ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ

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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
ONDE ESTÁ O PLURALISMO: manifestações da religião na metrópole
Edlaine de Campos Gomes39
Resumo
As formas de exercício da religiosidade extrapolam os espaços construídos e
identificados como apropriados às práticas religiosas. A religião está em evidência,
manifesta-se em diferentes espaços e situações, como em grandes eventos,
matérias de jornais, pichações em muros, adesivos nos carros, camisetas com
frases bíblicas. Está nas pessoas e nos objetos. O objetivo deste artigo é analisar
comparativamente as estratégias de ocupação do espaço público –
fundamentalmente secularizado e plural – a presença da “religião” na sociedade
contemporânea, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Nesse sentido, buscamse compreender as formas pelas quais diferentes confissões religiosas e indivíduos
utilizam as grandes cidades como locus privilegiados para a transmissão de
preceitos e doutrinas. A perspectiva adotada aprecia tanto conflitos como
combinações no contato entre alteridades.
Palavras-chave: religião, espaço público, pluralismo, experiência religiosa e
cidades.
Abstract
39
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ) e Pós-doutoranda CEM/CEBRAP/FAPESP, SP. Este artigo apresenta as primeiras
impressões de pesquisa mais ampla realizada no âmbito de estágio pós-doutoral junto ao Centro de
Estudos da Metrópole/Cebrap, O projeto de pesquisa “(In)Tolerância, exclusivismo religioso e espaço
público: dinâmicas e transformações nas relações cotidianas urbanas” está sendo desenvolvido com
bolsa PD da Fapesp.
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The many ways of religious practice go way beyond the already established and
identified as appropriated spaces for it. Religion is in evidence, manifested in
different spaces and situations, as during important events, newspapers articles,
graffiti, car stickers, t-shirts printed with biblical sentences. It is on people and
objects. The main goal of this article is to analyze comparatively the strategies used
in public space occupation - fundamentally secularized and plural - by religious
pathways in contemporary society, in the cities of São Paulo and Rio de Janeiro. In
this way, it tries to comprehend the many ways different religious confessions and
human beings use big cities as privileged locus to pass ahead concepts and
doctrines. The adopted perspective analyses conflicts as much as combinations
between different perspectives.
Key-words: religion, public space, pluralism, religious experience and cities.
Na sociedade brasileira atual há um reconhecimento de que ser brasileiro
não significa, automaticamente, ser católico. Neste novo modelo impõe-se uma
qualificação diferenciada do que é ser religioso e de como isso se expressa no
contexto contemporâneo. Transformações, combinações e conflitos têm ocorrido
nas relações cotidianas urbanas, e também nas disposições sociais e pessoais,
diante de um tipo específico de pluralismo religioso marcado pelo crescimento
quantitativo do chamado campo evangélico. Até recentemente, a idéia reinante
sobre religião no país tinha como base o englobamento das religiões afro-brasileiras
pelo catolicismo e, em relação às outras religiões, seu predomínio era considerado
ponto-pacífico (Sanchis, 1994). Atualmente, a liderança quantitativa do catolicismo
é evidente, como mostram os resultados do último Censo (IBGE, 2000). A atuação
institucional da Igreja Católica assume novas roupagens ou atualiza sua influência
no espaço público. Mas não é mais a única protagonista.
A delimitação das fronteiras religiosas no Brasil é um tema bastante
discutido, em princípio, a partir de estudos sobre as religiões afro-brasileiras
(Bastide, 1971; Carneiro, 1984, entre outros). O catolicismo popular constitui-se o
grande aglutinador dessa dinâmica, na qual os limites se apresentam fluidos, em
um movimento tão dinâmico a ponto de diluir ou dificultar seu reconhecimento.
Aqui a noção de sincretismo englobante é central para compreensão do pluralismo
religioso40.
Outro tipo de pluralismo foi impulsionado nas últimas décadas, caracterizado
pela tendência exclusivista. Várias pesquisas (Freston, 1994; Fernandes, 1994;
1998; Mariz e Machado, 1998) evidenciam a crescente complexificação do campo
religioso brasileiro. A entrada em cena, no final da década de 1970, das
40
Para uma discussão mais aprofundada sobre esse debate, ver Sanchis at al. “Fiéis e cidadãos:
percursos do sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: 2001”; e ainda “A dança dos sincretismos”. Rio de
Janeiro: Comunicações do Iser, 1994.
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denominações evangélicas neopentecostais é apresentada como um dos fatores que
contribuíram para a produção deste novo perfil. O discurso institucional enfatiza o
exclusivismo, embora com atravessamentos e trocas simbólicas entre as confissões.
Há um movimento marcante de mudança no perfil religioso da população,
evidenciado nas relações cotidianas (Gomes. 2006a; 2006b) – assim como no
embate político Mariz e Machado (1998), por exemplo, apontam que há uma forte
proposta de exclusivismo religioso e um investimento no compromisso dos
membros com suas respectivas instituições. Em contrapartida, as autoras também
identificam um processo recorrente de desinstitucionalização.
O panorama religioso contemporâneo apresenta, assim, transformações que
envolvem
simultaneamente
processos
de
institucionalização
e
de
desinstitucionalização. No primeiro, assinalam-se como marcos a expressiva
conversão ao campo evangélico pentecostal e a retomada de identidades religiosas
atribuídas, como o catolicismo. Este apresenta como característica uma forte
proposta de exclusivismo através do investimento no “compromisso identitário” dos
membros com suas respectivas instituições. Ressaltei em outra análise (Gomes,
2006) que, no movimento de rejeição ou aceitação do “outro” – no caso, aceitação
entre evangélicos pentecostais e católicos em uma rede familiar - ocorria de forma
concomitante a afirmação da identidade católica exclusiva, revestida por uma
postura contrastiva. A tendência de se tomar o catolicismo como identidade
religiosa exclusiva foi verificada não somente nas diretrizes institucionais e no
discurso manifestado publicamente pelas lideranças da Igreja. Uma forte adesão às
práticas religiosas institucionalizadas e a intensificação da freqüência à igreja são
exemplos da conformação do pertencimento religioso entre católicos e evangélicos.
O modelo de católico praticante ganha espaço. Surgiu no campo uma nova
categoria: “evangélico não-praticante” – termos inconciliáveis até o momento, já
que “ser evangélico” tem seu significado atado à freqüentação e ao compromisso
institucional
(Fernandes,
1998).
O
movimento
oposto
à
institucionalização
caracteriza-se pelo primado da escolha e da liberdade individual, pela rejeição às
religiões familiares atribuídas, pela não-adesão formal a instituições religiosas e
pelo trânsito religioso. Isto não significa ausência da dimensão religiosa como
experiência vital; o ponto crítico está na desvinculação do sentimento religioso e
em relação ao pertencimento institucional.
Birman (1996) e Semán (2000), entre outros autores, abordam a questão do
trânsito religioso do ponto de vista das passagens e das interpenetrações contínuas.
