Estudos em Televisão
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ESTUDOS EM TELEVISÃO Coordenação: Profa. Dra. Cristiane Finger ( [email protected]) Mesa 1- TELEDRAMATURGIA E OUTRAS NARRATIVAS Rupturas de Linguagem na Teledramaturgia Brasileira Contemporânea Adriana Pierre COCA1 Resumo: O artigo discute a reconfiguração estético-narrativa na teledramaturgia brasileira na atualidade. Tem como corpus a microssérie O Canto da Sereia (2013), a minissérie Amores Roubados (2014) e a telenovela O Rebu (2014), produções da TV Globo. A hipótese que se levanta é que esses trabalhos, de alguma maneira, expõem rupturas no modo de contar histórias de ficção seriada. O suporte teórico basilar são as reflexões sobre o realismo de Xavier (2005) e a metodologia adotada é a análise de cenas. O texto se organiza em três momentos: contexto, premissas teóricas e análises de cenas e considerações finais. Espera-se compreender como a articulação de elementos estético-narrativos se converte em rupturas à linguagem canônica das narrativas ficcionais televisuais presentes na TV Globo. Palavras-chave: Ficção Seriada; Realismo; Teledramaturgia brasileira; Rupturas estéticas e narrativas; Rupturas de linguagem. Introdução: delineando o contexto O que vem sendo observado em relação à ficção seriada brasileira na TV aberta é que novas experiências vêm surgindo de forma recorrente no seio da emissora de televisão hegemônica na área, que é a TV Globo, o que surpreende, já que, historicamente, a emissora serve como um modelo de representação, inspirando inclusive a teledramaturgia das outras emissoras produtoras. Embora saibamos que, de tempos em tempos, se faz necessária a criação de trabalhos que legitimem o lado artístico da teledramaturgia, com a exibição de algo “fora dos padrões”, o que vem chamando a atenção é a emergência de se fazer algo “novo” com maior frequência. Portanto, o questionamento que se impõe é: como foram articuladas as opções estéticas e/ou narrativas na produção/direção da microssérie O Canto da Sereia (2013), da 1 Bolsista CAPES. Doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Comunicação e Informação, na linha de pesquisa Cultura e Significação. Mestra em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Especialista em Técnicas e Teorias da Comunicação pela Fundação Cásper Líbero. Integrante dos Grupos de Pesquisa Gpesc – Semiótica e Culturas da Comunicação (UFRGS) e Processocom - Processos comunicacionais: epistemologia, midiatização, mediações e recepção (Unisinos). E-mail: [email protected] 1 minissérie Amores Roubados (2014) e da telenovela O Rebu (2014) 2, que de alguma maneira rompem com os padrões alicerçados pela própria TV Globo? Partimos do pressuposto de que esses trabalhos oferecem elementos significativos para se compreender as percepções de real na teledramaturgia contemporânea e que apontam inovações; e, também, porque essas produções têm em comum o roteiro escrito por George Moura, em colaboração com outros autores, a direção de fotografia de Walter Carvalho e a direção geral de José Luiz Villamarim. Acreditamos que a parceria desses profissionais, mais do que trazer um estilo bem demarcado, acentua momentos de rupturas à linguagem canônica que são bem-vindos para se pensar a reconfiguração na teledramaturgia atual. Resumidamente, quando falamos na linguagem clássica/convencional das narrativas ficcionais na televisão estamos nos referindo ao modelo praticado pela TV Globo que compreende, entre outros aspectos: o uso convencional dos planos de câmera (decupagem clássica), a serialização, as histórias padronizadas, geralmente com dois ou mais eixos dramáticos e com ganchos causais, muitas vezes previsíveis (MACHADO, 2009). O Canto da Sereia3 foi ao ar em janeiro de 2013, em 04 capítulos; Amores Roubados 4, em 10 capítulos, em janeiro de 2014; e em julho do mesmo ano estreou o remake de O Rebu5, anunciada como telenovela das onze da noite, mas com ares de minissérie, exibida em 36 capítulos, quatro vezes por semana, com duração de aproximadamente 30 minutos. As três narrativas se passam nos dias de hoje e contemplam temas policiais, primam por uma atmosfera de mistério e privilegiam elementos que buscam uma fidelidade à representação realista, tal como vemos na maioria das outras produções. O diferencial está na forma como esses trabalhos foram pensados, com desvios narrativos e experimentações em relação à estética que surpreendem o telespectador, com uma fotografia mais bem acabada em relação a outras produções dos mesmos formatos e 2 Todas essas produções estão disponíveis em DVD. Escrita por George Moura, Patrícia Andrade e Sérgio Goldenberg, com supervisão do texto de Glória Perez. A microssérie foi inspirada no romance O Canto da Sereia: um noir baiano de Nelson Motta, publicado em 2002. 4 Escrita por George Moura, Sérgio Goldenberg, Flávio Araújo e Teresa Frota, com supervisão de Maria Adelaide Amaral. A minissérie é inspirada no folhetim A Emparedada da Rua Nova publicado no Jornal Pequeno do Recife entre 1909 e 1912, depois publicado como livro. É do autor pernambucano Carneiro Vilela. 5 O Rebu não é uma adaptação literária como os dois trabalhos anteriores do referido trio, mas trata-se de um remake de telenovela que foi ao ar entre 1974 e 1975, escrita na sua primeira versão por Braúlio Pedroso e dirigida por Walter Avancini. Originalmente, a obra foi exibida em 112 capítulos. 3 2 elementos que colocam o protagonismo nas mãos da direção e não direcionam os méritos das histórias apenas ao autor, como é comum na televisão. Premissas teóricas: os realismos possíveis Esses exemplos trazem à tona a discussão sobre a transparência e a opacidade amplamente debatida na obra de Ismail Xavier, O discurso cinematográfico – a opacidade e a transparência, de 19776. O autor desvela as características de dois tipos de cinema: o cinema de transparência, que coloca o espectador como alguém ausente do aparato, aquele que se deixa envolver quando é seduzido pela narrativa por meio da identificação e, portanto, tem a subjetividade alienada. Situação que, sem muito esforço, pode-se perceber diante do cinema e da ficção televisual hegemônicos. Já o cinema da opacidade deixa o aparato visível, o espectador sabe que está diante de um filme. É como se no cinema da opacidade a “quarta parede” fosse derrubada. Acredita-se que os recursos explorados nos formatos analisados conduzem o telespectador pelo caminho do cinema da transparência, como refletido por Xavier (2005). No entanto, introduzem elementos que, intermediados pelo cinema, incomodam e desacomodam o telespectador habituado ao padrão estabelecido há décadas. Atentos aos aspectos que endossam a hipótese realista, os autores e diretores no audiovisual buscam a impressão de realidade e produzem o “efeito de janela” explicitado por Xavier (2005). No caso das narrativas analisadas, a tentativa foi assegurar veracidade ao retrato contemporâneo almejado, segundo Villamarim7. Em O Canto da Sereia, por exemplo, o diretor José Luiz Villamarim8 enfatiza que queria que o telespectador se sentisse no meio da multidão em um dia de carnaval em Salvador e, por isso, quis contar a história com elementos críveis de representação do real. Uma de suas escolhas foi usar a câmera na mão em várias cenas. A intriga central da microssérie se desenvolve a partir do assassinato da cantora de axé Sereia (interpretada pela atriz Ísis Valverde), que em apenas dois anos se tornou uma celebridade com muitos inimigos. Sereia é assassinada em cima do trio elétrico, em uma terça-feira de carnaval, na capital baiana. A outra opção do diretor para manter a atmosfera documental, que Villamarim estabeleceu como conceito-guia para criar O Canto da Sereia, foi filmar planos-sequência A edição do livro O discurso cinematográfico – a opacidade e a transparência, de Ismail Xavier, usada nesta investigação é a terceira, de 2005. 7 Informações disponíveis na entrevista do diretor José Luiz Villamarim no Extras/Entrevistas do DVD O Canto da Sereia, aos 9 minutos 49 segundos. 8 Idem a 7. 6 3 da multidão na Praça Castro Alves, um dos principais palcos do carnaval de Salvador, no ano anterior, ou seja, são “reais” as cenas, que na edição foram mescladas, por meio de efeitos visuais, às imagens produzidas meses depois com cerca de 800 figurantes. Outra decisão foi rodar setenta por cento das cenas fora do estúdio, fazendo uso de muitas locações, algo pouco comum na teledramaturgia, já que as gravações em locações externas encarecem os custos da produção ficcional. Elementos que reforçam a busca pela “Reprodução fiel das aparências imediatas do mundo físico” (XAVIER, 2005, p. 42). O diretor de fotografia Walter Carvalho esclarece que essa opção da direção foi decisiva para que aceitasse o convite para fazer parte da equipe. Carvalho considera que é muito mais interessante trabalhar em locação, mesmo com a dificuldade maior para harmonizar as luzes naturais oferecidas pelo ambiente, no entanto, “o real está ali” 9. O “efeito de realidade” nos passa a ideia de que aquilo é natural. E o princípio naturalista é garantido, sobretudo, pela decupagem clássica, pela construção de cenários construídos segundo o princípio naturalista – como na microssérie O Canto da Sereia daí a importância de privilegiar as locações, – e também pela manutenção de gêneros narrativos como o melodrama, aventuras ou histórias fantásticas. “Tudo aponta para a invisibilidade dos meios de produção dessa realidade” (XAVIER, 2005, p. 41) e constitui a ilusão que a plateia está em contato direto com o mundo representado, tornando o dispositivo transparente. Entendemos que O Canto da Sereia não trouxe rupturas de linguagem radicais, mas já sinalizava um frescor, algo diferente do que encontrarmos diante da TV; despontavam os primeiros passos de renovações vindouras que se concretizaram com mais intensidade nas parcerias seguintes, que serão discutidas na sequência. Um ano depois da boa repercussão que teve a exibição de O Canto da Sereia, entrou no ar a minissérie Amores Roubados, ambientada em uma vinícola do sertão nordestino, que serviu de cenário para três meses de gravações, período que o diretor chama de imersão e que considera importante para o envolvimento da equipe, outro dos diferenciais dessas produções, que tiveram a maior parte das gravações longe dos estúdios da TV Globo, no Projac (Projeto Jacarepaguá), no Rio de Janeiro. Entre as inquietações de cunho estético, os longos planos gerais e, mais uma vez, a paleta de cores em tons neutros, terrosos, que nos remetem aos filmes de faroeste. Parece evidente a inspiração cinematográfica, algumas cenas de Amores Roubados lembram, entre outros filmes, as paisagens do longa-metragem brasileiro Árido Movie (2005), do cineasta Lírio Ferreira. 9 Informações disponíveis na entrevista do diretor de fotografia Walter Carvalho no Extras/Entrevistas do DVD O Canto da Sereia, aos 8 minutos 59 segundos. 4 Em contrapartida, na minissérie Amores Roubados, outras cenas ajudam a desconstruir o clichê de um sertão, onde só existe seca, ao representar um sertão nordestino desconhecido do grande público da televisão, revelando uma região com água em abundância, às margens do Rio São Francisco e vinhedos verdejantes. O enredo de Amores Roubados conta o romance do sommelier Leandro Dantas (interpretado pelo ator Cauã Reymond) e a filha de um fazendeiro poderoso da região, uma história permeada por traição, com intensas cenas de sexo e que começa ser contada pelo fim. Aliás, as três tramas são em flashbacks, apresentam narrativas não lineares também chamadas de narrativas horizontais – – que se tornam complexas à medida que as histórias se desenrolam, o que exige que o telespectador acompanhe todos os capítulos para que se tenha compreensão do todo. Amores Roubados começa com uma eletrizante cena de perseguição que impõe um ritmo que é rompido logo nos primeiros minutos do capítulo de estreia, a apresentação das personagens em seguida é um flashback que se passa quatro meses antes e que se estende até o fim do capítulo, com planos longos e extensos silêncios, que podem ser inquietantes para o telespectador, pouco acostumado com pausas duradouras na ficção televisual. A duração da cena nos obriga a olhar, a prestar atenção na televisão, e só isso já elimina, mesmo que por alguns segundos, a zona de conforto de quem está diante da TV. O plano-sequência que fecha o capítulo de estreia tem 3 minutos e 35 segundos e acompanha o protagonista de costas, algo incomum para televisão. Outra opção da direção foi privilegiar cenas com um único plano, sem cortes, uma fuga a decupagem clássica. Esta produção também teve setenta por cento das cenas gravadas em locações, o que permitiu ao diretor de fotografia Walter Carvalho, novamente, garantir imagens que privilegiam a luz natural. Além disso, outras preferências de Carvalho são notadas em cena, como a inserção de planos plongée e contra-plongée, raros na televisão. No capítulo de apresentação uma cena simula um giro em 360 graus, realizado ao redor de uma mesa, onde acontece uma degustação de vinho e favorece, assim, a sensação de estarmos inebriados pela bebida ingerida pelas personagens. Cenas como essa descrita acima apontam para uma ruptura significativa, que é o abandono da decupagem clássica, que, como já dito nesta reflexão, é um dos elementos que auxiliam na manutenção da transparência. Nesse caso, suspeitamos que a ruptura a essa maneira de narrar, embora pareça reforçar a impressão de realidade ao introduzir o telespectador nas sensações da cena, é uma subversão aos moldes canônicos, uma vez que estamos tão habituados com determinado regime de visibilidade que, quando nos deparamos com uma cena que não 5 está decupada sob o modelo vigente, ocorre um estranhamento. Essa experiência estética que desconstrói a decupagem clássica tal como a internalizamos surge novamente no capítulo de abertura da telenovela O Rebu. Reiteramos que aceitamos a decupagem clássica porque a sucessão imediata de imagens “(...) caminha de encontro a uma convenção de representação dramática perfeitamente assimilada” (XAVIER, 2005, p. 28). Respeitando pontos de vista, regras de equilíbrio e compatibilidade de espaço semelhante ao real. A trama de O Rebu se passa em apenas um dia, as personagens se encontram em uma festa luxuosa, na qual um dos convidados aparece morto na piscina, sem que ninguém saiba dizer o que aconteceu. Dessa vez, a locação principal foi o Palácio Sans Souci, em Buenos Aires, na Argentina, a mesma locação do longa-metragem Tetro (2009), de Francis Ford Coppola. A mansão sediou a gravação da maioria das cenas e foi o lugar de imersão da equipe durante um mês. Os cenários foram reproduzidos na central Globo de produções, no Rio de Janeiro, em dimensões monumentais como a locação e eram fixos, não puderam ser desmontados até o fim das gravações, isso para facilitar a faceta de realizar os planos-sequência, já explorados nas produções anteriores e, como vimos, importantes como rupturas em relação à decupagem tradicional dos planos de câmera. A narrativa é contada em três tempos: o dia da festa, o dia seguinte e os flashbacks, uma estrutura audaciosa para meados da década de 1970, quando foi realizada a primeira versão de O Rebu, mas bem aceita em dias atuais, segundo o diretor da telenovela 10, já que o telespectador está familiarizado com tramas com temporalidades que se sobrepõem; como exemplos, as séries norte-americanas Lost e 24 horas. É no tempo presente que a história começa, com cenas entrecortadas em planos fechados, revelando apenas detalhes das personagens que dançam no ritmo da trilha sonora. Essas imagens são como anamorfoses que “(...) não são mais do que desdobramentos perversos do código perspectivo, mas o efeito por elas produzido resulta francamente irrealista” (MACHADO, 2011, p. 207). O termo anamorfose é emprestado por Machado do historiador da arte Jurgis Baltrusaitis. No percurso da história da arte, os movimentos da arte moderna, conhecida como a era dos ismos, já buscavam a desconstrução da imagem realista; a imagem eletrônica torna essa possibilidade totalmente possível, uma vez que é mais maleável e, portanto, suscetível a anamorfoses, segundo o autor (MACHADO, 2011). 10 Informações disponíveis no link: <http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/alcool-sexo-crimeconduzem-remake-de-rebu-que-globo-estreia-em-julho-12574339>. Acesso em: 26.07.2014 às 23h13. 6 Em seguida, entra um plano-sequência com 1 minuto e 45 segundos de duração, que começa e termina com a personagem Ângela Mahler (interpretada pela atriz Patrícia Pillar), uma das protagonistas, a empresária que promove a festa. A cena é cortada para o corpo de um homem boiando na piscina sob a noite chuvosa. As anamorfoses e o planosequência são indicativos de rupturas à teledramaturgia empregada na TV Globo e uma herança cinematográfica. Opções estéticas que podem ter sido uma tentativa da direção de colocar o telespectador dentro da festa, assim como buscou torná-lo um folião em O Canto da Sereia, mas é importante destacar que, além dessa possibilidade, a narrativa também buscou inseri-lo na festa virtual, através das inúmeras cenas de postagens dos convidados nas redes sociais. A introdução da internet na narrativa de O Rebu atualizou a trama, proporcionou um ritmo mais ágil à história e foi um componente estético e narrativo diferenciado na telenovela. São as redes sociais que ajudam a solucionar o crime. O diálogo com a internet, não como transmidiação e sim fazendo parte da história, foi decisivo em O Rebu; também na minissérie Amores Roubados, quando a mãe de Leandro, a personagem Carolina (interpretada pela atriz Cássia Kiss), chantageia a patroa e amante do seu filho depois de salvar em um pen drive a troca de e-mails entre o casal. E também na microssérie O Canto da Sereia com os selfies (autorretratos colocados nas redes sociais), que sinalizaram pistas sobre o possível assassino da protagonista. Considerações finais: tecendo rupturas Xavier (2005) lembra que há muitos realismos, assim como há mais de uma perspectiva que descontrói o modelo padrão de representação. Nessas propostas, entendemos que houve a busca pela impressão da realidade, com a reprodução do espaço semelhante ao real, mas a função da câmera, por exemplo, fez mais que apenas registrar as ações e, assim, em alguns momentos sustentou o efeito de continuidade e em outros, como as cenas expostas nesta análise, renovou. A opção de analisar as três produções, O Canto da Sereia, Amores Roubados e O Rebu, sem nos aprofundarmos em nenhuma delas e apenas pontuar algumas cenas foi porque queríamos percorrer à hipótese de que essas rupturas como as enxergamos na ficção seriada da TV Globo ocorreram como um processo gradual, embora de maneira recorrente. Essas rupturas soam como reconfigurações estéticas e também de percursos narrativos, porque introduzem momentos na teledramaturgia da TV aberta que proporcionam experiências que podem despertar o telespectador habitual, aquele 7 acostumado com o padrão globo de representação. Outra conclusão é que a faixa horária das onze da noite se mantém como um espaço de experimentação; ainda é nessa faixa da grade de programação da TV aberta que permitem testar os limites do televisual. Concluímos ainda que O Canto da Sereia percorreu o realismo tal qual colocado por Xavier (2005), como um espelho do real e buscando os efeitos da transparência; Amores Roubados já foi capaz de oferecer um tom mais agressivo quanto à dimensão estética e O Rebu, mesmo sendo apresentada como telenovela, trouxe todos os ingredientes de uma narrativa complexa, contada com rigor estético e com um percurso narrativo dignos de uma série, como observamos na TV norte-americana. O risco que se corre é dessas experiências serem assimiladas rapidamente pelo público e este entrar em uma sintonia que induz ao ciclo vicioso da banalidade. REFERÊNCIAS MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. 5. ed. São Paulo: Senac, 2009. _________________. Pré-cinemas & pós-cinemas. 6. ed. Campinas: Papirus, 2011. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: opacidade e transparência. 3. ed. Paz e Terra: São Paulo, 2005. 8 Mecanismos de representação da realidade e níveis de sentido em Suburbia Guilherme Fumeo Almeida Mestrando, Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected] Adriana Pierre Coca Doutoranda, Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected] Resumo O texto reflete sobre os mecanismos de representação da realidade na minissérie Suburbia (TV Globo, 2012). Para tanto, recorre-se aos níveis de sentido de Barthes (2009), para analisar questões relacionadas à fruição, mise-en-scène e intensidade, bem como problematizar a representação fantasiosa da realidade de Suburbia, a partir dos escrutínios de Pucci Jr. (2013) e Soares (2013) sobre a minissérie. É possível identficar uma busca por inserir as personagens na época e no local de ação da trama, a presença de um simbolismo que remete ao léxico do telespectador e a manifestação de momentos de fruição. Também nota-se a presença de traços fantasiosos, melodramáticos e exacerbados nesta representação alegórica e socialmente crítica do Rio de Janeiro suburbano de início dos anos 1990, com uma potência que vai além de um modelo naturalista de diálogo com o real. Palavras-chave: Mecanismos de Representação; Níveis de sentido; Alegoria; Suburbia. Considerações Iniciais O artigo analisa o tratamento que a televisão brasileira dá aos mecanismos de representação da realidade a partir da minissérie Suburbia (Rede Globo, 2012), exibida de 01 de novembro a 20 de dezembro de 2012, dirigida por Luiz Fernando Carvalho e roteirizada por ele e por Paulo Lins. Através da análise dos três níveis de sentido propostos por Barthes, relacionados com cenas de Suburbia, será possível observar de que forma a minissérie constrói sua mise-en-scène e lança mão de recursos de fruição e uso de símbolos. Ao contar a história da menina pobre que troca os fornos de carvão no interior de Minas Gerais pelo Rio de Janeiro, se inserindo no cotidiano do subúrbio carioca, Suburbia representa a realidade de uma forma que a ultrapssa, dando espaço para a exploração de uma noção fantasiosa do real, que desenvolveria características alegóricas. A ideia de alegoria se relacionará com as análises de Pucci Jr (2013) e Soares (2013), que enxergam na minissérie a presença de elementos artificiosos e uma intensidade exacerbada e constante. 9 Enquanto o primeiro acredita no predomínio, em determinados momentos, do fantasioso sobre o cotidiano, associado ao uso de elementos melodramáticos, o segundo autor afirma que, neste exemplo de representação intensa, medo e desejo se traduzem em som e cor, dentro de um excesso representacional planejado, que foge da perspectiva naturalista. O próprio Carvalho, a partir de entrevista concedida a um blog jornalístico (ZANIN, 2012), ajudará a problematizar a representação crítica da sociedade que, em Suburbia, se utiliza de elementos fabulosos. Dos níveis de sentido à representação fantasiosa No artigo O Terceiro Sentido, partindo de alguns fotogramas de filmes do cineasta russo Sergei Eisenstein, Roland Barthes (2009) propõe o que chama de uma Teoria dos Sentidos, dividida em três níveis. O primeiro nível é o Informativo, que no caso do audiovisual compreenderia todo o conhecimento que nos chega pelos elementos da miseen-scène – os objetos de cena, a cenografia, o figurino, as personagens e suas relações. É o nível da comunicação, aquele signo que se apresentaria a nossa frente, evidente. O segundo nível de sentido é chamado por Barthes de simbólico, sendo também intrínseco à diegese, apresentando-se no conjunto da mise-en-scène: é o nível da significação. A cena descrita pelo autor é a chuva de ouro que recebe o jovem czar no longa-metragem Ivan, o terrível (1944), e toda a simbologia que envolve o ouro que é associado à riqueza, ao poder, ao rito imperial, além das características da montagem de Eisenstein, que traz no bojo outras relações e deslocamentos. No primeiro nível vocês não citaram os exemplos de Barthes. O sentido simbólico, defende Barthes, se impõe duplamente: é construído de forma intencional e se encontra em um nível comum dos símbolos, procurando diretamente o destinatário da mensagem. Por ser dotado de uma evidência fechada, o simbólico também é chamado pelo autor de óbvio: “Obvius quer dizer: que vem à frente, e é precisamente o caso deste sentido, que vem ao meu encontro” (BARTHES, 2009, p; 49). O terceiro nível do sentido apontado por Barthes, o obtuso, permitiria enxergar além do que está na cena. O obtuso exigiria um questionamento, diferentemente do simbólico, que seria intencional e extraído de uma espécie de “léxico geral, comum, dos símbolos” (BARTHES, 2009, p. 49). Enquanto um se colocaria no nível espiritual, o outro, o obtuso, abrigaria algo mais, “como um suplemento que a minha intelecção não consegue absorver bem, ao mesmo tempo teimoso e fugidio, liso e esquivo” (BARTHES, 2009, p. 50). 10 No capítulo dedicado à análise, se problematizará a aplicação dos mecanismos de representação da realidade em Suburbia a partir de duas vertentes: os níveis de sentido de Barthes, e sua relação com a forma como a minissérie faz um retrato de uma determinada época através da composição da sua mise-en-scene, bem como de que maneira lida com elementos simbólicos e constrói um ritmo de fruição, em alguns momentos, e a maneira como o real, em Suburbia, pode ser representado de forma fantasiosa. A segunda vertente será explorada a partir das considerações de dois autores sobre a minissérie: Renato Pucci Jr (2013) e Luiz Eduardo Soares (2013). Ambos ajudarão a problematizar elementos de fantasia, melodrama e potência no objeto de análise, que resultariam na aproximação de uma noção alegórica. Pucci Jr. enxerga a presença de elementos fabulosos na representação da realidade na minissérie, com o fantástico prevalecendo sobre o cotidiano em algumas cenas, destacando, além disso, um traço artificioso e melodramático que seria característico de outras obras de Carvalho. Em Suburbia, à semelhança de Hoje é Dia de Maria (2005), a denúncia social seria seguida da pedagogia do sentimento melodramática, tributária de “histórias novecentistas em que a pureza se encontrava ameaçada de violação sexual” (PUCCI JR, 2013, p. 52). Soares, por sua vez, situa a ação da trama em uma Zona Norte carioca banhada em desejo, medo, cores e fantasia. Liberdade e fraternidade triunfariam na Madureira onde se passa boa parte da ação da minissérie, representativa de potência e enigma elevados dos subúrbios cariocas, que “entram em cena irradiando a vontade indomesticável da força vital de seres humanos individuais e incomparáveis, nas tramas complexas de suas relações” (SOARES, 2013, p. 42). Suburbia: dos três níveis à crítica social alegórica É possível começar a problematização dos níveis de sentido de Barthes (2009) na minissérie relacionando a composição dos elementos cênicos contidos no nível informativo com a maneira como o objeto de análise situa a drama em uma determinada época. As cenas da minissérie oferecem elementos da mise-en-scène que asseguram que aquela história foi contada em um período em que o país vivenciava as mudanças e os impactos provocados pelo governo Collor. Em níveis de evidência, pode-se pensar que Suburbia tenta se aproximar de um registro do cotidiano da época representada, o Rio de Janeiro de início dos anos 1990 - o figurino das personagens e os objetos de cenas, como os carros, são característicos do período. Assim, se abre espaço para a descrição de artefatos que apenas permeiam a trama, mas que indicam o pertencimento das personagens 11 a uma determinada classe social, como fica evidente em muitas cenas de Suburbia, que mostram habitantes da Zona Norte carioca que frequentam a praia do Piscinão de Ramos (figura 01), trabalham como empregados na zona sul da cidade do Rio de Janeiro (figura 02) e que nas horas livres fazem churrasco com a família e participam dos ensaios da escola de samba do bairro. Figura 01: Personagens no Piscinão de Ramos Figura 02: Conceição na casa da patroa A passagem de tempo da Conceição menina para a jovem Conceição, no primeiro capítulo, se dá com a personagem dançando em frente a uma televisão ligada e sintonizando o Cassino do Chacrinha. A dança, elemento fundamental na trama, está presente desde o começo, aliada a uma ideia informativa de inserção da personagem no tempo da história. A composição da cena, com som diegético e montagem dinâmica, de planos curtos, algo presente em toda a minissérie – além dos planos longos e a criação de um ritmo lento, em menor escala –, começa a materializar a protagonista da história. 12 Conceição, com sua sensualidade graciosa e brejeira, torna-se vítima e protagonista do contexto social em que se insere. Na minissérie, a maneira como a transformação das personagens se relaciona com figuras simbólicas, que por vezes dão um tom religioso a essas construções, remete ao que Barthes afirma sobre o teor significativo do segundo nível de sentido. A cena da coroação de Conceição como rainha de bateria de uma escola de samba, no último capítulo de Suburbia, é carregada de simbolismo. A protagonista ganha ares de santa, imaculada, embora não desprendida de sensualidade, trajando um figurino que lembra em vários aspectos o manto de Nossa Senhora Aparecida, como mostra a Figura 03. As cenas da coroação são intercaladas com uma mulher cantando “segura na mão de Deus e vai” e um pastor louvando, declamando trechos bíblicos e simulando um batismo em Cleiton, o exnamorado de Conceição, que havia se tornado um bandido (ver Figura 04). Nessa edição paralela, as duas cenas se complementam na multiplicidade de símbolos. Cleiton, assombrado pela morte do irmão, resolve vingá-lo e se torna traficante, o que resulta em uma experiência de quase morte da qual é salvo pela saída religiosa. Arrependido e batizado, o ex-traficante torna-se um crente, um homem que se acredita salvo pela fé. Figura 03: Coroação de Conceição 13 Figura 04: “Batismo” de Cleiton Enquanto o pastor diz “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, vê-se Conceição recebendo sua coroa de rainha da bateria da União Carioca. Quando ela finalmente fala, agradece a Deus, à Nossa Senhora Aparecida e à sua família, como mostra a Figura 05. Além da edição, das falas da Bíblia e do manto azul que veste a protagonista, não se pode esquecer que o nome da Padroeira do Brasil também é Conceição, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, uma santa negra assim como a personagem. A sequência é simbólica na trama: a dança, presente desde o primeiro capítulo, se ressignifica aqui, passando do frenesi do funk para a graça do samba. De musa do baile, onde requebrava no palco ao som de um funk melody cada vez mais popular então, em shows que atraíam multidões, Conceição se torna musa do samba, e se nos dois ambientes a montagem frenética exalta as imagens coloridas – geralmente cores quentes e suas variações, além de constantes jogos de luz - de uma câmera inquieta e autônoma, o da escola de samba é mais familiar, mais casto. É ali, e não no baile funk, que as duas Conceições, a mulher e a santa, enfim se encontram. 14 Figura 05: Conceição coroada rainha de bateria 11. Com seu dialogismo tênue, o obtuso é um sentido fortemente sensível, segundo Barthes, sendo dotado de uma emoção camuflada, nunca pegajosa. O nível obtuso, assim, iria além da língua e da linguagem, estando presente no interior da interlocução. Em Suburbia, pode-se relacionar o obtuso com um movimento sensorial de Suburbia, que, com câmera autônoma e imagens coloridas e líricas, oferece momentos de fruição que rompem os limites convencionais de sentido. Exemplo disso é a cena em que Conceição está em casa sozinha, no último capítulo, entra na cozinha, pega um copo de água e é chamada no portão por Cleiton. A lentidão com que essa sequência foi gravada desconcerta o espectador, pouco acostumado com longas pausas na ficção televisual. A duração da cena obriga o espectador a olhar, a prestar atenção na televisão, e só isso já elimina, mesmo que por alguns segundos, a zona de conforto de quem está diante da TV. Aqui, tem-se o exemplo de um momento em que a obtuosidade se manifesta, mas logo desaparece, subvertendo, mesmo que de forma fugaz, a própria prática de sentido. Também é possível detectar a presença de elementos que se concretizam como uma crítica social e da realidade na minissérie, mas através de uma representação pendente para o fantástico. Observa-se isso, por exemplo, já nas cenas de abertura, que mostram as condições de vida da família da protagonista, que mora e trabalha em meio aos fornos de carvão no interior de Minas Gerais. Depois de um trágico acidente, Conceição é As figuras 01 e 02 são fotos disponíveis na versão online do Caderno 2 – Subúrbios e Identidades, que pode ser acessado pelo link: < http://app.cadernosglobo.com.br/volume-02/suburbios-identidades.html> . Acesso em, 15.11.2015 às 20h32. As figuras 03 e 04 são fotogramas tirados da cena da coroação de Conceição e do “batismo” de Cleiton, com de 04 minutos e 21 segundos, exibida no último capítulo da minissérie Subúrbia, disponível no site Globo.TV através do link: <http://globotv.globo.com/redeglobo/suburbia/v/conceicao-e-coroada-rainha-de-bateria-de-escola-de-samba-e-cleiton-se-entrega-aosenhor/2305916/>. Acesso em: 25.02.2015 às 15h55. A figura 05 é uma foto disponível no site GShow, que pode ser acessada no site: <http://gshow.globo.com/programas/suburbia/Por-tras-dasCameras/fotos/2012/12/da-ressurreicao-ao-noivado-confira-os-ultimos-acontecimentos-de-suburbia-emfotos.html#F32830>. Acesso em: 25.02.2015 às 18h14. 11 15 incentivada pela mãe a fugir. O quê a tira daquela vida sem perspectiva é o sonho de conhecer o Rio de Janeiro: conduzida por sua égua branca, como se estivesse em um conto de fadas, a menina é deixada a bordo de um trem e vai sozinha para o Rio. Para Pucci Jr (2013), a minissérie coloca o sujeito melodramático no centro da ação, incluindo-o em um subúrbio onde abundam os problemas sociais. No contexto traçado neste caso, pensando em um paralelo com outra produção dirigida por Luiz Fernando Carvalho, Hoje é Dia de Maria (2005), “Conceição, a imigrante que provém do interior mítico do país, sofrerá na carne o ataque do mal e, com sua atitude firme, tal como Maria na outra minissérie, propiciará (ou pode propiciar) uma reeducação do espectador” (PUCCI JR, 2013, p. 53). Assim, em Suburbia, também dentro da crítica social, há espaço para a violência, tanto na sua manifestação física quanto em formas pontuais de agressão social, racial e de gênero. O ataque do mal referido por Pucci Jr. tem em Conceição uma vítima quase inevitável: mulher, negra e pobre, a realidade se mostra dura para ela, mesmo depois de acolhida pela família da amiga Vera. Adotada como filha por Seu Aloisio e Dona Bia, Conceição é vista como presa pelo marido da patroa, de quem consegue fugir, e pelo juiz a bordo da moto, mais um que lhe assedia enquanto trabalha como frentista no posto de gasolina. Mesmo naquele ambiente de tensão constante, em que a câmera autônoma, a montagem dinâmica e a trilha sonora antecipam a explosão de violência do juiz que lhe rapta com a moto, no terceiro capítulo, a representação da realidade hostil e recheada de crítica social é tão exacerbada que se alegoriza. Em entrevista a Luiz Zanin, em seu Blog na edição online do jornal O Estado de São Paulo (2012), Carvalho admitiu o desejo de priorizar a violência moral em relação à violência física, pensando a crítica social da minissérie em um clima de “fábula social, da eterna luta entre opressores e oprimidos”. Dessa forma, segundo Soares (2013), tem-se acima de tudo uma representação muito intensa, com cores quentes e um tempo moldado pela música. A alegoria, aqui, mostra-se enquanto forma hipnótica de diálogo com a realidade, sendo que a “intensidade, por sua ambivalência constitutiva, por sua anormal imoralidade, não anula: dobra códigos morais, disciplina, leis, ritos, fronteiras, corpos e papéis” (SOARES, 2013, p. 43). No alfabeto sensorial de Suburbia, a complexidade móvel se liberta de qualquer tentativa naturalista de representação: seus sons, cores e símbolos vão além, explorando os três níveis de sentido barthesianos dentro de uma lógica própria. Tal excesso representacional pode ser visto enquanto “matriz de nossa sociabilidade popular, perdendo 16 seu sentido original, portanto, e se convertendo em marca e valor culturais que o rigor estético de Suburbia nos deixa ver e sentir” (SOARES, 2013, p. 45). Considerações Finais Em Suburbia, é possível relacionar os três níveis de sentido de Barthes (2009) com mecanismos de representação da realidade nos quais se observa uma busca por inserir as personagens na época e no local de ação da trama, além do simbolismo colorido e frenético de cenas gravadas com câmera autônoma e montagem fragmentada. No último capítulo, Conceição se consagra enquanto santa e rainha de bateria, superando o funk relaciona um passado de sensualidade e namoro mal sucedido. O objeto de fracasso, Cleiton, por sua vez, após quase morrer, se regenera e encontra Jesus, em uma saída religiosa que é mostrada concomitantemente à coroação de Conceição. Agora, transformados, ambos poderiam unir seus caminhos novamente. Tal simbolismo se soma a um espaço onde há liberdade para fruição, em um contexto no qual a representação naturalista não encontra espaço para se consolidar. Sutilezas na captação das cenas oferecem ao espectador uma câmera que privilegia o ponto de vista das personagens e, por vezes, se mostra mais lenta e menos fragmentada do que propõe a decupagem clássica. Exposta pelo próprio diretor da minissérie, a fábula moral intencional de Suburbia se consolidou enquanto representação crítica da realidade, mas uma crítica alegórica porque exacerbada, fantasiosa e potente. Aqui, som e cores se confluem em uma mistura explosiva que, como destacou Soares (2013) valoriza o desejo e o medo, em uma representação viva dos subúrbios cariocas. Vivacidade, em Suburbia, se relaciona diretamente com a intensidade de uma trama tão dinâmica quanto sua montagem, que altera elementos de câmera lenta e fruição menos acelerada com movimentos frenéticos que captam a pulsação de um contexto social representado como vibrante, para o bem e para o mal. Na interconexão dos três níveis dos sentidos sugeridos por Barthes (2009), acredita-se que a proposta de Carvalho em Suburbia insere na narrativa elementos fabulosos que a aproximam de uma alegoria. Ainda assim, segundo os pressupostos do pensamento de Barthes, há ali componentes que asseguram a identificação subjetiva do espectador, que se dá pelo nível do sentido informativo, sobrepostos aos símbolos que, fazendo parte do léxico comum desse mesmo espectador, mostram-se como os mais explorados nessa relação. Só isso já colocaria a minissérie como uma produção de qualidade que se destaca na vasta produção previsível da ficção seriada contemporânea, 17 mas o que é salutar destacar é que há momentos em que o terceiro sentido também se coloca, embora com sutileza, e isso a diferencia dos modos de representar a realidade da maioria das narrativas ficcionais produzidas na televisão aberta brasileira. Referências BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 2009. PUCCI JR, Renato Luiz. Uma nova experimentação na TV brasileira. In: Caderno Globo Universidade, v. 1, n. 2, mar. 2013 – Rio de Janeiro, Globo, 2013. SOARES, Luiz Eduardo. Suburbia e a transcriação do subúrbio carioca. Caderno Globo Universidade, v. 1, n. 2, mar. 2013 – Rio de Janeiro, Globo, 2013. ZANIN, Luiz. Suburbia: uma entrevista com Luiz Fernando Carvalho. In: Blog do Zanin, 03 nov. 2012. Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/blogs/luizzanin/suburbia-uma-entrevista-com-luiz-fernando-carvalho/>. Acesso em: 11 nov. 2015. 18 Desdobramentos da Ficção Seriada Televisual em Múltiplas Telas12 Nísia Martins do ROSÁRIO Doutora, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) [email protected] Adriana Pierre COCA Doutoranda, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) [email protected] Resumo: O texto problematiza aspectos da digitalização da ficção seriada televisual no diálogo com as outras mídias e faz isso buscando identificar os modos como se articulam os desdobramentos das produções de teledramaturgia da TV Globo em outras telas, no período de maio de 2010 a maio de 2015. Os apontamentos dessa pesquisa são feitos com base em levantamento de dados e análise interpretativa e nos ajudam a sinalizar como a TV está se reinventando diante das novas maneiras de ver e produzir audiovisual na contemporaneidade. Palavras-chave: Ficção seriada; Múltiplas telas; Transmidiação; Reconfiguração da Linguagem. Introdução – os novos modos de assistir ficção seriada. Muitos teóricos discutem o fim da televisão já há algum tempo (MISSIKA, 2006; KATZ, 2008; CARLÓN; SCOLARI, 2009), mas sabemos que o que de fato está com os dias contados são os modos “tradicionais” de assistir TV. Nessa perspectiva, emissoras do mundo todo precisam repensar formatos e produtos. A proposta deste texto é justamente buscar compreender como a maior emissora produtora e exibidora de teledramaturgia no Brasil, a TV Globo13, vem traçando estratégias que, de alguma maneira, dinamizam a ficção seriada em múltiplas telas. Entendemos que essas iniciativas sinalizam como a televisão de modo geral está se reconfigurando não só como linguagem – transformação sinalizada pelas mudanças aceleradas dos formatos, com a emergência de mais programas apresentados ao vivo, característica singular do meio –, mas também indica como essa mídia está se relacionando com o espectador na contemporaneidade, oferecendo-se em 12 Este artigo contou com o apoio de Jamille Almeida da Silva, Mariana Somariva e Maurício Rodrigues Pereira, orientandos de Iniciação Científica da Profa. Nísia Martins do Rosário, na Universidade Federal do Grande do Sul. A equipe realizou o levantamento dos dados analisados no texto e a aluna Jamille Almeida da Silva também produziu os gráficos que compõem o artigo. 13 A TV Globo faz parte da Rede Globo, que é o terceiro maior conglomerado de comunicação do mundo. Ao lado da mexicana Televisa tem um papel de destaque no âmbito latino-americano. No que tange a teledramaturgia, a emissora também se diferencia, já que suas novelas foram exportadas para mais de 150 países. 19 outras telas, em outros formatos e interconectando-se a partir de produtos complementares disponíveis em suportes diferentes. Por outras palavras, configura-se um momento em que a TV não apenas se trasladou da sala de estar e passou a ser assistida em diferentes telas de tamanhos e acessos variados, como os celulares que cabem na palma das nossas mãos, mas também complementou a sua própria programação, desdobrando-se em telas e distendendo seus produtos. Optamos por chamar de múltiplas telas, nesse artigo, os dispositivos físicos que nos dão acesso aos conteúdos audiovisuais através das redes digitais, que são as telas (móveis ou não) conectadas à internet como os computadores de mesa e os tablets, mas também àquelas que captam o sinal digital das emissoras como os telefones celulares e os monitores instalados nos ônibus e metrôs da cidade de São Paulo, por exemplo14. Compreendemos que essas novas maneiras de assistir TV, que vão além do ato de estar diante da televisão tradicional, o modelo broadcasting, incluem ainda assistir a um programa de TV no canal de vídeos You Tube, bem como baixar temporadas de séries no computador pessoal e assisti-las de uma única vez, uma prática chamada de binge watching; também comprar boxes de DVDs, que já são comercializados com telenovelas inclusive, e ainda, ver séries de TV que foram produzidas apenas para o meio digital, como as produções House of Cards e Narcos do canal de vídeos on-demand Netflix, via streaming. No bojo dessas práticas é possível constatar pelo menos uma preocupação legítima dos produtores de narrativas ficcionais na televisão: a criação de conteúdos interconectados e de formatos adaptados que expandem as tramas pensadas para TV e desencadeiam os desdobramentos da ficção seriada em múltiplas telas. Monitorar a “audiência” pulverizada das redes sociais como o microblog Twitter e o Facebook, também importa a esses profissionais, que se tornaram produtores de conteúdos para multiplataformas, mas a criação vai além: jogos com avatares de personagens, webséries, webdocumentários, entrevistas com atores, vídeos produzidos pela audiência e inseridos nas tramas originais, blogs de personagens, aplicativos exclusivos, episódios disponibilizados na internet antes da exibição na tevê, entre tantos outros. 14 A maior metrópole brasileira abriga a maior frota de ônibus do planeta e parte dessa rede de transporte público sintoniza o sinal digital da TV Globo, assim como os celulares fazem com os sinais digitais disponíveis na área em que estão. Em São Paulo, mesmo quem não tem um celular com TV digital ou conexão com a internet, tem a possibilidade de voltar para casa vendo uma telenovela. 20 Resistência, tensionamento e redenção. O cenário que existe hoje já era previsto, de certa forma, pelo mercado publicitário, que tem consciência que dialoga com um público que mudou de postura na hora de consumir, que tem uma fonte de informação diversificada, nunca antes experimentada. Mais do que isso, o mercado é cônscio que seduzir o público jovem comprometido com o universo digital e distante da tela-televisão dos moldes tradicionais se coloca como um grande desafio. Mesmo assim, a situação não indica a morte da mídia televisão, pelo contrário, no Brasil a TV aberta continua sendo a mídia hegemônica. O publicitário Gustavo Gaion lembra que um comercial exibido no horário nobre atinge na TV aberta brasileira entre 30 e 35 milhões de pessoas15 e, por isso, as estratégias de mídia nas agências de publicidade continuam privilegiando a televisão, só que, evidente, em sintonia com outras mídias. Uma ressalva, tais sintomas, assim como a queda acentuada da audiência televisual nos últimos anos, não foram só provocados pela democratização de conteúdo por conta das redes digitais, os impactos da fragmentação da audiência tiveram início nos anos 1980, quando a TV a cabo e via satélite começaram a ganhar espaço. Atualmente, a TV a cabo está presente em 29,5% dos lares brasileiros, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) contribuindo desse modo para as consequências relacionadas. Diante dessas perspectivas, a TV Globo, em 2010, criou um departamento específico para tratar das relações de seus produtos com as novas mídias. Um ano antes, a emissora já experimentava ações em multiplataformas no horário das cinco da tarde com a telenovela infanto-juvenil Malhação, foi a primeira vez que personagens ficcionais da TV 15 Alguns parâmetros para se refletir sobre a “audiência nos ajudam a compreender que na internet o alcance de público das narrativas ficcionais ainda é muito diferente e relativamente inferior do que o da televisão. Um exemplo, a série norte-americana Lost (2004-2010) no ar pela ABC, foi perdendo audiência na televisão ao longo das temporadas, foram mais 18 milhões de espectadores registrados nas duas primeiras, 13 milhões na terceira, 12 na quarta e cerca de 10 milhões de espectadores na exibição das duas últimas temporadas. Já os dados do Instituto Nielsen elegeu em 2008 Lost como a série de TV dos Estados Unidos mais vista na web, com um milhão e meio de espectadores (SCOLARI, 2013, p. 160). Um exemplo mais recente da TV Globo no Brasil é a telenovela, A regra do jogo, exibida no prime time, que registrou uma audiência considerada ruim na semana de estreia, a média no IBOPE foi de 27,6 pontos e a média de visualizações no site oficial 500 mil. Um ponto no IBOPE equivale a 233 mil domicílios, cada um somando por volta de 3,3 habitantes. Assim sendo, os 500 mil da internet representam pouco mais de 0,5 ponto de IBOPE na televisão. Informações disponíveis em: <http://celebridades.uol.com.br/ooops/ultimas-noticias/2015/09/12/audiencia-de-a-regra-do-jogona-web-ainda-e-minuscula.htm> Acesso em: 12/09/2015 às 19h57 e <http://rd1.ig.com.br/primeirasemana-de-a-regra-do-jogo-perde-para-babilonia-em-audiencia/> Acesso em: 21/10/2015 às 17h41. 21 Globo ocuparam blogs, vídeos virais e perfis no Twitter. Mas, foi no ano seguinte com a telenovela Passione exibida no prime time que uma iniciativa transmídia sem precedentes foi realizada, mais de 300 cenas exclusivas da telenovela foram produzidas só para exibição na internet. Meses depois, dessa vez, no horário das sete da noite, a segunda versão de Ti-ti-ti estabeleceu um diálogo entre os protagonistas e seus “fãs” no Twitter e foi criado um site que, entre outras opções, dava acesso às páginas oficiais das revistas de moda que eram “editadas” na trama ficcional. Nesse espaço encontravam-se reportagens sobre o assunto e entrevistas com colunistas famosos como Joyce Pascovitch falando sobre a cobertura da São Paulo Fashion Week, por exemplo. Em 2011, outro marco com a criação da websérie para telenovela O Astro, que foi exibida no horário das onze da noite. No ano seguinte, uma ação inédita voltou à atenção para a faixa de programação das sete da noite, Cheias de charme conquistou mais de 12 milhões de visualizações de um videoclipe colocado no ar primeiro na internet e só depois exibido na telenovela. Relatamos aqui um pequeno cenário do início desse movimento na emissora. O panorama é muito maior e entendemos que não é pertinente descrevê-lo aqui em sua integralidade. Os resultados dessas iniciativas fizeram com que a TV Globo ampliasse as extensões narrativas da produção ficcional seriada e também percebesse a necessidade de outras ações sincronizadas com o universo digital, como colocar os programas a disposição do espectador em um canal exclusivo para locação e vendas no site www.globomarcasdigital.com, onde é possível alugar por dois dias uma série completa ou apenas um episódio dela. Esse é um desdobramento da programação para outra tela, sem contudo inovar no conteúdo da programação. Além disso, não são todos os programas da emissora que estão disponíveis nesse webcanal. A iniciativa parece uma maneira de driblar a vastidão de produções que pode ser encontrada, sem muita dificuldade nos calabouços da internet, sem a autorização da emissora16. Outro canal de acesso aos programas globais é o aplicativo Globo Play para smartphones e PCs, que dá acesso gratuito a trechos da programação oficial da emissora. Para assistir na íntegra os programas, o usuário paga um valor mensal. No lançamento dessa plataforma, a TV Globo traz como premiér o capítulo zero da telenovela Totalmente Demais, com cenas das personagens em ações anteriores ao capítulo de estreia. Usuários 16 A TV Globo travou uma guerra judicial contra canais digitais como o You Tube, proibindo a exibição de trechos de seus programas. Mas, se rendeu a possibilidade de promover seus produtos no site e tem um canal oficial no You Tube, para divulgação de chamadas e vídeos promocionais. 22 das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro têm, ainda, a opção de assistir a programação ao vivo. Se desdobrando em múltiplas telas. Neste artigo buscamos apresentar alguns dos resultados levantados sobre os percursos de produções interconectadas para múltiplas telas em seus desdobramentos digitais na ficção seriada da TV Globo a fim de conhecer especificidades dos percursos que estão sendo tomados em tempos de convergência, conectividade, múltiplas telas, avanços tecnológicos e transformações da audiência. Adotamos como metodologia, a priori, um levantamento de dados17 e sua análise interpretativa referente ao período de maio de 2010 a maio 2015, que teve como principal fonte de coleta de dados o site Memória Globo, as páginas oficiais dos programas da emissora e os sites com críticas de TV18. O início de período de coleta de dados se deu em 2010 porque naquele ano houve uma experiência importante do enlace entre narrativa ficcional da TV e a internet com a telenovela Passione, como já mencionado. A pesquisa preliminar nos ofereceu dados quantitativos significativos, porém o volume de informações foi grande e, por conta disso, decidimos relatar e refletir nesse texto apenas sobre as relações que tratam dos desdobramentos em múltiplas telas das séries inéditas19 e que os desdobramentos se deram nas redes digitais na internet. Ao todo para este artigo foram observadas 42 produções. Os gráficos abaixo sinalizam quantas séries produzidas a TV Globo realizou por ano e como se apresentam os desdobramentos nas redes digitais em números percentuais. 17 Esse levantamento de dados foi realizado pela equipe supracitada de orientandos de Iniciação Científica da Profa. Nísia Martins do Rosário. 18 Os sites pesquisados foram UOL, Terra e G1. 19 Para facilitar nossa classificação, vamos adotar o formato série de maneira mais genérica nesta reflexão, tratando as séries, como um formato que engloba: série, minissérie e seriado. Embora, saibamos que há especificidades entre eles. No site Memória Globo essa nomeação aparece de duas formas: seriado e minissérie. O outro formato de destaque é a telenovela, que é discutido por nós em outro artigo. 23 Gráfico 01: Total de Produções TV Globo – 2010-2015. Gráfico 02: Desdobramentos digitais das séries da TV Globo – 2010 - 2015. O gráfico 02 mostra uma variedade das criações de produtos digitais paralelos aos produtos principais da televisão, sinalizando que as ações da emissora em relação à produção ficcional no ciberespaço vêm testando distintas possibilidades de desdobramentos. Os produtos complementares podem ser organizados a partir de várias lógicas, como, por exemplo, sua função em relação do produto principal, sua função para o público espectador, seu gênero, sua acessibilidade, seu modo de operação, sua transmidialidade. Temos ciência de que não conseguimos sistematizarr todos nesse texto, tampouco 24 apresentar um panorama detalhado. Por esse motivo é que nos detivemos na transmidialidade, que neste momento consideramos o mais importante tendo em vista que grande parte dos produtos complementares são desta ordem. Esse universo ficcional que extrapola a tela-TV, Jenkins (2009) chama de transmidiação e a internet é seu terreno mais fértil. Afinal, a internet é multimídia. Santaella (2003) considera o rápido desenvolvimento da multimídia um dos aspectos mais significativos da evolução digital, porque une as principais formas de comunicação: a escrita, a audiovisual, as telecomunicações e a informática. A transmidiação, de acordo com o autor, é o processo de transposição de narrativas ficcionais além dos limites do suporte para o qual foram criadas, dando novos contornos à relação do consumidor com o universo ficcional. Cada suporte deve ser capaz de articular a narrativa de maneira distinta, mas a ponto de complementar as demais plataformas, ou seja, as narrativas transmídias envolvem universos ficcionais que possam ser compartilhados em diferentes meios. O termo é uma associação ao inglês transmedia storytelling. (JENKINS, 2009). Foi com base nas articulações de Jenkins (2009) que propomos pensar os desdobramentos da ficção seriada em múltiplas telas em transmidiáticos e transmidiáticos restritos. Assim, os desdobramentos transmidiáticos seriam aqueles que estão diretamente vinculados às tramas como os blogs de personagens e as webséries. Eles são produtos que compõem a narrativa principal, mantendo grande parte dos personagens; por vezes oferecem informações que não estão na trama original, mas que, contudo, não afetam o entendimento da história. Temos também os desdobramentos transmidiáticos restritos que expandem a narrativa, mas não são desdobramentos da trama em si, se configuram apenas como complementos aos temas tratados, como os webdocumentários produzidos e disponibilizados nos sites oficiais da emissora e alguns aplicativos relacionados a personagens. Esses não se configuram como a expansão da narrativa original. Compreendemos que essas duas ordens transmidiáticas não abarcam todos os tipos de produtos complementares que nossa investigação levantou. Muitos deles não se encaixam aqui e será necessário criar outras lógicas de organização, conforme observamos anteriormente. Há diferenças entre as maneiras que as narrativas ficcionais se expandem nas redes digitais e nem todos os produtos que se desdobram podem ser considerados esse tipo de narrativa. 25 Considerações finais Devemos atentar para outra proposição de Jenkins (2014), que depois do seu livro paradigmático Cultura da Convergência (2009) atualizou o próprio pensamento ao discutir em Cultura da Conexão (2014) a condição de propagação de conteúdos nas redes digitais, que se espalham de maneira mais avassaladora do que antes, porque hoje o espectador/usuário reivindica uma participação mais ativa nos processos de produção e circulação de conteúdos, um fenômeno cunhado por Jenkins (2009) como Cultura da Participação. Os conteúdos que anteriormente eram distribuídos pelos meios de comunicação passaram a circular pela rede digital em velocidade acelerada, através do compartilhamento de informações é exatamente por essas condições que as emissoras de televisão, não podem mais deixar de criar ficção seriada sem considerar o importante papel das mídias digitais. A esse respeito Jenkins, Green e Ford esclarecem: Essa mudança – de distribuição para circulação – sinaliza um movimento na direção de um modelo mais participativo de cultura, em que o público não é mais visto como simplesmente um grupo de consumidores de mensagens pré-construídas, mas como pessoas que estão moldando, compartilhando, reconfigurando e remixando conteúdos de mídia de maneiras que não poderiam ter sido imaginadas antes (JENKINS; GREEN; FORD, 2014, p. 24). Por isso, acreditamos que grande parte dos desdobramentos citados anteriormente é criada visando distribuição na rede. No final de 2014, a TV Globo deixou clara a preocupação com o conteúdo de suas veiculações, quando mudou a reconfiguração da estrutura dos departamentos da emissora, um reflexo das mudanças de hábitos desse espectador/usuário e consequência da fragmentação da audiência. A diretoria de entretenimento foi dividida em áreas diferentes: Dramaturgia: diária e semanal e Variedades em: atrações diárias e realitys e atrações noturnas e de fins de semana e se mantiveram as diretorias de Produção e Desenvolvimento Artístico. No comunicado oficial a justificativa foi: “A área passará por uma transformação: deixará de ser centralizada para ser orientada pelo conteúdo.” O diretor geral complementou a informação dizendo que: “Com esse modelo, colocamos todo o talento e capacidade da Globo a serviço do conteúdo, gerando produtos mais focados em cada especialidade para nossa audiência.” 20, traduzindo o espírito do nosso tempo. 20 Esta e outras informações consulte: < http://mauriciostycer.blogosfera.uol.com.br/2014/11/17/mudancana-estrutura-da-globo-reflete-transformacao-dos-habitos-do-publico/ > Acesso em: 21/10/2015 às 20h24. 26 Referências CARLÓN, Mario; SCOLARI, Carlos A (eds). El fin de los medios massivos. El comienzo de un debate. Buenos Aires: La Crujía, 2009. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Trad. Susan Alexandria. 2ª ed. São Paulo: Aleph, 2009. _______________; GREEN, Joshua; FORD, Sam. Cultura da conexão: Criando valor e significado por meio da mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2014. KATZ, Elihu. The end of television? The anaals of the american academy of political and social science, 2008, p. 6. MISSIKA, Jean-Louis. La fin de la télévisión. Paris: Seiul, 2006. SANTAELLA, Lúcia. Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paullus, 2003. SCOLARI, Carlos A. Narrativas transmedia – Cuando todos los medios cuentan. Barcelona: Deusto, 2013. 27 Mesa 2- TELEJORNALISMO Revista TV Sul Programas: uma análise da grade da televisão gaúcha em 1963 e 1964 Leandro Olegário21 Débora Sartori22 Greetchen Ferreira Ihitz23 Ricardo Ramos Carneiro da Cunha24 RESUMO: Este artigo pretende entender como era a programação na primeira fase da televisão no Rio Grande do Sul. Para isso, estuda-se a Revista TV Sul Programas, que surgiu em 1963 e circulou até 1969, em Porto Alegre. A publicação quinzenal tem origem em um folheto distribuído anteriormente, de maneira gratuita. Adotam-se as técnicas de análise documental (MOREIRA, 2005) e de conteúdo (BARDIN, 2011) tendo como corpus as edições de agosto de 1963 a agosto de 1964. PALAVRAS-CHAVE: televisão; grade de programação; TV Sul Programas; gêneros e formatos. Introdução No ano em que completa 65 anos, a TV segue hegemônica no Brasil. E apesar de todas as transformações tecnológicas pelas quais vem passando, com a grande expansão das mídias sociais e dispositivos móveis, a realidade é que ela ainda se mantém como o principal meio de informação para boa parte dos brasileiros. De acordo com a Pesquisa Brasileira de Mídia 201525 dos mais de 18 mil entrevistados, 79% disseram que assistem TV para se informar. 21 Doutorando em Comunicação Social pela PUCRS. Professor de Jornalismo na UniRitter. E-mail: [email protected]. Integrante do Grupo de Pesquisa GPTV. 22 Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]. Integrante do Grupo de Pesquisa GPTV. 23 Mestranda em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]. Integrante do Grupo de Pesquisa GPTV. 24 Mestre em Comunicação Social pela PUCRS. E-mail: [email protected]. Integrante do Grupo de Pesquisa GPTV. 25 A Pesquisa Brasileira de Mídia 2015 foi encomendada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e realizada pelo Ibope em 2014. Foram entrevistadas 18.312 pessoas maiores de 16 em 848 municípios. Dos entrevistados 95% afirmaram ver televisão e 72% possuem acesso à TV aberta. Disponível em: <http://pt.slideshare.net/BlogDoPlanalto/livro-2015-ok-3-2>. Acesso em: 22 ago. 2015. 28 Uma história que começa a ser contada a partir da iniciativa pioneira do jornalista Assis Chateaubriand que colocou no ar, em 18 de setembro de 1950, a TV Tupi Difusora de São Paulo, a primeira emissora do país. São mais de seis décadas de uma trajetória que está fortemente associada aos impactos sociais, econômicos e políticos vividos no país. O critério político foi o responsável pelas concessões de canais de TV distribuídas em grande número no governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) e depois, durante os governos militares pós-1964. A partir de 1967, com a implantação do Ministério das Comunicações, as concessões de licenças passaram a levar em conta os ideais do Conselho de Segurança Nacional, que tinha por objetivo promover o desenvolvimento e a integração nacional. O favorecimento político para as concessões de canais prosseguiu também na Nova República como era chamado o governo José Sarney (1985-1989). O professor e pesquisador Sérgio Mattos (2010) divide o período histórico da TV no país em sete fases. E foi na fase elitista (1950-1964), na qual o televisor era considerado um bem de luxo, que inicia a televisão no Rio Grande do Sul. Em 20 de dezembro de 1959 foi ao ar a primeira emissora, a TV Piratini - canal 5, que nasceu da iniciativa de Assis Chateaubriand e fazia parte do conglomerado Diários Associados. Seguindo a mesma lógica de outras tevês pelo país, a Piratini teve grande influência do rádio, que deu o suporte de pessoal especializado, de quadros já existentes na Rádio Farroupilha, bem como dos programas de radiojornalismo e auditório: O conteúdo das primeiras transmissões foi pensado com teledramaturgia ao vivo, jornalismo e variedades, o que incluía shows de música, alguns programas trazidos das TVs Tupi do Rio de Janeiro e de São Paulo e as séries de enlatados (como eram chamadas as séries de filmes concebidas para passar na televisão, normalmente de procedência norte-americana). Alguns programas foram criados e desenvolvidos localmente, outros adaptados do que já era ou tinha sido sucesso nas TVs do centro do país (BERGESCH, 2010, p. 39). A TV Gaúcha- canal 12, segunda emissora do RS, foi inaugurada oficialmente no dia 29 de dezembro de 1962. E originou-se da parceria entre os empresários Arnaldo Ballvé e Maurício Sirotsky, que já haviam constituído a Rádio Gaúcha e Emissoras Reunidas. Diferentemente da TV Piratini, a emissora tinha a característica de apresentar uma programação mais local e uma organização com objetivo de negócio, o que atraiu muitos empreendedores e profissionais ligados à propaganda: [...] a Gaúcha planejava, já em sua instalação, tornar-se produtora de programas, contando de saída com equipamento de VT que a outra não tinha 29 ainda. Mas foram os programas de auditório da Rádio Gaúcha e o emblemático apresentador Maurício (Sirotsky) Sobrinho que perfilaram a programação da TV. A competição instalou-se aqui, então, em 1962, entre as duas emissoras “locais”. Se os iniciadores da Piratini tiveram de ser treinados em 1959 no Rio, três anos depois a Gaúcha já pôde contar com os melhores profissionais da tevê local, alguns dos quais migraram imediatamente de uma emissora para outra (KILPP, 2000, p.30). A chegada do videotape muda a programação A partir de 1962 com a entrada da TV Gaúcha no mercado televisivo os telespectadores podiam escolher entre dois canais. Para melhorar a qualidade do sinal, que era muito precário, as emissoras precisavam investir na modernização tecnológica e qualificação dos profissionais, o que exigia a necessidade de maiores investimentos. Um dos fatores que influenciou fortemente a grade de programação dos canais 5 e 12 foi a introdução do videotape26. A capacidade de gravar grandes produções previamente, com a possibilidade de reprodução e veiculação em outras emissoras através do uso de fitas modificou os processos dentro das tevês, no cenário comercial, no perfil dos profissionais que trabalhavam no meio e nas expectativas do público. Surgia ali mais um fator de competição entre os canais para reproduzir programas produzidos no Rio de Janeiro e São Paulo. Porém, um dos problemas da época eram as falhas no transporte, o que muitas vezes impossibilitava a exibição dos programas vindos do centro do país que eram anunciados previamente. Mesmo com as críticas a má qualidade das cópias em detrimento de uma programação local ao vivo, as emissoras gaúchas optaram em rodar os tapes em função dos custos operacionais mais baixos. De acordo com Kilpp (2000, p. 32), os dois canais diminuíram a programação local que chegou a ser mais de 60% , sendo que a Piratini veiculava os programas da TV Tupi e a Gaúcha, os da TV Excelsior: A Piratini, que sofrera o impacto do surgimento da Gaúcha, em 1963 foi instruída a acabar com a maior parte dos programas locais, demitindo artistas e técnicos. Do outro lado a Gaúcha, obrigada a ligar-se à Excelsior, não conseguia sequer manter seus próprios quadros e adotou também uma importante grade de enlatados. A TV Gaúcha foi vendida quase dois anos após a sua inauguração para o Grupo Simonsen, ligado à TV Excelsior, em virtude de seus acionistas estarem endividados 26 Quando a TV Gaúcha foi inaugurada já possuía uma versão mais sofisticada do videotape norte-americano Ampex, com edição eletrônica, que havia sido desenvolvido especialmente para a Copa do Mundo do Chile de 1962. (BERGESCH, 2010). 30 com a montagem da emissora. Contrários à venda, os irmãos Maurício e Jayme Sirotsky recompraram a totalidade das ações do canal 12 em 1968. Depois de um começo que tinha como objetivo uma programação voltada para o público local, as emissoras tiveram que integrar redes nacionais como forma de sobrevivência. A TV Piratini não resistiu e em 1980 saiu do ar e a concessão passou para o empresário Silvio Santos, do SBT. A TV Gaúcha, afiliada da Rede Globo desde 1967, passou a se chamar RBS TV em 1979. Considerada a maior rede regional de TV do país, possui hoje 18 emissoras distribuídas no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Televisão: programação, categorias e gêneros Quando uma pessoa liga a televisão, passados alguns minutos, ela percebe a partir de alguns elementos televisivos e verbais qual o tipo de programa que está assistindo. Com base em referências cognitivas o público consegue diferenciar uma novela de um telejornal. São os gêneros e formatos dos programas que ajudam a dar sentido e a classificar os produtos midiáticos. “Eles ajudam a situar a audiência em relação a um programa, em relação ao assunto nele tratado” (GOMES, 2011, p. 32). Aronchi de Souza (2004), responsável por um dos mais completos trabalhos de mapeamento de categorias, gêneros e formatos na televisão brasileira, afirma existirem três categorias que abrangem a maioria dos gêneros: entretenimento, informação e educação. O autor cita ainda a existência de outras duas categorias: publicidade e especiais. Já em relação às grades de programação, Souza (2004) considera duas fases distintas. A primeira seria de 1950 a 1964 e a outra de 1964 aos dias atuais e que também, recentemente, passa a se reconfigurar na perspectiva da internet e do consumo de conteúdo por demanda do público. Para o autor (2004, p.55), “programação é o conjunto de programas transmitidos por uma rede de televisão”. É a grade que vai possibilitar às emissoras estabelecer os horários de cada programa numa perspectiva ária e horizontal, na tentativa de fidelização da audiência. Isso porque o público cria o hábito e acaba se acostumando a assistir certo gênero em um determinado horário durante a semana. Como forma de manutenção do modelo de negócio, o mercado publicitário também vai influenciar na concepção de categorias, gêneros e formatos. Aos quais seguimos a catalogação proposta por Souza (2004) enquanto categorias e seus respectivos gêneros, que irão derivar nos formatos dos programas exibidos pelas emissoras: 31 Entretenimento: auditório, colunismo social, culinário, desenho animado, docudrama, esportivo, filme, game show (competição), humorístico, infantil, interativo, musical, novela, quiz show (perguntas e respostas), reality show (TV - realidade), revista, série, série brasileira, sitcom (comédia de situações), talk show, teledramaturgia (ficção), variedades, western (faroeste). Informação: debate, documentário, entrevista e telejornal. Educação: educativo (conhecimento específico ao telespectador) e instrutivo (qualifica para uma profissão). Publicidade: chamada, filme comercial, político, sorteio e telecompra. Outros: especiais, eventos e religioso. É pertinente ressaltar que o gênero especial abrange programas que podem se aproximar de mais de uma categoria, ou seja, com caráter híbrido. Procedimentos metodológicos É nesse contexto de apenas duas emissoras em Porto Alegre que surge o que hoje pode ser considerado um documento sobre a história da televisão no Rio Grande do Sul: a Revista TV Sul Programas 27 . A publicação, em formato de bolso, tinha periodicidade quinzenal e teve origem em um folheto que circulara anteriormente, de maneira gratuita. A primeira edição, que reproduz na capa uma foto da TV Piratini, data de 16 de agosto de 1963 e possui 36 páginas. A publicação teve tiragem inicial de 20 mil exemplares, que chegaria a ultrapassar os cem mil, no decorrer do tempo e o último exemplar que está catalogado no acervo digital é de 23 de junho de 1969. A presente pesquisa tem o objetivo de mapear e entender a grade de programação das duas emissoras na primeira fase da televisão no Rio Grande do Sul, a partir da técnica de análise documental (MOREIRA, 2005) e dos critérios de análise de conteúdo, (BARDIN, 2011). Da perspectiva metodológica, o corpus deste trabalho contempla as edições da Revista TV Sul Programas de agosto de 1963 a agosto de 1964, totalizando 23 exemplares, uma vez que não havia disponível o terceiro fascículo da publicação no arquivo do acervo digital da publicação. Cabe ressaltar ainda que até a edição de número 07 (segunda quinzena de novembro de 1963), durante duas horas 27 O acervo das revistas está no arquivo digital do Núcleo de Pesquisa em Ciências da Comunicação da Famecos- PUCRS. Disponível em: < http://eusoufamecos.uni5.net/nupecc/conteudo/acervodigital/revistatv-sul-programas/>. Acesso em: 3 jul. 2015. 