O jornalista acontece

Transcrição

O jornalista acontece
Carlos uno de Abreu Pinto Coelho
O jornalista acontece
Avelino Rodrigues
Ler esta entrevista é descobrir um outro Carlos Pinto Coelho que pouca gente
conhece. inguém descreveu, antes dele, o despertar dum jovem branco no
hibridismo cultural duma elite africanista – diferente da lusa mestiçagem e da
vaga “africanidade” – e como esta marca de insuspeitados valores determina uma
carreira jornalística. CPC desembarca na profissão com uma capacidade incrível
de aprender novos ofícios jornalísticos e de adaptar-se a novos mundos e culturas,
seguro de si e inconfundível, ao lado mas sempre marginal dos poderes instituídos.
Revela uma auto-estima sem limites, mas essa talvez seja a outra face da ânsia de
criar amigos e alianças, que lhe permitam brilhar no estrelato mediático, a bem de
um jornalismo culto e criativo, sem perder de vista a crítica frontal aos distúrbios
da profissão, desde os “velhos jornalistas ignorantes” do antigamente aos “frágeis
licenciados de jornalismo” de agora. Polémicas e confrontos, em nome da
dignidade profissional, acompanharam uma carreira de sucesso. ão esquece o
perdão a Saramago, num reencontro emotivo. Desmente a alegada colaboração
com Kaúlza de Arriaga. De resto, a entrevista é também um ajuste de contas com
Manuel Alegre, Soares Louro, Proença de Carvalho, Marques Mendes e Morais
Sarmento, protagonistas de momentos de crise que ilustram a história da RTP
como “aparelho ideológico do Estado”. Tendo percorrido todos os sectores dos
Média (imprensa, rádio e televisão) CPC conhece bem o panorama da imprensa
portuguesa, sentindo-se autorizado a lamentar que, em vez da concorrência pela
qualidade, se assista agora à competição pelo lucro e que, em vez do status social
dos jornalistas, se preze mais o poder de algumas vedetas. Reformado mas sempre
activo, persiste na defesa do património da classe, convencido de que assim
preserva uma memória que lhe valeu a vida e uma história de valores que lhe vem
do berço.
Palavras-Chave: África, compromissos, profissionalismo, fotografia conflitos, serviço
público, RTP, “Acontece”, “ A par e passo”, Informação2, Manuel Alegre, Soares
Louro, Kaulza.
O jornalista, que foste, que és, terá alguma coisa a ver com as tuas origens sociais?
Seguramente. Nascido em Lisboa mas levado num berço para Moçambique, a minha
infância passou-se entre livros, minha mãe professora do ensino primário e escritora,
meu pai licenciado em Direito. O amor pelas palavras e o cheiro dos livros, que
povoavam as paredes de minha casa, moldaram-me os gostos e determinaram as minhas
prioridades. Mas a Lourenço Marques dos anos 50 e 60 era pouco dada a essas coisas..
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Na cidade dos brancos, que eu habitava, a vida era fácil, convivente e superficial, como
em todas as sociedades coloniais. Trabalhava-se, ganhava-se dinheiro, ia-se à praia e ao
cinema, lia-se pouco, nada de “políticas”. Para a minha geração, Portugal era uma
entidade cinzentona e distante, de que éramos obrigados a conhecer os nomes dos rios e
de todos os apeadeiros de caminho de ferro, mais os reis, Salazar e aquela senhora de
Fátima, mas que nunca sentimos como coisa nossa. Mais: aos domingos, de vez em
quando, íamos em grupo para o aeroporto ver chegar os portugueses provincianos,
vestidos de escuro e carregando garrafões de vinho, rumo ao tal grande Colonato do
Limpopo, a imponente cidadela agropecuária que o regime construira nas margens do
grande rio. Olhávamos aquela gente e ríamo-nos muito dos seus gestos, bigodes e
palavrões – eram um outro povo, estranho e quase repulsivo. Nós, vizinhos dos sulafricanos, cujas filhas vinham namorar-nos apaixonadamente às nossas praias, éramos
militantes dos filmes de “cowboys”, dos discos do Elvis Presley e da Coca-Cola que
Salazar proibia aos meninos da Metrópole.
Então e o tal cheiro dos livros da tua infância?
Tem a ver com os meus pais e com uma outra Lourenço Marques. Minha mãe, mulher
culta e enérgica (a Sara foi uma feminista fora de contexto) dava aulas de manhã e, à
tarde, dirigia os programas de teatro do então Rádio Clube de Moçambique. Assim,
dava-se com um pequeno grupo notável de gente interessante, de que faziam parte os
poetas Rui Knopfli, Rui Nogar e Reinaldo Ferreira (esse mesmo, o do “Soldadinho não
volta do outro lado do mar” que o Adriano Correia de Oliveira mais tarde cantou), os
cineastas Ruy Guerra e Manuel Faria de Almeida e muita outra gente notável como
Eugénio Lisboa, Hélder de Macedo, Guilherme de Melo, José Craveirinha, o arquitecto
“Pancho” Miranda Guedes, Joaquim Montezuma de Carvalho, José Blanc de Portugal,
os pintores Bertina Lopes e Malangatana, o compositor Artur Fonseca, autor da “Casa
Portuguesa” com letra de Vasco de Matos Sequeira … eu sei lá quantos mais! Ao lado
deste grupo, em bom convívio mas com outros rumos de vida, lá estavam os advogados
António de Almeida Santos, Adrião Rodrigues, Pereira Leite, Soares de Melo e outros
que haviam de ter papel político importante em 1974 e com quem meu pai se dava,
embora não comungando dos seus ideais. Ou seja, a Lourenço Marques dos brancos
eram… duas cidades. Dois mundos diferentes: o da “dolce vita” e um outro com mais
exigências intelectuais. A mim tocou-me o do gosto pelas coisas da cultura. Ali, em
contraponto com a colonização americanizante que dominava, valia a modernidade
cultural de França: os seus livros e revistas (lia-se tudo porque os serviços de Censura
trabalhavam mal, felizmente), o seu cinema (havia um vigoroso Cineclube) e a sua
música.
Cresceste no meio de dois universos contraditórios…
Não dois, mas três. Com os meus amigos e namoradas sul-africanas pratiquei todos os
estereótipos norte-americanos da época, como disse. E falava inglês com as “bifas”. Em
casa cultivava o português exigente e o francês, aprendi a conhecer o Tim Tim e a
Condessa de Ségur, mais tarde me deixaram imaginar a Europa de Sartre e Lorca
(adorava ouvir minha mãe dizer poesia), de Jacques Tati, dos Beatles e de Brel. Mas
houve um terceiro mundo, que foi também poderoso na minha formação: o da cultura
brasileira. É que me puserem a estudar cinco anos seguidos num colégio católico de
irmãos maristas, com professores brasileiros, muito saudosos do seu país, que
devotadamente nos ensinaram Olavo Bilac, Pedro Bloch, Jorge Amado, mais os baiões
de Luiz Gonzaga, além das piadas nordestinas, “o Cangaceiro” e o jogo da bola-aomastro. Trago em mim, gostosamente, um lastro imenso de referências brasileiras.
