Narrativa - Histórias Interativas

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Narrativa - Histórias Interativas
Narratologia e construção de histórias
ARRATIVA: ELEMENTOS, RECURSOS E CONFIGURAÇÃO DE
ENREDOS
Por narrativa, entenda-se "discurso capaz de evocar,
através da sucessão de fatos, um mundo dado como
real ou imaginário, situado num tempo e num espaço
determinados. Na narrativa distingue-se a narração
(construção verbal ou visual que fala do mundo) da
diegese (mundo narrado, ou seja, ações,
personagens, tempos). Como uma imagem, a
narrativa põe diante de nossos olhos, nos apresenta,
um mundo". (SODRÉ, 1988:75; grifos do autor).
Narratologia e construção de histórias
Esta posição é estendida para as narrativas multimidiáticas pela definição apresentada por Coelho, "formas textuais,
utilizando ou não imagens, como é o caso da literatura, cinema, televisão, RPG ou videogame, embora os elementos
constitutivos de ambos, como não poderia deixar de ser, sejam recorrentes. Estes se caracterizam como narrativos
por possuírem os elementos levantados por CARDOSO [(2001)] (tema, personagens, ação, tempo, espaço, ponto
de vista, conflito), possuindo unidade de ação, tempo e lugar, e desenvolvendo-se através da relação de causa
e efeito, etc." (COELHO, 2002).
Segundo TZVETAN TODOROV, "Ao nível mais geral, a obra literária [assim como qualquer narrativa] tem dois
aspectos: ela é ao mesmo tempo uma história e um discurso. Ela é história, no sentido em que evoca uma certa
realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundem com
os da vida real. Esta mesma história poderia ter-nos sido relatada por outros meios; por um filme, por exemplo; ou
poder-se-ia tê-la ouvido pela narrativa oral de uma testemunha, sem que fosse expressa em um livro. Mas, a obra é
ao mesmo tempo discurso: existe um narrador que relata a história; há diante dele um leitor que a percebe.
Neste nível, não são os acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pela qual o narrador nos fez
conhecê-los.”(1973, pg. 211)
Segundo Cardoso, "Dependendo de como se dá o modo da narrativa, os textos literários são classificáveis em
gêneros distintos, tais como a epopéia, o romance e o drama. Esses tipos textuais apresentam uma estrutura
particular, isto é, os fatos de que se constitui uma narrativa são apresentados numa certa organização (seqüência),
localizam-se num espaço e numa época identificáveis no texto e deles participam os personagens." (CARDOSO,
2001:35).
Segundo MASSAUD MOISÉS (1967), são dois os grandes gêneros da literatura: a poesia e a prosa. Estes incluem,
grosso modo, os tipos de histórias que são narrados na nossa cultura. Estes dois gêneros seriam duas maneiras de
se expressar uma relação com o mundo: a poesia, uma relação interna; a prosa, uma relação externa.
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A prosa se sub-divide em dois tipos básicos: o conto e a novela/romance. Na referência citada, o autor propõe uma
separação entre novela, de cunho maniqueísta e moralista (bem versus mal), e romance, onde as ambigüidades são
permitidas. Entretanto, hoje em dia as narrativas já não se prendem tanto a estas classificações e costuma-se
misturar os gêneros e seus sub-tipos:
Conto: narrativa única que gira ao redor de uma só célula de ação, externa (com deslocamento espaço-temporal) ou
interna (espaço-tempo mental ou psicológico); ou seja, todos os elementos do enredo convergem para um
mesmo e único ponto. O conto pode enfatizar o desenrolar da ação; pode enfatizar o desenvolvimento das
personagens; pode enfatizar o cenário ou clima onde se desenrola a ação; ou pode enfatizar uma emoção, um
conceito ou idéia.
Novela/Romance: narrativa plural e seqüencial que consiste de várias ações, cada uma com seu início, meio e fim,
encadeadas por relações de causa e efeito; em geral, o fim de uma ação encadeia-se ou enseja o início de
outra. Também costuma implicar deslocamento espaço-temporal e multiplicidade de cenários e personagens.
A novela/romance pode enfatizar a aventura, a superação de perigos e obstáculos para alcançar um desejo ou
objetivo, muitas vezes inatingível por natureza; pode enfatizar os relacionamentos entre as personagens; pode
enfatizar os conflitos internos das personagens e suas conseqüências no enredo e no cenário; pode enfatizar a
reconstituição de um ou vários eventos históricos, com ou sem alteração de fatos e resultados; ou pode
enfatizar situações-chave do enredo, em geral mistérios e enigmas a serem desvendados pelas personagens.
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ELEMENTOS DA NARRATIVA
Tema ou Premissa
Uma prosa tradicional, em geral, gira em torno de um tema ou premissa, que é um motivo não-explícito pelo qual
um enredo foi configurado de tal forma a ter um ou mais significados; é mais visível em narrativas pré-modernas
onde se buscava, por simbolismos, construir alegorias de cunho mitológico, religioso ou moral. Assim, configurar
um enredo de modo a expressar um tema é o que distingue a narrativa artística da narrativa informativa.
Segundo CÂNDIDA VILARES GANCHO, “Contar histórias é uma atividade praticada por muita gente: pais, filhos,
professores, amigos, namorados, avós...Enfim, todos contam-escrevem ou ouvem-lêem toda espécie de narrativa:
histórias de fadas, casos, piadas, mentiras, romances, contos, novelas...Assim, a maioria das pessoas é capaz de
perceber que toda narrativa tem elementos fundamentais, sem os quais não pode existir.” ( pg.5 ). Estes elementos
são comuns a todo tipo de narrativa.
Personagem
Para MUNIZ SODRÉ, personagem é "[...] o sujeito representado na narrativa - seja individual, seja coletivo. É
também o papel que se vive na cena teatral [...]."(1998:75; grifo do autor). Para CÂNDIDA VILARES GANCHO, "A
personagem é um ser fictício que é responsável pelo desempenho do enredo; em outras palavras, é quem faz a
ação.” (2002, pg. 14)
Podem ser classificadas quanto ao papel que desempenham no enredo em:
• Protagonista: personagem principal, herói ou anti-herói
• Antagonista: opõe-se ao protagonista
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• Secundárias: personagens menos importantes na história, ajudantes do protagonista ou antagonista,
confidentes, enfim, de figurantes.
Personagens também podem ser planas ou redondas de acordo com sua caracterização. Planas são construído
em função do enredo e apresentam pouca ou nehuma profundidade e diversidade de aspectos psicológicos.
Redondas são preponderantes sobre o enredo, que passa a ser apenas um veículo para sua expressão e
desenvolvimento.
Cenário
Segundo MUNIZ SODRÉ, entenda-se cenário como "o espaço em que se movimentam os personagens, em que se
desenrola a ação de uma narrativa." (1998:74). Se o espaço é apenas o local físico onde acontece a ação, o
ambiente é o espaço-tempo onde-quando se desenrola a narrativa e, ao contrário do tema, prescreve explicitamente
cenários, personagens e eventos coerentes entre si e com o/s enredo/s a ser/em construído/s. Segundo GANCHO,
ambiente “É o espaço carregado de características sócio-econômicas, morais, psicológicas, em que vivem os
personagens. Neste sentido, o ambiente é um conceito que aproxima tempo e espaço, pois é a confluência destes
dois referentes, acrescido de um clima.”(2002, pg.23)
“Clima é o conjunto de determinantes que cercam os personagens, que poderiam ser resumidas às seguintes
condições:” (2002, pg. 24)
• Sócio-econômicas;
• Morais;
• Religiosas;
• Psicológicas.
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Assim, as funções do ambiente são:
1. Situar as personagens no tempo, no espaço, no grupo social, enfim nas condições em que vivem;
2. Ser a projeção dos conflitos vividos pelas personagens;
3. Estar em conflito com as personagens;
4. Fornecer índices para o andamento do enredo.
Enredo
Uma narrativa é inicialmente concebida como uma seqüência de eventos, ou fábula, onde são pontuadas as ações.
Uma vez que são escolhidos os recursos narrativos (tom, tempo, ritmo e foco), passa-se à construção do relato, ou
seja, a configuração do enredo propriamente dita.
Segundo MUNIZ SODRÉ, entenda-se por enredo "o mesmo que intriga: sequência de fatos ou incidentes que
compõem a ação de um texto literário." (1998:74; grifo do autor). Para GANCHO, o enredo é o conjunto dos fatos de
uma história, ou fábula, organizado segundo os seguintes critérios:
• Verossimilhança: lógica externa (com o ambiente) e interna (com o tema) do enredo que o torna verdadeiro,
crível para o leitor - cada fato da história tem uma causa e gera uma conseqüência.
• Conflito: elemento estruturador, é “qualquer componente da história (personagens, fatos, ambiente, idéias,
emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história e prende a atenção do
leitor.” (2002 ,pg. 11) Via de regra determina as partes do enredo: exposição ou introdução; complicação ou
desenvolvimento; clímax; desfecho.
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Assim, por enredo, entenda-se uma sucessão de fatos das quais participam as personagens, estruturada pela
escolha dos recursos narrativos, e da qual se espera verossimilhança e conflito, de modo a evocar o tema
ou premissa implícito (CARDOSO, 2001:35-41). Espera-se, ainda, das personagens, mudanças de comportamento
coerentes (externas, com o ambiente, e internas, com a personalidade) que indiquem uma evolução no sentido da
experiência e do aumento progressivo de poder e sabedoria, resultantes do sucesso ou fracasso em resolver os
desafios propostos pelo enredo. Do mesmo modo, os locais com suas texturas, cheiros e imagens devem dar
espaço para as personagens agirem.
RECURSOS NARRATIVOS
Tom: são as várias maneiras de representar um ambiente e de configurar um enredo enfatizando determinadas
sensações: aventura, terror, comédia, tragédia, suspense, erótico etc. O senso comum costuma utilizar o tom da
narrativa para classificar gêneros, misturando-o com o ambiente.
Tempo: no relato pode ser manipulado de diversos modos, não sendo necessário o mesmo desenrolar linear e
progressivo da fábula. As personagens podem ser lançadas para o passado ou futuro e não raro ocorrem ações
simultâneas em espaços diferentes.