32 diárias, a programação era interrompida para apresentação do horário político, uma determinação da Justiça Eleitoral Federal. Para uma aplicabilidade coerente do método, a Análise de Conteúdo necessita como ponto de partida uma organização e prevê as seguintes fases: 1. A pré-análise; 2. A exploração do material; e, por fim, 3. O tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação, BARDIN (2011, p.121). O que de maneira simplificada, neste trabalho, representou: 1. Seleção da revista e definição do corpus; 2. Identificação e mapeamento da grade das duas emissoras no período determinado; 3.Leitura e contextualização dos dados. Acredita-se que associado à esse método, faz-se pertinente a técnica de análise documental, pois está no seus escopo identificar, verificar e apreciar os documentos com uma finalidade específica. Na presente pesquisa, utiliza-se o referencial teórico como fonte paralela e simultânea de informação para complementar os dados e permitir a contextualização das informações contidas na revista analisada. De acordo com MOREIRA (2005), a análise documental deve extrair um reflexo objetivo da fonte original, permitir a localização, identificação, organização e avaliação das informações contidas no documento, além da contextualização dos fatos em determinados momentos. Os autores desta pesquisa entendem que análise de conteúdo associada à técnica documental possibilita uma pesquisa sociocultural e histórica, uma vez que busca a reconstrução crítica dos dados passados a obtenção de indícios para compreensão de cenários na atualidade. O mapeamento da programação e a classificação têm por referencial a obra de Souza (2004), que propõe como categorias: Entretenimento, Informação, Educação, Publicidade e Outros. Cada uma contém diferentes gêneros que serão apresentados ao longo deste trabalho. Assim sendo, levaram-se em conta três elementos de investigação: teoria dos gêneros da TV brasileira, classificação do programa pela emissora e análise a programação. Primeiro, foram identificadas as categorias em que a programação de cada canal se enquadrava. Análise das grades de programação Uma exploração sistemática dos documentos permitiu inferir que havia uma preponderância de programas de entretenimento adulto e infantil em relação aos espaços de notícias jornalísticas e esportivas. A dedução foi feita a partir da análise temática, que para Bardin (2011, p. 135) “consiste em descobrir os “núcleos de sentido” que compõem a comunicação e cuja presença, ou frequência de aparição, pode significar 33 alguma coisa para o objetivo analítico escolhido”. As referências à programação feita nos fascículos e o conhecimento prévio dos títulos das atrações ajudaram a identificar os assuntos, conforme pode ser visualizado na tabela 1. Tabela 1 – Comparativo da grade de programas das emissoras: TV Gaúcha e TV Piratini Número 17 - Canal 12 QUARTA 22 e 29/04/1964 15:30 Abertura 15:35 Vida e Esperança 15:40 Sessão de Cinema 16:00 Markham 16:30 Telenovela Drogarias Brasil 17:00 Cine Show Kibon 17:35 Programa Celia Ribeiro 18:25 Grande novela Colgate 18:50 Só Risos 19:00 Maria Tereza Um Show 19:35 Bola Branca 19:40 Atualidades Admiral - 1 edição 19:55 Banca de Sapateiro 20:25 Ben Casey 21:30 Times Square 22:30 Show de notícias Admiral 23:00 Teleuniversidade Fonte: Revista TV Sul Programas (1964) É interessante destacar que no material estudado muitos horários das grades eram imprecisos, além disso, os nomes dos programas estavam grafados de forma incorreta e raramente era indicada a hora de encerramento das transmissões. Considerando estas variáveis, as amostragens podem incorrer em alguns erros, como tempo total da programação e categorização das atrações. Partindo desse princípio, e mais uma vez recorrendo aos seus métodos, escolhemos a proposta de Bardin (2011) quando sugere que a análise pode ser feita “a partir da contagem de um ou vários temas ou itens de significação”, desde que previamente determinados. Conforme já fizemos referência, para este estudo usamos o referencial de Souza (2004) para estabelecer as seguintes categorias da pesquisa: entretenimento, informação, especial, educação e publicidade. Considerando como corpus as grades das duas emissoras no total foram contabilizadas 5.885 horas de programação semanal (2.940h no Canal 12 e 2.945h50m no Canal 05). Na análise de conteúdo, quando 34 medimos a frequência de existência de um determinado elemento na mensagem, estamos procedendo com uma abordagem quantitativa e nesse caso chegamos aos resultados por meio de um método estatístico. Sendo assim, a partir da categorização definida anteriormente, os programas foram separados de acordo com os temas da pesquisa e pode-se verificar a presença e a relevância delas, considerando que aqueles temas, com maior duração de horas, representam um maior grau de importância, conforme se observa nas tabelas 2, 3 e 4. Tabela 2 – Categorias e horários da grade das emissoras: TV Gaúcha e TV Piratini Canal Categoria Revista 01 Revista 02 Revista 04 Revista 05Revista 06 Revista 07 Revista 08 Revista 09Revista 10Revista 11 Revista 12 Entretenimento 43h30m 44h15m 45h50m 44h05m 86h50m 54h35m 45h45m 50h55m 37h45m 37h55m 48h50m 9h35m 10h40m 10h 11h 10h20m 8h15m 9h35m 9h15m 6h 9h25m 8h35m Informação 11h 1h Canal 12 Especial 1h 1h05m 30m 30m 25m 2h30m 2h30m 1h Educação Publicidade Entretenimento 42h50m 8h50m Informação 25m Canal 05 Especial 1h10m Educação Publicidade 39h10m 11h50m 30m 3h05m 37h20m 9h55m 20m 4h55m 36h20m 10h05m 30m 3h05m 37h40m 12h45m 20m 3h10m 44h10m 10h15m 20m 4h30m 53h40m 8h20m 1h05m 1h15m 72h05m 10h25m 1h05m 1h20m 49h50m 15h30m 1h05m 1h20m 42h35m 10h40m 38h55m 6h45m 1h25m 1h25m Fonte: Revista TV Sul Programas (1963) Tabela 3 – Categorias e horários da grade das emissoras: TV Gaúcha e TV Piratini Canal Categoria Revista 13 Revista 14 Revista 15 Revista 16 Revista 17 Revista 18 Revista 19 Revista 20 Revista 21 Revista 22 Revista 23 Revista 24Entretenimento 42h 48h35m 58h35m 54h15m 47h50m 57h25m 56h55m 49h55m 52h15m 51h35m 51h55m 50h45m 14h15m 10h25m 7h10m 7h45m 7h30m 8h40m 9h30m 12h10m 11h15m 11h15m 11h15m 11h15m Informação Canal 12 Especial 50m 45m 45m 1h 1h 1h 1h 1h 1h 2h 1h30m 45m 45m Educação 45m 45m 45m Publicidade Entretenimento 34h30m 14h15m Informação 1h25m Canal 05 Especial 45m Educação Publicidade 38h40m 10h45m 1h30m 2h25m 49h10m 9h55m 1h10m 4h10m 51h15m 6h35m 1h10m 4h35m 51h25m 8h30m 1h 3h50m 54h40m 8h15m 2h 5h20m 51h05m 8h40m 2h15m 5h05m 52h40m 8h20m 1h45m 4h30m 53h35m 9h25m 1h45m 3h40m 54h15m 8h35m 1h45m 3h40m 57h05m 8h45m 1h55m 3h45m 56h40m 7h10m 2h20m 3h40m Fonte: Revista TV Sul Programas (1964) Tabela 4 – Categorias e total de tempo por emissoras: TV Gaúcha e TV Piratini Canal Categoria Total horas Entretenimento 1.162h15m Informação 225h05m 12h50m Canal 12 Especial Educação 22h Publicidade 2h15m Entretenimento 1099h35m Informação 224h30m 27h25m Canal 05 Especial Educação 71h Publicidade Fonte: Os Autores, (2015) O que podemos observar pelos resultados da análise é que o entretenimento abria a grade das duas emissoras. Em determinados dias, principalmente no canal 5, era 35 também um programa de entretenimento quem encerrava a grade. Programas deste gênero ocupavam o maior tempo de programação, muito superior à categoria informação, que vem na sequência. Nas edições analisadas, conforme consta na tabela 4 foram 1.162h15min para aquele item, contra 225h05min deste no canal 12 e 1.099h35min contra 224h30min deste no canal 5. Em algumas edições, como na de número 18 (Tabela 3) a diferença é ainda maior. Em 65h05min de programação no canal 12, cerca de 83% do tempo foram destinados ao entretenimento. Embora este não seja o mote da pesquisa, constatou-se diversidade nos formatos na categoria. Em algumas edições, foram 12 programas diferentes enquadrados como entretenimento. Muitos deles produzidos em outros países e comprados para exibição pelas emissoras. Estas questões guardam semelhanças com o que observamos hoje na TV aberta no Brasil. Nas principais emissoras do país, percebemos que é dedicado ao entretenimento o maior tempo da grade de programação. Também há uma diversidade maior de formatos, com a exibição de novelas, filmes, séries e programas de auditório. A categoria informação ocupou a segunda posição, levando-se em conta o quesito tempo de programação. Os dois canais dedicavam espaços diários ao jornalismo, inclusive aos domingos em uma das emissoras. Mesmo com uma frequente mudança de horário dos programas, ressalta-se que, no geral, os canais conseguiam manter horários fixos para a categoria entretenimento. Uma característica bem marcante da época analisada é que os telejornais mantinham nos nomes a marca dos patrocinadores, indicando a forte influência da publicidade no período. No canal 12, as duas edições do telejornal eram identificadas com a empresa Admiral. No canal 5, os títulos continham as marcas Esso e Ipiranga, com os nomes Repórter Esso e Grande Jornal Ipiranga. Esta emissora exibia, ainda, aos domingos, o programa Telesemana Sulbanco. Ressalta-se que, em algumas edições, era o Atualidades Admiral quem encerrava a grade do canal 12. A segunda edição deste telejornal, mais tarde, passou a ser denominado Show de Notícias Admiral e deixou de encerrar a programação. Foi nesta emissora, ainda, que pode-se observar uma maior rigidez na manutenção de horários na grade. No período analisado, também observou-se a existência de outros itens constantes na categoria informação, como programas de entrevistas e de atualidades. Observando a tabela 4 ainda é possível citar a incidência da categoria educação, em que foram enquadrados programas como o Teleuniversidade, que ia ao ar pelo Canal 36 12, e alguns programas religiosos, que foram incluídos na categoria Especial. Encontram-se muitas semelhanças entre o que exibia a televisão gaúcha no período analisado com o que vemos hoje na televisão aberta brasileira. Pode-se afirmar que a base é parecida, já que constatamos hoje, e entre os anos de 1963 e 1964, maior tempo dedicado ao entretenimento e horários fixos para a informação. Inclusive, naquela época, assim como hoje, os telejornais ocupavam os horários considerados nobres na grade. O que podemos observar de diferenças é que, nos anos que são objetos dessa pesquisa, em geral, a grade de programação das emissoras iniciava com programas de entretenimento. Diferente dos dias atuais, em que constatamos que os principais canais hoje começam a programação com informação. É importante ressaltar, entretanto que, naquele período, a programação iniciava-se no início ou no meio da tarde, e apenas aos finais de semana pela manhã, o que difere do que vemos hoje na televisão brasileira. Considerações finais As revistas aqui analisadas, ao mesmo tempo que permitem conhecer a disposição das atrações nas grades de programação das duas emissoras pioneiras nas transmissões televisivas no Rio Grande do Sul, nos possibilitam afirmar que, no período de 1963-1964, tanto a TV Gaúcha quanto a TV Piratini cumpriram o papel de informar, entreter e instruir, funções atribuídas à televisão. É bem verdade também que os modelos de grades e programações dos dois canais foram fundamentais para definir o atual modelo de atrações das emissoras gaúchas. Se o estudo mostrou uma predominância do entretenimento em relação à informação, é importante destacar que os formatos jornalísticos daquele período são os mesmos exibidos atualmente, como telejornais e programas de entrevistas e debates. Conclui-se também que para atender o público heteregêneo, característico da televisão aberta, as emissoras gaúchas, desde a sua criação, priorizaram suas grades com uma grande variedade de atrações visando buscar uma maior audiência. Os dados obtidos neste trabalho, com o mapeamento da grade de programação nos primórdios da consolidação da televisão no Rio Grande do Sul e que compõe umas das frentes do nosso Grupo de Pesquisa Televisão e Audiência/CNPq (GPTV) podem ser utilizados para futuros estudos em diferentes perspectivas. Além disso, a releitura das informações coletadas pode auxiliar na compreensão do cenário 37 midiático e na inter-relação entre a produção de conteúdo local, nacional e internacional ao longo do tempo, permitindo identificar fatores de permanência e modificações inseridas nas grades de programação na atualidade, o que dialoga diretamente com modelo de negócio, audiência e identidade cultural. Referências BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. BERGESCH, Walmor. Os televisionários. Porto Alegre: Ardotempo, 2010. GOMES, Itania Maria Mota. (Org.). Gêneros televisivos e modos de endereçamento no telejornalismo. Salvador: EDUFBA, 2011. KILPP, Suzana. Apontamentos para uma história da televisão no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Unisinos, 2000. MATTOS, Sérgio. História da televisão brasileira: uma visão econômica, social e política. Petrópolis: Vozes, 5. ed. rev., 2010. MOREIRA, Sonia Virgínia. Análise documental como método e como técnica. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio (Orgs.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2005. p. 269-279. SOUZA, José Carlos Aronchi de. Gêneros e formatos na televisão brasileira. São Paulo:Summus, 2004. 38 Participação popular no jornalismo utilitário Grayce Delai RESUMO Este artigo busca explorar as formas de participação popular a fim de comprovar que o público tem interesse em sentir-se representado na televisão. Ao analisar a participação do telespectador no envio de dados ao programa Bem Estar, buscamos exemplos positivos que possam ser utilizados como base para que os jornalistas possam incentivar os espectadores a colaborarem com os conteúdos interativos, com vistas nos canais de interatividade que serão inseridos, em breve na televisão digital. Palavras-chave: jornalismo participativo, jornalismo utilitário, televisão. Com vistas à participação do público na produção de conteúdos no Brasil, buscamos analisar possibilidades de utilização do potencial criador do público na produção matérias telejornalísticas. Acreditamos que o Programa Bem Estar da Rede Globo incentiva a colaboração popular através de enquetes, do envio de vídeos amadores e perguntas interativas. Através da análise do conteúdo de uma semana de exibição do programa, de 3 a 9 de julho de 2014, e da repercussão dos assuntos pautados no site do programa e a fanpage do Bem Estar no Facebook, investigamos as formas de incentivar a participação utilizando os conceitos de convergência e cultura participativa de Jenkins (2009). O Bem-Estar é um programa jornalístico, que oferece entretenimento ao espectador, veiculado de segunda a sexta-feira às 10 horas desde 21 de fevereiro de 2001, com apresentação ao vivo e duração média de 40 minutos. Desde sua primeira exibição era totalmente receptivo à participação popular e a interatividade, antes mesmo da televisão digital chegar ao Brasil. O início das transmissões do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) ocorreu em 2007, e, atualmente, o sinal de televisão digital já está presente em todas as capitais, mas conforme a Fórum SBTVD, o canal de interatividade deve chegar a apenas em 2018. Enquanto essa tecnologia não chega, iremos investigar as formas de participação popular no telejornalismo. Analisamos as formas de interação e colaboração oferecidas pela produção do programa, a fim de compreender através 39 de experiências bem sucedidas as melhores formas de incentivar a participação do público. PARTICIPAÇÃO E REPRESENTAÇÃO POPULAR McQuail ( 2013) caracteriza o público como o coletivo de receptores, “o conceito de público implica um conjunto atento, receptivo, mas relativamente passivo de ouvintes ou espectadores reunidos em um ambiente mais ou menos público” (MCQUAIL, 2013, p.374). O autor britânico deixa bem claro que público e audiência não são sinônimos na língua inglesa, públicos são segmentados e diversificados, e audiências são massivas e sem caracterização. Conforme o autor, a recepção da mídia de massa “é uma experiência de pouca regularidade e que não coincide com esta versão, principalmente em um momento de mobilidade, individualização e multiplicidade de usos de mídia” (p.374). Segundo ele o surgimento das novas mídias foi o principal influenciador para essa mudança de comportamento. A busca por conteúdo e a interatividade substituíram a postura passiva do espectador. O programa Bem Estar, no ar desde 2011, é um ótimo exemplo para essa reconstrução do conceito de público, que deseja participar e sentirse representado, já que é produzido com base no envio de dúvidas e sugestões de espectadores. Quando os receptores passam a serem produtores de conteúdo e participa ativamente nos veículos eles podem ser enquadrados nos conceitos de Jornalismo Cidadão, Cívico ou Participativo. Entretanto esses conceitos não podem ser usados como sinônimos. Bowman e Willis (2003) esclarecem que Jornalismo Cívico apesar de incentivar a participação, exige um alto nível de controle e organização de notícias. E só podemos denominar cívico o fazer jornalístico que seleciona os participantes conforme sua representatividade social, o que não acontece no Programa Bem Estar. Targino (2009) explica que, no Brasil o termo Jornalismo Cidadão era utilizado, inicialmente, para produções independentes, entretanto, hoje já contempla a atuação do público que colabora com os veículos, enviando informações de fatos que não foram cobertos por repórteres. Essas atividades caracterizam o conceito de Jornalismo Participativo de Bowman e Willis (2003). Jornalismo participativo: A atuação de um cidadão, ou grupo de cidadãos, que exerce um papel ativo no processo de coleta, reporte, análise e divulgação notícias e informações. Esta interação tem intenção de proporcionar uma participação independente, confiável, precisa, abrangente e informativamente relevante como uma democracia requer. (BOWMAN; WILLIS, 2003, p.9) 28 28 Tradução nossa. 40 Primo e Träsel (2006) acreditam que em qualquer noticiário, seja audiovisual ou impresso, a participação de seu público deve ser incentivada. Atualmente com a disseminação das redes sociais, os jornalistas e o público passaram a estar conectados simultaneamente, os comunicadores passaram a ter uma personificação através de seus perfis e o público passou a ter mais confiança de enviar conteúdos diretamente a eles, quebrando a hierarquização midiática. Ferreira (2012) defende que essas novas tecnologias foram responsáveis pela maior interação popular, e Mattos (2013) afirma que com o uso de celulares mais modernos, os usuários puderam “[...]assumir o papel de receptor, transmissor e fonte de informações, rompendo assim alguns paradigmas da comunicação” (MATTOS, 2013, p. 54). Acreditamos que esse poder provem não apenas da tecnologia de produção de imagem digital de qualidade, mas principalmente porque os smartphones oferecem a possibilidade do usuário estar conectado à internet ininterruptamente. INTERAÇÃO E FEED BACK DO PÚBLICO Enquanto a interatividade direta não está disponível, buscamos as melhores formas de compreender as vontades e opiniões populares. A principal maneira de conectar-se aos espectadores é através da internet, solicitando que o público busque os links interativos no site do programa ou nos perfis oficiais nas redes sociais e promovendo a convergência midiática. O ponto negativo dessa forma de conexão é a total dependência da internet, todavia, a internet além de oferecer espaço para uma programação extra e diferenciada, otimiza a interação entre usuários. Jenkins (2009, p.30) defende que, a inteligência coletiva só tem a somar e é necessário usar melhor o potencial interativo da internet. "Em vez de falar sobre produtores e consumidores de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como participantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo” (JENKINS, 2009, p. 30). Tendo em vista o estudo SocialTV 2014 do Ibope Media que investigou os hábitos de quem consome conteúdo televisivo em diferentes plataformas, compreendemos que o público já está adaptado a utilizar a internet como forma de interação. Com base na amostra das principais regiões metropolitanas do Brasil, o estudo apontou que 16 milhões de brasileiros 41 usam simultaneamente televisão e internet. Na versão anterior do estudo, em 2012, foram contabilizados 8,7 milhões. No quadro abaixo, podemos visualizar a quantificação do consumo simultâneo de TV e internet, bem como hábito do público comentar sobre o que se assiste. IBOPE, 2014 Com base nesses dados, compreendemos que se 38% da população faz comentários durante a programação, as equipes de produção televisiva necessita urgentemente absorver esse feedback e utilizar-se dessa importante ferramenta de medição de audiência. Do total de comentários feitos pelos entrevistados das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo, 34% estão ligados a programas jornalísticos, como o Bem Estar. O estudo aponta, ainda, que “80% do público que faz comentários enquanto assiste à TV já trocou de canal ou ligou a televisão para ver um programa que foi sugerido ou comentado em uma mensagem que recebeu pela internet.” (IBOPE, 2014). Compreendemos que a audiência integrada é alta e se incentivada pode auxiliar na adaptação do conteúdo ao gosto popular. INCENTIVO À UTILITÁRIO PARTICIPAÇÃO ATRAVÉS DO JORNALISMO O Bem-Estar, um programa jornalístico, conforme Vaz (2012), atualmente é apresentado pelos jornalistas Fernando Rocha e Mariana Ferrão, e transmitido ao vivo em rede nacional. A simultaneidade do ao vivo adere atualidade e a proximidade ao programa, que a p r e s e n t a u m d i s c u r s o s i m p l i f i c a d o e s e a p r o x i m a d o 42 gênero educativo. Toda a estruturação visual e de discurso do programa é planejada para que o telespectador sinta-se representado por aquele conteúdo apresentado, conforme a autora. O programa aborda temas relacionados à saúde e qualidade de vida e visa “apresentar ao público um conteúdo útil, apontando soluções para problemas, dicas e possíveis mudanças de hábito” (VAZ, 2012, p.10), o que o enquadra no conceito de Jornalismo Utilitário. Esse gênero jornalístico visa orientar o receptor. “O jornalismo utilitário tem a característica de oferecer uma informação que o receptor precisa ou vai necessitar em algum momento” (VAZ, 2012, p.14). Nesse modelo os jornalistas buscam oferecer ao público orientações e indicações que possam ser úteis ao cotidiano do telespectador. Jornalismo de Serviço é aquele que vai além da simples divulgação da informação e se preocupa em mostrar/demonstrar fatos e ações que a curto, médio ou mesmo longos prazos, vão contribuir para melhores condições de vida do receptor. Informações que o tornem mais saudável, mas apto a administrar o próprio tempo ou dinheiro. (TEMER, 2003, p.101) O gênero utilitário presta um serviço de assistência ao receptor e utiliza-se de linguagem pedagógica para facilitar a compreensão. Também, propicia e incentiva a participação popular, ao oferecer informações relevantes com linguagem de fácil compreensão para aproximar os apresentadores de seu público. ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO DO PÚBLICO NO BEM ESTAR O programa analisado não é completamente produzido pelos telespectadores, mas, é um dos programa da TV aberta que oferece maior possibilidade de interação. Buscamos investigar como é incentivada a colaboração, para tanto, realizamos uma análise do conteúdo de uma semana de programa, de 3 a 9 de julho e das reproduções dos assuntos pautados no site do programa, onde é realizada a maior parte dos convites a participação popular, e na fanpage do Bem Estar no Facebook. Nossa análise de conteúdo segue os procedimentos metodológicos de Bardin (1977). A autora divide a pesquisa em três fases: 1) pré-análise, 2) exploração do material e 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Incialmente, em uma pré-análise, acompanhamos a exibição do programa, e antes de cada edição verificamos as perguntas postadas no site e após o programa acompanhamos as respostas do público pelo Facebook para verificar se a pauta foi bem aceita ou não. 43 No site do programa encontramos três locais para envio de conteúdo colaborativo. A tele interativa: Participe Ao Vivo, o canal “Vc no Bem Estar – mande sua pergunta com vídeo ou foto”, e o canal da Central de Atendimento ao Telespectador da Rede Globo. O primeiro é um canal para envio de perguntas relacionadas ao tema proposto pela produção do programa, e que poderão ser respondidas ao vivo e o segundo é um sistema integrado de envio de imagens e mensagens audiovisuais. Todas as plataformas são mediadas e necessitam de cadastro no site globo.com, através de e-mail ou perfil no Facebook, a participação é gratuita. Esse tipo de interatividade, segundo Jenkins (2009), favorece a democratização do conteúdo midiático e propõe um campo de produção de conhecimento coletivo. Desprezamos a quantificação das perguntas respondidas ao vivo, pois muitas questões veiculadas são elaboradas com base em mais de uma pergunta postada na tela interativa. Também verificamos que os comentários na fanpage não tinha repercussão durante o decorrer do programa, ainda que esta seja a página oficial do Bem Estar na rede social. E constatamos que é através do site que os telespectadores podem conversar com os consultores do programa e tirar dúvidas. Para envio de conteúdo colaborativo é necessário acessar o site do Bem Estar, e logar-se no site da Globo ou via um perfil social. Compreendemos que sem a interatividade contida nas televisões digitais, a internet ainda é a única forma de conseguir receber conteúdos colaborativos do público. Conforme Jenkins (2009), os diferentes meios de comunicação evoluíam separadamente e com a internet foram unidos e passaram a evoluir de modo convergente, para se integrarem mais e estarem completamente conectados. Além de conectar os canais midiáticos, a internet torna-se essencial para a interação do público com os jornalistas. Por exemplo, no primeiro dia da amostra, foi postado um vídeo no Participe ao Vivo, no qual a jornalista Mariana Ferrão convida os internautas a participarem: “Alô você que acompanha a gente aqui pela internet, me diz uma coisa, quando é que você tirou pela última vez a capinha do seu celular para limpar. Quando é que você deve usar o álcool para limpar, quando é que usar só um pano limpo resolve [...]”. Apesar dessa solicitação da jornalista, apenas seis pessoas postaram perguntas sobre a limpeza de eletrônicos, durante o programa outros temas atraíram mais a atenção dos usuários. Em 4 de junho o tema do programa era a dança para aliviar o estresse e como prática de exercício físico. Dos 14 comentários no site apenas oito eram dúvidas. Foram realizadas apenas quatro comentários sobre o tema no Facebook, que foram ignorados. 44 No dia 7 de julho o tema era lesão ao praticar exercícios físicos e foram enviadas 41 perguntas no PARTICIPE AO VIVO. Uma telespectadora, que havia enviado uma pergunta antecipadamente, esteve presente no palco para aprender exercícios adequados para a sua rotina. Quatro perguntas foram lidas ao vivo, apenas uma foto foi enviada. A repercussão do tema na fanpage foi positiva, a maioria dos seguidores relatavam sentir-se incentivados a praticar atividade física. Conforme Recuero (2014, p.120) esses comentários representam “uma ação que não apenas sinaliza a participação, mas traz uma efetiva contribuição para a conversação”. Acreditamos poder aplicar a mesma definição da autora tanto para a rede social como para os comentários do site. O dia em que o programa recebeu o maior número de mensagem com foto foi a edição de 8 de julho, quando 19 usuários enviavam dúvidas sobre manchas de pele e axilas escurecidas. Durante a transmissão, o apresentador Fernando Rocha solicitou o envio de imagens de manchas, para serem avaliadas pelos especialistas, seis pessoas enviaram fotos. Nesse dia a consultora Marcia Purceli respondeu algumas perguntas diretamente no mural Participe ao vivo. Cinco menções sobre o tema foram postadas no Facebook, juntas receberam mais de 47 mil curtidas. O ato de curtir, para Recuero (2014, p.120), representa “[...] não apenas uma forma de divulgar a informação, também uma forma de legitimar a face do outro através de concordância e apoio.” No dia 9 de julho, o tema do programa era a derrota da seleção brasileira futebol na Copa do Mundo. Foram enviados 18 comentários para o PARTICIPE AO VIVO, oito desses era sarcásticos, alguns foram exibidos. No Facebook uma das postagens sobre como lidar com a frustração, recebeu 5671curtidas e 206 compartilhamentos. “O compartilhamento também pode legitimar e reforçar a face, na medida em que contribui para a reputação do compartilhado e valoriza a informação que foi originalmente publicada.” (RECUERO, 2014, p.120). Compreendemos que se o programa buscava oferecer conforto e irreverencia em um dia de tristeza nacional. Essa análise reforçou nossa hipótese de que o programa Bem Estar necessita do público para ser produzido. Ao acompanhar a exibição dos cinco programas escolhidos para a amostra, verificamos que os vídeos com dúvidas e as perguntas que são respondidas ao vivo compreendem a quase totalidade do conteúdo veiculado. Na amostra, também encontramos as evidências elencadas por Vaz (2012) da qualificação do programa como sendo do gênero utilitário, e comprovamos através da quantificação das curtidas das postagens no Facebook que alguns assuntos atraem mais 45 a atenção dos telespectadores do que outros, como por exemplo, o tratamento de manchas na pele foi melhor recepcionado pelo público em comparação com a dança como forma de exercício físico. Evidenciamos que o público tem interesse em participar da elaboração do programa, e também compreende que suas mensagens precisam ser enviadas em tempo hábil para ser exposta durante a exibição do programa, que é transmitido ao vivo. Chegamos a essa conclusão ao analisar que, na edição de 8 de julho, após o jornalista Fernando Rocha solicitar de imagens de manchas de pele, imediatamente o público enviou suas fotos. Compreendemos que independente dos canais de interação, o público só irá participar da produção de conteúdo se sentir-se representado naquele programa. O principal resultado obtido é que a população brasileira tem interesse em participar, e o cenário atual é propício para a introdução da tecnologia da interatividade na televisão digital, restando apenas resolver os quesitos técnicos. Contudo, acreditamos que mesmo quando a interatividade for efetivamente incluída no Sistema Brasileiro de Televisão Digital os atuais canais interativos via internet e as colaborações via rede sociais não serão desprezados. CONSIDERAÇÕES A proposta inicial deste artigo era analisar as formas de interação do público em um programa telejornalístico. Alguns resultados inconclusivos auxiliaram no desenvolvimento do projeto de dissertação de mestrado, desta mesma autora. Mas com a presente análise, concluímos que o telejornalismo participativo ainda não se sustenta sem a utilização da internet, mas, conforme dados do Ibope, a maioria dos brasileiros já está habituada a recorrer à internet para enviar perguntas e comentários para os canais e programas de televisão. A simultaneidade de utilização de duas mídias não prejudica a audiência da televisão, ao contrário, a possibilidade de interação incentiva os telespectadores, no caso do programa Bem Estar a seguir acompanhando a programação para poder ver a sua dúvida ser respondida no ar. Com essa pesquisa exploratória comprovou-se que seria possível mensurar a audiência do programa Bem Estar através das curtidas e compartilhamento das postagens no Facebook, essa medição é aplicável e legítima. Também nos parece óbvio que através da quantidade de envio de perguntas sobre um determinado tema para o 46 mural PARTICIPE AO VIVO, é possível compreender se o tema é ou não do agrado de seu público. Por fim, ressaltamos que o principal componente para a fidelização de um público e o incentivo à sua participação dependem necessariamente do produtor de conteúdo que deverá inserir na pauta da programação, assuntos que sejam do interesse do público que se deseja atingir. De modo que, uma ferramenta interativa de fácil usabilidade por si só não garante que o usuário tenha vontade de interagir. Referências BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Rio de Janeiro, RJ, Edições 70, 1977. BECKER, Valdecir. Medição de audiência e as tecnologias digitais. In: SQUIRRA, Sebastião (org). Ciber Mídias: extensões comunicativas, expansões humanas. Porto Alegre, RS: Buqui, 2012. BOWMAN, Shayne; WILLIS, Chris. We Media, how audiences are shaping the future of news and information. J.D. Lasica, 2003. Disponível em: http://www.hypergene.net/wemedia/download/we_media.pdf>. Acesso em 23 jun. 2014. FERREIRA, Rui Fernando da Rocha. 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Acesso em 30 jun. 2014. 48 ELES DIZEM DE SI: UMA ANÁLISE SOBRE O DISCURSO DE TELEJORNALISTAS EM CAMPANHA INSTITUCIONAL Eutalita Bezerra da Silva29 Flávio Antônio Camargo Porcello30 RESUMO O objetivo deste artigo é refletir sobre as ‘imagens de si’construídas no discurso dos jornalistas da emissora de televisão Globo Nordeste nos vídeos da campanha institucional “Jornalismo com coração”. O material, lançado em agosto de 2015, veicula as respostas dos profissionais quando questionados sobre “o que significa ser jornalista para você?”. Para construirmos esta reflexão, optamos pela abordagem qualitativa, mapeando as marcas que apontam o lugar que os sujeitos atribuem a si no exercício de sua profissão. Nossa leitura acerca desses dizeres toma parte do dispositivo teórico-metodológico da Análise de Discurso de matriz francesa. Entendemos que o discurso construído reforça a imagem mítica do jornalista como o herói capaz de mudar a vida das pessoas e detentor do poder de dar voz e vez aos diversos atores sociais. Palavras-chave: Televisão. Telejornalismo. Análise de discurso. Ethos jornalístico. Discurso. 1. INTRODUÇÃO A televisão chega, em setembro de 2015, aos 65 anos no país, sendo a mais poderosa mídia neste cenário, com arrecadação de 56% dos investimentos publicitários31 (IBOPE, 2014). A ela cabe “a tarefa de explicar o mundo para o cidadão comum, de prestar serviços, de facilitar o acesso dele ao poder público e aos bens de consumo, de garantir-lhe informação e diversão” (COUTINHO; MUSSE, 2012). Os telejornais estão presentes na televisão desde o seu início, na década de 1950, quando eram produzidos com pouca qualidade, com repercussão ainda incipiente. Poucas pessoas, à época, dispunham de um aparelho de televisão. O trabalho nos estúdios de TV era praticamente todo realizado ao vivo. Foi a inauguração da Rede Globo, em 1969, que trouxe outro ritmo (e uma mentalidade empresarial mais aflorada) para a produção dos telejornais, com a criação do Jornal Nacional. Desta maneira, o JN – e o padrão Globo de qualidade - seguiu, como até hoje o é, uma referência de telejornalismo (REZENDE, 2010). 29 Mestranda em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [email protected] . Vinculada aos grupos de pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e Televisão e Audiências – GPTV (CNPq/UFRGS/PUCRS) Doutor em Comunicação, Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGCOM/UFRGS. Integrante do Grupo de Pesquisa Televisão e Audiência - GPTV e-mail: [email protected] 30 31 Conforme a pesquisa, o investimento em anúncios de televisão cresceu 3%, atingindo os R$ 67 bilhões. O jornal, com cerca de R$ 17 bilhões, e a TV por assinatura, que chegou aos R$ 11 bilhões, ficaram com o segundo e terceiro lugares no ranking, respectivamente. 49 Para este trabalho, analisamos a campanha “Jornalismo com coração”, realizada pela Globo Nordeste32, em que os telejornalistas respondem o que pensam sobre a profissão, para, utilizando como dispositivo teórico-metodológico a Análise de Discurso de matriz francesa, observarmos e refletirmos acerca do discurso que eles constroem sobre si e sobre a profissão que desempenham. O objetivo deste trabalho é refletir sobre as imagens de si construídas no discurso destes profissionais. As teorias do jornalismo, aqui representadas especialmente por TRAQUINA (2012), bem como os estudos em telejornalismo (BUCCI (2000), HAGEN (2004), REZENDE (2010), TEMER(2010)), nos auxiliam nesta caminhada . A seguir, atemo-nos ao sujeito jornalista e o lugar simbólico que ocupa, para que então possamos, no terceiro ponto, discutirmos acerca do ethos jornalístico. Com estas bases, partimos para uma análise quantitativa e discursiva dos vídeos. 2. JORNALISMO E O DEVER DE VERDADE Mesmo com a renovação constante das mídias, o telejornalismo, enquanto gênero consolidado, ainda ocupa um lugar central na sociedade brasileira, sendo para muitos o principal ou único meio de informação. Entendido como “a prática de coletar informações sobre eventos atuais, redigir, editar e publicar estas informações de forma adaptada aos limites e possibilidades da televisão” (TEMER, 2010, p. 102), o telejornalismo deve manter os princípios que regem o campo33. Temer (2010) considera, ainda, que se trata de um espaço que confere credibilidade à emissora. Assim, ao mesmo tempo em que se reporta a (e se interessa por) uma audiência seletiva, serve também como uma forma de expor a opinião de quem a controla. Canclini (1995) afirma que o telejornalismo pode ser considerado um lugar de referência para os brasileiros, muito semelhante à família, à escola e à religião. Paulino (2001) aponta que o telejornal é a programação preferida do trabalhador, que se interessa por saber do que acontece no país, mas também no mundo. Em apontamentos sobre os processos de subjetivação no telejornalismo, Pereira (2014) afirma que a especialidade é "um mecanismo poderoso, ou de poder, que, pela máscara da isenção, coloca-se como voz da verdade e, ao anunciar essas verdades, atua como um instrumento de ação sobre o meio, sobre populações" (PEREIRA, 2014. p.203). Para alcançar essa posição, o telejornalismo construiu, ao longo dos anos, uma imagem de credibilidade, de quem reporta informações confiáveis. Neste sentido, segundo a autora, se o jornalismo tem e exerce poder, é porque este lhe é concedido por seu público, que confere ao seu discurso estatuto de verdade, permitindo que ele dite as regras Entendemos que essa relação de proximidade entre jornalista e público vai sempre entremear o discurso do jornalismo, ao mesmo tempo em que o constitui. É sobre esse profissional enquanto sujeito (e assujeitado) que nos demoramos no momento que se segue. 3. O SUJEITO JORNALISTA 32 Emissora do grupo Globo, cobre a Região Metropolitana do Recife e Zona da Mata de Pernambuco. Localizada em Olinda-PE, é a única retransmissora próprias da Globo no Nordeste do país. As demais são afiliadas. 33 Referimo-nos a campo como em Bourdieu (2005), como equivalente a espaços sociais,de certa maneira restritos, em que ações individuais e coletivas estão marcadas por normatizações criadas e transformadas no seio destas mesmas ações. Assim, estes espaços normatizados e normatizantes sofrem influências e modificações de seus próprios atores. 50 Aqueles que desempenham atividade profissional como jornalistas, em geral, são percebidos como “pessoas comprometidas com os valores da profissão em que agem de forma desinteressada, fornecendo informação, a serviço da opinião pública, e em constante vigilância na defesa da liberdade e da própria democracia” (TRAQUINA, 2012, p.131). Se nos seus primeiros anos de vida, o telejornalismo contava com locutores na função de apresentador, foi no início dos anos 90 que os jornalistas passaram a ocupar este espaço. Armando Nogueira, em entrevista a Guilherme Rezende (1997) apontou que esta mudança se referia mais a uma busca de credibilidade – tanto do apresentador quanto do telejornal – do que da qualidade do texto. Muniz Sodré (1977) afirma que o discurso da TV estabelece relação permanente entre emissor e receptor, ao levar ao telespectador um espetáculo que ele recebe no aconchego do seu lar. Essa proximidade instaura um clima de familiaridade, de relação íntima, característica de grupos primários como a família. A intensidade dessa relação, que funciona quase como um diálogo, embora apenas um dos lados fale, pode ser pontuada por interpelações dos apresentadores, tais como o famoso “Boa noite” do JN, ou por apontamentos como “Você vai ver no próximo bloco...”. Rezende (2000) afirma que essa conversa exige do comunicador uma grande empatia. Eugenio Bucci (2000) ao esmiuçar as características da televisão como ambiente, vai corroborar com esse pensamento. Ele afirma que, em sua gênese, a TV “ensina os telespectadores a desfrutar de intimidades que eles mal sabem que existem” (BUCCI, 2000, p.13). Estas intimidades podem dizer respeito tanto à integração imaginária do público, que se dá pela homogeneização de interesses que a televisão pode promover, como pela sensação de proximidade e de envolvimento com aqueles que estão do outro lado da tela e que parecem adentrar os lares. Segundo ele, o apresentador do telejornal é um ingrediente-chave nesse processo de aproximação, desenvolvendo um vínculo de familiaridade com o telespectador, como se fosse uma celebridade. Temos, então, um sujeito que forja uma relação como seu público, relação essa que é revestida de credibilidade, mas também se molda na figura de autoridade que ele e o discurso construído representam. É sobre a construção da imagem de si no discurso que falamos adiante. 