com ele, a fim de se
obter dados importantes que embasarão a formatação de propostas que estimulem o
individuo a uma atitude mais positiva em relação ao meio.
Assim, de acordo com Bassani (2001) o contexto dos problemas ambientais
envolve o estudo das relações do homem com o ambiente que o circunda, sendo que as
soluções a serem adotadas dependem do prévio conhecimento da forma como o individuo
lida com o meio ambiente. Neste caminho, Maeczwshi (2006) apud Bay e Silva (2011)
assevera que a abordagem da percepção ambiental de uma comunidade converte-se em
um primordial instrumento para alcançar a compreensão sobre os comportamentos e
atitudes dela recorrentes, visando à estruturação de ações que possibilitem a
sensibilização e o desenvolvimento de condutas éticas e responsáveis frente o ambiente.
Com isso, considerando que não basta apenas conhecer um determinado olhar
sobre o ambiente e a relação do indivíduo com o mesmo sem que haja mudança de
mentalidade e condutas, a percepção ambiental deve estar atrelada a outra ferramenta
essencial: a educação ambiental. Neste rumo, Rauber (2011) avalia que a educação
ambiental objetiva contribuir com as questões ligadas ao meio ambiente, permitindo
uma relação mais harmônica do homem com o meio. Mais que isso, busca também a
valorização do homem, reavivando a consciência de sua importância social e
ambiental. Isso porque o homem é parte integrante do meio e, por assim ser, tem
responsabilidades para com este, devendo executar suas atividades de forma que não
conduzam à degradação dos recursos naturais.
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Ano 4 N° 8 p.110-121
Ademais, segundo a autora supracitada, tendo a educação ambiental o
conhecimento dos valores e atitudes que os indivíduos têm acerca do meio ambiente,
é possível a elaboração de ações que venham a atingir determinado grupo, com vistas
a provocar modificações em sua mentalidade e suas ações de forma que, de fato,
venham a contribuir para a sustentabilidade socioambiental.
Com isso concorda Palma (2005), alegando que a percepção ambiental, como uma
ferramenta de educação ambiental, poderá servir de instrumento em busca da conservação
dos recursos naturais, uma vez que ela aproxima do homem da natureza, suscitando neste a
vontade de zelo e respeito para com o meio ambiente. Desta forma, conseguindo-se
alcançar a mudança do olhar humano sobre os recursos e suscitar a necessidade de
proteção do meio, é possível lograr os objetivos da conservação ambiental.
Metodologia
No que concerne aos objetivos, o presente estudo situa-se na categoria
exploratória, pois, de acordo com Silveira e Córdova (2009), este tipo de pesquisa
objetiva proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo
mais explícito ou a construir hipóteses. Em função da abordagem, a pesquisa possuiu
caráter qualitativo, pois, segundo Dencker (2002), procurou-se o aprofundamento da
compreensão de um fenômeno, incluindo a interpretação do significado dado pelos
participantes da pesquisa. Também possuiu caráter quantitativo, uma que vez que se
permitiu mensurar opiniões e quantificar valores sobre o tema em questão através de
uma amostra dos barraqueiros associados.
Quanto aos procedimentos, foi realizada uma investigação acerca do tema
proposto através de uma pesquisa bibliográfica e pesquisa documental, sendo
finalmente realizada uma pesquisa de campo na praia do Maracanã, localizada na
cidade de Santarém, junto os barraqueiros da praia. De acordo com a Associação dos
Barraqueiros da Praia do Maracanã, existem atualmente 23 barraqueiros associados.
Contudo, em virtude de alguns não estarem presentes durante a coleta de dados, a
pesquisa foi realizada com 48% dos barraqueiros, perfazendo um total de 11
participantes. Para tanto, fora elaborado um questionário que se constituiu no
instrumento de coleta de dados da pesquisa.
Resultados e Discussões
Dos entrevistados, a maioria pertence ao sexo feminino (64%), a faixa etária
que mais prevaleceu foi a correspondente de 33 a 39 anos (55%) e a escolaridade
predominante foi o ensino fundamental incompleto (45%). Ademais, obteve-se que
maioria tem mais de 10 anos de atuação na praia (73%).
Os informantes da pesquisa foram indagados acerca do que vem a ser a praia do
Maracanã para os mesmos. Assim, a representação da praia pelos barraqueiros como
um local de trabalho é visível, visto que este é o lugar em que suas atividades laborais
são desenvolvidas. Considerando a praia fundamental para o seu sustento, depreende-
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Ano 4 N° 8 p.110-121
se que este foi o motivo da significação pela maioria dos barraqueiros, correspondendo
a 37% dos informantes. Porém, além de trabalharem na praia, alguns também vivem
em pequenas casas construídas ao lado de sua barraca, demonstrando que, para 27%
dos participantes, a praia representa sua vida. Ademais, a praia do Maracanã também é
vista como um lugar que apresenta belezas naturais por 27% dos barraqueiros,
registrando-se também o lazer que elas proporcionam para 18% (Gráfico 1).
Gráfico 1 –Representação da praia para os barraqueiros
Desta forma, concordando com o pensamento de Mansano, Sarrão e Sarrão
(2011), a percepção pode levar à compreensão de que as paisagens são cheias de
significados e interesses e que, segundo Tuan (1980) apud Mansano, Sarrão e Sarrão
(2011), a percepção, os valores e as atitudes são intrínsecos de cada indivíduo. Com
isso, cada pessoa atribui a lugares, valores distintos, sejam eles ecológicos,
econômicos ou estéticos. Como o significado, os valores e a importância de um lugar,
objeto ou realidade estão relacionados com a forma que cada indivíduo percebe o
ambiente a sua volta, existirão, então, diversas interpretações, estando estas baseadas
em suas experiências, vivências, cultura, julgamentos, expectativas, etc.
Em relação ao meio ambiente natural, especificamente, os barraqueiros foram
questionados sobre como visualizam a praia do Maracanã. Na visão de 73% dos
informantes a referida praia é poluída, porém, outra opinião sinalizou a praia como
rica em beleza natural, perfazendo um total de 27% de participantes (Gráfico 2).
Gráfico 2 –Visualização ambiental da praia pelos barraqueiros
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As respostas dadas pelos participantes da pesquisa estão em conformidade
com o pensamento de Mansano et al. (2005, p.3), uma vez que, na percepção
ambiental, podem haver elementos agradáveis ou desagradáveis inseridos em um
ambiente, ou seja, “na relação do ser humano com a paisagem, podem ser
desenvolvidos sentimentos topofílicos ou topofóbicos em relação ao espaço
percebido”. Para Coimbra (2004), tal percepção é denominada sensorial, haja vista
que detecta sinais específicos da qualidade ambiental, seja ela positiva ou negativa,
podendo-se também aferir os sintomas e incômodos da poluição ou da degradação
ambiental que influenciam diretamente na qualidade de vida e na saúde humana.
Assim, a praia do Maracanã representa vários aspectos importantes de alguma maneira
para os barraqueiros, porém a maioria destes visualiza a praia além de seus atributos
naturais, reconhecendo, assim, a problemática ambiental da mesma.
Questionados se os problemas ambientais existentes na praia do Maracanã
podem afetar negativamente os barraqueiros de alguma forma, 82% dos informantes
acreditam que sim e 18% disseram que não (Gráfico 3). Dos que responderam
positivamente, 55,56% afirmaram que o problema ambiental acarreta a diminuição
no número de clientes que visitam a praia o que, consequentemente, afeta seu
trabalho, 22,22% afirmaram que a saúde familiar pode ser afetada e 22,22% dos
informantes disseram que afeta o seu sossego, referindo-se à poluição sonora.
Gráfico 3 –Opinião dos barraqueiros sobre possibilidade de consequências negativas
Bay e Silva (2011) registram que, apesar da sociedade perceber os problemas
ambientais, a maioria dos indivíduos ainda não são conhecedores das consequências
desses problemas. Contudo, a maioria dos informantes foi capaz de perceber de que
forma a problemática ambiental afeta a sua vida, obtendo-se a maioria das respostas
relacionadas ao campo econômico, uma vez que os barraqueiros visualizam a praia
como fonte de emprego e renda. Porém, ainda sim, é necessário que os barraqueiros
sejam estimulados a enxergarem a praia não somente como um ganho econômico,
mas como um lugar que deve ser conservado para o alcance do equilíbrio ambiental e
qualidade de vida para toda a coletividade.
Os barraqueiros que participaram da pesquisa também foram indagados sobre
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quem seria o maior responsável em resolver os problemas ambientais referentes à praia
do Maracanã. Para 64% dos informantes o responsável é o poder público, enquanto que
18% atribuíram a responsabilidade aos barraqueiros e 18% a todos (Gráfico 4).
Gráfico 4 –Opinião dos barraqueiros sobre o responsável em solucionar
problemas ambientais
O poder público, de fato, assume relevante papel na solução dos problemas
ambientais, especialmente para induzir a participação da sociedade nos processos
educacionais que objetivem a conservação dos recursos naturais. Porém, o poder
público não é o único que tem responsabilidade para com o meio ambiente, haja vista
que toda a sociedade também tem o encargo de assumir uma função mais propositiva
em prol do meio ambiente. Assim, “a postura de dependência e de
desresponsabilização da população decorre principalmente da desinformação, da
falta de consciência ambiental e de um déficit de práticas comunitárias baseadas na
participação e no envolvimento dos cidadãos” (JACOBI, 2003, p. 192).
