A Revolução Mexicana em Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo

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A Revolução Mexicana em Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo
I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e
X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória
21 a 23 de Setembro de 2011
UNIOESTE – Cascavel/PR
A Revolução Mexicana em Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo
MIRANDA, Kátia Rodrigues Mello(Universidade Estadual Paulista – UNESP)
RESUMO: Com um estilo conciso e uma escrita lacunar, o escritor mexicano Juan Rulfo
(1917-1986) ambienta suas narrativas, de um modo geral, no período da Revolução Mexicana
(1910-1940). Assim, o presente trabalho pretende analisar a representação da Revolução
Mexicana no romance Pedro Páramo (1955), que, em sua tão discutida estrutura episódica,
apresenta algumas referências diretas e indiretas a elementos da Revolução. Pedro Páramo,
nascido na segunda metade do século XIX, quando o México vivia sob o Porfiriato, é herdeiro
de uma cultura de caráter patriarcal, em que eram comuns caciques que impunham suas
próprias leis e dominavam pessoas e terras, à custa de violência e usurpação e sem a
interferência do governo. Nesse contexto, Pedro Páramo exerce poder tirânico e ilimitado
sobre o povoado de Comala e seus habitantes. Nem a Revolução tem incidência sobre as
ações do cacique, que introduz um homem de sua confiança na luta armada, de forma a
preservar seu poder e manter o controle da situação. Após iniciada a Guerra Cristera (19261929), ocorre a morte de Pedro Páramo, em um momento em que é eminente o fim da era dos
caciques, para os quais não havia lugar na nova estrutura social que estava prestes a surgir no
México, com o governo do presidente Lázaro Cárdenas (1895-1970).
PALAVRAS-CHAVE: Literatura hispano-americana; Juan Rulfo; Revolução Mexicana;
Guerra Cristera.
RESUMEN: Con un estilo conciso y una escritura lagunar, el escritor mexicano Juan Rulfo
(1917-1986) ambienta sus narrativas, de modo general, en el período de la Revolución
Mexicana (1910-1940). Así, el presente trabajo pretende analizar la representación de la
Revolución Mexicana en la novela Pedro Páramo (1955), que, en su tan discutida estructura
episódica, presenta algunas referencias directas e indirectas a elementos de la Revolución.
Pedro Páramo, nacido en la segunda mitad del siglo XIX, cuando México vivía bajo el
Porfiriato, es heredero de una cultura de carácter patriarcal, en la cual eran comunes caciques
que imponían sus propias leyes y dominaban personas y tierras, a costa de violencia y
usurpación y sin la interferencia del gobierno. En ese contexto, Pedro Páramo ejerce poder
tiránico e ilimitado sobre el poblado de Comala y sus habitantes. Ni la Revolución tiene
incidencia sobre las acciones del cacique, que inserta un hombre de su confianza en la lucha
armada, de manera de preservar su poder y mantener el control de la situación. Después de
iniciada la Guerra Cristera (1926-1929), tiene lugar la muerte de Pedro Páramo, en un
momento en que es eminente el fin de la era de los caciques, para los cuales no había lugar en
la nueva estructura social que surgía en México, con el gobierno del presidente Lázaro
Cárdenas (1895-1970).
PALABRAS-CLAVES: Literatura hispanoamericana; Juan Rulfo; Revolución Mexicana;
Guerra Cristera.
O romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo (1917-1986), publicado em 1955 – no
período denominado boom da literatura hispano-americana – constitui uma das obras de maior
relevo não só da literatura mexicana, mas latino-americana. Um aspecto de destaque no
romance rulfiano é que o tempo predominante de sua ação ocorre no período da Revolução
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Mexicana (1910-1940), fato histórico mais importante do México no século XX. Sendo
assim, pretende-se comentar neste trabalho como é configurada no romance a representação
desse momento histórico.
