Quando se é pequenino também se deprime
Transcrição
Quando se é pequenino também se deprime
OFICINA DE PSICOLOGIA Quando se é pequenino também se deprime Rita Castanheira Alves Oficina de Psicologia 2012 R. PINHEIRO CHAGAS, 48, 4º ANDAR Setembro 2012 QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Artigo da 3ª Edição É com grande entusiasmo que lhe apresentamos este Caso da Revista Casos&Casos da Oficina de Psicologia. Temos trabalhado no sentido de ir ao encontro das necessidades de quem nos lê regularmente. Assim, isolámos agora os artigos da revista para que possa escolher apenas aqueles que realmente quer ler, sem ter de adquirir toda a revista. Naturalmente, se achar interessante a leitura deste artigo, poderá comprar a revista Casos&Casos na íntegra. Se nos tem acompanhado já sabe que esta publicação resulta de um intenso contributo dos terapeutas da Oficina de Psicologia, para levarem até ao leitor as suas reflexões clínicas a propósito de casos reais que acompanham. As características sócio-demográficas de cada caso foram cuidadosamente alterados para que não fosse possível identificar pessoas. O objectivo desta publicação é dar a conhecer, de uma forma resumida e fluida, as muitas formas de actuar em psicoterapia – os diferentes olhares que advêm de terapeutas com percursos académicos e de vida diferentes, as diversas correntes teóricas e, sobretudo, as variadas e infinitas interacções que se entretecem entre um cliente e um clínico – duas pessoas movidas pelo mesmo objectivo de mudança e de restabelecimento de bem-estar, equilíbrio e qualidade de vida. Sendo uma das missões mais importantes da Oficina de Psicologia a da divulgação de temas de Psicologia Clínica, desmitificando ideias desactualizadas e actuando ao nível da prevenção em saúde mental junto do grande público, e promovendo o conhecimento com áreas científicas mais recentes junto dos profissionais de saúde mental, esforçamo-nos por manter uma fórmula de escrita que possa continuar a ser do interesse tanto do profissional em saúde mental, como do leigo. É expressamente proibida a cópia ou publicação não autorizada da totalidade ou partes desta publicação, integralmente redigida por elementos da Oficina de Psicologia, e apenas existente em formato digital, de distribuição exclusiva pela Mindkiddo – Oficina de Psicologia, Lda. A sua reprodução não autorizada seria, acima de tudo, uma profunda falta de respeito para com o enorme esforço de toda uma equipa cujo único objectivo é fazer chegar até si o que de melhor a Psicologia Clínica tem para lhe oferecer. Setembro, 2012 QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Setembro 2102 Quando se é pequenino também se deprime Rita Castanheira Alves Resumo Uma intervenção psicoterapêutica de sucesso que conseguiu um equilíbrio entre uma abordagem sistémica e um espaço terapêutico privilegiado e libertador. Aborda um caso de depressão infantil cuja intervenção reflecte uma visão integrativa do ponto de vista teórico. Além de uma forte aliança terapêutica que contribui para o sucesso atingido destaca-se ainda o forte envolvimento dos agentes educativos: pais e professora. Palavras-chave Depressão infantil, agentes educativos, aliança terapêutica, ludoterapia, sistema de fichas 3 Mindkiddo –Oficina de Psicologia, Lda | Rua Pinheiro Chagas, nº 48, 4º andar, 1050-179 Lisboa www.oficinadepsicologia.com | [email protected] | 210 999 870 Setembro 2012 QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Introdução Nesta edição vou apresentar um caso de depressão infantil, útil para os clínicos que desenvolvam a sua prática psicoterapêutica com crianças. A escolha deste caso prendeu-se não só com a problemática, pela mesma ser recorrente nas crianças que acompanho, mas especialmente pelas dificuldades identificadas e problemáticas a trabalhar, as quais permitiram uma intervenção psicoterapêutica integrativa do ponto de vista teórico e que envolveu não só a criança, como os seus agentes educativos. Quero partilhá-lo pelas seguintes razões: em primeiro lugar, por ter permitido o uso de diferentes abordagens teóricas e de como é possível conjugá-las e todas elas serem positivas e contribuírem para alcançar os objectivos terapêuticos; em segundo lugar, as técnicas escolhidas terem tido uma aplicação de sucesso e adequada que merece ser partilhada