3. O ETHOS JORNALÍSTICO Entendemos que, para adentrarmos às proposições sobre a construção de imagens de si no discurso, é preciso antes falar dos sistemas de controle criados para dominar a proliferação discursiva e para apagar suas marcas de irrupção nos jogos do pensamento e na língua. Foucault (1996) aponta que “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância. Que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 1996, p.9). Isto implica dizer que há aqueles que têm o direito de se utilizar da fala sobre determinados dizeres. Já a segregação refere-se ao fato de que determinadas pessoas têm apartado de si o direito à palavra. O autor aponta o exemplo do louco, cujas proposições são sempre desconsideradas. Foucault diz que “Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas, nem escutadas” (FOUCAULT, 1996, p. 11). Já a vontade de verdade, sobre a qual Foucault destinou mais apontamentos, atravessa os demais sistemas de exclusão que agem sobre o discurso, numa oposição entre verdadeiro e falso. O autor diz que não há uma verdade, mas “vontades de verdade” que se modificam conforme as contingências históricas. Falar dos sistemas de controle discursivo, neste trabalho, significa assumir que entendemos a construção do discurso sobre si, não como uma invenção meticulosamente articulada, a fim de produzir 51 determinados efeitos de sentido, mas de apontar que todo discurso traz consigo regulações que o norteiam. Propomos que não é preciso se descrever para construir uma imagem de si. O modo como são articulados os dizeres ou mesmo aquilo que se está autorizado a falar já o fazem. À construção de uma imagem de si para garantir sucesso na oratória chamavam os antigos de ethos. Conforme Amossy (2008), o termo ethos, só vai ser incorporado às ciências da linguagem por Oswald Ducrot, na sua teoria pragmático-semântica. Para Ducrot, o ethos está ligado ao locutor e diz respeito a certos caracteres que tornam sua enunciação aceitável ou recusável. Mas é Dominique Maingueneau quem expande esta noção, ao assumir que o enunciador confere a si e a seu destinatário certo status capaz de legitimar seu dizer. Amossy (2008) afirma que, para alguns autores, como Bourdieu (1982), o ethos não seria da ordem da linguagem, mas social. Assim, sua autoridade não dependeria da imagem de si construída em seu discurso, mas de sua posição social. Porém, isto suscita discussões com a pragmática contemporânea, para quem o ethos é da ordem do discurso e não deve ser confundido com status social. Para Amoussy (2008, p. 136), “a eficácia da palavra não é nem puramente exterior (institucional) nem puramente interna (linguageira). Ela acontece simultaneamente em diferentes níveis”. A autora afirma que a construção discursiva, o imaginário social e a autoridade institucional contribuem para estabelecer o ethos e a troca verbal que ele integra. O ethos jornalístico, que aqui nos interessa, foi descrito por Traquina (2012), para quem existe certa construção mitológica em torno deste profissional. Para o autor, ser jornalista implica partilhar de um ethos que tem sido afirmado há mais de 150 anos. Grando (2012) postula que há dois tipos de ethos na profissão: um sociológico, relacionado à identidade do profissional e do campo a que ele pertence, que determina como o discurso do jornalista é produzido e é recebido pela sociedade. Há também, segundo ela, um ethos discursivo que se relaciona à estratégia argumentativa para conquistar a adesão do auditório aos seus dizeres. “Trata-se, portanto, de um recurso discursivo utilizado para fins de persuasão” (GRANDO, 2012. p.98). Entendendo que há uma relação entre o jornalista e o seu público, que estes constroem imagens de si e do outro, e que os discursos são construídos num embate entre aquilo que se quer dizer e aquilo que se está autorizado a dizer, nos propomos ao momento analítico deste artigo, que passa por um rápido momento quantitativo e se segue a uma análise discursiva. 4. POR UM EFEITO DE ANÁLISE 4.1. A CAMPANHA JORNALISMO COM CORAÇÃO Para uma ação institucional, a Globo Nordeste, emissora do Grupo Globo, convidou seus apresentadores e repórteres para responder ao seguinte questionamento: “o que significa ser jornalista para você?” As respostas dadas pelos profissionais formam o material promocional veiculado ao longo da grade de programação. A campanha “Jornalismo com Coração” conta com 17 vídeos, que variam de 33 a 58 segundos, incluindo vinheta de abertura e de fechamento. Na ação a que nos referimos, temos um movimento diferente do habitual: os jornalistas, cujos rostos e vozes estão já diretamente ligados à notícia, aparecem em outro contexto, não mais noticiando o que acontece na região, mas falando de si. 4.2. O QUE OS JORNALISTAS DIZEM DE SI 52 Dissemos, no início deste trabalho, que temos na Análise de discurso de matriz francesa a nossa abordagem teórico-metodológica. Desta forma, não poderíamos apenas tentar aplicar estes conceitos, mas teorizar sobre como entendemos o discurso e o que nos constrange a observá-lo. É com vistas a uma análise não-subjetiva da subjetividade que a AD se impõe. Não pretendendo uma análise exaustiva que dê conta de todos os aspectos envolvidos nos textos, mas teorizando sobre o discurso, por meio da análise do seu funcionamento linguístico e condições de produção e leitura, é que nos propomos a percorrer os textos, relacioná-los com a história, com o ideológico e com o inconsciente. Interessaram-nos não somente as expressões mais recorrentes, mas também aquelas que escapavam aos dizeres repetidos. Nosso olhar inicial buscou a resposta à pergunta que foi feita, isto é, o que significa jornalismo para eles. A ver: SD1. Eu acredito que a reportagem, ela pode ser o menor caminho entre quem precisa de uma solução e quem pode solucionar SD2. Fazer jornalismo é não se conformar com muitas situações que a gente encontra no dia a dia. Aí a gente mostra o problema pras pessoas, principalmente cobra a solução para os problemas. A SD1 nos remete à função pública do jornalismo, que diz respeito justamente a este compromisso com a população, respondendo ao que é interesse geral e buscando o bem da comunidade. Neste sentido, o jornalista assume-se como mediador entre a população e os governantes, que são aqueles que poderiam solucionar o problema. Do mesmo modo, a SD2, conclama também a esta função pública, porque diz respeito a uma busca pela resolução dos problemas da comunidade, fruto de um interesse e inconformidade do jornalista diante do que está posto. A inconformidade – que levou o jornalista a fazer esta matéria (e não outra), a buscar a resolução deste problema, a atuar como mediador neste embate – mostra consciência do poder que emerge de sua função. Este foi um dos sentidos mais recorrentes no discurso: o poder que estes jornalistas sabem que têm em mãos. O que podemos observar na SD adiante. SD3. Quando eu recebo uma noticia, apurar essa noticia pode significar uma mudança de vida numa comunidade inteira. Entendemos que, no exercício da função, o profissional adquire situação de privilégio e até de certo poder. Isto não apenas pela possibilidade de fazer denúncias que ganharão visibilidade, mas por algo ainda mais basilar: é ele quem define o que é digno de merecer existência pública (TRAQUINA,1988). É ele quem, conforme a SD3, tem o poder de apurar (ou não) uma notícia capaz de mudar a vida de uma comunidade. Sua escolha pode facilitar o acesso de uma comunidade/pessoa/instituição a recursos públicos, a um atendimento de saúde digno, por exemplo. Da mesma forma, o desinteresse do jornalista desmerece a reivindicação. Se aquilo que não aparece no jornal não existe, contar a história (para usar a expressão recorrente nestes vídeos) pode, realmente, significar uma mudança de vida. Além de ter o poder de decidir o que é notícia, os jornalistas também podem definir quem pode falar sobre o quê. As fontes, os entrevistados, as vozes do “povo-fala”, todas estas são ouvidas porque um jornalista permitiu que elas o fossem. Percebemos, na análise dos vídeos, que também figura entre os dizeres sobre si elaborados pelos repórteres 53 e apresentadores a satisfação por permitir que outros atores tenham “acesso à tribuna” e se façam ouvir, como indicamos nas SD a seguir. SD4. A coisa que eu acho mais bacana na minha profissão é dar voz a quem nem sempre tem oportunidade de falar. SD5. Uma das coisas que mais me dão satisfação nesse trabalho que a gente faz é poder dar visibilidade às pessoas, aos sertanejos, pro exemplo, tão esquecidos, longe das grandes cidades. Dar visibilidade aos dramas, mas também às conquistas, às vitórias, ao talento. Acreditamos que, se contar histórias é importante, permitir que aqueles que têm algo a dizer falem por si é ainda mais. A vivência das comunidades levada à tela tem sido uma tendência nos últimos anos, com a criação, por exemplo, de programas de televisão voltados às classes C, que mostram modos de vida antes apartados da grande mídia. Ao assumir esta necessidade de dar voz e visibilidade àqueles que antes estavam esquecidos, o jornalismo admite sua responsabilidade com toda a população, não somente com as vozes já legitimadas. Além disso, no que concerne à SD5, percebemos um implícito importante: essas vozes da infraestrutura também têm realizações, vitórias, conquistas e talento e precisam se fazer ouvir. Os profissionais não fugiram à estereotipia. O jornalista que dorme e acorda para a profissão, que sai de casa e volta para ela pensando no que fez no dia e no que fará no momento seguinte, também apareceram nestes vídeos. A postura do repórter super-herói, que vai à caça do problema, que tem nisso a sua missão, é um dos pontos levantados. SD6. É muito bom poder deitar a cabeça no travesseiro de noite e saber que durante aquele dia a gente ajudou alguém a ser mais feliz. SD7. Todo dia que eu acordo para ir trabalhar, eu fico curioso e ansioso para saber qual é a história que eu vou descobrir aquele dia pra poder contar p’ra outras pessoas e quando eu volto pra casa e olho p’ro que eu fiz aquele dia, eu penso que se eu fiz bem pra alguém, pra uma só pessoa, o meu dia já valeu a pena. SD8. Posso dizer que eu vivo a minha profissão porque amo as pessoas. SD9. Todo dia eu saio de casa para ser feliz com a profissão que eu escolhi pra minha vida. Meus dias têm muito mais brilho, muito mais emoção, quando eu conto as histórias do povo. A questão da satisfação com a profissão que escolheu foi algo recorrente no discurso. Os jornalistas, em seus dizeres, aparentam ser profissionais bem-sucedidos, felizes com o trabalho e satisfeitos com suas realizações. O jornalismo aparece numa dimensão mítica, capaz de impulsionar estas pessoas, torná-las realizadas e apaixonadas. SD10. Essa é a minha missão. SD11. E isso da uma satisfação sem tamanho. Já são trinta anos contando historias, com uma vontade imensa de mudar o mundo. SD12. Então a conquista de seu Antonio, de seu José e de dona Maria é também a minha conquista. 54 SD13. É dividir com você cada momento importante da humanidade e isso pra mim é essencial p’ra viver. SD14. É isso que me impulsiona, é isso que me faz sair de casa e saber que sou feliz com a profissão que eu escolhi. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Observamos que o discurso construído pelos jornalistas para falar de si está preso às práticas tidas como funções básicas da profissão. Trata-se de uma reafirmação da função pública deste profissional, com dizeres que reforçam o interesse em ajudar, em dar voz a quem não tem, em cobrar das autoridades competentes que resolvam os problemas das comunidades. Se o ethos jornalístico aponta para certa dimensão mítica, o discurso proferido na campanha também não se apartou disso. O jornalista herói, que vive para a profissão e que se sente feliz por poder ajudar outras pessoas, é o que impera nos dizeres analisados; como também impera o reforço à aparência de profissão dos sonhos, com pessoas felizes, bemsucedidas, poderosas e capazes de mudar a vida de outras pessoas com o seu trabalho. Assumimos que a campanha reforçou aquilo que se tem como ideal para um jornalista – e, mais que isso, os colocou num lugar inatingível para o público, que deve seguir agradecendo àqueles heróis por dar-lhes aquilo de que eles estão apartados. Da mesma forma, o público que acompanha estas pessoas e que firma com elas um contrato de cumplicidade tem sua parcela de satisfação ao saber que esta relação também é proveitosa para o jornalista, que diz necessitar disso para viver. Não nos propusemos a refletir sobre os motivos que possam ter levado a emissora à divulgação destas peças publicitárias, mas certamente entendemos que elas podem fomentar uma aproximação ainda maior entre telespectadores e repórteres/apresentadores, à medida que estes saem do seu lugar de costume para falar diretamente a seu público sobre sentimentos e ideais. 6. REFERÊNCIAS AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Ruth Amossy (org.)1 ed. 1 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008. BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades do campo In: BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Ed. Marco Zero, 1983. BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Jinkings, 2000. CANCLINI, N. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 1995. COUTINHO, Iluska; MUSSE, Christina. Telejornalismo, narrativa e identidade: a construção dos desejos do Brasil no Jornal Nacional. p.15-30. In: VIZEU, Alfredo; PORCELLO, Flávio; COUTINHO, Iluska (Orgs.). 40 anos de Telejornalismo em rede nacional. Florianópolis: Editora Insular, 2009. INDURSKY, Freda .A análise do discurso e sua inserção no campo das ciências da linguagem. In: Cadernos do IL-UFRGS, nº20/dezembro de 1998. 55 MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Ruth Amossy (org.)1 ed. 1 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008. PAULINO, R.A.F. Comunicação e trabalho: estudo de recepção – o mundo do trabalho como mediação do mundo da comunicação. São Paulo: Roseli Fígaro/fapes, 2001. PEREIRA, Ariane. Os sujeitos no telejornalismo: processos de subjetivação. In: Telejornalismo em questão. VIZEU, Alfredo; MELLO, Edna; PORCELLO, Flávio; COUTINHO, Iluska. Orgs. Coleção Jornalismo Audiovisual. V.3.Florianópolis: Insular. 2014. REZENDE, Guilherme Jorge de. Telejornalismo no Brasil: um perfil editorial. São Paulo: Summus, 2000. SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala. Rio de Janeiro: Vozes, 1977. TEMER, A.C.R.P. A mistura dos gêneros e o futuro do telejornal. In:60 anos de telejornalismo no Brasil: história, análise e crítica. VIZEU, Alfredo; PORCELLO, Flávio e COUTINHO, Iluska (orgs). Florianópolis: Insular, 2010. TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 3 ed. Ver. 2012. 56 A Entrevista no Primeira Pessoa: Narrativas e conversações na TVE/RS Laira ampos34 Filipe Peixoto35 Mariana Oselame36 Resumo: Com 22 anos de trajetória na TVE/RS o “Primeira Pessoa” é um programa de entrevistas que reuniu os mais variados segmentos sociais em uma proposta intimista a extrair informações dos relatos de vida e narrativas dos convidados. Este trabalho propõe um resgate desse formato de densa trajetória na TV gaúcha assim como também uma reflexão sobre a formação de significados pelo gênero entrevista. Palavras-Chave: entrevista; televisão; narrativa; conversação; 1. Introdução O programa de entrevistas “Primeira Pessoa” TVE/RS reuniu durante 22 anos entrevistados dos mais variados segmentos sociais, notórios e desconhecidos, com o propósito de extrair-lhes informações da intimidade, relatos de vida e assim revelar-lhes a personalidade. As personalidades a serem reveladas em uma atmosfera intimista contavam seus relatos de vida, experiências pessoais no programa, suas estórias 37 de vivência em ações coordenadas, narrativas. A busca de maior proximidade com o convidado em uma atmosfera intimista foi uma concepção presente desde sua criação em 1993. O programa foi cancelado em abril de 2015 em vista de mudanças na direção e programação da emissora. Consolidou, contudo, um recorte espacial e temporal diferenciado e de longa data na televisão gaúcha. A atmosfera intimista integrante da desde a concepção inicial foi uma proposta desenvolvida em meio à simplicidade de recursos de uma emissora pública e à trajetória da apresentadora Ivette Brandalise 34 Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa GPTV – Televisão e Audiência. Email: [email protected] 35 Mestrando em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa GPTV – Televisão e Audiência. Email: [email protected] 36 Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa GPTV – Televisão e Audiência. Email: [email protected] 37 O termo estórias é empregado aqui e no decorrer do trabalho em vista do referencial teórico adotado, Motta (2013). O autor opta por estória, oriundo de story, como um tipo particular de relato com personagens reais ou imaginários, enquanto que história fica referente às narrativas da historiografia 57 (formação em jornalismo, artes dramáticas, psicologia) que leva para a televisão um exercício intimista já desenvolvido em sua prática profissional. Em meio a isso, há o aproveitamento da oralidade televisiva e da pessoalidade do convidado que encontra espacialidade para o desenvolvimento de conteúdos, narrativas e conversações. 2. Entrevistas, narrativas e conversações Os relatos de vida do programa “Primeira Pessoa” são indicadores da forma narrativa fortemente atuante na mídia. Narrativas factuais ou imaginárias pulverizam o campo das mesmas. “Enquanto as primeiras procuram estabelecer relações lógicas e cronológicas das coisas físicas e das relações humanas reais, as narrativas ficcionais procuram estabelecer relações lógicas e cronológicas das coisas imaginadas ou fictícias” (MOTTA, 2013, p.89). Para o autor quem narra evoca eventos conhecidos seja porque os tenha criado, vivenciado ou presenciado. As narrativas constituem-se, assim, em maneiras pelas quais os homens constroem as suas representações do mundo material e social (MOTTA, 2013). Portanto, as expressões lingüísticas dos humanos são mostradas através de construções semanticamente coesas e seqüências que dão corpo às estórias. Tal espontaneidade revela a narração como um fato universal e transcultural comum a todas as culturas (MOTTA, 2006). Narrar resume-se assim a: Narrar é relatar eventos de interesse humano enunciados em um suceder temporal encaminhado a um desfecho. Implica, portanto, narratividade, uma sucessão de estados de transformação responsável pelo sentido. A palavra chave é sucessão. (MOTTA, 2013, p. 71) Além disso, a narrativa gera certo tipo de relação entre os interlocutores pressupondo, assim, através desse código comum a mínima empatia em um universo compartilhado. Ao pressupor essa codificação e entrosamento dos interlocutores, as narrativas revelam-se ímpar no olhar da entrevista. Pois, muito além do registro informativo, a observação da entrevista como um espaço interativo e para a construçãode significados onde ambos participantes do processo se alteram durante a interação tem em Medina (2002) um lugar comum para a construção de significados entre entrevistado e entrevistador: A entrevista, nas suas diferentes aplicações é uma técnica de interação social, de interpenetração informativa, quebrando assim isolamentos grupais, individuais, sociais; pode servir também à pluralização de vozes e à distribuição democrática da informação (…). (MEDINA, 2002, p. 8) 58 Assim, segundo a autora, a entrevista como uma técnica eficiente para obter respostas presas a um questionário ou com outras limitações não promoverá a comunicação entre as pessoas. O que se evidencia positivamente quando a entrevista se aproxima de um diálogo, uma busca comum, uma troca entre interlocutores que saem alterados da mesma. “Assim como o ensaio, a entrevista prevê em sua organização interna, a possibilidade de vencer o limite da objetividade e o tom sentencioso das asserções declarativas” (VOGEL, 2012, p.113). Descortina-se, portanto, sua dimensão dialógica: A entrevista restaura, pois, o diálogo no universo monológico dos meios massivos, acolhe múltiplas vozes orquestrando a diversidade simbólica. Introduz discrepâncias analíticas fermentando o sadio pluralismo ideológico. Reúne protagonistas antagônicos, explorando a riqueza do confronto dialético. (MELO, 2003, p.131) Compreende-se, desse modo, a entrevista com bases na conversa. Para a ocorrência dessa conversa franca e aprofundamento da discussão, o interlocutor, mais especificamente na figura do jornalista, deve estar atento a recursos como: “escuta, relação com o entrevistado, às formas de perguntar (...). Técnicas como a percepção da linguagem não verbal, a atuação improvisada e o questionamento de pontos contraditórios (...)” (RUELA, 2012 apud FECHINE, 2014, p. 277). É o que Caputo (2010) ilustra em vista de meta entrevista com Sodré: Se perguntar é tão fundamental ao jornalismo e para as pesquisas, “a arte de saber ouvir”, como bem disse Sodré, a relação com esse ofício não pode ser qualquer uma. Podemos estragar nossas perguntas de duas formas. Quando buscamos “arrancar” algo do entrevistado e quando nos impregnamos de arrogância e perguntamos imaginando saber as respostas ou apenas para comprovar nossas próprias opiniões e teses sobre um assunto. (CAPUTO, 2010, p.199) Portanto, tudo na entrevista depende de uma “alteração entrevistadorentrevistado, pequeno campo fechado onde se vão confrontar ou associar gigantescas forças sociais, psicológicas e afetivas” (MORIN, 2010, p.67). A entrevista envolve uma interação verbal com a ocorrência de pelo menos uma troca de turno entre os falantes. “A entrevista é um evento conversacional e, por isso, observa as características da própria conversação: é uma interação verbal centrada em dois ou mais participantes (...)” (CUNHA,2012, p.97). Tais similaridades entre entrevista e conversa tem suas origens no que se pode considerar um gênero básico da interação humana. “A conversação é a primeira das 59 formas de linguagem a que estamos expostos e provavelmente a única da qual nunca abdicamos pela vida afora (...)” (GOFFMAN, 1976 apud MARCUSCHI, 1997, p. 14). Nos estudos de Silva (2008; 2010; 2013), a partir de uma perspectiva históricosocial, a conversação aparece como estratégia de construção de programas jornalísticos de TV. Presente desde a proposta estrutural da televisão até formatos específicos de programas, a conversação tem se institucionalizado como entrevista ou debate em vista da vinda dos talk shows norte-americanos, espalhando-se pelo resto do mundo (SILVA, 2010). O que para Machado (1999), é reflexo de uma expressividade televisiva ainda estruturada na oralidade, em vista de suas raízes radiofônicas. Na televisão brasileira, segundo Silva (2013), foi no período de 1969-1974 onde cresceu o número de programas que usavam a entrevista resgatando o sentido de encontro para tratar de assuntos cotidianos. Ela ressalta o momento de ascensão de segmentos onde o debate passou a estar mais ligado ao prazer e cotidiano na televisão brasileira: A valorização do entretenimento, do prazer e da subjetividade após os anos sessenta e o processo de redemocratização reconfiguraram a própria lógica televisiva brasileira permitindo o surgimento de novos formatos que misturavam o debate dos assuntos sérios, encontrado residualmente em certos programas, ao debate mais ligado ao prazer e à subjetividade (…). (SILVA, 2008, p. 10) Foi nesse contexto que surgiu na década de oitenta o programa de entrevistas que seria condicionante para muitos outros do gênero, nas décadas seguintes, tornando sua apresentadora, Marília Gabriela, um ícone no estilo. “Era o “TV Mulher” que discutia relações de gênero e colocava o novo papel que a mulher deveria assumir na sociedade” (SILVA, 2008, p. 10). 3. O programa de entrevistas Primeira Pessoa TVE/RS Com mais de duas décadas de existência, o “Primeira Pessoa” é um programa de entrevistas de densa trajetória na emissora pública gaúcha TVE/RS. Fundada oficialmente, em 1974, a TVE/RS está vinculada à categoria educativa, ligada à Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul. Apesar do cancelamento no primeiro semestre de 2015, o “Primeira Pessoa” atuou por 22 anos no cenário televisivo regional. Enquadramentos de câmera em planos próximos evidenciavam os interlocutores. Longe da ornamentação de certos cenários 60 televisivos, a simplicidade predominava: entrevistado posicionado em frente ao entrevistador sob um fundo preto, sem itens decorativos. Entre eles uma mesa retangular apenas. Sob o comando da jornalista Ivette Brandalise, o slogan de abertura da entrevista: “Hoje vamos conjugar verbos em primeira pessoa com (...)” A seguir, um breve resumo da vida do entrevistado para o alerta do espectador. Três blocos, na média de 17 a 18 minutos cada, é o tempo que o entrevistado tinha para ser interpelado pela apresentadora e mostrar quem era. O programa, assim, selecionava nomes que se destacavam colocando-os em primeira pessoa. O “Primeira Pessoa” teve início em 1993, com o convidado, o artista plástico Iberê Camargo. No histórico dos entrevistados, os mais variados segmentos sociais: políticos, escritores, jornalistas, esportistas, artistas, de relevância local, regional ou internacional. Na lista de convidados nomes como Esther Grossi, Yamandu Costa, Sebastião Salgado e Allan Lopes; o primeiro geobiólogo do Brasil. A multiplicidade de perfis evidencia uma pluralidade característica em sua caminhada. A apresentadora Ivette Tereza Brandalise Mattos, conhecida Ivette Brandalise é formada em jornalismo, psicologia e artes dramáticas. Iniciou como apresentadora no rádio, na década de 60, exercendo notória carreira também em impresso e TV, em Porto Alegre. Na atualidade, mantém a carreira de psicóloga em paralelo a de jornalista e apresentadora do programa: “Músicas que fizeram sua cabeça”, na rádio FM Cultura. A apresentadora não usava ponto, nem teleprompter durante a entrevista. Conduzia o tempo de cada bloco praticamente sem interrupções, considerando alguma ou outra ruptura no processo de gravação por razões técnicas. A produção intervinha nos breves intervalos de 2 a 3 minutos entre um bloco e outro quando necessário. A brevidade do intervalo era mantida na preocupação com o fluxo da conversação. O programa era gravado praticamente na íntegra. 4. A entrevista no programa: “E hoje vamos conjugar verbos em primeira pessoa com(…).” Esta etapa do trabalho foi realizada com base na observação e acompanhamento do corpus de pesquisa referente aos programas dos anos de 2013 e primeiro semestre de 2014. Serão apresentados, com base na análise da narrativa em Motta (2013) e análise de conversação em Braga (1994) e Marcuschi (1997), resultados de um programa realizado com a escritora, Veralindá Menezes, exibido em 5 de maio de 2014. 61 Primeiramente foi observada a estruturação geral da entrevista com abertura, troca de blocos e encerramento (trocas globais). Posteriormente foi analisada a composição de temas e narrativa geral (estrutura temática e narrativa) para, por fim, a verificação de como procedia a troca de turnos (trocas de turnos) entre os interlocutores. a) Trocas globais Na abertura, a apresentação da escritora é feita em entonação de conto, em um efeito de linguagem a inseri-la em seu próprio conto infantil. Narrativa factual e ficcional são intencionalmente mescladas. Desse modo, ao olhar o plano da expressão, neste trecho, verificam-se desdobramentos no plano do conteúdo através da observação inicial desse recurso de linguagem: (Ivette) Era uma vez uma princesa que tinha a pele da cor de bombom de chocolate, cheirosa com as rosas ((pegando caneta)) macia como a seda ((créditos Ivette Brandalise)). Era a princesa Violeta QUE NASCEU duma estorinha que a mãe ((gestual mãos palmas pra dentro indicando seqüência)) contava para a filha adormecer que se transformou em livro ((mãos palmas para cima)) que se transformou num espetáculo apresentado por uma contadora de estórias (…).(BRANDALISE,05/05/2014) O encerramento do programa, no fim do terceiro segmento, ocorre em meio a um aproveitamento da fala de Veralindá e sob a argumentação da falta de tempo para prosseguir. A condução é gentil com parabenização da entrevistada e espaço para informes finais de divulgação. (Veralindá) Não sei fazer. (Ivette) Bom, Veralindá lamentavelmente também não sabes fazer o relógio parar também. (Veralindá) ((risos)) (Ivette) E o relógio está nos obrigando a parar esse papo. Olha parabéns pelo teu sucesso e espero que continues, né, fazendo tudo isso! Quando as pessoas querem te contratar, por exemplo, pra contação de estórias. O que é que elas fazem? (BRANDALISE, 05/05/2014) b) Estrutura temática e narrativa: Podem-se considerar três temáticas centrais desenvolvidas durante a entrevista: o trabalho e obra (livros, CD, roteiro musical) de Veralindá; a influência e participação dos filhos em seu trabalho; e outros aspectos pessoais da autora como troca de nome, religiosidade e trajetória na contabilidade. As três temáticas são recorrentes e interagem nos três blocos. Os personagens que mais afloram em sua narrativa são filhas, amigos atores, crianças (leitores e ouvintes das estórias) e outros familiares. 62 c)Trocas de turnos O início das trocas de turnos para o caminho da sucessão temporal e evocação de eventos por parte da convidada, no final do texto de apresentação (procedimento do programa) ocorre, neste caso, a partir de um tensionamento sobre a identidade da mesma. Isso se evidencia no uso do slogan que normalmente é em forma de afirmação e não de pergunta como no caso: (Ivette) E nós vamos conjugar, então, verbos na primeira pessoa com ((olhando entrevistada)) a Veralindá ou com a VERA LÚCIA? (BRANDALISE, 05/05/2014) De uma maneira geral, percebe-se no decorrer da entrevista, a maior parte da mudança subtemática em vista dos questionamentos. Assim, verifica-se movimentação de Ivette no aproveitamento da observação dos relatos de vida da escritora para esclarecimento de aspectos profissionais e situadores de sua narrativa. A busca desse esclarecimento também ocasiona a formulação de perguntas com base na observação, por exemplo, dos materiais da autora (os dois livros publicados, CD com canções e roteiro do musical) a gerar inclusive subtemáticas sobre os filhos. Percebe-se a atribuição de tensionamentos com questões sociais da contemporaneidade aplicados aos aspectos conflitantes revelados: Por exemplo, no bloco 1: (Ivette) Pois é e tem um príncipe aqui, mas eu sei que a Sheron, a Sheron, ((corrigindo-se)) que a princesa ((página do livro com princesa e príncipe em grande aproximação, close up)) Violeta não tem intenções de casar. Ela não vai ser...Não vai ter aquele final de foram felizes para sempre? (BRANDALISE 05/05/2014) Notam-se no terceiro bloco, vários movimentos questionadores em interpretação da narrativa da entrevistada a desencadear um maior enfoque nos aspectos pessoais individuais da mesma, em conexão ao aprofundamento e reflexão de questões sociais. 5. Considerações Finais A entrevista, nascente da matriz oral televisiva, vai gerando alternância, informação e reflexão na interpenetração informativa de seus interlocutores a construir significados. A entrevista no “Primeira Pessoa”, programa que propõe um recorte espacial e temporal intimista, tem movimentos de diálogo, conversação, narrativas, que contribuem para o aprofundamento de informações sobre o entrevistado, em maior 63 incidência na compreensão de seu relato de vida. Flui entre premissas jornalísticas e a flexibilidade das trocas de turnos do ambiente de conversa com improvisações, observações e comentários. O objetivo de revelar a personalidade dos convidados acaba por trazer aspectos pessoais desses, entretanto, a compor uma das abordagens. O entrevistado é exemplo a agregar conhecimento, mas, também testemunho conector de ampla reflexão social. REFERÊNCIAS BRAGA, José Luiz. Sobre a conversação. In: FAUSTO NETO, Antonio; DAYREL, Sérgio; BRAGA, José Luiz (orgs.). 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Tese de Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas, Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, 2010. . “Conversa leve” e “embate intelectual”: Marília Gabriela entrevista. In Colóquio sobre televisão, Bahia: 2008. Disponível em: <http://www.tverealidade.ufba.br>. Acesso em 23 de junho de 2014. VOGEL, Daisi. A entrevista, um traçado aberto. In MAROCCO, Beatriz (org.). Entrevista na prática jornalística e na pesquisa. Porto Alegre: Libretos, 2012. 65 Revista TV Sul Programas: o registro dos primeiros passos da Televisão no Rio Grande do Sul Filipe Peixoto38 Eutalita Bezerra39 Laira Campos40 Mariana Oselame41 Resumo: Na década de 60, a Revista TV Sul Programas era uma referência para saber o que passaria na televisão e ficar por dentro das novidades sobre o mundo em movimento retratado em uma tela. Este trabalho busca apontar referências no periódico sobre a tecnologia da época, as primeiras experiências das emissoras gaúchas e os tensionamentos de formatos, como o embate entre a programação ao vivo e a chegada do videotape. Palavras-chave: Televisão; História da televisão; Comunicação. Há pouco mais de meio século, começava a circular pelas ruas de Porto Alegre uma “revista que vive da televisão e para a televisão” (Revista TV Sul Programas, 1963, ed.10). A Revista TV Sul Programas foi publicada de 1963 a 1969, contemporânea de uma década marcada pela expansão, modernização e popularização da TV como veículo de comunicação de massa. A publicação tinha o propósito de divulgar de forma ordenada as atrações exibidas nas duas únicas emissoras da época no Rio Grande do Sul: a TV Piratini, fundada em 20 de dezembro de 1959, e a TV Gaúcha42, que estreou em 29 de dezembro de 1962. A revista também apresentava aos leitores o universo da televisão, dando a palavra aos profissionais da área, contando os bastidores e debatendo temas que envolviam um mundo em movimento, em preto e branco, retratado na incipiente TV brasileira. A primeira edição da Revista TV Sul Programas é de 16 de agosto de 1963, com tiragem de 20 mil exemplares. Inicialmente a distribuição era gratuita, no entanto, antes de completar um ano, passaria a ser cobrada sob a justificativa de se 38 Mestrando em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa GPTV – Televisão e Audiência. Email: [email protected] 39 Mestranda em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa GPTV – Televisão e Audiência. Email: [email protected] 40 Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa GPTV – Televisão e Audiência. Email: [email protected] 41 Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa GPTV – Televisão e Audiência. Email: [email protected] 42 Em 1967, a TV Gaúcha afilia-se à Rede Globo. Posteriormente, em 1983, passa a se chamar RBS TV. 66 viabilizar economicamente. O periódico, que tinha formato de bolso, era publicado quinzenalmente e tem como antecessor um folheto simples, também voltado para anunciar a programação televisiva: Originara-se de uma espécie de folheto que circulara anteriormente, também de maneira gratuita. O sucesso levou seus idealizadores a transformarem a publicação em revista. A empresa responsável era a Ferreyro & Cia. Ltda, tendo como diretor responsável Breno Ribeiro Wurdig, e diretor comercial Jorge Guimarães Ferreyro. O escritório da revista estava sediado na Rua Dr. Flores, 330, sala 20, em Porto Alegre. (Carvalho, Hohlfeldt, 2015, não paginado) A estreia da publicação ocorre exatamente um ano após a publicação do Código Brasileiro de Telecomunicações, primeira legislação importante para o setor, que “inovava na conceituação jurídica das concessões de rádio e televisão, mas pecava em continuar atribuindo ao executivo poderes de julgar e decidir, unilateralmente, na aplicação de sanções ou de renovação de concessões” (Mattos, 1990, p.12). Mesmo em fase de implementação, a televisão já era responsável por 24,7% dos investimentos publicitários do país (Mattos, 1990). Um registro histórico dos primeiros passos da TV no Estado tão rico em detalhes é incomum, para não dizer uma raridade. Nos jornais tradicionais, pouco espaço era destinado a notícias sobre a televisão, considerada “uma aventura e um empreendimento pouco sério para a seriedade do jornalismo politizado do Rio Grande do Sul” (Kilpp, 2015, p. 06). Kilpp ainda destaca, com base na análise dos jornais da época, as três circunstâncias em que o jornalismo impresso se permitia falar em televisão: 1. diariamente, divulgando e comentando a programação dos canais; 2. quando surgiu ou desapareceu uma emissora, ou foi introduzida uma nova tecnologia; 3. quando se comemorou um determinado número de anos de uma emissora, transformando-se o jornal nesse caso também em memória, porque em geral a notícia remeteu a uma retrospectiva, baseada em notícias anteriores e/ou em depoimentos de narradores presentes. (Kilpp, 2013, p. 03) No caso da Revista TV Sul Programas, trata-se do oposto. De forma entusiasmada, o periódico falava sobre a “ciência eletrônica para a satisfação da criatura humana” (Revista TV Sul Programas, 1963, ed.01) ou então do “milagre da imagem no vídeo que permite ouvir e ver uma cantora” (Revista TV Sul Programas, 1963, ed.01), para citar apenas algumas frases contidas já na primeira edição da publicação. São inúmeras as contribuições possíveis de uma análise dos exemplares da publicação, que estão na sua quase totalidade digitalizados no acervo digital no Núcleo de Pesquisa em 67 Ciências da Comunicação43, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Como recurso metodológico, partimos de uma análise documental, visando uma representação condensada da publicação, para facilitar posterior consulta e armazenamento (Bardin, 2011, p. 52). A partir da observação das publicações digitalizadas, buscou-se dar um tratamento no conteúdo dos documentos, selecionando as informações relacionadas à implementação da televisão no Estado, assim cumprindo um dos objetivos da análise documental, que é “dar forma conveniente e representar de outro modo essa informação, por intermédios de procedimentos de transformação” (Bardin, 2011, p.51). Este trabalho se propõe a destacar os apontamentos sobre a descrição da implantação da TV no Rio Grande do Sul, com atenção especial às questões técnicas, como as tecnologias da época, os relatos de transmissões pioneiras, o alcance do sinal e o próprio acesso do público aos televisores, num tempo em que o aparelho ainda era um luxo restrito a poucos – na época do surgimento da revista, existiam aproximadamente 1 milhão de televisores no país (Mattos, 1990). Cientes da necessidade de se dar um passo de cada vez na observação desse material, optamos por analisar o primeiro ano de circulação da revista, que abrange os anos de 1963 e 1964, em um total de 23 exemplares (excluída a edição número 03, que não consta no acervo digitalizado, tampouco no físico). A revista se dividia predominantemente em dois tipos de conteúdo: a grade de programação dos canais e as reportagens, que traziam informações sobre as emissoras, as novidades tecnológicas, esclarecimentos sobre o universo da televisão e, muito frequentemente, o perfil de profissionais que atuavam nos veículos. Essa vocação da revista de aproximar dos leitores os trabalhadores que faziam a televisão da época é destacada no início de um texto que apresenta o chefe de programação do canal 12, Cesar Walmor: TV Sul, quinzenalmente, vai fazendo desfilar em suas páginas os elementos mais representativos da televisão local: tanto os que desempenham seu papel no vídeo, como os “invisíveis” (termo usado pelos nossos colegas de S. Paulo), todos constituindo essa grande equipe de homens e mulheres, moços e moças, que trabalham diuturnamente para a satisfação de quase meio milhão de telespectadores no Estado e para o desenvolvimento econômico através da força publicitária da televisão. (Revista TV Sul Programas, 1963, ed.08) Para este trabalho, nossa análise se detém apenas nas reportagens, em especial nos textos que trazem informações que contribuem para recuperar a história da 43 O acervo digitalizado da revista pode ser acessado no seguinte endereço eletrônico: http://eusoufamecos.uni5.net/nupecc/conteudo/acervodigital/revista-tv-sul-programas/ 68 implementação da TV no Estado. Um dos pontos recorrentes nos textos é a consciência das limitações do número de televisores, em que se evidencia a prática de amigos e familiares de se reunirem para acompanhar as atrações na frente da telinha. Em diversas passagens, a revista apresenta um cálculo de que um aparelho televisor é assistido, em média, por quatro pessoas. Em resposta à carta de um leitor, na edição 08, o periódico se surpreende com uma audiência acima do costume: "Vimos no seu cupom que dez pessoas assistem diariamente televisão em sua casa. Televizinhos ou familiares?" (Revista TV Sul Programas, 1963, ed.08). Na mesma edição, em coluna assinada pelo diretor administrativo da TV Piratini na época, José Moreira da Fonte, o autor escreve sobre a dificuldade em manter a audiência durante as férias, já que as famílias deixam suas casas e, por conseguinte, seus televisores ficam para trás: “Haverá grande deslocamento de pessoas para as praias, em sua totalidade telespectadores, o que deverá influir grandemente no número se receptores desligados na capital” (Revista TV Sul Programas, 1963, ed.08). No mesmo texto, ainda enfatiza que uma antena instalada em Osório, no litoral norte gaúcho, terá condições de expandir o sinal para as praias. Já na edição 05, uma reportagem reforça a importância da TV para congregar as pessoas: “é fácil receber bem às sextasfeiras: abra uma garrafa de Drury’s44, ligue o aparelho de televisão e seus amigos ficarão contentes” (Revista TV Sul Programas, 1963, ed.05). A revista também exalta as conquistas, em especial os pioneirismos de ordem técnica. Um dos registros trata da primeira transmissão externa em movimento: Realmente excepcional a transmissão da Festa dos Navegantes pela TV Piratini. Excepcional em todos os seus aspectos, e, principalmente, porque foi a primeira transmissão externa em movimento realizada no Brasil. A equipe do Canal 5 não mediu esforços para proporcionar aos telespectadores a oportunidade de acompanharem, pari passu, no recesso de seus lares, os principais aspectos da tradicional festa dos navegantes. (Revista TV Sul Programas, 1964, ed.13) Vale lembrar das dificuldades para a tecnologia da época em realizar tal feito, o que aprisionava as atrações em estúdios e tornavam as transmissões fora da emissora uma raridade. “Os aparelhos de transmissão em preto e branco não eram portáteis, eram pesados e uma transmissão externa com link de micro-ondas era uma aventura com grandes riscos de fracasso” (Kilpp, 2015, p. 05). Na terceira edição da revista, os editores parabenizam as reportagens referentes à chegada da recém eleita Miss Universo, Ieda Maria Vargas: “Por fim, um presente maravilhoso da televisão ao interior do estado, que pode acompanhar a recepção à Miss Universo. Quanta diferença dos idos 44 Marca de whisky. 