O tempo fictício, interno ao texto, determina:
• Época em que se passa a história;
• Duração da história;
• Cronológico;
• Psicológico.
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Ritmo: no relato também pode ser manipulado e são freqüentes recursos como pausas (em geral para descrições e
interações entre as protagonistas entre si ou com coadjuvantes), aumentos progressivos de tensão e clímax (em
geral envolvendo conflitos).
Narrador: segundo GANCHO, “Não existe narrativa sem narrador, pois ele é o elemento estruturador da história.
Dois são os termos mais usados pelos manuais de análise literária para designar a função do narrador na história:
foco narrativo e ponto de vista (do narrador ou da narração). Tanto um quanto outro referem-se à posição ou
perspectiva do narrador frente aos fatos narrados. Assim, teríamos dois tipos de narrador, identificados à primeira
vista pelo pronome pessoal usado na narração: primeira ou terceira pessoa (do singular).” (2002, pg. 26)
Os recursos de foco narrativo propostos por GERÀRD GENETTE (1983) são dois: o ponto de vista (point of view),
onde se distinguiriam o humor (mood) – quem é a personagem cujo ponto de vista orienta a perspectiva da narrativa
(a personagem apresentada, um narrador externo, outra personagem) – versus a voz (voice) – quem efetivamente
narra (primeira ou terceira pessoa); e a focalização (focalization), que pode ser interna – quando a narrativa é
focada através da consciência da personagem apresentada (em primeira pessoa ou em segunda, como se um
narrador estivesse falando para a personagem e para o leitor ao mesmo tempo) – ou externa, quando a narrativa é
focada na personagem, mas não através dela.
Modos: narração ou representação. A narração privilegia o discurso indireto, enquanto a representação privilegia o
discurso direto, com diálogos entre as personagens.
Deste modo, é por meio das escolhas destes recursos narrativos que se pode fazer emergir do relato, consciente ou
inconscientemente, objetivos temáticos, relativos a um tema ou premissa conceitual e objetivos diegéticos, relativos
ao tom do enredo.
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COMO FUNCIONA O PROCESSO DE CONFIGURAÇÃO DO ENREDO?
Segundo TZVETAN TODOROV, “A narrativa se constitui na tensão de duas forças. Uma é a mudança, o
inexorável curso dos acontecimentos, a interminável narrativa da “vida” (a história), onde cada instante se apresenta
pela primeira e última vez. É o caos que a segunda força tenta organizar; ela procura dar-lhe um sentido, introduzir
uma ordem. Essa ordem se traduz pela repetição (ou pela semelhança) dos acontecimentos: o momento presente
não é original, mas repete ou anuncia instantes passados e futuros. A narrativa nunca obedece a uma ou a outra
a força, mas se constitui na tensão das duas.” (2004, pg. 22, negrito meu, itálico do autor)
Continuando com TODOROV: “São os formalistas russos que, primeiro, isolaram estas duas noções que chamaram
fábula (o que efetivamente ocorreu) e assunto (a maneira pela qual o leitor toma conhecimento disto [relato]). (...)
Chklovski declarava que a história não é um elemento artístico, mas um material pré-literário; somente o discurso era
para ele uma construção estética. (...) Entretanto os dois aspectos, a história e o discurso, são todos os dois
igualmente literários. (...) é esquecer que a obra tem dois aspectos e não apenas um. É verdade que não é sempre
fácil distingui-los; mas não cremos que, para compreender a unidade mesma da obra, seja necessário isolar estes
dois aspectos.”. (1973, pg. 212) [Itálico do autor, negrito meu]
“A história é pois uma convenção, ela não existe ao nível dos próprios acontecimentos.” (...) “A história é uma
abstração pois ela é sempre percebida e narrada por alguém, não existe <em si>”. (1973, pg. 213).
No primeiro volume da obra Temps et Récit (Tempo e Narrativa), PAUL RICOEUR (1983) propõe a hipótese da
necessidade transcultural de relacionar o tempo "real" à narração; ou seja, o ser humano narra para perceber a
passagem do tempo e só percebe tal passagem através da mediação narrativa. RICOEUR busca construir um
modelo de composição de enredo, partindo do conceito de tempo de Santo Agostinho e da Poética de Aristóteles. A
Poética é arte de compor enredos, que por sua vez são uma forma de representação da ação. Esta representação é
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definida como Mimese, o processo ativo de imitar a ação, não no sentido de cópia, mas no sentido de produção de
algo além do ponto de partida: a própria disposição dos feitos mediante a construção do enredo.
O enredo passa, assim, a ser a arte (poética) de agenciar fatos, um signo ou processo de mediação da percepção
do tempo, onde a mimese atua como operação, não como estrutura. RICOEUR propõe, então, que tal processo
acontece em três instâncias: mimese I, referencial, o "antes" prático onde estão inseridos os sujeitos criadores e
receptores; mimese II, criativa, onde acontece a mediação poética e o processo de significação; e mimese III,
receptiva, onde ocorre (ou deveria ocorrer) um efeito de retorno ao referencial do receptor.
Retomando a hipótese da relação sígnica entre tempo e narrativa, segue-se pois o trajeto de um tempo prefigurado
para um tempo refigurado pela mediação de um tempo configurado: o enredo. Têm-se, deste modo, Mimese I como
prefiguração do campo prático, Mimese II como configuração mediática e Mimese III como refiguração pela
recepção da obra.
1. Mimese I: Semântica da ação
A composição do enredo se enraíza na pré-comprensão do campo prático da ação - Mimese I: de suas estruturas
inteligíveis, de seus recursos simbólicos e de seu caráter temporal. Estes traços mais se descrevem que se
deduzem. O primeiro passo é identificar a ação, em geral por seus traços estruturais, o que se constitui na
semântica da ação:
• circunstâncias: situações que atuam sobre os agentes, independentemente destes;
• interação: cooperação e competição (entre dois ou mais agentes) ou conflito (interno a um agente).
• agentes: fazem algo que gera conseqüências;
• motivos: porque os agente fazem algo;
• fins: antecipação do resultado, compromentendo quem depende da ação;
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• resultados: mudanças de sorte, positivas ou negativas.
Ou: porquê e como alguém faz o quê, sob quais circunstâncias. A ação é, portanto, a unidade narrativa.
Neste ponto determinamos, portanto, os elementos narrativos: tema, ambiente, personagens e ações.
2. Mimese I > Mimese II: Fábula ou Construção da História
Segundo TODOROV, existem dois níveis de História:
a) Lógica das ações
“Tentemos para começar considerar as ações em uma narrativa por elas mesmas, sem levar em conta a
relação que elas mantém com outros elementos. Que herança nos legou aqui a poética clássica?”
“As REPETIÇÕES. Todos os comentários sobre a <técnica> narrativa apóiam-se sobre uma simples
observação: em toda obra, existe uma tendência à repetição, que concerne à ação, aos personagens ou
mesmo a detalhes da descrição.” (TODOROV, 1973: 213)
A repetição, que ultrapassa a obra literária, precisa-se em formas particulares:
• Antítese: “contraste que pressupõe, para ser percebido, uma parte idêntica em cada um dos dois
termos”.
• Gradação: “Uma outra forma de repetição é a gradação. Quando uma relação entre os personagens
permanece idêntica durante muitas páginas, um perigo de monotonia espreita suas cartas. (...) A
monotonia é evitada graças à gradação”.
• Paralelismo: “Mas a forma que é de longe a mais difundida do princípio de identidade é o que se chama
comumente o paralelismo. Todo paralelismo é constituído por duas seqüências ao menos, que
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comportam elementos semelhantes e diferentes. Graças aos elementos idênticos, as dissemelhanças
encontram-se acentuadas: a linguagem, nós o sabemos, funciona antes de tudo através das diferenças”.
“Podem-se distinguir dois tipos principais de paralelismo: o dos fios da intriga, que trata das grandes
unidades da narrativa; e o das fórmulas verbais (os <detalhes>)”.(1973: 214) “O segundo tipo de
paralelismo apóia-se sobre uma semelhança entre fórmulas verbais articuladas em circunstâncias
idênticas”.(1973: 215)
TODOROV aplica dois modelos de estudo de contos folclóricos sobre o livro “Ligações Perigosas” e chega a
resultados diferentes:
“O fato que segundo o modelo escolhido obtemos um resultado diferente a partir da mesma narrativa é um
pouco inquietante. Revela-se de um lado que esta mesma narrativa pode ter muitas estruturas; e as técnicas
em questão não nos oferecem critério algum para escolher uma delas. Por outro lado, certas partes da
narrativa são apresentadas, nos dois modelos, por proposições diferentes; entretanto em cada caso
permanecemos fiéis à história. Esta maleabilidade da história nos adverte de um perigo: se a história
permanece a mesma, embora modifiquemos algumas de suas partes, é que estas não são verdadeiras
partes”.(1973: 219-220)
b) As personagens e suas relações
Literatura Ocidental clássica que se estende de D. Quixote ao Ulisses. “Nesta literatura, o personagem parecenos representar um papel de primeira ordem e é a partir dele que se organizam os outros elementos da
narrativa. Não é entretanto o caso em certas tendências da literatura moderna em que o personagem
desempenha novamente um papel secundário.
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O estudo do personagem coloca múltiplos problemas que estão ainda longe de ser resolvidos. Vamo-nos deter
sobre um tipo de personagem que é relativamente o melhor estudado: o que é caracterizado exaustivamente
por suas relações com os outros personagens. Não é preciso crer que, pelo fato de que o sentido de cada
elemento da obra equivale ao conjunto de suas relações com os outros, todo personagem se defina
inteiramente por suas relações com os outros personagens. E entretanto o caso para um tipo de literatura e
notadamente para o drama.”
(...) Os PREDICADOS DE BASE. À primeira vista, estas regras podem parecer muito diversas, por causa do
grande número de personagens, mas percebe-se rapidamente que é fácil reduzi-las a três apenas: desejo,
comunicação, participação.” (realizada pela ajuda) Todorov falando de Ligações Perigosas. (1973: 220-221)
“Não queremos entretanto afirmar que seja necessário reduzir todas as relações humanas, em todas as
narrativas, a estas três. Seria uma redução excessiva que nos impediria de caracterizar um tipo de narrativa
precisamente pela presença destas três relações. Cremos em oposição que as relações entre personagens,
em toda narrativa, podem ser sempre reduzidas a um pequeno número e que esta rede de relações tem um
papel fundamental para a estrutura da obra. É nisto que se justifica nosso intento.