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Quantas vezes dou comigo a contar, a jovens jornalistas brasileiros, histórias da sua vida
cultural, de que nunca ouviram falar.
E África, onde está a Mãe-África, nessa fusão de universos?
Oh, não, nunca me senti um africano. E agora estou mais certo disso do que nunca. Nem
africano, nem europeu, nesses tempos. Sabes, naquela redoma em que vivíamos, os
brancos da charmosa Lourenço Marques de então, a autêntica África ficava tão longe
como Lisboa, Paris ou Nova Iorque. Nenhum jovem branco falava ronga, a língua da
terra, nem aprendia na escola a história dos povos moçambicanos, com que nos
cruzávamos nas ruas, nem… nem namorávamos as moçambicanas pretas. Sim, tive
colegas negros e mulatos em todas minhas salas de aula, hoje sou muito amigo de
alguns, vinham às minhas festas de aniversário, mas nunca fui convidado para lanchar
nas casas deles. Entendes? A minha relação com a Lourenço Marques da minha
juventude é telúrica, pessoal e intransmissível, mas não é uma relação com África-mãe,
como só tem quem se sente africano. Quando o Herman José fabricou para minha
caricatura aquela lânguida expressão de devaneio “África...mãe África!”, deixei andar,
mas ele confundia o meu entranhado respeito pela cultura lusófona com uma
africanidade, de que nunca me reclamei. Ligeirezas sem importância…
Foi um choque retornar a Portugal? Deslocado em Lisboa, onde tinhas nascido?
Cheguei com a alma aos bocadinhos, naquela manhã cinzenta, quando o “Príncipe
Perfeito” atracou ao cais de Alcântara. Tinha 19 anos e vinha sozinho. Lisboa era
cinzenta, dos medos que sentia, desconfiada e hostil, para quem vinha de uma terra onde
as casas não tinham fechaduras nas portas e as pessoas se saudavam nas ruas, sem se
conhecerem. Lá longe, em Moçambique, deixara tudo, absolutamente tudo. E todos os
que amava. Portugal, onde tinha estado apenas duas vezes sem rasto nem memória, era
um buraco negro, um campo de exílio, a que o Império me condenava.
Escolheste o jornalismo como primeira vocação?
Não, o jornalismo não estava nos meus planos. Eu queria estudar Direito e, naquele
tempo, não havia universidades nas colónias. Entre 1963 e 1968 frequentei a Faculdade
de Direito de Lisboa, até chegar ao último ano sem uma única reprovação. Tinha 24
anos e o meu propósito era regressar jurista a Moçambique. Mas eis que um professor,
de seu nome Oliveira Ascensão, decide reprovar-me na prova oral de Direito das
Sucessões. Injustamente, digo-o com honestidade, à distância destes quase quarenta
anos. Indignado, usei da minha soberania contra o destino e jurei que nunca mais
voltava a pôr os pés naquela Faculdade. (Tenho-o cumprido até hoje). A ideia do
jornalismo apareceu-me nesse dia de destino. Em Portugal não havia cursos de
jornalismo, eu já escrevia em publicações avulsas, tinha um prémio literário
universitário (Urbano Tavares Rodrigues e Fernanda de Castro, como jurados). Lá
consegui uma “cunha” para o director do Diário de otícias, o venerado embaixador
Augusto de Castro. A “cunha” era boa, fui recebido e, em poucos minutos, admitido no
jornal como estagiário. Eram umas sete da tarde de 19 de Janeiro de 1968.
Quando jovem, participaste em actividades ligadas ao jornalismo?
Claro que participei nos clássicos jornais de colégio e, inevitavelmente, num jornalzinho
da Mocidade Portuguesa, onde despejava conspícuas críticas a filmes que ia ver ao
Cinema “Scala”, na baixa de Lourenço Marques. Já como estudante universitário em
Lisboa enviava artigos para o otícias. Num deles contava como foi o incêndio do
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Teatro D. Maria que, por coincidência de uma noite de boémia, vi arder desde o
princípio, às tantas da madrugada.
os teus primeiros passos nos jornais, foste sujeito a praxes de iniciação ou rituais
de passagem?
Era o tempo dos grandes jornais de nobres tradições, como O Primeiro de Janeiro, o
Jornal de otícias, O Século, o Diário de otícias, o República, o Diário Popular, ou o
Diário de Lisboa. Ser-se jornalista em qualquer deles era uma distinção e uma
responsabilidade que a sociedade reconhecia e estimava. E sim, havia praxes de
iniciação no Diário de otícias, a que não escapei, logo no primeiro dia: redigir, com
horas e minutos, toda a programação da Emissora Nacional do dia seguinte (na
realidade já estava feita de véspera); ir à tipografia buscar a “rama” de chumbo da
primeira página, para o chefe aprovar (a prova de primeira página era aprovada em
papel, não em chumbo, que era pesadíssimo) e, às tantas da madrugada, beber com os
colegas um cálice de absinto puro, no bar do jornal. Fiquei agoniado…
A esta distância, achas que o teu percurso profissional foi típico ou singular?