69 tempos de Iolanda Pereira!” (Revista TV Sul Programas, 1963, ed.03). Registre-se também a nota da edição 12, denominando como “façanha” a exibição de um jogo de futebol: Registre-se com grau máximo a verdadeira façanha dos canais 5 e 12, ao transmitirem aos telespectadores gaúchos, poucas horas após o término do jogo Grêmio X Santos, no Pacaembu, o vídeo-tape que nos mostrou todo o desenrolar do embate, sem falhas, perfeito na imagem e no som. Talvez se torne a reportagem esportiva do ano, pelo interesse que despertou, pelas características de sua apresentação. (Revista TV Sul Programas, 1964, ed.12) No entanto, a tecnologia também foi protagonista de críticas pelas páginas da TV Sul Programas. O tensionamento mais evidente no primeiro ano de circulação foi entre o surgimento do videotape (fita magnética) e a programação ao vivo. O primeiro inicialmente mais identificado com a propagação de conteúdo de outros estados ou até de outros países, enquanto o segundo é reiteradamente relacionado à valorização dos talentos locais. Antes do videotape, tudo produzido pela TV precisava ser ao vivo, o que naturalmente gerava um custo expressivo para as emissoras. A chegada do VT, além de propiciar a correção de erros e reprises, também possibilitou o intercâmbio de programas entre as emissoras, como explica Reis: Com a disseminação do vídeo-tape, a partir de 1963/64, as televisões localizadas nas duas principais cidades brasileiras, Rio de Janeiro (já não era a Capital Federal, mas conservava todo o poder, o charme e a intensa vida artística que mantém até os dias atuais), e São Paulo (eterna capital econômica, face a suas capacitações técnicas, artísticas e econômico financeiras), começam a se transformar em emissoras geradoras de produções nacionais, mas, ainda, sem serem cabeças de rede. Neste período, os programas eram vendidos um a um para as emissoras de outras cidades que se interessassem em comprá-los. (Reis, 2012, p. 29) É inegável a contribuição do videotape para impulsionar a TV no início da década de 60 e possibilitar a implantação de uma estratégia de programação horizontal. O videotape permitiu a veiculação de um mesmo programa em diversos dias da semana, o que por sua vez tornou possível a formação do hábito de assistir televisão rotineiramente (Mattos, 1990). Mas os “enlatados”, como também eram chamados, sofriam resistência por parte de profissionais locais de televisão, que percebiam no formato uma ameaça ao espaço de talentos regionais, que tinham presença garantida nas atrações ao vivo das emissoras. A Revista TV Sul sempre fez questão de deixar claro sua posição: “nossa intenção é prestigiar os programas ao vivo de nossas emissoras, dando também aos filmes e tapes a oportunidade de aparecerem, mas no seu devido lugar” (Revista TV Sul Programas, 1964, ed. 15). Em outro texto com carga opinativa, os editores escrevem: “não 70 censuramos as direções, nem os patrocinadores, que preferem as fitas gravadas e os filmes. (...) Mas, nem por isto, deixamos de lamentar o abandono dos programas ao vivo, que deveriam ser incentivados” (Revista TV Sul Programas, 1964, ed. 11). A tecnologia por si só não era combatida, mas sim o que ela representava em termos de conteúdo para a programação na época, como se percebe neste parágrafo em que a revista pede mais qualidade nos “enlatados”: Por que em TV tem que prevalecer os enlatados de “bang-bang”? Está na hora de mudar, está na horas das direções de TV escolherem melhor, e se não houver o que escolher, que se tomem outras iniciativas. Não há mal que sempre dure e bem que não se acabe... (Revista TV Sul Programas, 1964, ed. 12) Por diversas vezes, os entrevistados da revista – normalmente profissionais da área da televisão – também deixavam registrada sua opinião sobre o uso do videotape. A maioria apresentava críticas para a possibilidade de desvalorização dos artistas locais, como fez o apresentador de programas Gudy Emunds. Segundo ele, “nenhuma mensagem filmada, ou gravada, por mais bem realizada que seja, tem a penetração e receptividade, a espontaneidade da mensagem ao vivo” (Revista TV Sul Programas, 1964, ed. 10). Em texto escrito pela escritora de peças teatrais, Maria Panerai, intitulado “A ‘febre’ dos vídeo-tapes”, a autora escreveu que “rodar um filme decadente de uma câmera não representa arte” (Revista TV Sul Programas, 1964, ed. 14). A escritora complementa: “estamos todos os dias diante de nosso televisor assistindo filmes, filmes, filmes...! E vamos conhecer como vive o camponês do fim do mundo quando ignoramos porque morrem os nossos lavradores” (Revista TV Sul Programas, 1964, ed. 14). Posicionamentos semelhantes podem ser encontramos em outros depoimentos documentados no primeiro ano de circulação do periódico. Esses apontamentos, que trazem registros sobre os telespectadores, os teleprofissionais, as conquistas e os desafios daquela época, são apenas os primeiros passos de uma pesquisa que pretende encontrar nas páginas da Revista TV Sul Programas informações e impressões valiosas sobre a primeira década da televisão no Rio Grande Sul. A riqueza de detalhes presentes no acervo do periódico, já digitalizado, é uma fonte primária inesgotável para inúmeras pesquisas que ainda estão por vir. Esses estudos, em andamento no Grupo de Pesquisa GPTV Televisão e Audiência, que reúne pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, poderão preencher lacunas e construir a muitas mãos mais uma versão da história da televisão gaúcha e brasileira. 71 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 2011. CARVALHO, Caroline Corso; HOHLFELDT, Antonio. Revista TV Sul - Uma programação televisiva. Acervo digital do Núcleo de Pesquisas em Ciências da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS. Disponível no site http://eusoufamecos.uni5.net/nupecc. Acessado em 10 de setembro de 2015. KILPP, Suzana. História da televisão no Rio Grande do Sul – apontamentos sobre a invenção do passado. Disponível em http://www.suzanakilpp.com.br/historiars.php. Acessado em 08 de setembro de 2015. KILPP, Suzana. Radiografia da televisão no Rio Grande do Sul: uma história de muitos canais. Disponível em http://www.suzanakilpp.com.br/historiars.php. Acessado em 08 de setembro de 2015. MATTOS, Sérgio. Um Perfil da TV Brasileira: 40 anos de história – 1950-1990. Salvador: Associação Brasileira de Agências de Propaganda, 1990. Disponível em http://www.andi.org.br/, acessado em 05 de setembro de 2015. REIS, Sérgio. O backstage da televisão no Rio Grande do Sul. Dissertação de Mestrado para Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, setembro de 2012. 72 Mesa 3- CONVERGÊNCIA A TV no webjornalismo: TV Folha, TV Estadão e ZHTV45 COSTA, Luciano46. Universidade Federal de Santa Catarina. Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Telejornalismo (GIPTele) Núcleo de Estudos e Produção Hipermídia Aplicados ao Jornalismo (Nephi-Jor) Grupo de Pesquisa Hipermídia e Linguagem Resumo: Em um mundo cada vez mais digital, visual e convergente (JENKINS, 2008), tradicionais veículos de comunicação impressos, de pequenas publicações à grandes grupos de mídia, são atraídos à produção de webjornalísticos audiovisuais (NOGUEIRA, 2005). Diante disso, o presente artigo procura descrever o percurso dos jornais impressos Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Zero Hora às suas produções audiovisuais em ambiente web. Palavras-chave: convergência. Jornalismo, webjornalismo, telejornalismo, ciberespaço, 1. Introdução Os brasileiros passam três horas a mais assistindo vídeos online do que outros países latino-americanos. No total, são 13h36min semanais assistindo vídeos por streaming, enquanto que pela televisão, são 5h30min. Esses são dados da comScore Inc., empresa norte-americana de medições e análises digitais sobre o comportamento do consumidor em relação à web, aparelhos móveis e a TV (BANKS, 2015). Inerente à discussão dos meios de comunicação e sua relação com a internet e as novas tecnologias, está a compreensão da convergência das mídias e, respectivamente, dos conteúdos e linguagens. Em um mundo cada vez mais digital e visual, a necessidade de acompanhar sua audiência fez com que tradicionais veículos de comunicação impressos, de pequenas 45 Trabalho apresentado no XIII Seminário Internacional de Comunicação. PUC RS. 46 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, jornalista pela Universidade Federal do Pampa e pesquisador do GIPTele, e Nephi-Jor/GPHL. E-mail: [email protected] 73 publicações à grandes grupos de mídia, fossem atraídos à produção de conteúdo audiovisual para a web. A difusão da internet e a convergência dos meios de comunicação trouxeram mudanças tanto para o modo de produção quanto para o consumo dos produtos jornalísticos. A popularização da web justifica-se pelo crescimento acelerado a nível mundial e suas potencialidades tecnológicas, além da força mercadológica e rentável fonte de receita. Hoje, estações de rádio possuem sites com transmissão online, vídeos por streaming e seções de notícias; emissoras de televisão e jornais impressos possuem portais de conteúdo com catálogo de vídeo, rádios online, notícias, blogs etc. Entre as múltiplas plataformas de produção de conteúdo na mídia hoje, estão as chamadas TVs online - transmissão de programas televisivos/produções audiovisuais pela internet, sob demanda ou streaming. 2. Produção em um mundo convergente A convergência midiática (JENKINS, 2008), como resultado das transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais da contemporaneidade, proporcionou ao público mudanças dos meios tradicionais e maior interação e participação. Os dispositivos - televisores, aparelhos de rádios, computadores e celulares - não são mais apenas ferramentas de recepção, mas de produção e compartilhamento de conteúdo dos próprios usuários. A convergência, vale ressaltar, não está no avanço tecnológico, mas na nova configuração do consumo, interações sociais e nas relações dos usuários com as novas tecnologias. Por convergência midiática, Jenkins define: [...] o fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. (JENKINS, 2008, p. 29) Jenkins (2008) observa a convergência mais como um processo do que uma mudança tecnológica em si, pois os “consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos”. Isso nos leva a outro conceito desenvolvido por Jenkins para expressar essa noção de convergência: a narrativa transmidiática, que “refere-se a uma nova estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da participação ativa de comunidade de conhecimento”. 74 Estes consumidores assumem “o papel de caçadores e coletores, perseguindo pedaços da história pelos diferentes canais, comparando suas observações com as de outros fãs” para que “tenham uma experiência de entretenimento mais rica” (p. 47). A exigência dos atuais consumidores - cada vez mais conectados, é notável. O consumo das mídias, que até a primeira década dos anos 2000 era basicamente linear, hoje está cada vez mais fragmentado, ajustado ao estilo de vida das pessoas. Um exemplo é o Binge Watching - termo em inglês para o hábito de assistir séries e filmes de uma única vez. Atitude que hoje só é possível pelo comportamento de consumo por demanda, trazido por serviços de streaming de mídia como o Netflix47 e Apple TV48. O cenário convergente em que vivemos permite - e pode ser percebido como tal - analisar novos traços comportamentais dos usuários: cada vez mais pessoas acessam a internet através do aparelho de tevê e assistem a programação da tevê através da internet. Apesar da rede mundial de computadores figurar há mais de 40 anos, a noção da internet como espaço, trazida por Pierre Levy (1997), figura há duas décadas conceituando o conjunto de computadores interligados, o ciberespaço: [...] o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores. Essa definição inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos (aí incluídos os conjuntos de redes hertzianas e telefônicas clássicas), na medida em que transmitem informações. Consiste de uma realidade multidirecional, artificial ou virtual incorporada a uma rede global, sustentada por computadores que funcionam como meios de geração de acesso. (LEVY, 1997, p. 92) A realidade multidirecional deste espaço - aberto - permite que a internet alterese e se ajuste à necessidade de seus usuários. Foi o que aconteceu a partir dos anos 90, quando ela começa a desenvolver-se, muito em virtude do jornalismo e da publicidade. No ambiente web, o jornalismo apresentou-se em fases de evolução categorizadas por Luciana Mielniczuk (2001), como: 1) transposição - os jornais impressos eram transcritos para a internet tal qual a sua versão impressa; 2) metáfora - 47 48 http://www.netflix.com http://www.apple.com.br/ appletv/ 75 pequenas experiências e inovações a fim de explorar as características do novo meio, como hiperlinks, e-mail, fórum de debates etc.; 3) webjornalismo - momento atual e avançado de toda a estrutura técnica referente à internet. É neste contexto convergente e de produções webjornalísticas que surgem, há menos de uma década, as TVs online - canais online de vídeos produzidos para a internet. Partindo deste pressuposto, o objetivo deste trabalho é descrever o percurso dos jornais impressos Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Zero Hora - até seus canais online TV Folha, TV Estadão e ZHTV. É importante ressaltar que este trabalho não tem como objetivo analisar o discurso e linguagem das produções telejornalísticas online, mas sim mapeá-las quanto ao número, gêneros, formatos e categorias de convergência. Sob o afixo TV, jornais como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Zero Hora superam a sessão de vídeos de seus portais e começam a produzir conteúdo exclusivo para suas próprias “TVs”. Neste contexto a palavra televisão, enquanto aparelho eletroeletrônico, é deixado de lado, mas mantém o significado de “tela de visão”: A palavra televisão deriva de tela de visão, ou seja, de uma tela de superfície de armazenamento eletrostático (...) na qual a informação é visualmente apresentada; é, pois, o dispositivo utilizado para exibição de dados num terminal – o vídeo. A tela da televisão, seguindo a gênese da imagem em movimento, transformou-se num espaço de apresentação da realidade, pois o imediatismo de sua reprodução técnica lhe concedia o status de recorte do real, função reforçada pelos cenários específicos que reproduziam as cenas da vida cotidiana. (EMERIM: 2014). O telejornalismo, como “prática de produção de produtos informativos para a televisão” (EMERIM, 2014), no atual cenário convergente entra em evidência com um novo perfil, apropriando-se do ciberespaço e suas potencialidades. Tradicionais veículos de comunicação buscam na internet não só um espaço para promover seus conteúdos, mas também apropriar-se da linguagem audiovisual e telejornalística - exterior à sua produção enquanto publicação impressa. A prática do telejornalismo na internet proporciona e reflexão das características do próprio meio. Conforme aponta Gomes (2007, p. 10) “a notícia seja ela ouvida no rádio, lida nos jornais ou vista na televisão, ganha muito de sua configuração das características do próprio meio no qual aparece”. Isso acontece também com os 76 materiais postados na internet – seja em texto, foto, vídeo ou áudio. Por isso, entender a notícia enquanto um gênero discursivo (BENETTI, 2008) e os programas televisivos ou na internet como gêneros midiáticos (GOMES, 2007; JOST, 2004) leva à reflexão das características dos formatos e linguagens da 'televisão' feita para a internet. 3. Jornalismo impresso e tevês online Seguindo a tendência internacional, tradicionais jornais impressos brasileiros tem explorado a produção multimídia e em TVs online, promovendo seu conteúdo e experimentando novos formatos. Destacam-se, neste trabalho três produções: TV Folha, do jornal Folha de S. Paulo; TV Estadão, do jornal O Estado de S. Paulo; e ZHTV, do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. 3.1 TV Folha A trajetória online do jornal Folha de S. Paulo começa em 1996, com o lançamento do serviço Universo Online - UOL - com o site Folha Online. Nesta época as redações do jornal impresso e digital eram separadas. A união das duas ocorreu apenas em 2010, após reforma gráfica e editorial que empreendeu o site Folha.com. Os diversos sites do jornal sempre mantiveram uma sessão específica para vídeos, porém a produção acontecia de modo esporádico. Inicialmente hospedado no site TV UOL, a TV Folha estreou em 2007 com uma programação independente do jornal impresso. Os vídeos abordavam noticias variadas, sem separação por editorias, nem cenário e apresentadores fixos. O link dos vídeos era disposto verticalmente na página, sem indexação de conteúdo, sendo o usuário o responsável pela escolha, multilinear (PALACIOS, 2005; OLIVEIRA, 2011) do que gostaria de assistir. Os programas da TV Folha nesta época não possuíam vinhetas de abertura, nem repórteres com microfones na mão, a apresentação das matérias geralmente era direto da redação da então Folha Online, pelo jornalista que as produziu. Em 2011, a TV Folha foi teve mudanças fundamentais em sua estrutura. A chefia de edição passou a ser do jornalista Fernando Canzian, também apresentador do agora “TV Folha”, produção em forma de programa que reúne matérias, reportagens, coberturas e videodocumentários. Um ano após sua reformulação - e positivo destaque junto ao público - a produção foi convidada pela emissora TV Cultura para exibir seu material em um 77 Atualmente, a TV Folha mantém um perfil inovador em suas coberturas. Na transmissão dos protestos de rua em 2013, foram usadas pela equipe de reportagem um drone - veículo aéreo não tripulado - e o Google Glass - óculos com funcionalidades de smartphones, ambas as tecnologias para gravar e transmitir ao vivo os protestos6. No ano seguinte, o documentário “Junho, O Mês Que Abalou o Brasil” foi lançado no cinema nacionalmente, marcando o primeiro longa metragem produzido pela Folha. Além disso, destaca-se por ter definido uma linguagem própria, auto identificada como mini-documentários, formato parecido com as matérias tradicionais do jornal Folha de S. Paulo. Inicialmente produzindo um programa semanal, hoje a TV Folha produz vídeos diários para todas as editorias do jornal, além de entrevistas e debates ao vivo. 3.2 TV Estadão Em 16 de julho de 2007 é lançada a reformulação total do portal Estadão 7, do jornal O Estado de S. Paulo. Dentre as novidades do site, lançado pela primeira vez no ano 2000, estava a criação da área multimídia, com vídeos, podcasts, tags e blogs. Idealizado pelo jornalista Felipe Machado, surge a TV Estadão8 - que originalmente era apenas a sessão de vídeos do portal, destacando-se com a queda do avião da TAM no mesmo ano. Em entrevista ao Portal Imprensa9, o editor-executivo de Conteúdos Digitais do Grupo Estado, Luis Fernando Bovo, revelou que no início, a TV Estadão mantinha uma pauta própria, mas somente com a aproximação com o jornal impresso ela ganhou relevância. Produtora de seu próprio conteúdo, ela destaca-se por sua programação ao vivo e entrevistas com especialistas e formadores de opinião, além de reportagens produzidas por equipes da Agência Estado, do mesmo grupo, e vídeos produzidos pelas diferentes 5 http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/noticias/2014/04/14/TV-Folha-sai-da-grade-daCultura.html 6 http://folha.com/no1326681 7 http://estadao.com.br 8 http://tv.estadao.com.br 9 http://portalimprensa.com.br/noticias/brasil/61591 78 Destaca-se nas produções da TV Estação o espaço disponibilizado ao debate e à opinião. Em programas ao vivo, especialistas e jornalistas experientes da redação do jornal discutem temas atuais e diários, com dados apurados na rua e disponibilizados ao vivo, na redação. O espaço reservado para a gravação dos materiais é a própria redação, equipada com estrutura de captação e gravação. A equipe de produção dos vídeos da TV Estação é composta por editores, coordenador técnico, coordenador de conteúdo, editores e estagiários, responsáveis pelas pautas, produção, operação de câmaras e dispositivos e edição. 3.3. ZHTV O jornal Zero Hora foi fundado em 4 de maio de 1964 em Porto Alegre, por Maurício Sirotsky Sobrinho. Mantido pelo Grupo RBS, é o sexto maior jornal impresso do Brasil segundo a Associação Nacional de Jornais10. Após diversas modificações importantes em layout e editoração, em 19 de setembro de 2007, o jornal Zero Hora lança oficialmente seu novo site, alinhando-se à tendência de outros veículos em transformar seu site institucional - que até então só transcrevia as matérias impressas - em um portal de conteúdo atualizado 24 horas. Neste novo site, a editoria multimídia deu início a produções sistemáticas e que normalmente acompanhavam e complementavam as reportagens especiais do jornal impresso. E em junho de 2013, foi lançado oficialmente o site ZHTV11. O site ZHTV é dividido nas categorias Bem-Estar, Casa&Cia, Donna, Economia, Educação, Gastro, Gastronomia, Geral, Meu Filho, Mundo, Opinião, Paulo Sant'Ana, Polícia, Política, Segundo Caderno, Site ZH, Tecnologia, Trânsito, Verão, Vídeo minuto e zhEsportes - que atuam mais como tags para indexação dos programetes diários, e vídeos de registros documentais rápidos dos fatos do dia, do que propriamente editorias. 10 11 http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no-brasil/maiores-jornais-do-brasil http://videos.clicrbs.com.br/rs/zerohora 79 Quanto à linguagem, tem inspirações em documentários para cinema e televisão, mantendo entre suas principais produções a editoria zh.doc, com videodocumentários produzidos pela equipe de fotógrafos e repórteres do site. A implantação do ZHTV esteve a cargo da jornalista Marlise Brenol, que já atuava como editora de jornalismo digital multimídia na redação do jornal Zero Hora. A proposta inicial de Brenol (2013), em apresentação hospedada em sua conta pessoal no aplicativo Prezi, previa a captação das imagens em câmeras fotográficas e smart phones equipados com lentes e tripés personalizados, prezando a mobilidade e agilidade. Os formatos sugeridos lançam mão de vidrografismo 12, programetes com os jornalistas do jornal Zero Hora como âncoras, webdocumentário com narrativa ancorada em imagens, sobe som e trilhas. E equipe designada para a produção seriam fotógrafos, que atuariam como videorrepórteres (definir - jornalista que trabalha sozinho), produtores e editores de vídeos. E equipe inicial do projeto foi composta por 26 pessoas - 16 fotógrafos, 1 fotojornalista, 5 assistentes, 1 assistente técnico e 3 gerentes - com a meta de produção de 1 vídeo quinzenal com linguagem inovadora, 4 reportagens factuais, 6 programetes gravados na redação do jornal e 4 vídeos com pauta dos cadernos Sobre Rodas, Casa & Cia e Gastronomia. 4. Considerações Ao observar um breve percurso das TVs online dos jornais impressos Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Zero Hora, podemos apreender alguns aspectos comuns às produções e também reflexões. A apropriação dos veículos impressos do ambiente web traz uma dualidade na percepção da internet: ela agrega ou compete com os demais meios? Se percebermos a rede como um meio de comunicação, as empresas tornaram-se mais competitivas mercadologicamente, uma vez que a internet concorre (em termos de anúncio e publicidade) com os demais meios de comunicação. Se percebermos a internet como plataforma, o cenário torna-se mais ideológico e contributivo, uma vez que ela proporciona uma ferramenta agregadora de conteúdo. 12 Técnica de edição de material audiovisual com efeitos, animações, imagens plásticas e design gráfico. 80 Estas TVs surgem com uma estrutura diferente da TV comercial - rotina de produção de conteúdo, qualidade audiovisual, gestão de negócios etc . A TV Folha é um exemplo de um novo modelo, ao exibir inicialmente seu conteúdo na TV aberta, percorreu o caminho inverso de tevês tradicionais, que no advento da internet transpuseram seu conteúdo para a web. A experimentação também é uma marca deste novo fazer jornalístico, ao mesclar gêneros e formatos consolidados no telejornalismo com abordagens inovadoras e atraentes para o público. Outro ponto em comum são as três produções utilizarem suas próprias redações como cenários para os programas e também manterem contas no YouTube - TV Folha13, TV Estadão14 e Zero Hora15 -, concomitante à sua armazenagem de seus próprios sites. O ambiente virtual modificou a dinâmica de trabalho e também a maneira como a audiência consome as informações produzidas pelas mídias. Os jornalistas de jornais impressos hoje escrevem para a internet, produzem material audiovisual e são também apresentadores de programas e mediadores de debates. Um questionamento comum na popularização da internet anos 2000 era a possível derrocada das mídias tradicionais frente à internet. Jenkins (2008) responde de uma maneira clara que nenhum meio tradicional irá morrer, o que mudará é a maneira com que os usuários lidariam com a convergência das mídias e o seu consumo. Um fator favorável à implantação de TVs online, além das facilidades da internet, está no barateamento dos equipamentos profissionais e os diversos gadgets disponíveis no mercado. Qualquer pessoa com um celular com câmera hoje pode produzir um material independente e divulgar sua produção com o mundo. O desafio do profissional de jornalismo hoje não é mais técnico - afinal pode-se fazer muito com pouco - mas sim a inovação de formatos e textos priorizando o interesse a interação com o público. A análise das novas linguagens e discursos trazidos pelas TVs Online será a próxima etapa da pesquisa que motivou os autores a construir o presente artigo. 13 http://www.youtube.com/user/Folha http://www.youtube.com/user/estadao 15 http://www.youtube.com/user/chamadaszh 14 81 As produções podem ser veiculadas de forma unitária ou integradas a outros conteúdos, em diversos meios relacionados ao assunto abordado. Pode-se perceber com isso o início de um processo de convergência de mídias: TV Folha, TV Estadão e ZHTV passam a produzir conteúdos que serão agregados em diferentes meios, reunindo jornalistas de diferentes áreas para a produção de uma mesma matéria ou especial. Além disso, estão instrumentalizando profissionais na cobertura multimídia de eventos. Referências BANKS, Alex. Brazil Digital Future in Focus. comScore Inc. Disponível em < www.comscore.com> Acesso em 15 de novembro de 2015. BENETTI, Marcia. O jornalismo como gênero discursivo. 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Lavina Madeira Ribeiro. 83 A Centralidade da Televisão na Era do Digital: Uma Análise dos Assuntos mais Comentados no Twitter Renata Pinheiro Souto49 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS RESUMO Esta investigação buscou identificar como se estabelecem as relações entre os indivíduos e os meios de comunicação da atualidade. Mais do que isso ela busca investigar se há um descompasso entre os temas tratados pela TV e os temas tratados nos sites de redes sociais. Para tanto inicialmente se fará uma explanação teórica utilizando fundamentos de Juremir Machado, Dominique Wolton, Henry Jenkins e Raquel Recuerdo. Posteriormente se fará uma análise dos assuntos mais comentados no site Twitter a fim de verificar se a TV permanece como pano de fundo das conversas que se estabelecem na Internet. PALAVRAS-CHAVE: comunicação; TV; laço social; internet; opinião pública. INTRODUÇÃO O que pode haver em comum entre um moderno apartamento recheado da mais alta tecnologia e uma pequena casa de quarto e sala em um município no interior do país? Ambas as residências devem ter pelo menos um aparelho de televisão. Hoje, pouquíssimas são as casas brasileiras que não possuem pelo menos um televisor, e segundo pesquisa recente da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, 95%50 dos brasileiros a apontam como a mídia mais utilizada. A pesquisa revelou, ainda, um aspecto muito importante sobre o hábito de assistir TV dos brasileiros, uma vez que aponta que grande parte deles assiste televisão praticando outra atividade simultaneamente. “Comer alguma coisa (49%), conversar com outra pessoa (28%), usar o celular (19%) e usar a internet (12%)” (p.16) foram as respostas obtidas nos questionários aplicados. A partir dessas informações se pode inferir algumas coisas: A televisão possui um papel central e 49 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 50 Disponível em: http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativasequalitativas-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf Acesso em: 21 jun 2015 84 aglutinador, já que serve como pano de fundo para as conversas entre as pessoas. Mas também aponta para o hábito de se assistir TV utilizando a Internet pressupondo que exista alguma conexão entre o conteúdo da TV e a troca de mensagens na rede mundial de computadores. O objetivo desse trabalho, portanto, é estudar o papel da televisão numa sociedade onde a audiência de massa foi profundamente alterada pela sociedade em rede. A verticalização da comunicação e as rígidas estruturas do modelo industrial estão sendo confrontadas pela horizontalidade das redes sociais que possuem distintos mecanismos de comunicação e posicionamento. Hoje, os telespectadores têm maior poder de manipulação e de modificação do que recebem das grandes estruturas de produção. Relativizam o poder da emissão-recepção, já que passam a ser também produtores de mensagens. Assim sendo, como podemos estudar o comportamento dos indivíduos e sua relação com os veículos de comunicação? A ideia proposta deste trabalho é que a TV permanece sendo a principal fonte do debate social, ou seja, permanece pautando as conversas do dia-a-dia da sociedade brasileira. Da cultura de massa às tecnologias do imaginário Durante muitos anos se falou em hegemonia da mídia embora trate-se de um clichê que atravessou o século XX e ainda não foi totalmente dissipado. A televisão foi considerada por muitos estudiosos como principal veículo de comunicação de massa bem como uma tecnologia de controle da população, ou seja, uma ferramenta que aliena e manipula os indivíduos os impedindo de tomar consciência dos problemas sociais. Muitas teorias foram desenvolvidas a partir do século XIX entre elas a teoria do Agenda Setting. O agendamento trabalha com a hipótese de que a mídia é apresentada como agente modificador da realidade social, apontando ao público receptor sobre o que se deve informar. A influência não reside na maneira como os mass media fazem o público pensar, mas no que eles fazem o público pensar. A imposição do agendamento se dá através da tematização proposta pelos mass media conhecida também como ordem do dia, que se tornarão os temas da agenda do público, ou seja, o que é dito pelos mass media será objeto de conversa entre as pessoas. Essa teoria não elimina as relações interpessoais, entretanto essas relações não são mais 85 geradoras de temas. Elas apenas se nutrem daquilo que é disseminado pela mídia de massa. Essa hipótese de agendar os temas a serem discutidos pela opinião pública, hoje, se configuraria de maneira bastante distinta. O agendamento não se concretizaria mais como uma forma de manipulação da mente em que a mídia tem a capacidade de dizer sobre o que se pensar. Compartilhar experiências, interagir e falar sobre os programas assistidos deixam de estar sob o prisma da escola Frankfurtiana, onde um emissor mobiliza a massa através da indução da opinião pública. Massa é um conceito que paralisou a pesquisa no campo da comunicação por considerar todos os indivíduos a mesma coisa. Mesmo que a TV tivesse esse poder, hoje, os temas não estão mais presos a nenhum controle. Não existe uma interpretação obrigatória. Cada um enxerga uma mesma mensagem da forma como que quiser. Com o advento da internet e principalmente de ferramentas como as redes sociais, a população, agora, passou a ter voz. Assim as conversas que se estabelecem através dos conteúdos veiculados pela televisão, seja no mundo real seja no mundo virtual, não se caracterizariam mais como ditadoras da opinião pública. Essa concepção foi relativizada a partir das descobertas e revoluções tecnológicas logo, as coisas tornaram-se mais complexas. Assim como Juremir Machado, em sua obra As Tecnologias do Imaginário (2012) pensa-se que não se pode acreditar nem numa hipnose completa, tampouco em uma autonomia absoluta dos meios de comunicação, seria um meio termo. O conceito de tecnologias do imaginário proposto pelo autor relativiza o poder da emissão e passa a levar em conta o poder da recepção. As tecnologias do imaginário são dispositivos (Foucalt) de intervenção, formatação, interferência e construção de “bacias semânticas” que determinarão a complexidade (Morin) dos “trajetos antropológicos” de indivíduos ou grupos. Assim, as tecnologias do imaginário estabelecem “laço social” (Mafessoli) e impõem-se como principal mecanismo de produção simbólica da “sociedade do espetáculo” (Debord). SILVA (2012, p. 20-21) Portanto as interações que se estabelecem, as conversas, a realidade e as tecnologias não passam do que nosso próprio imaginário arquiteta e constrói. Não se pode mais pensar na ideia de manipulação do homem pela técnica também não se pode pensar em emancipação total. Afinal, as tecnologias do imaginário bebem em 86 nossas fontes imaginárias para alimentar nossos imaginários. É um processo de retroalimentação, cada sujeito precisa do outro para existir. Logo, as tecnologias do imaginário (principalmente a televisão) são ferramentas que estabelecem através de seus conteúdos difundidos uma identificação social ou nas palavras de Dominique Wolton (1996) constituiriam nada mais nada menos do que o laço social de uma sociedade. TV generalista e o laço social A ideia de que a massa não existe é bastante estudada pelo autor Dominique Wolton (1996) em sua teoria crítica da televisão. Para Wolton (1996) “não é porque todo mundo vê a mesma coisa que a mesma coisa é vista por todo mundo.”