Dispomos pois de três predicados que designam relações de base. Todas as outras relações podem-se derivar
destas três, com a ajuda de duas regras de derivação. Uma tal regra formaliza a relação entre um predicado de
base e um predicado derivado.” (1973: 222)
“A REGRA DE OPOSIÇÃO. Chamaremos a primeira regra cujos produtos estão mais difundidos regra de
oposição. Cada um dos três predicados possui um predicado oposto (noção mais estreita que a negação).
Estes predicados opostos estão menos freqüentemente presentes que seus correlatos positivos.” (1973: 222)
“A REGRA DO PASSIVO. Os resultados da segunda derivação a partir dos três predicados de base estão
menos difundidos; correspondem à passagem da voz ativa à voz passiva, e podemos chamar esta regra de
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regra de passivo. Assim Valmont deseja Tourvel, mas é também desejado por ela. (...) Em outras palavras,
cada ação tem um sujeito e um objeto.”
“Notamos aqui que estas duas regras não tem exatamente a mesma função: a regra de oposição serve para
engendrar uma proposição que não pode ser expressa de outra maneira; a regra do passivo serve para
mostrar o parentesco de duas proposições já existentes.” (1973: 224)
O SER E O PARECER. “A aparência não coincide necessariamente com a essência da relação embora se
trate da mesma pessoa e do mesmo momento. Podemos pois postular a existência de dois níveis de relações,
o de ser e o de parecer. (Não esqueçamos que estes termos concernem à percepção dos personagens e não
a nossa.)” (1973: 225)
“Empregaremos o termo genérico de agente para designar simultaneamente o sujeito e o objeto da ação. No
interior de uma obra, os agentes e os predicados são unidades estáveis, o que varia são as
combinações dos dois grupos”.
REGRAS DE AÇÃO. Estas regras terão como dados de partida os agentes e os predicados dos quais falamos
e que se encontram já em uma certa relação; elas prescreverão, como resultado final, as novas relações que
se devem instaurar entre agentes.”(1973: 226)”.
“1. Precisemos para iniciar o alcance destas regras de ação. Elas refletem as leis que governam a vida de uma
sociedade, a destes personagens de nosso romance. (...) Os próprios personagens podem ter consciência
destas regras: encontramo-nos pois aqui ao nível da história e não ao do discurso. As regras assim formuladas
correspondem a grandes linhas da narrativa sem precisar como cada uma das ações prescritas se
realiza.”(1973: 229)
Retornando a RICOEUR, o segundo passo é elaborar a significação articulada da ação, identificando suas
mediações simbólicas (Ricoeur usa o termo símbolo como sinônimo de signo). Esta qualificação, ou valoração, das
ações no âmbito da cultura diferencia a ação poética da ação prática e a identifica como um construto da
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linguagem, que não necessariamente obedece a uma lógica prática ou aleatória. Todos os membros do conjunto da
rede da ação estão numa relação de intersignificação. Dominar a rede conceitual em seu conjunto, e cada termo
como membro do conjunto, é ter a competência que se pode chamar de compreensão prática.
Enquanto provém da ordem paradigmática (sistêmica), todos os termos relativos a ação são sincrônicos, enquanto
que a narrativa, por sua vez, tem um caráter diacrônico.
A mimese II exerce a força de mediação entre o antes (mimese I) e o depois (mimese III) da configuração. Esta força
provém do caráter dinâmico da operação de configuração, que faz Ricoeur preferir os termos "construção de enredo"
a simplesmente "enredo" e "disposição" a "sistema".
Primeira mediação: esta configuração é mediadora por relacionar eventos individuais à história como um todo,
integrando fatores heterogêneos como agentes, fins, meios, interações e circunstâncias através de características
temporais próprias.
FÁBULA: encadeamento das ações segundo uma lógica temporal e causal.
3. Mimese II: Relato ou Configuração do Enredo
“Para explorar a segunda parte do problema, partiremos de uma abstração inversa: consideraremos a narrativa
unicamente enquanto discurso, fala (parole) real dirigida pelo narrador ao leitor”.
“Separaremos os procedimentos do discurso [recursos narrativos] em três grupos: o tempo da narrativa, onde se
exprime a relação entre o tempo da história e o do discurso; os aspectos da narrativa [foco narrativo], ou a maneira
pela qual a história é percebida pelo narrador, e os modos da narrativa, que dependem do tipo de discurso utilizado
pelo narrador para nos fazer conhecer a história”.(TODOROV, 1973: 232-233)
a) O tempo da narrativa
“O problema da apresentação do tempo na narrativa impõe-se por causa de uma dissemelhança entre a
temporalidade da história e a do discurso. O tempo do discurso é, em um certo sentido, um tempo linear
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[diacrônico], enquanto o tempo da história é pluridimensional [sincrônico]. Na história, muitos
acontecimentos podem-se desenrolar ao mesmo tempo; mas o discurso deve obrigatoriamente colocá-los um
em seguida ao outro; uma figura complexa encontra-se projetada sobre uma linha reta. É daí que vem a
necessidade de romper a sucessão <natural> dos acontecimentos, mesmo se o autor desejava segui-la mais
de perto. Mas a maior parte do tempo, o autor não tenta encontrar esta sucessão <natural> porque utiliza a
deformação temporal para certos fins estéticos.” (1973: 232)
A unidade superior à proposição que localizamos nas narrativas é a seqüência constituída por um grupo de
pelo menos três proposições. [...] A combinação de várias seqüências se presta facilmente a uma tipologia
formal. Os casos seguintes são possíveis: encadeamento, quando as seqüências são dispostas na ordem 1-2;
encaixamento, ordem 1-2-1; entrelaçamento (ou alternância), ordem 1-2-1-2. Esses três tipos fundamentais
podem ainda se combinar entre si ou com outras instâncias do mesmo tipo. O encadeamento global das
seqüências no interior de um texto produz a intriga [enredo]; essa noção é muitas vezes aplicada
exclusivamente aos textos dominados pela ordem causal”.(2001, pg. 270) “Toda intriga se funda na mudança”
(2001, pg. 271).
ENCADEAMENTO, ALTERNÂNCIA, ENCAIXAMENTO. “As observações anteriores relacionam-se à
disposição temporal no interior de uma só história. Mas as formas mais complexas da narrativa literária contêm
diversas histórias”. (...)
“O encadeamento consiste simplesmente em justapor diferentes histórias: uma vez acabada a primeira,
começa-se a segunda. A unidade é assegurada, neste caso, por uma semelhança na construção de cada uma:
por exemplo, três irmãos partem sucessivamente à procura de um objeto precioso; cada uma das viagens
fornece a base de uma das histórias.”
“O encaixamento é a inclusão de uma história no interior de outra. Assim todos os contos das Mil e uma Noites
são encaixados no conto sobre Sherazade.”
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(...) “Existe entretanto um terceiro tipo de combinação que podemos chamar a alternância. Consiste em contar
as duas histórias simultaneamente, interrompendo ora uma ora outra, para retomá-la na interrupção seguinte.
Esta forma caracteriza evidentemente gêneros literários que perderam toda ligação com a literatura oral: esta
não pode conhecer a alternância.” (1973: 234)
TEMPO DA ESCRITURA, TEMPO DA LEITURA. “A estas temporalidades próprias dos personagens, que se
situam na mesma perspectiva, acrescentam-se duas outras que pertencem a um plano diferente: o tempo da
enunciação (da escritura) e o tempo da percepção (da leitura). O tempo da enunciação torna-se um elemento
literário a partir do momento em que é introduzido na história: caso em que o narrador nos fala de sua própria
narrativa, do tempo que tem para escrever ou para contá-la”.(...) “O tempo da leitura é um tempo irreversível
que determina nossa percepção do conjunto; mas pode também tornar-se um elemento literário com a
condição de que o autor o leve em conta na história”. (1973: 235-236)
b)Os aspectos da narrativa (Foco Narrativo)
“Lendo uma obra de ficção, não temos uma percepção direta dos acontecimentos que descreve. Ao mesmo
tempo que estes acontecimentos, percebemos, embora de uma maneira diferente, a percepção que dele
possui aquele que os narra. É aos diferentes tipos de percepção, reconhecíveis na narrativa, que nos referimos
pelo termo de aspectos da narrativa. (tomando esta palavra em uma acepção próxima de seu sentido
etimológico, isto é, <olhar>). Mais precisamente, o aspecto reflete a relação entre um ele (na história) e
um eu (no discurso), entre a personagem e o narrador”. (...)
NARRADOR>PERSONAGEM (A visão <por trás>). “A narrativa clássica utiliza com mais freqüência esta
fórmula. Neste caso, o narrador sabe mais que seu personagem. Não se preocupa em nos explicar como
adquiriu este conhecimento: vê através do crânio de seu herói. Seus personagens não têm segredo para ele.”
(1973: 236)
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NARRADOR = PERSONAGEM (A visão <com>) “Esta segunda forma é também difundida em literatura,
sobretudo na época moderna. Neste caso, o narrador sabe tanto quanto os personagens, não pode fornecer
uma explicação dos acontecimentos antes de os personagens a terem encontrado. Aqui também pode-se
estabelecer distinções. De um lado, a narrativa pode ser conduzida em primeira pessoa (o que justifica o
processo) ou na terceira pessoa, mas sempre segundo a visão que um mesmo personagem tem dos
acontecimentos: o resultado, evidentemente, não é o mesmo.”
