revista redação

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revista redação
REVISTA REDAÇÃO
PROFESSOR: Lucas Rocha
DISCIPLINA: Redação
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DATA: 12/06/2016
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Conheça Sead Dizdarevic, o homem que fez dos Jogos Olímpicos um
playground de ricos e poderosos (AGÊNCIA “PÚBLICA”)
Ao que parece, o empresário croata que traz na bagagem histórias de corrupção e negócios lucrativos à sombra das
Olimpíadas vai fazer o mesmo no Rio de Janeiro
“SENHOR dos Anéis” está chegando, cercado por histórias de corrupção, compra de votos e milionários negócios à
sombra do mundo olímpico. Quem quiser saber como funciona o lado B das Olimpíadas, as conexões brasileiras, o esquema
de venda de ingressos, ou entender a razão das dificuldades para conseguir um bom lugar para ver as competições, guarde
bem este nome: Sead Dizdarevic.
É o todo-poderoso que detém a chave das melhores relações com o Comitê Olímpico Internacional (COI) e com o
Comitê Organizador Rio 2016 (CoRio); o dono da
Jet Set Sports e da CoSport; personagem-chave
por trás de um dos maiores negócios que
envolvem o esporte brasileiro: a Tamoyo
Internacional, que, detentora do monopólio da
venda dos milionários pacotes de hospitalidade
que
negociam
os
combos
de
ingresso/hospedagem da Olimpíada no Brasil, foi
a agência oficial do Comitê Olímpico Brasileiro
(COB) desde a ascensão de Carlos Arthur Nuzman
à presidência até 2012, e parceira em contrato de
passagens do CoRio, que tem o mesmo Nuzman
na presidência. É a agência responsável pelas
milionárias transações das vendas de passagens
aéreas para boa parte das confederações
esportivas nacionais, turbinadas por verba pública
vinda das leis de incentivo e convênios com o
Ministério do Esporte.
Muitos dos nomes de pessoas físicas e
jurídicas que você vai ler aqui como a parte da
conexão nacional de Dizdarevic são personagens
em comum de outro rumoroso enredo do esporte
nacional, encontráveis no “Relatório de Auditoria
201407834” da Controladoria-Geral da União
(CGU), que auditou a Confederação Brasileira de
Vôlei (CBV). São peças importantes da
engrenagem mostrada na série de reportagens
“Dossiê Vôlei”, que, publicada em 2014-2015 na
ESPN, gerou a investigação da CGU.
A “trilha interna”
Comecemos pelo topo. Sead Dizdarevic vai desembarcar por aqui discretamente e longe dos holofotes, como faz desde
sua primeira visita ao Rio de Janeiro, em 2009, ano em que a cidade foi escolhida para ser sede olímpica dali a sete anos e
em que começou o súbito interesse pelo Brasil desse croata naturalizado americano, 65 anos. De lá para cá, esteve aqui 13
vezes, geralmente a bordo de seu jato particular. A cada dois anos é assim: viaja várias vezes aos locais das Olimpíadas de
inverno ou de verão. E sai com milhões de dólares a mais na conta – amparado nas relações locais, em cartolas e em
comitês.
A porta de entrada de Dizdarevic no mundo olímpico é uma típica história que comprova o ditado segundo o qual a
ocasião faz o cidadão. A pequena agência de viagens com a qual tentava construir o sonho americano em Staten Island,
condado mais esquecido de Nova York, atendia preferencialmente os compatriotas imigrantes da então Iugoslávia. A vitória
de Sarajevo como local dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1984 foi o salto. Com um pé nos Estados Unidos e a raiz na terra
natal, movia-se com desenvoltura entre os dois mundos, abrindo caminho para conquistar um terceiro muito maior e com
possibilidades infinitas: o universo olímpico. Era 1984, antes da queda do Muro, com uma Cortina de Ferro burocrática
separando os eventuais visitantes. Foi nessa fresta que Dizdarevic conquistou seus primeiros punhados de dólares, sendo a
ponte entre esse turista olímpico e o outro lado da Cortina. Oferecer hospedagem, ingressos, desenrolar burocracias, ligar
as partes, estava tudo no seu pacote.
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Os jogos de inverno e verão ainda eram no mesmo ano. Em 1994, já com uma agenda de contatos olímpicos
enriquecida, Dizdarevic deu um salto mais alto. Na pequena cidade norueguesa de Lillehammer, sem quartos suficientes
para a família olímpica, ousou fazer um hotel temporário. Já estava com os dois pés naquele mundo fechado, comandado
então por Juan Antonio Samaranch.
Em 1996, só uma força muito poderosa poderia destronar Atenas da condição de anfitriã no ano em que os jogos
completavam 100 anos. Nos bastidores olímpicos, corria a lenda de que Dizdarevic foi uma dessas forças, um dos pesos
fundamentais no prato americano. A lenda se confirmou quando o Seattle Times entrou com pedido na Justiça americana e
conquistou o direito de quebrar o sigilo do processo sobre subornos olímpicos em que Dizdarevic era um dos protagonistas.
Entre os papéis arquivados no processo, estavam as pegadas dele, atestadas em um memorando de Bill Payne, com data de
1988, apreendido nas investigações, em que o líder da candidatura de Atlanta indicava a necessidade de aliança com o
homem da Jet Set. “Ele tem sido muitas vezes altamente recomendado para nós como alguém que tem a trilha interna. E
também conhece e tem amizades com muitos membros do Comitê Olímpico Internacional (COI).”
O processo mostra mais, segundo o Seattle Times. Antes da votação, enquanto o mundo e mesmo os mais informados
sobre os labirintos do COI davam Atenas como barbada, Dizdarevic garantiu com todas as letras a Payne que Atlanta seria
vencedora. Sua palavra era respaldada: entregou uma lista a Payne com o nome dos candidatos que poderia influenciar.
Pouco tempo depois, o mundo inteiro se surpreendeu com a maior zebra da história dos conclaves olímpicos: Atlanta tinha
derrubado a mais do que favorita Atenas, em eleição realizada em Tóquio, no ano de 1990. Certamente apenas um cidadão
no mundo não se surpreendeu. Aquele que já tinha antecipado a fumaça branca para Bill Payne, o carmelengo olímpico –
Sead Dizdarevic.
Para a sede americana, a conta de tão alto qualificado lobista veio ainda no mesmo ciclo olímpico. Em 1994, Payne
anunciava que aprovara um acordo tripartite entre o Comitê Organizador Local (COL), o Comitê Olímpico Americano (USOC)
e o Senhor dos Anéis: a Jet Set abocanhou a exclusividade dos pacotes de hospitalidade para patrocinadores dos jogos. Pelo
acordo, 3% das vendas da empresa seriam a comissão do COL e do USOC, com saldo final de US$ 28 milhões para
Dizdarevic e resíduo de US$ 844 mil para as outras duas partes.
Se a aprovação do acordo tinha sido de Bill Payne, a assinatura final foi do seu vice no COL, John Krimsky. Em 1995,
um ano depois da assinatura do contrato entre Krimsky e Dizdarevic, este último compra, por US$ 225 mil, uma empresa
ligada a membros do comitê local. A Cooperative Sports, pertencente à mulher de Krimsky. “Um esquema de propina
clássico”, como está nos autos relatados pela reportagem do Seattle Times.
Vale a pena fixar o modus operandi de Dizdarevic: primeiro ajuda a amealhar votos para a vitória da sede olímpica;
depois da vitória da nova sede, conquista a exclusividade para os pacotes de hospitalidade e compra uma empresa ligada
aos dirigentes locais. Tão engenhoso quanto simples.
O esquema se repete
A traição a Atenas não impediu que Dizdarevic, quando esta por fim se saiu vencedora em 2004, tivesse lucros
exorbitantes ali. Resolveu o problema de quartos para os mais abastados transformando luxuosos transatlânticos em hotéis
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de ocasião atracados no Pireu. Sempre casando habitação e ingressos. A cada edição, o Senhor dos Anéis tem com ele, mais
do que qualquer outro mortal, um número maior de ingressos na mão e quartos bloqueados. Para pessoas físicas ou
jurídicas. Sem distinguir regime de governo ou sistema político, é sempre o grande vencedor, compartilhando partes de seus
lucros com locais, subornos e afins. Em Pequim 2008, pela estimativa da reportagemdo Seattle Times, é que tenha tido em
mãos 74 mil bilhetes; em Vancouver, no inverno de 2010, 63 mil ingressos.
Ainda mais relevante é a porcentagem dos melhores lugares, os bilhetes mais VIP. Em Sydney 2000, um escândalo que
explodiu pouco antes da competição também tinha Dizdarevic como protagonista. Novamente aqui se tem um caminho
seguro para entender o conhecido modus operandi do chefão olímpico: uma investigação do governo australiano mostrou
que funcionários do Comitê Local tinham desviado ingressos para a Jet Sports e a CoSport. Os números impressionam e
certamente frustram quem perdeu horas tentando comprar ingressos via internet, sem êxito, para as provas principais: dos
24 mil lugares considerados VIP nas principais competições, Dizdarevic e os seus tinham 20 mil tíquetes na mão. Também
na sede australiana não fez por menos, fiel a seu modo de agir a cada edição: contratou para a Jet Set, com bom salário, a
namorada de Phil Coles, homem com chaves importantes na organização de Sydney e membro do COI.
Jim Moriarty, advogado de Houston, Texas, contrariado com os problemas que teve ao virar turista para ver os Jogos
de Pequim, resolveu litigar contra o homem da Jet Set, questionando o monopólio dos ingressos e pacotes. Nos autos, diz
que o absoluto controle na mão de um só e seus parceiros de empreitada afeta diretamente o preço das entradas e a
disponibilidade. Sua definição para a competição que será vista no Brasil em mais alguns dias é cortante, dando a dimensão
de quanto o Rio será apenas a locadora de uma bela paisagem e sua população, apenas um elenco de apoio que paga a
conta para alguns poucos desfrutarem: “Dizdarevic transformou os Jogos Olímpicos em um playground de ricos e
poderosos”.
Segundo reportagem do Seattle Times, Dizdarevic foi um dos grandes responsáveis pela vitória da candidatura de Atlanta,
que sediou a Olimpíada de 1996 (Foto: Flickr/Carful)
Em entrevista para esta reportagem, Moriarty dá bons caminhos para entender como alguns ingressos olímpicos são
estabelecidos com preços relativamente baixos, mas depois somem e só são encontráveis em pacotes. “Há um conflito
inerente relativo às vendas de ingressos para as Olimpíadas: o país anfitrião e o COI estipulam bilhetes baratos, mas a
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demanda por bons ingressos impulsiona o valor de mercado para o céu. Em Pequim, o “preço de tabela” para os melhores
bilhetes para a cerimônia de abertura foi cerca de US$ 750, mas as pessoas estavam dispostas a pagar US$ 10 mil para
bilhetes de menor qualidade. E Dizdarevic aprendeu há muito tempo como converter esse valor da diferença para pôr o
dinheiro no bolso. Décadas atrás, ele aprendeu que, nas mãos gananciosas de pessoas que têm o poder para fornecer
ingressos para a Olimpíada, o dinheiro iria gerar uma grande riqueza para ele e seus amigos”, afirma Moriarty. Sem fazer
nenhuma analogia fácil com o esporte, Dizdarevic invariavelmente nada de braçada a cada edição dos jogos, sem enfrentar
maiores problemas, a despeito das práticas controversas. Um histórico que torna possível projetar que a Rio 2016 será um
agradável passeio tropical para o milionário.
Salt Lake City
A exceção dessas águas sem tormentas
ficou com Salt Lake City, em 2002 – o maior
escândalo da história dos Jogos Olímpicos e do
COI. Como sempre, Dizdarevic teve um lugar
de protagonista em todas as tramas que
vieram a ser reveladas. Como sempre, saiu
ileso. E com posição mais forte no mundo
olímpico. Depois de ter perdido o direito a
sediar as competições de inverno duas vezes
seguidas, a cidade que fica no estado de Utah
resolveu tomar caminhos pouco ortodoxos.
Mais uma vez, Dizdarevic entrava em cena. De
acordo
com
os
processos
judiciais
americanos descritos pelo Seattle Times, dois
altos funcionários do COL de Salt Lake, David
Johnson e Thomas Welch, recorreram ao
Senhor dos Anéis para ajudar na compra dos
votos em 1994, um ano antes da votação.
Dizdarevic iniciou ali uma manobra para
viabilizar a operação. Como consta nos autos,
começa com uma série de saques rotineiros de
US$ 10 mil, limite para não chamar atenção do
Internal Revenue Service (IRS), o equivalente
à Secretaria da Receita Federal brasileira.
Assim como no Brasil, saques acima de
determinado limite devem ser notificados à
Receita Federal. O produto dos saques foi
armazenando em um cofre, até que chegou a
hora da distribuição. O próprio Dizdarevic assumiu em depoimento que entregava as quantias para suborno à dupla de
dirigentes do COL. Quando o escândalo explodiu, Dizdarevic ficou como patriota. “Era meu dever. Sou um cidadão
americano naturalizado, e esse é meu novo país”, na torta explicação publicada na imprensa para justificar sua participação.
Já os membros do COL foram punidos com o desligamento. Marca de seu pragmatismo, Dizdarevic chegou a depor contra
os dois antigos cúmplices com a promessa da Justiça de arquivar o seu caso. Livrou-se. Já contra os dois ficaram 15
denúncias de fraude e conspiração. Para salvar os jogos, assumiu o comando, como gestor, Mitt Romney, que acabou mais
uma vez fortalecendo a posição de Sead no movimento olímpico e como vendedor exclusivo dos pacotes de hospitalidade de
Salt Lake City.