No tocante à forma, em Pedro Páramo observa-se uma estrutura episódica em que,
ao invés de capítulos, há fragmentos sem numeração ou títulos. Esses fragmentos, nem tanto
por seu aspecto formal e conteúdo lacunar, mas, principalmente, pelo aparente esfacelamento
cronológico, provocam estranhamento e comprometimento da causalidade, resultando numa
leitura preliminar densa e complexa. No entanto, a partir do exame mais cuidadoso de pistas
existentes na narrativa, é possível estabelecer um paralelo cronológico entre dados ficcionais e
fatos da história do México, o que permite uma melhor organização e intelecção das
passagens. Essas pistas são reveladas por meio de referências escassas e, por vezes, indiretas à
Revolução Mexicana e também à Guerra Cristera (1926-1929) – esta, um movimento que faz
parte da Revolução.
No ensaio “Texto histórico y texto social en la obra de Rulfo (1996), Evodio
Escalante, a respeito da relação entre o texto literário e a história, comenta:
Ubicado en la historia, inserto en el tejido de las contradicciones, el texto
literario puede mostrar un doble rostro. En uno de ellos, lo que aparece es
una sucesión de acontecimientos autónomos, inventados o fabulados por el
narrador, y que dependen sólo de la gramática del relato; en el otro, lo que
surge es una acotación extraliteraria, dependiente de una temporalidad no
manipulable por el narrador, y que estaría compuesta por una sucesión de
acontecimientos que la memoria colectiva clasifica como históricos. Ambos
relatos […] pueden trenzarse, por más que nunca lleguen a confundirse. La
ficción y la historia, el relato inventado y el de lo que en realidad sucedió,
habrán de apoyarse el uno al otro, reforzando su sentido y abriendo
múltiples posibilidades de lectura (ESCALANTE, 1996, p. 674).
Nessa esteira, e mais especificamente sobre a presença da Guerra Cristera no
romance de Rulfo, bem como sobre o período compreendido pela narrativa, Ángel Arias
(2005, p. 195-6) completa:
La aparición de la Cristiada en el texto – breve pero significativa – es uno
de los referentes temporales que establece un puente entre el mundo de la
ficción y un contexto histórico bien determinado. La historia de Pedro
Páramo se sitúa de este modo en un período que abarca desde la época
dorada del sistema caciquil durante el porfiriato, pasa por la llegada y las
distintas fases de la revolución y concluye con la guerra cristera.
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Assim, dentro do recorte mencionado, a narrativa rulfiana, ora direta, ora
indiretamente, permite depreender de suas linhas elementos que compõem imagens de fatos
da história mexicana.
A primeira menção à Revolução Mexicana no romance é feita de forma indireta, no
fragmento iniciado por “Esperé treinta años a que regresaras, Susana”, que é, estabelecendose uma ordem de numeração, o 44º. Narrado por Pedro Páramo, o fragmento já se inicia com
a especificação temporal dos trinta anos que ele teria esperado pelo regresso de sua amada,
Susana San Juan, e o pai, Bartolomé San Juan, a Comala. Movido pelo intenso desejo de
reaproximar-se Susana, durante todos esses anos Pedro Páramo havia feito diversas tentativas
infrutíferas de que pai e filha retornassem. Sobre o momento e os motivos que trouxeram
Susana e Bartolomé de volta, e o que sentiu na ocasião, Pedro Páramo explica:
Ya para entonces soplaban vientos raros. Se decía que había gente
levantada en armas. Nos llegaban rumores. Eso fue lo que aventó a tu padre
por aquí. No por él, según me dijo en su carta, sino por tu seguridad, quería
traerte a algún lugar viviente.
Sentí que se abría el Cielo. Tuve ánimos de correr hacia ti. De rodearte de
alegría. De llorar. Y lloré, Susana, cuando supe que al fin regresarías
(RULFO, 2007, p. 139).