NARRADOR<PERSONAGEM (A visão <de fora>). Neste terceiro caso, o narrador sabe menos que qualquer
um dos personagens. Pode-nos descrever unicamente o que se vê, ouve etc. mas não tem acesso a nenhuma
consciência. Certamente, este puro <sensualismo> é uma convenção pois uma tal narrativa seria
incompreensível; mas existe como modelo de uma certa escritura.” (1973: 237)
c) Os modos da narrativa
“Os aspectos da narrativa concerniam à maneira pela qual a história era percebida pelo narrador; os modos
da narrativa concernem à maneira pela qual este narrador no-la expõe, no-la apresenta. É a estes modos
da narrativa a que nos referimos quando dizemos que um escritor nos <mostra> as coisas, enquanto tal outro
só faz <dizê-las>. Existem dois modos principais: a representação e a narração. Estes dois modos
correspondem, em um nível mais concreto, às duas noções que já encontramos: o discurso e a história.”
“Pode-se supor que estes dois modos na narrativa contemporânea vêm de duas origens diferentes: a crônica e
o drama. A crônica ou a história, é, crê-se, uma pura narração, o autor é uma simples testemunha que relata
os fatos; os personagens não falam; as regras são as do gênero histórico. Em oposição,
no drama, a história não é relatada, desenvolve-se diante de nossos olhos (mesmo se só fazemos ler a peça);
não há narração, a narrativa está contida nas réplicas dos personagens.” (1973: 240)
(...) “A fala dos personagens em uma obra literária goza de um estatuto particular. Relaciona-se, como toda
fala, à realidade designada, mas representa igualmente um ato, o ato de articular esta frase. Se um
Narratologia e construção de histórias
personagem diz: <Você é muito bela>, é que não somente a pessoa à qual se dirige é (ou não é) bela, mas
que este personagem realiza diante de nossos olhos um ato: articula uma frase, faz um cumprimento.”
(...) “Entretanto esta primeira identificação da narração e da representação peca por seu lado simplista.
Ficando-se aí, segue-se que o drama não conhece a narração, a narrativa não-dialogada, a representação.
Entretanto pode-se facilmente convencer-se do contrário”. (1973: 241)
“OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE NA LINGUAGEM. Devemos abandonar esta nossa primeira identificação
da narração com a fala do narrador e da representação com a dos personagens, para encontrar-lhes um
fundamento mais profundo. Uma tal identificação fundar-se-ia, vemo-lo agora, não sobre as categorias
implícitas, mas sobre sua manifestação, o que pode nos induzir facilmente ao erro. Encontraremos este
fundamento na oposição entre os aspectos objetivo e subjetivo da linguagem.”
“Toda fala é, sabe-se, ao mesmo tempo um enunciado e uma enunciação. Enquanto enunciado, ela se
relaciona com o sujeito do enunciado e permanece portanto objetiva. Enquanto enunciação, ela se
relaciona com o sujeito da enunciação e guarda um aspecto subjetivo pois representa em cada caso um
ato realizado pelos sujeito. Toda frase apresenta estes dois aspectos, mas em graus diferentes.”
(...) “É apenas o contexto global do enunciado, entretanto, que determina o grau de subjetividade própria a
uma frase.”
(...) “O estilo direto está ligado, em geral, ao aspecto subjetivo da linguagem; mas como o vimos a propósito de
Valmont e Mme. De Volanges, esta subjetividade se reduz por vezes a uma simples convenção: a informação
é-nos apresentada como vinda do personagem e não do narrador, mas não sabemos nada sobre este
personagem. Inversamente, a fala do narrador pertence geralmente ao plano da enunciação histórica, mas no
momento de uma comparação (como de outra figura de retórica) ou de uma reflexão geral, o sujeito da
enunciação torna-se aparente, e o narrador se aproxima assim dos personagens”.
Narratologia e construção de histórias
“Os aspectos e os modos da narrativa são duas categorias que entram em relações muito estreitas e que
concernem, todos os dois, à imagem do narrador. É por isso que os críticos literários tiveram tendência a
confundi-los”.(1973: 243-244)
RELATO: escolha dos recursos narrativos para configuração do enredo - tom, tempo, ritmo, foco, modo.
3. Mimese II > Mimese III: A Narrativa como Discurso
“IMAGEM DO NARRADOR E IMAGEM DO LEITOR. O narrador é o sujeito desta enunciação que
representa um livro. Todos os processos de que temos tratado nesta parte nos trazem de volta a este sujeito.
É ele que dispõe certas descrições antes das outras, embora estas as precedam no tempo da história. É ele
que nos faz ver a ação pelos olhos de tal ou qual personagem, ou mesmo por seus próprios olhos, sem que lhe
seja por isto necessário aparecer em cena. É ele enfim que escolhe relatar-nos tal peripécia através do diálogo
de dois personagens ou mesmo por uma descrição <objetiva>. Temos portanto uma quantidade de
informações sobre ele, que nos deveriam permitir compreendê-lo, situá-lo com precisão; mas esta imagem
fugitiva não se deixa aproximar e se reveste constantemente de máscaras contraditórias, indo desde a de um
autor de carne e osso à de um personagem qualquer.”
“Há entretanto um lugar em que, parece, aproximamo-nos suficientemente desta imagem: podemos chamá-lo
de nível apreciativo. A descrição de cada parte da história comporta sua apreciação moral; a ausência de
uma apreciação representa uma tomada de posição muito significativa. Esta apreciação, dizemos de imediato,
não faz parte de nossa experiência individual de leitores nem da do autor real; ela é inerente ao livro e não se
poderia corretamente compreender a estrutura desta sem ter isto em conta. (...) É preciso dar-se conta de
início que existem duas interpretações morais de caráter realmente diferente: uma que é interior ao livro
(em toda arte imitativa), e outra que os leitores dão sem se preocupar com a lógica da obra; esta pode
variar sensivelmente segundo as épocas e a personalidade do leitor”. (1973: 245)
Narratologia e construção de histórias
(...) “Este nível apreciativo nos aproxima da imagem do narrador. Não é necessário para isto que este nos dirija
<diretamente> a fala: neste caso ele se assimilaria, pela força da convenção literária, aos personagens. Para
adivinhar o nível apreciativo, recorremos a um código de princípios e reações psicológicas que o narrador
postula comuns ao leitor e a ele mesmo”. (...) “A imagem do narrador não é uma imagem solitária; desde que
aparece, desde a primeira página, ela é acompanhada do que se pode chamar <a imagem do leitor>.
Evidentemente, esta imagem tem tão poucas relações com um leitor concreto quanto a imagem do narrador,
com o autor verdadeiro. Os dois concretizam-se em dependência estreita um do outro, e desde que a imagem
do narrador começa a sobressair mais nitidamente, o leitor imaginário encontra-se também desenhado com
mais precisão. Estas duas imagens são próprias a toda obra de ficção: a consciência de ler um romance e
não um documento leva-nos a fazer o papel deste leitor imaginário e ao mesmo tempo apareceria o
narrador, o que nos relata a narrativa, já que a própria narrativa é imaginária. Esta dependência confirma a lei
semiológica geral segundo a qual <eu> e <tu>, o emissor e o receptor de um enunciado, aparecem sempre
juntos.
Estas imagens se formam a partir das convenções que transformam a história em discurso. O fato
mesmo de que lemos o livro do começo ao fim (isto é, como o teria desejado o narrador) nos leva a fazer o
papel de leitor. (...) Assim observamos nosso papel de leitor desde que sabemos mais que os personagens,
pois esta situação contradiz uma verossimilhança no vivido”. (1973: 246-247)
“Pode-se resumir todas as observações que apresentamos aqui dizendo que tinham por objeto a estrutura
literária da obra, ou, como diremos de agora em diante, uma certa ordem. Empregaremos este termo como
uma noção genérica para todas as relações e estruturas elementares que estudamos”. (1973: 247)
Todorov postula que pode haver infrações à ordem tanto no âmbito da História como no do Discurso. Ele as
exemplifica no caso do romance “Ligações Perigosas”, mostrando no final que a Ordem Social invade a Ordem
interna do livro, dando um desfecho dentro da moral convencional da época para as personagens da obra. São
Narratologia e construção de histórias
as infrações de ordem e discurso que levam a este desenlace ou desfecho, mantendo uma dubiedade devido a
mudança no teor das cartas e seus escreventes que põe a frente o “parecer” em vez do “ser”, escondendo a
imagem do autor. Neste jogo final estaria o brilhantismo de “Ligações Perigosas”. É igualmente possível o
inverso, em que uma obra segue apresentando a ordem existente fora dela e cujo desenlace introduziria uma
ordem nova, precisamente a do universo romanesco.
Segundo RICOEUR, a narração têm duas dimensões: episódica e configurada. A dimensão episódica é a
representação linear, uma série aberta onde episódios seguem-se sucessivamente de acordo com a ordem
irreversível do tempo. A dimensão configurada transforma a sucessão dos acontecimentos em totalidade
significante, impondo à sucessão indefinida de acontecimentos o sentido de ponto final, o que permite ver a história
como totalidade. Graças a esta reflexão, todo o enredo pode ser traduzido em um pensamento que é seu ponto ou
tema: o tempo narrativo que faz a mediação entre os aspectos episódicos (práticos) e configurante (poéticos).
Assim, eventos singulares recebem sua definição a partir do encadeamento temporal, ganhando significado no todo
configurado, já na mimese III (a recepção). O ato poético - aqui no sentido de poiésis como ato de refigurar, - se
converte assim no agente que une mimese II a III.
Esta é a segunda mediação da mimese II, a constituição de uma tradição que reside no jogo ou tensão entre
inovação e sedimentação.
Aqui, chegamos a uma síntese na configuração do enredo, onde se faz EMERGIR O TEMA já na percepção do receptor da obra,
e quais impactos esta síntese causará neste receptor.
Narratologia e construção de histórias
MIMESE III: A NARRATIVA COMO TRADIÇÃO
Segundo COELHO (In: Jobim & Souza, 2000:27-38), a repetição está na raiz dos discursos e não somente nas
manifestações mais simples e óbvias (rituais, por exemplo). A tradição só se sedimenta através da repetição –
persistência. Entretanto, esta mesma repetição corrói e esvazia o signo, abrindo espaço para as operações
gregárias do poder: infiltrações, apropriações, substituições, cristalizações – insistência.
A tradição, entretanto, não se resume à repetição, mas caminha em dois sentidos: sedimentação e inovação. A
sedimentação consolida a linguagem, mas pode cristalizar-se; a inovação avança a linguagem, mas pode
causar estranhamento e afastamento, como tem acontecido, em alguns casos, na arte contemporânea.
