administração e pol. publicas
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administração e pol. publicas
Administração e Políticas Publicas de Saúde, Educação e Trabalho Administração Geral A atividade administrativa é caracterizada por seu traço multicientífico e multidisciplinar. Quase tudo é administração. Qualquer trabalho que seja ralizado por duas ou mais pessoas, que tenham graus de poder diferentes, contém elementos de administração. (p. 9) De nada adianta ter conhecimento, deter ou dominar, uma técnica se ao mesmo tempo não estiver disponível uma habilidade de gerenciar essa técnica e esse conhecimento, ou seja, administrá-lo. (p. 12) O que dificulta o enquadramento teórico da Administração é o fato de ela transitar livremente entre o senso comum e as teses de mestrado e doutorado. A Administração é praticada não só entre aqueles que possuem formação acadêmica específica, como também é possível encontrar em diversas organizações administradores que não são formados e contam somente com o prática.( p. 12/13) Encarar a Administração, como um corpo de conhecimentos dotados de um objeto (próprio) de estudos, é requisito que a qualifica como ciência. (p. 13) O principal meio de acesso a ciência administrativa é através da Teoria Geral da Administração, que resultou de uma imensa produção de livros sobre Administração. (p. 13) A Teoria Geral da Administração (TGA) corresponde a um compêndio das várias visões da gestão empresarial que surgiram a partir da Revolução Industrial. Foi nessa época que a empresa foi institucionalizada, como uma organização. (p. 17) Uma das primeiras abordagens de administração, é a abordagem clássica, que inclui a Administração científica, idealizada pelo engenheiro Taylor (1856-1915). (p. 17) Para Taylor, tudo era uma questão de tornar perfeita a execução de cada tarefa. As condições para isso incluiriam desde a absoluta separação das fases de planejamento, concepção e direção das tarefas de execução até o emprego de um determinado tipo de operário, segundo suas palavras, "tão forte e tão imbecil, um homem-boi". (p. 18) Henry Fayol foi outro engenheiro que inscreveu-se como expoente da abordagem clássica da Administração. Fayol passou a conceber a gestão da empresa a partir de determinadas funções básicas: técnicas; comerciais; financeiras; de segurança; contábeis e administrativas. (p. 19) A teoria de Fayol, representou um avanço em relação a teoria de Taylor, pela sua tentativa de pensar a empresa como um todo, ao contrário da ênfase na tarefa, típica do taylorismo. A teoria clássica acrescenta um novo elemento a TGA: a estrutura da empresa, o que representou uma ampliação dos horizontes até então estabelecidos. No entanto, a empresa ainda era vista sob extremo racionalismo. Ninguêm até aí havia pensado que a empresa é contituída também por gente. (p. 20) A hegemonia da mentalidade taylorista suscitou entre os trabalhadores uma insatisfação crescente com as condições desumanas de trabalho. (p. 20) Devido a esse descontentamento um grupo de pesquisadores passou a investigar numa empresa as condições ambientais que otimizassem a produtividade. A pesquisa ficou conhecida como Experiência de Hawthorne. Descobriu-se que qualquer variação ambiental aumentava a produtividade. (p. 21) Apesar da experiência ter deixado mais perguntas que respostas, ela serviu para mostrar que as relações humanas no trabalho eram essenciais para a Administração. (p. 21) Assim, deu-se o surgimento da Escola das Relações Humanas, que se caracterizou por enfatizar a adaptação do homem à organização e vice-versa. (p. 22) A principal figura dessa corrente que ficou conhecida como Escola Neoclássica foi Drucker (1909-). Sua proposta consistia em espanar a poeira da abordagem clássica, tornando-a compatível com uma nova realidade social, já marcada por uma acirrada concorrência entre as empresas. (p. 23) A teoria neoclássica propõe a valorização do administrador, idealmente um elemento eclético capaz de catalisar fundamentos de outras teorias e visualizar com clareza, na sua ação, as dimensões da eficiência e da eficácia. A eficiência é definida como a capacidade da realização de uma tarefa, porém sob o questionamento da importância da realização desta tarefa.(p. 23/24) Esta escola tem como ponto de partida e de chegada a eficácia. O que importa é o que se quer atingir, o resultado esperado. A maneira como se processará essa operação não é enfatizada. Mais importante do que fazer as coisas corretamente é realizar as coisas essenciais ao cumprimento dos objetivos. A ênfase na estrutura da teoria clássica e o espírito paternalista da Escola de Relações Humanas deixam de ser fins em si mesmos para se constituírem em fatores de uma dimensão maior: consecução dos objetivos traçados. (p. 24) O planejamento estratégico é um ítem muito importante dentro de uma empresa. O planejador estratégico é capaz de moderar a sua tara pelo lucro do trimestre e gastar parte do seu tempo imerso num processo de como se antecipar às tendências sociais e fazer as coisas acontecerem sob a menor incerteza possível. Num primeiro plano define a missão da empresa; depois estabelece os objetivos, que são programas de trabalho para indicar o que será feito, quando e onde e por fim as metas, com a quantificação da produção planejada e do lucro esperado. (p. 26) Nos anos 40 passa a perceber-se a teoria da burocracia dentro da administração. O arcabouço teórico constituído até então era insuficiente para fazer face a todas as dificuldades encontradas na gestão empresarial. A gerência científica, de Taylor, reduzia reduzia tudo a uma questão de realizar de maneira ótima as tarefas. A abordagem humanística só tinha olhos para o aperfeiçoamento das relações sociais no trabalho, em prejuízo de todos os demais aspectos.(p. 28) Max Weber, partindo da premissa de que o traço mais relevante da sociedade ocidental, no século XX, era o agrupamento social em organizações, procurou fazer um mapeamento de como se estabelece o poder nessas entidades. Construiu um modelo ideal, no qual as organizações são caracterizadas por cargos formalmente bem definidos, ordem hierárquica com linhas de autoridade e responsabilidade bem delimitadas, seleção de pessoal à base de qualificações técnicas ou profissionais, normas e regulamentos para os atos oficiais, possibilidade de carreira e segurança no cargo. (p. 28) Assim, Weber cunhou a expressão burocracia para representar esse tipo ideal de organização, porém ao fazê-lo, não estava pensando se o fenômeno burocrático era om ou mal, simplesmente estava tentando traçar o seu perfil. (p. 28/29) Entre as críticas que se fizeram à Escola de Relações Humanas, uma era a de que o seu caráter predominantemente prescritivo tirava-lhe o status de uma ciência social substanciada por um rigor experimental aceitável. Vários psícólogos, dentre os quais pode-se citar Lewin, Maslow, Herzberg, McGregor, desenvolveram diferentes abordagens para explicar o comportamento humano no trabalho. Desta forma teve origem a Escola Behaviorista. (p. 31-34) Por volta de 1960, a escola behaviorista já havia dado novos contornos à teoria das relações humanas, mostrando que era possível, por meio de experimentos científicos na área da psicologia organizacional, mapear as relações sociais dentro de um grupo de indivíduos. De posse desse instrumental teórico, mais uma vez a Administração oscila entre a investigação realista e o receituário idealista. Surge o movimento do Desenvolvimento Organizacional, ou DO, com a idéia de intervir na organização, em busca de uma melhoria no rendimento do trabalho grupal associado com a perspectiva de uma elevação do nível de qualidade de vida nesse ambiente.(p. 34) Na abordagem sistêmica da organização, a empresa é como um organismo vivo, cuja inércia o impele para o desaparecimento e a morte. Mesmo na sua fase ascencial, suas energias, idealmente, são despendidas para garantir-lhe s sobrevivência. Daí que a idéia de intervenção na organização trazida pelo DO acabou associada a uma tentativa de desvendar a crise permanece que acompanha a organização desde o seu surgimento.(p.35) A DO se encaixa na empresa que apresenta um cenário carente de mudanças, incapaz de se autodiagnosticar e formular um programa de renovação, abre suas portas a um agente de mudanças, que atue como um "facilitador" das mudanças necessárias. Essa figura é o consultor. (p. 36/37) Existem dois tipos de consultorias, a de recursos e a de procedimentos. No primeiro caso, o consultor é contratado para resolver um problema específico e nisso empenha seus conhecimentos técnicos requeridos para aquele fim. Já o consultor de procedimentos reveste-se do papel de um educador imbuído da missão de levar a empresa do cliente a tornar-se capaz de auto-diagnosticar-se e pôr em prática as mudanças esperadas. (p. 38) Em 1956, um biólogo alemão chamado Ludwig von Bertalanffy publicou um livro com o nome de Teoria Geral dos Sistemas. Pretendia mostrar que um determinado modelo de funcionamento dos sistemas poderia ser aplicado universalmente às ciências em geral, da física às humanidades. Essa teoria logo estendeu suas influências para as diversas áreas do conhecimento, até mesmo para a Administração. (p. 40) Apesar da multidisciplinaridade inerente à ação da empresa, ela era vista até então como um sistema fechado, com as atenções da gerência voltando-se para ela mesma. Com a teoria geral dos sistemas, percebe-se que a empresa é um sistema aberto, que faz parte de um ambiente mutante, constituído de outros sistemas, e que ela, a empresa, constitui-se de subsistemas. (p. 40) O matemático Norbert Wiener (1894-1963), foi quem formulou o conceito daquilo que seria a principal ferramenta da visão holística das ciências: a cibernética. Seu propósito é a busca das propriedades globais de um sistema, resultantes do fato de tratar-se de um conjunto estruturado que ultrapassa a simples soma de suas partes (sinergia). (p. 43) Um sistema mantém-se em funcionamento enquanto é capaz de processar entradas, produzindo saídas. Para isso, deve ser capaz de utilizar os resultados de seu próprio desempenho como informação auto-reguladora, ajustando a si mesmo como parte do processo em andamento. Essa capacidade, ou habilidade, foi chamada por Wiener de Feedback e cedo seu uso foi disseminado em várias áreas de atividade. (p. 43) Uma idéia que intrigava Wiener eram as semelhanças na maneira como funciona tanto um animal quanto uma máquina auto-regulável. Ambos, vistos como um sistema, precisam de entradas, processam estas entradas, transformando-as em saídas como produtos. Nesse processo autoregulam suas partes quando uma disfunção começa a surgir. Essa capacidade de perceber uma disfunção e eliminá-la, para a cibernética, é a informação. (p. 43/44) Como esse modelo de funcionamento se aplica também para organizações sociais, a difusão do uso do computador na empresa leva à ocorrência de um fenômeno já contemplado pela cibernética: em que instâncias o homem, depois (ou antes? de controlar o computador é por ele controlado? (p. 44) Em princípio, a missão do computador seria poupar o homem de elevados volumes de trabalho. Mas isso não é simples assim. O homem sempre interagiu com a natureza percebendo as suas infinitas gradações e sutilezas. Mas o computador nega ao homem essas séries contínuas. O homem cria máquinas para que estas lhe permitam alcançar diversos objetivos, mas o custo disso é que ele, na sua inteireza, vê-se obrigado a adaptar-se a elas. (p. 44/45) É na Administração que a informática encontra o seu principal meio de difusão e, mais que isso, o meio de operar esse processo de interação "do homem para a máquina" mas não da "máquina para o homem". Esse fenômeno não teria importância maior se o computador não tivesse se tornado um entidade meio divinizada depois de seu uso ter sido difundido em nível massivo. Em outros tempos, a mercadoria, a máquina, o automóvel tornaram-se fetiches. Agora é a vez do computador. (p. 45) Verifica-se nas teorias administrativas, desde as propostas apresentadas por Taylor, uma evolução para modelos mais elaborados, para uma busca de conceitos que contemplem a organização em toda a sua complexidade. A teoria dos sistemas, trazendo em seu interior a cibernética, representa um passo decisivo nesse sentido. A caminhada não parou por aí. A partir dos primeiros anos da década de 50 começaram a surgir estudos que