Por e-mail, Moriarty confirma a versão sobre como Dizdarevic ganhou o selo de agente oficial do COI para
comercializar os pacotes dos jogos ao entregar apenas alguns e preservar outros em delação premiada. “Inicialmente, esse
comércio foi feito às escondidas, com propinas sob a mesa, mas, quando seu papel como o provedor do plano para trazer
ilicitamente os Jogos Olímpicos para Salt Lake City foi descoberto por uma investigação criminal do governo dos Estados
Unidos, Dizdarevic tornou-se testemunha para o governo. Ele jogou seus antigos parceiros ‘debaixo do ônibus’ ao fechar um
acordo de delação premiada. Em seguida, com um flash de insight brilhante, negociou um acordo com o COI para se tornar
o patrocinador de hospitalidade dos Jogos Olímpicos e, ao fazê-lo, legitimou o que tinha anteriormente sido feito com
propinas e subornos. Ao controlar tanto a habitação quanto o melhor acesso a bilhetes, ele criou um monopólio de acesso
significativo às Olimpíadas para quem não vive na comunidade anfitriã. Agora, quando os ricos e poderosos necessitam de
bilhetes olímpicos, transporte VIP e quartos cinco-estrelas, eles chamam Sead e tudo está bem no mundo.”
Em fevereiro de 2012, poucos meses antes do início da edição dos Jogos Olímpicos de Londres, uma câmera secreta do
programa Dispatches, da TV inglesa, conseguiu gravar uma conversa de um funcionário da Jet Set, que oferecia, como mais
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uma das facilidades do pacote de hospitalidade, o acesso ao privilégio de circular pelas rotas de tráfego exclusivas para
atletas e poucos credenciados com direito ao conforto.
Jim Moriarty vai além: “Há muitos que acreditam que o COI, e na verdade toda a empresa olímpica, é um pouco mais
do que uma empresa criminosa, em muitos aspectos como a Fifa. A ‘marca’ olímpica é a marca mais valiosa do mundo, com
bilhões de dólares em direitos de TV e outras receitas. Poucos benefícios chegam aos atletas e suas famílias, e a maioria dos
benefícios fica com as pessoas no topo, que vivem vidas que deixariam Gordon Gekko com vergonha”, diz, referindo-se ao
personagem de Michael Douglas em Wall Street: Poder e Cobiça, um investidor inescrupuloso e ganancioso.
Quatro décadas depois, o Senhor dos Anéis pôs o mundo olímpico no bolso. Sua agenda de contatos, conchavos,
licitações que sempre vence e toda sorte de artimanhas capazes de demolir quem ainda acredita no discurso do “olimpismo”
e do “espírito olímpico” dos organizadores, está sendo entregue aos poucos ao filho Alan Sead Dizdarevic, 36 anos, nascido
nos Estados Unidos, que será o próximo dono do mundo olímpico. Já entra com a herança garantida de ser o patrocinador e
agente de vendas para os Comitês Olímpicos – os oficiais – da Austrália, Bulgária, Canadá, Grã-Bretanha, Noruega, Rússia,
Suécia e Estados Unidos.
E assim ele chegou ao Brasil
Se essa história toda do Senhor dos Anéis olímpicos fosse conhecida no Brasil em 2009, a assembleia do COI em
Copenhague, no dia 2 de outubro daquele ano, que escolheu o Rio para sede em 2016, provavelmente não teria sido
cercada de tanta expectativa e suspense. Afinal, as pegadas de Sead Dizdarevic sempre avisam para onde o vento olímpico
está indo. Direção confirmada na goleada do Rio em Madri, na última rodada de votos, por 66 a 32.
É que cinco meses antes do conclave, o homem da Jet Set desembarcou no Brasil pela primeira vez. Os registros de
imigração informam que no dia 12 de maio de 2009, com visto de turista, ele andou por aqui. Tiro rápido, breves seis dias
de estada. Como em todas as outras vésperas de eleição de sede, mesmo quando está contra todos os prognósticos, seu
radar não errou. Não se sabe ao certo se naquela passada rápida Dizdarevic pôs em prática o modus operandi de sempre,
repetiu Salt Lake e bancou a certeza da vitória, dando ainda listinha com votos a ganhar. Do que se pode ter certeza é que,
logo depois daquele breve flerte da primeira visita, entrou com os dois pés no Brasil. Confirmada a vitória, era hora de
estruturar o caminho verde e amarelo para buscar aqui os imensos lucros que fazem dele o verdadeiro Senhor dos Anéis,
aquele que só ganha.
Como de hábito, sabia bem onde pisava e foi às portas certas depois da confirmação da sede carioca. No dia 8 de
novembro de 2011, de acordo com os registros da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro (Jucerja), abriu a Jet Set
Sports Brasil Serviços (veja aqui).
Poucos dias depois, em 20 de dezembro, estabelecia a conexão certa no país da vez para ficar tudo dominado no
controle dos ingressos da Rio 2016: a recém-aberta Jet Set assume o controle de 75% da Tamoyo Internacional Agência de
Viagens e Turismo (confira aqui), para em 2015 ter o controle total.
A Tamoyo é a senhora das viagens, ingressos e pacotes de hospitalidade em grandes eventos do COB desde o primeiro
ciclo olímpico de Carlos Arthur Nuzman, e lá se vão duas décadas de monopólio, enriquecido substancialmente com dinheiro
público em seu volume de recursos com o advento da Lei Piva de Incentivo ao Esporte (16/7/2001). Uma lei que Nuzman se
empenhou para que passasse a ser chamada Agnello/Piva, em deferência ao ex-ministro dos Esportes Agnelo
Queiroz, condenado em primeira instância por improbidade administrativa e presente na deleção premiada da Andrade
Gutierrez, no caso petrolão, por propina no Estádio Mané Garrincha.
A relação estreita do COB na gestão de Nuzman e da Tamoyo é alvo de questionamentos há mais de uma década. Em
1º de agosto de 2004, em entrevista para a Folha de S.Paulo, ao garantir que existia licitação para escolher a agência do
COB, Nuzman explicou assim a razão de não mudar nunca a agência: “Porque ela ganha”. Os anos se passaram e a Tamoyo
seguiu ganhando, sendo a agência do COB para viagens e pacotes olímpicos. Até 2012, quando o COB troca de agência e
passa a ter como contratada a Promotional Travel Viagens e Turismo, de Luiz Antônio Strauss de Campos e Flávio Alves da
Costa.
Luiz Antônio Strauss de Campos é cunhado da deputada estadual Cidinha Campos (PDT), titular da Secretaria Estadual
de Proteção e Defesa do Consumidor (Seprocon) e forte aliada do governo do estado do Rio de Janeiro sob Sérgio Cabral
Filho, então parte importante da aliança entre os provedores dos jogos. Curiosamente, Strauss era o mais ferrenho crítico da
relação entre Nuzman e a Tamoyo. Em 2005, chegou a entrar com recurso contra a licitação de contratos entre o Comitê
Organizador do Pan 2007 e a Tamoyo. Na ocasião, a Promotional Travel perdeu a concorrência para a Tamoyo e Strauss
questionou as regras, afirmando que elas beneficiavam a vencedora. A Promotional tem vencido também, na maior parte
das vezes com dispensa de licitação, concorrências para venda de passagens na área federal como Eletrobrás e UFRJ. A
reportagem tentou falar com Strauss, sem retorno.
A saída da Tamoyo do COB ocorre em paralelo à conquista pela agência de contrato de viagens no CoRio 2016 e à
diminuição de convênios entre o COB e o Ministério do Esporte, como mostra o Portal da Transparência, que registra o
último acordo entre ambos, assinado em 10 de maio de 2012.
Em 9 de janeiro 2012, a Tamoyo, já sob controle de Dizdarevic, assina contrato (nº 026/2012) com o CoRio, com
duração de um ano, de “serviços de agência de viagens e de turismo em geral para atender a demanda de viagens do
Comitê Rio 2016”. Por mais três vezes, o contrato entre CoRio e Tamoyo recebe aditivos de prazo e valor, até 30 de
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setembro de 2013. O acúmulo de cargo por Nuzman na presidência dos comitês olímpico e organizador do país, algo
inédito na história olímpica, foi duramente criticado por entidades de controle.
A Tamoyo Internacional Agência de Viagens e Turismo, controlada por Dizdarevic, tem contrato de viagens com o CoRio,
comandado por Carlos Arthur Nuzman, também presidente do COB (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Por meio da assessoria de imprensa, o CoRio afirmou sobre os contratos com a Tamoyo: “Tivemos contrato com três
agências de viagem no decorrer dessa jornada: Primeiro com a Tamoyo e depois com a Flytour e agora com a Alatur. O
procedimento aqui é que todos os contratos acima de R$ 1 milhão passem por uma concorrência pública e depois sejam
aprovados pelo conselho de diretores. Os valores que você encontrou no balanço do Comitê representam o total de
despesas com viagens e foram sempre distribuídos em mais de uma agência. A agência que ficou com a principal parte das
nossas despesas de viagem foi a Alatur JTB”.
Os lucros de Dizdarevic com o CoRio foram além de tíquetes. Através da Jet Set, ganhou também um contrato (nº
312/2014) com o CoRio para “fornecimento de software customizável (Sistema), para o gerenciamento das operações de
chegadas e partidas, transportes e reserva de acomodações (inventário de apartamentos e quartos) dos Jogos Olímpicos e
Paralímpicos Rio 2016”, assinado em 14 de agosto de 2014 e válido até 30 de setembro de 2016. Valor: US$ 545.300,
aproximadamente R$ 1.884.000. A justificativa, de acordo com a resposta do CoRio, é por se tratar de “um software de
gerenciamento das operações de chegadas e partidas (Concorrência C690) que eles venceram no preço e também na
qualidade, o produto é o melhor do mercado global”.
A reportagem perguntou ainda ao CoRio se o histórico de Sead Dizdarevic, noticiado na imprensa internacional em
escândalos de corrupção relacionados às edições dos Jogos Olímpicos, não inibiria a entidade de fazer negócio com empresa
encabeçada por ele. “Não temos operações de ingressos com a Jet Set talvez pelos motivos que você citou. Não recebemos
um centavo de recursos públicos na organização dos Jogos e portanto podemos trabalhar com empresas nacionais ou
estrangeiras, desde que os contratos sejam aprovados pelo Conselho. Preferimos, óbvio, trabalhar com empresas locais,
mas os critérios principais seguem sendo custo e capacidade de entrega”, respondeu o CoRio.
No entanto, encontramos ainda o contrato nº 1559/2015 entre CoRio e Jet Set Sports Holding, de “Acordo entre
Comitês para a venda e distribuição de tickets, pela outra Parte, a determinado público”, assinado em 30 de setembro de
2015 e válido até 31 de dezembro de 2016. E um anterior com a Tamoyo (nº 034/2011), assinado em 31 de março de
2011, para “compra de ingressos em Londres”. A reportagem procurou o COB para falar sobre as relações com a Tamoyo,
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sobre as repetidas contratações da agência e processos de licitação. O COB limitou-se a responder que “a Tamoyo não é a
empresa contratada pelo COB desde 2012. A agência contratada pelo COB, atualmente, através de processo público de
licitação, é a Promotional Travel Viagens e Turismo. As questões colocadas com respeito à venda de ingressos dos Jogos
Olímpicos Rio 2016 são de responsabilidade do Comitê Organizador Rio 2016”. Procurada diversas vezes, a Tamoyo não
respondeu aos questionamentos.
Um rosto brasileiro: Cícero Augusto Oliveira de Alencar
A já citada abertura da Jet Set Sports Brasil na Jucerja, em novembro de 2011, e o ato seguinte da empresa ao
assumir alguns dias depois o controle acionário da Tamoyo têm um personagem-chave que conecta Jet Set e Tamoyo a
entidades e dirigentes do esporte brasileiro. Mais um rosto absolutamente desconhecido do grande público neste relato de
conexões e relações: Cícero Augusto Oliveira de Alencar, 62 anos, nomeado diretor de operações e administrador no ato em
que Jet Set Sports Holdings e CoSport Australia, ambas de Sead Dizdarevic, formam um braço brasileiro, a Jet Set Sports
Brasil, quealguns dias depois assumiria a Tamoyo.
Cícero Alencar, morador da Ilha do Governador, bairro de classe média do Rio de Janeiro, é um dos personagens do
“Relatório de Auditoria 201407834”, da CGU, cuja área fazendária auditou a CBV e foi minuciosa ao lançar luz sobre ele –
um homem com 136 “Cadastros Nacionais de Pessoas Jurídicas”, o conhecido CNPJ. De acordo com o relatório da CGU,
além de constar como sócio em 136 empresas, Alencar é contador de 279 outras. Questionado pela reportagem sobre o
número, ele respondeu: “A legislação societária brasileira exige um mínimo de 2 sócios para cada entidade local
incorporada. Como temos mais de 300 clientes estrangeiros atendidos por nossa firma, uma grande parcela deles nos
contrata para figurarmos como segundo sócio nas subsidiárias locais. É uma prestação de serviço (sempre com uma
participação nominal de 1 quota de capital – apenas para cumprir a legislação e ter 2 sócios)”. A reportagem apurou
também a participação dele nos registros da Forecast Corp, na Flórida, sobre o que respondeu: “Não só nesta sociedade
mas em uma centena de outras empresas no exterior, prestando serviços de administrador nomeado dos investidores em
tais sociedades”.
A lente de aumento da CGU pousou especialmente sobre uma das 136 empresas em que aparecia o nome de Alencar,
o diretor de operações e administrador da Tamoyo, que, de acordo com o relatório, também constava como sócioadministrador da Acal Auditores Independentes, responsável pela auditoria de convênios da CBV. Boa parte dos convênios
auditados pela Acal na CBV era relativa a recursos destinados à Tamoyo.
