Dermatite das fraldas

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Dermatite das fraldas
NASCER
E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2005, vol. XIV, n.º 2
Por detrás da borbulha ou, dilema do diagnóstico
pré-natal de anomalia nefro-urológica
Helena Jardim
Nada foi deixado ao acaso ou ao improviso para receber o Nuno naquele final de
Setembro. Até o mês de nascimento, no fim do Verão, nem frio nem calor, licença de
maternidade ampliada pelas férias. Perfeito.
Como perfeita tinha sido a gravidez. Primeiro filho de um casal jovem, ambos
saudáveis, não se conhecia também nenhuma doença naqueles quatro, ansiosos por
ascender, finalmente, ao estatuto de avós. O seguimento tinha sido meticuloso, com
a regularidade aconselhada, todas as recomendações seguidas com rigor, os exames
complementares adequados, a vigilância ecográfica habitual dos parâmetros
biométricos e morfológicos do feto, a medicação cumprida e as prescrições nutricionais
observadas. A normalidade de todos os parâmetros, o passar do tempo sem
complicações, a felicidade na face da futura mãe, tornavam serena e deliciosa aquela
espera pela chegada do filho e do neto.
O Nuno nasceu de parto eutócico, às quarenta semanas, peso de 3,5 Kgs, 50 cm
de comprimento. Chorou de imediato, começou a mamar pouco depois e a observação
pediátrica foi como se esperava, o exame físico era perfeitamente normal. Pais e avós,
felizes, finalmente “graduados” nas respectivas categorias pelo seu bebé.
Aqueles dias na maternidade são preciosos para a família. Sob o olhar atento e
sob a vigilância e orientação dos profissionais, os “recém-graduados”, dão os
primeiros passos no desempenho do papel que lhes ocupará a vida daí por diante.
Lá em casa tudo preparado, ensinamentos bem presentes, todo o apoio necessário,
a tranquilidade própria das felicidades imensas.
Do programa fazia parte a “picada do pé” e pelo oitavo dia o Nuno foi à
maternidade fazer a colheita para o rastreio neo-natal. Os pais estavam felizes,
orgulhosos da sua independência no cuidar do Nuno, ansiosos de mostrar isso mesmo
aos profissionais.
- Tudo bem?
- Tudo óptimo. Só apareceram ontem umas borbulhas aqui no peitinho mas de
resto tudo bem.
- Umas borbulhas? Vamos despir e ver.
Pústulas, no tronco sim ,mas também na face, no couro cabeludo, nos braços.
- Mas ontem só tinha no peitinho.
O aspecto não deixava dúvidas, uma possível infecção estafilocócica, impunha
que o Nuno fosse internado para fazer estudo adequado, tratamento por via endovenosa.
A sua idade não permitia outra decisão.
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Os pais compreenderam que seria algo para alguns dias, estava tudo tão bem,
uma pequena complicação.
O grande Hospital meteu medo. Tanta coisa, súbita e inesperada, tanto bebé tão
pequenino e frágil, tanta máquina. O Nuno era grande, felizmente, e não estava ligado
àqueles aparelhos todos.
- Temos que repetir as análises do Nuno. Discutiu-se na visita…
- Tem uns valores “estúpidos” de ureia e creatinina. Ele está tão bem….
Repetiu-se e confirmou-se. Uma ureia de 156 mg/dl e uma creatinina de 4,89 mg/
dl, num recém-nascido são absolutamente invulgares e de inspirar a maior das
preocupações em relação à função e sobrevida renal.
Mais exames complementares e diagnostica-se: insuficiência renal crónica
congénita por displasia renal. Vistos e revistos os exames pré-natais, liquido amniótico
sempre de volume normal, rins presentes bilateralmente, sem dilatações da árvore
excretora, bexiga normal.
A médica informa os pais, ciente da gravidade e preparada para a avalanche que
estava prestes a desencadear.
- Insuficiência renal? Ureia, creatinina altas? O que é isso? Foi por causa das
borbulhas? Não? Então, se não fossem as borbulhas…
- Sim, só o saberíamos dentro de alguns meses quando o Nuno adoecesse com
vómitos, ou não crescesse…
- Mas porquê nós? Não pode ser! A negação. A rejeição.
- O que é que eu fiz? Eu segui direitinho tudo o que os médicos disseram! A culpa
- Porque é que o médico não viu isso? A culpa
- O que vai acontecer? O medo. O desconhecido.
- Diálise e transplante? Nesta idade? É possível? Quando? O medo. O desconhecido
A médica colocou aos pais todos os cenários. Questionaram-se em conjunto.
Qual seria o menos mau?. Se se tivesse diagnosticado precocemente na gravidez o
problema do Nuno, nasceria ele? Se diagnosticado mais tarde, como teria decorrido
aquela gestação carregada pela ansiedade da incerteza na sobrevida fetal? E tudo
isso comparado com a situação presente?
Mas o Nuno está ali, aparentemente tão bem. Benditas borbulhas, fez-se um
diagnóstico mais precoce, pode-se intervir desde já. E há soluções!
- O que podemos fazer? Como podemos ajudar? A aceitação, por final.
A Internet! É isso, a fonte de todas as certezas e de todas as soluções.
A mãe navegou, navegou, informou-se, subscreveu o nephkids, lista para pais de
crianças com doença renal moderada por um estudante de medicina, ele próprio
transplantado renal. Pais de todo o mundo trocam impressões e informações, ajudam-se, confortam-se.
A médica, meia intrusa, lurker, segue as mensagens do nephkids, diariamente.
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Aprende a reconhecer o tipo de dúvidas possíveis dos pais, regista o que é útil para
outros pais que não navegam em coisa nenhuma. Leu e reconheceu as questões
postas pela mãe na lista e a assinalável capacidade de exposição do quadro clínico.