Outros validam a aplicação da idéia de conversão como ruptura, como Mariz e
Machado (1998), adotando a idéia de que a identificação a um determinado grupo
religioso é perpassada pela adoção de um novo ethos, embora reconheçam que o
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processo de conversão não ocorra subitamente. Contins (1995) considera a
possibilidade de tratar a conversão como um processo contínuo, no qual o
convertido se constitui e não tem sentido sem seus “outros” – no diálogo em que
sua experiência religiosa é construída. Mafra (2002) contribui para o debate,
caracterizando dois tipos de conversão: minimalista e maximalista.
Cabe frisar que o trânsito religioso pode ser pensado como mudança de
vínculo, seja este considerado como ruptura ou como passagem, ou ainda como um
laço frouxo que permite freqüentações mais ou menos intensas. Tal particularidade
remete a considerações sobre as diversas possibilidades inter-relações possíveis em
um campo polifônico e cada vez mais regado pela preeminência da escolha. Ao
menos três dimensões – complementares – são importantes para a análise do
fenômeno
religioso:
“1.
‘religião’,
como
identidade
ou
pertencimento;
2.
‘religiosidade’, como adesão, experiência ou crença; 3. ‘ethos religioso’, como
disposição ética ou comportamental associada a um universo religioso” (Duarte,
2005:141). No nível da adesão religiosa, como já sublinharam Mariz e Machado
(1998) e Gomes (2004), é preciso considerar ainda os diferentes graus de inserção
dos membros nas respectivas religiões, pois dependendo do tipo de vínculo
estabelecido, há maior ou menor comprometimento com a reprodução das diretrizes
institucionais.
A pesquisa que origina a presente análise objetiva investigar eventos
públicos realizados pelas diversas confissões religiosas, em diferentes locais das
cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, identificando semelhanças e diferenças no
que tange à relação que estabelecem na e com a metrópole. Em outro nível,
pretende-se problematizar a relação entre dinamismo urbano e as dimensões,
complementares, do fenômeno religioso – pertencimento, adesão e ethos – no
sentido
de
verificar
tanto
a
inserção
do
religioso
na
cidade
quanto
as
transformações que as práticas religiosas contemporâneas provocam em seu
cotidiano.
Trata-se especificamente, aqui, de discutir as estratégias de ocupação
do espaço público, fundamentalmente secularizado e plural, pelas correntes
religiosas na sociedade contemporânea.
A perspectiva adotada aprecia tanto conflitos como combinações no contato
entre alteridades. Nesse sentido, busca-se compreender as formas pelas quais
diferentes confissões religiosas e indivíduos utilizam as grandes cidades como locus
privilegiados para a transmissão de preceitos e doutrinas, assim como investem na
idéia de pertencimento e de adesão religiosa. Ao se seguir esta perspectiva, propõese problematizar a “exposição do exclusivismo” em diferentes eventos – religiosos
ou não – nos quais a religião, em seu sentido amplo, de alguma maneira se faz
presente. Trata-se de buscar uma compreensão sobre os modos com que este
fenômeno aparece em distintas situações nas cidades pesquisadas, considerando
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que a tendência exclusivista não se associa fundamentalmente a posturas
agressivas e intolerantes.
A presente reflexão leva em conta três tipos ideais de estratégias de
utilização do espaço público pelas correntes religiosas. O primeiro é representado
por aqueles eventos religiosos realizados em espaços da cidade que comportam
multidões, tais como estádios, praças e avenidas. Em geral, essas manifestações
ocorrem em finais de semana e feriados. Um segundo tipo manifesta-se em eventos
considerados “mundanos”: carnaval, parada gay, reveillon, entre outros. Outro tipo
significativo ocorre em pequenos grupos ou por meio de atitudes religiosas
individuais, que utilizam o espaço público como lugar de evangelização, somente
possível por meio da confrontação41 com os “outros”; ela ocorre especialmente no
horário comercial ou de “pico” em regiões de passagem e grande fluxo: terminais
rodoviários e de trens, praças, ruas, de casa em casa etc. Outros tipos ainda
poderiam ser listados, no entanto, para o momento, as considerações serão
direcionadas aos dois primeiros tipos apontados.
Pluralismo religioso e a “fé em ação”
O panorama religioso é marcado por um campo de negociação-conflito
constante entre as experiências religiosas individuais e a sociedade mais ampla.
Percebe-se um movimento de mudanças significativo no perfil religioso da
população, especialmente evidenciado nas relações cotidianas das grandes cidades.
Chama a atenção a forma como o religioso aparece no espaço público em seu perfil
contemporâneo: plural, muitas vezes exclusivista, em tensão entre si e em relação
a temas que atingem a sociedade mais ampla. As formas de exercício da
religiosidade extrapolam os espaços dos templos, construídos e identificados como
apropriados às práticas religiosas. A religião está em evidência, manifesta-se em
diferentes espaços e situações: matérias de jornais, pichações em muros, adesivos
nos carros, camisetas com frases bíblicas, fotografias de santos, orixás, buda,
deuses indianos, entre outras. Está nas pessoas e nos objetos. Nesse movimento
em que a religião se evidencia, a cidade não é somente palco dos acontecimentos,
mas também protagonista.
A relação religião-cidade foi abordada por outros autores. Segundo Amaral
(1996:296), “os grupos ‘fazem a cidade’ porque são diferentes e até mesmo
opostos. Sua lógica é o resultado de tantas outras, que por sua vez partilham a
‘lógica da cidade’ em sua práxis”. Em concordância com esta autora, Silva (1996)
41
Confrontação está sendo usada aqui como estar diante de um “outro” ou “outros” e não,
necessariamente, no sentido de conflito, embora este possa se apresentar no contato entre diferentes
alteridades.
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observa que, em relação às religiões afro-brasileiras – o “culto aos orixás” – as
transformações das sociedades urbano-industriais provocam tanto a tentativa de
“recuperação” da natureza quanto uma “ressignificação dos espaços (como
esquinas, ruas, cemitérios e encruzilhadas), pelo reconhecimento da presença dos
deuses nesses lugares” (1996:103). Ao analisar a Festa do Divino Espírito Santo, no
bairro do Catumbi no Rio de Janeiro, Contins (2004) observa que ela aproxima os
moradores, inclusive aqueles que não fazem parte da irmandade, já que está
totalmente vinculada à história do bairro. A “ressignificação dos espaços” e o “fazer
a cidade” são indissociáveis da experiência urbana, marcada pela novidade e pelo
imprevisível, característicos da convivência com estranhos que partilham o mesmo
espaço (Caiafa, 2006).