Assim, como mostra a CGU, quem auditava as contas da CBV representava um dos beneficiários dos convênios, a
Tamoyo. A CBV pagou R$ 154 mil pelo serviço da Acal. As auditorias foram realizadas a partir de maio de 2013. Antes, eram
feitas pela PS Contax, cujo sócio Nelson Fernando Marques Plaltzgraff passa a ser da Acal também a partir de maio de 2013,
de acordo com a CGU, que encontrou ainda pagamentos da CBV para a Acal e PS Contax sem previsão contratual. O órgão
destaca que a PS Contax aparecia com o mesmo número de telefone da “Universidade Corporativa do Voleibol” (UCV), onde
Ary Graça, ex-presidente da CBV, aparecia como responsável.
Cinco meses antes do Rio de
Janeiro ser escolhido como sede da
Olimpíada de 2016, Dizdarevic
desembarcou no Brasil pela
primeira vez, segundo os registros
da imigração (Foto: Raphael
Lima/Prefeitura do Rio de Janeiro)
Além do sócio em comum e
das relações com entidades do
esporte brasileiro, a Jet Set Sports
Brasil tem outro elo com a Acal
Auditores: na Jucerja, o endereço
que consta para a Jet Set Sports
Brasil é também o da Acal.
Indagado pela reportagem sobre o
eventual conflito de interesses,
Cícero Alencar negou. “Baseado em
que regulação isso pode ser
caracterizado como conflito de
interesse? Primeiro que não sou
sócio – nem consto do Contrato
Social
da
ACAL
Auditores
Independentes S/S e portanto não
tenho conflito algum com os contratos que esta firma mantém com seus clientes”. No entanto, segundo o relatório da CGU,
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Cícero era sócio-administrador da Acal Auditores Independentes S/S e se retirou, e segue como sócio-administrador (com
98% das cotas) da Acal Consultoria e Auditoria S/S, que tem três sócios em comum com a anterior. Diante disso, o relatório
da CGU afirma: “o que demonstra que elas mantêm um vínculo. Assim, a empresa contratada pela CBV para, inclusive,
prestar serviços relacionados a convênios, tinha como ex-sócio e possivelmente parte interessada Cícero Augusto Oliveira
Alencar”.
No relatório em que destaca o possível conflito de interesses entre o representante da Tamoyo e o auditor dos
contratos que envolviam passagens compradas na empresa, a CGU expõe um quadro em que demonstra que 56% das
passagens contratadas pela CBV foram emitidas pela Tamoyo, em um negócio de R$ 2.970.121 só em 2013. O relatório
observa ainda que de 2011 para 2013 houve um aumento expressivo na despesa nesse transporte aéreo, com crescimento
de 96%.
O comitê presidido por Carlos Arthur Nuzman também teve contrato com a PS Contax. Em 14 de fevereiro de 2011 o
Comitê Rio 2016 (CoRio) assinou contrato (nº 04/2011) de auditoria contábil e financeira com a empresa. A reportagem
perguntou a Nelson Plaltzgraff se a auditoria da PS Contax estaria disponível e por que, depois de 2011, não voltou a prestar
o serviço. O responsável pela PS Contax limitou-se a dizer: “Nós declinamos da prestação de serviço”. Já o CoRio afirmou:
“A PS Contax prestou serviços de auditoria financeira entre 14/2 e 20/5 de 2011. Depois disso as auditorias do Comitê têm
sido lideradas pela KPMG e Grant Thornton auditores independentes”.
Cícero Alencar aparece também em processo do Tribunal de Contas da União (TCU) em 2002, assinando a prestação
de contas da Petrobras Netherlands ao lado de Almir Guilherme Barbassa, ex-diretor financeiro da Petrobras e da Petrobras
Netherlands, afastado após o início da Operação Lava Jato. A reportagem buscou contato com a estatal, via assessoria de
imprensa, para saber sobre o vínculo de Cícero Alencar com a empresa e entender por que ele consta na prestação de
contas. A empresa informou: “Não consta em nossos sistemas da Petrobras Holding empregado ou ex-empregado com o
nome Cícero Augusto Oliveira de Alencar. Adicionalmente, informamos que também não localizamos registros do Sr. Cícero
como empregado de empresa prestadora de serviços”.
Já Cícero Alencar respondeu: “De 1999 a 2006 a firma ACAL Consultoria e Auditoria S/S prestou serviços à Petrobras,
no Brasil e no exterior, incluindo toda a reestruturação de ativos internacionais que pertenciam à PIFCO – Petrobras
International Finance, com sede em Cayman, e que foram conferidos para o patrimônio da PNBV”. Sobre a relação com
Almir Guilherme Barbassa, afirmou: “Me encontrei com ele 2 ou 3 vezes nos 7 anos que servimos a Petrobras para discutir
resultados de nossos serviços”.
A reportagem perguntou por fim a Cícero Alencar se ele representava alguém na sociedade da Jet Set. E, caso fosse
positiva a resposta, a quem? Ele respondeu: “Meu nome foi usado para a posição e administrador da sociedade local, como
prestador de serviço – posição que ocupo em outra centena de clientes que necessitam de um brasileiro residente para a
posição e que não possuem quadro de empregados no país”.
Bolinha da sorte
Os imensos tentáculos da Jet Set contam também com a sorte. Em 10 de abril, reportagem do “Dossiê Vôlei” mostrara
que, entre os 56% de passagens compradas pela CBV na Tamoyo, até a bolinha do sorteio brilhava para a empresa de Sead
Dizdarevic – como na licitação de 13 de abril de 2012. Convocadas pelo edital 003/2012 da CBV para “aquisição de
hospedagem e passagens aéreas nacionais e internacionais [para] os atletas e membros da comissão técnica das seleções
de vôlei de praia adulta feminina e masculina” (verba contemplada no convênio 761160/2011 com o Ministério do Esporte),
três empresas entregaram suas propostas: a Master Turismo, a Tamoyo e a BB Turismo (BBTur, agência de viagens do
Banco do Brasil, patrocinador da CBV).
Quando os envelopes foram abertos, a Master Turismo foi desclassificada por “ter apresentado proposta sem
assinatura e com diversos percentuais de desconto”. Ficaram a BB Turismo e a Tamoyo. Ambas apresentaram o mesmo
percentual de desconto: 3%. Como previsto no item 5.1 do edital, sobre “critério de julgamento”, em caso de empate, a
decisão é feita por sorteio. Num golpe de sorte, venceu quem leva a absoluta maioria das licitações da CBV e de boa parte
das confederações do esporte olímpico brasileiro, incluindo o COB: a Tamoyo, de Sead Dizdarevic e seus sócios brasileiros. A
bolinha da sorte representou um contrato de R$ 1.374.390. O ato foi realizado no escritório da CBV pela “Comissão Especial
de Licitação” da entidade com os representantes das empresas envolvidas. No mesmo dia, o contrato foi assinado.
Na ocasião, a Tamoyo afirmou ao repórter não ter conhecimento do volume de passagens aéreas e hospedagens, “mas
participamos de alguns processos licitatórios da Confederação Brasileira de Vôlei e fomos vencedores de alguns destes”.
Já a CBV afirmou que “consta nos registros da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) que, até o ano de 2012, as
agências de viagem que atendiam a CBV foram selecionadas ou por meio de processo licitatório e de compra direta. Entre
essas agências estavam a Tamoyo e a BBTUR. A partir de 2013, todas as agências foram escolhidas por meio de licitação,
seguindo a Portaria Interministerial 507/2011 /Decreto Federal 6170 e Lei 8666/93”.
O Rio de braços dados com a Tamoyo
As ações da Tamoyo no esporte brasileiro não se restrigem apenas às confederações, COB e convênios do Ministério do
Esporte. Em 12 de junho de 2012, o Diário Oficial da União (DOU) publicou que a Autoridade Pública Olímpica (APO), ligada
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ao Ministério do Esporte, comprou da Tamoyo R$ 100.000 em ingressos para os Jogos Olímpicos de Londres. A dispensa de
licitação se dá porque é a única a ter direito de vendas no Brasil dos ingressos olímpicos.
Não importam partido, matiz ideológico ou o poder que está sendo representado. Dizdarevic e seus sócios brasileiros
estão sempre bem. Também em 2012, o então governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral pôs o estado para pagar à
Tamoyo R$ 2,2 milhões entre ingressos e passagens para que sua turma estivesse na Olimpíada de Londres. No estado que
viria a quebrar, sem dinheiro para pagar o funcionalismo, até a primeira-dama estava contemplada, mas a divulgação da
reportagem no site UOLfez com que as despesas de Adriana Cabral, de R$ 32 mil, fossem devolvidas. Treze membros do
governo foram agraciados com o mimo e desfrutaram Londres.
O prefeito Eduardo Paes não fica atrás em compras na Tamoyo. Desde 2012 até aqui, R$ 3.338.233 dos cofres da
cidade olímpica foram para a Tamoyo. Também sem licitação, como os R$ 323.362 pagos à Tamoyo por “prestação de
serviços de apoio logístico a ser prestado à prefeitura do Rio de Janeiro por ocasião dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de
Londres 2012”. Nas asas da Tamoyo, diferentes divisões do governo Paes viajaram ou gastaram: Companhia Municipal de
Limpeza Urbana, Companhia de Engenharia de Tráfego do Rio de Janeiro, Controladoria-Geral do Município do Rio de
Janeiro, Empresa Municipal de Informática S.A. (Iplanrio), Empresa Municipal de Urbanização (Rio-Urbe), Empresa Pública
de Saúde do Rio de Janeiro S.A. e Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro.
Embora todas as esferas de poder gastem com a Tamoyo, a empresa foi mais comedida em financiamento de
campanhas eleitorais. Limitou-se a abrir o bolso para o PCdoB – que então dominava o Ministério do Esporte e era grande
provedor de verba para convênios de confederações que incluíam compra de passagens –, ajudando com R$ 25 mil a
candidatura sem êxito de Márcio Marques dos Santos a deputado estadual pelo partido nas eleições de 2010.
Lá fora, Dizdarevic também é generoso com seus candidatos. Mitt Romney, depois de ter salvado Salt Lake City dos
escândalos, como já se contou aqui, se cacifou para voo mais alto. Ousou tentar a Casa Branca em 2008, sem sucesso. Mas,
na dúvida, a campanha do fiel amigo desde os jogos de Salt Lake City, em 2002, contou com U$ 9 mil da parte do Senhor
dos Anéis, que costumeiramente também ajuda o chapéu do Partido Republicano.
A Prefeitura do Rio de Janeiro, representada por Eduardo Paes, já pagou mais de R$ 3 milhões à Tamoyo, dos quais R$ R$
323.362 sem licitação (Foto: Ricardo Cassiano/Prefeitura do Rio de Janeiro)
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Em 2009, o TCU apontou vícios na relação entre o COB e a Tamoyo, em particular para uma licitação de 2008. O
relatório falava em “ausência de publicidade e de demonstração dos critérios para avaliação da exequibilidade da proposta”,
“não concessão de oportunidade ao licitante para demonstração da viabilidade de seu preço”, “vício no edital” e “prejuízo à
seleção da proposta mais vantajosa”, entre outros apontamentos. Em sua defesa, o argumento principal do COB foi a não
utilização, nesse pregão, de recursos públicos, aceito pelo TCU, que arquivou o processo, embora com ressalvas, como a
recomendação de adoção de algumas medidas para licitações.
Em 14 de julho de 2014, a Jet Set Sports Holding e a CoSport, capitalistas da Jet Set Sports Brasil, por sua vez
majoritária da Tamoyo, dão o passo que precisavam para legalizar seu monopólio olímpico por aqui também e alteram o
contrato social da Jet Set Sports Brasil para “incluir a atividade de venda de ingressos para eventos esportivos e de pacotes
de serviço de hospitalidade” (clique aqui para ver).
Além de passar de Jet Set Brasil Participações para Jet Set Brasil Serviços (veja aqui), a empresa promove a
substituição de quem a representa. Cícero Alencar sai de cena na Jet Set e é substituído por Neemias dos Santos Araújo,
funcionário da Jet Set. Na Jucerja, o endereço de Neemias também é o da Acal.
As conexões rumorosas da Jet Set no Brasil seguiram. O procurador que representava a Jet Set Sports Holdings e a
CoSport na abertura, em 2011, Eduardo Bezerra de Menezes Carreirão, dá lugar a George Pikielny na representação de
ambas junto com a mudança no contrato social. Brasileiro, administrador de empresas bem-sucedido, morador de São
Paulo, Pikielny é citado em um barulhento e ainda sem solução caso que envolve uma morte misteriosa e a dilapidação do
patrimônio do desaparecido. A história foi contada no jornal Centro Oeste Popular, do Mato Grosso do Sul, em dezembro de
2015.
De acordo com a reportagem, em 19 de junho de 2012, Guma Leandro Kaplan Aguiar, carioca radicado nos Estados
Unidos, de 35 anos, saiu para passear de lancha e desapareceu. A justiça da Flórida já o reconheceu como morto. Era dono
de uma fortuna estimada em US$ 100 milhões. Um ano depois do desaparecimento, de acordo com a reportagem do jornal,
as propriedades foram vendidas e as ações, transferidas pelos ex-sócios e administradores à revelia da viúva e dos quatro
herdeiros. Pikielny é citado como um desses beneficiados. Esta reportagem enviou perguntas para Pikielny, sem resposta.
Os mistérios e as conexões que envolvem Sead Dizdarevic e seus movimentos no Brasil, transformando seus negócios
sempre em um intrincado cipoal, remetem à ação de Jim Moriarty, que correu na Corte da Califórnia sob o número “3:08-cv03514-jsw”. Nela, o autor descreve algumas características que, segundo ele, compõem o modus operandi de Dizdarevic e
conexões: “Os arguidos ocultam ao público suas verdadeiras identidades e informações de contato, em um aparente esforço
para permanecer no anonimato e fugir de processo por sua conduta ilícita”.
