1 O USO DE ALGEMAS O emprego de algemas contra alguém é a

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1 O USO DE ALGEMAS O emprego de algemas contra alguém é a
O USO DE ALGEMAS
O emprego de algemas contra alguém é a manifestação mais inequívoca da
perda do seu status libertatis. O algemado está preso, disso não há a menor dúvida
e como a prisão está ligada à pratica de crime, supõe-se que o algemado praticou
algum delito, ou está sendo acusado de praticá-lo. A condição de preso e
algemado, ainda mais que esse ato convive com a exposição à curiosidade pública,
tem intenso poder de ofender a auto-estima e a dignidade individual, acarretando
no peso um enorme sentimento de opressão. Diferentemente do encarceramento,
onde o indivíduo é colocado entre iguais, entre indivíduos que sofrem a mesma
sina, as algemas são especialmente utilizadas em público, à vista de cidadãos livres
e são condição para a circulação de presos. Sua utilização indiscriminada faz parte
da rotina da polícia, muitas vezes com a única função de se prestar ao desafogo de
rancores e punições pessoais, pois o uso de algemas sempre esteve ligado ao
criminoso contumaz perigoso, ao indivíduo cujas mãos estejam livres, logo serão
utilizadas para cometer novos delitos, de maneira que o algemado ou é visto como
um sujeito a respeito de quem se costuma desejar que volte o mais breve possível
para o interior de sua cela, ou então suscita sentimento de compaixão e pena.
Enfim, ninguém é indiferente à vista de algemas. Algemas são um estigma, um
sinal infamante. Algemar, portanto, humilha e importa em verdadeira antecipação
de pena e expiação pública de culpa aparente 1 . A importância do assunto já foi
objeto de referência específica a nível internacional, integrando as Regras
Mínimas baixadas pela Organização das Nações Unidas – ONU, sobre o direito
das pessoas presas. Assim está redigido o seu art. 33: : “art. 33 – os meios de
coerção, como algemas, correntes, grilhões, camisas-de-força, nunca deverão ser
aplicados como sanções. Tampouco deverão empregar-se correntes e grilhões
como meios de coerção, isto é, algemas e camisas-de-força só poderão ser
utilizadas nos seguintes casos: a) como medida de precaução contra a fuga,
durante uma transferência, devendo ser registrados quando o recluso comparecer
perante uma autoridade judicial ou administrativa; b) por motivos de saúde,
segundo indicação do médico; c) por ordem do diretor, se os demais meios de
dominar o recluso tiverem fracassado, com o objetivo de impedir que este cause
danos a si mesmo ou deverá consultar urgentemente o médico, e informar a
autoridade administrativa superior.” 2 De notar que aquele organismo
internacional já apontava a necessidade de eliminar a arbitrariedade na ação
policial brasileira em realizar prisões ilegais, consoante o Relatório Especial
Sobre a Tortura, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, nos seguintes
termos: “ O abuso, por parte da polícia, do poder de prisão de qualquer suspeito
sem ordem judicial, em caso de flagrante delito, deveria ser cessado
1
Como dizia CESARE BECCARIA, “...a infâmia, assim como tudo o que fica na dependência das
opiniões populares, se liga mais à forma do que ao fundo.” (Dos Delitos e das Penas, Martin
Claret, p. 27).
2
ODIR ODILON PINTO DA SILVA e JOSÉ ANTONIO PAGANELLA BOSCHI, “Comentários
à Lei de Execução Penal”, Aide, p. 224.
1
imediatamente.”3 Também atento ao problema, o S.T.J., no melhor acórdão que
conhecemos a respeito da matéria, assentou que “a imposição do uso de algemas
ao réu, por constituir afetação aos princípios de respeito à integridade física e
moral do cidadão, deve ser aferida de modo cauteloso e diante de elementos
concretos que demonstrem a periculosidade do acusado” 4 .