Alguns autores enfatizam que, mesmo
em contexto de pluralismo, a religião atua como mediadora de conflitos no espaço
público (Novaes, 2004; Mafra, 2003). Essas reflexões aparecem também em estudo
sobre a religião em São Paulo. Almeida (2004) aponta o caráter relacional e distinto
das ações sociais empreendidas pelas diferentes confissões religiosas. Para outros,
vivemos em um momento no qual a autenticidade das identidades dos grupos
religiosos é posta em questão (Carvalho, 1999). Da perspectiva das instituições
religiosas, a exposição na cidade da religião – em seus distintos tipos de
manifestação - é, ao mesmo tempo, forma de legitimação e estratégia de
visibilização. Este ponto é crucial para a reflexão sobre determinadas manifestações
contemporâneas, organizadas por instituições religiosas com o intuito de reunir
multidões. Se considerarmos o aspecto da transmissão da mensagem religiosa, ao
menos no caso dos cristãos (católicos, evangélicos, e outras correntes), o espaço
público, concebido como “mundano”, é aquele privilegiado para a evangelização. As
estratégias de ação religiosa que ocorrem no fluxo das cidades vêm em conjunto
com discursos institucionais sobre a autenticidade de suas crenças e práticas
(Gomes, 2004; Gomes e Contins, 2008). Pode-se dizer que estes têm sido
acionados para contrastar e definir fronteiras de legitimidade no campo religioso
brasileiro contemporâneo.
Os evangélicos pentecostais e os carismáticos católicos, por exemplo,
realizam seus eventos em grandes espaços no perímetro urbano. No Rio de Janeiro,
alguns locais são preferencialmente escolhidos: Praça XV, Aterro do Flamengo,
Quinta da Boa-Vista, Maracanã, entre outros. Em São Paulo, também os estádios
são utilizados, mas a Avenida Paulista tem lugar especial, assim como o Campo de
Marte. O fato de serem realizados no espaço da grande cidade tem sido considerado
um dado relevante para a compreensão das transformações das relações de
sociabilidade contemporâneas.
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No entanto, não são somente os grandes eventos que estabelecem esse
entrelaçamento. A prática religiosa desses grupos está diretamente articulada ao
fluxo constante da cidade, na qual o proselitismo42 religioso se mantém em
constante alimentação. Vale ressaltar que o caráter evangelizador contemporâneo é
enfático quanto à idéia da “fé em ação”. Esta investida tanto pode significar a
possibilidade de convivência da diferença no espaço público, conforme previsto
pelos códigos da cidade moderna, como provocar a interpretação de que
evangelizar é o mesmo que incomodar e invadir, principalmente quando há
interesses, religiosos, ou não, conflitantes. Evangelizar e invadir são verbos muito
próximos e entram em choque com a heterogeneidade – não apenas no que
concerne às opções religiosas – e a individualidade, características das grandes
cidades43.
O proselitismo religioso é percebido como um pressuposto pelo campo
evangélico pentecostal; trata-se de uma expressão do pertencimento e do grau de
adesão daquele que se converte à transmissão “da Palavra” em sua vida cotidiana:
na família, na escola, no trabalho. Há diversas possibilidades de declaração
contínua de engajamento na causa religiosa: distribuição de panfletos em ruas e
praças; orações e cultos realizados no percurso para o trabalho, como ocorrem nos
trens da Central do Brasil e nas barcas que cruzam a Baía de Guanabara. Observase que, em contexto de exclusivismo, apesar de as estratégias de convivência
emergirem na mesma proporção, as regras de cortesia ou a produção de um
sentimento amigável, inerente ao jogo da sociabilidade, estão pautadas pelo
proselitismo (Gomes, no prelo).
Cabe ressaltar que o proselitismo e a identificação/exposição imediata da "fé
em ação" são características significativas do campo religioso atual, marcado por
crescimento, visibilidade e diversificação de igrejas evangélicas, em especial, as
pentecostais. As posturas exclusivistas são identificadas não somente entre
evangélicos, mas também entre católicos. Há um movimento dinâmico de
aceitação/rejeição do “outro” concomitante com a emergência de um movimento
generalizado de afirmação identitária, fundado no exclusivismo religioso. Esta
característica pode ser identificada nas mais distintas formas de expressão da
42
Utilizo a categoria no sentido de “fazer discípulos, adeptos” e não em seu aspecto pejorativo, assim
como assinala Rolim (1985:62).
43
Contrapondo cidade pequena – “com ritmo mais lento e mais habitual, que corre mais
uniformemente de sua imagem sensível-espiritual de vida” – com “cidade grande”, Simmel
(2005) observa que o "comportamento mental" típico do indivíduo moderno, caracteriza-se
por uma aversão e estranheza das relações e contatos no cotidiano: o indivíduo "seleciona" a
quais estímulos responderá ou dedicará atenção e tempo. Os indivíduos modernos, assim,
submetidos a um elevado grau de "impressões" desenvolvem uma atitude blasé, um psiquismo
"protegido" por uma espécie de "reação de defesa". A subjetividade moderna está orientada
para a indiferença nos relacionamentos cotidianos e para a não-interiorização da realidade
social externa.
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religião, seja institucional, seja nas manifestações da religiosidade individual. A
obrigação de levar a “Palavra”, no caso evangélico, por exemplo, faz com que seja
necessário
o
estabelecimento
de
diálogo
e
mediações
no
tenso
processo
comunicativo, evidenciado, em grande medida, pela forma de ocupação dos
espaços da cidade e nos embates provocados pelo encontro de diferentes correntes
religiosas em determinados locais e datas comemorativas, sejam estas religiosas ou
profanas.
Os fenômenos religiosos atravessam as diferentes esferas sociais e são por
elas reconhecidos sempre com algum grau de tensão. Em contexto de pluralismo
religioso constatam-se conflitos e acomodações. As tensões se tornam mais
evidentes quando as identidades religiosas – notadamente as exclusivistas –
buscam ocupar novos espaços e marcar presença. As mediações e os conflitos
extrapolam os limites locais, principalmente quando há reivindicação do "direito à
cidade" e ao espaço público. Sugiro tratar-se de um movimento composto por
valores e posicionamentos contrastivos, que se visibilizam e se consolidam a partir
deste contraste. A adoção de um comportamento exclusivista não significa
obrigatoriamente posturas fundamentalistas ou intolerantes. Há espaço para
combinações e ajustes. Em consonância com Giumbelli (2004:11), considero que
aquilo que está em jogo “é a produção de uma nova versão de cristianismo
hegemônico
(não
necessariamente
intolerante
e
sobretudo
pouco
fundamentalista)”. Além disso, a religião pode ser percebida por uma via menos
formal, não se fixando na análise de rituais, mas destacando especialmente sua
dimensão relacional com outras esferas sociais (Birman, 1996; Giumbelli, 2002).
A realização de etnografias “na cidade” possibilita uma melhor compreensão
do fenômeno religioso na atualidade, que é indissociável do caráter plural do espaço
público moderno. A religião está nas pessoas, nos objetos e nas relações sociais.
Além disso, há que se considerar que “o formato das ofertas religiosas está, de
algum modo, articulado com a difusão permanente, ainda que irregular, da
cosmologia moderna nas sociedades contemporâneas, levado a cabo por uma
disseminação produtora de ‘institucionalizações’ estruturantes que vêm atingindo
inclusive as camadas populares: mercantilização, racionalização, igualitarização,
liberalização do espaço público” (Duarte et al, 2006:17). Para compreender as
formas pelas quais diferentes confissões religiosas utilizam as metrópoles como
locus privilegiados de evangelização, é fundamental que a cidade não seja
percebida
somente
como
palco
dos
acontecimentos,
mas
também,
e
essencialmente, como protagonista desses mesmos eventos.