resultaram na teoria da contingência, que é uma espécie de estado a arte atual da Administração. (p. 46) A teoria contingencial pretende contemplar todas as bandeiras que surgiram desde o taylorismo e dar um conformação ao estilo administrativo em função de cada realidade específica. (p. 47) A abordagem contingencial enfatiza o ambiente e a adequação da empresa a ele. Este é um imperativo básico. A empresa precisa fazer isso todos os dias porque o ambiente muda todos os dias. Adaptar-se ao ambiente, entre outras graves implicações, exige mudanças na estrutura da empresa, que demandam mexer com gente. E isso é complicado. É possível que para se tornar mais ágil seja necessário dar mais responsabilidade e autoridade aos escalões inferiores, isto, por sua vez, pode acarretar perda de poder e insegurança aos gerentes e demais pessoas que exercem cargos mais altos dentro da empresa. (p. 49) I. O que é Política? Somos todos políticos, pois a política não é apenas a disposição de governar uma cidade, um Estado ou um país. A política está onde existem, no mínimo, duas pessoas que precisam tomar decisões para o bem comum. A política está onde existem relações de poder envolvidas na tomada de decisão. Por isso, a política está dentro de casa, na relação entre marido e esposa, na relação de pais e filhos, onde todos, diariamente, precisam expor seus pontos de vista e tomar decisões que busquem o bem de todos. A política está na igreja, na escola, no trabalho e entre os vizinhos. A palavra política, no sentido original não se refere apenas aos governos. Ela é derivada do grego antigo (politéia) que indicava todos os procedimentos relativos a pólis (cidade). Por extensão, podia significar tanto o governo, quanto às sociedades, comunidades e coletividades e outras definições referentes à vida urbana. Na Grécia Antiga, em meados do século VII a.C, os cidadãos livres participavam das assembléias para discutir os problemas comuns a todos e tomar decisões destinadas a solucionar estes desafios. Deste costume, surgiu à democracia (demos = povo e kratos = autoridade), que desde a sua origem foi uma forma de organização que reconhecia a cada um dos membros da comunidade o direito de participar da direção e gestão dos assuntos públicos. Nos sistemas democráticos o poder deveria estar nas mãos do povo. As leis no Estado democrático deveriam expressar a vontade do povo, e não os caprichos dos reis, ditadores, militares, líderes religiosos ou partidos políticos. À medida que as sociedades foram se tornando complexas, a participação dos cidadãos nas decisões públicas passou a se dar pelo sistema indireto ou representativo. Este sistema partia do princípio que cada cidadão governaria seu município, Estado ou país através de seus representantes, escolhidos através do voto. Em nosso país, vivemos uma inversão de papéis. O povo que deveria governar através de seus representantes, é governado por aqueles que o representam. Para muitos, eleger um político é darlhe um emprego, quando na verdade é fazê-lo seu representante. Na verdade, o eleitor continua sendo o verdadeiro titular do mandato, e não o político eleito. O eleitor pode destituí-lo, e não o político descartar o eleitor. O candidato eleito será a sua voz durante o mandato. II. O que são Políticas Públicas? O termo Política Pública está relacionado com o que acontece em nosso meio eclesiástico com a expressão Missão Integral. A expressão Missão Integral é redundante. A Bíblia não reconhece uma missão que seja parcial. Mas como a igreja construiu conceitos de missão relacionados apenas a alma, à espiritualidade e à fé, esquecendo-se do corpo e da vida, foi necessária uma expressão que chamasse a atenção para o fato de que Missão era mais do que a igreja realizava. Então, agregouse a palavra integral, que significa completa; ampla; e para todo o ser humano. Da mesma forma acontece agora com os espaços de formulação e implementação de políticas públicas. Por diversas razões, elege-se um militar para cuidar dos interesses dos militares, um empresário para cuidar dos interesses dos empresários, um médico para cuidar dos interesses dos médicos (e parece que não dos pacientes), um evangélico para cuidar dos interesses dos evangélicos. Nesta prática, a maior fatia da sociedade brasileira ficou de fora, pois os pobres não conseguem eleger um pobre para cuidar dos interesses dos pobres. Como a política está privatizada no Brasil e cada um cuida de interesses de seu grupo, precisamos agregar a palavra política à expressão pública, para que todos compreendam que as políticas de saúde, educação, segurança, entre outras, devem ser voltadas para todas as pessoas. Neste sentido, "políticas públicas" não é o que o governo realiza, mas o que é feito por todos em favor de todos. É público, não a partir de quem faz a tarefa, mas a quem ela se destina. Assim, política pública de acesso à água pode ser encampada por uma igreja, uma ong, ou um governante municipal, e sempre será uma política pública, pois estará tratando do direito de todo o cidadão e cidadã de ter acesso à água de qualidade e em quantidade suficiente para a sua vida e a vida dos seus. PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS Para que se compreenda com adequação o sentido e a prática das políticas públicas, ou seja, o que elas são e para que servem, primeiro serão apresentados os conceitos-chave de toda atividade de planejamento gerencial (formular políticas públicas é determinar os rumos que as ações futuras tomarão); depois será apresentada a lógica do planejamento. Optou-se por este procedimento para facilitar tanto a compreensão deste documento quanto para auxiliar na das atividades que serão desenvolvidas para que cada órgão do Estado esteja provido de um modelo de gestão logístico adequado para o seu funcionamento. O que é política? As políticas, no processo gerencial, têm a finalidade de ordenamento de ações para a consecução de objetivos pretendidos pelas organizações. Neste ordenamento entram em jogo os objetivos pretendidos, o processo de tomada de decisão, as orientações normativas (o que pode e o que não pode ser feito) e os meios (recursos) disponíveis e sua forma de utilização. A idéia de ordenamento é, portanto, a maneira através da qual os objetivos devem ser alcançados. Quadro 01 – Definições de política Autor Definição Park (1997, p. 238) São fins, metas, princípios, propósitos ou idéias em longo prazo, amplos e harmônicos, de uma empresa Pereira (2004, p. São orientações para a tomada de decisão 169-170) Chiavenato (1999, p. São 230) afirmações genéricas baseadas nos objetivos organizacionais e visam oferecer rumos para as pessoas dentro da organização Daft (1999, p. 299) É o uso do poder para influenciar decisões de modo que se obtenham esses resultados Moraes (2001, p. 71) Políticas são orientações para a tomada de decisão Bunge 286) (2002, p. É um conjunto de princípios gerais acerca dos fins e dos meios de uma organização formal Fonte: elaborado pelo autor. PARK (1997, p. 238), por exemplo, explica que as políticas são espécies de fins, metas, princípios, propósitos ou idéias. Essa variedade de entendimento é o que faz com que o termo política (e seus derivados, como as políticas públicas) não apresente uma definição conceitual consensual. De fato, uma política pode ser um fim a ser alcançado; um meta, que nada mais é do que uma forma específica de objetivo; um princípio enquanto filosofia a ser seguida para o desenvolvimento de uma determinada atividade ou alcance de objetivo; propósito, no sentido de proposição que deve ser obedecida; ou idéia que norteará ações. Não importa o entendimento, duas condições devem ser obedecidas: para ser política, os fins, metas, princípios, propósitos ou idéias têm que estar ligadas ao longo prazo e não podem ser contraditórias ou antagônicas entre si. A idéia de política enquanto ordenamento também é compartilhada por PEREIRA (2004, p. 169-170) e MORAES (2001, p. 71), mas com vinculação ao processo de tomada de decisão, ou seja, é uma maneira através da qual gerentes e seus subordinados vêem um objetivo refletido, que pode ser tanto uma norma que não pode ser infringida ou orientações de como se deve proceder diante de uma determinada situação. Subjaz a esta definição, portanto, a concepção de um julgamento que os atores devem fazer diante de uma determinada situação, capaz de facilitar ou dificultar a ação ou o alcance do objetivo pretendido. Sob a luz da política organizacional, os agentes terão subsídios suficientes para decidir a melhor forma de agir, que é justamente aquela que qualquer pessoa, diante da mesma situação, agiria exatamente da forma como um determinado ator agiu. É por isso que se fala, por exemplo, que as políticas são definidas de maneira ampla, para permitir o julgamento, enquanto que as normas e rotinas devem ser detalhadas, devem ser obedecidas ao pé da letra. Quando se afirmar que as políticas são amplas é porque representam afirmativas genéricas cuja validade engloba a organização como um todo. CHIAVENATO (1999, p. 230) mostra que, ao envolver toda a organização, as políticas têm a capacidade de fornecer rumos, caminhos, alternativas, que expandem a capacidade de ação das pessoas. Por incrível que pareça, ao seguirem uma política, as pessoas de uma organização não têm sua liberdade reduzida; ao contrário, têm-na ampliada, porque ser livre é ser capaz de fazer o máximo possível dentro dos ditames legais, o que envolve a idéia de inteligência. Desta forma, ao definirem os limites ou fronteiras das ações nos quais as pessoas podem tomar suas decisões, as políticas servem de guias pra que diferentes pessoas diante de situações semelhantes tenham decisões similares. DAFT (1999, p. 299) apresenta uma definição diferente das apresentadas até aqui, mas que é convergente com a idéia geral de política: o uso do poder para influenciar decisões. O que é diferente nesta concepção? O poder como ferramenta essencial da ação – ou da coerção para agir. Mas inclusive esta concepção diferente já está contida nas explicações acima porque o uso do poder está relacionado ao alcance de resultados, é uma relação meios (o poder) e fins (os objetivos pretendidos), exatamente da forma como também a descreve BUNGE (2002, p. 286). Desta forma, a política enquanto afirmativa genérica ou filosofia organizacional força os agentes a agir de determinadas formas que não firam a orientação por ela expressa. Isso é suficiente para mostrar que não há, aqui, conflito entre a idéia apresentada por Daft e as expostas anteriormente. Política é um tipo de ordenamento que deve ser seguido para que determinadas ações possam ser desenvolvidas ou objetivos possam ser alcançados a contento Como pode ser compreendido a partir das análises acima, política é um tipo de ordenamento que deve ser seguido para que determinadas ações possam ser desenvolvidas ou objetivos possam ser alcançados a contento. Sua finalidade é facilitar o alcance dos objetivos ao prover as pessoas com orientações acerca do que deve ser feito ou o que deve ser evitado. Esta idéia facilitará o entendimento das políticas públicas, a seguir analisadas. O que são políticas públicas? AZEVEDO (2003), de forma genérica, diz que tudo o que um determinado governo faz ou deixa de fazer é política pública. De acordo com a teoria da ação, a inação quando é objeto de decisão, também é ação, ou seja, aquele que, deliberadamente, não age, age. O que está por trás desta definição é o fato de que toda ação está relacionada com o alcance de pelo menos um objetivo, de maneira que não se age sem uma finalidade. A conseqüência, portanto, também é admitida como um dos elementos do cálculo da ação, de maneira que o agente tem que se responsabilizar pelos resultados dos seus atos. Do ponto de vista das políticas públicas, as ações e inações do governo geram resultados esperados ou não sobre os quais o agente (o governo) tem que se responsabilizar. O caráter finalístico das políticas públicas explica, por exemplo, o seu direcionamento para o alcance de objetivos pretendidos pelos governo. Em comparação com as leis, como o faz BUCCI (2001, p. 11), as políticas públicas são ―forjadas‖ em direção a alvos determinados, enquanto que as leis são gerais e abstratas. Nota-se aqui, também, um diferencial em relação à política: a política é geral e abstrata, como as leis, o que, no fundo, faz com que uma política seja também