Já aqui disse, direitinho, que me fiz jornalista por desgosto e por “cunha”. Mas, se
acreditasse em deuses ou em destinos, juraria que esse era o caminho que tinha de me
acontecer, de tal forma a minha vida se lhe moldou, como se tivesse sido longamente
premeditado. É que, depois da minha entrada no Diário de otícias, o resto da minha
carreira desenrolou-se por acasos e imprevistos. E nenhuma “cunha”, nunca mais, nestes
quarenta anos de actividade. O meu percurso profissional foi típico na sua decorrência
Como todos os jornalistas do tempo, não passei por concursos nem tive de tirar cursos
de Jornalismo. Não os havia em Portugal. Percorri todas as etapas banais: estagiário
durante 24 meses, depois repórter B, repórter A e, finalmente, redactor. Só uma década
depois do início tive cargos de chefia. Talvez tenha sido atípico na sua variedade: não
serão muitos os jornalistas portugueses que tenham trabalhado numa tão rica
diversidade de “media”( Imprensa diária, não diária, agência de notícias, rádio e
televisão). 1
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Depois do seu lançamento na imprensa escrita, CPC orientou-se para os meios audiovisuais,
desenvolvendo intensa actividade na Rádio e na Televisão. Na RTP apresentou e dirigiu o Telejornal
em1977, a Informação/2 em 1978 , o Fim de Semana em 1979/1980 o Já Agora em 1982; Em Português
os Entendemos em 1990/1991, em cooperação com a TV-Cultura de São Paulo (Brasil); Acontece em
1994/2003. Na Rádio, realizou e apresentou programas na Rádio Comercial, RDP/Antena 1, na TDMRádio Macau e na TSF. Foi membro do Conselho de Opinião da RDP. e Professor de Jornalismo na
E.T.I.C. (Lisboa - 1995) e no Instituto Politécnico de Tomar - Escola Superior de Tecnologia de Abrantes
(2003-2006). Membro dos júris dos Prémios EMMY para Jornalismo de Investigação (Nova York, 1984),
dos Festivais Internacionais de Cinema de Troia (1986), Fantasporto (1987) Cinanima (1996) e no
ICCAM (2006). Em1986-1987 pertenceu ao Conselho de Administração do consórcio europeu de
televisões Europa TV (Hilversum, Holanda). Em 1989-1992 foi coordenador dos Encontros de Televisões
de Língua Portuguesa que se realizaram em Lisboa, São Paulo/ Rio de Janeiro e ilha do Sal (Cabo
Verde). Em 1990 foi presidente eleito do Comité Est-Ouest da Université Radiophonique et Télévisuelle
Internationale (URTI - Paris) e presidiu ao Comité Nord-Sud em 1991.De 1977 a 1992 foi representante
da RTP nos “Comités” de Informação e de Programas da UER, na URTNA (Union des Radios et
Télévisions Nationales d'Afrique) , na OTI (Organizacion de Televisiones Iberoamericanas ) e no júri do
Prémio de Guionismo Genève-Europe. Em 2005 foi representante do Ministério da Cultura de Portugal
na Reunião de Televisões Ibéricas (México). Foi conferencista convidado do Instituto de Altos Estudos
Militares (1988-1992), integrou a direcção da Sociedade Portuguesa de Autores e a Comissão Nacional
dos Descobrimentos.
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Como foi progredir na profissão nesses tempos, à custa própria ?
Uma reportagem que fui fazer a Moçambique para o Diário de otícias mereceu-me um
convite para editor na agência ANI (mais tarde AOP e depois LUSA). Nunca tinha
trabalhado em agência, aprendi um ofício novo e gostei muitíssimo. Mais tarde, o
correspondente da Deutsche Welle foi nomeado para um cargo incompatível e propôs o
meu nome para o substituir. Aprendi mais esse ofício e durante anos mandei despachos
para a rádio alemã. Por causa disso chegou-me convite para fazer trabalhos também
para a TDM-Rádio Macau, durante muito tempo. Mas o talvez mais decisivo “acaso” da
minha vida profissional aconteceu no dia turbulento em que, com mais 19 jornalistas,
fui forçado a deixar o D, por imposição da recém-chegada direcção Luís de
Barros/José Saramago. Preocupado com a vida, rumei ao bar “Snob”, meu refúgio de há
anos e ali esperava-me o imprevisto: havia um novo jornal que estava para sair, daí a
uma semana, e acontece que o previsto editor de política internacional desistira, poucas
horas antes, incapaz de manejar os novos equipamentos da redacção – e um jornalista
fora encarregado de ir ao “Snob” procurar alguém capaz de ocupar a vaga. Estava lá eu,
no lugar certo. Assim ingressei na equipa fundadora do Jornal ovo, de Artur Portela
Filho. Entre outras coisas, publiquei lá uma crónica de política internacional que
chamou a atenção de Edmundo Pedro e de Raul Junqueiro, presidente e administrador
da RTP, ao tempo. Pediram-me que fosse à sede da Televisão, na rua de São Domingos
à Lapa, convidando-me para subdirector de Informação, em parceria com o director
Botelho da Silva, que o Manuel Alegre tinha ido buscar ao Diário Popular. Assim
começaram 23 anos de Televisão, onde fiz de tudo. Não posso esquecer o tempo em que
fui redactor da revista Vida Mundial, dirigida por Natália Correia. Mas nunca tinha sido
director de uma revista de Informação, até ao dia em que o Fialho de Oliveira me
propôs substituí-lo na direcção executiva do magazine semanal “Mais”. Tive o
privilégio de dirigir uma redacção de óptimos jornalistas que viriam a tornar-se nomes
de referência do mundo mediático.
Enfim, faltava a rádio. Ainda adolescente, tinha interpretado pequenos papéis de teatro,
aos microfones do Rádio Clube de Moçambique. Mas o jornalismo radiofónico
começou para mim quando os jornalistas António Ribeiro e José Cândido de Sousa,
então à frente da Rádio Comercial, me desafiaram para editor dos noticiários da manhã
– coisa estranha para mim, porque me obrigava a acordar às 4 da madrugada. Lá aprendi
mais um ofício, bem complexo mas apaixonante. A partir de então, nunca mais a rádio
abandonou os meus dias, até hoje.
Achas que descobriste o teu estilo jornalístico próprio ou sentiste-te atraído por
algum vulto da imprensa que gostasses de imitar?
Assim posta a pergunta, a resposta é não: nenhum jornalista conhecido me fascinou, ao
ponto de querer imitá-lo, não senhor. Mas já me apeteceu, alguma vez, assinar aquela
entrevista do Adelino Gomes, aquela crónica do Jean Daniel ou aquela reportagem da
BBC em The World Uncovered. Falando de alguém que não conheci, admito que
construí um mito pessoalíssimo do Hemingway e, esse mito sim, gostava de seguir…
quando um dia fosse crescido.
Criaste novas amizades na profissão? Mantiveram-se? Caíram?
Sim, a vida profissional trouxe-me muitas e sólidas amizades (como a do autor desta
entrevista, por exemplo!) que se mantêm, algumas há décadas. Mas é verdade que
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ficaram pelo caminho muitos contactos, não lhes chamarei amizades. Na RTP, fiz
algumas relações de amizade que levei para o meu âmbito familiar. Mas muito poucas.
Voltando à RTP – onde afinal ficaste mais conhecido, achas que a tua marca de
serviço público te impediu ou impede de trabalhar nas televisões privadas?
Sim, acho. Essa é a minha marca e, de facto, ainda não fui convidado para uma televisão
comercial. Não que as privadas estejam dispensadas de utilidade publica (veja-se o caso
da “Sic/Notícias”) mas porque ainda prevalece a ideia antiquada de que o serviço
público veste fato escuro e afasta os públicos. Nada mais errado. Deixo apenas um sinal
do que penso: o mundo mediático está em turbilhão de fim de capítulo, o que é uma boa
notícia para todos, menos para os que não se fizerem às novas estradas. E as novas
estradas, abertas pelas tecnologias, são mil oportunidades para explorar com gozo e
proveito.
Fizeste de quase tudo no Jornalismo. Já paraste?