Os participantes da pesquisa também foram questionados quanto às ações que
tomam frente aos problemas ambientais da praia do Maracanã. Assim, 82% os
informantes afirmaram que realizam atividades de limpeza e coleta de lixo, 9%
realizam reclamações aos órgãos ambientais e 9% não responderam (Gráfico 5).
Gráfico 5 –Atividades realizadas pelos barraqueiros
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Piva-Silva, Lui e Molina (2008) asseveram que os comportamentos e atitudes
dos indivíduos em relação ao ambiente estão fortemente relacionados com as diversas
percepções que têm do mesmo. Neste sentido, considerando que a maioria dos
barraqueiros percebe poluída a praia do Maracanã, o comportamento adotado frente
ao problema apontado é a realização de limpeza e coleta de lixo. Isso porque tais ações
estão ligadas “à visão construída sobre a realidade em que se vive, já que toda ação é
resultado de uma certa compreensão, da interpretação de algo que configure sentido”
(LUIZZI, 2005, p.399).
Os participantes também foram indagados se se reconhecem como agentes
contribuintes para a melhoria da qualidade ambiental da praia do Maracanã, sendo
que a totalidade (100%) respondeu positivamente. Desta forma, segundo Quadros
(2007, p.11), os problemas ambientais assumem um papel de relevância social em
proporções cada vez mais nocivas à qualidade de vida da sociedade e, “reconhecer-se
como parte fundamental desta história é um todo complexo e necessário à construção
da cidadania e cultura, que é a identidade de um povo e da relação deste com a
natureza”, para que os indivíduos, então, possam atuar de maneira participativa e
comprometida no amparo ao ambiente natural.
Questionados se têm a intenção de participar de projetos voltados à prática da
conservação ambiental na praia a maioria respondeu positivamente, perfazendo 91%
do total de informantes (Gráfico 6). Porém, houve um decréscimo nesta porcentagem
quando foram indagados se, de fato, já haviam participado de alguma atividade que
objetivasse as questões ambientais na praia. Assim, 55% dos participantes afirmaram
ter participado de atividades de limpeza e coleta de lixo, enquanto que 45% disseram
que ainda não participaram (Gráfico 7).
Gráfico 6 –Intenção de participar
de atividades ambientais
Gráfico 7- Participação dos
barraqueiros em atividades
ambientais na praia
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O envolvimento dos barraqueiros em atividades de conservação ambiental da
praia do Maracanã é importante e urgentemente necessário, visto que a tendência é a
degradação ambiental do lugar. Porém, a fim de que estejam aptos a trabalhar na
construção coletiva de ações estratégicas para a melhoria ambiental, faz-se necessário
que os atores sociais “sejam capazes de perceber claramente os problemas existentes
em determinada realidade, elucidar as causas e determinar os meios de resolvê-los”
(CASTRO e CANHEDO JR., 2005, p. 407). Por isso, tão importante quanto
incentivar os barraqueiros a participar de ações de cunho ambiental, é estimulá-los a
perceber o ambiente que o circunda, a fim de que se alcancem os objetivos das ações
adotadas. Além disso, “é preciso deixar claro que participar não significa apenas o
quanto se toma parte, mas como se toma parte em uma intervenção consciente, crítica
e reflexiva baseada nas decisões de cada um” (CASTRO e CANHEDO JR., 2005, p.
403) sobre as situações que dizem respeito a toda coletividade.
Considerações Finais
Os barraqueiros da praia do Maracanã percebem que a mesma, embora dotada
de belezas naturais, apresenta-se com disposição demasiada de lixo, perfazendo uma
imagem poluída, sendo este o aspecto mais lembrado pelos mesmos quando
suscitados a pensar na praia no tocante ao meio ambiente natural. Reconhecendo a
poluição pela disposição inadequada de resíduos sólidos como a problemática
ambiental da praia, a maioria das ações adotadas pelos barraqueiros é a realização de
limpeza e coleta de lixo. Contudo, ao que parece, tal ação ainda parece ser pouco
diante de todo o contexto, posto que a visualizam como intensamente poluída. E, para
resolver o problema, apontam o poder público como principal responsável por sua
solução, embora se reconheçam como agentes contribuintes para a melhoria da
qualidade ambiental da praia.
Ademais, percebeu-se que a praia do Maracanã é importante para os
barraqueiros especialmente por razões de trabalho. Assim sendo, como seu trabalho
está relacionado com o meio ambiente, os barraqueiros reconhecem que, a falta de
qualidade ambiental afeta negativamente o seu sustento. Com isso, é necessário que
compreendam que a melhoria da qualidade ambiental e o desenvolvimento de
relações de respeito com a natureza é importante também para toda a coletividade,
não devendo, pois, as ações voltadas pelos barraqueiros estarem voltadas
especificamente aos seus objetivos individuais e econômicos.
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Ano 4 N° 8 p.97-109
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Princípios Éticos e Ausência de Sentido na Contemporaneidade
Ivair da Silva Costa*
RESUMO
O texto procura discutir a ética enquanto o saber humano que tem como objetivo enunciar princípios ou
normas universais orientativos da vida. Nos estágios mais recentes da história da humanidade o homem, em
sua plena consciência, percebeu a existência de leis universais, consideradas também como direitos comuns a
todos os povos. Da mesma maneira a racionalidade humana procurou identificar entre esses vários valores,
aqueles que melhor pudessem ser introduzidos nas relações sociais. Assim, de modo gradual e permanente foi
se configurando um conjunto coerente do saber ético e se diversificando nas funções de criticar as diversas
morais e costumes particulares de um povo, explicar o que é moral, fundamentar a ação humana e indicar os
princípios éticos para a boa convivência humana. Nesse sentido, o texto se empenha em discutir a realidade
contemporânea e seus desafios éticos que interferem nos relacionamentos interpessoais e aponta o princípio
da vida humana, da subjetividade e o religioso como inerentes às ações humanas a serem articulados em vista
da promoção da liberdade individual e da dignidade de todos os povos.
Palavras-chave: princípio ético - tecnologia - intersubjetividade
ABSTRACT
The text discusses ethics as human knowledge which aims to enunciate principles or universal
norms to guide life. In the most recent stage of human history, men - in his full consciousness realized the existence of universal laws, also regarded as common rights to all the people.
Likewise, human rationality sought to identify between these values, those that could best be
introduced to social relations. Thus, gradually and permanently a coherent set of ethical
knowledge has been configured, which adopted among its functions to criticize some people's
particular moral and customs, to explain what is moral, to support human action and to state the
ethical principles for good human relations. In this sense, the text strives to discuss the
contemporary reality and its ethical challenges that interfere in interpersonal relationships and
points the principle of human life, subjectivism and religion as inherent in human actions that are
to be articulated aiming to promote individual freedom and dignity for all people.
Keywords: ethical principle - technology - intersubjectivity
*Professor das disciplinas de Filosofia e Ética nas Faculdades Integradas do Tapajós (FIT).
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Introdução
Ao tratar do tema “princípios éticos” entende-se ser o princípio uma
referência de ordem e de valor que direciona a convivência entre as pessoas e a
construção de laços duradouros de harmonia com os demais seres vivos que povoam a
terra. Compreendem-se, assim, como normas de comportamento humano e não
apenas ideias de vida ou premissas doutrinárias (COMPARATO, 2008, p. 494).
Desse modo fala-se do princípio responsabilidade, princípio amor, princípio vida,
principio cuidado e tantos outros aplicáveis às diferentes realidades humanas.
O princípio do cuidado se aplica, de modo especial, às pessoas ao tratar sobre
relações humanas e sociais minimamente justas que permitam uma convivência sem
demasiados conflitos e dilacerações, mas também é dirigido à criação, enquanto
esforço de salvaguardar a terra com seus ecossistemas formadores do todo e os
demais elementos básicos que sustentam a vida.
Nas páginas seguintes a abordagem esclarecerá o sentido da ética enquanto
enunciadora de princípios, ao mesmo tempo em que serão explicitadas três condições da
humanidade provocadas pelas transformações sociais e encerrará a discussão com a
apresentação também de três princípios que o saber ético considera propícios e
indispensáveis para responder a alguns conflitos vividos pela sociedade contemporânea.
Ética como Enunciadora de Princípios
Para o entendimento do sentido de princípio faz-se necessário considerar a
ética não como um conjunto de códigos morais ou de regras próprias de um grupo
social a serem seguidas pelos seus membros, mas uma “metamoral” que, segundo
Adela Cortina e Emílio Martínez (CORTINA & MARTÍNEZ, 2005, p.3) não se
identifica com nenhum código moral, embora não se posicione de forma neutra diante
dos diferentes códigos.
Assumindo uma postura altamente crítica ela esclarece o que é a moral,
determina seu fundamento e aplica aos diferentes âmbitos da vida social os resultados
obtidos nas duas funções citadas acima. Dessa forma, é um conhecimento cujo
conteúdo se situa além da moral, vale dizer, uma teoria racionalizada sobre o bem e o
mal, sobre os valores e os juízos morais.
Rebuscando na história semântica do termo vê-se que o português ético deriva
do grego ethos (costumes) e moral vem do latim mores (hábitos). Os termos em
análise se direcionam para conteúdos “vizinhos”, como a ideia de costumes, de
hábitos, de modos de agir e de ser, o que significa o caráter formado por elementos
herdados dos genes dos pais e por conteúdos apreendidos na família, na comunidade
religiosa e no convívio social.
Mas os termos também se distanciam de modo radical apesar de sua
proximidade. A distinção acontece quando se compreende a ética mais teórica que a
moral e que se esmera em refletir sobre a ação humana e seus fundamentos, para ser
capaz de identificar, em cada situação, o que é essencial para a tomada de decisões,
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em uma atitude crítica e iluminadora de sentidos (MATTAR, 2010, p. 238).