No ato poético, a constituição de uma tradição reside no jogo ou tensão entre inovação e sedimentação. A
sedimentação consolida o repertório de paradigmas que constituem a tipologia da configuração: esquemas
narrativos ocidentais que se combinam causalmente a partir de uma herança aristotélica, gerando um código
paradigmático e uma tipificação de formas.
Se a sedimentação universaliza, a inovação singulariza, pois cada poética produzida, cada maneira pessoal de
operar os códigos de configuração, oferece desafios e transgressões às normas que acabam retro-alimentando o
repertório sedimentado. Isto pode soar como um ciclo vicioso, mas Ricoeur lança mão da estética da recepção de
WOLFGANG ISER da relação prazer/gozo do texto de ROLAND BARTHES (2002) para demonstrar que o jogo entre
transgressão e apropriação, que tem como um de seus grandes referentes o receptor que aceita ou rejeita a
inovação, é vital para a constituição de um ciclo virtuoso da linguagem. Assim, a retro-alimentação passa a ter
uma ação transformadora evocando o paradoxo ordem/caos.
Para BARTHES (1977), o ciclo vicioso faz parte da constituição da linguagem. A linguagem é fascista: ela não
impede de dizer, e sim obriga a dizer, justamente por ser um sistema de classificações, e toda classificação é
Narratologia e construção de histórias
opressiva (KONDER, 2001:19.7-9).1 É neste momento que o "poder" se exerce: na obrigatoriedade de dizer; o poder
embosca-se em todo discurso, inclusive nos mais íntimos (o "senso comum", o "natural", o "desde sempre").2 Assim,
a linguagem atua através da afirmação e da repetição dos signos, nesta obrigatoriedade de dizê-los.
O ciclo virtuoso acontece justamente no que Barthes chama "trapacear" a linguagem, jogar com ela e com os
signos: não na mensagem, mas no uso de seus códigos formais. Neste momento, BARTHES (1977, 1999) ressalta a
responsabilidade (não a supremacia) da forma como retro-alimentação transformadora: a escritura - toda
manifestação de linguagem humana capaz de promover um "descongelamento" dos signos. Segundo LEYLA
PERRONE-MOISÉS,
Considerando sempre como sua inimiga no. 1 a Doxa, ou Opinião dominante (conceito colhido em Brecht), seu
[de Barthes] campo só podia ser o do paradoxo. E como a Doxa está sempre recuperando qualquer posição
paradoxal, era preciso sempre deslocar-se para continuar exercendo a função que, segundo ele, era a do
escritor: uma função crítica e utópica. (PERRONE-MOISÉS, 1983:52).
A escritura difere do estilo, um conceito clássico de revestimento estético de um conteúdo, em que a idéia precede a
linguagem. Assim, a escritura não se define pelos conteúdos e nem mesmo pelos sentidos que cria, e sim pelo
aspecto formal, que em Barthes não remete ao estilo, e sim a uma materialidade do texto. Deste modo, é definível
apenas por um discurso ele mesmo escritural: "[...] a ciência dos gozos da linguagem, seu Kamasutra [...]"
(BARTHES, in: PERRONE-MOISÉS, 1983:53). Não há critérios claros para demarcar que um texto é escritura, é
escritura o que pode ser lido por alguém como escritura. A escritura questiona sem oferecer respostas, move a
1
Para Lacan ([1949]; 1953; [199-]), sujeito só pode ser sujeito da linguagem: "eu" é o primeiro signo do ser humano.
2
Lembremos ainda que o poder para Barthes não é um poder institucional, mas um "parasita" da linguagem e acontece em quaisquer de suas manifestações. Não só político nem só ideológico, vai além
da mensagem (Barthes, 1977:11). Este termo, neste momento, para Barthes, parece referir-se à ideologia não como distorção, mas como conjunto de valores, talvez já criticando este conceito de ideologia
como conjunto de crenças e valores e resgatando o conceito de ideologia como o proposto por Marx: o de distorção (Konder, 2001:4).
Narratologia e construção de histórias
linguagem sem cristalizá-la, produzindo aqui e ali o próprio sujeito e sua voz, não exprimindo, mas fazendo o próprio
conteúdo. Daí a responsabilidade da forma escritural: abrir uma fenda para que se ouça a voz única de um corpo
que se receba como um gozo (gozo ou fruição segundo diferentes traduções de jouissanse), "sentido como
intensidade, como perda do sujeito pensante e ganho de uma nova percepção das coisas." (PERRONE-MOISÉS,
1983:56).
Uma vez que o sujeito se modifica em contato com a escritura, podemos dizer que o gozo se completa numa
dimensão ética de retorno ao campo prático. LEYLA PERRONE-MOISÉS (1983:56) diz que "A escritura é poesia no
sentido moderno do termo: aquele discurso que acha sua justificação na própria formulação, e não na representação
de algo prévio e exterior [...]". Esse gozo não concerne apenas a abertura para uma multiplicidade de sentidos:
concerne o aspecto pulsional que está presente na idéia de “escritura”.
O ato poético - como diria também HAROLDO DE CAMPOS (1977) sobre o "poetar" - é o próprio ato de configurar,
ou de formular a escritura. As obras poéticas, como qualquer discurso, acontecem na linguagem; entretanto, não se
pode negar seu impacto sobre a experiência cotidiana devido ao seu poder de ataque subversivo contra a ordem
moral e social. Esta interação do poético com o prático abre um leque de opções que vai da confirmação ideológica
da ordem estabelecida (sedimentação, ou prazer) à crítica e problematização (inovação, ou gozo), incluindo a
alienação em relação ao real, uma interação de ordem ética.
Neste ponto, o processo se completa, gerando no receptor alguma alteração, seja da ordem do prazer, seja da ordem do gozo.
Narratologia e construção de histórias
Bibliografia:
BARTHES, Roland. Aula. Tradução e Posfácio Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cultrix, 1977.
________. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. [1970]
________. Mitologias. Trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, (1957) 1999, 10a.
ed.
________. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2002, 3a. ed.
CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977, 4a. ed.
CARDOSO, João Batista. Teoria e Prática de leitura, apreensão e produção de texto: por um tempo de "PÁS"
(Programa de Avaliação Seriada). Brasília: Universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001.
COELHO, Luiz Antonio. Imagem Narrativa. Palestra para o Curso Básico de Design de RPG, Coordenação Central
de Extensão, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, out.-dez. 2002.
_________. A repetição na cultura. In: JOBIM E SOUZA, Solange (org.). Mosaico: Imagens do Conhecimento. Rio
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GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática. 2002.
GENETTE, Gérard. Fronteiras da Narrativa. In Analise Estrutural da Narrativa. (pg. 209-254). Tradução: Maria Zélia
Barbosa Pinto. Petrópolis: Editora Vozes, 1973. [1966]
KONDER, Leandro. A Questão da Ideologia. Texto inédito, 2001, caps. 19 e 20.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes: o saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1983.
RICOEUR, Paul. Temps et Récit, Tome I. Paris: Editions du Seuil, 1983.
ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura ou narrativa? Representações (materiais) da narrativa. In Literatura e
cultura (orgs) Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schollhammer – Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola,
2003.
Narratologia e construção de histórias
SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1988, 2a. ed.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2004.
[1964-1969]
___________. As Categorias da Narrativa Literária. In Analise Estrutural da Narrativa. (pg. 209-254). Tradução:
Maria Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis: Editora Vozes, 1973. [1966]
___________ & DUCROT, Oswald. Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem. Tradução: Alice
Kyoko Miyashiro, J. Guinsburg, Mary Amazonas Leite de Barros e Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2001 [1972]
Narrativa heróica e mítica
NARRATIVA MÍTICA
Neste texto, vamos nos aprofundar um pouco sobre um determinado tipo de estrutura narrativa: o mito. Por que?
Porque esta estrutura ainda é a principal inspiradora das narrativas contemporâneas voltadas para o entretenimento,
sobretudo nas narrativas produzidas pela indústria cultural: os quadrinhos de super-heróis, o cinema e os seriados
da TV norte-americana épicos e de ação, os games.
Relembremos que por narrativa, entenda-se "discurso capaz de evocar, através da sucessão de fatos, um mundo
dado como real ou imaginário, situado num tempo e num espaço determinados. Na narrativa distingue-se a narração
(construção verbal ou visual que fala do mundo) da diegese (mundo narrado, ou seja, ações, personagens, tempos).
Como uma imagem, a narrativa põe diante de nossos olhos, nos apresenta, um mundo". (Sodré, 1988:75; grifos do
autor). No caso deste texto, uma mesma, ou similar, estrutura de narração mítica, que pode apresentar diferentes
mundos diegéticos: fantásticos, históricos, de ficção científica, de horror...
Novamente recorrendo a Muniz Sodré, o mito seria "[...] o discurso não regido pelas leis da História, o universo de
contato entre homens e deuses. Míticas são as fabulações e as alegorias relativas às peripécias dos heróis lendários
[...]” (1998:75).
Ainda segundo o Dicionário Básico de Filosofia (Japiassú & Marcondes, 2001:183), mito, do grego mythos: narrativa,
lenda. "1. Narrativa lendária, pertencente à tradição cultural de um povo, que explica através do apelo ao
sobrenatural, ao divino e ao misterioso, a origem do universo, o funcionamento da natureza e a origem e os valores
básicos do próprio povo. [...]".
Narrativa heróica e mítica
Para conhecer melhor esse tipo de estrutura narrativa, comecemos com a análise morfológica dos contos de magia
realizada por Vladimir Propp (1984).1
AS FUNÇÕES SEGUNDO VLADIMIR PROPP
Propp sugere que os contos de magia seriam variações sobre uma estrutura razoavelmente recorrente e, portanto,
delimitável. Tal estrutura foi extraída da análise de diversos contos e classificada em termos de funções. Segundo
Propp: 1. "Por função, compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua
importância para o desenrolar da ação." (1984:26) 2. "O número de funções dos contos de magia conhecidos é
limitado." 3. "A seqüência das funções é sempre idêntica." (1984:27). Para Propp, estas funções definem o conto de
magia como gênero literário.