Vou tentar fazer um programa multimédia, cuja ideia anda comigo há quatro ou cinco
anos, que resulta do melhor do meu currículo em televisão. Mais uma aposta. Mas há
mais mundo além da televisão: acabo de aceitar um convite (a minha vida profissional
continua a fazer-se por acasos…) para dirigir uma colecção de livros ligada à minha
experiência de jornalista. Também aceitei outro convite para organizar tertúlias mensais
no Casino da Figueira da Foz, transmitidas pela RDP. Continuo a organizar serões
literários mensais para a Biblioteca Municipal de Beja. Estou a escrever, sem pressas,
um livro sobre a RTP, iniciado há dois anos. Continuo a fazer o programa semanal de
rádio “Agora Acontece”, que já leva dez anos. E entreguei à editora mais um livro de
fotografia, para sair este ano. 2
Tinhas, ainda tens, o hábito de frequentar lugares da tribo jornalística, como
restaurantes, tertúlias, bares, clubes?
Sim, frequentei o bar “Snob”, da rua do Século. Sítio de encontro, tertúlia e intriga de
jornalistas e políticos, artistas e mundanos, foi meu local de paragem obrigatória, todas
as noites, durante muitos anos, depois do trabalho. Estão ali ancoradas memórias
marcantes da minha vida pessoal e profissional, como aquela que já referi. Há, de resto,
um livro editado pelos 50 anos desse bar, onde se conta muita história do jornalismo
lisboeta. Deixei de ir regularmente ao “Snob” ou a qualquer outro sítio, quando deixei
de ter o conforto de horários certos para tarefas certas. Dantes havia a peça para
escrever e entregar e, pronto, estava tudo acabado, podia-se ir ao bife da Senhora Maria
no “Snob” e por lá ficar. Mas quando as tarefas são outras, sem prazos nem horários, no
corrupio das lideranças, já não há vida para paragens certas em sítios certos.
o inicio da vida profissional, que representações fazias da importância e dos
valores do jornalismo e da “classe jornalística”?
Era, como disse, o tempo dos nobres títulos da Imprensa e pertencer-lhes representava
uma dignidade socialmente relevante. Jornalista de jornal ganhava mal, vestia mal e
tinha carro velho, mas era muito considerado nos cafés que frequentava. Pelo título do
jornal se tirava a “pinta” de quem lá trabalhava e isso era relevante nos círculos
adjacentes: um repórter do República era respeitado em meios onde um jornalista dos
clericais Voz ou ovidades não entrava. E vice-versa. Os escribas do oficioso “Diário
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da Manhã” recebiam recados directamente dos ministros, enquanto um esforçado
redactor do Diário Popular esperava dias por uma entrevista com um mero director de
serviços. Na espuma do dia-a-dia, na pequena reportagem do acidente ferroviário ou nas
entediantes viagens presidenciais pelo país, raras vezes encontrei colegas mais velhos
que correspondessem aos meus jovens e ingénuos ideais de jornalismo. A sua instrução
média andava pelo meio liceu, a cultura era escassa, os interesses e valores rondavam
demasiadamente o prato do cozido à portuguesa e as maneiras deixavam muito a
desejar. Enquanto a casta dos velhos repórteres jogava cartas, contava anedotas e
façanhas amorosas ou falava de futebol e da vida dos outros, noutros gabinetes os
redactores seniores escreviam os seus textos em silêncio e não conviviam com o resto
da “malta”. Foi o tempo das primeiras levas universitárias chegarem às redacções dos
jornais. Os mais velhos e mais iletrados tratavam-nos com uma arrogância ridícula, os
seniores ignoravam-nos – salvo excelentes excepções - e só os chefes e subchefes de
redacção nos acolhiam e davam algum aconselhamento. O que aprendi quanto às
técnicas jornalísticas (que não quanto a conteúdos) veio dessas chefias, que dedicavam
tempo e paciência aos seus estagiários. Raramente de colegas. Mas sei de jornalistas que
tiveram mais sorte do que eu.
Essa representação sociologica do jornalismo evoluiu ao longo do tempo, até hoje?
As coisas eram assim, mas tinham a virtude de serem transparentes: os jornais exibiam
cores, identidades, ideologia, quem os comprava sabia ao que ia. O vínculo editorial era
claro, não apenas em piedosos votos de qualidade jornalística, mas na manifestação dos
seus rumos e pensamento. Todos trabalhávamos sob o céu de chumbo da Censura, mas
um jornal de intervenção tentava praticar um jornalismo de intervenção e assumia-se
como tal, um jornal monárquico não o escondia de ninguém, a direita gostava de se
mostrar nas suas páginas. Ora este pluralismo transparente, que ainda hoje constitui
alicerce robusto da Imprensa anglo-saxónica de referência, desapareceu em Portugal e o
resultado é que os nossos jornais não se distinguem senão pelas marés económicas dos
seus proprietários. Este magma indiferenciado infiltrou-se, naturalmente, nas redacções.
Salvo nos escassíssimos nichos de jornalismo especializado que há na maioria dos
media portugueses (desporto, economia e política), a prática jornalística é mais o
exercício de um emprego do que uma labuta profissional de eleição. E dificilmente
poderia ser de outro modo. Os bruscos desequilíbrios do consumo tradicional da
Informação, subvertido pelas novas tecnologias, alteraram os padrões de referência que
regiam os proprietários dos média: dantes a concorrência pela qualidade, agora a
competição pelo lucro. Em consequência, o emprego tornou-se cada vez menos estável
e cada vez mais entregue a profissionais precários, sem arrojo nem tempo de
aperfeiçoamento. Na mesma linha, abandonaram-se as delegações no estrangeiro que
dantes eram providas de profissionais capazes de perceber o sítio do seu trabalho;
desapareceram as reportagens de investigação com tempo bastante de pesquisa, bem
como os jornalistas especializados em matérias que requerem acumulação de saber e
dedicação exclusiva. Enfim, um factor fatal é a pobreza da escola portuguesa, que gera
universitários com reduzidos horizontes mentais e, no final, frágeis licenciados em
jornalismo, mal preparados para pensar e para fazer. Enfim, uma série de regressões.
Mas também vejo transformações positivas: o fim da Censura; a formação académica,
politécnica ou universitária, que antes não existia; a moderna parafernália tecnológica
de apoio ao trabalho jornalístico, com ênfase para a Internet.
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a tua opinião, qual é a representação que o público hoje faz da actividade dos
jornalistas e do papel dos media na sociedade? Que peso tem o estatuto social do
jornalista?