De fato, a ética questiona os juízos de bem e de mal que são reunidos pela
moral com o propósito de “enunciar” princípios e fundamentos últimos. Segundo
Jaqueline Russ, pelo esforço e vontade de retornar à fonte, a disciplina ética
distingue-se da moral e tem em relação a essa primazia, por se esforçar em
“desconstruir as regras” de conduta que forma a moral, os juízos de bem e de mal que
se reúnem no seio da moral (RUSS, 1999, p. 7-8)..
Atualmente o termo abrange toda a multiplicidade de aspectos da humanidade o
que faz com que na literatura facilmente apareçam expressões como ética dos negócios,
ética ambiental, ética na mídia, ética na política aproximando-se mais de uma ética prática
ou bem pouco teórica. Fala-se até mesmo em uma ética para a sustentabilidade que
implica lançar um olhar crítico retrospectivo para a gênese da moral e do conhecimento
que orientaram os princípios éticos na modernidade (LEFF, 2012, p. 457).
No entanto, apesar dessas aproximações que a ética assume para dentro da
especificidade do tema se pronunciar, não se pode esquecer o primeiro e fundamental
sentido da ética, a de ser uma metamoral e doutrina fundadora e enunciadora dos
princípios ou como criadora de deveres de conduta (COMPARATO, 2008, p. 505).
Transformações Socioculturais Contemporâneas
Para uma melhor compreensão desse sentido original da ética como
enunciadora de princípios é preciso fazer referência, na discussão, de três elementos
relacionados ao bem e ao mal, alimentados pelas teorias modernas e contemporâneas
que produziram transformações substanciais entre as pessoas e seus relacionamentos.
Os elementos são: a falência do sentido da vida (niilismo); o individualismo e as
novas tecnologias. Veja a seguir em que consiste cada um desses temas.
1 A Falência do Sentido da Vida (Niilismo)
A falência do sentido da vida (niilismo) se caracteriza por um intenso “vazio
ético” e perda de valores das pessoas, estruturando-se em um grande paradoxo da
ética que precisa ser enfrentado. Ao procurar resposta para a compreensão deste
fenômeno, Jaqueline Russ concluiu que a sociedade, apesar da reivindicação do
debate ético em quase todos os aspectos da vida do homem, ou considerar “os anos da
moral”, tempo ávido de teorização da ética, vive-se o signo de uma ética
frequentemente problemática. Para ela, “a crise dos fundamentos que caracteriza todo
nosso universo contemporâneo, crise visível na ciência, na filosofia ou mesmo no
direito, afeta também o universo ético” (RUSS, 1999, p. 10).
Malena Contrera discute esta crise do sentido a partir da proposição do
desencantamento do mundo feita por Max Weber. Para esta autora, trata-se de uma
condição pós-moderna herdada da visão mecanicista do mundo adotado a partir do
século XVII, quando a “codificação racionalizadora” (supremacia da razão)
submeteu todas as experiências religiosas, matando o sentido e deslocando a
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centralidade do sagrado (CONTRERA, 2010, p. 37).
G. Durand de forma exemplar aponta para isso como a acentuação da crise do
pensamento simbólico, e conclui: “o cartesianismo assegura o triunfo do signo sobre
o símbolo” (G. DURAND, in CONTRERA, 2010, p. 38).
A compreensão das causas desse fenômeno faz ver que o homem afasta-se de
uma cognição direcionada pela participação/comunhão para uma racionalização do
mundo, que “coloca o homem no topo e gera uma visão antropocêntrica narcisista que
vê o mundo de forma objetal e desprovida de vida, de alma” (CONTRERA, 2010, p.
41).
Vilém Flusser retrata o processo tradicional abraçado pelo ocidente como o
fator preponderante para o triunfo do capitalismo e o esvaziamento do sentido.
Afirma: “O pensamento filosófico ocidental está viciado por um ódio fundamental à
natureza” (V. FLUSSER in CONTRERA, 2010, p. 45).
Flusser sugere que a história ocidental profanou a natureza, humilhou-a e a ela
se opôs. O homem moderno, dono de si mesmo, como o senhor do universo,
considerou-se seguro na ilusão de controle das coisas. As coisas tecnológicas (o
mundo tornado objeto) foram humilhadas e transformadas em produtos de consumo.
A natureza, transformada em “sistemas de coisas” torna-se manipulável (V.
FLUSSER, in CONTRERA, 2010, p. 45).
Para Malena, isso demonstra a crise do sentido; no entanto, neste caso,
esvazia-se não pela falta, ausência, mas pelo excesso, pela saturação de coisas e
objetos provenientes da tecnologia. “Neste sentido, sermos conduzidos pelo objeto é,
para nós, inescapável, é fatal” (CONTRERA, 2010, p. 48-49).
Malena revisita o mito de Prometeu e o analisa obtendo a conclusão de que,
agora, com o poder máximo do prometeu desacorrentado (técnica), ladeado pela
máxima capacidade racional, a pessoa perde o sentido e o significado de sua
existência caindo no vazio e acelerando o processo de banalização da vida e da pessoa
humana (CONTRERA, 2010, p. 85).
Em que consiste mesmo o vazio ético? Para o filósofo alemão Hans Jonas a
falência do sentido da vida significa a ausência de todo fundamento desembocando
em uma atitude niilista, de esvaziamento da pessoa, de perda dos referenciais que
sustentam a boa conduta pessoal e direcionam as relações sociais. (JONAS, 1995, p.
58-59) Admite ainda o filósofo tratar-se do triunfo do individualismo, da confiança
exacerbada nas novas tecnologias, aumentando brutalmente os poderes dos homens,
tornando-os sujeitos e objetos de suas próprias ações.
Para Morin, a própria pretensão do homem e seu desejo de tudo conquistar e
tudo dominar é quem provoca o vazio ético que leva ao esquecimento do outro.
Afirma o autor:
Depois de ter dominado a matéria e começado a dominar a vida, a ciência quer
dominar o seu criador, o ser humano, e com isso gera problemas antropológicos
novos e fundamentais, os quais são, ao mesmo tempo, gigantescos problemas
éticos (MORIN, 2007, p.76).
Com o esvaziamento do sentido da vida e com a ausência de princípios
sustentadores da conduta vemos as pessoas também vazias do horizonte simbólico e
125
Revista Perspectiva Amazônica
Ano 4 N° 8 p.122-134
dos valores espirituais orientativos da vida. Desse modo, abre espaço no convívio
humano a gigantesca produção de bens materiais e simbólicos modernos chamados de
parafernálias que oferecem respostas imediatas, facilitando a vida, criando nas pessoas
“poder desproporcional à sua naturalidade humana”, gerando desequilíbrio
psicossocial, levando-a a interesses distantes da ética (JONAS, 1995, p. 59).
Tal realidade se inscreve no ethos humano contemporâneo caracterizado pela
busca da satisfação das “necessidades e das pequenas alegrias cotidianas associadas,
geralmente, ao consumo como oferta de felicidade plena”. Este fenômeno
contemporâneo fere os princípios básicos de uma convivência responsável entre os
próprios seres humanos, a natureza e os demais seres vivos.
O vácuo deixado pela perda dos valores tradicionais passa, portanto, a ser
preenchido pelo espírito de consumo, como representação das subjetividades em
busca do aconchego e do lenitivo dos bens acumulados como garantia de felicidade.
Muitas são as tentativas de preenchimento do vazio ético, o que tem provocado
reflexões e atitudes de vanguarda na intenção de criar uma cultura da preservação, um
código de conduta que resguarde a vida humana e uma ética verdadeiramente
comprometida com a defesa da vida e do meio ambiente (LEFF, 2012, p. 95).
Velhas perguntas aparecem hoje atualizadas e ressoam mais forte em nossos
ouvidos: o que é o homem? Agora acrescentada por outra: para que o homem?
2 Individualismo
Individualismo é a atitude que privilegia o indivíduo em relação à
coletividade. Sem uma orientação globalizante que integre as pessoas e produza
sentimentos de parentesco ou que pertença a uma comunidade, cessam também as
atitudes de reciprocidade, companheirismo, busca do outro, do encontro. O indivíduo
torna-se valor supremo encerrado em si mesmo.
Na realidade contemporânea marcada profundamente pela globalização, se
torna cada vez mais forte a indiferença dos indivíduos que se sentem estranhos as
disciplinas, às regras, aos constrangimentos diversos, as uniformizações. Para Russ,
esse individualismo deixa explícita as delícias do narcisismo e a explosão hedonista
permissiva, em que as pessoas descontraídas se voltam para as escolhas privadas,
narcisistas. (Descontração: distração despercebida da realidade; insensibilidade
diante dos fatos da vida).
A sociedade contemporânea [...] impulsiona as chamadas desordens do caráter,
criando ideias narcisistas de sucesso profissional e social baseado na
visibilidade, no ímpeto, na manipulação das relações interpessoais, no
desencorajamento de ligações pessoais mais profundas, numa aprovação pessoal
pela via da auto-estima e do sucesso, agora baseada na fama, na acumulação e na
ausência de convicções, princípios e valores (RUSS, 1999, p. 11)
Frente a essas questões, a ética contemporânea se depara com o grande
desafio de fazer redescobrir, na era das pessoas “vazias”, uma macro ética válida para
a humanidade que seja regida pela comunicação, pela responsabilidade, pela
valorização do outro, cuja intenção seja a de fundar as formas culturais
contemporâneas, garantindo nas relações interpessoais uma feição mais humanizada
126
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e humanizadora.