Estas funções podem ser agrupadas, para fins de simplificação, nas seguintes seqüências: preliminares, busca,
regresso e acerto de contas.
Na sua análise, Propp observou que ainda que "as motivações, razões e objetivos que levam os personagens a
realizar esta ou aquela ação" (Propp, 1984:68) sejam as mais variadas, elas não interferem no desenrolar do enredo.
"O comportamento dos personagens no decorrer do conto é, na maior parte dos casos, motivado pelo próprio
desenvolvimento da ação, e somente o advento do dano ou carência, função primeira e fundamental do conto, exige
alguma motivação complementar. [...] Pode-se observar, de um modo geral, que os sentimentos e intenções dos
personagens não interferem de maneira alguma no desenvolvimento da ação." (Propp, 1984:68-71).
Propp, ainda que de forma breve, no mesmo estudo, levanta considerações sobre a classificação das personagens
com base nas suas esferas de ação e com base nos seus atributos. Classificadas de acordo com suas esferas de
1
O IPG associa teorias literárias, estruturalista e a narratologia, que também são de grande valia na elaboração de enredos lúdicos, com a Informática (Computação Gráfica e Inteligência Artificial - Bases
de Conhecimento, Agentes, Planejamento, Prolog, Affective Computing e Lingüística Computacional) para a elaboração de narrativas em ambiente virtual.
Narrativa heróica e mítica
ação, ou seja, que funções desempenham no enredo, as 7 personagens básicas do conto de magia seriam:
antagonista [A, H, Pr]; doadora [D, F]; auxiliar [G, K, Rs, N, T]; vítima [M, J, Ex, Q, U, W]; mandante [B]; herói [C↑, E,
W]; falso-herói [C↑, E, L]; lembrando que pode ocorrer de vítima e herói serem a mesma personagem.
Propp menciona três atributos que permitem o reconhecimento de uma personagem: aparência e nomenclatura,
particularidades de entrada em cena e habitat. As repetições mais recorrentes representam cânones, que podem ser
isolados: formas internacionais, formas nacionais peculiares, formas correspondentes a categorias sociais. O autor
afirma que "A análise dos atributos permite uma interpretação científica do conto maravilhoso. Do ponto de vista
histórico, isto significa que o conto maravilhoso, em sua base morfológica, é um mito." (Propp, 1984:82).
A PROTAGONISTA HERÓICA NA NARRATIVA MÍTICA
Percebe-se que em alguma medida, o conto de magia e o mito compartilham da mesma figura: a protagonista
heróica. Entretanto, como se pode observar, a protagonista na narrativa lúdica, ao contrário de limitar-se e definir-se
pelas esferas de ação, parece definir-se como heróica por permear todas as esferas de ação. E, em sendo heróica,
esta personagem tenderá a apresentar os atributos relativos ao mito do herói.
E, em sendo heróica, esta personagem tenderá a apresentar os atributos relativos ao mito do herói, conforme
classificados a partir de conceitos de herói extraídos de narrativas mitológicas e lendárias de tradições orais por
Joseph Campbell em seu texto O Herói de Mil Faces: “Um herói parte do mundo cotidiano para uma região de
maravilhas sobrenaturais: forças fabulosas são lá encontradas e uma vitória decisiva é obtida: o herói retorna dessa
misteriosa aventura com o poder de conceder dádivas a seus companheiros, homens comuns.” (Campbell,
1968;1973:30; tradução do inglês in: Klimick, 2002).
Lutz Muller (1987), partindo dos conceitos de Carl Gustav Jung e J. Campbell, com o intuito de relacionar o mito do
herói a certos comportamentos psicológicos, acaba fornecendo uma descrição bem detalhada de tais atributos como
características de um tipo de personagem:
Narrativa heróica e mítica
O herói tem quase sempre pais divinos ou nobres, sendo ao mesmo tempo filho de seres humanos normais. A
gestação, a gravidez; o nascimento e a primeira infância suportam uma grande carga. Algumas vezes os pais
são estéreis, outras vezes o herói é rejeitado desde o princípio; ou seu nascimento tem de se realizar em um
local secreto, ou ele deve ser morto e exposto. Sendo de origem nobre e divina experimenta o sofrimento da
criança abandonada, desamparada, cuja verdadeira natureza a princípio não é reconhecida. É ao mesmo
tempo poderoso e carente.
Educado por pais adotivos ou por animais, em sua juventude ele logo revela talento, habilidades e poderes
especiais. Excelentes mestres ajudam-no a aperfeiçoar suas habilidades e conhecimentos. Adquire suas
armas pessoais, quase sempre de procedência e qualidade especial. Muitas vezes encontra também um
animal fiel companheiro - em geral cavalo, cão ou pássaro -, que se distingue pela inteligência, segurança
instintiva e força. [...]" (ref). Itálico do próprio autor.
Para caracterizar personagens de narrativas com estrutura mítica, propõe-se, devido à relação estabelecida
anteriormente com o mito heróico, as categorias organizadas por Carl Gustav Jung. Segundo o autor, o processo de
individuação por arquétipos vem sendo utilizado para a caracterização narrativa, consciente e inconscientemente,
desde os primeiros relatos mitológicos do ocidente, sobretudo na literatura de massa. Para Jung, o herói é a
protagonista na busca do si-mesmo (self), e as coadjuvantes representam os arquétipos pelos quais esta
protagonista deve passar para atingir seu objetivo.
Jung adotou as quatro categorias heróicas do Hinduísmo, que serviu como base religiosa para a organização social
em castas na Índia. Segundo este pensamento religioso, espera-se que todo indivíduo na sociedade atinja estes
quatro objetivos e busque realização na vida carnal antes de partir dela, através do equilíbrio e harmonia entre estes
quatro caminhos. São eles: dharma, identificado por Jung como o caminho do combate e do dever rigoroso; kama, o
Narrativa heróica e mítica
caminho do prazer; moksha, o caminho da obediência e da submissão moral, sobretudo à conduta religiosa; e artha,
o caminho da praticidade e da solução de problemas.2
BIBLIOGRAFIA
CAMPBELL, Joseph. The Hero with a thousand faces. Mythos, 1973.
CIARLINI, Angelo Ernani Maia. Geração Interativa de Enredos. Tese de Doutorado em Informática, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1999.
JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES. Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 3a.
ed., 2001.
KLIMICK, Carlos. Onde está o herói? Artigo apresentado no I Simpósio O Outro, do Laboratório da Representação
Sensível, Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2002. Disponível em
http://www.historias.interativas.nom.br/historias/textos/heroi.htm.
LUTZ, Müller. O Herói. São Paulo: Cultrix, 1987.
MICHAELIS Dicionário Ilustrado. São Paulo: Melhoramentos, 1961.
PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. Forense Universitária, 1984.
SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1988, 2a. ed.
2
Fonte: http://hinduwebsite.com/hinduism/h_aims.htm (capturado em 15/04/2004), por indicação do Dr. Antonio Furtado durante a disciplina Esquemas
Conceituais de Narrativas da pós-graduação strictu senso em Informática da PUC-Rio.
Narrativa Lúdica
TIPOS DE NARRATIVA LÚDICA
Jogo: segundo Japiassú e Marcondes (2001:150-151), do latim jocus: brincadeira.
1. Atividade física ou mental cujo objetivo é o prazer que proporciona; "[...] jogos com regras ou socializados, nos
quais o prazer se vincula ao respeito às regras, às dificuldades de vencer uma competição."
2. "Entre os adultos, o jogo é considerado, em certo sentido, como o oposto do trabalho e como uma oportunidade
de expressão de sua liberdade."
3. Jogos de linguagem, de Wittgenstein: "[...] concepção de linguagem como comunicação e interação [...]".
4. Teoria dos Jogos (Game Theory, John von Neumann e Oskar Morgenstern). "Teoria matemática que busca
formular modelos explicativos de situações em que os participantes devem tomar decisões de caráter estratégico em
relação uns aos outros, visando a realização de seus objetivos e interesses. Os jogos podem ser cooperativos,
quando os objetivos dos participantes são comuns; de conflito [ou competição?], quando os objetivos são opostos;
ou mistos, quando há objetivos de ambos os tipos."
“Os teóricos do estudo dos jogos esforçam-se por destacar as diferenças entre eles próprios e os teóricos da
narrativa, uma postura que tem sido produtiva para o início de seu projeto acadêmico. Os jogos precisam mesmo
de um vocabulário crítico distinto da terminologia narrativa [...]
Mas representar, jogar e contar histórias estão intimamente ligados. Tal como a linguagem, são componentes
ancestrais e definidores de nossa humanidade. São também recursos para as tarefas culturais que enfrentamos
atualmente, especialmente para a de viver numa comunidade global que traga compreensão e respeito mútuo
através de nossas múltiplas fronteiras culturais.” (Murray, 2003:11)
Narrativa Lúdica
Histórias Multisseqüenciais
Características Proporcionam ao interator a habilidade de
navegar por um arranjo fixo de eventos de
diferentes maneiras, todas elas bem definidas
e significativas.
Utilidade
O sentido mais profundo da obra emerge da
compreensão desses caminhos
entrecruzados.
Narrativa
literária
O Castelo do Destinos Cruzados, O Jardim
dos Caminhos que se Bifurcam (Jorge Luiz
Borges)
Aventura Solo
Narrativa
lúdica
Histórias Multiformes
Múltiplas versões podem ser geradas a partir da
mesma representação fundamental, como um
sistema narrativo que pode oferecer muitas
versões, sendo que cada uma delas terá suas
próprias peculiaridades de eventos e caracteres
Podem ajudar-nos a perceber causas complexas
de acontecimentos complexos, assim como
imaginar diferentes desfechos para uma mesma
situação.