Considerando que os “vientos raros” remetem ao início da Revolução, e que esta se
inicia formalmente em 20 de novembro de 1910 (BARBOSA, 2007), Susana teria regressado
a Comala nos anos iniciais do conflito. Em novembro de 1911, o chefe revolucionário
Emiliano Zapata (1879-1919), que atuava no sul do país, promulga o Plan d’Ayala, plano
essencialmente agrário, o qual “proclama que todas as terras, bosques e águas açambrados
pelos hacendados, políticos e caciques devem ser devolvidos às comunidades rurais e
defendidos de armas em punho” (NUNES, 1980, p. 75). Tal fato intensificou a ação
revolucionária no centro-sul do país, o que provavelmente contribuiu para o amedrontamento
e possível movimentação de pessoas em busca de lugares mais seguros. Nesse contexto,
constata-se a importância da Revolução Mexicana na narrativa, como fator que ocasiona a
reaproximação entre Pedro Páramo e Susana San Juan.
Se Susana retorna a Comala por volta de 1911, tendo deixado a região trinta anos
antes, quando ainda era bastante jovem – tinha aproximadamente treze anos, conforme se
pode deduzir a partir do fragmento sobre a morte de sua mãe –, no momento em que regressa
deve ter pouco mais de quarenta anos, assim como Pedro Páramo, uma vez que ambos
brincavam juntos quando crianças. Partindo desta hipótese, o nascimento e adolescência de
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Pedro Páramo e Susana, ocorridos, respectivamente, nas décadas de 1870 e 1880, coincide
com o Porfiriato ou Porfirismo (1876-1911) – assim é conhecido o período de governo de
Porfirio Díaz (1830-1915), que assinala uma importante etapa da história mexicana, marcada
por um regime ditatorial e de favorecimento de poderosos, que causava o descontentamento
geral do povo e contribuiu no desencadeamento da Revolução.
Nascido e crescido no período do Porfiriato, Pedro Páramo é herdeiro de seus
costumes. Após a morte do pai, ele passa a ser dono das terras da família e de outras que
usurpou, tornando-se um cacique, instância extra-legal de poder, comum no México de
Porfirio Díaz. Na região em que se situa a fictícia Comala, estado de Jalisco, no centro-sul do
México, a economia era desfavorecida e predominava a agricultura, propiciando a presença de
muitos caciques, os quais exerciam poder ilimitado. Sob esse prisma, é possível observar na
narrativa que Pedro Páramo subjuga o povo de Comala, que, sem alternativas nem forças para
lutar contra a situação, vive, perece e se finda a partir das ações opressoras do cacique.
No fragmento 51, “Un hombre que decían el Tartamudo”, há uma referência direta
aos revolucionários. Pedro Páramo é avisado, por um homem a quem chamavam el
Tartamudo, de que Fulgor Sedano, seu homem de confiança, havia sido morto:
[...] a don Fulgor le mandaron soltar la bestia. Le dijeron que eran
revolucionarios. Que venían por las tierras de usté. ¡Cocórrale! – le dijeron
a don Fulgor – .¡Vaya y dígale a su patrón que allá nos veremos!” Y él soltó
la calcada, despavorido. [...] corrió. Lo mataron corriendo (RULFO, 2007,
p. 150).
Na sequência, o cacique contesta ao Tartamudo:
– ¿Y qué esperas? ¿Por qué no te mueves? Anda y diles a éstos que aquí
estoy para lo que se les ofrezca. Que vengan a tratar conmigo. Pero antes
date un rodeo por La Consagración. ¿Conoces al Tilcuate? Allí estará. Dile
que necesito verlo. Y a estos fulanos avísales que los espero en cuanto
tengan un tiempo disponible. ¿Qué jaiz de revolucionarios son? (RULFO,
2007, p. 150).
O excerto permite inferir que Pedro Páramo não tinha conhecimento a respeito da
revolução, que então estava no início, ou não dava importância a ela. Além disso, em
decorrência da aproximação e consequente ameaça dos revolucionários a suas terras, Pedro
Páramo, conforme fica claro na fala, manda chamar Tilcuate; este era famoso por ser adepto a
lutas, e, após a morte de Fulgor Sedano, passa a ser o homem de confiança do cacique,
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integrando a tropa revolucionária a seu mando. Pedro Páramo, evidenciando a intenção de
resguardar suas terras e seu poder com a inserção de Tilcuate na revolta, orienta:
– [...] procura no alejarte mucho de mis terrenos, por eso de que si vienen
otros que vean el campo ya ocupado. Y venme a ver cada que puedas o
tengas alguna novedad.