Hoje o papel dos media na sociedade é muitíssimo mais influente do que nunca. O que a
televisão desconhece, nunca existiu; os três poderes instituídos exercem-se através dos
média, ou deixam de ser poder; a escola vê-se cerceada pelos valores mediáticos e
deixa-se subjugar por eles. Apesar do enorme poder da média, sinto que o grande
público não tem pelos jornalistas o apreço e até o respeito que tinha há 40 anos. Porque
dantes liam-se mais jornais e a palavra tinha valor maior do que hoje? Porque hoje a
oferta de grande consumo é sobretudo a do sensacionalismo e da Imprensa de
escândalos, nada abonatória do jornalismo? Porque o peso do jornalismo televisivo,
mais superficial e espectacular, como é próprio deste medium, derroga a excelência do
jornalismo de causas e da própria narrativa jornalística?
Em meu entender, nos tempos de hoje a profissão tem menos importância social do que
este ou aquele profissional que se notabiliza. Ou seja, o chamado estatuto social da
profissão é menos relevante do que a visibilidade individual de alguns dos seus
protagonistas. Um apresentador de telejornal, competente ou não, tem mais estatuto
social do que o melhor dos repórteres de investigação.
Consideras que foste bem pago nos primeiros anos da profissão? Mais ou menos
que os actuais jovens jornalistas? E depois, ao longo da tua carreira?
Ganhava 1750 escudos quando comecei, como estagiário, o que era manifestamente
pouco. E os salários como repórter e redactor eram apenas sofríveis. Mais tarde, com o
exercício de cargos de chefia, a minha vida financeira tornou-se mais favorável.
Como foi o teu relacionamento com as hierarquias das empresas jornalísticas? O
que é que se passou com o Saramago ?
Nunca fui um subordinado dócil nem um chefe macio, mas procurei sempre ser cordato
e cordial nas minhas relações. Tenho o meu feitio impulsivo, muitas vezes cometi
excessos, mas sempre em relação a factos e circunstâncias de trabalho, nunca em
relação a indivíduos. Tenho a obsessão do tempo, num “carpe diem” permanente, que
me torna atento aos instantes, às ideias e às pessoas. Prefiro uma discordância frontal,
mesmo dura mas serena, a um confronto áspero e desagradável. A truculência não faz
parte do meu “carpe diem”. Sei-me enérgico, mas creio-me cortês. Por isso, ainda hoje
me confrange a memória daqueles tumultuosos dias de Abril de 1975 no Diário de
otícias, regidos pelo jornalista Luís de Barros (director) e por José Saramago (directoradjunto) e que resultaram no “saneamento” de uma vintena de jornalistas. Nas vésperas
dessas inquisitórias expulsões fui chamado ao gabinete de Barros – por ironia a mesma
sala verde onde Augusto de Castro me recebera, sete anos antes – e ali solenemente
convidado a escrever uma carta a despedir-me da empresa. Que era melhor assim…
livrava-me do carimbo de “saneado”… veja lá as consequências disso em pleno
processo revolucionário… E estendia-me uma folha de papel com um texto já redigido,
à espera de assinatura. Deus ou o Diabo pegou na minha mão direita e assinei aquilo.
Mais de uma década mais tarde, no fim de uma entrevista para que eu tinha convidado o
autor do “Memorial do Convento”, perguntei-lhe, olhos nos olhos: “Acha que sou
fascista?” Ele, perplexo: “Que ideia, Pinto Coelho!” Percebi que não fazia a mais leve
ideia de que eu era o jovem apavorado que ele havia saneado nos idos de 75. Pediu-me
perdão. Aceitei, com um abraço. Até hoje.
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a RTP também não gostavas muito do Soares Louro?
Na RTP era director de Informação e tive outro desencontro, desta vez com Soares
Louro, homem fértil em artimanhas e capciosas atitudes. Ele disse um dia, numa
entrevista, ter recebido telefonemas de políticos de todos os partidos, intercedendo por
mim, já não me lembro a propósito de quê. Não sei com que intenção o afirmou e
sequer se tal aconteceu, eu que sou um empedernido céptico que nunca teve partido! A
supor que sim, a única leitura plausível é a de que terei conseguido construir uma
imagem de jornalista dialogante e tolerante. Isso sim, vai. De facto, nunca me sentei
diante de um entrevistado para o julgar, provocar ou hostilizar, embora uma moda de
arrogância tivesse medrado em certa época em Portugal, talvez numa desforra
subconsciente dos anos de ditadura. Mas a entrevista, que é uma técnica, é sobretudo a
arte maior do encontro do mensageiro com a sua fonte. Por mim, sempre fiz por utilizar
esse diálogo interpessoal com dinamismo e humildade, acutilância e cortesia. Terão
provindo disso os tais alegados telefonemas para Soares Louro? Enfim, é uma
personagem que me não é grata, mas reconheço-lhe o mérito de ter permitido o
nascimento do Segundo Canal, que veio abalar a modorra da televisão em Portugal.3
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Pinto Coelho não pôs mais na carta, mas o autor desta entrevista, chamado à colacção, sente-se
autorizado a enquadrar o episódio no contexto das vicissitudes da liberdade de Informação no período
novembrista. Designo assim o período posterior a Novembro de 1975, primeiro influenciado pelo estilo
de Mário Soares (que em matéria de política de Informação foi uma lástima) e, depois, pela alternativa
emergente do eanismo (que ensaiava os governos de iniciativa presidencial de Nobre da Costa, Mota
Pinto e Pintassilgo) num clima de confronto que acabou por conduzir à clarificação da primeira maioria
absoluta da “Aliança Democrática“ de Sá Carneiro (1980). Nos dois anos anteriores, João Soares Louro
governou a RTP , desde Março de 1978 (governo PS/CDS de Mário Soares) até Fevereiro de 1980 (saiu
após a tomada de posse de Sá Carneiro). Louro deixou na RTP um rasto de competência considerada
indiscutível (mas na História tudo é discutível) que se concretizara na modernização das instalações e do
equipamento técnico da estação e, sobretudo na fundação do Segundo Canal da RTP. O êxito retumbante
deste canal alternativo, para além de uma programação exigente, própria de um serviço público de tv,
deve-se à autonomia editorial da redacção relativamente à liderança soarista, que Louro forjara, sob a
direcção do realizador Fernando Lopes. A autonomia da Dois marcava a diferença com o Primeiro Canal,
que era o canal oficial do governo, formal e cinzento, esse sim, controlado de perto pelo mesmo Soares
Louro. Meia dúzia de grandes jornalistas de gabarito entusiasmaram-se com a possibilidade de ensaiar a
sua qualidade profissional, com liberdade nunca vista. Só mais tarde se notou que essa liberdade perante o
poder político , prudentemente gerida pela dupla Lopes/ Louro, era afinal uma liberdade muito relativa e
trazia água no bico: distanciava-se do soarismo e fortalecia a alternativa eanista, de que ambos eram
simpatizantes, como aliás os mais destacados responsáveis do canal. Com a vitória da AD (governo de Sá
Carneiro, 1980) o grupo eanista perde o pé na RTP, o Canal 2 é praticamente silenciado, os seus quadros
desaparecem ou vão para a “prateleira”. Louro cai em 01.02.1980. Segue-se o curto interregno de Cunha
Rego, que pouco fez, mas deixou uma marca indelével, definindo a RTP como “instrumento do aparelho
ideológico do Estado”. Entra Proença de Carvalho para a presidência da empresa em 18.07.1980 e leva a
peito a tese do seu antecessor. E tudo faz para desmantelar o famigerado aparelho. Esvazia a capacidade
da Direcção de Produção, desviando a fabricação de programas para produtoras independentes, a começar
pela Edipim, à qual confiou a primeira telenovela portuguesa, Vila Faia. foi produzida com meios
humanos e técnicos disponibilizados pela empresa pública). Quanto aos jornalistas, desmantela a
Informação2 e também não confia nos jornalistas do Telejornal, a maioria dos quais ainda trajava de
esquerda e não alinhava com o novo “aparelho ideológico do Estado”. Por este motivo, Proença aceita e
manda contratar uma lista de cem novos jornalistas afectos à direita, elaborada por Duarte de Figueiredo,
seu director de Informação. O plano não avançou, porque a direcção dos Recursos Humanos fez greve de
zelo, explicando timidamente que não sabia que destino dar ao corpo da redacção do Telejornal. Estes
factos evidenciavam o propósito de destruir o “aparelho ideológico” que a direita não podia controlar,
abrindo caminho à privatização do sector televisivo e dos próprios canais públicos, como se tornou claro
posteriormente. Se este era o plano, como parece, Proença não teve tempo de concretizá-lo. Em
Dezembro de 1982 via-se obrigado a deixar a RTP, por altura da demissão de Pinto Balsemão
(18.12.1982), que sucedera ao malogrado Sá Carneiro. ( A.R.)