contribuindo para possíveis trabalhos terapêuticos de outros clínicos; em terceiro lugar, pelo envolvimento dos pais e da educadora ter sido excepcional e contribuir fortemente para o sucesso terapêutico; por fim, e transversal a qualquer intervenção psicoterapêutica de sucesso, o poder da aliança terapêutica como factor essencial para o cumprimento dos objectivos terapêuticos e conquista da felicidade e bem-estar da criança. A Depressão Infantil... Os problemas interiorizados, os quais incluem emoções como a tristeza, a culpa, os medos, e os quais poderão ser típicos de depressão ou ansiedade (Zahn-Waxler, Klimes-Dougan & Slattery citados por Coyne & Thompson, 2011) não foram até agora objecto de grande atenção empírica no que se refere às crianças em idade pré-escolar por diferentes motivos: falta de inclusão em questionários epidemiológicos, indisponibilidade de ferramentas de avaliação sensíveis em termos de desenvolvimento (Bayer, Sanson & Hemphill; Cicchetti e Toth citados por Coyne e Thompson, 2011) e também pela ideia de que os mais novos, como são as crianças em idade pré-escolar, não experienciam perturbações internas significativas como a depressão (Sterba, Prinstein & Cox citados por Coyne & Thompson, 2011). Só recentemente se reconheceu a depressão em idade pré-escolar, ou seja em crianças dos 3 aos 6 anos de idade, a qual apresenta uma prevalência muito semelhante à depressão em idade escolar. Manifesta-se como uma constelação de sintomas estáveis e específicos, que QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Setembro 2102 se distingue de outras perturbações mentais precoces. Em termos biológicos, é semelhante à conhecida Perturbação Depressiva Major, a qual em crianças pré-pubertárias parece ter uma incidência semelhante em rapazes e em raparigas e as taxas de prevalência parecem não estar relacionadas com a raça, educação, nível salarial ou estado civil, segundo o DSMIV-TR – Manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais. A depressão infantil apresenta sintomas semelhantes à depressão no adulto mas outros sintomas específicos como: manifestações súbitas de raiva, agressividade; isolamento; sentimento de solidão; sentimento de inferioridade; preocupação; choro fácil; alterações no padrão de sono; sentimento de ser ridicularizado pelos outros; diminuição no rendimento escolar; ausência de interesse por qualquer actividade; postura cabisbaixa, apática, triste; dificuldade em divertir-se; somatizações (dores de barriga, cabeça, vómitos...); falta de vontade para viver; compulsões; confusão mental, falta de orientação temporal e espacial; olhar vazio, apático; desregulação do apetite; sentimentos de culpa. Apresenta frequentemente comorbilidade com a perturbação da hiperactividade com défice de atenção (PHDA), perturbações da ansiedade, dificuldades de aprendizagem (Meere, Borger, Pirila e Sallee, 2011). Em termos de intervenção psicoterapêutica, os autores dedicados ao tema não reconhecem nenhuma intervenção específica validada para a depressão infantil em idade pré-escolar. Existem diversas psicoterapias estruturadas para outras perturbações em crianças em idade pré-escolar, as quais não foram testadas ou adaptadas especificamente para a depressão préescolar. Entre as abordagens psicoterapêuticas utilizadas em idade pré-escolar distingue-se: a ludoterapia e diversas intervenções cognitivas e comportamentais, as quais são usadas para diversas problemáticas mas não têm validade específica para a depressão em idade préescolar. Técnicas como a modificação das auto-afirmações, treino de auto-controlo, treino de desenvolvimento de resolução de problemas mostraram ter sucesso com crianças pequenas, mas não existem dados empíricos da sua aplicação com crianças até aos 5 anos. 5 Mindkiddo –Oficina de Psicologia, Lda | Rua Pinheiro Chagas, nº 48, 4º andar, 1050-179 Lisboa www.oficinadepsicologia.com | [email protected] | 210 999 870 Setembro 2012 QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME A literatura diz-nos que em idades precoces existe a necessidade de uma intervenção não só com a criança mas também com a díade pais-criança em diferentes perturbações mentais em idade pré-escolar (Lenze, Pautsch e Luby, 2011). A ludoterapia como uma terapia reparadora... A ludoterapia é uma técnica onde o jogo é o meio natural de auto