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Desfilando ‘para Jesus’ no espaço público44
Com suas regras de inversão e subversão do cotidiano, o carnaval oferece
situações singulares para análise de relações sociais mais amplas que se expressam
em distintas ramificações: blocos, escolas de samba, fantasias, sambas-enredos,
adereços, entre outros. Cabe frisar que existe uma extensa e excelente produção
antropológica sobre o tema, mas não me deterei aqui em sua apresentação.
Queiroz (1992); DaMatta (1973; 1979); Cavalcanti (1984; 1999; 2002; 2006);
Augras
(1998);
Santos
(2006);
Gonçalves
(2003);
Guimarães
(1992)
são
referenciais para o debate.
O carnaval é um acontecimento marcante na sociedade brasileira. Em geral,
religião e carnaval estão associados a campos semânticos distintos: sagrado e
profano, ordem e desordem, pureza e perigo. No Rio de Janeiro, religião e carnaval
estão em constante diálogo, seja para marcar as distinções, recusando a desordem,
seja para reivindicar espaço, pondo em xeque as dicotomias. Este ponto é central
para a presente reflexão, principalmente pelo fato de vertentes religiosas que
originalmente consideravam o evento como “mundano” – impuro e profano –
passaram a utilizar o período, não somente para a realização de retiros espirituais,
como propostas de afastamento do mundo e purificação, mas também como
estratégia de evangelização.
A presença da temática religiosa no carnaval não é uma novidade. Não é
necessário ir muito longe nos arquivos das escolas de samba para conferir a
existência vívida da temática religiosa em seus enredos. Dos temas históricos
brasileiros aos encomendados por empresas, dificilmente não ocorre a alusão a
termos religiosos. Em 2007, por exemplo, pode ser listada uma série de menções
ao
religioso
nas
sinopses
dos
enredos
das
escolas
do
grupo
especial,
disponibilizadas no site da LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba www.liesa.org.br). Fé, deuses, energia, criação, harmonia, devoção; jesuítas,
protestantes, umbanda, candomblé, fé cristã; deus, olorum, odin, thor: todas estas
palavras, entre outras possíveis, constavam nas tramas desenvolvidas para serem
encenadas na Avenida Marquês de Sapucaí.
O catolicismo e as religiões afro-brasileiras sempre foram acionados em
enredos desde o surgimento das escolas de samba. As controvérsias ganharam
visibilidade na década de 1990 com a inserção e a centralidade de figuras
religiosas, como alegorias, principalmente ligadas ao cristianismo. Houve até
44
As informações e as fotografias dos eventos mencionados são provenientes de etnografias realizadas
em São Paulo e Rio de Janeiro, no âmbito do projeto dapesquisa mencionada. Para o trabalho de
campo, a autora contou com a valiosa colaboração dos pesquisadores César Augusto Silva e Jacqueline
Kawauche.
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censura às escolas de samba que adotaram tal recurso. Os principais protagonistas
desse embate foram a Igreja Católica e a escola de samba Beija-Flor, de Nilópolis.
Em 1989, a escola levou à avenida o enredo “Ratos e urubus, larguem minha
fantasia”. Uma de suas principais alegorias era a imagem do Cristo Redentor, que
entrou na avenida coberta com sacos pretos de lixo portando uma faixa que dizia
“Mesmo proibido, orai por nós”. Houve uma forte reação da Arquidiocese do Rio de
Janeiro, que entrou com um mandado de segurança impedindo a exibição da
alegoria. Em desfiles posteriores a controvérsia foi renovada. Os mais célebres
foram os de 2002 e 2003. No primeiro, a escola teve que modificar a encenação da
coreografia da comissão de frente, que trazia a luta entre jesus cristo e satanás. No
ano seguinte, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida desfilou escondida entre as
alas devido a protestos provenientes da Arquidiocese.
Uma novidade ocorreu em 2007 no desfile do grupo especial das escolas de
samba do Rio de Janeiro. O Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do
Grande Rio apresentou a ala “A festa é nossa” com a fantasia “Assembléia dos
Protestantes”. Os protestantes passaram a figurar como tema, ainda
que
subjacente, do enredo de uma escola de samba, junto com o catolicismo e as
religiões afro-brasileiras. Outra situação importante, que evidencia esse vínculo, é a
inclusão do período carnavalesco no calendário de evangelização de diversas
igrejas45. É notória a existência de blocos carnavalescos organizados por igrejas
evangélicas que promovem evangelização adotando estratégias ”mundanas”, como
o Cara de Leão, do Projeto Vida Nova.
Uma reportagem divulgada pelo jornal Extra de 29 de outubro de 2006
remete ao reconhecimento do pluralismo religioso em data mundana. “Na cadência
dos evangélicos: no enredo que fala sobre Duque de Caxias, Grande Rio vai
misturar coral gospel e pais-de-santo”, dizia a chamada da matéria. A notícia
apresentava o enredo para o desfile do carnaval 2007 da escola de samba
Acadêmicos do Grande Rio46 – integrante do grupo especial dos desfiles do Rio de
Janeiro. Apontava a controvérsia de unir no mesmo setor homenagens às religiões
afro-brasileiras e às igrejas evangélicas, com o intuito de mostrar a importância da
religião para a constituição da cidade que então homenageava: Duque de Caxias,
município da Baixada Fluminense. A escola apresentou esse tema no quarto
45
Sabe-se da semelhança entre as práticas e as manifestações no espaço público de parte das igrejas
do campo evangélico e da renovação carismática católica, contudo, a análise nesta comunicação se
restringirá à primeira vertente. Carnaval de Jesus, Matinê de Jesus, Folia de Jesus intitularam eventos
organizados pelo padre católico Marcelo Rossi. Uma análise comparativa pode ser encontrada em
Contins & Gomes, 2007.
46
Em 2007, a Grande Rio ficou em segundo lugar.