Diversos princípios constitucionais guardam estreita relação com a matéria
em análise. A Constituição da República estabelece em seus Princípios
Fundamentais a proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III),
assim como, no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I, prevê
que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante
(art. 5º, III), assegura aos presos o respeito à integridade física e moral ( art. 5º,
XLIX), e consagra a presunção de inocência (art. 5º, LIV). Da mesma forma a
Convenção Americana Sobre direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa
Rica (promulgada pelo Decreto n. 678/92), do qual o Brasil é um dos signatários e
que entre nós goza de estatura constitucional por tratar de direitos fundamentais,
prevê em seu art. 5º a proteção à integridade física, psíquica e moral do cidadão,
assim como proíbe tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Como
conciliar, então, o uso de algemas pelas autoridades administrativas e judiciais e ao
mesmo tempo resguardar as garantias estabelecidas na Constituição? A questão
pode ser também colocada de outra forma: como permitir o uso de algemas se esse
uso pode constituir ele próprio uma conduta criminosa, uma vez de que o uso
indevido desse instrumento caracteriza o delito de abuso de autoridade , previsto
nos arts. 3º, letra i e 4º, letra b, da lei 4.898/64 e pode mesmo constituir o crime
de tortura, se o uso de algemas se enquadrar nas hipóteses do art. 1º, II e § 1º, da
Lei 9.455/97, ou seja, se a imposição das algemas visar deliberadamente o
sofrimento físico ou mental da pessoa. 5
A necessidade de regular o emprego de algemas não passou desapercebida
ao legislador infraconstitucional, tanto que a Lei 7.210/84 (Lei de Execução
Penal) estabeleceu em seu art. 199 que o emprego de algemas será disciplinado
por decreto federal. O propósito da lei de Execução Penal ao determinar a
regulamentação do uso de algemas “em caráter geral e uniforme” (Exposição de
3
Ao que o Governo Brasileiro comentou oficialmente em 27/04/01: “No âmbito do projeto
SENASP/Cruz Vermelha Internacional/Embaixada do Reino Unido, foram capacitados em direitos
humanos 910 policiais brasileiros, num custo total de R$ 451.000,00. Em 2001, existe a previsão
de treinamento de 390 policiais, a um custo estimado de R$ 576.000,00.” (Dados obtidos no site do
Ministério das Relações Exteriores).
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RECURSO PROVIDO. Órgão : SEXTA TURMA Relator : WILLIAM PATTERSON
Classe : RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS Número : 5663 UF : SP Data da
decisão : 19/08/1996
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“art. 1º - Constitui crime de tortura: “... II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou
autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental,
como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena: reclusão, de
2(dois) a 8 (oito) anos.”
“§ 1º - na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a
sofrimento físico ou mental, por intermédio de prática de ato não previsto em lei ou não resultante
de medida legal.”
2
Motivos, n. 177), de fato, vinha ao encontro justamente dessas regras
internacionais sobre o direito de pessoas presas, que são fonte inspiradora da LEP,
como se vê do item n. 41, da sua Exposição de Motivos. Entretanto, essa
regulamentação não veio até a presente data 6 . Apesar disso, o art. 284, do Código
de Processo Penal (nas Disposições Gerais do Capítulo I, Título IX, que trata da
prisão e da liberdade provisória), trazia já importante contribuição ao tema, ao
dispor, de maneira geral, que “não será permitido o emprego de força, salvo a
indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”,
entendendo-se o uso de algemas como uma visível demonstração de uso contínuo
de força. Da mesma forma, o art. 292, do mesmo Código, autoriza a utilização
dos meios necessários para defender-se ou vencer a resistência, com a advertência
de que, nesses casos, “se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas”.