uma lei, conforme explicado na seção anterior. Também é possível compreender que quando alguém se refere a políticas públicas está imprimindo um caráter de finalidade à sua expressão, ou seja, está-se referindo a uma ação, digamos, mais operacional da lei. Quadro 02 – Definições de políticas públicas Autor Definição Azevedo (2003) É tudo o que um governo faz e deixa de fazer, com todos os impactos de suas ações e de suas omissões Bucci (2001, p. 11) São encaminhamentos forjados para a realização de determinados objetivos Dworkin (1997, p. São proposições que descrevem objetivos 90) Comparato (1997, p. São 343) programas de ação governamental voltados à concretização de direitos Fonte: elaborado pelo autor. É em direção a esta concepção de políticas públicas enquanto direcionamento de ações para o alcance de objetivos que DWORKIN (1997, p. 90) expõe sua definição. Para este autor, as políticas públicas são propostas de ações que descrevem objetivos a serem ou não buscados; em termos mais amplos, as políticas públicas, quando propostas, descrevem e reconhecem a existência de direitos que precisam ser garantidos. Por exemplo, se é proposta uma política pública de ―garantir à população de até quatorze anos o acesso ao ensino fundamental‖, esta mesma política só é proposta porque, antes, é reconhecido o direito ao acesso à educação. Ora, para que aquela política, aquela orientação de ação cuja finalidade (objetivo) é assegurar a todos a educação fundamental seja concretizada, há a necessidade de se planejar ações, escolher objetivos, disponibilizar recursos, enfim, fazer toda uma programação ―voltada para a concretização desse direito‖, no falar de COMPARATO (1997, p. 343). Por isso, políticas públicas são sinônimos de programas de ação governamental. Políticas públicas são o conjunto de diretrizes prescritas em lei cuja finalidade é garantir que os direitos do cidadão sejam garantidos e promovidos Política Pública (proposta) de Logística do Estado: Modernização da Estrutura e Infra-estrutura Logística Estadual. Políticas públicas são o conjunto de diretrizes prescritas em lei cuja finalidade é garantir que os direitos do cidadão sejam garantidos e promovidos. Isso significa que não há políticas públicas que não sejam formalizadas e que não estejam direcionadas para que os direitos dos cidadãos estejam a todos eles assegurados. Propor políticas públicas, portanto, é identificar os direitos que serão assegurados e promovidos para, posteriormente, serem objeto das formalidades legais. O que é missão? A definição de missão é consensual na literatura organizacional e gerencial. É a razão da existência de uma organização. Uma organização é todo agrupamento humano que tenha pelo menos um objetivo em comum. Quando as pessoas se reúnem para fazer alguma coisa, essa reunião não é casual, tem um motivo maior que dão coesão e unidade à união. É a este motivo maior, a razão de existência da organização, que a literatura denomina Missão. Quadro 03 – Definições de missão Autor Definição Maximiano (2004, p. É um objetivo conceitual, que define o propósito ou negócio 422) Wright, de uma organização Kroll e É o motivo da existência da organização Parnell (2000, p. 92) Pereira (2004, p. É a descrição dos valores da organização, suas aspirações e 168) sua razão de ser Chiavenato (1999, p. É a finalidade ou o motivo pelo qual a organização foi criada e 247) para o que ela deve servir Daft (1999, p. 32) É o objetivo básico de uma organização Moraes (2001, p. 70) É a razão de existência da organização Fonte: elaborado pelo autor. MAXIMIANO (2004, p. 422) mostra que a missão é uma forma de objetivo, do tipo conceitual. Os objetivos conceituais são extremamente abstratos, mas têm, por mais paradoxal que isso possa parecer, um sentido prático perfeitamente compreensível. Uma organização cuja missão é ―saciar a fome do mundo‖ diz ao seu ambiente de operação muitas coisas, como ―estar no mundo todo‖ ou ―ser capaz de atingir o mundo todo‖. A abstração, aqui, é decorrente da amplitude que o conceito (o que é expresso em palavras) alcança; quanto mais amplo, mais abstrato – mas, ainda assim, bastante compreensível porque as missões definem o propósito ou o negócio de uma organização. WRIGHT, KROLL e PARNELL (2000, p. 92) vão um pouco além quando mostram que a missão é o motivo da existência da organização e que as missões são diversas. Há a missão da corporação, da organização como um todo, também chamada de ―missão corporativa‖ e as missões das unidades negócios desta mesma organização. A razão é simples: toda organização tem um negócio, mesmo que ela seja formada de apenas duas pessoas. Se uma empresa decide vender papel e tirar cópias, são esses os seus negócios e, assim, cada um tem uma razão de existência, uma missão; da mesma forma, uma Secretaria de Estado, com várias gerências, também tem sua missão corporativa (da Secretaria de Estado) e várias missões de suas unidades (Gerência de Logística de Serviços, Gerência de Logística de Compras e Gerência de Logística de Patrimônio). Se uma determinada unidade de negócios não tem uma finalidade, uma razão de existência, deve ser extinta. As missões, portanto, descrevem ―os valores da organização, suas aspirações e sua razão de ser‖ (PEREIRA, 2004, p. 168; MORAES, 2001, p. 70; DAFT, 1999, p. 32). Um valor é tudo o que é objeto de alta consideração em uma organização ou em uma unidade de negócios; as aspirações denotam certos encaminhamentos, direcionamentos em relação ao futuro e que, por isso, explicam e dão sentido à razão de ser da organização. Na missão estão contidos, portanto, os propósitos e os escopos das operações que a organização realiza. A localiza Rent a Car considera que ―encantar os clientes é um valor inquestionável nas suas operações,‖ buscar a excelência é sua aspiração ―, por isso sua razão de ser é‖ alugar carros e administrar frotas ―; diante disso, sua missão não poderia ser diferente do que‖Encantar clientes em aluguel de carros e administração de frotas, buscando a excelência‖. O mesmo sentido é impresso na missão do MacDonald´s de ―Satisfazer o apetite do mundo com bons alimentos, bem-servidos, a um preço que as pessoas possam consumir‖. Missão é a razão de existência de uma organização Missão da SEAD: Propor, normatizar, executar, avaliar e melhorar sistematicamente as políticas e ações públicas, voltados para o alinhamento e integração estratégicas e operacionais dos sistemas de gestão de pessoas, logística e desenvolvimento organizacional, no âmbito do poder executivo estadual e em benefício da sociedade. Missão do Programa de Qualidade do Estado: Promover a excelência da gestão pública estadual, mediante a avaliação continuada das práticas de gestão e dos resultados das organizações públicas estaduais e municipais. Missão da Gestão Logística do Estado: Promover a modernização da gestão do setor logístico, de modo a possibilitar o suporte necessário às ações finalísticas do Poder Executivo Estadual e a racionalização da aplicação dos recursos públicos. CHIAVENATO (1999, p. 247), na sua explicação de missão, mostra que toda organização tem uma razão para a qual foi criada e que, conseqüentemente, a ela deve servir. Explica que toda missão tem que responder a três perguntas: Quem somos nós?, O que fazemos? Por que fazemos o que fazemos? No fundo, são estas três perguntas que devem estar na mente de toda e qualquer pessoa que faz parte de uma organização para que ela compreenda e dê sentido às suas atividades cotidianas: a missão tem essas duas finalidades. O que é visão? Apesar de não haver uma definição com o mesmo grau de consenso obtido para o termo ―missão‖, a visão é um fenômeno que apresenta algumas características comuns, segundo a literatura consultada. Duas são as principais: a idéia de imagem mental e a expressão de futuro. Visão, então, é a imagem mental que uma organização tem de seu futuro, hoje. Quadro 04 – Definições de visão Autor Definição MINTZBERG, É uma representação mental de estratégia, criada ou ao AHLSTRAND e menos expressa na cabeça do líder LAMPEL p. (2000, 98) WRIGHT (2000, p. É o que a organização pode se tornar 312) CHIAVENATO (1999, É a imagem que a organização tem a respeito de si p. 253) mesmas e do seu futuro DAFT (1999, p. 362) É uma imagem do futuro idealizado para a organização Fonte: elaborado pelo autor. MINTZBERG, AHLSTRAND e LAMPEL (2000, p. 98) consideram a visão uma expressão mental que se encontra na cabeça do líder de uma organização. Como está relacionada com o futuro, essa representação se configura como uma forma de estratégia organizacional, ou seja, enquanto maneira através da qual seus objetivos serão trabalhados e seus recursos, utilizados. Aqui, então, a visão é um elemento estratégico para as organizações. Visão é a imagem de como a organização quer ser no futuro Visão da SEAD: Tornar-se, até 2007, um referencial de excelência em gestão pública, contribuindo para o fortalecimento das políticas e ações públicas do governo estadual. Visão do Programa de Qualidade do Estado: Até 2010, a excelência em gestão pública deverá ter um valor adquirido e preservado pelas instituições públicas estaduais e municipais do Pará e um valor requerido no serviço público pelo cidadão. Visão da Gestão Logística do Estado: Tornar-se, em 2007, um referencial de excelência na área de logística pública. A definição obtida em WRIGHT (2000, p. 312) é bastante contundente: visão ―é o que a organização pode se tornar‖. É fundamental que se perceba o caráter probabilístico: a visão não diz o que a organização tem que ser, mas o que pode ou não vir a ser, denota uma dentre várias possibilidades. Se o futuro é um leque de possibilidades, o mais adequado seria falar de ―cenários futuros‖. Essa mesma perspectiva é conjugada por CHIAVENATO (1999, p. 253), de que a visão é uma imagem que a organização tem de si mesma em relação ao seu futuro, e por DAFT (1999, p. 362), com a exigência de que a visão tem que ser compartilhada. O que chama a atenção da posição de Chiavenato é que a visão não significa o que a organização é, designação de tempo presente, mas do que ela pretende ser, que ainda não é. Advém disso o duplo componente da visão, a representação futura da organização em termos de tempo e espaço. Se esta representação não for compartilhada, não poderá ser chamada ―visão‖, porque não é organizacional – uma organização é sempre um agrupamento humano, o que exige a existência de pelo menos duas pessoas. O que são objetivos? A visão de que tratou a seção anterior é uma forma de manifestação do desejo organizacional em relação ao seu futuro. Em termos probabilísticos, a visão terá maior ou menor chance de se concretizar, o que vai depender da capacidade que a organização tem que alcançar os objetivos, fatores capazes de aproximar a imagem do futuro presente na realidade desejada. Os objetivos são, portanto, toda e qualquer situação futura desejada. Quadro 05 – Definições de objetivos Autor Maximiano p. 422) Definição (2004, É a situação final em direção à qual o comportamento se orienta Pereira (2004, p. É um estado desejado no futuro, que a organização quer 168) alcançar, representando os propósitos permanentes a ser atingidos Chiavenato (1999, É um estado futuro desejado que se tenta tornar p. 256) Moraes (2001, p. É um estado desejado no futuro que a organização quer 70) alcançar Fonte: elaborado pelo autor. Para MAXIMIANO (2004, p. 422), em conformidade com a literatura sobre objetivos, um objetivo nada mais é do que um ―resultado desejado‖. Neste sentido particular, toda visão também é uma forma de objetivo porque representa uma forma de desejo para o qual os recursos e esforços organizacionais serão direcionados. No entanto, em termos mais exatos com a definição do autor (e sua diferenciação também exata de visão, que é sempre uma situação interdiária), um objetivo é sempre uma situação final – quando alcançado, acabou a necessidade de direcionamento de esforços e recursos para tal, enquanto que a visão é projetada, o que garante seu caráter sempre parcial. PEREIRA (2004, p. 168) também considera os objetivos como um estado futuro desejado, mas o faz de forma a relacioná-los com os ―propósitos permanentes‖ que a organização deseja atingir, que pode ser tomado como sua missão. Dessa forma, os objetivos são maneiras através das quais as organizações atualizam a sua missão ou formas de comprovação de que estão a ela