– Nos veremos, patrón (RULFO, 2007, p. 155).
Assim, através da presença e atuação de Tilcuate junto às tropas, Pedro Páramo
mantém a revolução longe de seus domínios, o que denota que o poder despótico do cacique
não é alterado pela rebelião. Tal ideia é corroborada pelos fatos narrados no fragmento 53, em
que Pedro Páramo recebe de modo ameno e aparentemente servil os revolucionários que vêm
até sua fazenda, tratando-os de “patrones”. O cacique lhes oferece dinheiro e trezentos de
seus homens, para engrossarem as tropas revolucionárias, de modo a demonstrar astúcia e a
neutralizar a ação revolucionária em suas terras.
Na conversa entre Pedro Páramo e os revolucionários, fica inscrita a ausência de um
ideal consistente de luta e também a hipocrisia desses, que se dizem contra os senhores, mas
que, na verdade, o que fazem é negociar com um deles – Pedro Páramo –, em troca de
dinheiro:
Nos hemos rebelado contra el gobierno y contra ustedes porque ya estamos
aburridos de soportarlos. Al gobierno por rastrero y a ustedes porque no
son más que unos móndrigos bandidos y mantecosos ladrones. Y del señor
gobierno ya no digo nada porque le vamos a decir con balazos lo que le
queremos decir.
–¿Cuánto necesitan para hacer su revolución? – preguntó Pedro Páramo –.
Tal vez yo pueda ayudarlos.
– [...] Necesitamos agenciarnos un rico pa que nos habilite, y qué mejor que
el señor aquí presente. [...]
– Les voy a dar cien mil pesos – les dijo Pedro Páramo –. (RULFO, 2007, p.
153).
É interessante observar que a Revolução Mexicana foi, em princípio, um movimento
contra o governo de Porfírio Díaz, em que os camponeses, que representavam na época a
grande maioria da população, eram prejudicados pelas ações governistas. O governo, sob o
ideal de capitalização do país, privilegiava os poderosos e fazia vista grossa para a ação dos
caciques – grandes proprietários de terra –, que submetiam os camponeses a situações
conflitantes e desvantajosas, em que geralmente tinham suas terras expropriadas e dominadas,
e, quando muito, tornavam-se empregados se seus usurpadores.
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Pedro Páramo apresenta essa postura de dominação e usurpação de terras, que pode
ser ilustrada nos fragmentos 18, 19, 22 e 23. Exemplo disso ocorre quando Fulgor Sedano, a
mando do patrão, mata Toribio Aldrete, com quem o pai de Pedro Páramo tinha pendente uma
“cuestión de límites” (RULFO, 2007, p. 96). O caráter do cacique se revela no seguinte
diálogo entre ele e Fulgor Sedano:
– La semana venidera irás con el Aldrete. Y le dices que recorra el lienzo.
Ha invadido tierras de la Media Luna.
– Él hizo bien sus mediciones. A mí me consta.
– Pues dile que se equivocó. Que estuvo mal calculado. Derrumba los
lienzos si es preciso.
–¿Y las leyes?
–¿Cuáles leyes, Fulgor? La ley de ahora en adelante la vamos a hacer
nosotros (RULFO, 2007, p. 100).
A postura do cacique evidenciada no diálogo também realça na narrativa a discussão
sobre a propriedade da terra, cuja luta foi encabeçada por Emiliano Zapata, e que fazia parte
do Plan d’Ayala. Conforme já mencionado, no tempo do governo de Porfírio Díaz era comum
o povo ter suas terras usurpadas por caciques, como Pedro Páramo. A principal reivindicação
de Zapata era exatamente pela devolução dessas terras.
As palavras do advogado Gerardo, no 57º fragmento da narrativa, demonstram o caos
vivido pelas pessoas no período da Revolução, em face dos levantes comandados pelas tropas
revolucionárias, que arrasavam os lugares por onde passavam, deixando muitos mortos e
feridos:
– ¿Sabe, don Pedro, que derrotaron al Tilcuate?