O Decreto-Lei n. 1.002/69 (Código de Processo Penal Militar) trata
especificamente do emprego de algemas, em seu art. 234, e § 1º, somente
autorizando o uso de força quando indispensável, nas hipóteses de desobediência,
resistência ou tentativa de fuga, e recomenda evitar-se o uso de algemas, sempre
que não houver perigo de fuga ou de agressão por parte do preso. 7 A infâmia que
se liga à imposição desse artefato não passou desapercebida ao legislador, tanto
que o mesmo Código relacionou certas pessoas que em “nenhuma hipótese”
poderão ser algemadas 8 (embora fosse preferível que não o tivesse feito, pois o
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No julgamento da Revisão Criminal n. 54.636-6 – da comarca de Andradas/MG, assim
pronuncionou-se o relator, des. Sebastião Rosenburg acerca da ausência de regulamentação e do
abuso da polícia no uso das algemas: “Sr. Presidente. Também não conheço do pedido, porque, na
verdade, a sentença não transitou em julgado com relação ao peticionário.
Tenho, nesse processo, entretanto, duas ponderações a fazer.
uma no que pertine à Lei 9.099/95 que trata dos Juizados Especiais. Talvez, seja caso de
oferecimento de acordo ou não, ou de suspensão do fornecimento, questão que poderá ser analisada
e discutida no juízo monocrático, quando do retorno dos autos.
A segunda ponderação que gostaria de fazer é de denunciar, mais uma vez, a necessidade de
legislação regulamentando o uso de algemas.
Em quase todos os países civilizados do mundo existe essa regulamentação. No Brasil, entretanto,
especialmente a Polícia Civil, tem por norma algemar indivíduos antes sequer de identificá-los e,
muitas vezes, o uso precipitado de algemas faz originar processos como estes. A reação do civil
indignado com a arbitrariedade no uso daqueles apetrechos policiais.
É preciso que o Congresso, que tanto tem falado e muito pouco tem feito a respeito do direito do
homem e dos cidadãos, regulamente, no Brasil, o uso das algemas, pela polícia, sob pena de
continuarmos ainda, e por muito tempo, sendo um país de 3º ou 4º mundo. Participaram do
julgamento os Desembargadores Edelberto Santiago, José Loyola, Odilon Ferreira, Kelsen
Carneiro, João Quintino, Sérgio Resende, Zulman Galdino, Alves de Andrade, Mercêdo Moreira,
Gomes Lima e José Arthur.
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“Art. 234 - O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência,
resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os
meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do
ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas.
“§ 1º - O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de
agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242”.
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“Art. 242 - Serão recolhidos a quartel ou a prisão especial, à disposição da autoridade
competente, quando sujeitos a prisão, antes de condenação irrecorrível:
3
subjetivismo da escolha poderia abranger muitas outras categorias profissionais e
pessoas, como policiais em geral, professores, profissionais liberais, comerciantes,
empresários, jornalistas, e assim sucessivamente, até sobrarem apenas os
analfabetos, desempregados e assalariados, ou seja, aqueles para os quais o
exercício da cidadania é apenas uma promessa). Também a Lei n. 9.537/97 (que
dispõe sobre a Segurança do Tráfego Aquaviário em Águas Sobre Jurisdição
Nacional) prevê que para garantir a segurança das pessoas e da embarcação e
quando for imprescindível, o comandante do barco poderá algemar a pessoa. 9
Igual medida deve-se ter como as inerentes ao poder do comandante de aeronaves
(Lei n. 7.565/86 – Código Brasileiro de Aeronáutica). 10
Pelo que ficou exposto até aqui, podemos concluir que o emprego de
algemas, em nenhuma hipótese, pode ter o caráter puramente punitivo, e portanto,
negativo, de imposição de sofrimento moral. Pelo contrário, por importar em
supressão de direito fundamental e garantia constitucional individual do cidadão, o
ato de algemar deve estar jungido pela necessidade. E além disso, deve encontrar
respaldo no ordenamento jurídico. Queremos dizer que há, em princípio, o direito
subjetivo do cidadão de não ser algemado. Não é inadequada, pensamos, a
analogia da utilização desses artefatos com a hipótese da prisão preventiva,
regulada pelo art. 312, do CPP e que, como é bem sabido, também deve exercer
uma função necessária na instrução criminal, e é cabível apenas nos casos
especificamente mencionados no aludido dispositivo legal, sob pena de constituirse em violação à liberdade de ir e vir sanável por via de habeas corpus.