Arendt, em “a condição humana”, propõe que a época moderna reduziu a vida
social à necessidade laboral, restringindo a vida ativa à produção e ao trabalho. Com
isso tornou o homem um animal laborans, diferente do homo faber, pois aquele passa
a ser submetido pela necessidade, tornando-se um ser solitário e perdendo a sua
qualidade especificamente humana (ARENDT, 1991, p. 31)
Esta crítica de Arendt faz ver que o lugar de construção da
intersubjetividade é a história de cada um e é somente pela construção de mundos
humanos capazes de garantir o reconhecimento universal; somente com a
construção de espaço de liberdade possível, se faz uma síntese entre a exigência
ética básica e as situações históricas específicas.
3 Supremacia da Razão e Novas Tecnologias
As novas tecnologias afloraram na história da humanidade quando a
racionalidade humana e a ciência, o pensar e o agir, construíram através da eficiência
um mundo transparente e racional, plenamente ordenado e controlado pelo poder da
razão, ampliando a visão objetivante e fracionadora da realidade (LEFF, 2012, p.
457)1
Assim, por meio da capacidade criadora e pelo desenvolvimento do
pensamento, buscou-se um tipo de existência modelada por princípios de normatividade
moral e domínio sobre o mundo por intermédio da técnica (PIKAZA, 1999, p. 128)
Denominado de ciência natural este saber humano “neutralizou” qualquer
agir humano que fosse encaminhado para os temas do valor, do princípio, em
primeiro lugar para com a natureza, que perdeu seu encantamento e depois também
para o homem, desprovido da condição de “anjo” ou protetor da criação.
Sobre o acelerado processo de transformações promovidas pelo saber racional
e a técnica, Hans Jonas levanta a questão do medo e do pavor, que estão substituindo a
virtude e a sabedoria. Preferimos nos cercar de arames farpados e cercas elétricas do
que discutir e promover formas de combate à violência. Afirma o autor:
Neste vazio (que ao mesmo tempo é o vazio do atual relativismo dos valores) é de
onde se situa esta investigação. Quem poderá servir-nos de guia? O próprio
perigo que prevemos! É em seus clarões precedentes do futuro, e da
demonstração antecipada de sua escala planetária e de seu labirinto humano,
onde primeiramente poderão descobrir-se os princípios éticos que se derivarão
os novos deveres do novo poder (JONAS, 1995, p. 65).
Jonas faz uma severa crítica à vontade de poder do homem e ao avanço
desenfreado do desenvolvimento e da técnica, reconhecida como “ambição de
progresso”, entendida como o aumento das condições de dominação do homem sobre
a natureza. Nesse sentido, as ações e objetivos humanos são deformados pela ideia de
domínio como meta de todas as pretensões humanas.
Segundo Oliveira e Borges, o homem técnico (homo faber), é o homem que
faz. Radicado na consciência (alma, razão) soberana e suprema, domina, subjuga,
submete, sufoca, atrai para prevalecer, vencer, predominar. Por isso,
O domínio torna-se predomínio e subjugação, próxima mesmo da vingança do
127
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Ano 4 N° 8 p.122-134
homem contra a natureza, visto que determinada interpretação moral da vida a
tem afirmado como negação, castigo e culpa, em oposição à pureza da
consciência. Uma técnica, portanto, que esquece e nega seus princípios e se
estabelece num entusiasmo cego com o próprio desenrolar pretensamente
evolutivo (OLIVEIRA & BORGES, 2008, p. 50-51).
Vive-se uma situação de angústia e o sentimento de autodestruição está
levando a humanidade a se conscientizar do seu papel predatório e destruidor das
relações humanas.
Não é de muito longe e nem precisa ser rebuscado no passado histórico a
compreensão que com o avanço da tecnologia e das novas formas de poder
dominante, foi posto em jogo a concepção de pessoa humana. Com a fragmentação
do conceito e com a relativização das relações interpessoais, a razão teve dificuldade
em qualificar a pessoa em sua existência integral, determinando-a livre de qualquer
reducionismo que a faz perder sua verdadeira identidade transcendental.
A técnica com seus avanços difundiram-se para todas as direções imprimindo
um sentimento de domínio e de controle do mundo. Alguns indivíduos e grupos
econômicos fundamentados teoricamente na racionalidade tecnológica desenvolvem
suas atividades econômicas somente para satisfazer suas necessidades imediatas
ofuscando a busca pela satisfação real e vital, que nem sempre é atendida.
Princípios para um Relacionamento Ético na
Contemporaneidade
Após o debate sobre a realidade contemporânea envolvente, marcada
profundamente pelo descaso e diminuição das relações interpessoais, em detrimento
da subjetividade do ser humano, chegamos à última etapa do caminho que é a
apresentação de três princípios éticos que se caracterizam como o ponto de encontro
para onde a reflexão ética caminha em sua preocupação propositiva de fundamentar a
ação humana de respeito e valorização de sua dignidade ética.
Considerados como aqueles que abarcam outros de não menos valor o
princípio vida e pessoa, o da religiosidade e o princípio da intersubjetividade se
renovam e se adaptam em cada época ao novo contexto real, transformando-se em
fonte de bases adequadas e apropriadas para todos os tempos e lugares.
O princípio da vida e pessoa inicia e fundamenta o caminhar ético; o princípio
da intersubjetividade envolve a pessoa em sua relação com os outros e com o meio
natural, vindo responder tanto aos anseios contemporâneos da interligação de todo
ser vivo, quanto ao desejo de valorização da vida em todos os momentos de sua
existência. O princípio religioso se liga estreitamente à ética, por integrar em seu seio
o princípio divino que fornece temas centrais de reflexão às metamorais.
Recorrendo aos três princípios, a ética busca em suas origens e em seu
caminhar histórico porto seguro que mantém a memória e a tradição que funda o
presente e o futuro da humanidade.
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1 Princípio Vida e Pessoa
O ocidente desenvolveu um longo processo histórico para determinar uma
definição que englobasse o sentido de pessoa humana. Para Fábio Comparato, isso se
deu em parte pela forte carga do dualismo grego que penetrou no pensamento
ocidental e, por outro lado, pelo fato de em muitas sociedades primitivas não existir
uma palavra que exprima o conceito de ser humano; os integrantes do grupo são
chamados de “homens” e os estranhos do grupo são designados por uma
denominação que exprime que aqueles indivíduos são de uma espécie diferente
(COMPARATO, 2008, p, 453).
Segundo Comparato, quando a ONU, em seu artigo VI da Declaração
Universal dos direitos humanos, proclamou que “todos os homens nascem livres e
iguais em dignidade e direitos” (artigo 1), e que “todo homem tem direito de ser, em
todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”, ela na verdade confirmou o
longo processo que o pensamento realizou para alcançar essa definição global e
determinou a sua forma de encará-la, ou seja, só se pode compreender a pessoa na
totalidade integradora do conjunto dos elementos que a compõe. Isso significa que o
homem deve ser olhado holisticamente (holos - em sua totalidade). Isto é, não basta
somente decompor as partes do todo e analisá-las em separado, é preciso ver a sua
totalidade em sua complexidade e entender seu relacionamento com o mundo exterior.
Para fundamentar vida e pessoa como princípio não são suficientes destacar o
elemento comum a unir os seres humanos e que os torna excelentes (a areté), que os
distingue dos demais seres vivos, como afirmaram os gregos no mundo antigo; nem
tampouco insistir na visão cristã do imago dei (imagem de Deus) ou da proposta
coerente de Boécio que na Idade Média deu à noção de pessoa um sentido novo,
entendida pessoa (persona) não como exterioridade, como a máscara do teatro, mas a
própria substância do homem, visão esta que Tomás de Aquino a retomou e declarou o
homem como um composto de substância espiritual e corporal.
Além disso, não são suficientes ainda declarar a dignidade da pessoa pelo fato de
ser um ser considerado em si mesmo como um fim em si e nunca como um meio como
ensinou I. Kant. Como muito claramente explica Manfredo de Oliveira, “o homem,
como ser incondicionado, é uma exceção na realidade” (OLIVEIRA, 1989, p.23).
A partir de I. Kant, sem dúvida, compreendeu-se que somente o homem não
existe em função de outro. Com essa concepção do filósofo alemão do século XVIII,
muitas práticas que feriam a integridade da pessoa foram condenadas, como considerála uma coisa, ser passível de escravidão, o engano por outrem com falsas promessas e os
atentados cometidos contra os bens alheios (COMPARATO, 2008, p. 459).
Assim sendo, Comparato defende que o elemento nuclear para refletir sobre a
pessoa recai na noção de consciência, pelo qual a pessoa permanece re-situada e se
situa infinitamente na relação espaço-tempo. Diz ele: No homem, ao contrário [dos
animais], espaço e tempo acham-se essencialmente correlacionados [...] Além disso,
o ser humano é incapaz de conceber uma limitação ou finitude, quer do espaço, quer
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do tempo (COMPARATO, 2008, p. 460).
Com essas considerações aposta-se na dignidade da pessoa humana como
supremo modelo ético tanto na dimensão transcendental quanto na individualidade
pessoal de cada ser humano, com todas as suas limitações e deficiências. Dessa
forma, a dignidade humana está ligada à sua condição de animal racional nos seus
aspectos especulativo, técnico, artístico e ético, e à consciência, individual e coletiva,
dessa sua singularidade no mundo (COMPARATO, 2008, p. 482).