(p. 68-69) Segundo o autor, em um primeiro momento, a televisão possuía uma concepção homogênea de grande público, geralmente indiferenciado. No entanto a partir da inclusão da grade de programação e da criação de novos canais foi preciso reconhecer que a televisão não se dirigia apenas a um grande público. Na verdade ela se destinava a diferentes e variados públicos que a assistem. A ideia de programação, inerente à televisão de massa, obriga a conceber uma programação para todos os públicos: ela traduz assim uma aceitação da heterogeneidade de gostos e de aspirações e é, portanto, uma espécie de reconhecimento da sua legalidade. WOLTON (1996 p. 114) Wolton também comenta em sua obra que a televisão fragmentada não se constitui em uma solução para os problemas que a televisão generalista possui. Para o autor ao assistirmos a uma televisão temática temos o prazer de encontrarmos temas que dialogam com os nossos interesses pessoais, entretanto há uma dispersão de público da TV generalista o que acarretaria em um empobrecimento da oferta cultural. Wolton (1996) também destaca em sua obra o que para ele a televisão tem de melhor: a constituição do laço social. Em uma televisão o que constitui o laço social? No fato de que o espectador, ao assistir à televisão, agrega-se a esse público potencialmente imenso e anônimo que a assiste simultaneamente, estabelecendo assim, como ele, uma espécie de laço invisível. É uma espécie de common knoledge, um duplo laço e uma antecipação cruzada. Assisto a um programa e sei que outra pessoa o assiste também, e também sabe que eu estou assistindo a ele. Trata-se, portanto, de uma espécie de laço especular e silencioso. WOLTON (1996 p. 124) 87 Ou seja, a noção de laço social proposta se caracteriza porque o espectador, ao assistir a programação, não está sozinho. Há uma outra pessoa, em outro local ou domicílio, que assiste simultaneamente a um mesmo programa e que posteriormente comentará sobre ele. O grande público, portanto, é o que confere vida e sentido à televisão, segundo Wolton. Numa lógica na qual tudo separa, existe um sensível laço que une pelas imagens vistas. Um laço que independe da origem, da formação e do nível cultural. Uma mensagem cuja força está no fato de ser levada a elite e aos com menos recursos, sem distinções. Nesta perspectiva, assistir televisão é uma atividade socializante. É muitas vezes o pouco que resta de coletivo. “Pois o que está em jogo é a ideia de grande público, é o milagre de uma reunião de públicos que, por outro lado, tudo separa e distingue. E manter esse milagre numa sociedade que legitima e busca fracionamentos sociais e culturais se torna um grande desafio.” WOLTON (1996, p. 131) O mundo a um clique de distância Atualmente é muito comum ouvir o termo “convergência midiática”. Esse tema tem sido objeto de estudo para vários pesquisadores ao redor do globo. É fácil observarmos a aplicação prática desse termo na sociedade contemporânea, uma vez que as pessoas estão cada vez mais ligadas a seus aparelhos eletrônicos bem como cada vez mais dependentes deles para diversas atividades do dia-a-dia como pesquisar, se informar e se entreter. Hoje vivemos em uma sociedade que se baseia na informação e se estrutura através delas e a Internet desempenha um dos papeis mais importantes nesse processo. Para Henry Jenkins (2009) – um dos principais pesquisadores do impacto das novas tecnologias na sociedade, a internet é o meio de comunicação que se estabeleceu mais rápido por satisfazer várias demandas humanas essenciais no mundo atual. Mas isso não justifica a perda dos meio de comunicação já estabelecidos anteriormente, justamente porque a rede mundial de computadores é o ponto de encontro de todos eles. Palavras impressas não eliminaram as palavras faladas. O cinema não eliminou o teatro. A televisão não eliminou o rádio. Cada meio antigo foi forçado a conviver com os meios emergentes. É por isso que a convergência parece mais plausível como uma forma de entender os últimos dez anos de transformações dos meios de comunicação do que o velho paradigma da revolução digital. Os velhos meios de comunicação não estão sendo substituídos. Mais 88 propriamente, suas funções e status estão sendo transformados pela introdução de novas tecnologias. (JENKINS, 2009, p.41) Redes sociais versus sites de redes sociais A tendência de pessoas que se congregarem através de interesses e pensamentos em comum é intrínseca e natural ao ser humano. Esses agrupamentos possuem diferentes nomenclaturas e já foram estudados por diferentes autores. Seja comunidade seja tribo, a verdade é que a sociedade sempre organizou através de redes. Estas redes quase sempre estavam limitadas às barreiras geográficas e culturais de uma sociedade. Hoje, entretanto, com o desenvolvimento tecnológico e a popularização da Internet somos capazes de compartilhar informações instantaneamente com qualquer parte do mundo. Essa nova ferramenta de comunicação alterou a escala e padrões de nossas relações, já que passamos a ter ao nosso alcance uma soma infinita de expressões culturais inimagináveis em um passado recente. Diante dessa necessidade do ser humano se aglutinar através de afinidades, a autora Raquel Recuerdo (2012) distingue termos que estão presentes hoje, no imaginário de toda uma geração. Atualmente muito se escuta o termo rede social referindo-se a sites como Twitter e Facebook. No entanto, existem importantes diferenças entre redes sociais e sites de redes sociais. Raquel Recuerdo (2012) refere-se ao termo rede social como “estruturas dos agrupamentos humanos, constituídas pelas interações, que constroem os grupos sociais” (p.16), ou seja, esta configuração existe desde as comunidades primitivas, não sendo exclusiva do ambiente virtual. Já os sites de redes sociais, são “ferramentas que proporcionam a publicação e a construção de redes sociais.”(p.16) Assim, fica claro que as redes sociais são como as comunidades, tribos, microgrupos que desde a antiguidade existem nas sociedades. No entanto, hoje elas se estabelecem não só na “vida real”, mas também se concretizam em ambientes virtuais. E são em ferramentas desses ambientes virtuais, no caso, os sites de redes sociais, que as comunidades virtuais se estabelecem. A autora discorre, ainda, que existe alguns sites que são mais propícios para uma análise de conversações em rede do que outros. Os diálogos no Facebook e Twitter, por exemplo, são mais públicos e permanentes, portanto, mais rastreáveis do que outros. Recuerdo também enfatiza que a partir das interações realizadas em sites de 89 redes sociais, é possível coletarmos informações sobre “sentimentos coletivos, tendências, interesses e intenções de grandes grupos de pessoas” (2012, p. 17). Uma conversação em rede não precisa, ainda, ser legitimada com base no número de pessoas/usuários envolvidos, segundo a autora. A particularidade desse diálogo se consiste na forma com a qual a conversação se espalha entre os grupos sociais por meio das conexões que cada indivíduo possui. Para Recuerdo (2012) as pessoas aglutinam-se em grupos sociais através dessas conexões que também podem ser denominadas de pontos nodais. “Grosso modo, um laço social representa uma conexão que é estabelecida entre dois indivíduos e da qual decorrem determinados valores e deveres sociais” RECUERDO (2012, p. 129) Análise das hashtags no Twitter Para exemplificar a ideia proposta pelo presente trabalho buscou-se mapear no site Twitter quais eram os assuntos mais comentados pelos usuários da rede. Para tanto, foram realizadas análises entre os dia 24 e 25 de junho de 2015, dias em que foi amplamente divulgada pela imprensa nacional a notícia do falecimento do cantor sertanejo Cristiano Araújo. A primeira constatação possível de se realizar é que a televisão influencia diretamente os assuntos discutidos na Internet, já que é a partir dos conteúdos tratados pela televisão que as conversas online se estabelecem. Podemos observar nas figuras abaixo como as hashtags #cristianoaraujo e #fatimabernardes estavam entre os primeiros assuntos mais comentados no site. A hashtag #fatimabernardes foi amplamente compartilhada após um erro cometido pela apresentadora do programa Encontro da Rede Globo em que a mesma anunciou equivocadamente a morte do jogador de futebol Cristiano Ronaldo ao invés do cantor sertanejo Cristiano Araújo. Logo, percebe-se que embora nem todas as hashtags vinculem o nome do artista falecido o assunto tratado por elas é o mesmo: a morte do cantor. 90 Imagem 1 – Postada na linha do tempo Fonte: Twitter. Disponível em: https://twitter.com/TrendieBR Acesso em 25 jun. 2015 Outro movimento bastante interessante que pode ser analisado é a possibilidade que a ferramenta Twitter dá para seus usuários se manifestarem como produtores de conteúdo. Na figura abaixo podemos perceber como o público se apropria das imagens exibidas na televisão e as resignifica nas redes sociais. Neste caso são percebidas ironias e piadas realizadas a partir de um erro cometido pela apresentadora Fátima Bernardes. Imagem 2 – Postada na linha do tempo Fonte: Twitter. Disponível em: https://twitter.com/search?src=typd&q=%23fatima%20bernardes&lang=pt Acesso em 25 jun. 2015 91 Imagens 3 – Postada na linha do tempo Fonte: Twitter. Disponível em: https://twitter.com/search?src=typd&q=%23fatima%20bernardes&lang=pt Acesso em 25 jun. 2015 Os comentários abaixo exemplificam de forma bastante clara a ideia proposta por Dominique Wolton (1996) quando o autor explica a importância da TV generalista para a união do grande público através do laço social. Imagens 4 – Postadas na linha do tempo Fonte: Twitter. Disponível em: https://twitter.com/search?src=typd&q=%23cristianoaraujo&lang=pt Acesso em 25 jun. 2015 Apesar da hashtag #cristianoaraujo ter sido compartilhada por milhares de pessoas se percebe claramente o abismo cultural existente na sociedade brasileira já que os sites de redes sociais se dividiram. Enquanto boa parte dos internautas lamentava a morte trágica do canto, outros se perguntavam de quem, efetivamente, se tratava.Os comentários analisados neste artigo foram constituídos para auxiliarem o leitor a visualizar como a televisão permanece pautando os temas e conversas da sociedade contemporânea apresentando-se assim, não como um dispositivo de manipulação mas como uma ferramenta socializadora. O simples fato de um usuário da rede postar um comentário, defender uma ideia ou opinião acerca dos assuntos difundidos na TV pode gerar uma conversa. Dessa forma o laço social de Wolton não ficou apenas na televisão, mas é também concretizado na Internet. CONSIDERAÇÕES 92 Esta investigação buscou identificar como se estabelecem as relações entre os indivíduos e os meios de comunicação da atualidade. Apesar de algumas pessoas criticarem o papel dos meios de comunicação social porque os consideram como ferramentas manipuladoras, essa concepção foi relativizada com o advento da Internet. Hoje, não existe mais uma interpretação obrigatória das mensagens e podemos perceber isso através dos conteúdos produzidos e compartilhados pelos internautas. Cada um fala sobre o que quiser e dá o seu significado para as coisas. O laço social de Wolton, portanto, serve como um fio invisível que une o grande público. Unir a população que está cada vez mais dispersa através de mensagens difundidas pela televisão é o grande desafio da TV generalista nos dias de hoje. Entretanto podemos perceber ao realizar o mapeamento das hashtags mais comentadas no Twitter, que ela tem conseguido atingir seu objetivo. Apesar do abismo cultural existente na sociedade brasileira, é possível constatar que o grande público ainda se mobiliza para falar dos mesmo assuntos. 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Doutorando em Comunicação, PUCRS [email protected] Resumo As tecnologias de compartilhamento no ciberespaço têm modificado as dinâmicas espectatoriais da televisão. Buscando valer-se de uma experiência social, os seriados norte-americanos procuram meios para incentivar o engajamento dos públicos, além de lucrar nesta nova configuração do mercado, dando origem ao fenômeno de Social TV. Neste contexto, este trabalho centra-se na série Pretty Little Liars uma das atrações televisivas de maior sucesso nas redes sociais, valendo-se de seu apelo jovem, e de ações de engajamento. Palavras-chave Séries televisivas; Social TV, Convergência midiática. Resumo The technologies of sharing in the cyberspace have changed the dynamics of spectatorial television. Seeking to use a social experience, the american series are looking for ways to encourage the engagement of the public, in addition to profit in this new market configuration, giving rise to the Social TV phenomenon. In this context, this paper focuses on the Pretty Little Liars series one of television's most successful attractions on social media, taking advantage of his youthful appeal, and engagement actions. Palavras-chave : TV series; Social TV; Media convergence. 1. Introdução 94 Os segredos de quatro amigas envolvidas em um desaparecimento, em Rosewood, é o mote que dá origem a série de livros, destinados ao público adolescente, de Sara Shepard, que, mais tarde, daria origem ao seriado Pretty Little Liars (PLL). Desde sua estreia, em 2010, no canal ABC Family, a trama que é repleta de mistério e suspense, atraiu a atenção da audiência, principalmente através de redes sociais, como o Twitter. O sucesso desta, e de outras séries, nas redes sociais, pode ser entendido pelo que Marcel Silva (2013) chama de cultura das séries. Para o autor, tal fenômeno é propiciado a partir de diferentes dinâmicas emergentes nos últimos anos e é baseado em três condições: a reconfiguração de modelos narrativos; o desenvolvimento tecnológico que modificou as formas de circulação audiovisual; e a diversificação do espaço de consumo dos espectadores, seja em comunidades de fãs, seja em estratégias de engajamento. Diante deste contexto, PLL com sua trama enigmática e apelo a experiência juvenil é um exemplo de tal cultura. Entender tal fenômeno leva-nos a uma compreensão sobre o campo da produção. O enunciador age com objetivo de fazer o enunciatário realizar uma ação específica. Se antes a televisão se importava em levar o espectador a querer assistir determinado conteúdo, agora ela precisa levar o enunciatário a querer assistir tal programa, fazê-lo ao vivo e ainda comentar nas redes sociais, instigando outros a fazer o mesmo, dando origem à Social TV. Assim os enunciadores começaram a trabalhar práticas que levassem ao compartilhamento ordenado, para que este pudesse ser quantificado e “vendido” aos publicitários. PLL é uma das produções norte-americanas que mais instiga a Social TV. Tomando proveito que o público preferencial formado por membros de uma geração ávida pelo compartilhamento e conversação nas redes sociais, a série tem quebrado recordes de compartilhamento e resultados na Social TV. 2. Uma cultura das séries Ao discutir sobre a crescente visibilidade dos seriados, especialmente de origem norte-americana no cenário midiático dos últimos anos, Marcel Silva (2013), admite um tripé de condições epistemológicas decisivas para o estabelecimento do que ele chama de cultura das séries. Neste cenário a televisão mundializada não pode ser mais desconectada de seu contexto tecnológico convergente. Para entender a complexidade desse fenômeno, estamos aqui propondo três condições epistemológicas centrais que se consubstanciaram nas duas últimas décadas para promover 95 esse panorama em que as séries ocupam lugar destacado dentro e fora dos modelos tradicionais de televisão: a primeira condição é a que chamamos de forma, e está ligada tanto ao desenvolvimento de novos modelos narrativos, quanto à permanência e à reconfiguração de modelos clássicos, ligados a gêneros estabelecidos como a sitcom, o melodrama e o policial. A segunda condição está relacionada ao contexto tecnológico em torno do digital e da internet, que impulsionou a circulação das séries em nível global, para além do modelo tradicional de circulação televisiva. A terceira condição se refere ao consumo desses programas, seja na dimensão espectatorial do público, através de comunidades de fãs e de estratégias de engajamento, seja na criação de espaços noticiosos e críticos, vinculados ou não a veículos oficiais de comunicação como grandes jornais e revistas, focados nas séries de televisão (2013, pp. 3-4). Seguindo tal cultura seriada, ao tomar seriados mundializados como objeto de estudo, é necessário contemplar uma articulação de diversos aspectos, não apenas no que diz respeito à gêneros narrativos, mas à sua forma de consumo, incorporando outros temas à problemática das audiências, como as plataformas tecnológicas que expandiram a veiculação e audiência, e também abriram espaço para a existência de paratextos e participação do público. Essas novas condições transformaram as séries, nos dias de hoje, em mais do que um produto narrativo que se encerra em si mesmo, mas com potencial de entretenimento muito mais amplo, e aberto a conectividade. As séries juvenis conjugam-se a tal cultura seriada descrita por Silva, não apenas pois seu surgimento, na década de 1990, coincide com a popularização das reconfigurações narrativas citadas, fruto do fatiamento do mercado televisivo que passava a sofrer concorrência da televisão a cabo e posteriormente do computador doméstico e internet, mas também por seu particular interesse e pioneirismo em estratégias online. Esta agilidade em encontrar formas convergentes de conversar com seu público faz com que apesar da competição de outras plataformas de entretenimento midiático, as séries voltadas ao público jovem tenham acompanhado a evolução cultural e tecnológica do ambiente em que circulam. Mantendo-se como um forte nicho dentro da indústria televisiva norteamericana que exporta tal produção. Para Miller (2009) longe de afastar o espectador da televisão, as novas tecnologias que permitem ao público produzir e publicar seu próprio conteúdo são um trunfo à televisão norte-americana, promovendo-a. Segundo Winocur (2009) a tecnologia proporciona uma nova relação do jovem com a cultura global, ainda que as realidades de cada um sejam heterogêneas, muitas 96 experiências de juventude atravessam fronteiras e culturas locais, e as ferramentas de comunicação, em particular a internet reforçam o sentimento de pertença e identidade de grupo. Ainda de acordo com a autora, a tecnologia aprofundou a globalização e naturalização de códigos culturais e estéticos através do mundo (especialmente ocidental). A juventude tem agora, não apenas objetos de consumo em comum, mas um modo afim de relacionar-se com o mundo, praticado diariamente na internet. O drama juvenil Dawson’s Creek (The WB, 1998-2003) foi um dos primeiros seriados a explorar a convergência e especialmente a transmidiatização. Dawson’s Desktop, um projeto que colocava o telespectador “dentro” do computador dos protagonistas da série (seus emails, documentos, etc), e foi na realidade um dos primeiros êxitos em transmidia entre conteúdo televisivo e online. Algumas das séries juvenis de maior sucesso depois disso, são exatamente aquelas que conseguem dialogar com o público através uma narrativa instigante a identidade jovem, conjugado ao diálogo com o público online, estimulando a conexão e engajamento. Séries como Gossip Girl (CW, 2007-2012) ou Glee (FOX, 2009-2015), são séries com sucesso relativo em termos de audiência bruta, porém com casos de sucesso em promoção online são exemplos disso, com números de conexão online muito superiores a seus números de audiência. Pretty Little Liars (ABC FAMILY, 2010-atual) segue esta mesma linha, e talvez ainda mais surpreendente por ser veiculado por um canal pago nos EUA, no entanto seu apelo é exemplar dentro da cultura das séries de Silva (2013). Primeiramente, pois em termos narrativos, o seriado mostra uma mistura de gêneros com melodrama juvenil, junto a suspense, com influências do noir. Além disso sua narrativa é baseada em enigmas, transformando cada episódio em peças de um quebra-cabeças. Características estas ligadas a complexidade narrativa que configura modo de narração e práticas de produção e recepção que cobrem diversos gêneros (MITTELL, 2012-2013). Em segundo lugar PLL é uma série propícia para ser discutida e analisada, não apenas assistida. A própria série pede e necessita do engajamento de seus telespectadores em fóruns de internet e no consumo de seus paratextos51. A intrincada trama, cheia de detalhes é ideal para a elaboração de teorias por fãs, sendo muito difícil que uma pessoa consiga guardar e fazer sentido de todos os detalhes assistindo apenas uma vez e aguardando semanas (ou meses) até o próximo episódio ser desvelado. 51 Como é um exemplo a Pretty Little Liars Wikia, uma enciclopédia colaborativa sobre o universo de PLL, disponível em: http://pretty-little-liars.wikia.com/. 97 Por fim, as estratégias de convergência da produção de PLL são hábeis e ostensivas, proporcionando a cada episódio novas interações, e preenchendo a espera entre episódios com informações, detalhes, material auxiliar, pistas e mesmo jogos. A seguir veremos o engajamento entre enunciador e público através da plataforma Twitter. 3. A Social TV em 140 caracteres O ato de discutir programas de televisão, principalmente os que envolvem teledramaturgia não é novo. Através da função referencial, a televisão possibilita a união das mais diversas plateias, permitindo uma atividade coletiva. E é esta aliança entre o individual e o comunitário, que Dominique Wolton (2004) julga ser o espírito da TV, o que faz desta tecnologia, uma atividade constitutiva da sociedade contemporânea. A essa ligação, o autor dá o nome de “laço social”, pois quando o espectador assiste a um programa, agrega-se a um público potencialmente imenso e anônimo que assiste ao mesmo conteúdo simultaneamente. Wolton acredita que a televisão é um espelho da sociedade, ou seja, a população se enxerga na tela, que oferece ao usuário uma representação de si mesmo. Dizer que a televisão é uma das formas de laço social é, pois, uma retomada de certa tradição sociológica, mesmo que a perspectiva seja sensivelmente diferente. Em que a televisão constitui um laço social? No fato de que o espectador, ao assistir à televisão, agrega-se a esse público potencialmente imenso e anônimo que a assiste simultaneamente, estabelecendo assim, como ele, uma espécie de laço invisível. É uma espécie de common knowledge, um duplo laço e uma antecipação cruzada. Assisto a um programa e sei que outra pessoa o assiste também, e também sabe que eu estou assistindo a ele (WOLTON, 2004, p.124). Além de criar essa cola social, os conteúdos televisivos provocam curiosidade. É nisto que Mike Proulx e Stacey Shepatin (2012) justificam a Social TV, como fruto da curiosidade das pessoas. É a vontade de sempre ter conhecimento sobre tudo que está acontecendo ao seu redor, principalmente no que tange à teledramaturgia. O trampolim que impulsionou a ideia da aplicação da segunda tela como uma companheira da TV é baseado em um princípio simples: somos seres muito curiosos e compelidos a alimentar essa curiosidade. Quando estamos 98 conectados a uma segunda tela enquanto vemos TV, temos acesso instantâneo para procurar uma quantidade infinita de informações sobre o programa a que estamos assistindo e, dessa forma, ajudamos a satisfazer nossa curiosidade natural (PROULX; SHEPATIN, 2012, p.58, tradução do autor52). Tal curiosidade gera, segundo Mark Johns (2012) um canal de fundo, em tempo real, entre o público de determinado programa, ou ainda entre os produtores e o público do mesmo. Tal canal de fundo permite experiências sociais em torno da televisão, é a divido por Gunnar Harboe (2009) entre conceitos restritos e amplos, como mostra o quadro Quadro 1: Conceitos restritos e amplos sobre Social TV Fonte: Elaborado pelo autor com base em Harboe (2009). Raimund Schatz (et al., 2010) e Marie-José Montpetit (et al., 2010) salientam a questão da experiência compartilhada. Para os autores, as redes sociais possibilitam vivenciar situações de usos sociais da televisão. Experimentos revelaram que os indivíduos se engajam mais, através do contato com uma audiência virtual. Alguns usuários, segundo Jarno Zwaaneveld (2009), relataram assistir não somente seus programas favoritos, mas outros conteúdos somente pelo fato de outros o estarem fazendo. 52 Do original: The springboard that propelled the idea of second screen applications as a companion for TV is based on a simple principle: we are naturally curious human beings who are compelled to feed that curiosity. When we are connected to a second screen while we watch TV, we have instant access to search an infinite amount of information about the program you're watching and thus help to satisfy our natural curiosity. 99 Afirmaram ainda que participavam de pequenas conversas sobre os programas durante o intervalo, compartilhando interesses em comum. Trata-se, hoje, de uma conversa democrática e global que influencia o conteúdo dos programas e da publicidade. Através da popularidade das séries de TV, principalmente das norte americanas, um novo léxico foi incorporado ao meio das redes sociais. Expressões como spoiler53, season finale54, hiatus55 e premiere56 foram adotados pela cibercultura, mesmo em países que não têm no inglês, sua língua materna. Novos hábitos também entraram no ato de assistir televisão. A experiência de Social TV levou Montpetit (et al., 2010) a relacionar tal fenômeno com os primórdios da televisão. Para a autora, há uma redescoberta do ato de assistir TV como momento compartilhado, referenciando a décadas quando o meio ainda era bastante caro e, portanto, havia apenas um em cada residência. Com o barateamento dos aparelhos e a possibilidade de cada cômodo possuir uma televisão, o ato de assistir TV foi tornando-se solitário, sendo redescoberto e potencializado, na pós-modernidade, pela cibercultura e as redes sociais. De acordo com Alex Primo (2010), o Twitter, mostra como a TV ainda é fonte de entretenimento: Esse telespectador/twitteiro nos mostra que a televisão continua sendo uma opção de entretenimento. Por outro lado, não aceita mais a cômoda posição do sofá. Além de consumir o produto televisivo, ele quer ressignificar os conteúdos que recebe. Quer compartilhar suas opiniões e escutar o que os outros tem a dizer. Não o ruído de toda a massa, mas sim, o que pensam os participantes de suas comunidades (PRIMO, 2010, online). O Twitter, segundo pesquisa TV Next Conference (TANNER, 2013), parece ser a rede preferida para a discussão sobre televisão. Dos usuários, 50% publicam conteúdos sobre os programas que estão assistindo, contra 35% do Facebook. Ainda assim, vale lembrar que em sua maioria os usuários que tem conta no Twitter, também possuem perfil no Facebook, mas preferem usar o microblog para tais usos de Social TV. 53 Significa estragar, adiantar algum evento futuro de uma série ou filme. 54 É o último episódio de uma temporada. 55 É quando uma série entra em recesso, normalmente devido a algum feriado em que as emissoras norte-americanas exibem programação especial. 56 É o primeiro episódio de uma temporada. 100 Essas discussões sobre televisão envolvem vários gêneros televisivos, mas a teledramaturgia obtém destaque seja pela continuidade do gênero, seja pela incorporação de elementos que aflorem o desejo de comentar dos telespectadores. E neste quesito as séries norte-americanas merecem destaque, pois criam um canal de fundo (JOHN, 2012) que não envolve somente os Estados Unidos, mas todo os países. Por fim, ao analisar os casos mais recentes, a série Pretty Little Liars tem demonstrado ser um caso peculiar do uso de ações e compartilhamentos das redes sociais, especialmente no Twitter. 4. Got a secret, can you keep it? Pretty Little Liars no Twitter No interior da Pensilvânia, Rosewood, é envolta por muitos segredos. O principal deles envolve a popular Alison DiLaurentis (interpretada por Sasha Pieterse) que desapareceu, deixando todos acreditarem que fora vítima de um assassinato, inclusive suas quatro melhores amigas que aparentemente afastam-se após o trágico acontecimento. Mas o caos se instala na vida das quatro garotas quando elas começam a receber mensagens de texto de alguém que se auto intitula "-A", ameaçando revelar segredos que só Alison poderia saber. Este é o mote principal de uma das séries mais comentadas nas redes sociais, Pretty Little Liars (ABC FAMILY, 2010-atual). O modo como a trama é constituída, revelando segredos e pistas – algumas delas falsas – a cada episódio, leva o público a, além de tentar desvendar o mistério pelas pistas dadas, investigar a identidade do assassino de Alison e da pessoa que chantageia as quatro amigas. Durante a exibição dos episódios a hashtag #PLL normalmente fica entre os assuntos mais comentados do mundo e no emblemático episódio do dia 27 de agosto de 2013, respectivamente o 12° da quarta temporada, onde vários mistérios seriam revelados, o programa foi o mais comentado do dia com 1.973.418 tweets (MYERS, 2013, online57). De acordo com o site Social Guide (2013, online58) o episódio quebrou o recorde de comentários sobre um único episódio de TV. Vale ressaltar que o recorde anterior também pertencia a PLL, no primeiro episódio da quarta temporada com 1.701.125 tweets (MYERS, 2013, online59), conforme Figura 1. 57 Disponível em: <https://blog.twitter.com/2013/pretty-little-tweeters-how-the-finale-beat-the-records>. Acesso em 16 Nov. 2013. 58 Disponível em: <http://www.socialguide.com/>. Acesso em 16 Nov. 2013. 59 Disponível em: <https://blog.twitter.com/2013/pretty-little-tweeters-how-the-finale-beat-the-records>. Acesso em 16 Nov. 2013. 101 Figura 1: Tweets por episódio da quarta temporada. Fonte: MYERS, 2013. Tais resultados também são frutos da promoção feita pelos produtores do final da quarta temporada, que usou o Twitter como veículo indispensável aos fãs da produção. Através da conta oficial da série no microblog, foi realizada uma contagem regressiva com as maiores revelações do décimo segundo episódio. Tais publicações incentivavam ainda o uso da hashtag #WorldWarA, em referência a misteriosa antagonista do seriado, conforme Figura 2. Não obstante, tal ação contou com a participação das atrizes do seriado no incentivo do uso de tal hashtag. 102 Figura 2: Top 10 Reveals Pretty Little Liars Fonte: Twitter.com/ABCFpll, 2013. Após a exibição do episódio, uma nova hashtag começou a ser incentivada pela produção através dos perfis das atrizes protagonistas. O uso de #PLLreaction foi tweetado pela atriz Lucy Hale, que interpreta a personagem Aria Montgomery, e instantaneamente vários fãs começaram a fazer o mesmo, como mostra a Figura 3. Figura 3: Tweets com a hashtag #PLLReaction Fonte: Twitter, 2013. 103 A ABC Family ainda usou o Twitter como forma de impulsionar o spinoff de PLL, a série Ravenswood (ABC FAMILY, 2013-2013). Usando o sucesso da finale de Pretty Little Liars, a emissora desafiou os fãs a descobrir uma imagem sobre a produção estreante, através da conta do ator Tyler Blackburn. Através da hashtag #Ravenswoodreveal a cada 1022 tweets (o número faz referência ao dia da estreia de Ravenswood, 22 de outubro de 2013) uma parte da imagem seria revelada o público, conforme mostra a Figura 4. Figura 4: Tweets de #Ravenswoodreveal Fonte: Twitter.com/tylerjblackburn, 2013. Tamanha repercussão e quebra de recordes no Twitter podem ser justificados por vários motivos desde as ações da emissora, quanto pelo perfil do público ao qual a mesma destina-se. Ainda assim, o número de fãs do seriado impressiona. Somente no microblog são mais de 3 milhões de seguidores, enquanto que no Facebook a página oficial reúne mais de 3,7 milhões de curtidas. No Instagram, a série é o programa de televisão com maior número de seguidores com mais de 3,4 milhões. No Snapchat e no Pinterest, redes sociais menos populares, são mais de 1,4 milhões de amigos e 166 mil seguidores, respectivamente. 5. Considerações Finais 104 Mesmo a Social TV tendo surgido de forma espontânea, a série PLL mostra a importância da emissora ao incentivar tal fenômeno. O perfil oficial do seriado no Twitter é um exemplo disto, ao publicar imagens, definir hashtags e incentivar que os fãs comentem, reajam e descubram os segredos da história. Nesse quesito, o público alvo da série também tem grande peso. Por se tratar de uma série teen, percebe-se que tal target demonstra mais interesse em interagir nas redes sociais, bem como em colocar a série como mais comentada do mundo. Mesmo com uma estratégia bastante eficiente, a produção da série comete alguns erros na divulgação do conteúdo. Um exemplo do quanto a audiência internacional não está necessariamente contemplada pela convergência está em um recente final de temporada da série, em agosto de 2014, que prometeu acontecimentos impactantes ao desenvolvimento da história com a morte de um personagem60. Durante a exibição nos EUA de tal episódio (horário referente a costa leste daquele país), a página oficial da série no Facebook destacou em várias postagens a morte da personagem, incentivando os telespectadores a usarem nas redes sociais a hashtag #RIPMona, em referência a personagem assassinada. A página foi prontamente criticada, principalmente por telespectadores da comunidade internacional que demonstraram seu desacordo e frustração com o spoiler revelado pelo próprio canal oficial, ciente do fato que grande parte de seus seguidores não assistem os episódios junto a exibição original. Desde então a página tem sido um tanto mais cuidadosa com as ações que toma durante os episódios, para não afastar os fãs. 6. Referências FACEBOOK. Facebook Pretty Little Liars. Online. 2015. Disponível em: <https://www.facebook.com/prettylittleliars/>. Acesso em: 13 Nov. 2015 O episódio Taking This One To the Grave (“Levando esta para o túmulo”, 12º episódio da 5ª temporada), escrito pela produtora executiva do programa I. Marlene King, foi ao ar nos EUA em 26/08/2014. 60 105 HARBOE, Gunner. In search of social television. In: CESAR, Pablo; GEERTS, David; CHORIANOPOULOS, Konstantinos. Social Interactive Television: Immersive Shared Experiences and Perspectives. IGI Global: Pensilvânia, 2009. INSTAGRAM. Instagram Pretty Little Liars. Online. 2015. Disponível em: <http://www.instagram.com/pll>. Acesso em: 13 Nov. 2015. JOHNS, Mark. Two screen viewing and social relationships. Exploring the invisible backchannel of TV viewing. In: Proceedings cultural attitudes towards communication and technology 2012. Murdoch: Murdoch University, 2012. Disponível em: <http://sammelpunkt.philo.at:8080/2159/>. 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University of Twente, Faculty of electrical engineering, Mathematics and computer science. 107 O processo de midiatização e a complexificação das interações televisivas Daniel Pedroso- Unisinos61 As novas condições de circulação que marcam o processo de midiatização da sociedade, surgidas a partir da intensificação e penetração da internet e da popularização dos dispositivos móveis, vem transformando o funcionamento dos meios de comunicação, complexificando a produção de discursos sociais e, gerando, desta forma, uma nova “economia de atenção”. Esse movimento exige a construção de novos sentidos nas interações, por meio das quais, os meios geram as suas relações com os atores sociais. Neste trabalho nos debruçamos sobre o impacto deste cenário no redesenho das interações entre a televisão e os telespectadores, em especial sobre aquelas interações mediadas pela produção de vídeos do telespectador, tendo como objeto empírico a promoção A empregada mais Cheia de Charme do Brasil, quadro apresentado pelo Fantástico da TV Globo em 2012. Desta forma, pensar a construção da interação entre a televisão e o telespectador na atualidade, afetada pelas novas condições de produção e de circulação, é o objetivo deste artigo que tem seu embasamento teórico no processo de midiatização da sociedade e no conceito de “zona de contato”, entendido como uma instância interacional que reúne os meios e os atores sociais em novas dinâmicas interacionais. Esse conceito como um viés de análise, nos permite descrever e questionar fenômenos e processos midiáticos contemporâneos, observados a partir do âmbito da circulação. Nessa perspectiva busca-se compreender as transformações e mutações dos discursos sociais na paisagem midiática contemporânea. Palavras-Chave: Interações. Televisão. Zona de Contato. Midiatização. 