direcionadas. Objetivos são resultados futuros desejados Exemplo de objetivo da Gestão de Patrimônio Imobiliário: Instituir um sistema de gestão do acervo imobiliário estadual que permita conhecer a sua real dimensão e valor. A concepção de CHIAVENATO (1999, p. 256) apresenta uma ligeira variação porque leva em consideração a idéia de especificidade temporal. Para este autor, a missão da organização é o seu grande objetivo; os objetivos propriamente ditos, tomados em espaço de tempos para a sua realização, são resultados específicos que precisam ser alcançados para que aquele grande objetivo (sua missão) possa também ser alcançado. A diferença é que o grande objetivo tem um espaço de tempo muitas vezes difícil de ser estipulado para que seus resultados sejam alcançados. É neste sentido também a posição de MORAES (2001, p. 70). O que são metas? Para QUINN (2001, p. 20), metas são sinônimos de resultados a ser alcançados, o que as coloca no mesmo patamar de objetivos. Assim, metas, objetivos e resultados pretendidos são a expressão do mesmo fenômeno. Mas com uma diferença: as metas são tipos específicos de objetivos aos quais é acrescida a dimensão temporal em que esses resultados serão alcançados. As metas são declarações de objetivos, mas nada é dito acerca da maneira como devem ser alcançados. PARK (1997, p. 237) extrapola ainda mais a abrangência conceitual de metas ao tomá-las como sinônimas de propósitos, missões, metas e alvos. Quadro 06 – Definições de metas Autor Definição Quinn (2001, p. 20) São indicações de quais e quando os resultados precisam ser alcançados, mas não dizem como devem ser conseguidos Maximiano p. 421) (2004, São objetivos quantificados, que definem prazos, volumes, valores e responsabilidades Park (1997, p. 237) São sinônimos de propósitos, missões, metas ou alvos Daft (999, p. 32) São a descrição dos resultados mensuráveis específicos e são muitas vezes previstas para curto prazo Fonte: elaborado pelo autor. MAXIMIANO (2004, p. 421) entende como meta todo objetivo quantificado. Essa quantificação pode ser definida em termos de prazos, volumes, valores, medidas, responsabilidades ou qualquer outra modalidade. DAFT (999, p. 32), ao invés de valorizar a quantificação encaminha seu entendimento para a idéia de oficialização, formalização e operação. As metas oficiais teriam escopo (definição exata) e resultados formalizados; as operativas teriam a preocupação de descrever os resultados específicos a ser alcançados. Em ambos os casos, a maioria das metas tem dimensão temporal de curto prazo (até um ano). Meta é todo resultado futuro a ser alcançado, com objetivo, valor e horizonte de tempo Exemplo de Meta da Gerência de Patrimônio Imobiliário: Levantar e avaliar 3.600 imóveis próprios do Estado, localizados em todo território paraense, até dezembro de 2006. Talvez a definição mais exata de metas seja a de que metas são objetivos com prazo e valor determinados. Dessa forma, para que uma meta seja criada ou identificada, basta responder a três questões: a) o que deve ser feito?, b) quando tem que ser finalizado? e (c) qual o seu valor? A primeira questão identifica o objetivo; a segunda, a dimensão temporal ou horizonte de tempo; a terceira, o custo ou investimento necessário para que os resultados desejados sejam produzidos. 5- O APARELHO DO ESTADO E AS FORMAS DE PROPRIEDADE Para enfrentar os principais problemas que representam obstáculos à implementação de um aparelho do Estado moderno e eficiente, torna-se necessário definir um modelo conceitual, que distinga os segmentos fundamentais característicos da ação do Estado. A opção pela construção deste modelo tem como principal vantagem permitir a identificação de estratégias específicas para cada segmento de atuação do Estado, evitando a alternativa simplista de proposição de soluções genéricas a problemas que são peculiares dependendo do setor. Entretanto, tem a desvantagem da imperfeição intrínseca dos modelos, que sempre representam uma simplificação da realidade. Estas imperfeições, caracterizadas por eventuais omissões e dificuldades de estabelecimento de limites entre as fronteiras de cada segmento, serão aperfeiçoadas na medida do aprofundamento do debate. O Estado é a organização burocrática que possui o poder de legislar e tributar sobre a população de um determinado território. O Estado é, portanto, a única estrutura organizacional que possui o "poder extroverso", ou seja, o poder de constituir unilateralmente obrigações para terceiros, com extravasamento dos seus próprios limites. O aparelho do Estado ou administração pública lato senso, compreende (a) um núcleo estratégico ou governo, constituído pela cúpula dos três poderes, (b) um corpo de funcionários, e (c) uma força militar e policial. O aparelho do Estado é regido basicamente pelo direito constitucional e pelo direito administrativo, enquanto que o Estado é fonte ou sancionador e garantidor desses e de todos os demais direitos. Quando somamos ao aparelho do Estado todo o sistema institucional-legal, que regula não apenas o próprio aparelho do Estado mas toda a sociedade, temos o Estado. 5.1 Os Setores do Estado No Aparelho do Estado é possível distinguir quatro setores: NÚCLEO ESTRATÉGICO. Corresponde ao governo, em sentido lato. É o setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento. É portanto o setor onde as decisões estratégicas são tomadas. Corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e, no poder executivo, ao Presidente da República, aos ministros e aos seus auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas públicas. ATIVIDADES EXCLUSIVAS. É o setor em que são prestados serviços que só o Estado pode realizar. São serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado - o poder de regulamentar, fiscalizar, fomentar. Como exemplos temos: a cobrança e fiscalização dos impostos, a polícia, a previdência social básica, o serviço de desemprego, a fiscalização do cumprimento de normas sanitárias, o serviço de trânsito, a compra de serviços de saúde pelo Estado, o controle do meio ambiente, o subsídio à educação básica, o serviço de emissão de passaportes, etc. SERVIÇOS NÃO EXCLUSIVOS. Corresponde ao setor onde o Estado atua simultaneamente com outras organizações públicas não-estatais e privadas. As instituições desse setor não possuem o poder de Estado. Este, entretanto, está presente porque os serviços envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educação e da saúde, ou porque possuem "economias externas" relevantes, na medida que produzem ganhos que não podem ser apropriados por esses serviços através do mercado. As economias produzidas imediatamente se espalham para o resto da sociedade, não podendo ser transformadas em lucros. São exemplos deste setor: as universidades, os hospitais, os centros de pesquisa e os museus. PRODUÇÃO DE BENS E SERVIÇOS PARA O MERCADO. Corresponde à área de atuação das empresas. É caracterizado pelas atividades econômicas voltadas para o lucro que ainda permanecem no aparelho do Estado como, por exemplo, as do setor de infra-estrutura. Estão no Estado seja porque faltou capital ao setor privado para realizar o investimento, seja porque são atividades naturalmente monopolistas, nas quais o controle via mercado não é possível, tornando-se necessário no caso de privatização, a regulamentação rígida. 5.2 Setores do Estado e Tipos de Gestão Cada um destes quatro setores referidos apresenta características peculiares, tanto no que se refere às suas prioridades, quanto aos princípios administrativos adotados. No núcleo estratégico, o fundamental é que as decisões sejam as melhores, e, em seguida, que sejam efetivamente cumpridas. A efetividade é mais importante que a eficiência. O que importa saber é, primeiro, se as decisões que estão sendo tomadas pelo governo atendem eficazmente ao interesse nacional, se correspondem aos objetivos mais gerais aos quais a sociedade brasileira está voltada ou não. Segundo, se, uma vez tomadas as decisões, estas são de fato cumpridas. Já no campo das atividades exclusivas de Estado, dos serviços não-exclusivos e da produção de bens e serviços o critério eficiência torna-se fundamental. O que importa é atender milhões de cidadãos com boa qualidade a um custo baixo. Como já vimos, existem ainda hoje duas formas de administração pública relevantes: a ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BUROCRÁTICA e a ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL. A primeira, embora sofrendo do excesso de formalismo e da ênfase no controle dos processos, tem como vantagens a segurança e a efetividade das decisões. Já a administração pública gerencial caracteriza-se fundamentalmente pela eficiência dos serviços prestados a milhares senão milhões de cidadãos. Nestes termos, no núcleo estratégico, em que o essencial é a correção das decisões tomadas e o princípio administrativo fundamental é o da efetividade, entendido como a capacidade de ver obedecidas e implementadas com segurança as decisões tomadas, é mais adequado que haja um misto de administração pública burocrática e gerencial. No setor das atividades exclusivas e de serviços competitivos ou não exclusivos, o importante é a qualidade e o custo dos serviços prestados aos cidadãos. O princípio correspondente é o da eficiência , ou seja, a busca de uma relação ótima entre qualidade e custo dos serviços colocados à disposição do público. Logo, a administração deve ser necessariamente gerencial. O mesmo se diga, obviamente, do setor das empresas, que, enquanto estiverem com o Estado, deverão obedecer aos princípios gerenciais de administração. 5.3 Setores do Estado e Formas de Propriedade Outra distinção importante é a relacionada às formas de propriedade. Ainda que vulgarmente se considerem apenas duas formas, a PROPRIEDADE ESTATAL e a PROPRIEDADE PRIVADA, existe no capitalismo contemporâneo uma terceira forma, intermediária, extremamente relevante: a PROPRIEDADE PÚBLICA NÃO-ESTATAL, constituída pelas organizações sem fins lucrativos, que não são propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas diretamente para o atendimento do interesse público. O tipo de propriedade mais indicado variará de acordo com o setor do aparelho do Estado. No núcleo estratégico a propriedade tem que ser necessariamente estatal. Nas atividades exclusivas de Estado, onde o poder extroverso de Estado é exercido, a propriedade também só pode ser estatal. Já para o setor não-exclusivo ou competitivo do Estado a propriedade ideal é a pública não-estatal. Não é a propriedade estatal porque aí não se exerce o poder de Estado. Não é, por outro lado, a propriedade privada, porque se trata de um tipo de serviço por definição subsidiado. A propriedade pública não-estatal torna mais fácil e direto o controle social, através da participação nos conselhos de administração dos diversos segmentos envolvidos, ao mesmo tempo que favorece a parceria entre sociedade e Estado. As organizações nesse setor gozam de uma autonomia administrativa muito maior do que aquela possível dentro do aparelho do Estado. Em compensação seus dirigentes são chamados a assumir uma responsabilidade maior, em conjunto com a sociedade, na gestão da instituição. No setor de produção de bens e serviços para o mercado a eficiência é também o princípio administrativo básico e a administração gerencial, a mais indicada. Em termos de propriedade, dada a possibilidade de coordenação via mercado, a propriedade privada é a regra. A propriedade estatal só se justifica quando não existem capitais privados disponíveis - o que não é mais o caso no Brasil ou então quando existe um monopólio natural. Mesmo neste caso, entretanto, a gestão privada tenderá a ser a mais adequada, desde que acompanhada por um seguro sistema de regulação. A RELAÇÃO ENTRE OS ELEMENTOS DE PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL Os elementos de planejamento governamental (política, políticas públicas, missão, visão, objetivos e metas) estão ligados tanto conceitual, quanto lógica e operacionalmente. A ligação conceitual é decorrente do fato de que todos eles fazem parte da função planejamento, cuja finalidade é identificar o que tem quer ser feito e como isso será feito. As políticas fazem parte do segundo grupo, que tratam das maneiras através das quais os objetivos devem ser alcançados, ao apontar os limites de ações das pessoas envolvidas tanto na formulação