2 Princípio Intersubjetividade
Este princípio aplicado à ética leva a crer que é preciso o ser humano, na sua
ânsia de realização enquanto pessoa, configurar projetos que o envolvam no todo e
assumir, na história, uma opção fundamental que o oriente no processo de articulação de
suas ações, criando condições necessárias para a efetivação de um mundo onde possa
viver humanamente e praticar sua alteridade (OLIVEIRA, 1989, p.175). O espaço para
tal efetivação é o da intersubjetividade onde devem ser postos em relevância a suprema
revelação do absoluto (Deus) no universo e o caráter autotélico do ser humano.
Isto significa dizer que, se o processo de conquista do ser humano é uma busca
de autonomia, esta autonomia é mediada pelo reconhecimento de todos os seres
humanos, isto é, ela passa, concretamente, pela gênese de processos intersubjetivos
(OLIVEIRA, 1989, p. 26), onde a instrumentalização e a opressão sejam
substituídas pela gênese de uma intersubjetividade enquanto liberdade solidária.
Afirma o autor:
Tal ideia leva qualquer homem a considerar seus semelhantes em igualdade de
dignidade e daí provém a exigência do respeito mútuo, ou do reconhecimento
mútuo da autofinalidade do ser pessoal, norma suprema das relações
intersubjetivas (OLIVEIRA, 1989, p. 26).
Neste campo, a ética surge como o saber que objetiva a “humanização do ser
humano”, enquanto proporciona a abertura de espaços de conquista, de articulação e
de direcionamento em vista da configuração de um mundo humano, pelo fato de ser
dotado da consciência da lei moral e da liberdade, que o torna naturalmente bom, ou
seja, “enquanto ser racional, o homem é destinado a se cultivar, civilizar e moralizar
numa sociedade com outros homens”, conclui Oliveira.
Apesar de muita teorização sobre o tema ao longo da história, foi a reflexão ética
do século XX que contribuiu para o “despertamento ético” da sociedade planetária. A
2
partir da crescente preocupação com as relações interpessoais, o filósofo Martin Buber
destacou a pessoa enquanto sujeito e condenou veementemente a objetificação ou
instrumentalização do semelhante. Para Ricardo Gouvêa, Martin Buber, juntamente
com Jacques Derrida e Emanuel Levinas, fundamentaram a ética na “tolerância e na
recepção do diferente, o que resulta em pluralidade intelectual e cultural bem como em
variedade de costumes e práticas sociais” (GOUVÊA, 2002, p. 23).
Com isso, já não é possível mais a convivência com situações antes toleradas
ou até mesmo aceitas em algumas culturas, como a desigualdade entre os sexos,
abuso de menores, descaso para com deficientes físicos, ridicularização de minorias,
130
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Ano 4 N° 8 p.122-134
destruição do meio ambiente.
Oliveira afirma ainda a necessidade da construção da intersubjetividade real
como exigência ética suprema. O ser humano experimenta-se como obra a ser
realizada. E de forma disciplinada e com empenho constrói sua humanidade,
planejando seu próprio comportamento (OLIVEIRA, 1989, p. 26). Desse modo, ele
se põe como um todo em jogo. Sua missão é criar as condições necessárias para sua
efetivação. O mundo intersubjetivo é o espaço de sua efetivação possível: “sua
necessidade básica é criar um mundo onde possa viver humanamente”.
A intersubjetividade é o encontro de duas subjetividades, ou seja, a
subjetividade de uma pessoa humana em relação a outra, e deste em relação à
natureza, de onde se conclui que a reciprocidade da relação entre ambos constitui a
especificidade da estrutura da intersubjetividade.
Berger e Luckmann, com muita propriedade, sustentam que as interações sociais
na vida cotidiana tem seu ponto de partida no face a face com o outro. Quando há uma
relação contínua com o outro e a história é partilhada pelos dois, há, como resultado, um
intercâmbio contínuo entre minha expressividade e a do outro. Afirmam os autores:
Nenhuma outra forma de relacionamento social pode reproduzir a plenitude de
sintoma da subjetividade presente na interação face a face. Somente aqui a
subjetividade do outro é expressivamente “próxima”. Todas as outras formas de
relacionamento com o outro são, em graus variáveis, “remotas” (BERGER &
LUCKMANN, 2002, p. 47).
A ética surge como o processo que tem como objetivo superar o mal existente
na vida histórica e conquistar a humanidade do ser humano: ela abre espaço de
conquista, aponta as condições de possibilidade da humanização do ser humano entre
si e nas relações com a natureza.
3 Princípio Religioso
O princípio religioso se serve do quadro tradicional no que se refere à
distinção entre o bem e o mal. Embora não fundando uma ética propriamente falando,
uma metamoral ordenada pela razão, ele é introduzido nas teorias clássicas enquanto
informa e integra no seio de uma ética o princípio divino de ligação e religação entre
as pessoas e o sagrado. As ligações entre ética e religião servem, desse modo, para
construção de passarelas ou pontes, mediações, uma espécie de direcionamento de
conceitos éticos e religiosos para oferecer uma visão de mundo que implique em
cidadania e responsabilidade social (HACK & ARAÚJO GOMES, 2002, p.56).
Mesmo com o risco de ruptura definitiva entre ética e religião motivada por
pensadores a partir de Kant, a dimensão religiosa e transcendental da vida continua
sendo para muitas pessoas o destino insubstituível. É nas raízes mais profundas do
coração humano que se encontram o ponto de partida e as raízes da reflexão ética.
No período moderno um filósofo já defendia a tese da urgência do homem em
atentar-se para a religião. Segundo o filósofo Pascal “o coração tem razões que a razão
desconhece”. Com o coração o homem conhece os primeiros princípios que, atesta o
filósofo cartesiano, trata-se de uma faculdade que conhece as verdades principais que
fundamentam o raciocínio. Portanto, conhecer com o coeur é buscar o conhecimento
religioso não somente com a simples razão, mas com aquilo que lhe fornece o
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fundamento e a justifica (MARÍAS J., 2004, p.248).
Ao tratar da relação ética e religião, não se supõe um estado de subordinação
da ética a uma doutrina religiosa. Há separação entre a moralidade buscada pelo
homem, sendo o bem o maior grau na escala e a homenagem endereçada a Deus, ao
absoluto. Assim, de modo geral, a religião apresenta respostas para algumas questões
que o ser humano não pode responder em nenhum outro campo do saber. Da mesma
forma, ela está em condições de dar exemplos de moralidade.
O pensamento contemporâneo expõe esses temas clássicos, ao redescobrir no
princípio religioso uma fonte viva, sem nunca confundir com um fundamento. Desse
modo, E. Levinas na sua reflexão sobre a tradição talmúdica e a Bíblia apresenta a
religião como uma fonte de inspiração ética, mas seu ponto de vista permanece
estritamente fenomenológico. Isso porque, acredita ele, “a palavra de Deus se
inscreve na face de meu próximo, posto que Deus, literalmente, fala no homem”.
Para o autor, o fundamento recai não sobre a religião, mas sobre a experiência
da alteridade, sobre o que ele denomina de “fenomenologia da face” que, tendo a
transcendência e o infinito nela inscritos, ultrapassa todo poder humano por sua
elevação e altura (LEVINAS, 2008).
Compreende-se o pensamento levinasiano ao considerar que sua principal
preocupação não residia nas citações bíblicas, mas na experiência do face a face. Primando
pela filosofia a sua ética repousa sobre a alteridade e não sobre a ética do sagrado.
No entanto, ao traçar sua reflexão a partir dos textos bíblicos ele confirmou
uma tendência de todo o pensamento ocidental, que é a de destacar a mensagem
bíblica, tanto a do Antigo Testamento quanto a do Novo, como a acentuação da
santidade pessoal sobre a sacralidade ritual e que a inversão da hierarquia tradicional
de valores proposta por Jesus nos evangelhos “representa uma das maiores revoluções
éticas que a humanidade jamais conheceu” (COMPARATO, 2008, p. 451).
Considerações Finais
Que proveito tirar dessas reflexões? Que passos podem ser dados a partir da
interpelação para a construção de novas relações humanas? Como enfrentar o mal que se
multiplica ao nosso redor, relevando nossas incapacidades e impotência de enfrentá-lo? Para
isso, não há receitas, porém, alguns indicativos podem nos guiar nessa desafiante tarefa.
Desta reflexão resulta a necessidade de defender o interesse pelo patrimônio
natural comum da vida e da humanidade, hoje vastamente ameaçado.
Leva-nos também à adoção de alguns consensos mínimos, como a
sensibilidade cuidadosa pela vida que precisa impregnar o ethos humano até constituirse como cultura ética da sociedade e, assim, ter força e combater o vazio ético.
Além disso, precisamos reencontrar-nos pela natureza desenvolvendo um
sentimento autêntico de pertença amorosa a terra. Rever nossas atitudes de cuidado,
responsabilidade social, que supera qualquer tipo de exclusão.
É necessária ainda uma reeducação ecológica, que aprenda a viver de modo
sustentável, satisfazendo nossas necessidades humanas, sem sacrificar a natureza.
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Revista Perspectiva Amazônica
Ano 4 N° 8 p.110-121
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Revista Perspectiva Amazônica
Ano 4 N° 8 p.122-134
Uma nova compreensão do ser humano também se faz urgente atualmente. Ver o
mundo como criação de Deus.