a) os ministros de Estado;
b) os governadores ou interventores de Estados, ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus
respectivos secretários e chefes de Polícia;
c) os membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas
dos Estados;
d) os cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis reconhecidas em lei;
e) os magistrados;
f) os oficiais das Forças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares, inclusive os
da reserva, remunerada ou não, e os reformados;
g) os oficiais da Marinha Mercante Nacional;
h) os diplomados por faculdade ou instituto superior de ensino nacional;
i) os ministros do Tribunal de Contas;
j) os ministros de confissão religiosa.
Parágrafo único. A prisão de praças especiais e a de graduados atenderá aos respectivos graus de
hierarquia.”
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“Art. 10 - O Comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas,
da embarcação e da carga transportada, pode: ... III - ordenar a detenção de pessoa em camarote ou
alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade
física de terceiros, da embarcação ou da carga”.
10
“Art. 168 - Durante o período de tempo previsto no Art. 167, o comandante exerce autoridade
sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo da aeronave e poderá:
I - desembarcar qualquer delas, desde que comprometa a boa ordem, a disciplina, ponha em risco a
segurança da aeronave ou das pessoas e bens a bordo;
II - tomar as medidas necessárias à proteção da aeronave e das pessoas ou bens transportados;”.
4
Tendo presentes essas considerações, podemos estabelecer, em primeiro
lugar, o emprego de algemas deve estar vinculado basicamente à prática de crime,
como tal definido no nosso Código Penal ou em legislação extravagante, ou, de
forma excepcional, em situações que não constituam delito, e que estejam
previstas expressamente na lei, visando precipuamente o aspecto da segurança
(incidentes ocorridos em aeronaves ou embarcações). É indevido algemar o
cidadão pela prática de contravenção, principalmente pela escassa ofensividade e
rigor punitivo das figuras típicas previstas no Decreto n. 3.688/41 (Lei das
Contravenções Penais), que se situam próximos das meras infrações
administrativas. Da mesma forma não é mais admissível a utilização de algemas
nas hipóteses da prática de delitos hoje considerados de menor ofensivo, nos
termos da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) e Lei n.
10.259/01 (Lei dos Juizados Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal),
porque o agente flagrado em sua prática não adquire a condição de preso. Lavra-se
apenas o termo circunstanciado – em substituição ao auto de prisão em flagrante se ele assumir o compromisso perante a autoridade policial de comparecer ao
Juizado (art. 69 e parágrafo único da Lei 9.099/95). Desta forma nos casos de
infrações a que a lei cominar pena máxima não superior a 02 anos, é indevido o
emprego de algemas no encaminhamento do agente até a presença da autoridade
policial. O indivíduo colhido na prática de qualquer dos crimes englobados por
essa legislação, repetimos, não perde seu status de liberdade e a sua prisão
decorrerá exclusivamente de ato de sua vontade livre, não aceitando a condição
prevista na lei, no primeiro ato da fase preliminar do procedimento. Em síntese,
condição sine qua non para o emprego de algemas é prática de crime a que a lei
preveja pena máxima superior a 02 anos, porque somente nesse caso o cidadão
pode ser submetido à prisão. Se não pode ser preso, não pode ser algemado. É de
se repisar que os agentes policiais não podem algemar o autor da infração para
encaminhá-lo até a delegacia, como é prática comum e retirá-las no interior do
prédio. Não cabe à polícia efetuar esse julgamento preliminar, pois é justamente
dessa arbitrariedade que decorrem os piores danos à imagem e dignidade do preso.