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setor47,chamado “A fé de um povo valente”. A sinopse do enredo explorava o tema
da seguinte maneira:
A fé cristã na região vem do século XVI, como podemos conferir pela igreja do
Pilar, construída no mesmo século e importante monumento do primeiro
período barroco brasileiro, tal qual as religiões afro-brasileiras têm destaque
no que tange às suas verdadeiras raízes; exemplo disso vem do Babalorixá
Joãozinho da Goméia, desde que foi intitulado “Rei do Candomblé”, na década
de 1940, pela rainha Elisabeth da Inglaterra. A partir da compreensão de sua
trajetória, demonstra as razões que levaram à proliferação de terreiros de
Candomblé e Umbanda na Baixada Fluminense, desde a chegada do pai-desanto no município de Duque de Caxias, em 1946, transformando o município
no grande divulgador e popularizador dos cultos Afro-Brasileiros, apontandonos a validade do Candomblé como produtor cultural brasileiro. Do Babalorixá
podemos falar que, “Seu João” fora um dos mais famosos babalorixás em
meados do século que findou. A Rua Goméia, em São Caetano, bairro da
cidade baixa de Salvador, endereço do seu primeiro terreiro, deu-lhe o
sobrenome que carregaria pela vida afora. Mas foi depois de sua transferência
para o município fluminense de Duque de Caxias que sua fama atingiu
contornos nacionais. Tanto que a rua onde Joãozinho fundou seu segundo
terreiro acabou chamando-se também de Goméia em homenagem ao pai-desanto. Um complexo jogo de continuidades e transferências entre reinos,
continentes, estados, cidades, nomes de ruas, homens e deuses concentravase em Salvador e Rio de Janeiro. E eu me surpreendo ao ver alguém do santo
falar com tanto carinho de um sacerdote do rito angola, num ambiente onde a
nagocracia ainda é um imperativo categórico no jogo político pela legitimidade
das tradições. Impressionava aquela voz rouca e devota, firme e afinada com
que o sacerdote saudava de Exu a Oxalá. Aliás, este é um percurso muito
comum no proselitismo involuntário do candomblé; muitos chegam a esta
religião vindos da capoeira, das escolas de samba, dos cursos de samba, das
letras e ritmos de nosso cancioneiro popular, da curiosidade em saber, ou
saber um pouco mais, o que se diz quando usamos termos como axé, ago,
aláfia... “Seu João” foi um dos mais importantes e polêmicos agentes na
divulgação dos significados do candomblé ocorrida nos anos 60 na sociedade
brasileira, sobretudo por fazer da mídia e das artes suas grandes aliadas.
Trouxe para os centros urbanos do sudoeste a percepção das vantagens de
tornar conhecidos os cultos afro-brasileiros. Inclusive para a sua própria
defesa. Numa lista elaborada em 1983, dos 24 terreiros mais antigos da capital
e do litoral paulista, oito deles eram de filhos e filhas-de-santo de Joãozinho da
Goméia. Em terras paulistas, a adesão ao rito angola, praticado por “seu João”,
foi um caminho quase que inevitável na passagem de muitos sacerdotes da
umbanda para o candomblé. Atualmente outras manifestações de fé têm
mostrado a sua força na região; os protestantes também demonstram a sua
força em seus ritos envolventes. Pincelaremos tudo isto para mostrar que o
caxiense tem em seu peito sua crença e que, como já foi provado, o homem de
Fé vai longe e esta é uma das muitas virtudes do nosso povo.
O mais importante personagem do setor “A fé de um povo valente” era
Joãozinho da Goméia, preeminente pai-de-santo que morou na região e é um dos
nomes mais lembrados da nação angola (Silva, 1996:92). O mesmo setor trouxe a
fantasia “Assembléia dos Protestantes”, vestida pela ala “A festa é nossa”. A ala48
47
A escola de samba foi organizada em sete setores: 1. Um povo forte; 2. A fábrica cidade; 3. A
emancipação; 4. A fé de um povo valente; 5. Folguedos e sua raiz saudosa; 6. Combustível para
crescer; 7. Terra de bambas.
48
Alguns autores (DaMatta, 1979; Cavalcanti, 2006) já assinalaram a autonomia como características
das alas das escolas de samba; elas possuem nomes próprios, que lhes asseguram independência e
permanência na configuração da escola à qual pertencem. “O nome próprio da ala atravessa os
diferentes Carnavais vividos por ela, e assinala a autonomia e a permanência de sua rede de
sociabilidade. Mesmo tendo o desfile da escola como motivo, a vida de uma ala corre paralela a ele,
60
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
homenageava os evangélicos, a partir da perspectiva da escola de mostrar a
diversidade religiosa de Duque de Caxias, cidade na qual surgiu a escola de samba
e que era tema do enredo. A dupla homenagem, aparentemente contraditória,
chamou a atenção da imprensa. Entre os evangélicos havia duas interpretações
sobre o vínculo entre religião e carnaval: 1. positividade do reconhecimento do
papel dos evangélicos para a sociedade mais ampla; 2. incompatibilidade de vínculo
entre religião e carnaval, em especial, pelo fato de a ala estar inserida em uma
seção dedicada a homenagear um conhecido pai-de-santo.
A fantasia foi elaborada com o objetivo de mostrar a presença do pluralismo
religioso na cidade homenageada, tendo como foco os evangélicos. Adornada por
um resplendor repleto de plumas brancas, uma túnica branca e dourada servia de
base para símbolos religiosos; curiosamente, o mais destacado, por estar na parte
posterior, à altura do peito do integrante da ala, lembrava o símbolo da Igreja
Universal do Reino de Deus: coração e duas pombas brancas. A Bíblia também
estava em destaque. Segundo o carnavalesco da Grande Rio, a túnica representava
o coral gospel. Na reportagem mencionada, Roberto Sznieck – o carnavalesco –
refuta a polêmica, dizendo: “Se começar com essa história, serei o primeiro a cortar
a ala”. A ala não foi cortada, a polêmica não se acirrou, como previa a reportagem,
nem mesmo gerou atenção maior. A escola fez seu desfile e foi vice-campeã.
Homenagear protestantes, mesmo que em uma única ala, é uma novidade e
reflete o reconhecimento da expansão desse campo pela sociedade mais ampla. A
inclusão dos evangélicos em enredos de escola de samba é um dado muito recente.
O mesmo não pode ser dito sobre a incorporação do carnaval no calendário de
evangelização dessas igrejas e também no da vertente carismática da Igreja
Católica, intensificado a partir de meados dos anos 1990. Em 2006, o desfile do
Cara de Leão – acompanhado pela pesquisadora – teve como samba-enredo o tema
“Povo Campeão”, de autoria de pastor Timóteo.
O povo que andava em trevas
Viu uma grande luz
E sobre os que habitavam na região da morte
Resplandeceu a luz
E este povo se levanta
Pra verdade declarar
Que uma vida inteira de muita alegria Jesus tem pra dar.
Mas por trás da fantasia
Que se veste nesse dia
Só tristeza e solidão
E a falsa alegria
De apenas quatro dias
É pura ilusão
Creia na verdade, no amor e no perdão
Deixe Jesus Cristo libertar teu coração
produzindo ao longo dos anos histórias muito particulares” (Cavalcanti, 2006:208).
61
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
E receba a salvação
Deixe Jesus Cristo libertar seu coração
Para ser um campeão
Embora a visão nativa não considere o Cara de Leão como bloco
carnavalesco, ele está integrado à programação oficial dos desfiles de blocos da
prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Participar do evento significa se opor.
Sambar é coisa do “mundo”49. A letra do “hino-enredo” deste bloco, como acentua o
autor, enfatiza as mazelas que a fantasia do carnaval esconde. A alegria não pode
ficar restrita aos quatro dias de folia. Vale ressaltar que o caráter evangelizador
contemporâneo é enfático e exacerba a tradicional característica do protestantismo
de “fé em ação”. A efetiva participação no período momesco, através da
organização de um bloco, é utilizada como meio de atingir objetivos religiosos que,
a princípio, se contrapõem ao aspecto mundano do evento. Por analogia, e por
conta da intencionalidade proselitista, o processo e o apelo pela conversão são
mostrados nos versos: trevas, luz, libertação. O ápice é a vitória representada pelo
binômio “salvação-campeão”. A evangelização é a justificativa para a imersão desse
ramo religioso no mais expressivo movimento “mundano” do Rio de Janeiro. Como
já foi assinalado, o desfile do bloco50 consta, inclusive, da programação oficial do
carnaval da cidade.