Enfim, uma ética ecocêntrica que seja capaz de criar novas formas de
comportamento nas relações entre pessoas e a natureza: passar do situar-se sobre as
coisas e as outras pessoas, dentro de uma lógica de posse, de domínio, de violência e
de crescimento ilimitado, para a lógica do respeito e da comunhão, ou seja, para
situar-se e relacionar-se com as coisas e as pessoas, promovendo a vida.
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Revista Perspectiva Amazônica
Ano 4 N° 8 p.135-146
Ti Verde: Conceitos e Práticas Visando a Integração do Desenvolvimento
com a Preservação do Meio Ambiente
Rosane Tolentino Maia*
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de descrever as ações que vêm sendo implementadas pelas empresas no contexto
da TI Verde, visando tornar o uso da computação mais sustentável e menos prejudicial, reduzindo o
desperdício. No Brasil, cerca de um milhão de computadores são jogados no lixo anualmente. Além disso, de
10% a 20% de celulares entram em inatividade no mesmo período. A TI Verde surge com o objetivo de aplicar
conceitos e técnicas que buscam reduzir o desperdício e aumentar a eficiência dos processos relacionados à
operação das tecnologias. Talvez ainda seja cedo para afirmar que as empresas já tenham efetivamente um
plano de governança em TI Verde, mas os investimentos continuam a ser feitos nessa área e os avanços já
podem ser evidenciados.
Palavras-chave: tecnologia - lixo eletrônico - sustentabilidade
ABSTRACT
This work intends to describe the actions that have been implemented by private companies in the
context of green IT, aiming to make the use of computing more sustainable and less prejudicial,
reducing waste. In Brazil, around one million computers turn into waste each year. Additionally,
10% to 20% of mobile phones are made useless in the same period. The Green IT comes with the
objective to apply concepts and techniques that intend to reduce the waste and increase the
efficiency of processes associated with technology operation. Maybe it is still early to say that
companies effectively have already a plan for Green IT governance, but the investments are being
made in this area and some progress is already evident.
Keywords: ethical principle - technology - intersubjectivity
*Mestranda em Recursos Naturais da Amazônia pela Universidade do Oeste do Pará-UFOPA.
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Revista Perspectiva Amazônica
Ano 4 N° 8 p.135-146
Introdução
A Revolução Industrial na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII,
deu início à produção de energia em grande escala, impulsionando o
desenvolvimento tecnológico. Os avanços tecnológicos possibilitaram a produção
em massa e o acesso dos indivíduos a bens de consumo.
A revolução tecnológica dos últimos anos, não deu início apenas a mais um ciclo,
mas a uma nova era, chamada digital. Vive-se hoje, por conta disso, uma razão de
máxima mudança, com uma avalanche de informações e inovações surgindo em curtos
espaços de tempo, gerando a necessidade de uma readaptação continuada a essa nova
sociedade. Desde muito cedo se percebeu que as novas tecnologias iriam provocar
grandes alterações socioeconômicas [...] (RIBEIRO, 2009). Em pouco tempo, o
domínio da tecnologia deixou de ser apenas um “diferencial” e passou a ser uma
“exigência” nas relações sociais dentro de uma nova sociedade: a “sociedade da
informação”.
Fonte : IT Data. 2010
Figura 1 –Equipamentos vendidos no Brasil (em milhões de unidades)
A indústria de eletroeletrônicos no Brasil cresceu muito nos últimos anos, aumentando
o seu investimento em tecnologia, colocando no mercado um grande número de produtos.
No século XX, surge o conceito da "obsolescência planejada" que segundo
Churchill e Peper (2000, p. 42), significa que a empresa construiu os produtos para
que não durassem, pelo menos não tanto quanto os compradores gostariam de usá-los.
Schewe e Smith (1982) acrescentam que essa estratégia é usada pelos empresários
para forçar um produto em sua linha a tornar-se desatualizado e, depois, aumentar o
mercado de reposição, em que incentiva o consumo constante das inovações
tecnológicas que surgem a cada instante.
[...] associado ao crescimento no consumo de equipamentos eletroeletrônicos
encontram-se problemas relacionados à gestão dos resíduos gerados por estes
dispositivos (resíduos de equipamentos eletroeletrônicos – REE),
principalmente aqueles voltados ao manejo e controle do volume de aparatos e
componentes eletrônicos obsoletos. Tecnologias e produtos inovadores foram
lançados no mercado em curto espaço de tempo eliminando fronteiras nacionais
e aumentando o fluxo de produção e comércio entre os países. O potencial de
geração dos resíduos de equipamentos eletrônicos estimado entre os anos de
2002 a 2016 foi em média de 493.400 toneladas anuais, representando uma
média per capita de 2,6 Kg/ano (SILVA, 2010).
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Ano 4 N° 8 p.135-146
A questão tecnológica, então, passa a atuar como um fator preponderante na
questão ambiental, pois o aumento do consumo promove o descarte em grande escala.
Sem um planejamento de produção sustentável, o setor industrial torna-se o maior
consumidor de recursos naturais e o principal emissor de poluentes para o meio ambiente.
Aumento do preço de energia. Aquecimento global. Equipamentos antigos
empilhados em depósitos e aterros sanitários. A conjunção desses fatores tem
aumentado as discussões relativas às questões ambientais e, inclusive, o papel que a
área de TI representa para o tema. Questões ambientais, e o papel da tecnologia
nelas, estão recebendo mais atenção do que nunca ( WALSH, 2009).
A TI Verde ou Computação Verde é um tema que vem ganhando cada vez mais
prioridade entre as preocupações de governos e lideranças das grandes empresas do
mundo todo. Aspectos ambientais e, obviamente, econômicos estão levando as
corporações a pensar (e agir) de forma mais eficiente e sustentável com relação à
utilização de seus recursos de TI (CPQD, 2012).
Apesar das discussões recentes sobre o assunto abordarem de forma
predominante o consumo eficiente de energia, a análise sobre o tema pode ser ampliada
[...] a gestão de recursos e o impacto nas cadeias produtivas, bem como o ciclo que vai da
extração de matéria-prima para a produção de um equipamento, até a destinação
ambientalmente adequada destes materiais, ao final de sua vida útil, considerando
também a responsabilidade do usuário no momento da escolha, aquisição e descarte
adequado de produtos, também fazem parte das diretrizes da TI Verde (ITAUTEC,
2012).
O objetivo do presente trabalho é descrever as ações que vêm sendo
implementadas pelas empresas no contexto da TI Verde, visando tornar o uso da
computação mais sustentável e menos prejudicial, reduzindo o desperdício e aumentando
a eficiência dos processos relacionados à operação das tecnologias de informação.
O desenvolvimento deste se deu através de uma pesquisa de cunho descritivoanalítico. Os dados obtidos de fontes bibliográficas foram analisados sob um enfoque
interpretativo, com abordagem qualitativa.
Justifica-se a escolha dos métodos, pois as informações foram avaliadas na
tentativa de se obter a compreensão da lógica que permeia a prática em que se dá a
Tecnologia e Meio Ambiente
A tecnologia representa um meio gerador de mudanças e não se pode discutir
a sua importância para o desenvolvimento do mundo contemporâneo. Os problemas
têm início, quando o desenvolvimento desenfreado e sem planejamento impacta
negativamente o contexto em que está inserido.
O Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) formado por
milhares de cientistas do mundo, inclusive do Brasil, afirma que as
consequências advindas do desenvolvimento estão interferindo principalmente
no funcionamento do sistema climático no planeta.
O gráfico 1 mostra a porcentagem que cada tipo de equipamento
representa na composição do lixo eletrônico mundial.
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Grafico 1 –Composição do lixo eletrônico mundial. Fonte: Global Resource Information
Database e Programa das Naçõees Unidas para o Meio Ambiente (Unep).
Descarte de Lixo Eletrônico: Um Problema Ainda Sem
Solução
Milhares de aparelhos são descartados diariamente, e com a rapidez da
tecnologia, cada vez mais o consumidor quer substituir seus aparelhos por outros
mais modernos, mesmo que os antigos ainda estejam funcionando.
O lixo eletrônico causa um grave problema para o meio ambiente, pois
consome uma enorme quantidade de recursos naturais em sua produção. Um único
laptop, exige 50 mil litros d'água em seu processo de fabricação. Além disso, a vida
útil desses equipamentos é muito curta, a de um computador gira em torno de três
anos e a de um celular, cerca de dois anos, isso ilustra a dimensão da quantidade de
lixo que o descarte de eletrônicos significa (INSTITUTO GEA, 2012).
De acordo com relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(PNUMA), divulgado em 2010, o Brasil ocupa a liderança entre as nações emergentes na
geração de lixo eletrônico per capita, isto é, por habitante, a cada ano. O relatório aponta que o lixo
eletrônico descartado por pessoa, no Brasil, equivale a meio quilo (0,5 quilo) por ano. Em
contrapartida, na China, que tem uma população muito maior, a taxa de lixo eletrônico por pessoa
é 0,23 quilo e, na Índia, ainda mais baixa (0,1 quilo), segundo dados da Rede Brasil (2012).
Somente os brasileiros descartam cerca de 500 mil toneladas de sucata eletrônica
todo ano. De acordo com o Greenpeace, os eletrônicos rejeitados em todo o mundo
somam mais de 50 milhões de toneladas de lixo anuais.
No Brasil, cerca de um milhão de computadores são jogados no lixo
anualmente. Além disso, de 10% a 20% de celulares entram em inatividade no mesmo
período. Estes materiais já representam 5% dos detritos produzidos pela população
mundial. A estimativa do PNUMA é de que, até 2030, o Brasil produzirá 680 mil
toneladas/ano de resíduos eletrônicos, e cada brasileiro será responsável pela geração
de 3,4 quilos de lixo digital. Outro dado preocupante é que, até 2020, o volume de
resíduos procedentes de computadores crescerá 400% em países como a Índia e a
África do Sul (ECO-ELETRO, 2012).