quanto da operacionalização das atividades de planejamento; os demais elementos tratam da determinação do que deve ser feito, os objetivos de planejamento. Essas são as duas ligações lógicas. A lógica operacional dos elementos é a seguinte: as organizações, por terem uma razão de existência, têm que realizar ações para concretizar a sua missão. Mas não as fazem ao acaso: fazem-nas com base no que se chama de visão organizacional, exatamente aquela situação desejada futura para a qual se encaminharão grupos de atividades específicas, com resultados específicos, chamados de objetivos. Dessa forma, têm-se três tipos de objetivos: a missão, ou macro-objetivo; a visão ou objetivo de longuíssimo prazo; e os objetivos de longo (maior que três anos), médio (de um a dois anos) e curto prazo (até um ano). Para que um objetivo seja atingido, precisa ter seu horizonte de tempo dividido em pequenas etapas, perfeitamente quantitativadas, chamadas metas. Dessa forma, o alcance de todas as metas permite que os objetivos sejam alcançados; o alcance dos objetivos de curto, médio e longo prazos encaminha para a concreticidade da visão. Em todos os casos, os resultados alcançados ou não farão a organização se distanciar ou se aproximar de sua missão. Se isso for compreendido com adequação, pode-se também entender o processo de planejamento estratégico. As etapas do planejamento estratégico O gerenciamento das organizações modernas tem exigido o uso de ferramentas gerenciais para dar conta das ameaças e oportunidades cada vez mais crescentes nos dias de hoje. O processo de gerenciamento nada mais é do que o alcance de determinados resultados a partir do uso planejado, organizado, dirigido e controlado dos recursos organizacionais. Emerge deste processo a importância do planejamento como ferramenta que será utilizado para ―fazer funcionar‖ todas as demais etapas do processo e, consequentemente, a própria organização. Mas no que consiste o planejamento organizacional? Para organizações que já atuam no ambiente (ou no mercado, para aquelas cuja finalidade fundamental para a sua continuidade é o lucro monetário), ALMEIDA (2006) propõe cinco etapas: a de avaliação da estratégia que a organização utiliza atualmente, a avaliação do ambiente para que se possa determinar as possibilidades de sucesso da estratégia atual, o estabelecimento do perfil estratégico que a organização poderá e/ou deverá utilizar de agora em diante, a qualificação dos objetivos propostos e a finalização do planejamento em um documento chamado plano. A lógica subjacente à idéia do autor é de que há a necessidade da análise da situação atual para que se possa decidir acerca de que possibilidades de futuro a organização deverá seguir. SILVA (2003), por outro lado, dá a idéia das etapas que uma nova organização, que ainda não atua em nenhum mercado, deve seguir para a elaboração de seu plano estratégico. A primeira etapa é a definição do âmbito de atuação da organização, que pode ser mais de um, também chamado de negócio; a segunda é a definição do papel que a organização deverá desempenhar no seu negócio, conhecido popularmente como ―missão organizacional‖; a terceira é a identificação e detalhamento dos valores que a organização levará em consideração nos seus processos decisórios e que vai determinar o comportamento da organização no cumprimento de sua missão, ou seja, mandamentos que deverão ser seguidos por todos, tais como um estatuto ético. A quarta etapa é a descrição da imagem que todos os membros da organização devem ter da organização em relação ao seu futuro, isto é, como gostariam que a organização fosse vista no futuro próximo aos olhos de seus clientes, principalmente; a quinta etapa é a análise ambiental, onde procuram-se determinar quais as oportunidades e ameaças que o ambiente externo oferece para que a missão e a visão da organização se concretizem, além da realização da análise interna, onde busca-se saber os pontos fracos e fortes que determinarão o sucesso ou fracasso do empreendimento. A sexta etapa é a determinação dos objetivos (resultados quantitativos e/ou qualitativos) que a organização deve alcançar em diferentes períodos de tempo para cumprir sua Missão. São definidas, também, as estratégias, que são as atividades que devem ser realizadas para cada objetivo estabelecido que levarão aos resultados pretendidos (respeitando-se, sempre, os princípios escolhidos). Depois que tudo isso é feito, produz-se um documento, chamado plano, que servirá de guia para a ação de cada membro da organização. A partir da análise dessas duas propostas de planejamento estratégico, que é aquele planejamento em que se recomenda que grande parte dos membros da organização participe, pode-se perceber que há a necessidade de um plano global, envolvente de toda a organização, que deve ser apoiado pelas pessoas que tomam as principais decisões da organização. Afinal, são elas que comandarão cada etapa ou fase de sua implementação e que se responsabilizarão pelo seu sucesso ou fracasso. Este princípio lógico de se planejar toda a organização em futuro de maior alcance possível permite que se escolha com mais adequação o que se pode e deve fazer agora, para que aquele futuro desejado seja alcançado. Isso é válido tanto para a venda de cachorro quente da esquina quanto para a implantação de um sistema de informação, como relata CLEMENTE (2006). As etapas apontadas por STONER e FREEMAN (1992) são basicamente as mesmas sugeridas por SILVA (2003) e RUAS (2003), que foram utilizadas por CLEMENTE (2006): definição de objetivos, identificação dos objetivos e da estratégia atuais, análise ambiental, análise dos recursos, identificação de oportunidades e ameaças, determinação do grau de mudança necessário, decisão da estratégia a ser adotada, implantação da estratégia, mensuração e controle. Este processo, aliás, é bastante comum no dia-a-dia de organizações mediana e altamente profissionalizadas porque o planejamento estratégico é uma das ferramentas mais poderosas que o homem já inventou para transformar idéias em realidade. Além do mais, não se planeja para que as coisas permaneçam do jeito que estão; o planejamento é uma ferramenta de mudança. Propõe-se planejar porque há descontentamento com o presente e, por isso, almeja-se um futuro melhor. É por isso que o planejamento estratégico é um processo, um conjunto de atividades que parte da necessidade de se compreender a realidade atual (diagnóstico estratégico) para que a missão organizacional possa ser claramente delineada; feito isso, é fundamental que os valores que devem ser seguidos por todos sejam explicitamente trabalhados. De posse do diagnóstico, da missão e dos valores, pode-se selecionar os objetivos que deverão ser alcançados para que a missão se efetive, mas de forma controlada e avaliada, como propõe (MALDANER, 2006). Processos de planejamento semelhantes são apresentados também por PEREIRA (2004) e MAXIMIANO (2004), com a diferença apenas no grau de detalhamento de cada uma das etapas. O que se deve compreender, nisso tudo, é que o planejamento é uma grande preparação para a ação. O plano, o resultado do planejamento que estará contido em um documento, nada mais é do que uma forma de guia calculado do que deverá ser feito; representa um grande experimento que é feito antes de se colocar em prática, para que se evite os riscos de se perder os poucos recursos que as organizações, principalmente as públicas, disponibilizam para fazer o que têm que fazer. Planejar, então, é testar, antes, se as coisas que têm que ser feitas realmente têm grande probabilidade de acontecer se determinadas estratégias e recursos forem utilizados. Não se investe tempo em planejamento, então, como deleite ou frugalidade acadêmica, mas como uma necessidade de teste da viabilidade técnica (se as pessoas da organização saberão fazer o que tem que ser feito) e econômico-financeira (se haverá os recursos financeiros disponíveis para financiar aquilo que tem que ser feito). Quadro XX – As etapas do planejamento estratégico Autor Almeida e Giglio (2006) Resposta 1) Avaliação da estratégia vigente 2) Avaliação do Ambiente 3) Estabelecimento do perfil estratégico 4) Qualificação dos objetivos 5) Finalização Silva (2003) 1. Definição do Negócio 2. Definição da Missão 3. Definição dos Princípios 4. Definição da Visão 5. Análise do Ambiente 6. Identificação das Oportunidades 7. Identificação das Ameaças 8. Identificação das Forças Organizacionais 9. Identificação das Fraquezas Organizacionais 10. Definição dos Objetivos 11. Definição das Estratégias 12. Determinação do Horizonte de Planejamento Stoner e Freeman (1992) 1) Definição de objetivos 2) Identificação dos objetivos e da estratégia atuais 3) Análise ambiental 4) Análise dos recursos 5) Identificação de oportunidades e ameaças 6) Determinação do grau de mudança necessário 7) Decisão da estratégia a ser adotada 8) Implantação da estratégia 9) Mensuração e controle Ruas (2003) 1)) Definição da estratégia da organização 2) Análise e compreensão da estratégia atual da organização 3) Definição dos Inter-relacionamentos dos objetivos estratégicos 4) Definição de indicadores chave de desempenho 5) Monitoramento e controle da estratégia Maldaner (2006) 1) Realização do diagnóstico estratégico 2) Definição da Missão da organização 3) Criação dos instrumentos prescritivos e quantitativos 4) Controle e avaliação Chiavenato (1999) 1) construção do consenso sobre o futuro que se deseja 2) examinar as condições externas do ambiente 3) examinar as condições internas da organização Pereira (2004) 1) determinação dos objetivos empresariais 2) análise das condições ambientais 3) análise das condições organizacionais 4) formulação de alternativas estratégicas 5) elaboração do planejamento estratégico 6) implementação do planejamento estratégico via planejamentos tático e operacional Maximiano (2004) 1) Análise da situação estratégica presente da organização. 2) Avaliação das diretrizes superiores 3) Análise do ambiente externo 4) Análise do ambiente interno 5) Definição do plano estratégico Fonte: dados coletados e organizados pelo autor. POLÍTICAS PÚBLICAS: CULTURA E DIVERSIDADE Pronunciamento do Secretário Sergio Mamberti na IV Conferência de Educação e Cultura na Câmara dos Deputados (*) O conceito de Diversidade Cultural é fator fundamental para a construção contemporânea das Políticas Públicas, especialmente nas áreas da Cultura e das Políticas Sociais. A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural e os atuais esforços que desenvolvemos no âmbito da UNESCO, em torno de uma futura Convenção Internacional sobre a proteção e promoção da Diversidade Cultural evidenciam a centralidade dessas discussões. Os direitos culturais fazem parte dos direitos humanos e a dimensão cultural é indispensável e estratégica para qualquer projeto de desenvolvimento. Segundo a Declaração Universal da Diversidade Cultural, os indivíduos e grupos devem ter garantidas as condições de criar e difundir suas expressões culturais; o direito à educação e à formação de qualidade que respeite sua identidade cultural; a possibilidade de participar da vida cultural de sua preferência e exercer e fruir suas próprias práticas culturais, desde que respeitados os limites dos direitos humanos. O direito à diferença, e à construção individual e coletiva das identidades através das expressões culturais é elemento fundamental da promoção de uma cultura de paz. O reconhecimento e a valorização da diversidade cultural estão ligados à busca da solidariedade entre os povos, à consciência da unidade do gênero humano e ao desenvolvimento dos intercâmbios culturais. Os processos de globalização e/ou mundialização, caracterizados pela rápida evolução das tecnologias da informação e da comunicação constituem hoje desafios para a preservação e promoção dessa diversidade, criando condicionamentos e ameaçando o diálogo permanente entre culturas, civilizações ou grupos sociais. Por outro lado, é fundamental o respeito, a valorização e o convívio harmonioso das diferentes identidades culturais existentes dentro dos territórios nacionais. O conceito de diversidade cultural nos permite perceber que as identidades culturais nacionais não são um conjunto monolítico e único. Ao contrário, podemos e devemos reconhecer e valorizar as nossas diferenças culturais, como fator para a coexistência harmoniosa das várias formas