– Sé que hubo alguna balacera anoche, porque se estuvo oyendo el
alboroto; pero de ahí en más no sé nada. ¿Quién te contó eso, Gerardo?
– Llegaron unos heridos a Comala. Mi mujer ayudó para eso de los
vendajes. Dijeron […] que habían tenido muchos muertos. Parece que se
encontraron con unos que se dicen villistas (RULFO, 2007, p. 157).
O assunto é continuado no fragmento 60, em que Tilcuate vem ao encontro de Pedro
Páramo e desmente a derrota; ele faz uma nova menção direta ao exército villista, a quem
teria se juntado, e suas palavras ressaltam as situações de violência ocasionadas pela ação das
tropas revolucionárias:
– [...] Villistas, ¿sabe usted?
–¿Y de dónde salieron ésos?
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– Vienen del Norte, arriando parejo con todo lo que encuentran. Parece,
según se ve, que andan recorriendo la tierra, tateando todos los terrenos.
Son poderosos. […]
–¿Y por qué no te juntas con ellos? Ya te he dicho que hay que estar con el
que vaya ganando.
– Ya estoy con ellos (RULFO, 2007, p. 162).
A passagem também evidencia que, sob as ordens de Pedro Páramo, Tilcuate sempre
fica ao lado dos que estão em vantagem na luta armada. Na continuação do diálogo, Tilcuate
pede dinheiro ao patrão, que, além de negar, incentiva-o a assaltar Contla, isentando-se do
compromisso assumido inicialmente com os revolucionários, de dar-lhes dinheiro. Com tal
atitude, Pedro Páramo também deixa claro que considerava a Revolução uma oportunidade
para ações violentas e saqueios:
[...] sonsácales a otros lo que necesitas. Confórmate con lo que te di. Y éste
no es un consejo ni mucho menos, ¿pero no se te ha ocurrido asaltar
Contla? ¿Para qué crees que andas en la revolución? Si vas a pedir limosna
estás atrasado [...] ¡Échate sobre algún pueblo! Si tú andas arriesgando el
pellejo, ¿por qué diablos no van a poner otros algo de su parte? Contla está
que hierve de ricos. Quítales tantito de lo que tienen. [...] Dales un pegue y
ya verás cómo sales con centavos de este mitote (RULFO, 2007, p. 163).
É interessante lembrar que Pancho Villa (1878-1923), figura emblemática da
Revolução Mexicana, atuante sobretudo no norte do país, era conhecido por sua personalidade
inconstante e contraditória, e já antes da Revolução praticava roubos. Além disso, a fala de
Pedro Páramo remete ao caráter fragmentário da luta revolucionária, que, por ter muitos
chefes, com interesses diversos e pessoais, e, assim, não apresentar um movimento uniforme e
coeso, revelava pontos frágeis (BARBOSA, 2007, 2010).
O fragmento 66, “El Tilcuate siguió viniendo”, embora seja composto por um
diálogo bastante sucinto entre Pedro Páramo e Tilcuate, representa na verdade um diálogo
mais amplo, pois cada uma das falas se refere a um momento específico da Revolução,
abrangendo um período aproximado de onze anos, a partir de 1915, quando obtém êxito a
facção carrancista, até 1926, ano em que se inicia a Guerra Cristera. Esta inferência se faz
possível a partir das menções diretas a figuras históricas representativas da Revolução, feitas
por Tilcuate:
– Ahora somos carrancistas.
– Está bien.
– Andamos con mi general Obregón.
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– Está bien.
– Allá se ha hecho la paz. Andamos sueltos.
– Espera. No desarmes a tu gente. Esto no puede durar mucho.
– Se ha levantado en armas el padre Rentería. [...]
– Me iré a reforzar al padrecito. Me gusta cómo gritan. Además lleva uno
ganada la salvación.
– Haz lo que quieras (RULFO, 2007, p. 172).