expressão da criança, dando assim, uma oportunidade à criança de expressar os seus sentimentos e dificuldades através do brincar. Ao brincar, a criança entra no seu próprio mundo experimenta situações e aprende com maior segurança a lidar com seus sentimentos. Assim, tudo o que a criança faz ou diz durante as sessões terapêuticas deve ser tido em conta pois é a sua forma de comunicar ao terapeuta como se vê a si mesma, como vê o mundo e os outros. Na ludoterapia o papel do terapeuta é observar a criança na sala e tentar compreender o que ela lhe está a tentar transmitir ( Kottman,2001). A ludoterapia começou a ser usada em Inglaterra nos anos 50. Estudantes da Psicanálise Freudiana como Ana Freud, Melanie Klein, Donald Winnicott e Margaret Lowenfeld desenvolveram, cada um à sua maneira, teorias e práticas de trabalho psicanalitico com crianças (MacMahon, 1992). Ana Freud tentava criar uma agradável relação com a criança de forma a que a criança gostasse dela e se sentisse dependente dela. O brincar era uma das formas de atingir este objectivo e ao observar a brincadeira ela tentava compreender o problema da criança. Ana Freud viu na Ludoterapia um meio da criança falar acerca dos seus sentimentos e pensamentos e agir de acordo com os seus conflitos e fantasias (MacMahon, 1992). Melanie Klein fez profundas interpretações do inconsciente da criança através da sua brincadeira, se a criança rejeitasse as suas interpretações, ela achava que esse facto era indicador de que estava certa. As contribuições mais significativas de Klein foram a sua explicação acerca de que as emoções da criança se iniciam na infância e o seu uso especifico da ludoterapia. Ela acreditava que o brincar da criança poderia ser um equivalente da associação livre da psicanálise usada em adultos como forma de revelação de ansiedades e fantasias. A maior parte dos seus pacientes tinha menos de 5 anos e alguns dos mais jovens tinham 2 anos (Klein, citada por Ordonho & Miranda, 2002). Ao contrário de Ana Freud, QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Setembro 2102 que achava a transferência pouco relevante no trabalho com crianças uma vez que estas estavam ainda a desenvolver a sua relação com os pais, Klein considerava importante analisar a transferência, uma vez que os sentimentos passados para o terapeuta teriam tido a sua origem nas experiências mãe-filho. Klein foi, provavelmente a primeira terapeuta a usar uma sala de brincar planeada, os materiais usados incluíam um grande número e variedade de brinquedos em miniatura com muitas figuras humanas, material de desenho e de pintura, materiais para recortar e água. As crianças direccionavam a sua própria brincadeira (MacMahon, 1992). Donald Winnicott (citado por MacMahon, 1992) constatou que a primeira preocupação da criança antes de começar a brincar é obter concentração/atenção por parte do adulto. No brincar, a criança utiliza objectos do mundo real postos ao serviço de alguns aspectos do seu mundo interior, esta inter-relação entre os dois mundos tornam o brincar um acto excitante e até mesmo uma experiência criativa potencialmente assustadora. Erik Erikson (citado por MacMahon, 1992) também achava que as crianças se curam a si mesmas através do brincar. Erikson reconhecia que um excesso de emoção, excitabilidade ou ansiedade poderia ser disruptivo no brincar. Assim, o papel do terapeuta seria tentar compreender o significado do que tornou a brincadeira disruptiva. Ao brincar, a criança está a aprender, a ganhar experiência, desenvolver-se, exercitar sua criatividade. Durante as brincadeiras é possível identificar e expressar os seus sentimentos: amor, raiva, agressividade... Assim, um dos melhores caminhos para chegarmos ao mundo mágico da criança é através da brincadeira. Na ludoterapia os brinquedos são a forma de comunicação da criança, a sua selecção deve ser feita cuidadosamente e obedecer a alguns parâmetros. Landreth (citado por Kottman, 2001) sugere que a avaliação dos brinquedos deve ser feita segundo alguns critérios: os brinquedos e os materiais devem facilitar uma vasta gama de expressões emocionais e criativas; ser interessantes para a criança; permitir explorações e expressões verbais e não verbais; possibilitar à criança experiências onde estas se possam sentir bem sucedidas; sejam 7 Mindkiddo –Oficina de