O Dicionário Kazar; Corra Lola, corra”; EXistenZ
RPG, ARG, MMP
O Role-playing Game (RPG) é um jogo onde o/a jogador/a interpreta uma personagem criada por ele/a, dentro de
um determinado contexto, conhecido como ambientação, de acordo com um sistema de regras, cuja aleatoriedade
pode ser medida por dados, cartas ou cronômetro. O RPG é jogado, geralmente, em volta de uma mesa, ou mesmo
no chão, sem necessidade de tabuleiros e peças, apenas material para anotações, além dos componenetes de
aleatoriedade. A representação teatral dos jogadores é verbal, não cênica, aproximando-se de uma leitura de texto
(como a que antecede os ensaios no palco ou cinema), ou seja, não implica caracterização por maquiagem e
figurino. As narrativas são lideradas por um Mestre de Jogo, que atua como diretor, argumentista, figurante,
coadjuvante e juiz de regras. No entanto, a narrativa se constrói coletivamente, pois as reações dos jogadores são
Narrativa Lúdica
imprevisíveis e frequentemente obrigam o Mestre a alterar o enredo. Trata- se de um hipertexto no qual os jogadores
constróem os caminhos a percorrer.
O RPG costuma ser disponibilizado em suporte impresso, na forma de livros ou revistas, mas existem RPGs digitais,
que muito se aproximam dos Alternate Reality Games (ARGs) e dos Massive Multiplayers online (MMPOs), em que
vários jogadores se conectam à internet, criam e atuam como suas personagens (denominadas avatares) e jogam
ao mesmo tempo.
As aventuras solo são narrativas lúdicas mais simples do que os RPGs, uma vez que apresentam opções para os
jogadores, em vez de demandarem a criação de alternativas de ação para as personagens, mas partilham com estes
da mesma estrutura. Trata-se de uma história com algumas possibilidades de desfecho, onde o/a jogador/a cria e/ou
utiliza – mas não encarna – uma personagem que pode seguir diferentes caminhos dentro da história. Conforme lê a
história, o leitor-jogador simultâneamente a joga. Assim, a estrutura narrativa da aventura solo pode também ser
considerada um hipertexto na qual o jogador escolhe um caminho a percorrer.
A aventura solo pode ser disponibilizada em suporte impresso, sendo conhecida como livro jogo, ou em suporte
digital, sendo a forma mais popular a do videogame.
Independentemente do suporte, ambos são estruturas narrativas que utilizam mais de uma Linguagem (visual,
verbal, musical, corporal) para disponibilizar os conteúdos, podendo ser consideradas hipermídias.
Narrativa Lúdica
SIMILARIDADES E DIFERENÇAS ENTRE RPG E AVENTURA SOLO
Componente
Narrativo
Cenário
Personagem
Enredo
Clima
Regras
Característica
Socialização
Grau de
abertura
Hipertexto
Aventura Solo
RPG
variedade: fantasia; ficção-científica; terror;
histórico; toon. Porém, hegemonia consistente da
fantasia e atualmente do terror
figura heróica X vilanesca; personagem que
evolui, principalmente nos sistemas classe/nível
um enredo com múltiplos caminhos e desfechos
determinado pela configuração do enredo
sistema para criar personagens e resolver ações
idem
Aventura solo
pode ser jogada sozinho, ou se em grupo, pode
haver competição ou cooperação entre os
jogadores
reatividade: tomada de decisões dentro de um
leque pré-determinado de opções
caminho associativo escolhido pelo jogador
RPG
não pode ser jogado sozinho; cooperação
entre jogadores, em vez de competição; requer
capacidade de expressão
interatividade: resposta autônoma e não
prevista no enredo
caminho associativo construído pelo jogador
idem, porém com encarnação do papel
idéias para enredos (plots)
determinado pelo modo de jogar
sistema para criar personagens, resolver
ações e criar enredos
Narrativa Lúdica
A ESTRUTURA DA NARRATIVA LÚDICA
Por serem formas de narrativa, as narrativas lúdicas partilham com as formas literárias dos mesmos componentes, à
exceção das regras (ou até delas, se considerarmos tal narrativa como um jogo de linguagem, no sentido de
Wittgenstein). Seja como for, a grande diferença é que na narrativa lúdica a configuração do enredo e a atuação das
personagens neste enredo não está subordinada apenas ao tema ou premissa, mas também às regras.
Em se tratando de jogo, não se pode deixar de falar de regras. Nas narrativas lúdicas, as regras compõem um
sistema de simulação de realidade, que, segundo o dicionário Novo Aurélio (Ferreira, 1995), é a reprodução análoga
de algo; “simulação analógica: experiência ou ensaio em que os modelos se comportam de maneira análoga à
realidade”. Ainda sobre termos relativos, “simulacro: 2. Ação simulada para exercício ou experiência”; e “simular: 2.
Representar com semelhanças, aparentar”.
Dentro deste sistema de simulação é que se constrói a importante relação personagem-jogador. Aqui, a personagem
é a interface entre o jogador e o jogo: através dela, vive-se (mais do que se acompanha), a história, vivência esta
que deriva sua ludicidade da estreita relação com a aventura mítica. Relembrando Muniz Sodré, o mito seria "[...] o
discurso não regido pelas leis da História, o universo de contato entre homens e deuses. Míticas são as fabulações e
as alegorias relativas às peripécias dos heróis lendários [...]” (1998:75).
Assim, espera-se que as personagens da narrativa lúdica atuem como figuras heróicas, no sentido daquelas
personagens que proporão alguma mudança estrutural ou de paradigma para alguma situação do cenário ou do
enredo (Klimick, 2002): herói combina com aventura, aventura com desafio, desafio com jogo.
Dentro deste mesmo sistema de simulação, configura-se o desenrolar do enredo lúdico. Na aventura solo, o enredo
deve pressupor diferentes desenvolvimentos e desfechos, cujo desenrolar depende das escolhas do jogador entre
esta ou aquela opção narrativa - o que acontece de acordo com as regras estabelecidas. Estas escolhas compõem-
Narrativa Lúdica
se de desafios pertinentes ao tema, perfazendo um conjunto de eventos chave (nós narrativos) a partir das quais a
história se movimenta, seguindo este ou aquele caminho.
De acordo com as regras também configura-se o desenrolar do enredo lúdico. Na aventura solo, o enredo deve
pressupor diferentes desenvolvimentos e desfechos, cujo desenrolar depende das escolhas do jogador entre esta ou
aquela opção narrativa - o que acontece de acordo com as regras estabelecidas. No RPG, o enredo deve pressupor
a intervenção direta dos jogadores, e só pode se desenrolar a partir das ações e decisões do grupo, de acordo com
ser ou não bem sucedido nessas ações, o que depende das regras. Estas escolhas ou intervenções compõem-se de
desafios pertinentes ao tema, perfazendo um conjunto de eventos chave (nós narrativos) a partir das quais a história
se movimenta, seguindo este ou aquele caminho, na aventura solo, ou se modificando completamente, no RPG.
A inserção de desafios e eventos-chave na narrativa lúdica podem ser norteadas pelo modelo construído por Antonio
Furtado e Ângelo Ciarlini (1999, 2000, 2002) para concepção de um programa gerador de enredos (IPG: Interactive
Plot Generator), extraído da análise morfológica dos contos de magia realizada por Vladimir Propp (1984).1
Furtado e Ciarlini propõem a aplicação das funções de Propp à programação de um gerador de enredos a partir de
inputs de um usuário e de definições disponíveis em bancos de dados, o que muito se aproxima da estrutura de
aventura solo do jogo aqui proposto, que pressupõe uma combinação interativa e hipertextual destes elementos,
uma vez que se considera o papel das motivações das personagens no desenrolar da ação, ao contrário do que diz
Propp sobre o conto de magia, o que tornaria o conceito de esferas de ação flexível e até imprevisível.
1
O IPG associa teorias literárias, estruturalista e a narratologia, que também são de grande valia na elaboração de enredos lúdicos, com a Informática (Computação Gráfica e Inteligência Artificial - Bases de Conhecimento, Agentes, Planejamento,
Prolog, Affective Computing e Lingüística Computacional) para a elaboração de narrativas em ambiente virtual.
Narrativa Lúdica
O PAPEL DA PERSONAGEM HERÓICA NA ESTRUTURA DA NARRATIVA LÚDICA
Percebe-se que em alguma medida, o conto de magia, o mito e a narrativa lúdica compartilham da mesma figura: a
protagonista heróica. Entretanto, como se pode observar, a protagonista lúdica, ao contrário de ser limitada e
definida pelas esferas de ação, parece definir-se como heróica por permear todas as esferas de ação. E, em sendo
heróica, esta personagem tenderá a apresentar os atributos relativos ao mito do herói, conforme descrito no texto
Narrativa Heróica e Mítica.
Partindo de Campbell, Carlos Klimick (2002) coletou diferentes conceitos de personagem em Role-playing Games
diversos, cujos temas e estruturas míticas muito se assemelham às Aventuras Solo. Desta coletânea pode-se extrair
as seguintes observações: 1) a personagem protagonista no enredo é uma figura heróica no sentido de ser
"especial" ou "além do comum"; 2) os diferentes jogos oferecem tipos de heróis para os jogadores, tipos estes que
variam conforme seus métodos de ação.
Em outra pesquisa (Bettocchi, 2008), foi sugerida uma classificação para tipos de personagem em RPG com base
nas próprias definições presentes em diferentes títulos. Partindo do conceito de "classe" do RPG Advanced
Dungeons and Dragons (Cook, 1989), buscou-se uma generalização destes tipos, que em cada jogo recebem
denominações diferentes, mas são bastante similares em termos de métodos de ação, doravante denominados
comportamentos. Retomemos o conceito de função para Propp: "Por função, compreende-se o procedimento de
um personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação." (1984:26). Lembremos
que, ao contrário do que acontece no conto de magia, na narrativa lúdica, o comportamento da protagonista é que
define o desenrolar da ação, uma vez que é por meio deste método de ação que a personagem atua para solucionar
os desafios e atingir suas metas.
Além dos comportamentos, as protagonistas lúdicas apresentam, de modo geral, um segundo parâmetro
fundamental, observável em diversos títulos, sob as denominações mais variadas: o modo como se relacionam com
Narrativa Lúdica
o mundo e consigo mesmos. Trata-se de traços de personalidade, afetividade, desejos, emoções e tudo mais que
condiga com a situação de subjetividade, entendendo-se sujeito como um produto tanto psicológico quanto social.