Como se pode constatar, após passar pelas diversas etapas da Revolução Mexicana –
durante os governos de Venustiano Carranza (1859-1920), que esteve no poder de 1915 a
1920, e de Alvaro Obregón (1880-1928), presidente do México de 1920 a 1924 –, Tilcuate
opta por integrar-se à Guerra Cristera, não pelo ideal que impulsiona a revolta, mas pelo
estado de euforia em que se encontrava, após vários anos atuando nas tropas revolucionárias.
De tal modo, fica inscrita no romance uma crítica à falsa religiosidade e à fraqueza dos ideais
de luta de parte daqueles que empunhavam as armas. A respeito do fragmento transcrito,
Ángel Arias (2005, p. 197) completa:
El fragmento refleja la sucesión constante de una violencia en la que lo de
menos parece ser la causa por la que se pelea. La idea es interesante en la
medida en que anula el posible peso de la motivación ideológica, tanto de la
revolución como de la guerra cristera, y ésta queda asimilada al ritual de
crímenes que parecen marcar la vida de Comala. […]
La violencia desatada por la guerra puede encontrar su origen en la
necesidad de romper la opresión tanto tiempo acumulada, también quizás de
ahí provenga la mención entusiasmada de los gritos.
Também o “padrecito”, ou seja, o Padre Rentería, de Comala, como todos – com a
exceção de Susana San Juan – vivia sob as ordens de Pedro Páramo. A respeito da relação, no
romance, entre a Guerra Cristera e o Padre Rentería, Arias (2005, p. 196) assinala: “[...] la
guerra cristera, en las escasas ocasiones en que aparece mencionada, se describe como un
movimiento desesperado, que queda ligado a una figura trágica y compleja como la del
Padre Rentería”. Em troca de dinheiro, o padre fazia vista grossa para as ações violentas de
Pedro Páramo em relação ao povo, que, sem êxito, pedia ajuda ao padre, como autoridade
religiosa do povoado, para contestar as ações do cacique.
A Guerra Cristera foi a última das revoltas de camponeses, ocorrida como um dos
desdobramentos da Revolução Mexicana, cuja etapa armada em grande escala se findou em
1920, mas que continuou gerando conflitos dispersos. Em reação à prática tardia de alguns
artigos anticlericais da Constituição de 1917, que limitavam a influência do clero na
sociedade mexicana, a Igreja decidiu suspender os cultos e fechar os templos, provocando a
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insatisfação de alguns oficiais religiosos e camponeses católicos, que se rebelaram em luta
armada contra o Estado. Os conflitos aconteceram no centro-sul do México, com maior
incidência no estado de Jalisco, cuja população era violentamente atacada pelos rebeldes e
que, após os anos de luta, ficou devastado. Sobre a presença da Guerra Cristera no romance,
Arias (2005, p. 196) ratifica:
[...] junto al anclaje temporal, la aparición de este evento supone también
una referencia espacial – estamos en territorio de cristeros – al tiempo que
contribuye a caracterizar un ambiente lleno de rencor como es Comala. El
feudo de Pedro Páramo remite a este mundo particular del estado de Jalisco
[…]. Hay, pues, un engarce entre la acción ficcional de la novela y unos
referentes reales que se incorporan a ese mundo y lo conforman.
No primeiro fragmento da narrativa, quando Juan Preciado, o primogênito de Pedro
Páramo, chega a Comala com o intuito de conhecer o pai, a Guerra Cristera já havia acabado e
a cidade já se encontra destruída e abandonada; ali só restam os murmúrios dos antigos
habitantes. Sobre esse contexto, Arias (2005, p. 200-1) explica:
[...] la sensación de desamparo – de estar ante un pueblo fantasmal – que se
produce en las primeras impresiones de Juan Preciado nada más llegar a
Comala, tiene en su origen una referencia real y una causa histórica: la
desolación producida por el conflicto cristero terminó por sumir a toda esa
zona, donde la guerra alcanzó enorme virulencia, en un estado de completo
abandono. En la […] novela estas referencias históricas se diluyen, sin
desaparecer del todo, y permiten que el texto amplíe su significación, al
superar la referencia unívoca a una realidad histórica concreta.