Psicologia, Lda | Rua Pinheiro Chagas, nº 48, 4º andar, 1050-179 Lisboa www.oficinadepsicologia.com | [email protected] | 210 999 870 Setembro 2012 QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME bem feitos e duráveis. Segundo Landreth (cit. por Kottman, 2001), durante as sessões a criança utiliza os brinquedos de forma a: estabelecer uma relação positiva com o terapeuta; expressar vários tipos de sentimentos; explorar e representar situações e relações da vida real; fortalecer o auto-conceito; melhorar a auto-compreensão; melhorar o auto-controlo. O Sistema de fichas de reforço ou de Economia de Fichas: ajuda os pais, ajuda o filho... O sistema de fichas de reforço ou de economia de fichas trata-se de uma metodologia comportamental, na qual se pretende aumentar ou diminuir a frequência, intensidade ou duração de comportamentos, através de uma atribuição de fichas contingente à manifestação desses comportamentos. Na sua aplicação, o aplicador (psicólogo/educador/pais) deverá ter em conta as seguintes regras: identificar com a criança os comportamentos de forma adequada e bem operacionalizada e deverão ser comportamentos que a criança consiga manifestar; cada comportamento manifestado equivale a um número estipulado de fichas, para ser mais eficaz, o comportamento mais fácil para a criança deverá dar direito ao menor número de fichas e o aumento de dificuldade no comportamento equivale a um maior número de fichas. Deve ser feito um registo das fichas ganhas pela criança e a troca dessas fichas deve ser feita após o período de execução dos comportamentos e não durante, para que não prejudique a aplicação do sistema. O sistema deve cumprir uma lógica evolutiva, passando de reforços materiais, primários e secundários para reforços sócio-afectivos (como elogios, atenção afectuosa, actividades em família...) (Joyce-Moniz, 2002). A inclusão da criança na construção do sistema de economia de fichas e na sua monitorização é bastante importante para alcançar resultados, pelo que explicar à criança os objectivos e deixá-la participar na escolha das recompensas, pode ser bastante produtivo e contribuir para o sucesso do sistema (Barkley & Benton, 2007). Olá, eu sou o Cristóvão e os meus pais levaram-‐me à psicóloga... Porquê? Sou o Cristóvão e tenho 5 anos. Não tenho irmãos, vivo com a minha mãe e com o meu pai e passo também algum tempo com a minha avó materna e com a minha tia-avó. Aos 5 meses entrei para uma creche, mas aos 3 anos vim para o Jardim-de-Infância onde estou porque o outro era só para meninos até aos 3 anos. Os meus pais resolveram marcar uma QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Setembro 2102 consulta de Psicologia Clínica por sugestão da minha educadora, a qual reparava que eu me distanciava dos meus colegas, era muito difícil para mim brincar com eles, eles punham-me de parte, eu chorava muitas vezes e por qualquer coisa que acontecesse. Quando a nossa educadora nos propunha um trabalho novo ou uma tarefa eu ficava sem fazer nada, como se não estivesse ali a ouvir e demorava muito tempo a fazer qualquer coisa. Fico muito irritado de repente. Assim, os meus pais resolveram levar-me a uma psicóloga em Maio de 2011. Primeiro conheci uma psicóloga, que ficou com dois bebés na barriga e tinha de descansar muito, deitadinha, para os dois bebés crescerem e por isso ela pediu ajuda a uma colega psicóloga para ficar comigo e ajudar-me nas minhas dificuldades. Conheci a Rita em Setembro de 2011 e ficámos juntos até Março de 2012, 6 meses sempre sem faltas, uma vez por semana encontrávamo-nos para a nossa consulta. Ao princípio não conhecia muito bem a Rita e ficava envergonhado e não falava muito com ela, mas depois comecei a perceber que ela estava mesmo a ajudar-me e ficava muito feliz quando ia ter com ela. O que se passa com o Cristóvão? -‐ Da avaliação à intervenção, duas fases que se fundem No primeiro mês, fazíamos alguns jogos e às vezes a Rita pedia-me para fazer alguns jogos e desenhos e ficava a observar-me e a conversar comigo. A mãe e o pai iam lá de vez em quando conversar com a Rita e ouvir o que ela tinha para lhes dizer sobre mim e sobre o que fazíamos juntos, mas não contava os nossos segredos, dizia-lhes em que é que eu precisava de ajuda e o que temos tentado que eu fique melhor e pedíamos ajuda aos pais também. Agora ela vai