Foto 1 Bloco Cara de Leão, 2006
Edlaine Gomes
49
Na página oficial do Projeto Vida Nova consta a seguinte distinção: “Evangelistas sim, Foliões JAMAIS!
O Bloco Cara de Leão não é um bloco de carnaval. Seus componentes não sambam, não se confundem
com os foliões seculares. A Igreja do Senhor Jesus é santa, separada das coisas do mundo. Durante a
sua passagem, o bloco pára estrategicamente em meio ao carnaval. Os pastores sobem no coreto e
ministram a Palavra e orações específicas, declarando que só JESUS pode dar uma vida de alegria e
repreendendo espíritos de morte, prostituição, vícios e coisas comuns à festa secular. Os integrantes
descompõem o bloco e saem evangelizando as pessoas, orando pelos transeuntes com autoridade do
Espírito Santo, impactando a audiência. Toda a liderança da igreja participa da coordenação do
trabalho, desde os pastores aos diáconos, auxiliares e líderes específicos, todos imbuídos do mesmo
espírito, incentivando os membros a se alistarem na guerra onde todos são mais que vencedores em
Cristo Jesus”. http://www.projetovidanova.com.br/galeriaEvangCarnaval/galeria.htm, acesso
em 18/09/2007).
50
Outros blocos evangélicos desfilam pelas cidades. No caso do Rio de Janeiro, há também o bloco da
Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul, que organiza o bloco Mocidade Dependente de Deus.
62
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Classificado como “evangelismo estratégico no carnaval”, o Cara de Leão
segue a rotina dos blocos carnavalescos não-religiosos. Ensaios são realizados para
organizar o desfile e há preparativos para a confecção das alas. O diferencial é que
tudo ocorre em torno da religião. Os instrumentos são consagrados “para que eles
sirvam
para
expressar
sua
glória
e
para
a
salvação
das
almas”
(http://www.projetovidanova.com.br/galeriaEnsaio/galeria.htm#).
Ocorrem orações e ministração da “palavra”. É nesse aspecto que destacam o
caráter evangelístico e não-carnavalesco do bloco.
O desfile seguiu o formato adotado pelas escolas de samba. Os integrantes
foram dispostos em alas que acompanharam o desenvolvimento do enredo, cada
um vestindo roupas/fantasias que os distinguiam e que destacavam determinados
aspectos do tema proposto. No desfile, a primeira seção mostrou as trevas – as
pessoas vestiam roupas pretas. Havia alas coreografadas e encenações da luta do
bem contra o mal. As últimas alas representavam a luz, a pós-conversão, a
salvação – todos estavam vestidos com roupas brancas. Uma bateria com cerca de
300 ritmistas acompanhava o puxador do samba, que era cantado pelos
participantes. Homens e mulheres compunham a bateria, que emitia um som muito
potente. Porta-bandeira e mestre-sala bailavam a caráter, conduzindo a bandeira
do bloco-igreja. Ressalto que o mesmo figurino foi usado no desfile do ano seguinte
por pessoas diferentes. Um cordão de segurança estabelecia uma barreira humana
entre os componentes do bloco e os demais foliões. Enquanto o bloco percorria a
Avenida Rio Branco, membros da igreja Vida Nova distribuíam panfletos e “levavam
a palavra” para os foliões que ocupavam as diversas ruas do centro da cidade do
Rio de Janeiro. Esse encontro ocorreu sem maiores tensões. O caráter plural do
espaço público estava manifesto nessa interação.
A "Marcha para Jesus" é outra manifestação da religião no espaço público
que traz a marca do pluralismo contemporâneo. A Avenida Rio Branco é outra vez
personagem. Novamente são os evangélicos que se organizam para mostrar e
afirmar sua presença. Está situada no tipo de ocupação de espaços das cidades que
ocorre em dias de menos fluxo, como fins de semana e feriados, nos quais há
menor possibilidade de confrontação com os “outros”. A rejeição pode acontecer ou
ser percebida como tal em outro nível. Exemplo disto foi a não-liberação da Avenida
Paulista para a realização do evento em 2007.
A Marcha foi realizada no dia 7 de junho na zona norte da cidade de São
Paulo. O motivo alegado pela prefeitura para a mudança de local do evento foi a
existência de um documento assinado entre Ministério Público Estadual e a
prefeitura (Folha de São Paulo on line51 de 11/04/2007), que permite apenas a
51
http://tools.folha.com.br/site=emcimadahora&url=http%3A%2F%2Fwww1.folha.uol. Acesso em 24/5/2005.
63
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
realização de três eventos na Avenida Paulista, sendo especificados: a corrida de
São Silvestre, o Reveillon e a Parada Gay. A escolha deste último, em detrimento
do evento religioso, repercutiu negativamente entre os evangélicos, que acionaram
a retórica persecutória, na qual o eixo norteador é a rejeição que recebem “do
mundo”.
Foto 2: Marcha para Jesus, S.P, 2007
César Augusto da Silva
Foto 3: Marcha para Jesus, S.P, 2007
César Augusto da Silva
A Marcha para Jesus tem como característica reunir diversas vertentes do
campo evangélico, com o intuito de manifestação pública do pertencimento e do
fortalecimento dessa vertente religiosa. A faixa etária é bastante diversificada. Os
estilos musicais e seus simpatizantes também o são. Os comportamentos mostram
a complexidade inerente ao denominacionalismo que caracteriza o campo religioso
evangélico. Para cada trio elétrico presente, um estilo de música, público e postura
de fé. Tudo ocorrendo ao mesmo tempo. Este tipo de “festa” distancia-se do
carnaval das escolas de samba e aproxima-se daquele realizado no carnaval baiano,
embora a distribuição dos trios e do público assemelhe-se à adotada para os carros
alegóricos e as alas.
Muito me impressionou essa diversidade e contraste de estilos na Marcha
para Jesus ocorrida na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, no dia 9 de junho de
2007. Especialmente quando me deparei com um grupo de pessoas que
encontrava-se à espera da Marcha que chegaria à Cinelândia. Era cerca de uma
64
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
dúzia de pessoas entre mulheres, homens e crianças que marcavam presença no
evento que propunha transformar o Rio “para Jesus”. O contraste era evidente:
integrantes de uma denominação pentecostal extremamente rigorosa acuados na
calçada, enquanto os trios elétricos e a multidão posicionavam-se para o show.
Havia uma nítida fronteira que os distinguia das demais correntes evangélicas que
ali estavam. Pareciam espantados com as músicas, as danças e os comportamentos
que, para eles, caracterizam a vida “no mundo”. As marcas distintivas estavam
especialmente pontuadas na maneira de se vestirem: túnica para as mulheres,
usadas não só para eventos especiais, mas obrigatórias no cotidiano, e terno para
os homens.
