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SEGUNDA SEMANA B – A CONTEMPLAÇÃO DOS “MISTÉRIOS” DE CRISTO Vimos anteriormente que a experiência dos Exercícios não é outra coisa senão o encontro do homem com Deus em Jesus Cristo. A participação na vida divina se dá mediante uma adesão pessoal progressiva ao mistério de Cristo; e a comunhão total com o Filho e no Filho abre o acesso imediato ao Pai, em virtude do Espírito que em nós grita: “Abba!” (Gl 4,6). Jesus Cristo é o centro, princípio e fim de nossa experiência possível de Deus. Todos os acontecimentos da vida de Jesus (encarnação, nascimento, batismo, tentação, gestos, palavras... até a morte e ressurreição) são mistérios, isto é, sinais de que sua realidade humana, histórica, visível nos permite atingir o seu ser mais profundo, definitivo, invisível. Inácio não concebe os mistérios evangélicos isoladamente; ele os vê numa engrenagem dinâmica (EE 116); radicados na Sua pessoa, todos esses acontecimentos são o desdobramento diante dos nossos olhos do único “mistério” que é Jesus Cristo. Este “Mistério” ressoa como Palavra sempre nova em situações sempre novas (a vida do exercitante). O “mistério” se torna atualidade viva quando o exercitante consente livremente em que a sua história seja configurada pela vontade concreta de Deus sobre a sua vida. Sabemos que um dos elementos indispensáveis para que duas pessoas cheguem a uma comunhão interpessoal é o dar-se a conhecer. Assim como a presença de uma em relação à outra vai se tornando cada vez mais significativa e geradora de um maior grau de vida, também com relação a Jesus Cristo esta realidade se dá de modo semelhante. A experiência que resulta dessa articulação é a mesma que levou São Paulo a definir a existência cristã em termos de gestação de Cristo em nós (Gl 4,19). Trata-se de uma verdadeira encarnação, na medida em que as etapas da vida de Jesus vão configurando o exercitante até estruturarem a sua existência. O exercitante é convidado não somente a se oferecer à pobreza e às humilhações, mas também a adotar a maneira de Cristo, a querer seguir o cristo pobre e humilde, pois é n’Ele que devemos reconhecer o único servidor da vontade do Pai. N’Ele o homem é destinado a ser partícipe da natureza divina, Sua presença é sempre um apelo à participação na vida divina e ao mesmo tempo é oferta desta mesma Vida. Encontrar-se com Ele é encontrar-se com a revelação divina em pessoa; é, além disso, encontrar-se com Aquele que nos comunica Vida, já que Ele é Vida eterna que estava no Pai e que se manifestou a nós. Identificando-se com Cristo através da contemplação dos “mistérios” de sua Vida, Paixão, Morte e Ressurreição, o exercitante deve se ocupar, agora, deste itinerário. Isto supõe um deixar-se assumir por Jesus Cristo, um permitir que o Cristo invada sua vida, modele seus pensamentos, seus atos, seus desejos... Por isso, as contemplações que Santo Inácio propõe devem levar o exercitante a um maior conhecimento da Pessoa de Jesus Cristo, a penetrar mais profundamente na sua obra de restauração da humanidade, a assumir, ou melhor, a revestir-se das mesmas atitudes, comportamentos, valores, opções de Jesus; enfim, contemplando os “mistérios” da vida de Cristo o exercitante deve descobrir a maneira pessoal de colaborar com Ele na sua missão, através do seu seguimento. Daqui decorre a necessidade de pedir constantemente na oração o dom do conhecimento interno de Jesus Cristo para mais amá-lo e segui-lo (EE 104). O encontro com Cristo não é, para Inácio, algo assim como um encontro fortuito ou indiferente. O acesso a seu “Mistério” tampouco é um acesso neutro. Esse acesso a Jesus deve ser objeto de uma petição insistente na oração. Seguir a Jesus Cristo não é só uma questão de querer humano. É antes uma graça que há que se obter na oração. Conhecimento interno do Senhor Segundo Cláudio Pires, sj, “nos Exercícios não temos um tratado sistemático sobre Jesus Cristo; tampouco pretendem dar um conhecimento completo sobre sua vida. O que propõem é que se busque e se encontre com a vontade divina, mediante um encontro transformador com Cristo”. Por isso, o dom do conhecimento