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Foi também na RTP que te envolveste no famoso processo do “A Par e Passo” em
1981…
Como é que podias deixar passar esse assunto? Foi um caso antológico de atentado à
liberdade de informação, num tempo em que a democracia estava pouco consolidada.
Estávamos em 1981, a Informação2 tinha sido reaberta e eu chefiava o chamado
Subdepartamento de Projectos Especiais, com uma equipa muito criativa: Joaquim
Furtado, Avelino Rodrigues, Mário Lindolfo, Eduarda Pimenta e, como chefe de
redacção, o Rui Camacho. A redacção preparava um novo magazine semanal com
aquele nome. No dia da estreia, um domingo, os repórteres telefonaram-me anunciandome que, por engenhosas artimanhas, tinham conseguido um furo jornalístico: uma
entrevista com um famoso preso político das Brigadas Revolucionárias, o Carlos
Antunes, que estava no 30º dia de greve de fome no Hospital de Santa Maria, com
polícia à porta. Naturalmente que queriam que eu desse luz verde. Desejei-lhes boa
sorte e, por cortesia, informei o director dos dois canais, o jornalista Duarte Figueiredo.
Disse-me que ia falar ao presidente da RTP, que era Proença de Carvalho, porque
achava melindroso que jornalistas da televisão estatal infringissem a lei ao entrevistar
um preso sem autorização. As horas passaram e nem o meu telefone tocou nem o
director atendeu as minhas tentativas para lhe falar. Decidi, então, que a entrevista iria
para o ar, com um “background” de enquadramento, salvo se mo proibissem. E decidi
também convidar o próprio Ministro da Justiça, dr. Menères Pimentel, a vir comentar as
afirmações do preso, em directo no estúdio, o que ele imediatamente aceitou. E assim
foi feito: a entrevista passou e o Ministro comentou como entendeu. O programa foi um
sucesso. No dia seguinte, 17 de Julho, Duarte Figueiredo e Proença de Carvalho
anunciaram-me pessoalmente a minha demissão e a do chefe de redacção, Rui
Camacho, bem como a instauração de processos disciplinares a toda a equipa. Toda a
Imprensa portuguesa comentou o assunto, que viria a provocar escândalo nos grandes
jornais europeus. Entretanto, Proença de Carvalho denunciou o caso à Polícia Judiciária
que, na instrução do processo-crime, convocou o director Duarte de Figueiredo para
identificar a voz dos jornalistas na cópia do registo magnético. Passado um ano ou
quase, em 2 de Maio de 1982, sentámo-nos no banco dos réus do Tribunal da Boa Hora,
eu e o Avelino Rodrigues (conheces?). Tu eras acusado do crime material de ofender a
honra dos juízes que haviam condenado o Carlos Antunes, pois escreveras (e era facto
consumado) que o tinham condenado por autoria moral de crimes de homicídio, cujos
supostos autores materiais outro tribunal absolvera por falta de provas ; eu, na condição
de director editorial, seria conivente do teu “crime” e responsável moral. A sala estava
cheia de personalidades que eram nossas testemunhas e com inúmeros jornalistas
nacionais e estrangeiros. Afinal, a montanha pariu um rato: primeiro, o tribunal
conhecia a contestação prévia, que arrasava a acusação, por aberrante; segundo, talvez
por isso, os três juízes queixosos tinham caído em si, com o desenrolar dos meses, e em
pleno tribunal vieram declarar que não se sentiam ofendidos e que nem sequer tinham
visto o filme do programa. Não havendo ofendidos, não havia ofensa – e a causa foi
anulada por vacuidade de matéria. Não posso deixar de apontar o nome do advogado
que gratuitamente preparou a nossa defesa, o dr. Carlos Adrião Rodrigues, velho amigo
dos tempos de Lourenço Marques, onde ficou famoso pela defesa dos “Padres
Brancos”, um caso que chegou à primeira página do “Times” de Londres e a uma
alocução dominical do Papa. Quanto ao magazine, não passou da estreia. O Canal2
também não durou muito. E os jornalistas foram para a “prateleira”.
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Já agora, podes explicar como é que te silenciaram o Acontece ?