1. Introdução O presente texto, que aborda o processo de midiatização e a complexificação das interações televisivas, é um recorte da minha tese de doutorado em comunicação, (Pedroso, 2015) defendida no programa de pós-graduação em Comunicação da Unisinos, na qual foi feito um estudo sobre o quadro A empregada mais cheia de charme do Brasil exibido pelo Fantástico no ano de 2012. Na tese buscamos compreender o fenômeno do redesenho das formas de interação e geração de vínculos entre a televisão e o telespectador na atualidade, especialmente as interações mediadas pela produção e exibição de vídeos gerados pelos telespectadores. A escolha pelo quadro enquanto estudo de caso do ambiente televisivo afetado pelo ambiente da midiatização se mostrou muito rico, uma vez que o modelo de interação mediado pelo envio de vídeos foi engendrado de forma singular, a partir do imbricamento 61 Doutor em comunicação pelo programa de pós-graduação da Unisinos, professor de televisão no curso de especialização em Televisão Digital e Convergência, no curso de Jornalismo e Realização Audiovisual da Unisinos e gerente de programação e conteúdo da Rádio e TV Unisinos. [email protected] 108 da televisão, internet e dos dispositivos móveis. Ao todo, 1400 vídeos de foram enviados ao programa, que enunciou o quadro como um concurso tendo por objetivo escolher a empregada doméstica mais cheia de charme do Brasil, que concorreu ao prêmio especial que foi a participação em uma cena da telenovela Cheias de Charme também exibida pela TV Globo no ano de 2012. A interação entre a televisão e o telespectador enquanto problema de pesquisa nasce da percepção da presença cada vez mais comum das marcas da produção do telespectador na programação da televisão brasileira. As operações que protagonizam a presença do receptor criam uma paisagem interacional que traz como resultado uma nova sociabilidade midiática, estruturada por outra forma de interação entre a televisão e o telespectador. Entendemos que no contexto da ambiência midiatizada, as novas condições de circulação e os dispositivos técnicos convertidos em meios de comunicação reúnem a televisão e os telespectadores em novas zonas de contato, que são ativados por meio de operações tecnodiscursivas que estruturam o discurso televisivo. A partir da percepção dessas operações que permeiam processos, estruturas, estratégias, fluxos e circuitos comunicacionais, indagamos: De que forma a atividade discursiva do telespectador induzida pelo quadro A empregada mais cheia de charme do Brasil, do programa Fantástico, redesenha os vínculos entre a televisão e o telespectador na Sociedade em vias de Midiatização? A partir deste questionamento traçamos como objetivo geral buscar entender como se dá o engendramento do processo interacional dinamizado pelo estudo de caso que reúne a televisão e os telespectadores, segundo novas configurações interacionais. Como recorte específico centramos o olhar no empreendimento de descrever os processos de funcionamento da zona de contato enquanto instância interacional. Este artigo está dividido em dois momentos, no primeiro de caráter mais teóricometodológico discutimos o processo de midiatização da sociedade e os modos de funcionamento da televisão a partir de perspectivas interacionais como abordagens conceituais que nos permitem observar as formas de interação que a televisão vem propondo aos telespectadores na contemporaneidade. Na segunda parte, apresentamos uma leitura do modelo interacional resultante da promoção do Fantástico, buscando compreender como se estabelecem as relações entre a televisão e o telespectador na “Sociedade em vias de Midiatização”. 109 2. O processo de midiatização e os modos de funcionamento da televisão como abordagem teórico-metodológica Para dar dos objetivos propostos, o marco teórico foi construído a partir de dois eixos, o primeiro se baseia no processo de midiatização enquanto abordagem teóricometodológico o que nos permite de um modo mais geral compreender as formas de atuação na mídia na sociedade, já no segundo eixo buscamos compreender como a televisão foi construindo, ao longo do tempo, seus modos funcionamento, relação e geração de vínculo com a sociedade, com um olhar centrado nas perspectivas interacionais. O processo de midiatização enquanto abordagem teórico-metodológica apresenta-se ainda em construção, seus pressupostos vem mobilizando pesquisadores em várias partes do mundo. Nesse perspectiva, nos interessa particularmente o cruzamento de duas perspectivas, a primeira tem origem norte-europeia em especial nos países escandinavos que compreende o processo de midiatização a partir da intensificação, aceleração e penetração da mídia na sociedade com foco nas consequências que essa presença traz para os aspectos sociais e culturais que conforma a sociedade, ponto de vista de caráter mais sociológico que é defendido pelo pesquisador dinamarquês Hjarvard (2014). Essa perspectiva em nosso entendimento nos permite criar modelos de observação que, justamente, atentem para as consequências da mídia atuando no seio da sociedade. A essa perspectiva mais generalista, adicionamos a perspectiva latino-americana centrada na observação de produtos midiáticos, em especial a perspectiva trabalhada por Eliseo Verón (1997) e Antonio Fausto Neto (2008) que entendem que o processo de midiatização afeta as instituições, os meios e os atores sociais, transformando as condições de produção de sentido social, ou seja, transformando as formas por meio das quais se articulam produção, circulação e reconhecimento dos discursos sociais, o que institui uma cadeia de afetações e institui novos feixes de relações. Desta forma, entendemos o processo de midiatização como um fenômeno relativo a intensificação, penetração e aceleração da presença da mídia na sociedade, que traz consequências para os modos por meio dos quais se articulam a produção, circulação e reconhecimento dos discursos na sociedade. A partir deste entendimento, dois conceitos que entendemos ser conceitos operativos do processo de midiatização são de fundamental importância para este trabalho. A primeira escolha se reflete no acionamento da noção da relação entre Sociedade dos Meios e Sociedade em vias de Midiatização (VERÓN, 2013; FAUSTO NETO, 2008), 110 referência teórico-explicativa que nos permitiu identificar o modo de funcionamento dos meios na sociedade afetada pelo processo de midiatização. Na Sociedade dos Meios, os veículos de comunicação apresentam funcionamento representacional em que a estratégia de contato se baseia em contratos pelos quais se geram em produção, através de suas mensagens, instruções interpretativas que guiam as formas de interação. Já na Sociedade em vias de Midiatização - que abarca o período contemporâneo - os meios de comunicação passam a ser entendidos como instâncias produtoras de sentido e há mutação nos contratos que estruturam as mensagens como pontos de articulação entre produção e recepção, fazendo com que o sentido das mensagens seja dinamizado segundo as lógicas da recepção, ainda que os meios sejam os propositores do sentido. Esse modo de funcionamento chama atenção para as novas formas de articulação entre produção e recepção, o que nos fez acionar também a noção de zona de contato como viés teórico-interpretativo. Desta forma, a partir de Fausto Neto (2013) a zona de contato é entendida como uma instancia interacional que opera, por meio da circulação, pondo em contato o sistema midiático (em nosso caso a televisão através do programa estudado) e o sistema socioindividual (as telespectadores empregadas domésticas). Isso nos permitiu perceber os níveis de funcionamento discursivo por meio dos quais é possível recuperar a mecânica do contato entre produção e recepção, o que nos indicando ainda, como as lógicas da midiatização estariam afetando a organização social, suas práticas, e as relações entre a televisão e a sociedade. O marco teórico relativo ao funcionamento da televisão, a revisão bibliográfica foi amparada em Eco (1984), Casetti e Odin (1990), Verón (2003), Carlón e Scolari (2014), autores que nos propõem leituras dos modelos de interação e das formas como a televisão entra em contato com a sociedade. Eco, Casetti e Odin, propõe formalizações sobre dois períodos iniciais da televisão. Verón que também nos oferece um olhar sobre os dois estágios iniciais, avançam para um terceiro estágio - o da contemporaneidade - que revela uma chave de leitura importante que ajuda a dar conta das afetações que incidem sobre a relação da televisão com o telespectador, na atualidade. Eco (1984) a partir das categorias da Paleo e da Neotelevisão descreve as formas por meio das quais a oferta televisiva foi se organizando, gerando uma identidade, sugerindo formas de reconhecimento de suas enunciações com o público e, assim, promovendo a interação com a sociedade. Indica ainda, um novo olhar para o funcionamento da televisão ao delimitar a dinâmica do lugar de fala do enunciador, revelando as marcas das estratégicas sob as quais a televisão operava. Para Casetti e Odin 111 (1990) a passagem da Paleo à Neotelevisão retrata a transformação no modelo de funcionamento da televisão que sai de um contrato estável, marcado por um discurso institucional e uma grade de programação com fluxo rígido, para o modelo da Neotelevisão no qual os vínculos com a sociedade são gerados a partir de um contrato marcado pela interatividade e pela reconfiguração do papel do telespectador que assume as funções de participante e de público. Nesse contexto, Verón (2003) entende que, na primeira fase do meio, que vai até o final dos anos de 1970, o interpretante político, é formado pelo coletivo de telespectadores cidadãos, que são convidados a perceber o mundo representado pela noção de EstadoNação. Já na segunda etapa, partir dos não de 1980, a própria televisão se encanta narcisicamente com o seu impacto social gerado principalmente pelos avanços tecnológicos. A programação é reconfiguradas dando visibilidade as estratégias enunciativas, criando um interpretante que se distancia do político e se foca num coletivo marcado pelo incentivo ao consumo de suas formas de representação da sociedade. Para Verón (2003) a terceira fase da televisão, sinaliza uma mudança de nível de interação a partir da midiatização do cotidiano extratelevisivo do telespectador, o qual transformou as bases da interação da televisão com a sociedade, a partir do formato dos Reality show. Com isso, Verón disponibiliza uma chave de leitura para entender a complexificação das interações entre dois sistemas correlacionados - o sistema dos meios e o sistema dos indivíduos - que são reunidos em um novo tipo de intercambialidade, que coloca em relação ao cotidiano do telespectador como base da interação. Entendemos, desta forma, que os três estágios da televisão aqui denominados são pré-configurações de tipos diferentes de relacionamento do meio com a sociedade que foram sendo alterados ao longo dos anos, em função dos avanços das tecnologias da mídia e da crescente intensificação dos meios de comunicação na sociedade. A partir de meados dos anos de 1990, as transformações instituídas pela internet, alteram substancialmente a relação do meio com a sociedade, o que leva Verón (2013) a postular que a televisão broadcasting está em vias de extinção. A questão do fim da televisão se transforma em um espaço analítico em que são desenhadas algumas características de seu funcionamento impactadas pela internet. O movimento que é marcado por transformações, por mutações e por reconfigurações, afeta também na forma como os meios - em especial a televisão - estruturam os seus contratos com a sociedade. Para Carlón (2014), essa ruptura resulta de uma revolução tecnológica alicerçada na internet que reconfigura o sistema midiático a partir dos novos meios, das novas formas 112 discursivas e das novas formas de apropriação e de consumo social. Carlón (2014) afirma que vivemos na era da pós-TV, que engloba os conceitos de televisão expandida e de estrutura planeta-satélite, entendidos como dois tipos de narrativas transmídia. Já Scolari (2014) pensa a televisão na contemporaneidade a partir do conceito de hipertelevisão. Os programas da hipertelevisão adaptam-se a um ecossistema midiático no qual as redes e as interações ocupam lugar privilegiado ao adotarem algumas características das novas mídias. Nesse sentido, as contribuições acima apresentadas, que se referem tanto ao processo de midiatização, quanto aos modos de funcionamento da televisão criaram um pano de fundo teórico, conceitual que nos deram subsídios metodológicos para enfrentar o estudo de caso. 3. O modelo de interação do quadro A empregada mais cheia de charme do Brasil, leituras do estudo de caso O olhar metodológico lançado sobre o quadro se constituiu em uma leitura com abordagem qualitativa que procurou descrever as estruturas, as lógicas e as operações tecnodiscursivas que engendraram a zona de contato enquanto instância interacional. O procedimento metodológico foi construído por meio de um movimento descritivo desenvolvido a partir de dois níveis de análise. No primeiro nível localizamos na topografia do caso aspectos que nos permitissem agrupar características semelhantes do desenvolvimento temporal do estudo de caso, o que nos possibilitou chegarmos a três recortes: a) O anúncio do quadro: a construção do contato (duração de um mês) b) O desenvolvimento do quadro: interações em processo (duração de um mês) c) O pós-quadro: o ritual de celebração do ingresso do ator social no sistema midiático (que teve a duração de apenas uma semana) O segundo nível de análise foi operado a partir da observação das operações técnicas discursivas características dos gêneros televisivos, nas quais buscamos identificar, a partir da sua enunciação, as marcas da ativação da participação conformadas pela zona de contato enquanto instância interacional. 3.1 Recorte 1- O anuncio do quadro: a construção do contato 113 A televisão constrói a zona de contato em articulação com a internet. O programa propôs o contato na televisão, e a página virtual do programa operacionalizou a interação por meio da disponibilização de informações sobre o concurso e as normas de regulação da participação. A lógica da zona é dinamizada pedagogicamente para a construção do contato ativando circuito de características autorreferenciais. A trama da telenovela foi recuperada a partir da narrativa do videoclipe que condensou o conflito de classes e o sonho da mobilidade social. Desta forma, o videoclipe Vida de Empreguete é introduzido como matriz do contato. Os protocolos de ativação da participação adquirem, dentro da zona de contato, características de anuncio, convite e participação e são acionados a partir dos gêneros televisivos, como a chamada do quadro, a reportagem de lançamento da promoção e os esquetes cômicos de reforço. No primeiro exemplo, o protocolo de ativação permeia a chamada na programação acionando o videoclipe, onde os apresentadores interpelam a audiência falando sobre o concurso. Figura 1 – Imagem de tela - Chamada do quadro na programação da TV Globo A B Fonte: Rede Globo (2012) No segundo exemplo, temos o videoclipe Vida de Empreguete que é transformado em matriz de contato ao recupera uma parte importante da trama da telenovela onde as atrizes deixam de ser empregadas domésticas e se transformam em cantoras famosas de apelo popular. O videoclipe é construído a partir de um jogo de identidades que reflete o universo das empregadas domésticas antes de se tornarem celebridades. No primeira tela elas são retratadas como cantoras, na segunda como empregadas domésticas e na terceira como patroas. Em nosso entendimento o videoclipe ressalta o conflito de classes e dá conta do sonho de mobilidade social. Reforçando assim, a temática da telenovela. Figura 2 – Imagem de tela - Videoclipe Vida de Empreguete e o jogo de identidades 114 B A C Fonte: Rede Globo (2012). A reportagem de lançamento recupera o videoclipe como matriz do contato. O apresentador do Fantástico faz o lançamento do concurso induzindo fortemente a participação das empregadas domésticas e ressaltando as regras do concurso, como a necessidade de carteira assinada. E por último a atriz Taís Araújo reforça o convite participação, enviando as telespectadoras para a página do programa na internet onde estão disponibilizadas as regras de participação no concurso. Figura 3 – Imagem de tela - Instauração da zona de contato A B C Fonte: Rede Globo (2012). Os esquetes de reforço à participação, intensificam a lógica pedagógica da zona de contato. O programa cria uma empregada doméstica ficcional que é transformada numa operadora discursiva, que faz a mediação das regras do concurso e também reforça o convite a participação. Figura 4 – Imagem de tela - Esquete Cômico 1, 2 e 3: a didatização do contato A B C Fonte: Rede Globo (2012). Como é possível perceber nas imagens que seguem, a página do programa na internet, organiza e operacionaliza a interação disponibilizando informações sobre o funcionamento do concurso e também as normas de participação. Figura 5 – Imagem de tela - Primeiras páginas do quadro no Fantástico na internet 115 A B C D Fonte: Rede Globo (2012). 3.2 Recorte 2- O desenvolvimento do quadro: interações em processo A zona de contato é dinamizada pelo encontro de lógicas e pelo do ingresso do ator social no sistema midiático, dando visibilidade para a sua atividade discursiva. A ativação da participação ocorre em dois níveis. No nível um a atividade da zona de contato é marcada pela exibição dos videoclipes produzidos pelas empregadas domésticas, tanto no quadro do programa na televisão quanto na página na internet. Nesse momento, entendemos que a atividade na zona de contato faz surgir uma textualidade televisiva, baseada na operação discursiva de coenunciação que é ativada pelos comentários do ancora sobre o conteúdo produzido extra televisivamente pelas empregadas. Já o nível dois a zona de contato passa a ativar a participação do telespectador geral do programa induzindo-o a ir para a internet onde ele deve votar na candidata para a final do concurso. O recorte dois traz marcas do processo de midiatização afetando as telespectadoras, que se valem das lógicas da mídia para a produção da sua atividade discursiva que é reprocessada segundo as lógicas do sistema dos atores sociais. A partir da apresentação do videoclipe das candidatas no programa emerge uma textualidade televisiva baseada na coenunciativa onde o ancora do programa tece comentários sobre os vídeos produzidos pelas telespectadoras, como segue nas imagens. Figura 6 – Imagem de tela - Apresentação das semifinalistas 116 C B A Fonte: Rede Globo (2012). Esse movimento de coenunciação se repete também na final do concurso ao vivo onde as juradas que são as atrizes da telenovela e o ancora do programa também fazem comentários sobre os vídeos. No final do concurso é possível perceber que outros atores sociais ligados ao universo das empregadas domésticas também ingressam na interação, neste caso dando apoio às suas candidatas. Na última imagem temos o ingresso do ator social no sistema midiático, onde Marilene fala na condição de vencedora do concurso a empregada mais cheia de charme do Brasil. Figura 7 – Imagem de tela - A complexificação do contato A C B Fonte: Rede Globo (2012). No recorte dois a página da internet operacionalizou a interação ao disponibilizar o local para a votação dos telespectadores e também a partir da exibição na integra nos videoclipes produzidos pelas telespectadoras empregadas domésticas. Figura 81 – Imagem de tela - Videoclipe das semifinalistas B A Fonte: Rede Globo (2012). 3.3 Recorte 3- Pós-quadro: o ritual de celebração da incursão do ator social no sistema midiático 117 No recorte três é possível perceber que o fluxo televisão-internet perdeu força uma vez que a celebração do ingresso do ator social foi desenvolvida pelo programa na televisão. Já a página do programa na internet teve o papel de apenas repercutir a reportagem da entrega do prêmio a vencedora e disponibilizar mais uma vez videoclipe vencedor. A zona de contato foi marcada por operações de visibilidade do ator social que ingressa de uma outra forma na interação com a televisão. O funcionamento da zona de contato presente na reportagem de entrega do prêmio inicia mostrando o universo privado da vencedora, mostrando cenas dela no trabalho em Salvador. Figura 9 – Imagem de tela - O reconhecimento do público B A C Fonte: Rede Globo (2012). Para logo a seguir documentar o ingresso da telespectadora no sistema midiático, materializado no sua chegada PROJAC, mostrando toda a preparação para receber a premiação que é participar na cena da telenovela. Figura 10 – Imagem de tela - Nos corredores da fama B A C Fonte: Rede Globo (2012). 4. Considerações finais Do ponto de vista do funcionamento da zona de contato, os três recortes analisados se constituem em instâncias nas quais marcas de sua circulação estabeleceram um fluxo comunicacional segundo a articulação de circuitos, quais sejam: televisão + internet + atores sociais; telenovela + programa + telespectadores; promoção + videoclipe matriz + videoclipe das empregadas domésticas. Esses circuitos comunicacionais são ativados como vias de produção de sentido que envolvem articulações entre as gramáticas de 118 produção e as gramáticas de reconhecimento. Os discursos que emergem em tal processo estão ligados às dimensões afetivas, linguísticas e normativas que foram instaladas por movimentos de ordem técnica, simbólica, discursiva e legal. Ademais, foram dinamizados por meio de operações discursivas que foram convertidas em marcas do contato, visibilizando-se através de diferentes situações de enunciação, como: a divulgação do concurso e sua premiação, as especificidades técnicas e discursivas da produção do videoclipe e as regras de participação - elementos que condicionaram a participação dos telespectadores. A zona de contato, enquanto elemento vinculante entre dois polos, se organiza por estratégias de articulação que são ativadas pelo sistema midiático no sentido de trazer o telespectador para novos regimes de contato. Com base em nosso estudo de caso, compreendemos que o ponto de articulação principal com o telespectador foi a lógica do concurso como promoção, o que se materializou em enunciações que se tornam concretas nas operações discursivas do programa, através das quais o contato foi estabelecido e transformado em vínculo com o telespectador. O videoclipe enquanto elemento tecnodiscursivo funcionou como dispositivo simbólico da própria promoção e recebe caráter de matriz do contato, sendo transformado em uma espécie de espelho e guia das interações, gerando fluxos e circuitos comunicacionais que sustentaram estratégias e operações que organizaram as relações entre o sistema televisivo, via programa e telespectadoras. O modelo interacional que resulta desse processo coloca em contato e articula lógicas do sistema midiático, oriundas do infotenimento televisivo, com as n lógicas do sistema socioindividual do universo dos atores sociais - em especial, das empregadas domésticas. Nessa construção, as lógicas de funcionamento do sistema midiático enquanto discursividade televisiva - são colocadas como condição para a interação, como é o caso da indução por meio de um convite para produzir uma peça audiovisual. O novo status do receptor em tais condições se transforma em novas possibilidades de contato e de interação pela estratégia televisiva que gera um novo modelo interacional; desloca-se ainda da questão da captação da atenção do telespectador para a captação da sua discursividade, que se estabelece a partir de protocolos de ativação da participação. Outra marca significativa que se instaura nesse processo, ativado pelo programa enquanto a zona de contato, diz respeito, em nosso entender, à concepção de uma nova discursividade televisiva que surge do encontro entre a televisão e o telespectador nesse novo lócus interacional. As marcas dessa nova discursividade são evidenciadas e 119 visualizadas a partir da linguagem e dos movimentos de coenunciação enquanto operações discursivas. Ao dar visibilidade à atividade discursiva das empregadas domésticas e, ao mesmo tempo, ao tecer comentários sobre esses conteúdos, o programa originou um novo movimento como marca do contato. Outrossim, há um encontro das gramáticas de produção e das gramáticas da recepção em produção, que se ativaram ao fomentar uma nova operação discursiva que tem a potencialidade de redefinir as condições de produção. Inferimos também que esse traço se apresenta como uma tendência de comportamento a se manifestar cada vez mais na ambiência midiática, em especial, do ambiente televisivo, no contexto da Sociedade em vias de Midiatização. REFERÊNCIAS CARLÓN, Mário. Repensando os debates anglo-saxões e latino-americanos sobre o “fim da televisão”. In: CARLÓN Mário; FECHINE, Yvana (Org.). O fim da televisão. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2014. p. 11-33. CASSETI, Francesco; ODIN, Roger. De la paléo à la néotélévision. Communications, [S.l.], n. 51, p. 9-26, 1990. Disponível em: <http://www.uff.br/ciberlegenda/ojs/index.php/revista/ article/view/596/ 339>. Acesso em: 14 maio 2013. ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. FAUSTO NETO, Antonio; SGORLA, Fabiane. (2013). Zona em construção: acesso e mobilidade da recepção na ambiência jornalística. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 22., 2013, Salvador. Anais eletrônicos... Salvador: Disponível em <http://www.compos.org.br/biblioteca.php>. Acesso em: 16 maio 2014. FAUSTO NETO, Antonio. Fragmentos de uma analítica da midiatização. Matrizes, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 89-105, abr. 2008. HJARVARD, Stig. A midiatização da cultura e da sociedade. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2014. PEDROSO, Daniel. Interações entre a televisão e o telespectador na Sociedade em vias de midiatização: Um estudo de caso do quadro A Empregada mais cheia de charme do Brasil do programa Fantástico. 2015. 282f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, 2015. REDE GLOBO. A empregada mais cheia de charme do Brasil. Fantástico. Rio de Janeiro, 25 maio a 08 set. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/fantastico/index.html>. Acesso em: 25 maio 2012b. Informações coleta no site da Globo.com referente ao concurso cultural “A empregada mais cheia de charme do Brasil”. SCOLARI, Carlos A. This is the end: as intermináveis discussões sobre o fim da televisão. In: CARLÓN Mário; FECHINE, Yvana (Org.). O fim da televisão. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2014. p. 34-53 120 VERÓN, Eliseo. La semiosis social, 2: ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós Planeta, 2013. VERÓN, Eliseo. Televisão e política: história da televisão e campanhas presidenciais. FAUSTO NETO, Antonio; VERON, Eliseo; RUBIM, Antônio Albino (Org.). Lula Presidente: televisão e política na campanha eleitoral. 1. ed. São Paulo: Hacker, 2003. p. 1542. VERÓN, Eliseo. El cuerpo de las imágenes. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2001. VERÓN, Eliseo. Esquema para el análisis de la mediatización. Diálogos, Lima, n. 48, p. 9-17, 1997. A cultura da convergência entre televisão e web: o caso do CQC 3.0 Aline Streck Donato62 Resumo: As barreiras que definiam o que era uma mídia e o que era outra se esvaem, criando produtos informativos híbridos, oriundos de mais de um tipo de mídia. A convergência midiática possibilita que o espectador deixe de ser passivo e comece a participar do procedimento que se instaura. Esse estudo tem o intuito de refletir, com base na Hermenêutica de Profundidade, sobre as transformações culturais surgidas por intermédio da convergência a partir de um programa convergente: o CQC 3.0 da Band. Palavras-chave: convergência; cultura; televisão; web; CQC 3.0 INTRODUÇÃO A convergência midiática estabelece-se no contexto de inovações dos meios de comunicação como uma agregadora de potencialidades de veículos de informação distintos, com o intuito de aprimorar a maneira como o consumo do produto midiático será realizado, assim como permite que o receptor deixe de ser passivo e passe, a partir das peculiaridades inerentes á convergência, a participar do processo de criação e difusão da informação. 62 Doutoranda e Mestra em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale.. Bolsista Capes. Bacharel em Jornalismo. Professora do curso de Produção Multimídia da FTEC Faculdades. Contato: [email protected] 121 Com o intuito de elaborar um diâmetro de discussão acerca da convergência entre televisão e web, o presente estudo apresenta o decurso dessa nova manifestação cultural no cenário social e, do mesmo modo, propõe-se a compreender como as possibilidades de interação, colaborativismo e hipertextualidade podem intervir na transformação cultural do grupo que consome o produto convergente. Estabelece-se através da convergência entre distintas mídias uma modificação na maneira em que a informação é concebida, pois o feedback do receptor/usuário é fundamental na construção de sentido da informação emitida pela mídia convergente. Um exemplo pode ser observado no programa CQC 3.0, que possui um formato inédito no Brasil, que integra a lógica de produção televisiva com as ferramentas e o processo de difusão da informação típicos da web. O CQC 3.0 tem duração de aproximadamente trinta minutos e é uma continuação do programa CQC na web, onde os apresentadores interagem com os espectadores através de conferências de vídeo, redes sociais e chat. A partir da Hermenêutica da Profundidade de Thompson (1995), pode-se compreender os aspectos culturais que a convergência entre TV e Web calcam na sociedade, além de entender e identificar o perfil do espectador convergente. A importância da pesquisa acerca da produção e compreensão dos novos produtos midiáticos resultantes da convergência entre meios de comunicação justifica-se pelas transformações culturais que possibilitam no cerne da sociedade moderna e na constituição do indivíduo. CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA As transformações que o desenvolvimento da tecnologia acarreta no mercado midiático são constantes e cada vez mais elaboradas, demarcando a nova velocidade do mundo. Assim como os impactos por novidades na área da comunicação surgem literalmente a todo o momento, é inevitável que se faça uma abordagem da convergência entre a mídia e a tecnologia. Nesse sentido, o autor Henry Jenkins (2009) intenta mostrar como o pensamento moderno de convergência está influindo na cultura popular e como está impactando a relação entre públicos, produtores e conteúdos de mídia. Outros pesquisadores, como Fragoso (2005) e Aquino (2010) explicam que tal processo é muito anterior à digitalização. Conforme elas, todas as mídias (mesmo as mais antigas) são desenvolvidas 122 hibridamente pela linguagem e, por estarem dentro de um sistema complexo, tornam-se referência para qualquer tecnologia com aspirações midiáticas. O termo convergência é designado por Jenkins (2009) como o fluxo de conteúdo através de múltiplas plataformas de mídia, assim como à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento “migratório” dos públicos dos meios de comunicação. Segundo ele, o usuário, hoje, vai a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que almeja. A convergência, dessa forma, serve para atender as necessidades e os desejos de quem não se satisfaz apenas com a informação fornecida por uma mídia tradicional e procura, através da inovação, uma maneira de ter sua curiosidade suprida pelas ferramentas disponíveis na convergência. Como reitera Jenkins (2009, p. 30), “[...] a convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos”. A convergência pode ser encarada como o resultado dos anseios do consumidor moderno. O autor diz ainda que o processo pode se definir devido à tecnologia, pois: Diversas forças começaram a derrubar os muros que separam esses diferentes meios de comunicação. Novas tecnologias midiáticas permitiram que o mesmo conteúdo fluísse por vários canais diferentes e assumisse formas distintas no ponto de recepção (JENKINS, 2009, p. 38). O antigo paradigma da revolução digital, de acordo com Jenkins (2009, p. 32-33), presumia que as novas mídias substituiriam as antigas e que tudo isso permitiria aos consumidores acessar os conteúdos com mais facilidade. Em contrapartida, para ele, o que se estabeleceu foi o emergente paradigma da convergência, que garante que novas e antigas mídias possam interagir de formas cada vez mais complexas. Resumidamente, percebe-se que os velhos meios de comunicação não estão sendo substituídos, mas revendo suas funções, que estão sendo transformadas em decorrência da introdução de novas tecnologias. Tal mudança de padrão demonstra a transformação pela qual passaram os mercados midiáticos, ou como ressalta Jenkins (2009, p. 27): “[...] é onde velhas e novas mídias colidem, onde a mídia corporativa e a mídia alternativa se cruzam, onde o poder produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis”. A convergência, então, é um campo que combina tecnologias, ferramentas, linguagens, meios, produtores e receptores de conteúdos midiáticos. De natureza híbrida, 123 integra elementos selecionados para proporcionar uma eficiência maior na transmissão de conteúdo e, é no contexto digital, segundo Aquino (2010), que sua função se potencializa. É no ambiente digital, inclusive, que o receptor tem a possibilidade de participar, embora em níveis de diferentes graus de influência, do processo de produção de conteúdo. Jenkins (2009, p. 189) corrobora que “[...] o momento atual de transformação midiática está reafirmando o direito que as pessoas têm de contribuir ativamente com sua cultura”. A partir de tal assertiva, entende-se que a convergência não é apenas aquela que ocorre entre equipamentos, mas a que realiza transformações de cunho social a partir das interações realizadas através de seus aparatos tecnológicos, dando ao receptor – e agora também produtor de conteúdo – a opção de participar ativamente na construção da informação. São os usuários dos produtos midiáticos que sedimentam as mídias em decorrência do consumo. Por intermédio da convergência eles podem, além de trocar informações sobre o meio, fazer sugestões e fornecer sua opinião, em uma troca constante com outros usuários e os responsáveis pelo produto midiático. Aquino (2010) destaca o papel do público na participação do processo de produção e circulação de conteúdos midiáticos. De acordo com a autora, além de um caráter técnico, o conceito de convergência faz referência ao estabelecimento de um contexto cultural. O poder destinado ao receptor não se limita a apenas escolher o horário e o produto midiático que irá consumir. Ele tem a capacidade de opinar, orientar e formar laços sociais com consumidores iguais a ele, além de estabelecer uma relação de mão-dupla com os produtores de mídia. A convergência não se concretiza sem a participação dos atores sociais. Jenkins (2009), a partir de tal ponto de vista, garante que a circulação de conteúdos depende fortemente da participação ativa dos consumidores. Para ele “[...] a indústria midiática está cada vez mais dependente dos consumidores ativos e envolvidos para divulgar marcas num mercado saturado” (JENKINS, 2009, p. 190). É como se a função de “curador da convergência” fosse atribuída ao usuário, sendo que é para ele e através dele que a fusão dos meios configura-se e alcança o êxito pretendido pelos conglomerados midiáticos. Assim, os intercâmbios constituídos entre usuários e produtores das mídias convergentes não são potencializados unicamente pela emissão de um produto em específico para diversos suportes. Em resposta à convergência midiática, segundo Jenkins (2009), surgiu a narrativa transmídia. O autor relata que ela é a arte da criação de um universo, pois os consumidores assumem o papel de caçadores e coletores de pedaços de histórias que se desenrolam por 124 meio de múltiplas plataformas. Em suma, a narrativa transmidiática é a produção de um mesmo conteúdo em diversos aparatos tecnológicos. Jenkins (2009) afirma ainda que existem grandes motivações econômicas na narrativa transmídia, devido ao interesse em unir entretenimento e o marketing, criando assim, ligações emocionais nos consumidores para que esses busquem mais informações acerca de um produto em diversas mídias e, consequentemente, aumentem as vendas. Os formatos dos produtos da era convergente também devem ser pensados e desenvolvidos de modo que seus potenciais possam ser exequíveis pelos aparatos técnicos que integram o processo. As possibilidades interativas devem ser levadas em conta, pois, é através dessas ferramentas de feedback que os produtores terão o retorno acerca do que criam. Aquino (2010) afirma que a maneira que o produto convergente será consumido perpassa não apenas o âmbito técnico, mas também as formas de produção e as maneiras de recepção, influenciadas não só pelos contextos e aparatos tecnológicos, como também pelas possibilidades de interação mediadas por tal conjunto de tecnologias. O produto convergente, para alcançar êxito e cumprir as funções com as quais se propõe, deve ser pensado de tal maneira que atenda as características da inovação que fazem que as novas mídias não se tornem obsoletas ou caiam em desuso. Como foi apresentada anteriormente, a hipótese de que uma mídia nova e em ascensão destrói a anterior é descartada na era da convergência. Não existe batalha entre elas, pois a intersecção e o aproveitamento de ferramentas de ambas as partes é o que constitui a lógica de um produto convergente. Alguns autores defendem que já não há mais sentido em tentar separar as mídias, sendo que tudo é conteúdo digital que pode ser convertido para distintas plataformas. “As empresas não mais se definem como produtoras de uma única mídia (revista, internet, televisão, etc.), e sim como produtoras de conteúdo” (CANNITO, 2010, p. 84). A escolha pela não definição de um produto acarreta na tendência de fusões entre empresas de diferentes setores da mídia. Dessa forma, elas podem criar conteúdos híbridos, sem o compromisso de seguir um padrão já estabelecido na produção de conteúdo referente à determinada mídia. A combinação entre televisão e internet tem sido vista como uma promissora aposta para o futuro do mercado midiático. É sabido que a televisão, atualmente, é o meio de comunicação mais influente na vida dos brasileiros, enquanto a internet vem se consolidando como um espaço de livre circulação de conteúdos. 