Outra conexão de Dizdarevic revela o que pode acontecer aqui durante a Olimpíada. Para a Copa do Mundo de 2014, a
Jet Set se associou à Match, revendedora oficial dos pacotes de hospitalidade da Fifa, para revenderem os conjuntos de
ingressos/hospedagem do certame brasileiro na Austrália, Noruega, Rússia, Estados Unidos e Suécia. Todos se lembram do
fim da história: o executivo da Match Raymond Whelan foi preso, assim como o argelino Mohamadou Lamine Fofana, por
integrarem uma quadrilha internacional de cambistas. Com Fofana foram encontrados ingressos em nome da Jet Set.
Sead Dizdarevic não aparece por aqui desde sua 13ª vinda, em 5 de novembro de 2015. Em duas dessas ocasiões,
geralmente para períodos curtos, de cinco dias, veio com visto temporário e, nas outras 11 vezes, como turista. Não se sabe
ao certo como irá desembarcar para os Jogos Olímpicos daqui a algumas semanas. Se vem na condição de turista ou com
permissão de trabalho para colher em definitivo os dólares olímpicos que vem semeando nesta terra desde 2009, alguns
meses antes da própria escolha da sede –, embora a Jet Set prefira dizer (leia entrevista do porta-voz da empresa) que
iniciou suas conversas com a Tamoyo em 2011, ano em que na verdade já incorporou parte da empresa – ainda não está
claro.
Pela primeira vez, no dia 14 de agosto, Dizdarevic vai passar um aniversário em meio aos jogos, dos quais continua
sendo o maior senhor. Provavelmente brindando com sócios locais de cada edição e as vastas e complexas conexões com
comitês organizadores e olímpicos. O Senhor dos Anéis está chegando, com motivos de sobra para festejar seus 66 anos.
Salvo eventuais imprevistos no negócio do megaevento, como durante a Copa de 2014, quando homens poderosos a serviço
de um esquema milionário acabaram vendo o Mundial no xadrez de uma pequena delegacia policial na Praça da Bandeira.
Entrevista: Jet Set Sports
Michael Kontos é responsável pela comunicação da Jet Set Sports nos Estados Unidos. Nesta entrevista, ele explica a
relação da empresa com a Tamoyo, entre outras coisas.
Qual a razão da escolha da empresa Tamoyo para ser a parceira da Jet Set no Brasil? A Jet Set tem escritórios e
operações em dez países, dos quais alguns são resultados de aquisições, como no Brasil. Cada decisão para adquirir uma
companhia local foi baseada em estratégia empresarial. A liderança da Jet Set conheceu a Tamoyo como Revendedora
Autorizada de Tickets dos Jogos de Londres 2012 (ATR) no Brasil. Impressionada com os serviços e as operações deles
naqueles jogos, a Jet Set iniciou discussões com a Tamoyo em 2011, o que eventualmente nos levou a um investimento em
operações e depois à aquisição completa da empresa, em setembro de 2015.
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A Jet Set tem um histórico de sociedades em empresas ligadas a pessoas com relações aos Comitês
Organizadores Locais. Isso se repetiu no Brasil? Ainda não estou seguro da intenção desta pergunta. A Jet Set tem
sido um patrocinador oficial, fornecedor ou provedor de dez dos 11 últimos Comitês Organizadores de Jogos Olímpicos de
Verão ou Inverno desde Atlanta 1996. Mas não temos esse tipo de relação com a Rio 2016.
Entre as críticas que a Jet Set sofre, está a de monopolizar os melhores tíquetes e associar estes à
hospedagem, encarecendo o preço dos ingressos olímpicos e tornando-os inacessíveis ao público em geral.
Como veem essas críticas? As críticas não levam em conta como os programas de tíquetes funcionam. São desenvolvidos
pelos Comitês Organizadores, Rio 2016, aprovados pelo COI. Este programa determina que porcentagem será posta para o
público brasileiro em geral, que porcentagem será distribuída para os Comitês Olímpicos de cada país (NOCs) e que
porcentagem vai para a família olímpica, autoridades, patrocinadores, mídia etc. É importante lembrar que os melhores
lugares são reservados para a mídia, então eles podem transmitir para o público de todo o mundo com os melhores
ângulos.
Só a Rio 2016 vende tíquetes para o público geral brasileiro, com o Comitê Organizador determinando que ingressos
serão vendidos para o público em geral, o preço e como são oferecidos. A Jet Set não está envolvida com ingressos para o
mercado brasileiro em geral. A Rio 2016, depois, distribui/vende ingressos internacionais para os NOCs, muitos dos quais
confiam em Revendedores Autorizados de Tíquetes (ATR) para revender esses tíquetes a seu público. A lista desses
revendedores pode ser acessada aqui.
É importante notar que, depois dos direitos de transmissões e patrocínios, bilheteria é a terceira maior fonte de receita
do Comitê Organizador. Assim, cada Comitê Organizador, como Rio 2016, precisa dos NOCs para vender o máximo de
tíquetes possível, atingindo assim seus objetivos de receitas e diminuindo a pressão sobre o governo local.
Os revendedores não apenas apoiam os NOCs, assim como os Comitês Organizadores, com expertise em vender
tíquetes para o público internacional, como também se comprometem em comprar certo número de tíquetes na frente,
ajudando assim numa muito esperada receita para os NOCs e os Comitês Organizadores e assumindo alguns riscos, no lugar
dos destes, de tíquetes não vendidos, antes que qualquer um seja vendido. As revendedoras, incluindo Jet Set e sua
companhia irmã CoSport, então fazem tíquetes individuais/tíquetes e passagens/tíquetes mais passagens mais pacotes de
hospitalidade acessíveis de acordo com as demandas e necessidades dos públicos com os quais lidam. Nos 30 anos em que
forneceu hospitalidade olímpica, a Jet Set e seus sócios ajudaram mais de 1,2 milhão de torcedores a estar em Jogos
Olímpicos de Verão e Inverno, e o nível de satisfação dos clientes consistentemente está acima de 90%.
Gostaria que comentasse os casos de participação em compra de votos para candidaturas olímpicas pelo Sr. Sead
Dizdarevic, como amplamente citado na imprensa internacional, o que já o levou a responder na Justiça americana.
O sr. Dizdarevic forneceu informações para as investigações sobre a candidatura de Salt Lake para os Jogos de Inverno
de 2002. Isso foi noticiado várias vezes. De fato, desde aquele incidente, a Jet Set foi escolhida como patrocinadora,
provedora ou fornecedora por meio de processos competitivos conduzidos pelos Comitês Organizadores de Atenas (2004),
Turim (2006), Pequim (2008), Vancouver (2010), Londres (2012) e Sochi (2014), somando ainda Atlanta (1996), Nagano
(1998), Sydney (2000) e Salt Lake City (2002). Todas as maiores decisões desses Comitês Organizadores, alguns deles
incluindo participação governamental, foram tomadas após passarem por vasta investigação, e todos eles escolheram a Jet
Set como seu melhor sócio. Ainda, desde então, a Jet Set e a CoSport foram escolhidas para ser revendedoras de mais de
uma dúzia de NOCs, incluindo Austrália, Bulgária, Canadá, Grã-Bretanha, Noruega, Rússia, Suécia e Estados Unidos. Com
exceção do comitê americano, todos os outros são organizações “quasi-governmental” (nota: apoiadas pelo governo, mas
de gestão privada). A Jet Set não seria selecionada por todas essas organizações se suas alegações fossem precisas.
A Pública enviou diversas perguntas sobre os temas abordados na reportagem também para a agência Tamoyo, no
Brasil, e tentou contato diversas vezes para obter as respostas, sem sucesso. Posteriormente, duas das perguntas enviadas
para o escritório brasileiro foram respondidas por Michael Kontos, da Jet Set americana:
Era de conhecimento que Cícero Augusto Oliveira de Alencar também era sócio da Acal, que auditava
convênios da CBV e do Ministério do Esporte que envolviam compras de passagens na Tamoyo? Não. Entramos
em contato com a Acal com base em uma recomendação de alguém com quem costumávamos trabalhar aqui nos Estados
Unidos. A empresa nos foi recomendada porque tanto tinha a experiência e a capacidade de conduzir nosso projeto como
nossos prazos. Não tínhamos conhecimento de todos os outros negócios que a empresa tinha conduzido ou com que estava
trabalhando.
Qual a razão para que uma empresa de turismo como a Tamoyo tenha feito uma doação de campanha para a
candidatura de Márcio Marques dos Santos a deputado estadual nas eleições de 2010? Isso antecede o nosso
investimento e a eventual aquisição da Tamoyo, por isso não temos informações sobre esse tópico.
AGÊNCIA PÚBLICA – JORNALISMO INVESTIGATIVO. A Pública é uma agência independente de jornalismo investigativo sem
fins lucrativos e livre reprodução de conteúdo. Tem a missão de produzir reportagens de fôlego pautadas pelo interesse público,
visando ao fortalecimento do direito à informação, à qualificação do debate democrático e à promoção dos direitos humanos.
Visite apublica.org. PÚBLICA, Junho de 2016.
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Caça às bruxas (MÁRCIA TIBURI)
HÁ ALGO de estranho quando as pessoas passam a desconfiar de quem defende direitos para todos, inclusive para
aqueles que são ignorados, quando não massacrados, por quem detém o poder econômico ou político. Há quem não veja
nada de estranho nisso. Em outras palavras, há quem veja com maus olhos justamente quem combate injustiças e defende
os direitos dos que sobrevivem sem direito algum. É como se preferissem uma sociedade sem direitos. O ódio àqueles que
mantêm viva a ideia de que a sociedade só é possível se direitos fundamentais forem respeitados torna-se cada vez mais
comum e natural.
Acostumados a não respeitar as diferenças, a etiquetar o “outro” como inimigo, a pensar de acordo com critérios
impostos pelas elites, a negar direitos a quem enquadram como diferentes, ao mesmo tempo em que reconhecem
privilégios aos amigos, acostumados a naturalizar os abusos e as violações, os que se autointitulam “cidadãos de bem”
passam a medir os outros como se olhassem para um espelho sem que tenham como perceber esse fato. A partir da
ignorância, do egoísmo e da seletividade que marcam sua maneira de atuar no mundo, pessoas medem outras impondo,
contudo, uma lógica de dois pesos e duas medidas.
Em geral, isso acontece com todo mundo. Medimos o outro por nós mesmos. Aplicamos a lógica da medida baseada
em inferior e superior, pior e melhor, e nos colocamos, evidentemente, sempre no lugar do superior e do melhor. O outro
tem que representar o pior para assegurar que o melhor seja reservado a mim. Sobretudo se percebemos que o outro
esteja na “melhor” posição, no lugar do sucesso, da admiração, do amor, então as coisas ficam piores ainda. O que fazemos
para o outro, a favor ou contra, tem a função de nos fazer lucrar subjetivamente. É raro uma atitude realmente
desinteressada. Mas quando o outro se apresenta como algo de melhor, aí sim, é que vivemos o teste da personalidade
autoritária e fascista em cuja base os afetos mais tristes comandam os pensamentos mais tortuosos e as ações mais
abomináveis.
Nesse contexto, a incapacidade de olhar para si mesmo de maneira autocrítica é proporcional ao gesto de projetar no
outro aquilo que, no fundo, odeia em si mesmo ou aquilo que, não podendo ter, causa um sério mal estar. Em termos
simples, quem odeia deveria olhar melhor para o que odeia, pois odeia no outro algo que lhe é muito íntimo por excesso ou
falta.
Desonestidade compulsória
Assim podemos compreender como aqueles que se tornaram incapazes de empatia, de generosidade e de amor ao
próximo, são capazes de acreditar que há algo de podre nos que revelam ser possível pensar e agir diferente. A
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desconfiança de quem é profundamente desonesto recai sobre a honestidade alheia tratada como impossível. A honestidade
torna-se uma característica estranha quando a norma é a desonestidade compulsória. Desconfiar é, nesse contexto, um
gesto de autodefesa subjetiva com a qual o desonesto sempre lucra.
A desconfiança na honestidade comprovada é a estratégia para esconder a própria desonestidade. Como o psiquiatra
que diagnostica a todos como loucos esconde-se como o único lúcido que restou, o juiz que mostra que todos são culpados,
esconde-se como o único ininputável, o policial que a todos admoesta, prende e violenta, é quem parece fazer justiça.
Sabemos onde isso vai dar quando pensamos no que vem sendo feito com a corrupção, transformada a cada dia em uma
curiosa ideologia de acobertamento da própria corrupção. Usa-se hoje a “corrupção do outro” para evitar parecer corrupto e
assim manter a corrupção real em seu lugar assegurado.
No fundo de tudo isso, há o mais perigoso dos afetos: a inveja, que está na base mais profunda da personalidade
autoritária. É a inveja que potencializa o ódio que vemos manipulado em nossa cultura pelos meios de comunicação e as
demais instituições de poder.
Aqueles que invejam são incapazes de mudar, querem excluir ou exterminar quem, por pensar diferente (ou apenas
por pensar), os humilham em sua posição de invejosos. Como fascistas, tem ódio ao conhecimento.
As recentes notícias envolvendo o juiz amazonense Luis Carlos Valois parecem apontar para esse fenômeno cada dia
mais atual: a demonização daqueles que acreditam ser possível um outro mundo. Para mentes tacanhas, uma pessoa que
respeita direitos dos presos (e, por isso, é respeitada por eles), tem que estar envolvida com ilicitudes. É a lógica da medida
que tenta inferiorizar quem parece melhor do que os demais em um contexto em que ser e agir pelo pior é a regra. A
honestidade torna-se um valor impossível. Consegue-se com isso fundamentar a desonestidade e a corrupção como uma
regra, mais, como uma lei. Quem ameaça essa lei deve ser punido. Antes de qualquer outro.
Na inversão ideológica, que fique claro, os direitos fundamentais dos cidadãos são tratados como o que há de pior, o
que não deveria existir. E as pessoas que são consideradas inferiores não devem ter direitos porque elas também não
deveriam existir. Consegue-se assim sustentar a lógica profunda da ação violenta contra os direitos: a do extermínio dos
que não tendo direitos não conseguirão sobreviver.