que se pede na oração não é um conhecimento puramente intelectual, teórico, psicológico ou um simples conhecer a vida de Jesus em seus detalhes biográficos; é antes um conhecimento que penetra em Jesus Cristo e Ele em nós; é, sobretudo, uma relação existencial, uma experiência de vida, um encontro com a pessoa de Jesus; enfim, um conhecimento vital, que penetra em todo o nosso ser. De fato, Jesus Cristo não é para nós um personagem distante de quem a memória evoca fatos, gestos... Ele habita em nós; é o Cristo vivo, ressuscitado, que hoje chama, porque vive, provoca uma resposta. Para a Sagrada Escritura, conhecer uma coisa é ter experiência concreta dela; está além do saber humano. Conhecer uma pessoa é entrar em relações pessoais com ela, significa íntima presença mútua, confiança recíproca, comunhão de coração e de pensamento, compromisso real mútuo com profundas consequências. O conhecimento de Deus implica uma experiência do modo de ser de Deus e um deixar-se mover por esse modo divino, até a proceder como Ele. Mediante este conhecimento, por uma parte, a pessoa e a vida de Jesus penetram no mais profundo de nosso ser: em nossa consciência, coração, critérios, maneiras de viver; na medida em que vamos conhecendo as atitudes de Jesus, devemos deixar que estas mesmas atitudes nos questionem e provoquem mudanças em nós. Por outra parte, nós penetramos no mais íntimo de sua Pessoa; passamos a conhecer a raiz profunda de sua vida interior, sua visão de mundo, suas opções, motivações, critérios. É algo que produz em nosso interior uma resposta, uma reação. Cada momento de nossa vida deve ser confrontado com a de Jesus; do mesmo modo, cada momento da vida de Jesus deve questionar o nosso modo de viver. De tal experiência, São Paulo fala muitas vezes e de diferentes modos: revestir-se de Cristo, ter os sentimentos de Cristo, ser conforme à imagem de Cristo, viver para Deus em Cristo... Em outras palavras, o significado do conhecimento interno implica o “sentir-se afetado” existencialmente pela vida e pelas ações de Jesus até chegar a reproduzi-las na própria vida; é um transformar-se em Jesus Cristo. Mas esse conhecimento interno só se dá no seguimento de Jesus; somente aquele que o segue pode chegar a conhecê-lo profundamente. Ser discípulo de Cristo, para o Novo Testamento significa viver com Ele numa comunhão sempre progressiva, que pouco a pouco chega a transformar toda a vida. E o símbolo perene deste novo e mais estreito vínculo é a Eucaristia (é aí onde a experiência que os apóstolos têm de seu Mestre atinge seu ponto mais alto de intensidade e intimidade); essa experiência última de Cristo é acessível a todos os discípulos de todos os tempos. “Este conhecimento é efetivamente o cume. Mas ele não se apoia nele próprio. Ele é uma força de Deus para amar e servir”. Tal é a razão pela qual Santo Inácio une em todas as petições o amor e o seguimento ao conhecimento. O amar e seguir à pessoa amada forma parte do conhecimento. Conhecimento-Amor-Seguimento não é uma graça tripartida, mas dinamismo de um único movimento vital; são “momentos” dialéticos que se podem apresentar em ordem diversa. Por isso seguir Jesus significa viver n’Ele, participar de sua vida, entrar em intimidade com Ele. Essa intimidade é uma fonte inesgotável; quanto mais intensa for nossa experiência de Jesus Cristo, mais profundamente penetraremos nos “mistérios” de Deus: esta é a verdade que nos faz livres e isto é o que Cristo pede para todos os seus discípulos – “que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3). Resumindo: tal conhecimento, dinâmico e transformante, nos leva a uma profunda identificação com a pessoa de Jesus Cristo. Identificação que consiste em reproduzir em nós suas atitudes interiores, seus pensamentos e sentimentos mais íntimos, enfim, em assumir com Ele a identidade de mentalidade e de vida, a tal ponto que possamos dizer como São Paulo: “Já não sou eu quem vivo, mas Cristo vive em mim” (Gl 2,20). É o ideal da adesão a Cristo: ser um só espírito com Ele. E este é também o objetivo dos Exercícios Espirituais. Pe. Adroaldo Palaoro, sj Veja também Segunda Semana – Eleição