É importante que se perceba que essa prática põe de pernas para o ar as regras
mais elementares de um Estado de Direito, pois quem define o estado de prisão do
autor desses crimes é o próprio agente, entretanto o policial que o abordou já
definira adrede essa condição publicamente.
Mas não basta que a situação se encaixe nos casos acima especificados. É
imprescindível que o autor haja sido surpreendido na prática do crime, tenha
acabado de cometê-lo ou depois de perseguição pela autoridade policial ou pelo
ofendido (art. 302 e incisos, do Código de Processo Penal), ou seja, é preciso
que haja prisão em flagrante, ou que a prisão decorra do cumprimento de mandado
judicial de decretação de prisão preventiva (art. 312, do mesmo Código). Fora
dessas hipóteses, a prisão é ilegal, assim como os meios empregados para efetivála.
Estando legalmente preso o cidadão, o uso de algemas em transporte,
remoção ou qualquer movimentação de sua pessoa fora dos muros do prisão, é um
imperativo de garantia contra fugas e em favor da ordem e segurança públicas,
5
podendo o desleixo baseado em suposta confiança no preso importar em
responsabilidade penal do seu responsável11 . Nesse sentido vemos as algemas
como instrumento de trabalho perfeitamente adequado ao tratamento dessas
hipóteses12 .
No âmbito da atividade policial, a única exceção a essa regra reside na
hipótese da resistência, evidentemente não pela pena irrogada a essa figura penal
(art. 329, do CP), mas pela característica de importar em oposição à execução de
ato legal, mediante violência ou ameaça (v. arts. 284 e 289, do CPP), de forma
que o emprego de algemas aqui passa a ser condição da execução desse ato. Essa
exceção tem inteiro cabimento, mesmo nos casos de prática de crimes de menor
potencial ofensivo, desde que o agente recuse-se a acompanhar a autoridade
policial até a delegacia para a lavratura do termo circunstanciado e início da fase
preliminar do procedimento, pois esse comparecimento e compromisso lá tomado
são justamente as condições da não lavratura do auto de prisão em flagrante.
Perante a autoridade judiciária, nos processos criminais, permite-se o uso
de algemas no acusado, tanto em seu interrogatório quanto nos demais atos
instrutórios, entretanto, condicionado esse emprego à real necessidade da medida,
para manter a ordem ou a segurança 13 , sob pena de constituir-se em
constrangimento ilegal. Na verdade, em juízo, esse uso deve ser empregado com
bastante moderação, pois é justamente perante o magistrado que o acusado vai
11
Nesse sentido, decisão do Tribunal de Alçada do Paraná, que condenou carcereiro pelo crime do
art. 351, do CP, por conduzir preso sem algemas ao forum, possibilitando sua fuga (Ap. n.
68710100, rel. Juiz Maranhão de Loyola, em 04/08/94 – SaraivaData – JUIS).
12
Assim, decisão do TJDF, rel. des. Lécio R. Da Silva.
13
Nesse sentido é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: RHC n. 56465, de 05/09/1978,
rel. Min. Cordeiro Guerra, com a seguinte ementa: “Não constitui constrangimento ilegal o uso de
algemas por parte do acusado durante a instrução criminal, se necessário à ordem dos trabalhos e
à segurança de testemunhas e como meio de prevenir a fuga do preso.” No mesmo sentido, HC
71195/SP, rel. Min. Francisco Resek, de 25/10/1994, com a seguinte ementa: “ I - No concurso
material de crimes considera-se, para efeito de protesto por novo júri, cada uma das penas e não
sua soma. II - O uso de algemas durante o julgamento não constitui constrangimento ilegal se
essencial a ordem dos trabalhos e a segurança dos presentes. Habeas corpus indeferido.” Do
TJRS, vem a seguinte orientação: “Habeas Corpus.Tribunal do Júri. Uso de algemas durante o
julgamento. A regra prevista no art. 284, do Código de Processo penal é a da não permissão do
emprego da força, somente ocorrendo, se indispensável, eno caso, o presidente da sessão que
detém o poder de polícia, poderá determinar a requisição do reforço policial para viabilizar o
julgamento. O uso de algemas poderá ocorrer num segundo momento, e justificadamente, sempre
que exigir o caso concreto, objetivando a segurança de todos e a ordem dos trabalhos.