O “Acontece” durou quase dez anos, de 1994 a 2003, com o alcance cultural que,
francamente, toda a gente sabe. Acabou à maneira das ditaduras dos coronéis, por
imposição do ministro da tutela, Morais Sarmento. Ele teve o arrojo de afirmar na
Televisão que o meu programa tinha um orçamento tão elevado que sairia mais
económico oferecer uma viagem de volta ao mundo aos seus espectadores. Uma rotunda
falsidade.Tomei conhecimento disso pela rádio e pela LUSA, que me telefonaram a
pedir comentários e a quem manifestei a minha incredulidade e revolta. No dia seguinte
a SIC/Notícias convida-me a ir ao seu jornal em directo. Antes de responder, e tratandose de uma televisão concorrente, fiz o que mandam os estatutos da RTP e falei para a
minha Administração a informar do convite. Apareceu-me um administrador, cheio de
bons modos e cautelas, dizendo-me que sim, que podia ir à SIC, mas que tinha recebido
um telefonema do senhor ministro a explicar que aquilo fora um “faux-pas”, uma força
de expressão que eu não deveria levar a peito... “coisa sem importância nem significado,
percebe”? Lá fui à SIC/otícias e lá repeti o que tinha ouvido: o “Acontece” não estava
em perigo, ora essa, estava apenas de férias mas voltaria em Setembro. Não sei se o fiz
por convicção tola, se por parvoíce, se por aquilo a que os ingleses chamam “wishfull
thinking”. Mas o que é verdade é que o “Acontece” nunca mais voltou e que eu saí
semanas depois da RTP, ao fim de 23 anos. Dizem-me agora, anos volvidos, que todos
os programas culturais que se me seguiram custaram muito mais caro do que o meu; que
houve consequências visíveis na quebra de procura de livros nas livrarias do país
inteiro; que muita gente ainda recorda com apreço o meu “Acontece” e gostaria de o ver
regressar. Pode ser tudo verdade. Mas o tal ministro já não é ministro, aquela
Administração da RTP já lá não está e, mais grave que tudo, o programa foi mesmo à
vida. O fim do próximo capítulo desta telenovela já o conhecemos, enquanto perdurar o
enredo da subordinação do serviço público de radiodifusão ao poder arbitrário dos
governos do dia.
o exercício da profissão, alguma vez te sentiste pressionado por factores políticos
ou económicos ou pela entidade patronal? E como reagiste a essas pressões? E que
consequências teve a tua reacção?
Sim e várias vezes. Muitas foram as minhas prosas para o “Diário de Notícias” cortadas
pela Censura antes do 25 de Abril mas, já depois, vivi pelo menos três histórias
exemplares.Em 17 de Abril de 1975,o número 1 do “Jornal ovo” traz uma notícia na
última página anunciando a minha partida para o Vietname como enviado especial, para
cobrir a retirada das tropas norte-americanas de Hanoi. Mas não fui ao Vietname. O
director disse-me que fosse à agência de viagens levantar as passagens e sou ali
informado por telefone de que a Administração (leia-se CIP) tinha achado muito cara a
viagem. Voltei para casa, com maus presságios, que os tempos haviam de confirmar.
Foi afastado o indomável Artur Portela, entrou o astuto Proença de Carvalho e a
demitiu-se em bloco o Conselho de Redacção, de que eu fazia parte. O dinheiro manda.
Em 1977, na minha primeira noite de director-adjunto de Informação da RTP, o telefone
confidencial do meu gabinete tocou, logo no fim do telejornal. Reconheci a voz zangada
do primeiro-ministro, que queria saber quem eu era e por que é que uma dada
reportagem tinha ou não tinha sido feita. Surpreendido, novato no cargo, respondi como
soube. No dia seguinte o director, Botelho da Silva, próximo do Partido Socialista,
explicou-me que esses telefonemas poderiam ser frequentes e que era preciso estarmos
preparados porque o dr. Mário Soares às vezes tinha mau feitio. Botelho da Silva era um
bom e pacato jornalista, de quem me tornei amigo. Oriundo do “Diário Popular”, dali
trouxera um jovem jornalista da sua confiança, José Eduardo Moniz, que ninguém
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conhecia. Uma noite em que o Governo se fora reunir extraordinariamente em Braga e o
país estava mergulhado numa greve de recolha de lixo, o tal telefone confidencial tocou
no meu gabinete, a poucas horas do telejornal de fim de emissão. Era o timbre
inconfundível do secretário de Estado da Comunicação Social, Manuel Alegre, que me
anunciava ter gravado para a equipa da RTP um importante comunicado ao país, com
cerca de 12 minutos. Essa gravação (em filme, que estava a caminho do Porto para ali
ser revelado, editado e enviado por feixes hertzianos para Lisboa) teria de ser emitida
ainda nessa noite, disse-me. Respondi que os jornalistas do Porto saberiam dar o devido
tratamento noticioso ao comunicado. Peremptório, Alegre exigiu que tudo fosse emitido
na íntegra, dada a sua importância nacional. Retorqui que não aceitava essa ordem,
salvo se me chegasse do presidente da RTP. Passados poucos minutos a ordem foi-me
dada pelo próprio Edmundo Pedro, o mesmo presidente que poucas semanas antes me
convidara a entrar na casa. Cumpri a ordem, a gravação foi para o ar na íntegra, e no dia
seguinte apresentei uma carta de demissão do cargo, que foi aceite. Botelho da Silva
pouco mais durou como director. Tempos depois, era nomeado José Eduardo Moniz,
que começou aí o seu longo consulado.
A terceira história é sobre a RTP/Internacional. Quando me nomearam director de
Cooperação e Relações Internacionais da RTP, Portugal era o único país europeu com
forte percentagem de população emigrada, que nao disponibilizava à sua diáspora
emissões regulares de televisão por satélite. Depois de um magno encontro de televisões
em Atenas, fiz uma proposta estruturada, prontamente acolhida pela Administração de
Coelho Ribeiro: pôr de pé um canal internacional. Dedicámos ao projecto dois anos de
trabalho intenso e, quando tudo ficou pronto, o governo deu uma conferência de
Imprensa (às 12 horas de 21.02.1992) para anunciar que, no 10 de Junho seguinte,
Portugal inaugurava um canal TV destinado aos seus emigrantes e à África lusófona.
Toda a minha equipa almoçou em alegria. Mas quando cheguei ao meu gabinete tinha
recado para subir ao sr. vice-presidente, Anselmo da Costa Freitas. E o estimável senhor
comunicou-me, com ar contido, que o secretário de Estado, Marques Mendes, lhe dera
instruções para me afastar da direcção do novo canal. Acrescentou: “sabe, vêm aí
eleições… o voto dos emigrantes é importante para o PSD”. Pelo meio, tinha tido uma
conversa com o primeiro-ministro Cavaco Silva, nas suas férias em São Tomé, que eu
acho que tinha corrido bem, mas… tomei a nuvem por Juno. Enfim, outra das obras
mais conseguidas da RTP e de que fui protagonista, também se esfumou por mudança
de hierarquias: a paciente construção de uma organização que, pela primeira vez,
agrupou todas as televisões lusófonas e também a da Galiza, a expresso pedido desta.
Chamou-se OTLP – Organização das Televisões de Língua Portuguesa. Entre 1986 e
1989, depois de três magnos encontros em Portugal, Brasil e Cabo Verde reunindo as 12
televisões de língua portuguesa (cinco brasileiras, cinco africanas, a TV Galiza e a RTP)
teve estatutos aprovados, uma carteira de programas para utilização gratuita, efectuou
troca de estágios profissionais entre o Brasil, Portugal e África e preparava um serviço
de troca diária de notícias por satélite. Foi das primeiras vítimas do fim da
administração de Coelho Ribeiro. (Muito me sorri, em Fevereiro deste 2008, com uma
notícia do Público, anunciando triunfalmente o primeiro acordo “histórico” da RTP com
a TV Galiza” assinado… na véspera!)