contar-vos um bocadinho do se passava comigo e o que fizemos juntos... Numa primeira fase e tendo em conta que o Cristóvão já tinha iniciado uma relação terapêutica, foi necessário investir bastante na relação terapêutica com o Cristóvão. Inicialmente, o Cristóvão era calado, não respondia à maioria das questões que eu fazia, 9 Mindkiddo –Oficina de Psicologia, Lda | Rua Pinheiro Chagas, nº 48, 4º andar, 1050-179 Lisboa www.oficinadepsicologia.com | [email protected] | 210 999 870 Setembro 2012 QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME com o tempo foi sendo possível verificar que ele ouvia, só não queria responder, estando pouco disponível emocionalmente para a interacção social. Vinha na maioria das vezes acompanhado pela mãe e no primeiro mês, nas 4 primeiras consultas, o Cristóvão apresentava comportamentos desadequados na presença da mãe: não permanecia sentado, interrompia a mãe e a mim enquanto falávamos, não respondia às questões, mexia nos objectos da sala, abria gavetas e não parava de andar de um lado para o outro da sala. Enquanto isso, a mãe dizia-lhe frequentemente para estar sentado, quieto, para responder, mas o Cristóvão não acedia aos pedidos. Numa fase inicial e perante a observação destes comportamentos e tendo em conta as queixas referidas, foi necessário um trabalho de consolidação da relação terapêutica e de estabelecimento das regras, conseguido através da criação de um espaço privilegiado e único para o Cristóvão, dando-lhe a liberdade de escolha das actividades possíveis, indo assim negociando as regras da sala e as de comunicação entre o Cristóvão e eu, psicóloga. Foi um trabalho feito com paciência, respeito pelo tempo do Cristóvão e compreensão da sua necessidade de um espaço onde se sentisse mais livre. Ao fim de dois meses, a aliança terapêutica estava estabelecida e as regras bem definidas e aceites pelo Cristóvão. Enquanto a mãe estava presente, o Cristóvão passou a conseguir controlar o seu comportamento, manifestando comportamentos adequados, mais calmos, deixando de mexer nos objectos da sala sem autorização e com o tempo foi respondendo em simultâneo ao que lhe era perguntado, esta última competência, demorou mais tempo que o resto dos comportamentos. Enquanto era estabelecida uma relação terapêutica de qualidade, onde o Cristóvão se sentia respeitado, aceite e cumpria as regras de interacção e da consulta, foi possível recolher dados relativamente às problemáticas do Cristóvão: em termos de desenvolvimento cognitivo, o Cristóvão apresentava um desenvolvimento acima do obtido na sua faixa etária no que respeita aos critérios de desenvolvimento pré-escolar: motricidade grossa, motricidade fina, percepção visual, raciocínio, linguagem receptiva e linguagem expressiva. Em termos emocionais, foi possível verificar que o Cristóvão apresentava dificuldades na adequação dos seus comportamentos na interacção com o grupo, o que levava a que frequentemente os pares não o compreendessem e não fosse estabelecida uma interacção saudável, em que se sentisse correspondido e satisfeito, baixa tolerância à frustração, traduzida no pouco investimento nas tarefas que lhe propõem, índices depressivos QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Setembro 2102 elevados, traduzidos em manifestações de zanga, pouca ligação e entusiasmo sobre o que o rodeia, apatia, choro fácil, baixa auto-estima traduzida numa baixa auto-confiança, desinvestimento rápido nas tarefas e actividades em que é envolvido, receio em falhar, pouca participação nas actividades de grupo em que poderá ser mal sucedido, receio na afirmação da sua vontade e interesses, por sentir que não deve ser criança e deverá sempre adequar os seus comportamentos, havendo pouca expressão para a o seu nível de desenvolvimento e maturidade emocional, o que o inibia e não o deixava ser quem é e como conseguia ser. Uma equipa de Pais, educadora, psicóloga e criança – uma intervenção individual, familiar e escolar Perante tais dados, a intervenção desenrolou-se, envolvendo não só o Cristóvão, mas também os seus pais e educadora, a qual forneceu dados essenciais para o trabalho desenvolvido com o Cristóvão e com a qual foi possível alinhar estratégias de intervenção na sala de Jardim-de-Infância. Foi um trabalho de 6 meses, o Cristóvão foi sempre muito assíduo, os pais