possíveis de brasilidade. Como o respeito a eventuais diferenças entre os indivíduos e grupos humanos é condição da cidadania, devemos tratar com carinho e eficácia da promoção da convivência harmoniosa, dos diálogos e dos intercâmbios entre os brasileiros – expressos através das diversas linguagens e expressões culturais, para a superação da violência e da intolerância entre indivíduos e grupos sociais em nosso país. No plano das relações internacionais, os Ministérios da Cultura e das Relações Exteriores têm trabalhado em conjunto em prol da chamada Convenção da UNESCO sobre Diversidade Cultural, através da qual os países assumirão uma série de compromissos em torno da promoção e da proteção da diversidade cultural. É fundamental que os mecanismos ativos de política cultural sejam fortalecidos no nível das relações internacionais. Para o Governo brasileiro, proteger e promover as expressões culturais em sua diversidade é direito legítimo dos cidadãos, da sociedade civil e dos estados nacionais. A Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, além de participar da construção da agenda internacional sobre Diversidade Cultural, colabora na estruturação das políticas culturais no Brasil a partir do conceito de Diversidade Cultural, o que nos coloca outros dois desafios. O primeiro é o entendimento do conceito de Diversidade Cultural no contexto da cultura brasileira, trabalhado de maneira transversal aos segmentos governamentais e da sociedade civil. Outro desafio é o de estabelecer diálogos com grupos e redes culturais representativas da Diversidade Cultural brasileira ainda excluídos do acesso aos instrumentos de política pública de cultura e contribuir para o aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção e promoção da nossa Diversidade Cultural. Primeiro Desafio - Identidade e Diversidade Cultural no Contexto Brasileiro A idéia Moderna de Cultura está, desde seu surgimento, associada à idéia de diversidade, passando a reunir na mesma noção a tradição humanista de cultivo das realizações consideradas superiores do espírito humano nas artes e ciências e a nova valorização, de raiz iluminista, da diversidade de costumes e crenças dos povos como via para o conhecimento humano. A Cultura no sentido moderno ao mesmo tempo seria o conjunto de expressões do espírito ou gênero humano e das expressões singulares da humanidade. Podemos descrever a história da cultura moderna pela evolução das tensões entre o que hoje chamaríamos de tendências globalizantes e as expressões singulares dos indivíduos, grupos ou povos. As sociedades ocidentais em geral e o Brasil em particular passam por transformações desde o final do século XX, colocando em crise as noções Modernas de Cultura e de Identidade Cultural. 1 - O reconhecimento de situações específicas derivadas das distinções de classe ou do mundo do trabalho (identidades de trabalhadores do campo ou da cidade, estudantes, etc); 2 - situações de gênero ou orientação sexual, reveladas pelos movimentos de mulheres e os movimentos de gays, lésbicas, transgêneros e bissexuais; 3 - reconhecimento de direitos a partir da situação etária, como os idosos, jovens e crianças; 4 - o reconhecimento de desigualdades derivadas da situação étnica, como as dos afro-brasileiros, dos povos indígenas ou de imigrantes de várias origens e a necessidade da valorização das diversas expressões culturais ligadas a estes traços identitários. No caso brasileiro, é necessário reconhecer e dar maior visibilidade às expressões ligadas às diversas etnias e povos, além dos tipos mestiços e de expressões resultantes dos processos de miscigenação. Como elementos específicos ao processo cultural brasileiro, podemos apontar outros três elementos que tensionam as categorias utilizadas para a formulação de nossa visão sobre o processo cultural e sobre as políticas públicas de cultura: O primeiro é o tratamento contraditório e insuficiente em relação às expressões das Culturas Populares. Há um reconhecimento do poder criativo do povo brasileiro na incorporação de elementos populares como símbolos da Identidade Cultural Brasileira, tais como o samba a feijoada ou carnaval. Porém, nunca houve um tratamento equilibrado entre os incentivos às expressões das Cultural Populares (sejam as tradicionais ou as novas e urbanas como o Hiphop) e os mecanismos de proteção e fomento às manifestações artísticas e das indústrias culturais. As culturas populares sempre sofreram o mesmo processo discriminatório que as classes menos favorecidas, detentoras desse rico acervo cultural. O segundo elemento diz respeito às dificuldade de reconhecimento das chamadas expressões culturais locais ou regionais da cultura brasileira. Na linguagem cotidiana reconhecemos as peculiaridades de culturas típicas, tais como a cultura nordestina, pantaneira ou gaúcha. Mas este tema é tratado de maneira insuficiente nos processos de formulação de políticas públicas. Finalmente, um terceiro elemento é a questão da indução à produção cultural descentralizada. Assim como para o Brasil é vital que haja proteção e estímulo à produção e difusão de conteúdos nacionais através da limitação ao capital estrangeiro na propriedade dos meios de comunicação, é necessária a regulação da área de audiovisual e o estímulo à produção e difusão descentralizadas, além do fortalecimento dos intercâmbios culturais entre os diversos rincões brasileiros, através de mecanismos como os dispostos no conhecido projeto apresentado pela Deputada Jandira Feghalli. Gostaria de destacar aqui a interface especial que o conceito de Diversidade Cultural produz nos processos educacionais e das relações entre a produção cultural e o espaço da escola. A importância deste tema foi reconhecida pelo Ministério da Educação na atual gestão, através da criação de uma secretaria específica. A escola é um espaço público em que cada um – aluno ou professor – relaciona-se no cotidiano com o outro, com o diferente. A escola é um espaço da construção e reconstrução simbólica, e os profissionais da educação são também profissionais da cultura. A reflexão sobre a diversidade cultural é questão central para a qualificação das práticas dos profissionais da educação, especialmente em relação ao conhecimento sobre os grupos sociais dominados e excluídos. É fundamental para um projeto democrático, que os cidadãos brasileiros sejam formados com o respeito e com a convivência dos diferentes grupos sociais como uma maneira de superar o preconceito. Para uma análise crítica Segundo Desafio – Ampliação dos diálogos e apoios aos Grupos e Redes que fazem a Diversidade Cultural Brasileira No primeiro ano do Governo Lula o Ministério da Cultura promoveu um processo de reestruturação interna, através do qual foi criada a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, para a qual fui designado titular pelo Ministro Gilberto Gil. A Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural está incumbida de promover e apoiar as atividades de incentivo à diversidade cultural como meios de promoção da cidadania. Na revisão do PPA Plano Brasil de Todos, foi aprovada a criação do Programa Brasil Plural – Identidade e Diversidade Cultural, com o objetivo de ―garantir que os grupos e redes responsáveis pelas manifestações características da diversidade cultural brasileira tenham acesso aos mecanismos de apoio necessários à valorização de suas atividades culturais, promovendo o intercâmbio cultural entre as regiões e grupos culturais brasileiros, considerando características identitárias por gênero, orientação sexual, grupos etários, étnicos e das culturas populares.‖ A atuação da Secretaria em relação à promoção de diálogos com segmentos da comunidade cultural e aperfeiçoamento institucional pode ser exemplificada na ação em relação às manifestações das Culturas Populares. Por diversas razões, os artistas e grupos responsáveis pelo riquíssimo conjunto de expressões culturais populares têm grande dificuldade de obter apoios, seja através de projetos beneficiados por incentivo fiscal bem como àqueles apoiados pelo Fundo Nacional de Cultura. Em conjunto com a Secretaria de Políticas Culturais e outros órgãos vinculados ao Ministério da Cultura, como a Fundação Cultural Palmares, o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do IPHAN e a FUNARTE, bem como em parceria com Fóruns da Sociedade Civil de Culturas Populares do Rio de Janeiro e de São Paulo, articulou-se o maior número possível de representantes das inúmeras expressões culturais populares em um Primeiro Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares. Foram 15 oficinas preparatórias e a etapa nacional tendo ocorrido, na sede da Funarte em Brasília. Os debates já realizados forneceram algumas demandas por parte destes segmentos da comunidade cultural e entendeu-se que, além da necessidade de fortalecer os mecanismos de proteção e preservação ligados à política patrimonial, deve-se direcionar recursos do Fundo Nacional de Cultura para apoiar projetos que fortaleçam a atividade desses artistas e grupos. Através de Editais de Fomento às Expressões das Culturas Populares, em parceria com a Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura do MinC, queremos dar melhores condições para que os artistas das culturas populares sejam sujeitos das políticas culturais como são, por exemplos, os profissionais ligados ao teatro ou ao cinema. Essa estratégia participativa de ampliação dos diálogos entre o Ministério da Cultura e segmentos responsáveis pela diversidade cultural brasileira com dificuldade de acesso aos mecanismos federais de incentivo à cultura é principal contribuição institucional da Secretaria ao processo da formulação e implementação de políticas públicas de cultura. Três outros exemplos dessa maneira participativa de trabalho estão nos diálogos e apoios à Rede Cultural Estudantil – com a parceria estratégica com a UNE, a Rede Cultural da Terra – com parceria estratégica com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e o Grupo de Trabalho para Políticas Culturais ligadas às identidades Gay, Lésbicas, Trangêneros e Bissexuais. Na nossa visão estratégica ainda temos os desafio de construir espaços de participação e instrumentos de fortalecimento de expressões ligadas aos povos indígenas, às novas expressões populares urbanas – como, por exemplo, o Hip Hop ou a Capoeira – que, por incrível que pareça, não é plenamente reconhecida pelas Políticas Públicas de Cultura – bem como às redes ligadas às expressões de trabalhadores urbanos e das populações ribeirinhas e litorâneas, além de apoiar projetos ligados aos direitos culturais das crianças e adolescentes. Finalmente, outro desafio colocado no horizontes desta gestão é o lançamento de novos projetos e estudos de mapeamento da Diversidade Cultural, em complemento aos instrumentos da política patrimonial a cargo do IPHAN. É necessário conhecer as nossas expressões culturais, pois só se pode gostar daquilo que se conhece. E é direito dos cidadãos brasileiros conhecerem e usufruirem as riquezas da Diversidade Cultural Brasileira. (*) Texto redigido por Álvaro Magalhães a partir de debates internos na SID/MinC, especialemente com Ricardo Lima e Sérgio Mamberti. RESPONSABILIDADE E A CIDADANIA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Juan Mozzicafreddo * Resumo Neste texto pretende-se refletir acerca da responsabilidade enquanto conceito que, por um lado, abrange o funcionamento do sistema administrativo — prestar contas, desempenho profissional, etc. — e, por outro, afeta a produção de confiança dos cidadãos na administração e no governo. A questão da responsabilidade será tratada em torno de três dimensões analíticas. Um primeiro nível, organizacional, abordando-se as virtualidades e as limitações da accountability; um segundo nível, em torno da dimensão institucional, entendida como responsabilidade política e administrativa face aos direitos dos cidadãos; e, num terceiro nível, abordar-se-á a dimensão contratual da responsabilidade política, equacionada como categoria constitutiva da democracia e da governarão numa fase de sociedade de risco. Palavras-chave Responsabilidade, accountability, ética, administração pública, cidadania, sociedade de risco, poder político. A responsabilidade como categoria central do sistema administrativo Niklas Luhmann perguntou-se porque é que o indivíduo seria honesto no escuro?1 Porque ele assim o deseja