É o que vem acontecendo com várias pessoas que ousam manter os valores democráticos, que ousam ser realmente
honestas. Vide o caso de políticos acusados de corrupção que se apressam para acusar de corrupção outros políticos,
mesmo que contra esses não existam provas. Todos os que não se curvarem à ordem da corrupção do pensamento, das
emoções, dos direitos e das ações, pagam caro nesse momento. São caçados pelos próprios colegas.
Luis Carlos Valois é um juiz conhecido por não buscar o aplauso fácil assegurado aos que cedem à espetacularização da
Justiça, não reproduzir os mantras dos meios de comunicação de massa, opor-se à insana “guerra às drogas”, respeitar os
direitos fundamentais de todos e dedicar-se à academia (em meio de tantos atores jurídicos, fascistóides, que têm ódio ao
conhecimento). Em seu caso, como não ser culpado? A honestidade, a coragem democrática, ofende os covardes.
MÁRCIA TIBURI é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia. É professora do programa de pós-graduação
em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, da graduação em Filosofia da Unicamp e colunista da Revista
CULT. Publicou diversos livros de filosofia, entre eles “Filosofia Pop” (2011), “Sociedade Fissurada” (2013) e “Como Conversar com
um Facista” (2015). Publicou também romances: “O Manto” (2009), “Era meu esse Rosto” (2012). Revista CULT, Junho de
2016.
Sem a Petrobrás, o país não volta a andar (JOÃO ANTÔNIO DE MORAES)
O impacto do encolhimento da Petrobrás nas cadeias naval e
petroquímica é absolutamente devastador e pode se tornar irreversível
se algo não for feito urgentemente. Os estaleiros brasileiros, por
exemplo, já demitiram milhares de trabalhadores, e alguns estão em
estado pré-falimentar
Em texto publicado no Le Monde Diplomatique Brasil (mar. 2015)
discutimos os impactos da Operação Lava Jato e da ofensiva midiática que a
acompanhava (e acompanha) na política de conteúdo local. Deixamos claro
naquele artigo que, assim como todo brasileiro que se preze, somos
favoráveis à apuração de ilícitos e, se comprovados, à punição dos culpados.
Ressaltamos, porém, que nossa maior empresa deveria e deve ser
preservada, e estamos em luta para a defesa da Petrobrás e de nossa nação. A luta se intensificou, e o capital internacional,
articulado com as forças retrógradas do país, escancarou seu papel na disputa política. Dessa maneira, apresentaremos
nossa visão sobre a situação atual da Petrobrás.
Após verdadeiro cerco e boicote internacional imposto pelo mercado por meio da Price (PricewaterhouseCoopers), que
inexplicavelmente resolveu não chancelar o balanço do terceiro e quarto trimestres de 2014 da Petrobrás, o governo foi
obrigado a trocar a diretoria e o conselho de administração da empresa, tirando os ministros e colocando pessoas de
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absoluta subserviência ao mercado, uma vez que a não assinatura da Price poderia significar a completa insolvência da
empresa naquele momento. Essa movimentação levou a Petrobrás a agir não mais como uma empresa pública estratégica
para nosso desenvolvimento, e sim como uma companhia privada que procura resolver seus problemas financeiros
(endividamento) e dar lucro aos acionistas. Além disso, é evidente que esse cerco encontrou ambiente propício em razão do
preço internacional do óleo cru.
Atualmente, a empresa se encontra refém do mercado e, apesar de a Operação Lava Jato apontar supostos desvios de
R$ 6 bilhões, ela se propõe a vender ativos e reduzir investimentos em valores cem vezes maiores. Essas medidas
trouxeram de volta à empresa o clima de desmonte e sucateamento que vivíamos nos tempos do tucanato. Planos de
demissões voluntárias podem reduzir o número de trabalhadores de 65 mil para 40 mil; em 2002, éramos 32 mil
trabalhadores.
Em seus balanços, a Petrobrás tem aplicado desde 2014 premissas muito mais conservadoras que suas concorrentes
internacionais, os chamados impairment, que têm causado prejuízos contábeis de R$ 22 bilhões (2014) e R$ 35 bilhões
(2015), destruindo os excelentes resultados operacionais obtidos. Com relação à dívida acumulada, a principal solução
imposta pelo mercado – vendas de ativos rentáveis – somente agrava o problema. Uma alternativa seria buscar fontes de
financiamento, como os bancos chineses, vinculadas ao cumprimento de produção futura; é um tipo de saída muito melhor,
mas que precisaria ser feita de maneira mais planejada e estruturada, com atuação do próprio Estado brasileiro, o que é
efetivamente rejeitado pela atual gestão da companhia.
O impacto do encolhimento da Petrobrás nas cadeias naval e petroquímica é absolutamente devastador e pode se
tornar irreversível se algo não for feito urgentemente. Os estaleiros brasileiros, por exemplo, já demitiram milhares de
trabalhadores; alguns estão em estado pré-falimentar e outros já fecharam as portas. No setor petroquímico, nossos polos,
à frente o de São Paulo, estão em extrema dificuldade por falta de novos investimentos. Até mesmo obras como a Fábrica
de Fertilizantes Nitrogenados (Fafen), localizada em Três Lagoas (MS), que está 80% concluída, foram paralisadas. Contudo,
seu funcionamento é fundamental para nossa soberania alimentar, livrando-nos da importação de fertilizantes nitrogenados.
O Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) e a Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, também foram
impactados. O primeiro recebeu mais de US$ 14 bilhões de investimentos, tem 80% de sua obra concluída, porém se
encontra paralisado. E a Refinaria Abreu e Lima está operando apenas o primeiro trem (cerca de 50%); a segunda parte
também teve as obras paralisadas. A direção da Petrobrás diz que, para concluir essas construções, vai procurar estabelecer
parcerias, mas essa saída, além de prejudicada pela retração do mercado internacional, pode ferir interesses estratégicos de
nosso país ao priorizar o mercado (capital privado e internacional) em detrimento de nossa soberania energética.
Quanto ao pré-sal, por enquanto não tivemos alterações, pois a empresa diz ser sua absoluta prioridade nos próximos
anos. Mas nós, trabalhadores, pensamos que até mesmo essa área pode ser impactada pela saída de profissionais
altamente qualificados (geólogos, geofísicos, engenheiros e técnicos de diversas áreas) em virtude do Programa de
Incentivo ao Desligamento Voluntário (PIDV), lembrando que são profissionais não disponíveis com facilidade no mercado,
pois sua função exige muitos anos de formação.
O Fundo Social do pré-sal vem sendo formado e alcança valores próximos de R$ 7 bilhões (dez. 2015), mas,
certamente, a uma velocidade menor do que se a Petrobrás estivesse atuando a plena carga, mantendo os investimentos
previstos inicialmente. Para ter uma ideia, no planejamento estratégico de 2013 a empresa projetava uma produção de 4,5
bilhões de barris em 2020; em 2016, esse número caiu para 2,8 bilhões. Ademais, essa produção viria na maior parte do
pré-sal e, assim, iria compor o Fundo Social. A queda do valor do barril também contribuiu para diminuir o fundo, sendo
parcialmente compensada pela elevação do dólar.
Por fim, com o Projeto de Lei do Senado de autoria de José Serra, o PLS 131/2015, a Petrobrás perderia a condição de
operadora exclusiva, o que talvez lhe permitisse planejar melhor sua atuação e manutenção da tecnologia por nós
desenvolvida. No entanto, o maior prejuízo seria do Brasil, pois o PLS arranca do país a possibilidade de aproveitar as
imensas reservas do pré-sal em benefício de um novo ciclo desenvolvimentista. O controle privado da operação do pré-sal
determinará a produção. Dessa maneira, empresas com sede estrangeira priorizariam compras em sua nação de origem.
Além disso, normalmente essas companhias colocam nos postos de trabalho mais estratégicos trabalhadores nacionais, não
permitindo nosso acesso ao conhecimento e tecnologia. Também perderemos soberania energética, pois pode haver
exploração predatória, como a espanhola Repsol praticou ao assumir os ativos da YPF argentina. Nossos vizinhos até hoje
não se recuperaram desse prejuízo e se veem às voltas com a necessidade de importação de insumos energéticos.
Outro risco sério de tirar da Petrobrás a condição de exploradora exclusiva é sermos fraudados nos custos de produção
(que o Estado tem de repor em óleo para a operadora, assim como nos volumes produzidos). Ao longo da história, existem
inúmeros exemplos de nações que detiveram recursos naturais em abundância, mas que, ao submeterem esses ativos a
agentes econômicos externos, foram literalmente surrupiadas, restando-lhes apenas o dano ambiental, como ocorreu
durante a atuação da Chevron no campo de Frade, no litoral fluminense. Em 2011, após realizar uma perfuração predatória
(acelerada e com equipamentos ultrapassados), a petroleira norte-americana causou uma fissura e um enorme vazamento.
Portanto, se não quisermos repetir com o pré-sal a mesma tragédia de outros ciclos econômicos do país, como os do
pau-brasil e do ouro, quando perdemos o recurso natural e não estruturamos uma nação desenvolvida e justa, precisaremos
manter na íntegra o modelo de partilha, com a Petrobrás como operadora exclusiva, e se possível aumentar o controle da
sociedade nessa área estratégica.
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JOÃO ANTÔNIO DE MORAES é diretor de relações internacionais e movimentos sociais da FUP/CUT. Ilustração: Daniel Kondo.
Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Junho de 2016.
Duas, dois, nós todos (MALU FONTES)
HÁ UMA semana encerrou-se em Salvador a última temporada de um dos espetáculos mais revolvedores encenados
recentemente na cidade. Duas & Dois, estrelado por Ana Mametto, Cláudia Cunha, Yacoce Simões e Alexandre Leão. É um
show quase simplista na aparência, mas um aleph na essência. Um espetáculo desses enganadores, no bom sentido, em
que o público sai de casa achando que vai apenas ouvir boa música e acaba voltando retorcido, revolvido em seu divã
imaginário, futucado no fundo da alma pelas tessituras, costuras e desconstruções precisas da direção artística de Andrezão
Simões.
Duas & Dois parece ser um passeio pelos últimos 40 ou 50 anos da música brasileira, mas é uma viagem por espaços
adormecidos ou turvados pelo timing que cada um precisa para abrir cortinas e janelas e deixar ventos novos secar feridas
velhas ou para esquecer de vez os tantos panos quentes que acabaram deixados por lá, pela impossibilidade de removê-los,
sob o risco de reabrir buracos que nunca fechariam de novo. E disso é feita a arte, dos convites que ela faz a todos e a cada
um, para o alargamento da alma de quem se posta diante de um artista. Como dizem os poetas, a arte existe porque a vida
não basta.
Tango
O conteúdo escolhido por Andrezão Simões para compor a mala sonora de Duas & Dois foi arrumado com excelência
por Ana, Claudia, Yacoce e Alexandre sob a forma de um convite que contempla do luxuoso ao doloroso e feito ao interior
do interior de cada um da plateia. Como diante do aleph, do conto de Jorge Luis Borges, o público visita e revisita, sem sair
do lugar, o mundo e principalmente seus próprios mundos, numa sucessão de encontros internos, às vezes, não tão leves
ou fáceis. Começam a aparecer em nós, vindas lá de dentro, as crianças resistentes à dor do crescimento, às dores do
mundo e às do tempo.
As memórias de êxtases e de dores, frustrados, mortos, nunca vividos ou ainda vivos, de amores alegres e tristes,
histriônicos como todo amor, intensos e trágicos como só o tango sabe ser. Quem ouviu Sonhos, clássico de Peninha
imortalizado por Caetano, jamais ouvirá de novo, depois de Duas & Dois, sem esperar que de seus acordes exploda em fuga
e quase fúria feminina um tango rasgado. E não mais será possível ouvir do mesmo jeito ouvir A Maçã, de Raul. O realismo
mágico chega ao clímax com o piano de Yacoce Simões metamorfoseado em sanfona e voz de Luiz Gonzaga, sem uma
palavra cantada.
Embora se trate de um espetáculo atemporal, é paradoxalmente, um diálogo de agora. Não há a mais remota chance
de ouvir Elis pedindo pela “volta do irmão do Henfil”, na voz de Ana Mametto, sem enxergar no palco o lamento do
brasileiro, esse cidadão órfão de tudo, agora nas ruas, no silêncio, no laconismo ou na histrionice histérica das redes sociais,
ignorando, defendendo ou empunhando bandeiras enquanto a democracia se transfigura em algo mais puído que roupa de
desvalido. A digestão lírica de Duas & Dois é para os fortes, a não ser para quem o espetáculo passe batido, pela via da
cegueira de quem a escolhe, seja por falta de chão ou de coragem.
Cadáveres
Aí os dias passaram e a TV gaguejava seu discurso falido e endividado do amor comercial do 12 de junho. Acorda-se
buscando graça num domingo morninho desses dos invernos fakes tropicais e tudo o que a mesma TV tem para nos atirar
na menina dos olhos são cadáveres, de verdade: 50 corpos chacinados pela intolerância e paradoxalmente nas franjas de
um mundo inventado para ser música, vida, alegria: uma boate gay em Orlando, Estados Unidos.
Nas cabeças de quem ainda insiste em não enlouquecer sem perder as marcas de um senso mínimo de humanidade
cada vez mais fora de moda e de lugar, soam tangos, fados, sons cortantes remotos e desejos de que tudo seja irrealidade,
de que tudo possa ser aplacado pelas vozes oníricas de Ana e Cláudia, mesmo que entoando um lamento trágico, mas que
só acontecesse no palco, para reduzir da boca de todos nós esse gosto amargo de que todos os dias serão 7 a 1.