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A organização não governamental Greenpeace estima de 20 a 50 milhões de
toneladas de lixo eletrônico são geradas no mundo a cada ano. Ainda de acordo com a
ONG, o chamado e-waste responde hoje por 5% de todo o lixo sólido do mundo, quantia
similar à das embalagens plásticas. Com a diferença de que, quando descartados de
maneira inadequada, os eletrônicos podem ser mais nocivos (CARPANEZ, 2010).
A venda de eletrônicos vai disparar nos próximos dez anos, e, com isso, aumentar
também a produção lixo eletrônico. Na China e na África do Sul, a produção de e-waste
deve crescer até 400% até 2020. Na Índia a situação é pior: haverá um aumento de 500%
em relação ao que era produzido em 2007. O número de celulares descartados também 18
vezes maior (DIAS, 2010).
Principais Diretrizes da TI Verde
Segundo Soares (2005), a TI Verde é um conjunto de práticas que torna o uso
da computação mais sustentável e menos prejudicial. As práticas da TI Verde buscam
reduzir o desperdício e aumentar a eficiência dos processos relacionados à operação
das tecnologias de informação. Pode-se dizer, que esta nova tecnologia da
informação, servirá de suporte financeiro para muitas empresas que aderirem a este
sistema, evitando o desperdício de consumo de energia, à reciclagem e descarte
devido de resíduos eletroeletrônicos. Essas ações significam proteger o ambiente e
simultaneamente reduzir custos, pois trará grandes benefícios para um novo cenário
financeiro tanto para as empresas como para a sociedade, com uma nova consciência
empresarial e principalmente ambiental (FERREIRA E KIRINUS, 2010).
TI Verde é uma ciência da sustentabilidade, ou seja, a sustentabilidade aplicada
em tecnologia da informação, a utilização das tecnologias verdes na informação.
Segundo Sousa (2011), a aplicação de TI verde, no primeiro momento não envolve
apenas custos, envolve atitude, propagação de conhecimento, monitoramento,
reeducação ambiental dos colaboradores, reeducação de ações do cotidiano,
reciclagem ecologicamente correta, fornecedores ecologicamente corretos.
Para o Brasil, detentor de ricas e estratégicas reservas naturais, a perspectiva do
desenvolvimento sustentável constitui uma referência básica a ser incorporada em seu
projeto de sociedade da informação. Sob a ótica da sustentabilidade ecológica, coloca-se
a importância do domínio das tecnologias relevantes para melhor conhecer, diagnosticar
e monitorar as condições ambientais, sobretudo em função da extensão do território
nacional, diversidade de ecossistemas e complexidade dos problemas pertinentes. Com
apoio das tecnologias da informação e comunicação, é possível criar sistemas e serviços
avançados de informação e de prevenção de riscos sobre o meio ambiente, como alerta e
suporte às políticas públicas, estratégias empresariais e ações sociais (TIGRE, 2003).
Normas e Regulamentações de Incentivo a TI Verde
Governos de diversos países têm instituído normas e regulamentações para
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encorajar a chamada TI Verde ou Computação Verde. Empresas de TI contribuem
com práticas de sustentabilidade em seus processos de trabalho que vão além do
retorno financeiro e consciência ambiental. Assim como para outras áreas, existem
normas e certificações que regem o processo de trabalho da TI, tanto para a
fabricação, quanto para o uso de equipamentos eletrônicos.
Na União Europeia, as diretivas do RoHS (Restriction of Certain Hazardous
Substances) e WEEE (Waste Electrical na Electronic Equipment) responsabilizam
os fabricantes de equipamentos eletrônicos pela receptação e reciclagem dos
produtos.
Aqui no Brasil, a certificação ISO 14001 aplicável às empresas de tecnologia,
detalha requisitos para empresas identificarem, controlarem e monitorarem seus
aspectos ambientais por meio de um sistema de Gestão Ambiental. Nos contratos de
1 Cláusula Verde
Envolvendo o compromisso entre as partes de ampliar uma política que prestigie a
sustentabilidade e o respeito ao meio-ambiente no que se refere a fornecedores e
colaboradores;
2 Cláusula de Redundância
Responsável e lixo eletrônico, prevendo a exclusão de versões de backups antigos e
adoção de critérios na redundância de dados;
3 A Cláusula de Resolução
Motivada em caso da não habilitação técnica de quaisquer das partes nas normas de
TI Verde, em especial a não certificação e auditoria contínua ISO 14001 ou demais
normas, e a não adoção de um plano de TI Verde;
4 A Cláusula de PPW
Performance per Watt em que o princípio é consumir apenas o necessário e
aumentar o desempenho por watt;
5 Cláusula LEED
Leadership in Energy an Environmental Design ou de construção verde, com
o objetivo de certificar edifícios e ambientes de TI verdes, arquitetados segundo
normas nacionais e internacionais de construção responsável. (CPQD, 2012).
6 Ações em TI Verde Desenvolvidas Por Empresas
Aplicar conceitos e técnicas de TI Verde, consiste em maneiras aplicáveis tanto a
grandes empresas como a pequenas empresas, ou mesmo para aplicação doméstica.
As práticas da TI Verde são divididas basicamente em três níveis: TI Verde de
Incrementação Tática, TI Verde Estratégico e TI Verde a Fundo.
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Fonte: Construção da autora
Figura 2 –Práticas de TI Verde nas empresas
Entre as principais práticas da TI Verde, destacam-se:
1 Economia de Papel
Priorizar o formato eletrônico para os arquivos, impressão no verso e anverso das folhas;
2 Redução no Consumo de Energia
Manutenção periódica, compartilhamento de equipamentos, análise de custobenefício, aquisição de hábitos sustentáveis, como desligar os computadores da
tomada ao final de seu uso;
3 Descarte de Equipamentos
Reaproveitamento, doação e descarte correto. Algumas empresas já começam a ver
na aplicação dos conceitos da TI Verde, uma nova forma de gestão sustentável.
A empresa ITAUTEC investiu 350 mil reais na construção de uma área
destinada à reciclagem de equipamentos eletroeletrônicos ao final de sua vida útil.
Neste espaço, os equipamentos são recebidos, desmontados, descaracterizados,
pesados e depois têm suas partes segregadas por tipo de material. O procedimento é
válido para PCs, notebooks ou equipamentos de automação. Após a separação, estes
resíduos são encaminhados aos cuidados de recicladores homologados para o
processamento ou destinação final. Estes parceiros da Itautec permitem que essas
matérias-primas sejam reinseridas na cadeia produtiva, evitando desperdícios, o
acúmulo de dejetos e a contaminação ambiental pelo descarte incorreto. Em 2010, o
programa atingiu o volume recorde de 3.842 toneladas de resíduos reciclados, o
equivalente a cerca de 140 mil desktops. Do montante, 53,8 toneladas de placas
eletrônicas foram encaminhadas à reciclagem fora do país, que ainda não possui
tecnologia disponível para o processo. Os demais materiais foram 100% reciclados
por empresas brasileiras. O domínio deste processo vem se tornando cada vez mais
importante para as operações da Itautec, porque grandes clientes, entre corporações e
organizações da área de governo, já estão incorporando a preocupação com o ciclo de
vida de produtos em seus processos de compra e descarte, bem como a observância à
presença ou não de materiais tóxicos nos equipamentos, que facilitará seu manejo ao
fim de sua vida útil. (ITAUTEC, 2012).
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A Sun Microsystems anuncia a conclusão de seu novo data center, em Broomfield,
Colorado, nos Estados Unidos. O projeto é a maior consolidação de hardware da história
da companhia e permitirá uma economia de até 11 mil toneladas métricas de CO² por ano.
As instalações de Broomfield incorporam os mais recentes sistemas de eficiência
energética, incluindo design e tecnologias inovadores de alimentação de energia e de
resfriamento. De acordo com Dave Douglas, vice-presidente sênior de cloud computing e
de sustentabilidade, os primeiros 20% de redução no consumo de eletricidade foram
alcançados em 2002. Com o data center de Broomfield, a companhia espera atingir a meta
de outros 20% na redução do consumo energético (FERRARI, 2009).
A Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), uma das maiores
geradoras e distribuidoras de energia elétrica do país, tornou-se a primeira companhia
brasileira a alcançar o topo do índice da bolsa em seu setor, que reúne 11 prestadoras de
serviços públicos, como energia elétrica e saneamento. Uma das dezenas de iniciativas
da companhia na área ambiental é a distribuição de placas de energia solar. Em 2006, a
empresa instalou 1.280 placas que convertem energia solar em eletricidade na zona
rural de Minas Gerais e, dessa forma, conseguiu levar energia elétrica para os vilarejos
mais distantes sem custo para o consumidor. Na esteira da política de racionalização
de energia de toda a empresa, a área de TI substituiu a iluminação de mercúrio por
lâmpadas de sódio, que é mais eficiente. A empresa não tem a medição da economia
alcançada no data center, mas na iluminação pública, 58 mil pontos substituídos por
sódio contabilizaram a economia de 18 mil MW/h em um ano (YURI, 2008).