Falemos das novas tecnologias. Em que medida a diferença tecnológica marca o
jornalismo na Rádio e na TV? Como te identificaste com a tecnologia TV? O teu
“Acontece” da RTP poderia acontecer na Rádio?
Claro que as tecnologias dominam e servem o trabalho jornalístico. Já me seria
impensável viver sem os computadores, a Internet ou o “Protools”, por exemplo. E o
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jornalismo de rádio faz-se tanto com os olhos, editando barras coloridas no computador,
como com os ouvidos nos auscultadores. Não se trata de mera questão artesanal, mas de
uma viragem total na forma de conceber o próprio trabalho, logo à partida. Planear uma
reportagem de televisão ou rádio exige ao reporter automatismos de domínio dos
equipamentos, desde a primeira recolha até à sua edição e transmissão. Mas existe uma
certa transversalidade do império tecnológico moderno, que não elimina, antes acentua,
o que cada médium tem de característico. A rádio tornou-se mais sonora e a televisão
mais visual. Assim entendidos, o meu programa televisivo “Acontece” pôde continuar
na rádio - rebaptizado de “Agora Acontece” – seguindo a mesma linha editorial, mas
em formato diferente – desde há dez anos, distribuído por 89 estações locais de Portugal
Continental, Açores, Madeira, Macau e Extremadura espanhola.
Como aprecias o papel dos Conselhos de Redacção? E as instâncias de autoregulação? E O Sindicato? És sindicalizado? Alguma vez fizeste greve?
Acredito nos conselhos de redacção, como alavancas da saúde ética e deontológica dos
órgãos de comunicação social. São entidades eleitas e, por isso, representam a alma do
grupo profissional que representam. Sou menos optimista quanto às instâncias de autoregulação, cujo processo de constituição é sempre permeável à preponderância dos mais
fortes. Sou sindicalizado desde o primeiro dia de profissão.
Falemos dos teus consumos culturais...
Leio muito e leio de tudo, por prazer-vício, mas também porque a isso obriga o meu
programa de rádio, que tem uma forte componente de actualidade editorial. Vejo menos
teatro, cinema e televisão, desde que passei a viver mais tempo no Alentejo, mas viajo
muito, dentro e fora do pais. E dedico mais tempo à fotografia, de que me não considero
um profissional, mas um amador militante e empenhado. Entre 1981 e 2006 já fiz 47
exposições individuais de fotografia e participei em 7 exposições colectivas em Portugal
Continental, Madeira, Espanha, Finlândia e Moçambique. A propósito: uma imagem
não vale por mil palavras, não senhor. Nunca conseguiria exprimir isto mesmo por mil
imagens. Mas pobre é a imagem que precisa de se socorrer da palavra para se exprimir.
Ao longo da tua vida terás eventualmente mudado de posição ideológica
esquerda>direita ou vice-versa ?
Não havia militâncias políticas no meu ambiente de infância e adolescência
moçambicanas, embora meu pai fosse um católico conservador. A vinda para Portugal e
para a universidade foram o meu primeiro mergulho na consciência da política, que me
deslumbrou pela novidade, mas não me seduziu para nenhuma prática. Quando o
serviço militar obrigatório me chegou, encarei-o com frieza, sem o entusiasmo nem a
revolta de qualquer ideologia. Coube-me como destino de guerra a terra das minhas
raízes, Moçambique, e, tendo já então carteira profissional de jornalista, fui colocado no
Gabinete de Imprensa do Comando-Chefe das Forças Armadas, em Nampula. Ali
conheci o general Kaúlza de Arriaga, comandante-chefe, de quem guardo memória de
homem inteligente e determinado, mas com quem me terei encontrado talvez umas duas
ou três vezes. Apenas isso, não só pela hierarquia que me separava dele (eu era um
simples alferes miliciano) mas sobretudo porque sofri um acidente grave que me atirou
para hospitais militares durante quase um ano. No entanto, porque a minha missão era
receber e acompanhar jornalistas de “visita” à guerra, essa exposição levou a que, anos
mais tarde, na independência de Moçambique, alguns amigos de infância, que eram
então ministros do novo país, me tivessem jurado vingança de morte, alegando que eu
fora “ajudante de Kaúlza”. Esse boato teve o fim que merecia. Em 1983 pude
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tranquilamente voltar a Moçambique, para o que considero um dos mais delicados
trabalhos da minha vida de jornalista: entrevistar para a RTP o presidente Samora
Machel, nas vésperas da sua primeira visita de Estado a Portugal. Justamente um dos
dirigentes da Frelimo que me havia jurado pela pele no dia da independência, José Luís
Cabaço, hoje meu amigo fraterno, era então Ministro da Informação e recebeu-me com
a maior cordialidade. A situação era de melindre: a vinda oficial de Samora Machel
estava a despertar uma explosão de azedume entre os milhares de portugueses
“retornados” de Moçambique nas condições deploráveis em que se fez a
descolonização. Começaram a passar palavra para uma grande manifestação de repúdio,
no aeroporto de Lisboa, à chegada do Presidente moçambicano. Logo Maputo fez saber
que, se tal acontecesse, Machel não sairia do avião e regressaria imediatamente ao seu
país. Seria um fracasso para anos de porfiado trabalho diplomático, penosas tentativas
de aproximação entre duas partes ainda mal feridas por ressentimentos e desconfianças.
É que também no lado moçambicano essa visita era muito mal vista pelos sectores mais
ortodoxos da Frelimo, que não perderiam o ensejo para tornar ainda mais espessas as
relações entre os dois países. Lisboa apostou, então, num tudo ou nada: desafiar os
radicais de ambos os lados e confrontá-los com a própria personalidade de Machel. na
firmeza das suas convicções pela paz e concórdia, na simplicidade sedutora do seu
discurso, até na sua flagrante emotividade. Com esse objectivo, Lisboa propôs a Maputo
uma grande entrevista na televisão portuguesa. Seria Machel, ele próprio, a tudo
conquistar ou a tudo deitar a perder. Maputo aceitou. E fui eu o entrevistador escolhido
para essa tarefa. A RTP emitiu na íntegra a entrevista, com 22 minutos, logo a seguir ao
telejornal. No dia 7 de Outubro o Presidente de Moçambique chegou a Lisboa e não houve
qualquer manifestação hostil. A visita de Estado foi um êxito. Portugal e Maputo puderam ver
as imagens de Samora Moisés Machel comovido junto ao túmulo de Luís Vaz de Camões.
Também eu me comovi, por ter contribuído, a meu modo, para o reencontro entre Moçambique
e Portugal.
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