MALU FONTES é Jornalista, Doutora em Cultura pela UFBA, além de professora desta mesma instituição. Jornal CORREIO,
Junho de 2016.
O elemento imundo da vida (LUIZ FELIPE PONDÉ)
NUNCA entendi a busca de pureza nas pessoas. Depois de dedicar alguns anos de estudo à religião, claro que entendo
o conceito e a história dessa busca. Entendo que a vida é impura na medida em que é confusa e ambivalente de uma forma
enlouquecedora.
Como dizia santo Agostinho, nascemos em meio a fezes e urina, causando uma dor física enorme numa mulher, quase
a matando, imersos na mais pura dependência e incapacidade de sobreviver por anos. Viveremos sempre em meio a
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desordem, imperfeição e frustração. Mas, ainda assim, sinto que esse pântano é nosso elemento. A tentativa de negá-lo
sempre me parece o ato de uma criança amedrontada. A infância é uma ameaça, um combate aos medos e aos mais fortes
do que nós. Os pais, sempre aquém do esperado. O início da idade adulta, cheio de expectativas e esperanças, que nem
sempre se tornam realidade. A rotina como a negação dos mais belos sonhos. A incapacidade de lidar com a realidade, uma
constante.
A vida profissional, um risco contínuo entre o sucesso incerto, o fracasso quase certo e a mediocridade como nossa
irmã gêmea. O amor – ah! o amor –, esse sentimento delirante e encantador. A amada, sempre um vulcão capaz de nos
aniquilar de beleza, insegurança e anseios. O mundo, um palco em que corremos de um lado para o outro, como um ator,
seguindo um roteiro escrito por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada, como diria Macbeth, esse especialista na
impureza humana. E, então, as pessoas se põem a procurar por um estado de espírito em que tudo, por um passe de
mágica, torne-se belo, bom e verdadeiro. Entendo esse anseio como ideia, nunca estive nem um milímetro sequer perto
dele como afeto.
O documentário "Espaço Além "" Marina Abramovic e o Brasil" é um exemplo claro dessa busca espiritual pela "cura da
alma". Tema clássico na história da espiritualidade que me fascina, apesar de ser completamente estranho a ele. Suspeito
que uma "alma curada" seja uma alma morta. Como dizia o filósofo romeno Emil Cioran, foi a dor que nos despertou do
sonambulismo da matéria. A autora diz que o motivo de sua dor (emocional, não física) foi o fato de seu marido tê-la
trocado por outra mulher e de sua mãe ter sido uma maníaca por limpeza contra o risco de contaminação com vírus. Sua
infância teria sido um tanto triste e sozinha por conta do medo que a mãe tinha de que amigos em casa pudessem trazer
doenças para sua pequena filha Marina.
Ou seja, duas causas prosaicas e cotidianas. A traição amorosa e uma mãe meio louca. Uma das duas, todo mundo
sempre sofre. Mas, o que me chamou especialmente a atenção é o texto final narrado, quando a autora mostra sua
exposição em São Paulo, no Sesc Pompeia, e os rostos das pessoas buscando a "pureza". Rostos de todas as cores e gestos,
todos irmanados no amor e na diferença harmônica e não conflituosa. Acho isso um delírio infantil, ainda que compreenda a
dor por trás dessa busca. É insuportável essa dor, mas ela é nosso elemento.
Talvez eu tenha sido estragado pelo ceticismo e pela tragédia (minha verdadeira "religião") ou por anos de análise em
excesso ou por um temperamento demasiadamente passional, mas não creio nessa pureza. E, mais do que isso, duvido que
isso seja de fato uma realidade positiva na vida das pessoas. Pelo contrário, não concebo a vida se não for atolada nas
ambivalências e no desespero da imperfeição.
Não se trata de fazer um elogio ao divino Marquês de Sade, mas, apenas, de reconhecer que parece insuportável para
grande parte da humanidade o fato de a vida ser impura e, de alguma forma, "imunda". Contaminada pela finitude e pelo
desencontro contínuo consigo mesma, nossa vida é sempre um roteiro atormentado por um autor incapaz de dar sentido à
sua obra.
Alguns buscam a pureza na espiritualidade, outros na política (acho esse caso ainda mais risível), mas nunca
encontrarão. A pureza é como um desses fantasmas que parecem anjos, mas que na verdade não passam de um medo
avassalador no meio da noite escura da alma. Nosso elemento é o demoníaco e sua agonia por não ser Deus.
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Junho de 2016.
As raízes da opressão
(ALESSANDRA OROFINO, ANA CAROLINA EVANGELISTA, ANTONIA
PELLEGRINO E MANOELA MIKLOS)
DESDE o final de maio, quando imagens do estupro coletivo de uma menina de 16 anos começaram a circular pela
internet, as mulheres vêm se organizando para protestar contra mais um exemplo de uma terrível realidade. Primeiramente,
as feministas se articularam para que a vítima tivesse atendimento. Em seguida, mulheres de todo o país se mobilizaram
para que nossa sociedade encarasse um doloroso processo de autoanálise e debatesse a cultura do estupro -conjunto de
práticas, do "fiu-fiu" até o feminicídio, que produz e reproduz a desigualdade de gênero.
A cultura do estupro destrói a mulher. Na melhor das hipóteses, anula aos poucos sua subjetividade. Na pior, tira-lhe a
vida. E as mulheres brasileiras não são as únicas na luta contra a naturalização dessa realidade. Feministas norteamericanas discutem a cultura do estupro desde os anos 1970. A grande repercussão do documentário "The Hunting
Ground", de 2015, sobre violência sexual em universidades de elite dos EUA, prova a atualidade do debate. Mulheres
canadenses criaram, em 2011, a Marcha das Vadias, em resposta à recomendação da polícia de Toronto de que elas não
deveriam vestir-se como vadias se quisessem evitar estupros. A marcha virou um movimento transnacional pelos direitos da
mulher e contra a culpabilização das vítimas.
Mexicanas, argentinas e uruguaias tomaram as ruas em 2015 e neste ano para protestar contra altíssimos índices de
feminicídio. Movimentos, como o Ni Una Menos, seguem enchendo praças, pintando prédios públicos de rosa e lilás e
fazendo a América Latina debater a agressão contras as mulheres. O que todas essas mobilizações têm em comum? São
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reações ao machismo e à violência que reúnem mulheres, on-line e off-line, e nos lembram que, neste caso, o debate é
tanto pessoal quanto político. Dinâmicas privadas, desdobradas em opressão continuada e abusos sistemáticos, tornam-se
questões públicas, que demandam respostas públicas.
Em diversos países, manifestações femininas de caráter micropolítico se inscrevem na macropolítica e demandam a
ressignificação da interação entre as pessoas. No Brasil, as mulheres querem uma nova política, mas sabem que ela só virá
com uma nova cultura. Um novo normal. A velha política, assustada, esperneia. Nomeia apenas homens para o primeiro
escalão do governo interino. Apoia projetos para mudar planos de educação e impedir que professores debatam gênero e,
portanto, cultura do estupro em sala de aula. Defende o velho normal.
Há inúmeras tentativas em campo de manutenção do velho normal. E é preciso cuidado, pois muitas se disfarçam de
medidas de proteção da mulher e combate à violência. Qualquer ação macropolítica que se aproveite da revolução
micropolítica para afirmar que a violência contra a mulher é um fenômeno novo, ou que ganhou nova dimensão, apenas
mantém o velho normal. Qualquer política pública que parta do diagnóstico de que há onda de violência de gênero atípica,
ou um pico de estupros em decorrência da crise econômica, nos distancia do debate sobre o machismo estruturante da
sociedade.
O mesmo vale para o punitivismo de medidas que singularizam o estupro coletivo, aumentam pena de prisão para
esses casos e contribuem para a avaliação equivocada de que estupradores são monstros, não homens criados em meio à
cultura do estupro. Nada disso nos ajuda a questionar privilégios e transcender a dominação, raízes da opressão contra a
mulher.
ALESSANDRA OROFINO, ANA CAROLINA EVANGELISTA, ANTONIA PELLEGRINO e MANOELA MIKLOS são ativistas
feministas e editoras do blog #AgoraÉQueSãoElas, da Folha. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Junho de 2016.
A mãe sofre mais do que o bebê; o que está em jogo é a sua ansiedade (ROSELY
SAYÃO)
O BEBÊ acordou de madrugada com febre. O que fez a mãe? Ligou para o pediatra, enviou mensagens instantâneas
pelo celular para ele e não sossegou enquanto não foi atendida. O filho, pequeno, comeu algo pela primeira vez e vomitou,
fez cocô de cor estranha. O pediatra foi acionado imediatamente.
O filho está doente, em tratamento por causa de uma infecção nada grave. Um dia após o início da medicação, a
criança não melhorou. A mãe quis falar com o pediatra a qualquer custo, mesmo tendo sido bem orientada na consulta. E
ela não desistiu até ouvir a voz do profissional. Não é à toa que o pediatra já foi chamado de calmante de mãe!
A vida dos pediatras não está fácil, tanto que tem diminuído a procura por essa especialidade. Há o problema da baixa
remuneração pois, afinal, é uma minoria que consegue lotar os consultórios com clientes particulares, assim como é uma
minoria quem consegue arcar com o custo das consultas privadas. O valor da consulta paga pelos planos de saúde sabemos
que é bem baixo. Mas o estresse provocado nos médicos pela ansiedade das mães tem sido fator importante na diminuição
do interesse pela pediatria.
Dá para entender esse fenômeno se pensarmos no conceito de medicalização da vida. Aprendemos que todo tipo de
sofrimento – inclusive os inevitáveis – pode ser eliminado rapidamente porque temos explicações biológicas e tratamentos
medicamentosos para tudo. E queremos que eles tenham eficácia imediata.
As mães toleram pouco, por exemplo, o choro do filho motivado pela cólica nos primeiros meses de vida. Não importa
que o pediatra já tenha explicado que isso ocorre com a maioria dos bebês devido à imaturidade fisiológica do organismo do
recém-nascido. Trata-se de um período de adaptação, portanto. Mas muitas mães acham que pode ser algo mais grave, ou
que deve ter algum remédio para eliminar essa cólica.
Acalmar o bebê, aconchegá-lo no próprio corpo e outras atitudes desse tipo costumam funcionar para muitos. O
problema é que a mãe sofre mais do que o bebê e, por isso, sente que PRECISA falar com o médico. O que está em jogo,
portanto, é a ansiedade da mãe, mais do que o sofrimento do filho.
É esse mesmo conceito da medicalização da vida que também colabora para que as jovens mães ouçam menos os
conselhos das avós de seus filhos, que poderiam, com sua experiência, aquietá-las. Mas, numa época em que tudo o que
não é novo é considerado ultrapassado, muitas avós foram deixadas de lado. Ouço, com muita regularidade, mães dizerem
que orientam suas próprias mães sobre como elas devem agir com os netos. Invertemos a equação: agora, as jovens mães
é que se colocam no lugar de aconselhar as avós, em vez de procurar ajuda com elas. Não é espantoso esse fenômeno?
Conversei com alguns pediatras e todos eles afirmaram que mais da metade dos telefonemas que recebem são
desnecessários, se considerada a saúde da criança; eles disseram, também, que a ansiedade das mães tem atrapalhado a
relação com a família. Não é incomum que algumas mães cheguem ao consultório exigindo, de modo grosseiro,
atendimento imediato. Isso não é bom para a saúde de nenhum dos envolvidos nessa relação! Vamos baixar esse nível de
ansiedade? Como sempre, pelo bem das crianças.
ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e articulista do programa “Seus Filhos” da Rádio BandNews FM, fala sobre
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as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Junho de 2016.
História mostra por que tantas mulheres se calam sobre estupro (CLÁUDIA COLLUCCI)
DESDE os tempos mais antigos, o crime de estupro sempre figurou entre os mais graves, inclusive com previsão de
pena de morte em várias legislações, como a germânica, a inglesa e a portuguesa. Mas a punição não era motivada por um
sentimento de proteção à mulher. Funcionava como forma de cuidar de um bem, no caso a castidade, condição para o
casamento.
Na obra "História do estupro", Georges Vigarello afirma que o crime não era só contra a família da mulher estuprada,
mas contra a sociedade, que já não podia mais contar com alguém digna para um bom casamento. Contudo, havia os
arranjos. Na legislação hebraica, por exemplo, o homem que violasse uma mulher virgem, prometida em casamento, era
condenado à morte. Porém, se a mulher não fosse prometida, o estuprador tinha que pagar "indenização" ao pai da vítima e
casar-se com ela.
No Brasil colônia, para que o estupro fosse considerado crime, a mulher tinha que ser virgem e, logo depois de violada,
sair gritando pelas ruas, de preferência, falando o nome do criminoso. Considerada pouco confiável pela Igreja Católica, a
mulher não tinha vez. Suas palavras valiam menos do que a do seu algoz. O receio era de que, para prejudicar "bons
homens", pudessem levantar falsas acusações de estupro.
O Código Criminal do Império, de 1830, previa como punição ao crime de estupro prisão de 3 a 12 anos. Mas havia
uma condição para a aplicação da pena máxima: a mulher deveria ser "honesta". Não sendo, a pena caía pela metade.
Também havia a possibilidade de o agressor casar-se com a vítima, o que o livraria da pena. Em 1890, no período
republicano, o estupro era tido como um crime que atingia a "segurança da honra, honestidade das famílias e do ultraje
público." Em 1940, foi enquadrado entre "os crimes contra os costumes". Ou seja, contra os valores da sociedade, não
contra a mulher.
Somente em 2009 é que o estupro passou a ser um crime contra a dignidade sexual. Faz apenas sete anos. É bem
possível que os historiadores do futuro, ao analisarem como as vítimas de estupro eram tratadas no ano de 2016, concluam
ter havido pouco avanço no decorrer dos últimos séculos. Não estarão de todo errados. A sociedade continua julgando a
mulher como nos primórdios, pela vida sexual pregressa, pelos locais que ela frequenta, pelas roupas que ela usa, pela
forma como reage diante da violação. No Brasil, muitos juízes ainda usam, de forma deturpada, o artigo 59 do Código Penal,
onde o comportamento da vítima pode ser analisado, para julgar com mais rigor a conduta da vítima de estupro do que a do
acusado.