Foto 4: Marcha para Jesus, RJ,
Edlaine Gomes
Foto 5: Marcha para Jesus, RJ,
Edlaine Gomes
A música atua como um elo significativo para o mundo cristão, muitas delas
são reconhecidas e cantadas por todos. Mas não há consenso quanto ao estilo
musical, que vai do forró ao havy metal. Na Marcha para Jesus, a diversidade do
campo religioso evangélico evidencia-se. Diferentes manifestações podem ser
vistas: danças coreografadas ou não; grupos de dança de rua e capoeira; pessoas
que acompanham cantando as músicas ou se mantêm em silêncio. Até mesmo é
possível observar pessoas reivindicando mais oração e contenção do que festa. Eles
vêm de todas as regiões e denominações, o que se percebe nas diversas faixas e
nos cartazes que os grupos expõem no decorrer da caminhada. Estão ali utilizando
as grandes avenidas, exibindo-se no espaço público e pondo em prática “fé em
ação”.
Nota-se, seguindo essa lógica de inserção “no mundo”, que o processo de
ramificação de propostas evangélicas segue seu curso com as chamadas “igrejas
inclusivas”. A Parada Gay constitui um evento organizado, de grande porte.
Enquanto as demais igrejas estruturam-se para evangelizar e propor a “salvação”
aos participantes da Parada, panfletando nos arredores da Avenida Paulista, em São
Paulo, integrantes do ramo inclusivista integram-se ativamente na lógica do evento.
A mesma investida ocorre em outras cidades onde a Parada Gay é realizada.
65
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
Foto 6: igreja inclusiva na Parada Gay, SP –10/06/2007,
César Augusto Silva
Foto 7 Parada Gay, SP – 10/06/2007,
Jacqueline Kawache
Foto 8: Parada Gay, S.P –
10/06/2007. Jacqueline Kawauche.
As igrejas inclusivas surgiram entre os anos 1990 e 2000 pautando-se,
segundo Natividade (2006:78), pelo “discurso minoritário que rejeita a proibição e
propõe uma igreja inclusiva aos homossexuais”. O autor ressalta que esse
surgimento
concomitante
integra
ao
um
amplo
incremento
de
movimento
trabalhos
de
explosão
pastorais
discursiva,
voltados
à
sendo
“cura
da
homossexualidade”. A controvérsia que cerca o recente aparecimento dessas igrejas
insere-se no âmbito do crescimento e da complexificação das ofertas religiosas
institucionais. A especificidade das igrejas inclusivas está na rejeição que enfrentam
nos dois campos que conformam sua identidade: igrejas evangélicas e movimento
gay.
Nesse caso, as mensagens e a atuação no espaço público são dirigidas a
ambos, como meio de reivindicar legitimidade. A exposição do exclusivismo tornase mais evidente nessa situação, na qual todos os personagens em interação –
mesmo que conflituosa – posicionam-se publicamente como minorias que buscam
reconhecimento.
Um pouco dessa tensão emergiu em comentários sobre a Parada Gay de
Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Em sua coluna no jornal O Dia de 28/06/2007, p.
6, Milton Cunha entre elogios à organização e críticas ao ufanismo do movimento
gay, que propagava a idéia de que “a cidade era gay”, denunciou a presença de
66
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
uma “subparada”. Integrantes de igrejas inclusivas presentes ao evento divulgavam
a missão confessional de “aceitar a todos”. Cunha narra a situação com ironia,
dizendo que: “Não gosto de todos os tipos de pessoa, e não vou pertencer a uma
igreja que aceite todos os tipos”.
Para a presente reflexão o que importa nessa
reação não é a rixa em si, mas sim o impacto que o pluralismo religioso tem
alcançado na contemporaneidade. Em seu viés exclusivista, a ação proselitista está
em constante tensão com as possibilidades de conflitos, sincretismos ou misturas.
Considerações Finais
Cada um dos eventos mencionados pode ser analisado em separado e possui
características
específicas.
No
entanto,
para
a
presente
reflexão,
foram
considerados em conjunto, pois se trata de discutir as diversas estratégias de
ocupação do espaço público pelas correntes religiosas ou, em última instância,
verificar a importância da presença da religião, lato sensu, mesmo em situações
percebidas como laicas. Os grandes eventos religiosos ocorrem no alicerce do que
se chama espaço público moderno que, embora seja fundado na noção de laicidade
– preeminência do secular – possibilita a diversidade de formas e estilos de
manifestação. Além disso, é nele que as instituições religiosas exibem seus
potenciais,
posicionam-se
na
disputa
ou
na
afirmação
das
respectivas
autenticidades.
A convivência e o conflito são tanto opostos quanto característicos do
modelo preconizado pela modernidade. Exemplo desse campo de possibilidades que
o espaço público moderno permite foi o caso da tensão entre evangélicos e católicos
na “Procissão do Senhor Morto”, em 2006, mencionado anteriormente. No ano
seguinte, em 2007, o evento foi etnografado e a rusga não ocorreu. A procissão
percorreu uma cidade vazia, devido ao feriado. Saiu da Catedral Metropolitana,
localizada na Avenida Chile. No trajeto, os escassos transeuntes mostravam pouco
interesse pelo evento. As ruas vazias iam sendo preenchidas pelos fíéis católicos
que adoravam o “senhor morto” e a “nossa senhora das dores”. Nesses breves
instantes, o espaço público tinha um único dono. Logo a cidade assumiu novamente
sua característica plural. Do Passeio Público avistava-se a Lapa, área boêmia por
excelência e “região moral” (Park, 1987). Os bares já estavam abertos, era final da
tarde. O sagrado encontrou o profano no exato momento em que a noite prevalecia
sobre o dia. As pessoas que estavam nos bares não ficaram imunes, grande parte
posicionou-se
nas
portas,
mostrando
algum
interesse
pela
movimentação
provocada pela passagem da procissão. A interação limitava-se à observação
externa, ao olhar. A fronteira não era transposta. Não havia passagem da condição
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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
profana para a sagrada. O contato entre esses dois mundos foi passageiro. Em
poucos minutos a procissão seguiu seu curso, passando sob os Arcos da Lapa e
retornando para a Catedral Metropolitana.
Esses encontros – na verdade a Lapa e a Catedral Metropolitana são vizinhas
– são possibilitados por ocorrerem no espaço público da cidade, seja na situação de
confronto de 2006, quando o pluralismo de cunho exclusivista evidenciou-se pela
postura dos evangélicos diante da procissão católica, seja quando, em 2007,
nenhum conflito aconteceu. A idéia de observar a procissão teve como objetivo
verificar se o confronto se repetiria. A princípio, pode-se pensar em algum tipo de
frustração do pesquisador ao constatar que, realmente, nada se passou que
prenunciasse qualquer tipo de enfrentamento religioso. No entanto, o fato de em
um ano ocorrer o embate e em outro não constituiu um dado significativo, pois
afirma o caráter plural da utilização do espaço público.