colaboraram sempre de forma disponível, motivada, assim como a educadora. As consultas foram alternando, entre sessões individuais com o Cristóvão e sessões com os pais. O Cristóvão conta-‐vos o que fizemos juntos: Nas consultas com a Rita, trabalhávamos muito e brincávamos muito também. A Rita e eu aprendemos juntos com uns bonequinhos de madeira como podia brincar mais com os meus colegas, como é que eu podia conseguir que eles me tratassem bem e como é que eu podia ser mais simpático para eles. E ensaiávamos e tudo. O que o Cristóvão vos está a explicar é que fizemos um treino de desenvolvimento de competências para que o Cristóvão conseguisse dar-se melhor com os colegas da escola. A educadora teve um papel essencial estando atenta e promovendo situações entre os colegas para a aceitação e respeito pelo Cristóvão. 11 Mindkiddo –Oficina de Psicologia, Lda | Rua Pinheiro Chagas, nº 48, 4º andar, 1050-179 Lisboa www.oficinadepsicologia.com | [email protected] | 210 999 870 Setembro 2012 QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Às vezes, fazíamos muitos desenhos em que eu era livre para desenhar o que eu queria e a Rita dizia-me que estava muito bem e que eu tinha muito jeito e eu ficava muito satisfeito com o meu trabalho e depois já me apetecia fazer mais desenhos inventados por mim. Com o Cristóvão houve a necessidade de desenvolver a sua auto-confiança, criatividade, espírito de iniciativa para que conseguisse vencer a apatia que apresentava nas tarefas do jardim-de-infância com medo de falhar ou de ser ridicularizado pelos outros. Depois começámos a treinar a minha rapidez de resposta ao que me perguntavam e eu não ter medo de responder ao que me era perguntado e ser muito rápido a fazer o que me pediam. A intervenção incidiu igualmente na abertura e desenvolvimento da espontaneidade e mais uma vez no desenvolvimento da capacidade de afirmação, que o Cristóvão apresentava como problemática. Muitas vezes eu podia brincar com uma caixa com muitos brinquedos que só usamos quando os pais não estão na sala e que cada vez que a abria parecia que tinha um brinquedo novo, porque tinha tantas coisas e eu podia brincar com tudo o que me apetecesse naquela caixa e a Rita brincava comigo. Não me sentia bebé e a Rita que é crescida também não tinha vergonha de brincar com a caixa. Foi feita ludoterapia com o Cristóvão, usando a mala de ludo, para que o Cristóvão pudesse expressar as suas emoções e frustrações e igualmente desse voz e expressão à sua necessidade livre de brincar, podendo ser criança. Era frequente o Cristóvão dizer que não podia brincar com o Noddy, porque era de bebés, mas manifestava desejo de brincar com o mesmo, vivendo numa ambivalência entre querer ser criança e sentir que já não deve por já ter 5 anos. Trabalhámos as minhas emoções: estar triste, estar com raiva, ficar contente, estar preocupado e aprendi com a Rita como vencer a tristeza, a raiva, a preocupação e estar mais contente. Até aprendi a relaxar. A Rita também trabalhou com os pais e para mim e para os pais foi uma diversão. A Rita vai contar-vos. QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Setembro 2102 Numa primeira fase, foi possível verificar a importância de aproximar e responsabilizar os pais (pai e mãe) no que respeita ao tempo passado com o Cristóvão, o qual era muito pouco. Como tal, foi sugerido aos pais que definissem se possível diariamente um tempo especial, mesmo que curto, para dedicarem inteiramente a brincar activamente com o Cristóvão, tendo sido feita modelagem de como poderão estar nessa brincadeira, dando o papel principal ao Cristóvão, o qual poderia escolher a brincadeira ou como passar esse tempo especial. Após a instalação do tempo especial e pela preocupação dos pais com o comportamento do Cristóvão em casa, nomeadamente no que respeita ao cumprimento de regras, foi implementado um sistema de economia de fichas, com dois objectivos principais, os quais conduziram depois aos comportamentos pretendidos pelos pais (cumprimento de regras): 1) aumentar a interacção entre pais e filho; 2) promover a auto-estima do Cristóvão pelos objectivos que alcançava ao desenvolver as tarefas propostas e ao ganhar prémios. Na implementação do sistema de economia de fichas, foi especialmente importante o empenho e dedicação dos pais e a forma regrada e