Em 2012, o Superior Tribunal de Justiça absolveu um homem acusado de estuprar três crianças de 12 anos porque elas
"já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data". No Reino Unido, o histórico sexual da mulher não é
admissível no tribunal, mas em outros países europeus a experiência sexual da vítima pode ser usada como evidência num
caso de estupro. Diante disso, é compreensível que tantas mulheres se calem após o crime. No passado, o silêncio era a
solução para evitar a exposição pública da perda da castidade. No presente, é uma forma de fugir do descaso e do
constrangimento nas delegacias. E de enfrentar a dura possibilidade de nem a Justiça acreditar nelas.
CLÁUDIA COLLUCCI é Jornalista e escreve para esta publicação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Junho de 2016.
Corpos expostos (MARCELO COELHO)
APARECEU no Facebook, compartilhado por alguém que teve a prudência de não acrescentar comentários, um
videozinho bem representativo da cultura sexual contemporânea. Deve haver muitos parecidos, mas você pode encontrar o
de que estou falando na página "São Gonçalo caiu no Face". O título do filmete é "Eita, eita, eita, a favela tá liberada rs".
Nada de diferente, imagino, daquilo que acontece nos bailes funk –onde, como se sabe, meninas têm o hábito de irem
"preparadas" (isto é, sem calcinha) para a noite frenética. Mas a cena a que me refiro acontece à luz do dia, numa rua
qualquer de bairro popular. Umas seis ou sete jovens, nada anoréxicas, dançam de shortinho ou minissaia na frente de
alguns rapazes que não esboçam reação. Elas estão quase de quatro, e dizer que rebolam seria um vago eufemismo.
Sacodem-se em estado de verdadeira fúria uterina. Com os pés bem afastados, abrem e fecham os joelhos como se
quisessem sugar, pela pelve, o asfalto do chão. Enquanto a minissaia parece rumar para a cintura, uma menina (devem ter
uns 15 anos no máximo) esfrega de leve o dedo na parte descoberta. Fiquei chocado, e – como todo mundo que se choca
com essas coisas – apresso-me em dizer que não sou moralista. Não sou moralista, mas... Aquilo me pareceu uma
brutalidade feita com o próprio corpo. Elas mesmas se reduziam, a meu ver, a simples bundas e vaginas. Não havia rosto,
não havia passos, não havia variação, não havia metáfora naquela dança: contava apenas a batida do sexo.
Não dá sequer para dizer que havia sensualidade, algo que pressupõe a insinuação e o convite. Elas simplesmente
copulavam sem parceiro, e com um mínimo de roupa. Não ignoro que, cem anos atrás, havia quem considerasse o tango ou
o maxixe absolutas indecências. Difícil imaginar qual minha reação se vivesse naquela época. Tudo depende, claro, de
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inúmeras coisas: a idade que eu teria, o lugar de onde viesse... Uma diferença, contudo, é objetiva. Nas danças "obscenas"
de antigamente, quem participava era o casal: havia consentimento entre homem e mulher, e o que se encenava, por mais
sexual que fosse, trazia a forma da oferta e da recusa, da atração e da distância.
Aqui, o que se faz é uma exposição carnal, em que meninas competem pela atenção do macho. Talvez o leitor esteja
pensando aquilo que eu mesmo pensei assistindo ao vídeo: essas jovens não estariam provocando o próprio assédio, a
própria violência sexual? Mas quando surgem raciocínios desse tipo é que vejo o quanto a "cultura do estupro" está
arraigada, até em mim mesmo. Obviamente essas meninas estão "provocando". Do mesmo modo que alguém, num carro
de luxo, pode estar "provocando" seu próprio assalto ou seu sequestro. A provocação não absolve o crime.
A questão é mais sutil, entretanto. Como mostrou o interessante texto de Claudia Collucci (texto anterior a este),
na Folha desta segunda (6), a legislação sobre o estupro mudou muito ao longo do tempo –e o entendimento do crime
também. A ideia de que a moça violentada "provocou" o homem corresponde, na verdade, a uma visão em que a lei não se
preocupava unicamente em proteger a mulher. Se uma virgem é estuprada, o prejudicado com isso será o pai, o noivo, o
marido... Quanto à outra, a de "maus costumes", o sistema legislativo e jurídico tem menos a reprimir.
As meninas do funk, de modo chocante para mim, pertencem a outro universo. A beleza e a juventude do corpo são
entendidas, imagino, quase como armas –como instrumentos de poder. É disso que elas dispõem para obter a proteção, o
amor, a fama, o dinheiro de um traficante ou de alguém respeitável no lugar. Não são "inocentes", nesse sentido: fazem o
melhor uso possível de seu "capital" corporal. O estupro, nesse caso, é não apenas uma violência física e moral: é uma
espécie de assalto, de usurpação, de um bem que a jovem tem o direito de dispor como quiser.
Nesta interpretação, não haveria como associar diretamente a ideia de "mulher objeto" com a "cultura do estupro". A
mulher contemporânea tem todo o direito de se valer da beleza física, de se mostrar como "objeto" se assim o desejar.
Exatamente para se proteger esse direito, esse uso, é que o estupro merece ser punido: estão tirando à força, da mulher,
seu poder de seduzir.
MARCELO COELHO é articulista da Folha de São Paulo desde 1984. Fez mestrado em Sociologia pela USP e publicou, entre
outros livros, 'Gosto se Discute' (Ática, 1994), 'Jantando com Melvin' ([ficção] Imago, 1998) e 'Montaigne' (série Folha Explica,
Publifolha, 2002). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Junho de 2016.
HISTÓRIA – IDADE MÉDIA - A batalha por Winterfell, de Game of
Thrones, aconteceu de verdade (HELÔ D’ANGELO)
Conheça a batalha de Bosworth Field, inspiração para a luta épica do penúltimo episódio dessa temporada.
Cuidado: contém spoilers
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Agora ferrou, João das Neves.
GEORGE R.R. Martin, autor dos livros que inspiraram Game of Thrones, já disse que não importa o quanto ele invente
as histórias da saga: no mundo real, acontecem coisas iguais ou ainda piores. É o caso da Guerra das Duas Rosas, que
rolou na Inglaterra entre 1455 e 1485, e que tem uma semelhança impressionante com as tramas da série. São coroas
roubadas, casamentos secretos, massacres de famílias, traição entre irmãos e por aí vai.
Até aqui, a gente maneirou nos spoilers, mas se você ainda não assistiu a última temporada da série, é melhor
parar de ler agora - spoilers are coming. Você foi avisado.
No episódio Battle of the Bastards (Batalha dos Bastardos), Jon Snow - filho de Ned Stark - e Ramsay Bolton - filho de
Roose Bolton - lutam por Winterfell. Foi a disputa mais épica da série, maior que a luta entre dragões e navios de guerra
que rolou no início do mesmo episódio (foi mal, Daenerys). Ocupando metade do capítulo, a sequência foi de tirar o fôlego:
Jon Snow escapou da morte inúmeras vezes, soldados saíram de uma pilha de cadáveres, um gigante esmagou vários
inimigos e (finalmente!) Ramsay Bolton morreu.
Na vida real, essa disputa por Winterfell tem muito a ver com a Batalha de Bosworth Field - a última da Guerra das
Duas Rosas, um longo combate entre as casas de Lancaster e York na Inglaterra medieval. Em Bosworth, Ricardo III (um
York que se autoproclamara rei da Inglaterra, o que deixou insatisfeitos vários lordes de sua casa) lutou contra Henrique
Tudor (um Lancaster que havia sido exilado para a França). Embora muita gente diga que Henrique Tudor seja, na verdade,
a inspiração para Daenerys Targaryen, as semelhanças entre Bosworth e a luta por Winterfell são impressionantes. Olha só:
1. Tamanho não é documento - O exército de Jon Snow tinha pouco mais de 2 mil homens, conseguidos a muito custo
juntando o Povo Livre com uns poucos soldados de casas do norte. Já Ramsay contava com 6 mil homens. Em Bosworth
Field, a situação era parecida: enquanto Ricardo III comandava 15 mil homens, Henrique Tudor só tinha um terço disso - 5
mil soldados. Ricardo também tinha o maior arsenal de canhões de todas as disputas medievais inglesas conhecidas até
agora (140 armas), assim como os Bolton, que tinham um grupo imenso de arqueiros. De qualquer forma, Henrique Tudor
conseguiu vencer a batalha - e Jon Snow também, graças aos deuses (talvez o do fogo).
2. Trabalho em equipe - Apesar de desprezível e odioso, Ramsay Bolton era um baita estrategista. Ele separou seu
enorme exército em quatro grupos: os soldados da cavalaria, os arqueiros, os que cercaram os inimigos e os que ficaram
escondidos sob a montanha de cadáveres. Ricardo III fez algo parecido em Bosworth Field: criou três grupos, um
comandado por ele mesmo, os outros dois chefiados pelo Duque de Norfolk e pelo Conde de Northumberland. Já Henrique,
que não entrou pessoalmente na batalha, teve suas tropas comandadas pelo Conde de Oxford (que poderia ser o Sir Davos
Seaworth). O resto da luta tem várias semelhanças: a cavalaria de Ricardo atacou a de Henrique de frente, mas apanhou
um bocado, e Ricardo decidiu atravessar o campo e matar Henrique (como acontece na série entre Snow e Ramsay). Além
disso, ao ver Ricardo separado de seu exército, 200 soldados Tudor cercaram o cara e conseguiram matá-lo, mais ou menos
como os soldados dos Bolton cercam os de Snow.
3. Comandante precavido, comandante corajoso - Jon Snow mergulhou na disputa (literalmente), mas Ramsay ficou
de fora, seguro, comandando os arqueiros. Na história real, também houve um comandante corajoso e um precavido:
Henrique Tudor não sabia lutar, então ficou quietinho atrás de suas tropas, enquanto outra pessoa comandava. Já Ricardo,
como Snow, entrou com tudo no conflito - reza a lenda que ele conseguiu derrotar um tal de Sir John Cheyney, o soldado
mais alto da batalha, e que ofereceram um cavalo para fugir da disputa, mas ele recusou, dizendo "neste dia, vencerei ou
morrerei como um rei" (bem Game of Thronesco, né?).
4. Elemento surpresa - Em Game of Thrones, quando tudo parecia estar perdido, os soldados da Casa Arryn chegam,
chefiados por Lorde Petyr "Mindinho" Baelish (tudo devido a Sansa). Na vida real, algo assim aconteceu também: o padrasto
de Henrique, Thomas Lord Stanley, trouxe 6 mil homens para integrar os 5 mil Tudors que estavam na batalha - bem no
momento em que Ricardo tentava atravessar a luta para matar Henrique.
5. Uma morte cruel - Depois de cometer as maiores atrocidades, Ramsay Bolton morreu de um jeito terrível - para a
alegria de muitos fãs. Depois de ser espancado por Jon Snow, ele foi amarrado em uma cadeira e jogado para os próprios
cães. No final da disputa de Bosworth, Ricardo levou uma machadada na cabeça - mas não morreu, graças ao elmo que
estava usando. Então, deram facadas em seu rosto e, por último, uma espada foi enfiada na base de seu crânio. O corpo
dele foi despido, amarrado como um javali (sua insígnia), colocado sobre um cavalo e enviado para Leicester, onde seu
corpo ficou exposto por dias para visitação pública.
HELÔ D’ANGELO é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista SUPEINTERESSANTE, Junho de 2016.
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Por que a queda no número de fumantes não traz só boas notícias
(JAIRO BOUER)
Os percentuais diminuíram, mas milhões ainda estão expostos ao fumo. E o vício começa cedo
Levantamentos recentes sobre tabagismo trazem boas notícias. Há uma clara tendência de queda do número de
fumantes. No Brasil, a última pesquisa Vigitel, feita por telefone com 54 mil pessoas com mais de 18 anos, sugere que, em
dez anos, o número de brasileiros fumantes caiu 34%. Mas não podemos esquecer que a realidade ainda é preocupante.
Como 10% da população adulta fuma, mais de 20 milhões de brasileiros são expostos diariamente aos efeitos nocivos do
cigarro.
A situação é mais preocupante se considerarmos o uso de tabaco entre adolescentes. Um levantamento que ouviu 75
mil adolescentes de 1.251 escolas públicas e privadas, feito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pelo Ministério da
Saúde, sugere que 18,5% dos adolescentes brasileiros, entre 12 e 17 anos, já experimentaram cigarro. Dos jovens, 6% são
fumantes. As maiores taxas estão na Região Sul.
Em relação aos mais novos, também se verifica uma tendência de queda. Um estudo anterior de 2009, a Pesquisa
Nacional de Saúde Escolar, feito com adolescentes de 13 a 15 anos, mostrava que quase um quarto deles já havia
experimentado cigarro em pelo menos uma ocasião. O problema é que quanto mais cedo acontece o primeiro contato,
maiores os riscos de o jovem se tornar um dependente de nicotina e passar a fumar com frequência. Sabe-se que a
experiência com poucos cigarros nessa fase da vida já pode ser suficiente para converter um não fumante em um fumante.
No início do mês, outro estudo inédito, publicado na revista Nature, mostrou que a cada 15 cigarros fumados acontece
uma mutação no DNA (material genético de nossas células). É o acúmulo dessas mutações que pode levar, por exemplo,
depois de décadas de consumo, ao desencadeamento de um câncer.
Os pesquisadores do Wellcome Trust Sanger Institute, em Cambridge, no Reino Unido, lideraram um consórcio
internacional que identificou cerca de 23 mil mutações causadas pelos produtos químicos presentes no tabaco.