ou porque há regras e procedimentos de controlo dos comportamentos? (Luhmann, 1989). É natural que não se possa responder univocamente a esta questão. Mas é normal que nos sirva de reflexão sobre a responsabilidade e a ética no funcionamento dos sistemas administrativos e políticos. Tendo como pano de fundo o processo de modernização dos serviços públicos e aceitando que é possível fazer uma distinção entre a mudança da administração pública, num amplo sentido, como mudança na sua relação com o cidadão e, num sentido restrito, como mudança na estrutura interna do sistema administrativo (Pitschas, 2001), penso que a questão da responsabilidade é um instrumento analítico que permite articular estas duas dimensões. Isto é tanto mais importante quanto, face à diferenciação dos sistemas sociais e à complexidade dos atos e funções, torna-se necessário dispor de uma generalização de símbolos que exprimam a unidade do sistema: a responsabilidade política e ética é um deles (Luhmann, 1980). A responsabilidade como conceito, por um lado, abrange o funcionamento do sistema administrativo — prestar contas dos atos e decisões, cumprir prazos e procedimentos, desempenho profissional, comportamentos neutros e impessoais, etc. — e, por outro, afeta a produção (ou não) de confiança do cidadão no sistema, na difusão da ética profissional e na realização eficaz dos programas públicos, como valor de legitimação do funcionamento da administração. A adesão dos indivíduos ao processo de modernização e de racionalização da administração é, além de um ato que diz respeito ao próprio interesse, um ato de confiança na forma como a ética profissional é respeitada pela autoridade. A ética é hoje um valor em relativo declínio, mas sem confiança nos comportamentos e nos processos, não haverá adesão a uma reforma modernizadora. A ética profissional é um procedimento e um modelo de ação. Ora, uma prática administrativa e política alheada das exigências dos cidadãos em matéria de responsabilidade face à utilização dos recursos públicos (menosprezando os programas de accountability, ou seja, a obrigação de responder pelos atos e resultados), face às decisões vinculantes que a afetamos indivíduos e face aos riscos e incertezas da sociedade, aprofunda o déficit de legitimidade e de desempenho dos sistemas administrativo e político. Nesse sentido o conceito de responsabilidade, que, no nosso entender, vai além da noção de accountability, constitui um dos fundamentos contratuais da vida em sociedade e da confiança nas instituições políticas e administrativas. O conceito de responsabilidade assegura o princípio tanto da utilização e prestação de contas dos recursos públicos e da autoridade política e administrativa, como o princípio de precaução e segurança das sociedades cada vez mais complexas. O objetivo deste artigo é aprofundar a questão da responsabilidade em três níveis. Uma dimensão organizacional, enquanto funcionamento do sistema administrativo e prestação de contas dos resultados; umas dimensões institucionais, entendidas como responsabilidade política e administrativa face aos direitos da cidadania; e, por último, uma dimensão contratual da responsabilidade política, entendida como categoria constitutiva da democracia numa fase de sociedade de risco. Esta distinção é naturalmente arbitrária e tem apenas por função delimitar melhores as diferentes competências e obrigações de cada um dos níveis. A categoria de cidadania, como matriz de integração social e sistêmica, percorre cada uma das três dimensões do cidadão, como contribuinte, como eleitor e como partícipe da sociedade. A categoria de cidadania, operando como mediadora entre os indivíduos e as estruturas sociais, constitui-se como uma forma especial de organizar o espaço político e onde assentam a diferenciação, a integração, as tensões e as orientações sociais e organizacionais da vida coletiva em democracia. A dimensão organizacional: accountability A responsabilidade sobre os atos e as funções do sistema administrativo tem vindo a ser equacionada em torno do conceito de accountability, interpretado como a obrigação de responder pelos resultados (Araújo, 2000), no sentido do controlo orçamental e organizacional sobre os atos administrativos, do respeito pela legalidade dos procedimentos e da responsabilização pelas conseqüências da execução das políticas públicas. Os métodos de controlo na administração pública assentam, normalmente, no controlo hierárquico interno sobre as competências e funções, no controlo da prestação de contas dos programas e políticas, no controle normativo prévio — orientações estipulando antecipadamente os procedimentos administrativos de controlo a serem observados — e nas auditorias internas e externas à administração por entidades certificadas ou por órgãos de soberania. Certamente que esta panóplia de instrumentos não indica a efetividade dos mesmos: o descontrolo sobre os atos e a falta de responsabilidade perante o cidadão — desde os prazos de respostas até o controlo dos gastos, passando pela eficiência da função — por parte do sistema administrativo e da autoridade política são, na nossa sociedade, alguns dos elementos fundamentais do déficit de confiança e da opacidade da administração pública e do poder político. O controlo externo, nomeadamente a publicidade dos atos, as informações veiculadas pelo sistema de comunicação social, a abertura dos processos (audiências públicas) antes da tomada de decisão, a intervenção orientadora e crítica dos grupos de interesse público, bem como o funcionamento do próprio mercado, apesar da sua importância crescente no controlo exterior do sistema administrativo, não têm vindo a ser suficiente para inverter a tendência da insuficiente credibilidade, em matéria de responsabilidade, da administração pública e da autoridade política. A atual difusão do método de accountability — obrigação de responder pelos resultados —, originário da tradição das organizações privadas e das instituições simples, apresenta-se, em teoria, como a solução do problema da responsabilidade da administração pública. A idéia da accountability, ou da obrigação de prestar contas dos resultados, foi sendo transposta para as entidades públicas como instrumento do controlo financeiro, tanto do ponto de vista do orçamento dos programas e medidas implementadas, como em torno da relação cont, ou seja, critérios orientados pelos indicadores da eficiência e do controlo orçamental. Neste aspecto, deve assinalar-se que o princípio da accountability tem um forte potencial na reforma da administração pública, nomeadamente no que se refere à ênfase posta na técnica de controlo dos abusos orçamentais, na segurança relativa à utilização dos recursos públicos, bem como no processo de aprendizagem no controlo dos custos e da gestão da qualidade (Wolf, 2000) dos resultados. Contudo, no que diz respeito ao princípio de prestar contas dos resultados, parece haver atualmente uma tendência para a deslocação dos aspectos legais, hierárquicos e políticos para, em contrapartida, enfatizar os aspectos financeiros e econômicos (Romzek, 2000), particularmente nos custos dos programas e de pessoal. O processo da accountability, portanto, é utilizado como meio não apenas de controlar a utilização dos recursos públicos, segundo critérios e processos de apresentação de contas e resultados, mas também como maneira de estimular ganhos econômicos e eficiência com respeito aos recursos públicos. Hoje em dia não faltam razões para tal preocupação: desde o problema do déficit fiscal, do peso do sector público na economia e dos gastos com o pessoal, até à tendência para o incremento regular da carga fiscal no rendimento dos indivíduos e das empresas. Contudo, o conceito de accountability, apesar da sua centralidade na prestação de contas dos atos administrativos e na definição, formulação e controlo das políticas públicas (Peters, 1995), nomeadamente nos indicadores da relação resultados/custos, parecem ser menos pertinentes quando se trata da qualidade dos produtos, da racionalidade das medidas e da equidade da utilização, ou mesmo dos critérios de eficiência dos recursos públicos. Para estes resultados mais qualitativos, parece não haver indicadores adequados no modelo financeiro da accountability. O princípio da accountability na administração pública não pode ser reduzido a uma questão técnica, pois trata-se de uma questão democrática (Wolf, 2000). É nesse contexto que se nos afigura importante abordar a questão da obrigação de responder pelos resultados, num registro mais político, onde o problema da responsabilidade pela utilização dos recursos públicos se relaciona mais amplamente com a cidadania e a responsabilidade política. Afigura-se que a importância de prestar contas dos resultados não pode visar apenas à eficiência das políticas, mas também o tipo de orientação prevalecente numa sociedade democrática. Na terceira parte deste artigo voltaremos a esta questão problemática. Por agora e ainda dentro deste ponto, pensamos ser necessário, para uma melhor compreensão das virtualidades e dos limites das técnicas do accountability, tecer algumas considerações sobre os problemas que este procedimento levanta na nossa administração, tanto ao nível da atual estrutura organizacional da administração pública, como ao nível dos comportamentos e do funcionamento do pessoal do sector público. Em primeiro lugar, as reformas que, entretanto têm vindo a ser introduzida na administração pública, nomeadamente a alteração das fronteiras do sector público, exemplificada no recurso a subcontratação, nas parcerias entre público, privado e associativo e na delegação de competências, contribuem para obscurecer o princípio da obrigação de prestar contas dos resultados e da gestão dos recursos públicos. Com efeito, os sistemas de subcontratação e de parcerias, tendência em aumento nesta fase do estado regulador e de esbatimento das fronteiras do sector público, acarretam alguma dispersão da autoridade e das entidades às quais é devido à prestação de contas dos resultados de gestão e de utilização dos recursos públicos (Walker, 2002). O sistema de subcontratação praticado no sector público difere do sistema de contratação entre duas entidades privadas independentes, na medida em que, por um lado, há mais entidades envolvidas e, por outro, há uma separação entre o fornecimento e o financiamento. A complexidade relacional entre as organizações limita a clareza das responsabilidades pelos atos de gestão e pelo controlo dos resultados. Nestes sistemas há três tipos de relações: o cliente com o fornecedor, o fornecedor com o financiador e o cidadão-cliente com o financiador. A hierarquia das responsabilidades e a definição dos critérios de apreciação da obrigação de responder pelos resultados tornam-se mais opacas e casuísticas. Neste sentido, a complexidade do modelo organizacional da administração pública torna mais difícil, senão menos transparente, o processo de accountability. Em segundo lugar e da mesma maneira que no precedente, a introdução de agências e institutos independentes afeta o princípio de prestação de contas sobre os resultados e o controlo dos gastos, seja porque há várias entidades envolvidas com competências de auditorias — entidades administrativas e órgãos de soberania —, seja porque não é clara a delimitação de responsabilidades e a compatibilizarão entre a autonomia de gestão e de produção por objetivos das agências e institutos públicos independentes e os critérios de responsabilização oriundos da autoridade administrativa e política (Aucoin e Heintzman, 2000). Em terceiro lugar, o modo de funcionamento da administração, nomeadamente os princípios organizativos e comportamentais em que assenta, em grande parte, o serviço público, limita as virtualidades do modelo de controlo dos custos, da responsabilidade pelos atos administrativos e da prestação de contas em face de entidades imparciais. A potencialidade do sistema de accountability, em termos de modernização e de racionalização dos serviços públicos, pressupõe um funcionamento pelo menos estandardizado-segundo os critérios profissionais dos atos de gestão — da administração pública. Ora, pensamos que há vários aspectos a ter em conta na questão da responsabilidade pelos atos de gestão e do respeito pelos procedimentos administrativos definidos. Por um lado, a descoordenação dos vários