Em silêncio, seguia curiosa as respostas, contente com a iniciativa da mãe.
No dia seguinte e em todos os dias seguintes, sorria com uma meia cumplicidade
gerada por aqueles encontros nocturnos insuspeitos, antecipando a reacção da mãe
à confrontação entre as respostas na Internet e a sua prática.
De todo o mundo e do nosso País a mãe recebeu testemunhos de casos
semelhantes ao Nuno. Sim, muitos com passado pré-natal insuspeito. Aquele americano
(como é possível, lá?) foi diagnosticado pelos 8 meses quando o peso e comprimento
não progrediam. As mães do nephkids tranquilizaram a mãe. Os seus médicos estão
a fazer tudo o que deve ser feito…
Confortada com a aprovação no teste da ciberavaliação, a médica escreveu ‘a
mãe, cumprimentou-a pela qualidade da exposição do caso do Nuno e pela atenção
recebida da lista.
Desfez o embaraço da mãe, os médicos já estão habituados…a nephkids é uma
boa lista, bem moderada, pode e deve continuar, é muito útil. O Messenger? Sim,
concerteza, podemos, junte-me lá aos seus contactos. Quem não agradece ao Sr Bill
Gates tal benefício? Será que é ele que merece as honras? Nós, “ignorantes
anónimos” da informática, desconhecemos os verdadeiros pioneiros como Steve
Jobs...
A partir daí, médica e mãe partilham momentos em noites de conversa, que se
alarga para lá do que rodeia a saúde do Nuno. No espaço virtual quebraram as
barreiras do espaço real, desapareceram a mãe e a médica, ficaram as amigas. Há
“Nunos” capazes de coisas assim. Os nossos pequenos doentes, “mini” e às vezes
“micro”, podem gerar “macro” atitudes e iniciativas. São os nossos “micro-macro”,
quem os não tem no espaço pediátrico?
O diagnóstico ecográfico pré-natal de uropatia malformativa tem cerca de 20
anos. É muito pouco tempo para que esteja totalmente esclarecido se pelo facto de se
identificar alterações morfológicas in útero, se consegue determinar a natureza e o
significado dessas situações ou mesmo interferir na evolução natural das anomalias
detectadas.
Assumem particular relevo, neste contexto, as dilatações da pelve renal, muito
frequentes, com uma prevalência aproximada de 4,5 % das gestações. Estas não são
uma entidade patológica no sentido restrito mas antes um sinal ecográfico já que
podem ser a expressão de um fenómeno transitório ou associar-se a refluxo vesicoureteral ou obstrução incipiente, entre outros. Sabe-se que menos de 10% destes
casos vêm a justificar no futuro procedimentos invasivos designadamente cirúrgicos.
A dúvida em relação aos diferentes e possíveis significados destas dilatações,
tem causado e permanece como motivo da maior controvérsia na comunidade
científica. Como sempre, o que sobra em dúvidas para os médicos, amplia-se em
ansiedade para os pais.
A grande questão actual é saber se se justifica preconizar a realização de exames
invasivos, como urografia, cistografia, exames de medicina nuclear, análises, em
todas ou algumas destas crianças e ainda submetê-las a profilaxias prolongadas com
eficácia ainda não comprovada.
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Mais ainda, optar por procedimentos invasivos em crianças totalmente
assintomáticas transformadas em doentes à luz dos resultados de exames
complementares e envidar por procedimentos invasivos de indicação questionável,
quantas vezes por força do marketing científico, de opinião ou mesmo comercial.
O Nuno não tinha qualquer dilatação ecográfica pré-natal e a sua situação é
preocupante, das extremas, embora rara. O diagnóstico pré-natal, no seu caso,
alteraria o prognóstico? Não. As lesões foram instaladas precocemente in útero e são
irreversíveis, como se sabe, pela sua natureza displásica.
Ao contrário, a maior parte das ectasias piélicas não tem significado patológico.
Nas que o tiverem a intervenção pós-natal pode interferir na evolução, designadamente
pela correcção de obstrução ou diagnóstico e tratamento precoce da infecção urinária,
se associada.
Mais do que a dilatação piélica isolada e a sua magnitude, interessa saber
reconhecer as dilatações que têm probabilidade de se associar a patologia importante
nefro-urológica designadamente as que acarretem risco de compromisso funcional
renal como a obstrução. E ter o senso de solicitar o mínimo de exames necessários
para o respectivo esclarecimento. Envolver sempre os pais nas decisões como
preconiza a Academia Americana de Pediatria na sua secção de Urologia Pediátrica.
Saber e senso, como em tudo.
Os protocolos são úteis. Não podem, todavia, constituir substituto cómodo para
o saber e o senso.
Há-os para todas as possibilidades. Estudo pós-natal alargado se as dimensões
piélicas forem iguais ou acima de 10mm (protocolo nacional) 15mm (protocolo
espanhol) ou 20 mm (reino unido), para já não mencionar as indicações de sim ou não
à profilaxia e da duração variável. Os protocolos têm variado ao longo dos anos à
medida que a experiência tem conferido segurança e confiança aos clínicos e sempre
no sentido de alargar as dimensões para lá das quais se intervém. Como serão daqui
por mais 20 anos e qual será o julgamento que nós ou outros, faremos da nossa
actuação presente?
Ao estudo indiscriminado, cego, opõe-se e impõe-se a individualização das
atitudes com
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saber e senso porque, como escreveu Gregório Maranon
A verdade, a que parece mais firme, não é mais que
o esboço duma verdade mais acabada mas que nunca está completa de todo,
e só assim deve ser interpretada e julgada.
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