Bom lembrar que mais de 90% dos casos de câncer de pulmão estão associados ao tabagismo. Um fumante tem risco
20 vezes maior de desenvolver um câncer de pulmão. E a boa notícia é que cerca de 15 anos após parar de fumar as
chances desse tipo de câncer passam a ser praticamente as mesmas de um não fumante, possivelmente, porque eventuais
células que carregavam as mutações deletérias são substituídas por novas células livres de defeitos. Que tal nem começar a
fumar ou largar o mais rápido que puder?
JAIRO BOUER é médico hebiatra e escreve sobre comportamento dos jovens e adolescente, também sobre os vícios e riscos que
perseguem os indivíduos nestas fases da vida. Revista ÉPOCA, Junho de 2016.
PERU E BOLÍVIA DESAFIAM AS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS Crianças, ao trabalho! (ROBIN CAVAGNOUD)
Em dezembro de 2013, enfrentamentos opuseram forças policiais bolivianas e crianças que protestavam pelo
direito de trabalhar. Evo Morales, celebrado como um dos dirigentes mais progressistas do mundo, disse que
“estava ali para escutá-las” e decidiu baixar a idade legal de trabalho de 14 para 10 anos.
DANIEL, de 16 anos, vive em El Alto, nas alturas de La Paz, Bolívia. Há dez anos, sua mãe emigrou para Buenos Aires
para escapar da instabilidade do mercado de trabalho boliviano. Abandonado pelo pai antes do nascimento, Daniel vive com
os avós e tios maternos. Desde os 11 anos trabalha dois dias por semana com sua tia, que vende produtos de cuidados
diários na Feira 16 de Julho, maior mercado de atacado da América do Sul. Ele desembala e organiza as mercadorias,
ordena os produtos nas prateleiras e negocia com os clientes.
“Às quintas, muito cedo, a partir das 6 horas da manhã, começo tirando os produtos das caixas. Depois, vou à escola e
volto no início da tarde para auxiliar minha tia. Fico até o fim da jornada para ajudar a organizar as coisas. Aos domingos é
mais simples, porque trabalho com ela o dia todo, sem interrupções”, explica. Ele afirma que esse trabalho regular não
atrapalha seus estudos nem os deveres escolares. Ele ganha cerca de 20 bolivianos (em torno de R$ 10) por semana para
suas despesas pessoais e considera essa atividade um apoio “normal” à sua tia, que aceitou cuidar dele e de sua educação
com a partida de sua mãe. Os US$ 50 que a mãe envia a cada dois meses não são suficientes para cobrir as despesas com
alimentação e material escolar de seu filho. Na Bolívia, não existe nenhum dispositivo de auxílio para crianças abandonadas
ou cujos pais emigraram.
Elisabete, de 16 anos, vive nas colinas do bairro 12 de Novembro de Pamplona Alta, uma periferia de Lima, capital
peruana.1 Seu pai trabalha na construção civil e sua mãe cozinha em uma cantina popular. Aqui, apesar dos desempenhos
macroeconômicos do país e de um crescimento médio de 6,6% ao longo dos dez últimos anos, a pobreza não retrocedeu.
Para essa família com três filhos, originária da região andina de Puquio, a chegada à periferia de Lima foi acompanhada de
uma melhora no nível de vida: tiveram mais acesso a serviços básicos (apesar de caros), assim como a um sistema escolar
de melhor qualidade.
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Cuidadores ou vendedores de rua
Contudo, assim como os 24,9% dos trabalhadores peruanos em zonas urbanas sem trabalho formal,2 os pais de
Elisabete não ganham o suficiente para viver dignamente. Nesse tipo de situação, o filho mais velho, seja um garoto ou uma
garota, é responsável por assegurar grande parte das despesas escolares – transporte e materiais – de seus irmãos, em
detrimento de sua própria escolarização. Assim, Elisabete trabalha todos os dias como cuidadora de uma pessoa de 94 anos,
no bairro de alto padrão Las Casuarinas, perto de sua casa. Há dois anos, ela prepara refeições, limpa, se ocupa da higiene
e lava roupa, nove horas por dia, de segunda a sábado, por um salário de 120 soles (cerca de R$ 140). Ela compartilha sua
renda com a mãe, para ajudar a irmã mais nova a seguir com os estudos sem precisar trabalhar.
Há cerca de um ano, Elisabete deixou a escola pública para estudar em uma espécie de centro educativo privado que
custa 40 soles (R$ 44) por mês. As aulas se concentram em apenas uma jornada, aos domingos. “Foi necessário que eu
começasse a trabalhar para contribuir com a renda familiar. Os problemas econômicos se acentuaram e precisamos garantir
o dinheiro agora que meu pai não tem mais um contrato de trabalho estável”, conta.
Peru e Bolívia são os dois países da América do Sul que apresentam os maiores índices de trabalho infantil, entre
crianças de 6 a 17 anos: 27,9% no primeiro e 29,8% no segundo. E, respectivamente, 64,9% e 47% na zona rural.3 Esses
números abrangem situações tão diversas quanto a de uma neta que ajuda a avó a vender frutas e legumes à tarde para
ganhar uma mesada como a de um adolescente que lava para-brisas quinze horas por dia e se prostitui à noite para cobrir
os gastos básicos de seus irmãos e irmãs. O trabalho infantil e adolescente – que não implica necessariamente uma
remuneração pecuniária – se concentra na agricultura, criação, artesanato, comércio e trabalhos domésticos.
A consequência é que muitos deixam de se matricular na escola (6,4% em média entre 2005 e 2014)4 ou abandonam
os estudos depois de um ano (5,7% em 2014),5 e a renda familiar passa a se apoiar, em grande parte, em suas atividades.
“Moro com minha mãe e três irmãos e irmãs mais novos. Vendo doces pelas ruas de Lima todos os dias, de manhã até de
noite. Tudo o que ganho dou a ela, e isso ajuda a comprar comida para nós cinco. Meu pai me abandonou quando nasci, e
minha mãe não pode contar com o pai dos meus outros irmãos”, explica Cristián, de 13 anos.
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Contudo, de forma geral, o trabalho infantil não impede a frequência escolar. Tanto na Bolívia como no Peru, a escola
é obrigatória dos 6 aos 16 anos e concentrada em dois períodos: de manhã, das 8h às 13h, ou à tarde, das 13h às 18h. O
trabalho também é legitimado como o fator que “torna possível” a escolarização, percebida como a via de fato para sair da
situação de pobreza. Esse é o ponto de vista defendido por Raquel, de 15 anos, que cuida de bebês todas as manhãs, de
segunda a sábado, no bairro periférico de Pamplona Baja, em Lima. “Para mim, não é muito difícil trabalhar e estudar ao
mesmo tempo. Vou à escola à tarde e à noite janto antes de fazer meus deveres. Preparo minhas coisas e no dia seguinte
cozinho e cuido das crianças durante a manhã. Os estudos são importantes para mim se quiser uma vida melhor que a dos
meus pais, que nem sequer terminaram a escola. Eu quero ir mais adiante, ter um bom trabalho e ajudar meus pais quando
eles forem mais velhos.”
Infringindo as convenções internacionais – que proíbem o trabalho antes dos 14 anos –, o Parlamento boliviano
aprovou em julho de 2014 um novo Estatuto da Criança e do Adolescente, que autoriza o trabalho a partir dos 10 anos. O
limite oficial de 14 anos foi mantido, mas o emprego de crianças mais novas tornou-se possível em casos apresentados
como “exceção”, embora na verdade sejam majoritários. A lei autoriza, a partir de 10 anos, o trabalho “independente”
(notadamente venda ambulante e engraxate em via pública) e, a partir dos 12, o trabalho “dependente” (por exemplo,
como empregado de um comércio). A família e o órgão defensor das crianças (Defensoría de la Niñez y Adolescencia)
precisam autorizar, e a atividade econômica não pode prejudicar a escolarização nem o direito à educação. Este último
consiste na garantia de um ensino de “qualidade, intracultural, intercultural e plurilíngue, que permita o desenvolvimento
integral diferenciado e prepare para o exercício dos direitos e da cidadania, além de qualificar para o trabalho” (artigo 115).
A decisão reflete os debates em torno da questão nos países andinos. De um lado, os sindicatos das crianças e
adolescentes trabalhadores, surgidos do movimento operário de inspiração cristã na América Latina durante os anos 1970,
defendem o direito de eles se organizarem para garantir a proteção de seus direitos, participação e representação na
sociedade, segundo uma visão de infância que não exclui o trabalho nesse período da vida. Tentam exercer um papel
influente junto a instâncias públicas em diversos países (Peru, Bolívia, Colômbia, Paraguai etc.) com o objetivo de obter
formações profissionais ou melhoria nas condições de trabalho. Associando a crítica de sua opressão econômica ao
reconhecimento de seu direito ao trabalho, eles militam pelo exercício de uma atividade econômica em condições dignas,
complementares à escolarização e à aquisição de competências que permitam escapar à exploração. Em resumo, um tipo de
formação em alternância.
Derivada da Teologia da Libertação e da Educação Popular,6 essa corrente de pensamento é encarnada no Peru pelo
Movimento de Adolescentes e Crianças Trabalhadores Filhos de Operários Cristãos (Manthoc, na sigla em espanhol), o
primeiro sindicato desse tipo no mundo, fundado em 1976, e, na Bolívia, pela União das Crianças e dos Adolescentes
Trabalhadores da Bolívia (Unatsbo). Com dezenas de milhares de membros, essas organizações assumem a forma de
movimentos sociais e reivindicam o direito ao trabalho em nome de sua “implicação política” na vida da cidade.7 O trabalho
se justificaria, desse ponto de vista, pela especificidade “sociocultural” dos países andinos.
Causa e consequência da pobreza
Adotada em 1989, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança reflete outra visão das coisas. Seu artigo 32
especifica: “Os Estados-partes reconhecem o direito da criança de estar protegida contra a exploração econômica e contra o
desempenho de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que seja nocivo para sua saúde
ou para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social”. A proibição do trabalho entre crianças menores de
14 anos foi regulamentada na maior parte das legislações nacionais depois da Convenção 138 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT).
As agências das Nações Unidas, em sua maioria organizações governamentais, e as instâncias públicas nacionais
(ministérios do Trabalho, Desenvolvimento, Educação) sublinham a necessidade de aplicar as prescrições da Convenção,
bem como ressaltam os efeitos negativos do trabalho infantil, que perpetua o círculo vicioso da pobreza e gera entraves à
escolarização. “O trabalho infantil é um aspecto da pobreza”, enfatiza a OIT. “Todos os dias, 30 mil crianças morrem por
extrema pobreza. [...] O trabalho infantil é, ao mesmo tempo, resultado da pobreza e um fenômeno que a perpetua. Em
suas piores formas, desumaniza a criança, a reduz a um bem econômico e alimenta o crescimento demográfico em países
em que o trabalho infantil é considerado uma forma de enfrentar a pobreza [...]. As crianças que são obrigadas a trabalhar
não podem exercer os direitos de todas as crianças: ter acesso à educação e estarem protegidas da violência, do abuso e da
exploração”.8
Para o presidente boliviano, contudo, pouco importa. Referindo-se à própria história, Evo Morales ressaltou os aspectos
positivos do trabalho dos mais jovens como um vetor de formação e solidariedade no seio das famílias. Segundo ele, o
trabalho permite às crianças desenvolverem uma “consciência social” e é um convite a encontrarem uma saída no trabalho e
por iniciativa própria. Em resumo, impor uma lógica individualista de emancipação. Poder-se-ia esperar mais de um governo
que reivindica uma missão “revolucionária” e encoraja os jovens a integrarem formações políticas que combatem a pobreza
na raiz, em vez de fazê-los pensar que podem combatê-la renunciando à sua infância.
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1 Ler Elizabeth Rush, “Spéculation immobilière pour les pauvres à Lima” [Especulação imobiliária para os pobres em
Lima], Le Monde Diplomatique, ago. 2013.
2 “Informe Anual del Empleo en el Perú” [Relatório Anual do Emprego no Peru], Ministério do Trabalho e da Promoção do
Emprego (MTPE), Lima, 2012.
3 “Encuesta Nacional de Trabajo Infantil en Bolivia” [Pesquisa Nacional de Trabalho Infantil na Bolívia], Instituto Nacional
de Estatísticas (INE), La Paz, 2008; e “Encuesta Nacional de Hogares” [Pesquisa Nacional de Domicílios], Instituto
Nacional de Estatísticas e Informática (Inei), Lima, 2008.
4 “Encuesta Nacional de Hogares”, op. cit. Taxa bruta de não matriculados na escola entre 12 e 16 anos.
5 Sistema de Informação e Apoio à Gestão da Instituição Educativa (Siagie), Ministério da Educação, Lima, 2014.
6 Alejandro Cussiánovich, Aprender la condición humana. Ensayo sobre pedagogía de la ternura [Aprender a condição
humana. Ensaio sobre pedagogia da ternura], Ifejant, Lima, 2010.
7 Domic Jorge, “Niños trabajadores: paradigmas de socialización” [Crianças trabalhadoras: paradigmas de socialização],
Revista Ciencia y Cultura, n.8, La Paz, 2000.
8 “La fin du travail des enfants: un objectif à notre portée” [O fim do trabalho infantil: objetivo de nossa missão],
Organização Internacional do Trabalho (OIT), Genebra, 2006.
ROBIN CAVAGNOUD é sociodemógrafo, docente pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade
Católica do Peru (PUCP) e autor de L’Enfance entre école et travail au Pérou. Enquête auprès d’adolescents travailleurs à Lima[A
infância entre a escola e o trabalho no Peru. Pesquisa junto a adolescentes trabalhadores em Lima], Karthala, Paris, 2012.
Ilustração: Reuters/David Mercado. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Junho de 2016.
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