exemplar como conseguiram levar a cabo o plano definido e depois como foram adaptando às necessidades que foram surgindo. A escolha de recompensas foi também essencial para o funcionamento do sistema e foi igualmente exemplar por parte dos pais que conseguiram a escolha de recompensas que promoveram a interacção de pais e filho. Os prémios prometidos foram todos eles cumpridos pelos pais. Quando os comportamentos pretendidos se instalaram, os próprios pais decidiram parar com o sistema de economia de fichas e partilharam tal decisão com o Cristóvão, explicando que poderiam voltar quando fosse preciso. Esta partilha foi também muito importante para o Cristóvão, que se sentiu parte envolvida e importante e como tal aceitou a decisão de forma positiva e orgulhoso porque já não seria preciso usar por enquanto o sistema. A minha avó e a minha tia-avó quiseram visitar a Rita porque pensavam que eu tinha uma perturbação de desenvolvimento e estavam preocupadas. Mas isso é melhor a Rita contar, porque eu não sei explicar muito bem... 13 Mindkiddo –Oficina de Psicologia, Lda | Rua Pinheiro Chagas, nº 48, 4º andar, 1050-179 Lisboa www.oficinadepsicologia.com | [email protected] | 210 999 870 Setembro 2012 QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME A avó materna do Cristóvão e a tia-avó eram ambas muito presentes na educação do Cristóvão e preocupadas com a descrição dos comportamentos feitos pela educadora e do que observaram, recearam que o Cristóvão pudesse ter sintomas indicativos de Síndrome de Asperger. Tal preocupação foi partilhada por ambas à mãe do Cristóvão, que preocupada a partilhou comigo. Enquanto psicoterapeuta e como forma de gerir tal preocupação, propus que ambas pudessem vir sozinhas ter comigo para que pudessem expor o seu ponto de vista e alinharmos avaliações e intervenções. Ambas vieram, deram o seu ponto de vista e forneceram mais dados que permitiram confirmar a avaliação já realizada. Foi necessário um trabalho de tranquilização de avó e tia-avó, compreendendo a preocupação mas explicando que esse não era o meu diagnóstico e procurando que ambas pudessem colaborar, como suporte do Cristóvão e pais, com compreensão e confiança. Ver para crer – os resultados da psicoterapia E a Rita visitou a minha escola. Foi um dia muito especial para mim! Depois da Rita falar algumas vezes com a minha educadora e trocarem algumas informações para me ajudarem, a Rita foi à minha escola passar uma manhã na minha sala para ver como é que eu me estava a sair, agora que já estava mais confiante de como se fazia amigos e trabalhos na escola. Um dia combinou com a minha educadora e foi lá. Eu estava tão entusiasmado que quis no dia antes acabar os meus trabalhos todos para que a Rita os visse todos expostos. Quando ela lá chegou estávamos a escrever palavras. Apesar de eu estar muito entusiasmado e ansioso com a ida da Rita à minha escola, como combinámos eu portei-me muito bem e trabalhei muito bem, falei muito bem com os meus colegas e todos eles também me trataram bem, como também já acontecia há algum tempo. Viu a minha aula de Judo e eu até fiquei a apanhar os meus colegas. Antes eu chorava porque não os conseguia apanhar, mas já não choro e no dia em que a Rita lá foi já não chorava e até consegui apanhar alguns. Depois o colega que eu já tinha contado à Rita que me fazia chorar, dizendo que eu era mariquinhas, disse à Rita que eu chorava no Judo e eu como já estou mais contente, olhei para a Rita e respondi ao meu colega: “ – Isso era quando eu era mais pequeno. Agora já não choro.” Eu fiquei muito orgulhoso de ter conseguido dizer aquilo e mais tarde, eu e a Rita contámos à mãe, que também ficou muito orgulhosa. Foi uma manhã muito boa, depois uma colega contou uma história do livro e a Rita ouviu a história connosco. Nessa manhã, a Rita pôde ver que já consigo brincar com QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Setembro 2102 os meus colegas e eles gostam de brincar comigo e que eu já faço os meus trabalhos num instante e não fico sem saber como os fazer ou a pensar noutra coisa qualquer. Nos últimos 2 meses, após esta intervenção a vários níveis, o Cristóvão começou a manifestar menos apatia, mais orgulho em si mesmo, a sorrir mais e a ser muito espontâneo a conversar e a contar o seu dia na escola. Continuou a gostar muito de ir às