Foi justamente em Jalisco, esse território tão afetado e devastado pela Guerra
Cristera, que Rulfo situou sua imaginária Comala. Trata-se do estado natal do escritor, que ali
passou sua infância, podendo vivenciar, junto à sua família, as consequências da rebelião.
No final do 60º fragmento, após receber a visita de Tilcuate e seus homens, Pedro
Páramo observa a partida dos revolucionários. Apesar disso, há indícios de que ele e, logo,
seu poder estão começando a declinar:
Pedro Páramo miró cómo los hombres se iban. Sintió desfilar frente a él el
trote de caballos oscuros, confundidos con la noche. El sudor y el polvo; el
temblor de la tierra. Cuando vio los cocuyos cruzando otra vez las luces, se
dio cuenta de que todos los hombres se habían ido. Quedaba él, sólo, como
un tronco duro comenzando a desgajarse por dentro (RULFO, 2007, p.
163).
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A cena em que o cacique morre esfaqueado por Abundio, seu filho bastardo, é
descrita no último parágrafo do romance. Com essa cena, se conclui o desmoronamento
iniciado no fragmento 60:
Se apoyó en los brazos de Damiana Cisneros e hizo intento de caminar.
Después de unos cuantos pasos cayó, suplicando por dentro; pero sin decir
una sola palabra. Dio un golpe seco contra la tierra y se fue desmoronando
como si fuera un montón de piedras (RULFO, 2007, p. 178).
Uma intervenção da personagem Dorotea, no fragmento 42, permite situar a morte de
Pedro Páramo durante a Guerra Cristera, ou seja, por volta de 1927: “Ya cuando le faltaba
poco para morir vinieron las guerras esas de los ‘cristeros’ y la tropa echó rialada con los
pocos hombres que quedaban” (RULFO, 2009, p. 138). Desse modo, a morte do cacique
coincide com a Guerra Cristera, que, por sua vez, é o último levante de maior incidência
ocorrido no período da Revolução Mexicana, anunciando um novo período da história
mexicana que começaria pouco depois, com a eleição de Lázaro Cárdenas (1895-1970) para a
presidência da República, em 1934. Durante o governo de Cárdenas, que foi até 1940, o
México passou a viver um período de maior tranquilidade e as propostas da Revolução
passaram finalmente a ser postas em prática; por isso, o governo de Cárdenas é considerado
por muitos historiadores como a última etapa da Revolução.
Em síntese, ao longo da análise foram reproduzidos e comentados excertos, com o
intuito de mostrar como é delineada na narrativa a presença da Revolução Mexicana. O
romance de Rulfo tem sua ação aproximadamente entre a década de 1880, quando Pedro
Páramo é um adolescente, e a de 1930, quando seu filho Juan Preciado chega em Comala, de
modo a abranger o período do porfirismo, passar pelo início e diferentes etapas da Revolução
e se concluir com a Guerra Cristera.
Em Pedro Páramo, a Revolução, que chega até Comala por rumores, não afeta de
modo incisivo a realidade do povoado, o qual continua sob a dominação do cacique; é com a
Guerra Cristera que o estado de Jalisco – onde se situa a fictícia Comala – é gravemente
abalado. No entanto, diante do contexto específico da narrativa, é possível entrever que a
condenação de Comala não é determinada pela rebelião, mas pela ação ilimitada e despótica
do cacique Pedro Páramo, que impõe ao povo medo, terror e violência, de proporção
equivalente ou até maior que os conflitos armados. Como aponta Evodio Escalante (1991, p.
677, grifo do autor),
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[…] varios pasajes de la novela aluden a la presencia de la Revolución en
Comala. Es cierto que ella pasa de lado, sin alterar de manera significativa
el modo de vida de sus habitantes. La Revolución, podría decirse, ni altera
las relaciones de poder existentes ni acarrea algún tipo de beneficio para la
población. En este sentido, Comala permanece impermeable. ¿Es culpa de
la Revolución? ¿O se debe más bien al carácter retrógrado de Comala?