A empresa japonesa PANASONIC afirma ter desenvolvido um sistema que,
com a luz solar, transforma CO2 em combustível. O CO2, também conhecido como
dióxido de carbono, é um poluente e um dos principais responsáveis pelo chamado
efeito estufa. De acordo com a empresa, o seu sistema possui 0,2% de eficiência em
condições de laboratório. Segundo a Panasonic, o índice é semelhante ao de vegetais
reais e superior a quaisquer experimentos anteriores realizados na área. A companhia
ainda afirma que o sistema utiliza semicondutores de nitrido para excitar os elétrons do
dióxido de carbono (CO2) até eles se transformarem em ácido fórmico, utilizado em
corantes e perfumes. A invenção já está patenteada, mas não há previsões de lançamento.
No entanto, a Panasonic afirma que pretende implantar a tecnologia em incineradoras e
fábricas, responsáveis por altas emissões de CO2 (OLHAR DIGITAL, 2012).
Os conceitos de sustentabilidade viraram uma bandeira para a área de TI da
ALCOA, que representa hoje uma das maiores produtoras de alumínio do mundo.
Um dos mais recentes exemplos dessa postura proativa da área foi a criação de um
projeto social para capacitação de jovens na cidade de Poços de Caldas (MG), onde
situa-se a primeira fábrica da Alcoa no país e o centro de serviços da companhia, o
qual concentra as operações de TI. Nessa iniciativa de ajudar jovens carentes, além da
capacitação, o projeto prevê também que a empresa absorva os melhores alunos que
passarem pelos cursos. A Alcoa também implementou um projeto no qual 5% de todos
os profissionais que atuam no seu centro de serviços são deficientes.
O Banco Real com o seu o projeto batizado de Blade PC, de substituição de
computadores, gerou uma economia de 62% de consumo de energia elétrica e de 75%
de ar condicionado.
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A UNILEVER também investe em sustentabilidade e com o seu programa de
consolidação do parque de impressoras reduziu o número de equipamentos em 60%.
Para evitar que equipamentos eletrônicos em desuso sejam jogados no lixo
comum, e com isso poluir o meio ambiente, a Positivo Informática criou o Serviço de
Atendimento ao Cliente (SAC) de reciclagem. Desde 1997 a Positivo Informática estuda a
coleta, armazenamento e destinação de seus resíduos sólidos para reduzir ao mínimo sua
geração, resultando no Programa de Gerenciamento de Resíduos Sólidos e na Avaliação
do Ciclo de Vida do Produto (ACV). Essa preocupação marcou a postura da Empresa, que
foi além da preocupação em otimizar a produção, para assumir o conceito de TI Verde.
Em 2003, a Câmara dos Deputados criou o Comitê de Gestão Socioambiental
(EcoCâmara) para conduzir projetos segmentados em onze áreas temáticas.
O EcoCâmara se subdivide em onze áreas temáticas: Área Verde e Proteção à
Fauna , Coleta Seletiva e Responsabilidade Social, Gestão de Resíduos Perigosos,
Comunicação Institucional, Educação Ambiental, Arquitetura e Construção Sustentável, TI
Verde , Novas Tecnologias Hídricas e Energéticas e Licitação Sustentável e Legislação
Aplicada .Os projetos são desenvolvidos em parceria com os diversos setores, em
consonância com as diretrizes e os princípios propostos pelo programa Agenda Ambiental
na Administração Pública (A3P) , elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).
O GREENPEACE emite a cada ano uma lista, classificando o nível de
sustentabilidade das empresas fabricantes de eletrônicos (Quadro 1).
Quadro 1 –Nível de
sustentabilidade das empresas
fabricantes de eletrônicos
Fonte: Greenpeace (2012).
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No Brasil, já existem iniciativas de TI Verde comprovadas por uma pesquisa
realizada pela International Business Machines (IBM). O estudo revela que a maioria
das médias empresas brasileiras está tomando iniciativas para reduzir o impacto
ambiental resultante do uso de tecnologia. Os dados revelam que mais de 70% dessas
companhias realizam ou planejam ter projetos de sustentabilidade ambiental
(COMPUTER WORLD, 2009).
Considerações Finais
O objetivo deste trabalho foi o de descrever as principais ações que vem sendo
implementadas pelas empresas relacionadas à Tecnologia da Informação Verde.
Conceitualmente, concluímos que a TI Verde visa o cumprimento de um ciclo
sustentável que vai da escolha dos fornecedores para produzir equipamentos com o
menor uso possível dos recursos naturais, passando pelo gerenciamento do descarte,
até o recebimento desses mesmos equipamentos para destinação correta.
Talvez ainda seja cedo para se dizer que as empresas já tenham efetivamente
um plano de governança em TI verde, mas os investimentos continuam a ser feitos
nessa área e os avanços já podem ser evidenciados.
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146
1. A revista “Perspectiva Amazônica” publicará artigos originais, artigos de revisão, resenhas, relatos
de caso e ensaios, desenvolvidos por pesquisadores de diferentes instituições de ensino e pesquisa, que
tenham caráter científico, sejam inéditos e versem sobre qualquer área do conhecimento e
preferencialmente que possuam alguma relação com a realidade Amazônica.
Artigo científico “é parte de uma publicação com autoria declarada, que apresenta e discute ideias,
métodos, técnicas, processos e resultados nas diversas áreas do conhecimento” (ABNT. NBR 6022,
2003, p. 2). Os artigos originais apresentam temas ou abordagens inéditas, ao passo que os artigos de
revisão analisam e discutem trabalhos já publicados sobre um determinado tema.
Resenhas são revisões críticas de livros e de publicações científicas ou de interesse científico,
nacionais ou estrangeiros. Uma resenha deve resumir, analisar, comparar e opinar sobre a obra em
questão, constituindo portanto contribuição teórica ou científica ao campo.
Relatos de caso são relatos de experiências vivenciadas adaptadas ao uso didático. Os relatos devem
analisar a situação em exame e propor questões para reflexão, contextualizando o caso dentro da área do
conhecimento e suas implicações nesta área.
Ensaios são opiniões aprofundadas obtidas através da análise de um assunto. São exposições objetivas,
lógicas, críticas e originais sobre determinado tema, pelo qual o autor pode transmitir informações e
ideias.
2. Os trabalhos serão submetidos ao Conselho Editorial da revista que os encaminhará a dois
Avaliadores conforme área de conhecimento e disponibilidade, para que emitam o parecer favorável ou
desfavorável à publicação do artigo. O(s) avaliador(es), ao apreciar(em) o trabalho, não terá(ão)
conhecimento de sua autoria.
3. O encaminhamento do manuscrito deverá ser acompanhado de carta assinada por todos os autores,
reafirmando que o material não foi publicado e nem está sendo submetido a outro periódico.
4. Ao enviar o trabalho para análise o(s) autor(es) concorda(m) com todos os termos das normas de
publicação e abre(m) mão de qualquer ação com relação a estes. As Faculdades Integradas do
Tapajós, o Conselho Editorial e os Avaliadores da Revista “PERSPECTIVA AMAZÔNICA” não
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conceitos emitidos nos textos, que são de inteira responsabilidade de seu(s) autor(es).
5. As pesquisas que envolvam seres humanos ou animais devem apresentar na metodologia que os
experimentos foram realizados em conformidade com a legislação vigente sobre o assunto adotada no
país, de preferência com prévia aprovação do Comitê de Ética correspondente.
6. Os Avaliadores podem aceitar ou não os trabalhos submetidos e, eventualmente, sugerir
modificações ao(s) autor(es), a fim de adequar os textos à publicação. Nesse sentido, só serão
publicados os trabalhos que recebam parecer favorável, e que tenham sido ajustados conforme
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7. Os trabalhos não aceitos para publicação ficarão à disposição do autor até três meses após a
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8.
Os autores terão direito a dois exemplares da revista na qual seu trabalho foi publicado.
9. Os trabalhos serão aceitos em fluxo contínuo e caso aprovados publicados conforme a edição
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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
GERAIS
147
Na primeira página do arquivo deverá constar: a) título e subtítulo (se houver); b) autoria: nome completo
do(s) autor(es) na forma direta, acompanhados de um breve currículo que o(s) qualifique na área do artigo; c)
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três);
2. O corpo do texto dos artigos originais deve apresentar, sempre que possível, a seguinte estrutura: a)
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originais.
4. As referências devem ser apresentadas conforme norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas
(ABNT), em ordem alfabética, com entrada pelo último sobrenome do (s) autor (es). Quando houver mais de
um trabalho do mesmo autor citado, deve-se seguir a ordem cronológica das publicações.
5. As figuras e tabelas devem ser sempre em preto e branco, apresentadas em folha separada do texto e com
numeração específica para cada categoria, acompanhadas das legendas, créditos e fonte. As tabelas e figuras
devem ser executadas no mesmo programa usado na elaboração do texto.
6.
As características técnicas dos trabalhos devem ser as seguintes:
a.
Editor de texto: Word 97 ou superior
b.
Fonte: Times New Roman, 12
c.
Espaçamento: 1,5 linhas
d.
Papel: A4
e.
Alinhamento: Justificado
f.
Margens: Superior: 3cm, Inferior: 3cm, Esquerda: 2cm, Direita: 2cm
g.
Extensão: De 08 a 20 páginas, incluindo a primeira página (título, autor, abstract,
conforme item 1.)
7. Os trabalhos deverão ser entregues com cópia digital (em cd ou e-mail) e duas cópias impressas, enviados
para:
Revista “PERSPECTIVA AMAZÔNICA”
Faculdades Integradas do Tapajós
Coordenação de Pesquisa e TCC
Rua Rosa Vermelha, 335 – Aeroporto Velho
68010-200
Santarém – Pará – Brasil
e-mail: [email protected]
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
ESPECÍFICAS
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