Estes traços constituem, de modo amplo, a atitude, que na narrativa lúdica é absolutamente fundamental, pois, junto
com o comportamento, determina as motivações que movem o enredo. O comportamento é o como a personagem
age e a atitude é o porquê ela age de tal forma.
Furtado e Ciarlini (2002) propõem a inserção do comportamento dos agentes (personagens) no desenrolar da
composição do enredo através de regras de inferência de motivações. Isto implica dizer que agentes de diferentes
perfis submetidos a situações similares tenderão a demonstrar motivações diversas.
Com base nas categorias propostas por Jung, nas referências de Furtado e Ciarlini para o IPG e nas próprias
classificações de diferentes títulos de narrativas lúdicas, sugere-se uma classificação genérica que define os Perfis
heróicos recorrentes com base em tipos de atitudes e comportamentos.2 Esta classificação genérica pode ser
aplicada a diferentes temas e ambiente narrativos.
Comportamento marcial: privilegia os métodos de enfrentamento direto do desafio, assumindo a possibilidade de
perdas no processo.
Comportamento altruísta privilegia os métodos de conciliação e busca pela solução harmônica, muitas vezes
incorrendo em sacrifícios pessoais ou de outros.
Comportamento investigativo: privilegia os métodos de observação, análise e dedução, buscando compreender o
problema a fundo para escolher a melhor estratégia, porém arriscando-se a não ter tempo hábil.
2
O primeiro jogo narrativo a “classificar” tipos de personagens foi efetivamente o primeiro RPG criado: Dungeons and Dragons. Estas classes pertenciam a grupos genéricos de ocupações profissionais: guerreiros (lutador, rastreador e paladino),
magos (mago, ilusionista, outros), sacerdote (clérigo, druida, outros) e ladino (ladrão e bardo). Segundo o capítulo 3 do Manual do Jogador de AD&D (Advanced Dungeons and Dragons, segunda versão deste jogo), estas classes seriam referências a
"arquétipos" históricos e lendários de diferentes culturas. As “classes” do AD&D acabaram se tornando uma espécie de padrão para os tipos de personagens de todos os outros jogos de interpretação, independentemente da ambientação, apesar de o
termo “classe” nem sempre ser utilizado; cada jogo cunha seu próprio termo para definir os tipos de personagens. A partir daí, as Aventuras Solo adotaram a classificação, sobretudo em ambientes de fantasia.
Narrativa Lúdica
Comportamento hedonista: privilegia os métodos de evasão buscando a solução mais fácil e confortável,
preferencialmente sem sacrifícios, porém correndo riscos éticos e morais.
As atitudes representam a predominância do tipo de relacionamento psicológico e ideológico que a personagem
mantém consigo e com o mundo. Estes valores pessoais fazem parte de um encontro cíclico entre individual e
coletivo: atitudes individuais que se constituem em atitudes de grupos sociais, que por sua vez voltam a interferir nas
atitudes individuais.
Por que então "pessoais"? Em termos de jogo, é interessante separar os valores predominantes de um grupo social
e os valores de cada indivíduo, pois muitas vezes eles são conflitantes. Isto quer dizer que certas atitudes
socialmente aceitas podem parecer repulsivas para a personagem e vice-versa. As atitudes podem estar em conflito
entre si, em conflito com os valores sociais e/ou em conflito com o comportamento. Ou podem ser totalmente
harmônicos e bem-resolvidos.
Buscou-se organizar as infinitas possibilidades de atitudes pessoais em grupos genéricos que se caracterizam pelo
modo como uma personagem interage com o grupo social: cooperação, competição, isolacionismo ou rebeldia.
Preferiu-se evitar as dualidades de origem maniqueísta, como bondade e maldade, muito comuns neste tipo de
narrativa, para que a classificação ficasse mais genérica e pudesse ser aplicada a outras formas narrativas.3
Atitude cooperativa: os valores pessoais nesta abordagem são aqueles que privilegiam as ações em equipe, a
harmonia, a ordem. As personagens que valorizam a cooperação acreditam que todo crescimento é coletivo e que
só serão felizes se seu grupo social também o for. As vantagens de ser cooperativo são a facilidade de aceitação no
3
O conceito de “alinhamento” (índole) apareceu pela primeira vez também no RPG Advanced Dungeons and Dragons, da TSR (EUA, 1979). Segundo o Guia do Jogador (Cook, 1989:46) da segunda edição, o alinhamento da personagem serve
de guia para suas atitudes morais e éticas em relação a outros e ao universo, assim como para fornecer uma idéia mais clara de como a personagem lidará com dilemas morais. Apesar de não dever ser tratado como “camisa-de-força”, o alinhamento
define atitudes gerais, divididas em caóticas, neutras e ordeiras e boas, neutras e más. De acordo com o Guia, a combinação destes dois conjuntos de atitudes “serve para definir bem as atitudes da maioria das pessoas no mundo”.
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grupo, e certa tranqüilidade e segurança. As desvantagens são uma possível tendência ao conservadorismo e
acomodação ("time que está ganhando não se mexe").
Atitude competitiva: inclui os valores pessoais que privilegiam a rivalidade, o conflito e o questionamento. As
personagens que valorizam a competição acreditam que o crescimento acontece pela comparação e superação
entre os indivíduos e que a felicidade de uns implica infelicidade de outros, eternamente numa tensão de interesses.
As vantagens dos competitivos são a inovação e rompimento de fronteiras e limites. As desvantagens são uma
tendência ao egoísmo, à agressividade e à intolerância.
Atitude isolacionista: inclui os valores pessoais que priorizam o individualismo e o isolamento social. As
personagens isolacionistas não acreditam na interação com o outro, apesar de sabermos que isto é praticamente
impossível. Estas personagens buscam a felicidade e o crescimento na solidão, tentando não se definir a partir de
outras ou de um grupo. Elas nem se interessam em competir e se provarem melhores, nem em cooperar e melhorar
o grupo. As vantagens são certa despreocupação com as opiniões alheias e desprendimento de regras sociais e as
desvantagens são a tendência à alienação e à indiferença.
Atitude rebelde: inclui os valores pessoais que priorizam a transgressão às regras, sejam elas quais forem: "Hay
gobierno, soy contra!". Estas personagens não se preocupam em competir ou cooperar, mas também não se
mantém a parte da sociedade: na verdade estão sempre presentes provocando conflitos e questionamentos que não
tem pretensão de inovação, mas sim de abalo das estruturas e do tecido social, o que muitas vezes é o pontapé
inicial para uma mudança necessária.
Temos, assim, um estado inicial composto de: Perfil [atitudes + comportamento (como a personagem age)] +
Situação [funções situacionais preliminares (o quê ela quer mudar ou manter)] = Motivações ou metas iniciais
(para qual fim ela atuará). Este estado inicial de caracterização da personagem inclui, além do Perfil, um estado
interno de conhecimentos e informações de que dispõe a personagem e que evita, como já mencionado, a
onisciência.
Narrativa Lúdica
Para evitar a onisciência de uma situação, o que entraria em contradição com o objetivo de tomada de decisões, os
autores atribuem um estado interno a cada agente: um perfil composto de elementos cognitivos e afetivos, que se
constituem em métodos de ação e traços de personalidade que privilegiam certos impulsos e emoções.
Aplicando tais conceitos à narrativa lúdica, pode-se propor que o perfil de uma protagonista seria composto por
atitude mais comportamento; tal perfil, quando submetido a uma dada situação, demonstraria uma reação que
encadearia uma seqüência motivação – ação – resultado – motivação, e assim por diante.
Nas narrativas lúdicas, o estado interno costuma ser definido em virtude do perfil. Na maioria delas, os estados
internos das personagens são definidos a partir de dois parâmetros básicos: atributos e habilidades, ou perícias. De
modo bem resumido, atributos representam como a personagem é, física e mentalmente, enquanto que habilidades
representam aquilo que a personagem é capaz de fazer. Entretanto, é muito comum vermos parâmetros que num
jogo são habilidades e em outros são atributos, e vice-versa. Portanto, preferimos o conceito mais geral de
Competência para definir o que a personagem sabe ou não, pode ou não, executar.
Philippe Perrenoud, professor da Universidade de Genebra, apresenta o conceito de competências em que o
aprendizado não é um fim em si mesmo, mas os aprendizes devem ser capazes de aplicar fora do ambiente de
aprendizado os conhecimentos nele adquiridos. Competência então seria “uma capacidade de agir eficazmente em
um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles.” (Perrenoud, 1999:7)
Como as personagens precisam usar de suas habilidades e atributos para superar os desafios propostos na trama,
parece-nos que o termo “competência”, conforme definido por Perrenoud, seria um bom termo genérico para essas
características das personagens.
Assim como às funções, às competências também se atribuem valores quantitativos (custos e modificadores
numéricos) e/ou qualitativos (níveis), que servem como parâmetros sobretudo na resolução de ações que envolvem
aleatoriedade.
Narrativa Lúdica
De modo geral, um sistema de regras de narrativa lúdica possui um componente aleatório e um componente
definido. O componente aleatório é, na grande maioria, o rolamento de dados e representa o acaso, as
possibilidades que perfazem a gradação entre sucesso e fracasso na realização de alguma coisa. O componente
definido consiste justamente do estado inicial que foi definido quando da concepção da personagem: perfil e estado
interno. Comparados com dificuldades pré-estabelecidas, estes dois componentes fornecem um resultado numérico
e qualitativo que auxilia os jogadores a decidirem se tal ação foi ou não bem-sucedida.
BIBLIOGRAFIA
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CIARLINI, Angelo Ernani Maia. Geração Interativa de Enredos. Tese de Doutorado em Informática, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1999.
COOK, David. Advanced Dungeons & Dragons: Player’s Handbook. Lake Geneva: TSR, 1989, 2nd ed., pp. 25 e
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FURTADO, Antonio L. & CIARLINI, Angelo E. M. Operational Characterization of Genre in Literary and Real-life
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MICHAELIS Dicionário Ilustrado. São Paulo: Melhoramentos, 1961.
MURRAY, Janet. Hamlet on the Holodeck. New York: Free Press, 2000.
PERRENOUD, Philippe. Construir as competências desde a escola. Tradução: Bruno Charles Magne. Porto
Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. Forense Universitária, 1984.

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