125 Quando se aborda o tema da convergência entre a televisão e internet, estabelece-se como ferramentas essenciais a interatividade63, a democratização dos produtores, os conteúdos colaborativos, horários de programação a escolha do usuário e as ferramentas para que os receptores se expressem. Tais aparatos permitem que exista, através da relação produtor/receptor, uma maior eficácia na recepção do conteúdo veiculado. Para alguns pesquisadores, esse processo já se tornou realidade está criando novas formas dos sujeitos se relacionaram com o conteúdo televisivo. De acordo com Fechine e Figueirôa (2010), o progresso da digitalização alterou a maneira como os indivíduos utilizam a televisão. Para eles, os grupos midiáticos estão modificando seus negócios e sua penetração social a partir da transmídia e, agora os usuários, além de usufruírem da programação televisiva, podem dar continuidade ao seu consumo por meio de sites, blogs, twitters e celulares. O presente processo de convergência de mídias e de conteúdos, que contempla um convívio comum entre o fluxo contínuo das grades de televisão com os fluxos fluídicos, não lineares da internet, efetivamente tem movimentado as relações entre as instâncias de produção e recepção. A interatividade nos produtos televisivos se define como um diálogo que leva os espectadores da postura de passiva à de agentes, ainda que por meio de suas escolhas. Para Cannito (2010, p. 144), essa lógica remete que “[...] o espectador tem a impressão de que também está no comando do “jogo”, algo que a televisão se empenhava em fazer e que só se efetivou no ambiente digital”. Para dar conta da pesquisa proposta, o presente trabalho analisará o programa de CQC 3.0 produzido para a web. O programa, que tem duração de 30 minutos, é uma continuação daquele que é veiculado em rede pela Rede Bandeirantes de Televisão nas segundas-feiras às 22 horas e 30 minutos. Com o slogan “CQC 3.0, o canal de interatividade entre você e os apresentadores do CQC”, o programa deixa bem claro que o foco principal do CQC 3.0 é o próprio espectador/usuário. Utilizando os mesmos apresentadores do CQC emitido pela Band, o CQC 3.0 é improvisado e oferece discussões dos temas e reportagens tratados no programa exibido na televisão, além de realizar concursos culturais com os espectadores e trazer alguns conteúdos exclusivos. 63 Conexões e reinterpretações produzidas ao longo de zonas de contato pelos agenciamentos e bricolagens de novos dispositivos que uma multiplicidade que atores realizam (LÉVY, 1993, p. 107). 126 O site64 pelo qual o programa CQC 3.0 é transmitido apresenta uma estrutura peculiar que agrega, por meio de uma interface interativa, a possibilidade do usuário participar do programa utilizando as redes sociais Facebook e Twitter, chat do próprio programa e conferência de vídeo via Skype. METODOLOGIA DE PESQUISA: HERMENÊUTICA DA PROFUNDIDADE Para dar conta da análise proposta pelo presente estudo, procurou-se encontrar, dentre diversas experimentações existentes no mercado, um programa que representasse um novo produto de mídia e que possibilitasse a participação dos usuários e permitisse ao mesmo possuir voz frente ao que lhe é ofertado para consumo. Assim, o objeto de análise escolhido foi o programa CQC 3.0, com o intuito de refletir acerca dos novos conteúdos de mídia e inovações hoje presentes na sociedade. De caráter qualitativo, esta pesquisa utiliza como método a Hermenêutica da Profundidade (HP) de Thompson (1995). O autor adota a Hermenêutica da Profundidade para estudar a produção de sentido por meio das formas simbólicas. A HP é composta por três estágios de análise que serão aplicados na presente pesquisa da seguinte maneira: a) Análise sócio-histórica, que possibilitará a compreensão e contextualização da convergência midiática no corpus selecionado; b) Análise formal-discursiva, que permitirá a identificação de formas simbólicas apresentadas no CQC 3.0, assim como irá ser apresentado o programa e suas características; c) Interpretação/reinterpretação, que concerne à construção do significado de algo que é representado ou dito a partir dos dois estágios anteriores. Um dos aspectos que mais se destacaram na contextualização da primeira fase da Hermenêutica da Profundidade, a análise sócio-histórica, é a globalização. Quando se analisa um produto que é fruto de uma sociedade e de um mercado globalizado, como o CQC 3.0, é de suma importância que se aborde esse tema. Por esse motivo, foram apresentados conceitos que mencionavam sua influência para a expansão tecnológica dos produtos inerentes à convergência midiática, o que possibilitou que atualmente produtores e receptores de produtos midiáticos interajam de maneiras antes inimagináveis, como ocorre com o próprio corpus da presente pesquisa. 64 Disponível em http://cqc.band.com.br/cqc30.asp 127 Com a globalização, surgiu a fragmentação das identidades e da concepção do sujeito moderno que consome produtos midiáticos atuais, pois este é constituído a partir de referências mundializadas que agrega ao longo da vida. O conhecimento acerca desse sujeito será importante para a tentativa da presente pesquisa estabelecer as principais características do corpus selecionado para análise. Quando se pensa no sujeito moderno, deve-se levar em conta o papel que as mídias constituem para a construção de sua identidade, pois é por meio delas que se apresentam as referências mundiais e tecnológicas. A abordagem da cultura das mídias é fundamental para que se possa esboçar a relação entre a tecnologia e os usos que os sujeitos sociais fazem dela. A partir desse caminho será possível compreender de que maneira a convergência midiática se integra nesse contexto social, onde cada vez mais é reivindicada a participação do consumidor na produção de conteúdo midiático. Como a presente pesquisa tem o objetivo principal de investigar e analisar o processo de convergência midiática entre televisão e web a partir do programa CQC 3.0, as categorias da segunda fase da HP, a análise formal-discursiva, serão estudadas a partir da estrutura e do conteúdo do programa. As categorias que se referem ao conteúdo denominam-se “Relação entre o conteúdo do CQC e CQC 3.0” e “Relação entre usuário e produtor de conteúdo”, enquanto as de cunho estrutural se chamam “Transmídia” e “Participação do usuário”. É evidente que as constantes referências ao CQC da televisão fazem parte da constituição do CQC 3.0. O programa pode ser compreendido como um ambiente de discussão entre os apresentadores e os internautas a respeito dos temas abordados no programa da televisão, além de agregar características interativas que, devido ao formato, não teriam tanto êxito na TV. Isso propicia tanto aos apresentadores quando os internautas a viabilidade de discorrer com mais liberdade e autonomia, em questão de linguagem, os assuntos pautados pelo CQC da televisão. A partir da observação do conteúdo abordado tanto no programa CQC quanto no CQC 3.0, fica clara a relação de assuntos provindos do primeiro para o segundo. O CQC 3.0 utiliza grande parte do seu espaço para debater (de forma cômica) os temas do CQC, permitindo que seu público sane dúvidas e dê sua opinião sobre o programa da televisão. Alguns minutos antes de iniciar o programa CQC 3.0 via web, é liberada a entrada dos usuários no chat da plataforma. A partir deste momento, já começam a surgir comentários de internautas acerca do CQC da televisão. Em trinta minutos de duração do CQC 3.0, grande parte dos comentários fazem referência a situações ocorridas no CQC, o 128 que infere que o comportamento migratório do público, característica da transmídia65, efetua-se nessa instância de comunicação. Ou seja, logo após o término do CQC emitido pela televisão, uma parcela considerável do público passa a utilizar outros meios de comunicação para consumir mais informações acerca do programa. O CQC 3.0 encontrou na ferramenta chat, disponibilizada pela web, uma alternativa barata, simples, dinâmica e instantânea para interagir com o seu público, algo avançado até mesmo para os sites. Geralmente, na maioria dos sites e portais, o internauta, quando pretende se comunicar com o produtor de conteúdo, tem a sua disposição ferramentas que não oferecem resposta imediata, como comentários e e-mail. Já o CQC 3.0, com a utilização do chat pelos apresentadores em tempo real, oferta ao cidadão comum a possibilidade de ter voz ativa perante ao que consome, caracterizando a lógica da convergência midiática. Por meio do site do CQC 3.0, os internautas possuem quatro diferentes maneiras de participar do programa. A primeira delas é através do chat, que começa sua transmissão toda segunda-feira minutos antes do início do CQC 3.0. Para fazer parte do chat, o usuário deve cadastrar um nome ou apelido. Ele pode enviar imagens e ainda tem a possibilidade de se conectar através das redes sociais Facebook e Twitter. Quando conectado a qualquer uma destas redes, é permitido ao internauta o compartilhamento do comentário de qualquer usuário do chat. Outro modo de participação do usuário no site é através do “Vc no CQC 3.0”. Para entrar ao vivo no programa (fora do estúdio), o internauta deve ter uma conta no Skype, uma webcam e um microfone. Após preencher um formulário online contendo alguns dados como nome, e-mail, telefone, perfil do Facebook e endereço no Skype, o usuário deve gravar um vídeo mostrando seu talento especial, além de deixar uma mensagem relatando o porquê de sua motivação a participar do programa. Toda segunda-feira é escolhido um espectador para participar do CQC 3.0. “Invasão Facebook” é a terceira ferramenta que permite a participação dos usuários no CQC 3.0. Se escolhido, o internauta terá suas fotos e conta no Facebook comentadas pelos apresentadores durante o programa, além de ser destaque no site do CQC por uma semana e ganhar um avatar66 especial para usar nas redes sociais. Para se candidatar, o usuário deve fornecer seu nome, e-mail, telefone e perfil no Facebook. 65 66 Jenkins (2009). Segundo Soares et al. (2006), é a representação do internauta no mundo virtual. 129 Por fim, o espectador do CQC 3.0 ainda pode participar do programa por meio do Top Five 3.0. Para isso, deve enviar qualquer vídeo da internet que ache engraçado, sendo que o mais votado da semana é exibido no programa. Sobre o CQC 3.0, Frey et al. (2011) relata que é uma ferramenta que permite ao internauta interagir diretamente com os apresentadores, e que nesse formato, os internautas podem enviar vídeos e perguntas de seu interesse que serão abordadas ao longo do programa. Lusvargui (2012), nesse sentido, aponta que a web proporcionou a expansão de conteúdos midiáticos, fazendo com que os grupos de mídia ampliem seu alcance. O jornalismo do entretenimento, por exemplo, embora moldado enquanto fluxo de comunicação pela internet, encontra um parceiro ideal na televisão, pois garante o retorno de notícias destinadas a atender as massas. O que se observa na categoria “Participação do Usuário” no site do CQC 3.0 é a tentativa de estabelecer um vínculo entre produtor de conteúdo e espectador. As diversas ferramentas fornecidas pela interface do site reiteram o poder que o usuário tem na era da convergência das mídias. No caso do CQC 3.0, em específico, percebe-se que, salvo algumas exceções, todo o programa se baseia pela participação dos internautas. CONSIDERAÇÕES FINAIS O debate que é movimentado a respeito de qual mídia é mais importante ou que irá se sobressair sobre as demais não tem mais espaço na convergência. Nela, tudo se funde, conflui, mescla. A convergência dá a possibilidade de os produtores experimentarem novas práticas que atuem simultaneamente em diversas plataformas e, dessa forma, aprimoraram os produtos midiáticos. E quem sai ganhando é o usuário. Agora, ele não precisa mais se enquadrar na figura de espectador passivo, que tinha como “arma” apenas o controle remoto para se defender das imposições dos veículos midiáticos. Ele pode, agora, navegar pelas possibilidades de seu interesse, escolhendo o tempo e as maneiras para tal apreciação do produto. Com a convergência dos meios de comunicação os receptores têm a opção de se comunicar melhor e, consequentemente, diminuir os vazios informativos, possibilitando uma melhor convivência social. A inovação que se dá por meio dessas práticas quebram fronteiras, mostrando técnicas que diariamente se renovam e aperfeiçoam em uma seqüência cada vez mais veloz. 130 Atualmente, o telespectador pode, ao mesmo tempo em que assiste a seu programa favorito, acessar mais informações sobre ele, além de interagir com outros usuários e os próprios produtores. Tal ação faz com que ele adquira voz e possa influir no conteúdo que está recebendo. A web, nesse contexto, entra como uma potencializadora do fluxo e difusão de informações. Através das ferramentas que disponibiliza, como a possibilidade de agregar em uma mesma página vídeos, textos e fotos, além do fácil envio destes de qualquer aparelho e pessoa que capte essas informações, permite que o usuário receba em tempo real os fatos que acontecem. A convergência entre os dois meios surge no mercado como uma plataforma midiática híbrida e eficiente ao que se propõe. Outra característica dos produtos convergentes é a possibilidade de escolha dada aos usuários no consumo de informações. É ele quem decide, através de uma diversidade de produtos que lhe são ofertados, aquilo que julga importante saber. Os consumidores de informações passam, então, a formar grupos de interesse distintos, não sendo mais encarados pela mídia como uma sociedade de massa. Uma importante estatística que deve ser levada em conta na era da convergência é que o número de pessoas que migraram da frente da televisão para o computador aumenta rapidamente e a previsão é que tal fato ganhe ainda maior proporção à medida que o público vai rejuvenescendo. Esse público não se contenta mais com a passividade, ele necessita ouvir e ser ouvido. Especificamente sobre o objeto do estudo, o programa CQC 3.0, pode-se afirmar que o mesmo exemplifica a lógica de um mercado midiático em ascensão e que cada vez mais está apostando em técnicas e formatos diferenciados de programas para a conquista de consumidores. Em uma época onde o público se fragmenta à medida que procura novas alternativas e propostas de produtos midiáticos para sanar sua curiosidade e desejo frente à mídia, o CQC 3.0 surge como uma inovação no mercado midiático já saturado do Brasil pois, mesmo que tenha sido originado e responda à uma rede de televisão que se baseia na lógica capitalista, possui peculiaridades que democratizam a informação e salientam a importância do receptor. Por fim, conclui-se que este estudo, que tem por base a identificação e contextualização da cultura da convergência a partir das manifestações culturais, abre espaço para mais investigações. Assim, as descobertas realizadas por esta pesquisa servirão como base para novos estudos acerca da cultura da convergência a serem desenvolvidas na trajetória acadêmica da autora. 131 Referências Bibliográficas AQUINO, Maria Clara. Redes Sociais como ambientes convergentes: tensionando o conceito de convergência midiática a partir do valor visibilidade. In: IV Simpósio Nacional da ABCiber, 2010, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. CANNITO, Newton. A televisão na era digital: interatividade, convergência e novos modelos de negócio. São Paulo: Summus, 2010. FECHINE, Yvana. A programação da TV no cenário de digitalização dos meios: configurações que emergem dos reality shows. In: FREIRE FILHO, João (Org.). A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo. Porto Alegre: Sulina, 2009, p. 139-170. FRAGOSO, Suely. Reflexões sobre a convergência midiática. In: Líbero. Ano 8, n. 15/16, 2005, online. 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Foram analisados 40 enunciados, de 20 apresentadores (10 homens e 10 mulheres), de 6 telejornais, abrangendo 3 redes de televisão. Os enunciados foram classificados em 2 tipos de notícias: positivas e negativas. Para uma melhor clareza deste estudo, foram utilizados procedimentos estatísticos tabelas e gráficos da média das frequências médias encontradas e a média da variação. Foi realizada análise acústica computadorizada da frequência média e variação de cada enunciado. O quadro teórico básico deste trabalho integra elementos da teoria semiótica francesa, da enunciação, da fonoaudiologia e alguns aspectos da retórica. Buscou-se descrever, através dos pressupostos das três áreas, o discurso dos telejornais demonstrando sua estratégia de construção de verdade, os procedimentos utilizados neste fazer e o papel da voz neste processo. Os resultados confirmam a presença da relação voz e efeitos de sentido nos telejornais. Nas notícias positivas, houve um aumento da média das frequências, já nas negativas houve um decréscimo, tanto nos homens como nas mulheres. A variação das médias das frequências foi mais significante nas locuções femininas. Conclui-se que a voz tem um papel importante como estratégia de persuasão na busca de credibilidade da notícia e é largamente utilizada pelos apresentadores de telejornais. Palavras chaves: voz, telejornal, frequência e efeitos de sentido. 133 Introdução Pela voz, se transmite informações linguísticas assim como outras informaçoes menos evidentes num primeiro momento. Podemos dizer que a voz é um ato laríngeo, linguístico e social. A expressividade vocal abrange o uso de recursos de fala e voz embrenhados pelas características físicas e psicológicas inerentes ao locutor, e pelas especificidades do contexto cultural, social e profissional que podem ser interpretados pelo interlocutor no contexto interacional. Este estudo teve como finalidade analisar os procedimentos vocais utilizados nos telejornais como estratégias para reforçar os efeitos de sentido pretendidos na divulgação das informações. Nesta pesquisa usamos como suporte teórico a Linguística enunciativa de Émile Benveniste, fundador do campo enunciativo, e os estudos do discurso das mídias de Patrick Charadeau. Assim, a linguística que nos interessa é, por motivos evidentes, como veremos, aquela que coloca o sentido no centro de sua concepção teórica: uma linguística do sentido que estuda o uso que um locutor faz da linguagem em uma dada situação. Por esse viés, distanciamo-nos de uma concepção de linguagem circunscrita ao papel de instrumento, destinado somente a transmitir informações. Assumimos, pois, uma perspectiva de linguagem entendida como atividade entre dois protagonistas, locutor e interlocutor, atividade através da qual o locutor se situa em relação ao interlocutor – a sua enunciação –, ao seu enunciado, ao mundo, a enunciados passados e futuros, etc. A simples observação dos telejornais mundiais é suficiente para dar a ver que, malgrado as variações locais, as diferenças culturais, linguísticas e econômicas, todos apresentam semelhanças estruturais. Isso que, por um lado, coloca em evidência certa “universalidade” do modo de fazer telejornal – endereçamento semelhante ao telespectador; semelhanças na estrutura básica etc. –, por outro lado, nos convoca a ver como o locutor exerce papel fundamental na singularização dessa forma recorrente. 134 O telejornal é, antes de tudo, um lugar onde se dão processos enunciativos na narração de eventos. Falantes diversos se sucedem, se revezam se contrapõem uns aos outros, falando, se colocando nitidamente com o seu discurso em relação aos fatos relatados. A hipótese desenvolvida é a de que, nos telejornais, acontecem processos enunciativos, na narração de eventos em que, pela voz, compondo a linguagem televisiva, o telejornalista pode, de certa forma, direcionar, o telespectador ao mesmo tempo em que, ele (locutor), se constitui como sujeito no seu discurso. 1. O Telejornal Mesmo com o surgimento de outras mídias da internet, com Twitter, Facebook, e outras redes sociais, para a maior parte do público brasileiro, a televisão é, ainda, a única fonte de informação, isto equivale a dizer que ela sugestiona fortemente a opinião, os valores e o comportamento dessas pessoas. Há uma tentativa de predeterminação das reações dos telespectadores segundo os interesses de cada telejornal e cada grupo de interesses constrói um telespectador à sua imagem, baseado num aspecto parcial de seu comportamento. Os diferentes orgãos de informação das emissoras tentam determinar seu público com a ajuda de pesquisas, sondagens e procedimentos diversos, na tentativa de tornar a mensagem o mais homogêneo possível, em função das ideias que cada um faz dos telespectadores. Ainda assim, essa homogeneização é apenas a superficial determinando que o falar deva ser simples para facilitar a comprensão e emocional para a captação do publico (Charaudeau, 2012). O texto é condicionado àqueles a quem se dirige, evidencia-se assim que há uma entonação interna na elaboração do discurso, dependente, de certa maneira, do horário do telejornal e tipo de público. Assim, o texto do telejornal deve ser claro, direto, simples adequado a uma linguagem coloquial; numa ligação direta com o telespectador com frases curtas, em ordem direta, de preferência com palavras também curtas, pois a televisão compete com algumas situações cotidianas que podem atrapalhar a atenção das pessoas na televisão (Squirra, 2004). Além disso, o telejornal atualmente pode ser acessado por meio de smartphones de qualquer lugar via internet. O repórter de televisão deve apresentar os fatos acontecendo ou que acabaram de acontecer há muito pouco tempo. Embora seja possível descrever o fato, isto 135 diminui a força dramática da telenotícia se não ocorrer no momento do acontecimento. Para realizar uma reportagem é importante que no repórter, a informação, o corpo, a expressão facial, gestos e voz atuem em harmonia. 1.2 A estrutura geral de um telejornal A transmissão de uma ideia ou uma emoção na fala se dá por meio da voz e o telejornalismo faz uso desse recurso, muitas vezes, num empenho em transmitir da forma mais convincente e intensa possível um sentimento acoplado à notícia; trata-se de ressaltar, através da entonação, partes do texto consideradas importantes do acontecimento narrado. Podemos dizer que esse é o caso das notícias lidas/faladas na apresentação nos telejornais que têm o objetivo de atrair e manter a atenção do telespectador para a reportagem que será veiculada pelo repórter. O telejornal brasileiro das 20 horas ou um pouco mais tarde, como na maioria dos países, é uma instituição nacional. Como num ritual social, ele atrai a população, no mesmo horário para assistir o resumo do que acontece no país e no mundo. Padrão este que é mundial, como na televisão americana e também nas européias; o que há é uma pequena diferença de horário de país para país, mas sempre acompanhando o horário do jantar, como relata LONCHARD (2005 p.15). “En dépit des nombreux augures qui annonçaient son déclin, voire sa disparition, un format reste dominant : le journal télévisé de soirée. Son horaire est variable puisqu’il correspond dans chaque pays aux horaires de repas de fin de journée. Il est significatif qu’en France les journaux des grandes chaines generalistes soient diffuses a 20 heures alors qu’en Angleterre ils sont diffuses a 18 heures et em Espagne a 22 heures ». O discurso televisivo é preparado para atingir objetivos específicos. Esses objetivos são efeitos visados, que podem acontecer ou não (Charaudeau, 2012). Nos telejornais, o discurso é em forma de relatos de acontecimentos passados recentes; corresponde a enunciados de caráter pretensamente objetivo na busca de autenticidade. A informação, como se sabe, não é uma matéria bruta. Ela é formatada por seleções de ordens diversas. E não existe informação de um lado e opinião do outro, ainda que os jornalistas televisivos afirmem e busquem constantemente o contrário. As percepções do ser humano são menos objetivas, conscientes e racionais do que se pensa. A percepção é antes de tudo selecionar e interpretar. Os indivíduos são 136 condicionados por padrões culturais, tendências pessoais derivadas de sentimentos, desejos, medos e experiências anteriores. É com a metáfora, “janela aberta sobre o mundo” que a televisão pretensamente agencia o telespectador prometendo mostrar o real. Mas a imagem-falante (que fala dela mesma) é um mito, pois, supõe que o sentido vem da imagem e não do mundo. Numa transmissão direta o telespectador tem a sensação de que faz parte do acontecimento em tempo real e, sobretudo, que ele assiste ou participa sem mediação, garantia de autenticidade e, portanto, de verdade. Essa concepção justifica a preferência dos telespectadores pela transmissão direta (ao vivo); o acesso ao direto atrai e fascina. Com gênero direto e com a pretensão de contar o que acontece no mundo, o telejornal é um concentrado de promessas para o telespectador, composto de várias instâncias de enunciação. O apresentador do telejornal, como recurso de compartilhamento de valores, ao narrar a notícia, usa implicitamente a voz, olhar e o gesto. 2. A voz- corpo físico Podemos dizer, de uma forma simplificada, que a voz, em seu aspecto fisiológico, é o resultado do equilíbrio entre a força do ar que sai dos pulmões (aerodinâmica) e a força muscular da laringe (mioelástica). Este som produzido pelas pregas vocais passa pelas cavidades de ressonância, compostas pela própria laringe, faringe, boca e cavidade nasal. A frequência fundamental da voz é número de ciclos, por segundo, de vibração das pregas vocais. Valores de frequência fundamental são expressos em Hertz (Hz) ou ciclos por segundo. A frequência fundamental (Fo) refere-se à frequência de maior ocorrência na fala. Do ponto de vista de emoção veiculada na voz, Behlau e Pontes (2005) pontuam que, de uma forma geral, pessoas com mais autoridade apresentam vozes mais graves, com emissão marcada e articulação clara, e pessoas dependentes, possuem emissões mais agudas, tons infantis e articulação pouco definida. Os tons mais agudos estão relacionados com situações de alegria, já os tons graves com situações tristes. Frequência e intensidade são parâmetros interdependentes. 137 As variações de intensidade no discurso mostram a habilidade do falante em demonstrar compreensão do sentido que se quer dar à mensagem. A expressão ou palavra enfatizada é geralmente mais longa e mais intensa. A intensidade fraca não atinge o ouvinte, denota pouca experiência nas relações interpessoais, medo, timidez ou complexo de inferioridade. Já a intensidade elevada está associada à franqueza de sentimentos, energia e vitalidade, mas também pode estar associada à falta de educação e invasão do espaço do outro. E uma intensidade adequada, geralmente é interpretada como respeito ao espaço do outro e controle de projeção da voz (Behlau e al., 2005). Observa-se, assim, a inter-relação entre frequência fundamental, intensidade e determinados sentimentos veiculados pela voz interpretados a partir da combinação desses parâmetros. É importante atentarmos para essas relações porque elas fazem parte dos recursos utilizados pelos apresentadores e repórteres dos telejornais que é este estudo. A voz do indivíduo é única. É a impressão vocal semelhante a impressão digital. Os ajustes desses diferentes mecanismos vão variar conforme o contexto do discurso, ambiente e emoção do falante no momento da emissão. 2.1 A expressão da emoção e a voz Aristóteles em sua obra Arte Retórica, refere que os oradores devem dar atenção a três aspectos da oratória: a força da voz, a harmonia e o ritmo. E ao mesmo tempo chama atenção para três elementos básicos do discurso: a pessoa que fala, o assunto de que se fala e a pessoa a quem se fala, sendo que a finalidade o discurso é o ouvinte e é somente o ouvinte quem pode se pronunciar sobre as o valor do discurso feito. De acordo com o pensamento aristotélico, as possibilidades de credibilidade das opiniões estão vinculadas à projeção de lugares comuns, de valores próprios de uma comunidade. Com isso, vê-se que um dos fatores fundamentais no ato de convencer é a comunhão de valores entre orador e auditório. Fatores que estão presentes nos telejornais na relação apresentador/telespectador. Podemos relacionar emoção e voz no meio televisivo, com os estudos de Fonagy realizados na área de psicofonética, considerado um dos mais importantes pesquisadores do discurso emotivo e o modo como se manifesta na fala. Em La vive voix (1991), o autor trabalha com quatro grandes secções: estilo vocal, mímica e metáforas vocais, bases 138 pulsionais da fonação e criação vocal. Serão trazidas aqui as secções mais relacionadas a este trabalho. Estilo vocal é a integração de mensagens quase sintomáticas ou gestuais com o sistema linguístico arbitrário. Os dois sistemas de comunicação são estreitamente ligados, sendo impossível produzir uma sequência de fonemas sem produzir, ao mesmo tempo, gestos articulatórios, pois é através dos gestos vocais (sons concretos) que aparecem os elementos do código linguístico. O autor propõe o princípio da distorção da mensagem linguística primária, que é estabelecido como princípio inerente à comunicação pela viva voz. Essa distorção é considerada expressão da atitude, e é mostrada por meio de uma série de manipulações expressivas das frases engendradas pela gramática. Tais manifestações são encontradas na manipulação da sequência de sons da palavra, da acentuação, da entonação, da distribuição das pausas, da ordem dos elementos significativos. Um princípio de isomorfismo rege a relação entre expressão e conteúdo emotivos, o qual determina que diferentes graus semânticos correspondam a diferentes graus de intensidade no plano da expressão sonora (voz). Desse modo, se estabelece uma correspondência entre a intensidade de uma emoção e a intensidade da atividade muscular subjacente a ela. Sintomas vocais de uma emoção assinalam a presença desta emoção e/ou atitudes derivadas. A tensão psíquica, a tensão fisiológica e tensão expressiva interrelacionam-se na produção vocal de cada som da linguagem. O som produzido reflete as mímicas glotal, faríngea e bucal, refletindo, portanto, a atividade muscular subjacente à expressão da atitude. Para Fonagy (1991), os experimentos fono-estilísticos possibilitam a veiculação de diferentes tipos de emoção de um mesmo enunciado por meio dos recursos do “estilo vocal”, ou seja, é possível mudar-se a mensagem de um enunciado sem alterar-lhe a forma escrita. A mensagem modificada pelas variações realizadas em torno da entonacão, do acento enfático, da taxa de elocução ou da qualidade de voz tem, na verdade, não só tem a propriedade de intensificar as mensagens fornecidas pelas evidências semânticas e pragmáticas concretas contidas no texto, como também a de impor-lhes um significado. Podemos dizer que no discurso, o sentido não se encontra apenas naquilo que é enunciado, mas também no próprio ato de enunciação. No acontecimento da fala, 139 podemos pensar o ato da enunciação por meio da entonação, ou seja, da voz. Se se pode enfatizar o sentido ou produzir um outro sentido, diferente do previsto pelas palavras, isto se dá pela voz, que faz parte desse processo. Assim, a entonação pertence à enunciação e não ao enunciado. O uso da língua implica variação e, consequentemente, permite certas escolhas, decorrentes de condicionamentos culturais, dialetais, sociais, psicológicos, políticos, pragmáticos, que influenciam a concepção, a opção estética e a interação humana. A língua permite o discurso e o sentido está no discurso. Fora da enunciação, do discurso, a entonação não existe; é somente no contato entre a língua e a realidade que ela acontece, que existe de fato a emoção, o juízo de valor, a expressividade. 3. A Enunciação e a televisão Como já falamos na introdução, o estudo do sentido na linguagem exige que se leve em conta o componente enunciativo (BENVENISTE, 2006). A análise do enunciado, tomado como produto da enunciação, torna-se impossível metodologicamente se se desconsidera o contexto, o evento enunciativo que o torna possível, a cena da qual participam interlocutores, tempo e espaço. A finalidade global dos telejornais é a informação por meio de uma mediaçãotransmissão para um público amplo. O telejornal busca narrar os acontecimentos com autenticidade e objetividade, mesmo que ilusoriamente, num veículo que tem concorrência mercadológica. Há uma dupla tensão nessa ação: comunicar o acontecimento com credibilidade e manter a audiência, o público e patrocinadores, como afirma Charaudeau (2012). No discurso televisivo encontramos o jornalista que organiza um dizer consciente para determinado público, mas esse dizer ainda está por ser dito. Na medida em que é dito é que se constitui o “sujeito” da enunciação. Portanto, é no processo enunciativo que o jornalista se constitui como “sujeito”. Benveniste pontua: “o que caracteriza a enunciação é a acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginado, individual ou coletivo” (PGL1 p. 87). Evidencia-se, assim que a enunciação é sempre uma relação entre parceiros, uma relação, portanto, de intersubjetividade. Pensamos a 140 relação do apresentador televisivo com o telespectador como uma situação discursiva de intersubjetividade com parceiros simultâneos (real/imaginado/coletivo). Assim como o telejornal não é neutro, os efeitos sobre o telespectador não estão assegurados, pois um telejornal não é "lido" da mesma maneira pelas diversas comunidades de telespectadores. Essa “leitura” é feita em função de seus valores, ideologias e estratégias perceptivas ou cognitivas que faz com que o telespectador faça uma triagem (in)consciente do que a TV lhe traz. Por mais engessado que seja um telejornal, há sempre ambiguidade suficiente em sua forma signifïcante, a ponto de não acontecer qualquer "leitura" simples e unívoca. Dessa forma, é evidente que a televisão não produz os mesmos efeitos em todos os telespectadores; seus efeitos são condicionados pelas experiências prévias, sensibilidade, cultura, capacidade crítica, enfim, identidade e atitude do telespectador, mesmo que ele não tenha consciência disso. A via emocional condiciona fortemente a racional, o pensamento associativo, primário impõem-se ao lógico. Sendo assim, o processo de influência é inconsciente, o que impede o controle sobre o mesmo. Incidir sobre as emoções do outro permite burlar facilmente sua racionalidade. E a televisão influencia seus telespectadores intencionalmente ou não, consciente ou inconscientemente através da emoção. 4 . Metodologia, resultados e discussão Este estudo, quantitativo e qualitativo, foi realizado com 20 apresentadores de telejornais brasileiros, 10 homens e 10 mulheress, de 6 telejornais em 3 canais de televisão. O critéior de escolha do corpus foram notícias classificadas em dois grupos, « positivas » (prêmios, descobertas, etc) e « negativas » ( acidentes, tragédias, etc). Foi feita uma análise acústica de cada tipo de notícia no programa Drs Speech. Para complementar as análises realizadas, foi feito um estudo estatístico dos dados, tabulados através do programa Excel 6.0 e processados estatisticamente utilizando o programa SPSS versão 10.0 através de tabela da comparação das médias das freqüência e desvio padrão entre os enunciados positivos e negativos. As tabelas foram separadas por genero. 141 Verifica-se através do teste de comparações de médias t-student que existem diferenças significativas entre as médias da média Hz entre as notícias positivas negativas. GRÁFICO 1 -COMPARAÇÃO MÉDIA Hz ENTRE AS NOTÍCIAS SEXO MASCULINO 180 170 160 150 130 120 Positiva 110 Negativa 100 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Notícias Observa-se que, para as notícias positivas, os valores médios de Hz são superiores aos valores das notícias negativas (p=0,001). Para a variável desvio também foram observadas diferenças significativas. As notícias positivas apresentaram valor médio de desvio superior às noticias negativas (p=0,029). GRÁFICO 3 -COMPARAÇÃO MÉDIA Hz ENTRE AS NOTÍCIAS SEXO FEMININO 280 260 240 220 Hz Hz 140 200 180 160 Positiva 140 Negativa 120 100 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Notícias 142 O resultado deste estudo confirma a relação entre voz e efeitos de sentido visados nos telejornais. Observamos que tanto nos homens como nas mulheres há aumento da média da frequência nos enunciados positivos e um decréscimo nos enunciados negativos. A variação das médias das médias das frequências foi mais intensa nos enunciados femininos. Ou seja, as mulheres enfatizam mais noticias modificando a frequência. Apresentamos aqui um estudo que, ao mesmo tempo que quantifica a frequência fundamental da voz, através da análise acústica computadorizada, o faz relacionado a um processo dinâmico e social (telejornalismo), ou seja, demonstrando que as modificações da frequência são usadas para gerar significado. Assim, constatamos que a produção de sentidos se constrói no discurso na relação de um sujeito com o outro, sendo utilizada diferentes estratégias, em que a voz é uma delas. Conclusão As estratégias vocais utilizadas, revelando que há modificações significativas na frequência vocal, demonstram não se tratar de informações passadas friamente, mas com envolvimento. Desse modo, o apresentador do telejornal aparece como um sujeito que participa dos princípios e interesses do telespectador, passando a ideia de que mantém uma relação com a vida da comunidade. Estes procedimentos são utilisados pelos apresentadores nos telejornais na busca de convencer e persuadir o telespectador, levando-o à crer na veracidade da informação dada, e, sobretudo, estimular o interesse no telejornal. A voz tem, então, um papel importante como recurso de persuasão e auxilia na credibilidade da informação. Esta estratégia é largamente utilizada pelos apresentadores de telejornais. A voz participa do processo de enunciação do sujeito, como linguagem, nos telejornais. Há um sujeito que se exprime e se mostra em suas palavras e também por 143 intermédio de sua voz. Isto demonstra que apesar de uma aparente objetividade, o telejornal é pleno de subjetividade. A voz é, não só portadora de sentido, mas ela mesma é matéria e sentido. Bibliografia ARISTÓTELES. Arte Européia do livro.1959. Retórica e Arte poética. São Paulo. Difusão BEHLAU, M.; MADAZIO, G.; FEIJÓ, D.; PONTES, P. Avaliação da Voz. In: BEHLAU, M. (Ed): Voz: o livro do especialista. 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