consultas e quando lá chegava nas últimas vezes, pedia sempre para fazer muitas colagens, com muitas cores, formas diferentes, como lhe apetecesse. Contava com muita alegria, o seu fim-de-semana geralmente com uma actividade nova com os pais, mesmo em casa, um jogo novo ou um filme que viram juntos. Em termos de interacção com os pares, a mãe começou a notar que cada vez mais o Cristóvão gostava de ficar na escola e que nos últimos tempos, quando faltou uma manhã à escola, quando a mãe o foi levar os colegas vieram todos a correr ter com ele, contentes por o verem. E chegou o dia do Cristóvão ir embora, a sorrir e aos saltos – a alta O Cristóvão deixou as consultas no final de Março. Não queria ir embora, foi uma despedida difícil, mas a verdade é que a intervenção estava concluída e o Cristóvão já não apresentava sintomas de depressão infantil e todo o sistema à sua volta estava preparado para promover as suas melhores competências e emoções. Agora costumo ver o Cristóvão nas actividades que realizamos para crianças e famílias, costuma vir com a mãe e com o pai e é um dos meninos mais entusiasmados e envolvidos nas actividades criativas. Para o ano vai para a escola, para o 1º ciclo, está muito contente. Os pais receosos, sim, mas a aliança terapêutica criada permite se for preciso dar uma ajuda para mais um desafio! 15 Mindkiddo –Oficina de Psicologia, Lda | Rua Pinheiro Chagas, nº 48, 4º andar, 1050-179 Lisboa www.oficinadepsicologia.com | [email protected] | 210 999 870 Setembro 2012 QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Conclusões O acompanhamento psicoterapêutico aqui descrito permitiu ilustrar um caso de depressão infantil, com factores predisponentes, activadores e de manutenção e suas consequências. A intervenção é de interesse em termos de psicologia clínica infantil por englobar a criança, a família e a escola e como a colaboração das três partes foi essencial para que o trabalho psicoterapêutico fosse bem sucedido. As técnicas de intervenção escolhidas foram também importantes para a problemática em causa e para as diferentes dificuldades exibidas, unindo uma abordagem cognitivocomportamental, sistémica e psicodinâmica, desde a expressão emocional, passando pelo uso de um sistema de economia de fichas e de desenvolvimento de competências, passando pela integração de toda a família na intervenção, até à ludoterapia, privilegiando em primeiro lugar e sempre a aliança terapêutica com a criança, construindo com ela no espaço terapêutico, um lugar mágico, especial, só dela e para ela e com os agentes educativos, transmitindo-lhes a importância do seu papel enquanto agentes de intervenção essenciais no processo, fundamental para alcançar os objectivos terapêuticos. QUANDO SE É PEQUENINO TAMBÉM SE DEPRIME Setembro 2102 Referências Bibliográficas American Psychiatric Association (2002). DSM-IV-TR: Manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais. Quarta Edição. Lisboa: Climepsi. Barkley, R.A., & Benton, C. M. (2007). Filhos teimosos e rebeldes (pp. 211-225). H. Serra, trad.) Oeiras: Estrela Polar (Obra original publicada em 1998). Coyne, L.W., & Thompson, A.D. (2011). Maternal depression, locus of control, and emotion regulatory strategy as predictors of preschoolers’ internalizing problems. Journal of Child and Family Studies, 20:873-883. Joyce-Moniz, L. (2002). A modificação do comportamento: teoria e prática da psicoterapia e psicopedagogia comportamentais (pp 250-251). Quarta Edição. Lisboa: Livros Horizonte. Kottman, T. (2001). Play therapy: Basics and beyond. Alexandria, VA, US: American Counseling Association. Lenze, S. N., Pautsch, J., &Luby, J. (2011). Parent-child interaction therapy emotion development: a novel treatment for depression in prescholl children. Depression and anxiety, 28:153-159. MacMahon, L. (1992). The HandBook of Play Therapy. London: Routledge. Meere, J., Borger, N.A., Pirila, S., & Sallee, F. (2011). Interference control with children with first episode major depression: a brief report. Child Neuropsychology, 17:96-104. Ordonho, A. & Miranda, A. (2002). A Ludoterapia no contexto do desenvolvimento. Jornal de Psicologia Clínica, 2, No. 8, 21-28. 17 Mindkiddo –Oficina de Psicologia, Lda | Rua Pinheiro Chagas, nº 48, 4º andar, 1050-179 Lisboa www.oficinadepsicologia.com | [email protected] | 210 999 870