Constrangimento ilegal. Há constrangimento ilegal, no uso de algemas, quando as condições do
réu não oferecem situação de efetiva periculosidade, estando escoltado, existindo policiais fazendo
o serviço de revista nas demais pessoas que ingressam no local do julgamento, não se constatando
qualquer animosidade por parte do público, inclusive havendo possibilidade de ser requisitado
reforço policial. A repercussão do fato e a comoção da comunidade, em si mesmas, não se
constituem motivos para a utilização de algemas, medida excepcional e drástica, e que pode
ofender a dignidade da pessoa humana, e até interferir negativamente na concepção dos jurados,
no momento de decidir. Concedida a ordem.” (Habeas Corpus n. 70001561562 – Primeira Câmara
Criminal, Des. Silvestre Ayres Torres, j. em 27/09/00).
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exercitar sua cidadania, freqüentemente na única ocasião em que lhe permite sua
condição social14 , não se justificando o excesso de zelo ou indiferença manifestada
muitas vezes, que implica em manter-se algemados os réus durante as audiências
como rotina de trabalho.
Em conclusão, temos que, não obstante a ausência de uma disposição
genérica específica relativa ao emprego de algemas, cremos ser possível extrair do
nosso ordenamento jurídico, com segurança, a orientação necessária para
estabelecer as regras em que essa utilização pode ocorrer sem importar em
violação da integridade moral do cidadão:
a) o preso tem o direito subjetivo de que o emprego de algemas contra si
nunca tenha o propósito de causar uma afronta à sua dignidade de
pessoa humana;
b) o uso é restrito a presos em flagrante delito por crimes cujas penas não
estejam abrangidas pelas Lei 9.099/95 e 10.259/01 ou àqueles que
tiveram sua prisão preventiva decretada;
c) em nenhum caso se usarão algemas quando tal medida não se
apresentar como concretamente indispensável à segurança dos agentes
públicos, da coletividade ou do próprio preso (assim entendido o
emprego nos casos de transporte e remoção de presos);
d) finalmente, é permitido o uso de algemas nos casos de resistência à
prisão legal (mesmo nos casos das infrações consideradas de menor
potencial ofensivo, se resistir o autor do fato a acompanhar o agente
policial à presença da respectiva autoridade, para a fase inicial do
procedimento).
HÉLIO DAVID VIEIRA FIGUEIRA DOS SANTOS
JUIZ DE DIREITO DA VARA CRIMINAL, INFÂNCIA E JUVENTUDE
COMARCA DE JARAGUÁ DO SUL/SC
14
CELSO LAFER, em sua obra “A Reconstrução dos Direitos Humanos – Um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt”, analisando o caso do apátrida, ao qual muito poderia se
assemelhar o estigmatizado do sistema penal, assim se expressa: “Com efeito, o apátrida, sem
direito à residência ou ao trabalho, vivia permanentemente à margem da lei, transgredindo a ordem
jurídica do país em que se encontrava. Sem cometer crimes, estava sempre sujeito a ir para a
cadeia, pois a sua mera presença e existência num território nacional constituía uma anomalia. Por
isso, a única maneira do apátrida estabelecer um vínculo apropriado com a ordem jurídica nacional
era efetivamente cometer um crime. Um crime – por exemplo, um pequeno furto – passava a ser,
observa Hannah arendt, uma forma paradoxal de recuperar certa igualdade humana, pois enquanto
criminoso, num estado de direito, mesmo um apátrida via-se tratado como qualquer pessoa nas
mesmas condições.” (Ed. Companhia das Letras, pág. 147).
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