Puede ser que las dos cosas a la vez.
Partindo dessas assertivas, e conforme se tentou destacar, Pedro Páramo, para
preservar seu poder da ameaça da Revolução, manipula a circunstância, como muitos
caciques o fizeram nesse período, oferecendo dinheiro aos revolucionários que chegam a
Comala e inserindo um homem de sua confiança na luta armada. Nesse contexto, o romance
de Rulfo apresenta o retrato dos efeitos devastadores do sistema de caciquismo, sustentado
por um poder despótico, que teve seu auge no Porfiriato e que mesmo com a Revolução
poderia continuar, em várias regiões. A morte de Pedro Páramo, no entanto, simboliza o
desmoronamento dessa estrutura, determinando o fim da era dos caciques, que faziam suas
próprias leis, sem a interferência do governo.
O declínio de Pedro Páramo e, por conseguinte, de Comala, corresponde ao
movimento histórico do México, do porfiriato à implementação, no governo de Cárdenas, das
propostas da Revolução. Pedro Páramo e Comala não subsistem a esse movimento porque o
tipo de estrutura que representavam divergia do México pós Guerra Cristera, que apresentava
um sistema de governo diferente, em que não havia espaço para a ação de caciques. Portanto,
o destino de Pedro Páramo é congruente ao do país: o México que se nutriu do porfiriato
começa a declinar em 1910 e sucumbe na década de 1930.
Quando Juan Preciado chega a Comala, após o término da Guerra Cristera e a morte
de Pedro Páramo, o que encontra é uma terra ausente de vida e esperança; mesmo o fim de
Pedro Páramo não é capaz de trazer esperança para o povo, simplesmente porque não há mais
povo. A partir disso, depreende-se da narrativa de Rulfo uma imagem pessimista e negativa
da Revolução, cuja luta teria sido vã, ao menos para o povo de Comala, para o qual não há
salvação; não há um benefício legado, ou, se há, é a morte, com a qual Juan Preciado se
depara e que o amedronta, aprisiona e vence.
Sobre a presença e abordagem dada aos elementos históricos nos textos de Rulfo –
não só no romance, mas também nos contos –, Ángel Arias (2005, p. 210) pontua:
ISSN 2175-943X
I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e
X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória
21 a 23 de Setembro de 2011
UNIOESTE – Cascavel/PR
[...] Rulfo [...] como escritor evita caer en una simplificación maniquea de
los hechos. Sus relatos no pretenden sostener una posición cerrada que
explique y juzgue el pasado histórico. […] al plasmar el pasado histórico, el
escritor realiza el enorme esfuerzo de aprehenderlo en el relato, respetando
su autonomía, aunque evidentemente ésta nunca es total.
Enfim, o romance de Rulfo apresenta relações com a história do México do
Porfiriato e da Revolução – especialmente pela presença do elemento do caciquismo, revelado
na figura de Pedro Páramo – e deixa da Revolução Mexicana uma imagem negativa, pois põe
em evidência, através da figura de Pedro Páramo, o sofrimento e a destruição de um povoado,
sem que haja um saldo benéfico.
REFERÊNCIAS:
ARIAS, Ángel. Entre la cruz y la sospecha: los cristeros de Revueltas, Yáñez y Rulfo.
Madrid: Vervuert, 2005.
BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio. A Revolução Mexicana. São Paulo: Editora da UNESP,
2010.
BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio. 20 de novembro de 1910: a Revolução Mexicana. São
Paulo: Nacional; Lazuli, 2007.
ESCALANTE, Evodio. Texto histórico y texto social en la obra de Juan Rulfo. In: FELL,
Claude (coord.). Toda la obra: Juan Rulfo. 2. ed. Madrid; Paris; México; Buenos Aires; São
Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX, 1996. p. 663-683.
NUNES, Américo. As revoluções do México. São Paulo: Perspectiva, 1980.
RULFO, Juan. Pedro Páramo. 20. ed. Madrid: Cátedra, 2007.
ISSN 2175-943X

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