Dos três tipos de estratégias de ocupação do espaço público mencionados no
artigo, o primeiro e o segundo receberam aqui maior destaque por estarem
diretamente referidos à ampla (ou pretensa) visibilidade que as manifestações
religiosas recebem ao utilizarem os grandes centros urbanos. No primeiro, os
eventos são realizados em espaços da cidade que comportam multidões, como na
“Marcha para Jesus” em São Paulo, por exemplo. O segundo é caracterizado pelos
acontecimentos considerados “mundanos”: carnaval, Parada Gay, reveillon. A
religião aparece ou para contestá-los, ou para afirmar e legitimar as confissões e as
práticas das vertentes religiosas que adotam tais estratégias, ou mesmo em uma
junção de ambos. No último tipo, não menos significativo, a interação pode ser
mais tensa e conflituosa, pois o contato se dá em proximidade com o “outro”. A
evangelização – proselitismo – ocorre de casa em casa, nas ruas, na tentativa do
convencimento face a face.
A série de etnografias realizadas, as quais não se esgotaram nesta análise,
possibilitou a constatação de um processo que envolve negociação e conflito
constante no que tange à utilização dos espaços da cidade, por exemplo, quando do
veto da realização da “Marcha para Jesus” na Avenida Paulista. No caso da presença
de um bloco evangélico no carnaval carioca, que utiliza o evento e faz dele palco
para a evangelização, e da fantasia que homenageia a diversidade religiosa –
mesmo atualizando o conflito em um evento como o desfile das escolas de samba –
fica evidente o lugar de destaque da religião, em seu sentido amplo, na sociedade
contemporânea. Além disso, traz à tona as diversas estratégias de ocupação do
espaço público pelas confissões religiosas, sejam institucionalizadas ou não.
Em todos os eventos apresentados, uma característica é marcante: a maioria
dos participantes percorre distâncias consideráveis. Trata-se de um tipo de
deslocamento religioso que, contraditoriamente, vai em direção ao "mundano", à
68
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
cidade e aos seus equipamentos. É possível verificar a diversidade de locais de
origem e as distâncias prováveis percorridas por meio das incontáveis placas que
identificam os grupos através do nome de suas localidades. Revela-se, então, que a
grande maioria desloca-se das periferias metropolitanas e do interior dos estados. O
contato – conflituoso ou pacificado – induz tensões, diálogos e atravessamentos
característicos da grande cidade, com seu movimento permanente de incorporação
e diferenciação de estilos de vida e visões distintas de mundo. No mesmo sentido, a
vida
cosmopolita,
como
ressalta
Magnani
(2003),
oferece
possibilidades
e
alternativas ao indivíduo através de redes de pertencimento, sistemas de troca,
mediações e permutas contínuas inscritas no contexto da cidade. Da mesma forma,
o
fluxo
entre
fronteiras
religiosas
e
as
reinterpretações
das
orientações
institucionais admitem novas representações em termos de categorias espaciais e
sociais (Contins e Gomes, 2007).
Ponto significativo que ainda está sendo aprofundado é o efeito dos
deslocamentos necessários à participação em grandes eventos religiosos realizados
nos centros urbanos. Não são erráticos e apresentam padrões. Os "fiéis" deslocamse em busca "de um lugar de poder mais forte". Em grande parte das vezes, o
percurso não é solitário e tampouco anônimo. Organizam-se em grupos e caravanas
em suas respectivas congregações locais, e partem juntos. Outras vezes, formamse grupos de parentes, amigos ou conhecidos. Um levando o outro, com o propósito
de, individual e coletivamente, terem uma experiência com o sagrado. O peregrino
solitário também tem seu lugar. Ele parte de um ponto preestabelecido em direção
ao “lugar de poder mais forte” (Gomes 2004). Famílias inteiras, incluindo pessoas
idosas e crianças saem de seus respectivos “pedaços” para ter uma experiência
sócio-religiosa vivenciada na zona sul (Magnani, 2002). O contato entre integrantes
de “pedaços” tão distintos provoca novas percepções e tensões e estas podem ser
conflituosas ou pacíficas.
Outro ponto parece ser digno de apreciação posterior. O termo “proselitismo
involuntário”, utilizado na sinopse do enredo da escola de samba Grande Rio, é
sugestivo para as análises sobre as formas de reprodução e transmissão das
religiões afro-brasileiras, especialmente em comparação com o proselitismo
evangélico e carismático atual. O chamado proselitismo tem sido associado às
práticas de evangelização das igrejas evangélicas. A efetiva participação no período
momesco, através da organização de um bloco, é utilizada como meio de atingir
objetivos religiosos que, a princípio, se contrapõem ao aspecto mundano do evento.
A evangelização é a justificativa para a imersão, em especial, desse ramo religioso
no mais expressivo movimento “mundano” do Rio de Janeiro.
Além do Cara de
Leão, outros blocos evangélicos desfilam pelas cidades. No caso do Rio de Janeiro,
há também o bloco da Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul, que
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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
organiza o bloco Mocidade Dependente de Deus. Encarar o carnaval como período
propício à evangelização é uma característica significativa do tipo de concepção
religiosa adotada por essas igrejas: a “fé em ação”, esta que se efetiva “no
mundo”; em consonância com as análises weberianas. O carnaval é percebido como
situação privilegiada para a evangelização. É nele que podem ser encontrados os
“desviados”, os “pecadores”, um vasto público-alvo. Nessa dinâmica, a chamada
estratégia proselitista evidencia características fundamentais do exclusivismo
religioso, como a disposição combativa e a reivindicação de legitimidade. Cabe
maior profundidade na análise sobre o “proselitismo involuntário”, relativo às
religiões afro-brasileiras presente na retórica elaborada para compor o enredo de
uma escola de samba. O “proselitismo” nunca esteve associado às suas práticas,
condizendo com o modelo do sincretismo hierárquico. Vale verificar como a retórica
exclusivista e a estratégia proselitista têm sido recebidas, adotadas e/ou reinterpretadas pelas religiões afro-brasileiras.
Em primeira análise, observa-se que junto às estratégias de evangelização
que ocorrem no fluxo das cidades estão em disputa discursos sobre autenticidade.
Pode-se dizer que eles vêm sendo acionados para contrastar e definir fronteiras de
legitimidade entre o religioso e o laico. Os discursos sobre autenticidade
(Gonçalves, 1989; 1995) estão presentes também na dinâmica religião-cidade. Os
evangélicos pentecostais e os carismáticos católicos realizam seus eventos em
grandes espaços como a Praça XV, a Quinta da Boa Vista, a Enseada de Botafogo e
o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Em São Paulo, na Avenida Paulista e no
Campo de Marte, entre outros. O fato de serem realizados no espaço da “grande
cidade” tem sido considerado um dado relevante para a compreensão de práticas e
significados que a experiência religiosa assume na contemporaneidade, na medida
em que estão a eles conjugadas características religiosas e urbanas.
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URBANA: caminhos e destinos da arte de rua brasileira
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