subsistemas da administração pública, o fechamento do processo da decisão, num âmbito de fragmentação da memória administrativa e processual, não permite que as decisões e as medidas de controlem e fiscalização forme doutrina e precedentes na acumulação de saber. A descontinuidade administrativa limita a fiscalização regular e continuada dos atos administrativos e de controlo dos programas. Por outro lado, a predominância de um ambiente de trabalho sem demasiado controlo interno e externo, privilegia uma forma de recrutamento próxima da cultura clientelar e do conhecimento que, por sua vez, fazem com que o desempenho profissional, a fiscalização, o controlo dos atos, estejam imbuídos de um relativo subjetivismo, de compromissos e favores que limitam a objetividade dos procedimentos. A cooptação é uma prática que não se limita apenas aos serviços públicos administrativos. Também não se pode dizer que toda a administração partilha destas características: é claro que existem situações diferenciadas e segmentos ou sectores cujo desempenho e responsabilização são de assinalar. Trata-se, porém, de observar que, não obstante os exemplos de excelência recentemente desenvolvidos (Mozzicafreddo, 2000), a regularidade de comportamentos disfuncionais, uma das características da nossa administração pública — ajudada pelo déficit de responsabilidade e de ética profissional da esfera política —, tem vindo a tornar-se mais evidente. A dimensão política e institucional da responsabilidade No estado de direito, a idéia de responsabilidade assenta num sistema normativo que define a sua fundamentação legitimadora na prossecução e projeção dos direitos do cidadão e na defesa do cidadão enquanto agente portador de um estatuto próprio no tecido social e político. A categoria de cidadania constitui-se como uma forma especial e histórica de organizar o espaço político da sociedade. A responsabilidade, como elemento distintivo da administração e da governarão, implica a utilização de procedimentos e de métodos de atuação, numa perspectiva da construção de uma sociedade de confiança, associando cidadãos, eleitos e decisores, na construção da democracia (Albertini, 2000; Beaud e Blanquer, 1999). Parece-nos importante, para melhor precisão da questão da responsabilidade política, abordar este problema em dois níveis que, embora relacionados, remetem para argumentação específica. Legitimidade e responsabilidade Será que a eficiência nas contas públicas e a racionalização no controlo financeiro dos resultados equivale a democraticidade dos atos de administração? Será que o aumento da responsabilidade pelos atos de gestão pública equivale à responsabilidade política do sistema de governo? Certamente que contribuem poderosamente para uma melhor utilização dos recursos coletivos e, portanto, para o funcionamento democrático do sistema administrativo. Pensamos, contudo, que esta situação, que está longe de corresponder à realidade quotidiana da nossa sociedade, não responde adequadamente às necessidades de legitimação do sistema administrativo e político de governarão. O respeito pelos preceitos legais, o controle das contas e a gestão eficiente dos atos e das medidas administrativas, essenciais a uma administração racional e transparente, não podem anular ou negligenciar a legitimidade das políticas e da utilização dos recursos coletivos: a responsabilidade significa que o poder e, portanto, a autoridade administrativa, deve justificar-se perante os cidadãos. Em concreto, o que parece ser central no problema da responsabilidade política é a gestão das conseqüências das políticas e dos programas públicos que se implementam, ou seja, as conseqüências da escolha efetuada pela autoridade política, no sentido de orientações e valores das escolhas políticas. A confiança nas políticas públicas passa, necessariamente, pelo crivo da prestação de contas e da transparência na utilização dos recursos públicos, mas deve assegurar, igualmente, a equidade das políticas e da utilização dos recursos coletivos e a responsabilidade dos atos de administração e de governo. Aos indicadores de eficiência e de economia na gestão dos recursos públicos devem juntar-se indicadores de avaliação da qualidade e justiça desses mesmos programas: os indicadores que medem a positividade do controlo dos custos orçamentais e da racionalização dos atos administrativos dos programas de combate à pobreza serão insuficientes, em termos de indicadores de equidade, se o nível de pobreza não diminuir. Pensamos, ainda, que dificilmente aumentará a confiança dos cidadãos nas instituições políticas se, apesar da eficiência da máquina fiscal na arrecadação das receitas e a despeito das economias de gestão da mesma, o próprio sistema for injusto na distribuição da carga fiscal, como é, aliás, reconhecidamente, o nosso sistema. A realização dos valores da cidadania implica, de maneira credível, a conciliação entre a eficiência e a justiça na esfera dos atos de administração e de governo da sociedade. Na questão da cidadania o sistema jurídico e político têm precedência sobre a ordem funcional: os princípios de gestão organizacional dos serviços públicos são sempre os de uma gestão para o bem público ou comum, o qual está sujeito à prioridade do sistema jurídico e político (Pitschas, 2001). Objetivação da responsabilidade Com vista a refletir sobre a questão da responsabilidade política, para além da questão sobre o contexto jurídico da responsabilidade dos decisores, interessa, para os objetivos deste texto, tecer algumas considerações acerca do debate que tem vindo a ser levantado a propósito do déficit de confiança nas instituições políticas e administrativas. A responsabilidade da função pública está condicionada, por um lado, pelo fato de o exercício do poder ter por objetivo natural a obtenção de resultados eficazes e, por outro, pela possibilidade, inerente à função, de se ser sancionado positiva ou negativamente: não pode haver responsabilidade pela função sem sanção (Coicaud, 1999). Para além da responsabilidade política propriamente dita, ou seja, a responsabilidade pela prestação de contas perante os eleitores e perante os órgãos de soberania, nas suas várias dimensões de moção de confiança, de rejeição, de demissão, interessa, neste caso, considerar a responsabilidade política e administrativa enquanto obrigação de prestar contas pelos atos praticados no exercício da função. Tanto ao nível da administração, como da autoridade política, é de admitir, em termos de responsabilidade da função, que a coletividade pública, nomeadamente o estado, as câmaras, a administração, têm o dever de reparar as conseqüências da má organização ou do não funcionamento da administração (Moreau, 1986). Os atos do governo e da administração não podem deixar de ter sanção administrativa ou penal pela falta ou culpa do serviço, seja culpa da organização e do funcionamento — anônima —, seja culpa individual motivada pela ação pessoal. A idéia de que os funcionários e os agentes políticos são responsáveis perante a autoridade hierárquica e que estes são responsáveis perante os órgãos de soberania está bastante longe da realidade. A responsabilidade sem sanção — para além do normal e regular ato de sanção eleitoral, positivo ou negativo — não só é um dos principais elementos do déficit de credibilidade do sistema administrativo e político, da perca de confiança nas instituições, como é uma das principais razões do mau funcionamento da administração pública. Nesse contexto, é importante ter presente que o valor pedagógico e processual, no seio da administração pública, da justiça comutativa, ou seja, do dever público de justa indenização compensatória pela falta, independentemente da natureza ilícita do ato praticado, impõe-se ao estado ou à administração, exclusivamente, com fundamento no princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos (Brito, 2002). O fato de os agentes terem que responder pelos seus atos administrativos ou decisórios obriga, em termos de procedimentos do sistema administrativo, a terem um desempenho profissional positivo, tanto em termos de prazos e de qualidade do ato, como da racionalidade e transparência do funcionamento. A irresponsabilidade do sistema administrativo e da autoridade política, em termos de funcionamento e de respeito pelos preceitos jurídicos e políticos dos direitos dos cidadãos, é diretamente proporcional à insuficiência da sanção, positiva ou negativa, pelos atos de gestão pública. Aliás, é razoável considerar, e veremos este assunto no último ponto deste texto, que o declínio da responsabilidade pelos atos de administração e de governarão, está na base do aumento da jurisdição da sociedade e das expectativas de responsabilidade penal e administrativa dos atos decisórios. Assinale-se ainda, a propósito da responsabilidade no funcionamento do sistema administrativo e da autoridade política, que a disfuncionalidade da gestão pública tem, igualmente, por base razões organizacionais e culturais, devido, justamente, à insuficiência de regras e procedimentos de atuação orientadora da ação administrativa. As formas organizativas do trabalho, por um lado, carentes de suficientes qualificações, tanto ao nível de quadros superiores como ao nível administrativo, e com reduzida produtividade em termos de horas/produto e em termos de tecnologias de apoio à gestão, e, por outro, dominadas pelas formas centralizadas das decisões, com circuitos hierárquicos e segmentados de responsabilidades, limita o seguimento dos processos, a leitura atenta e conscienciosa dos dossiês, a observância dos prazos e normas: incidem, em suma, negativamente na responsabilização individual pelo desempenho do serviço público. A ausência de sanção, pela não observância das normas de funcionamento e da fiscalização regular das decisões estabelecidas, é igualmente um dos obstáculos ao princípio de responsabilidade e credibilidade do sistema. Por outro lado, e relativamente à esfera política, nomeadamente ao nível dos altos cargos políticos e institucionais, a prática exagerada do particularismo institucional (Ferrera, Hemerijk e Rhodes, 2000), ou seja, as práticas que encorajam o corporativismo e as relações clientelares, onde não é raro observar a mistura de agentes privados e públicos nas instituições públicas, limita a eficácia do controlo, da fiscalização e da observância das normas. Neste contexto, as ações administrativas e políticas, consistentes no normal prosseguimento dos dossiês, no andamento dos inquéritos e avaliações, tornam-se, com exceção de algumas exemplares ações fiscalizadoras com forte impacto mediático, casuísticas e instrumentais. Observe-se, contudo, que os particularismos institucionais, sendo uma realidade política inerente aos regimes democráticos, onde a pluralidade de interesses, as necessidades de alianças políticas que apóiam a estabilidade dos governos, faz parte das estratégias dos executivos, não pode limitar os objetivos e a legitimidade democrática nem, o que é por demais evidente, apresentar-se como uma das características mais salientes no lugar de um modelo de ética política e de isenção pública. A responsabilidade da administração face à sociedade de risco O acumular de situações de risco e de incertezas em conseqüência do desenvolvimento da sociedade e, sobretudo, da complexidade e das formas desse desenvolvimento, coloca a questão do alcance e dos limites da responsabilidade pública, relativamente à sociedade democrática, numa outra perspectiva, complementar, certamente, mas específica. Como uma primeira observação de apresentação do problema, vale a pena lembrar a dimensão das incertezas e das situações de risco da vida em comum que se manifestam atualmente, quer na rua, nas estradas e pontes, nos locais de trabalho, nos hospitais e escolas, quer nos espaços lúdicos noturnos, nos parques de divertimentos, etc. As incertezas e as situações de risco manifestam-se, igualmente, no âmbito do controlo social, ambiental e técnico, adequado à preservação das condições ambientais, na manipulação genética dos alimentos, no âmbito das novas tecnologias e nos problemas da projeção da privacidade. Os problemas com as situações imprevistas, com as incertezas e inseguranças dos cidadãos não são, porém, novos na nossa sociedade. A sua visibilidade é hoje maior devido, sobretudo, à acumulação de situações de ruptura técnica e social, ao aumento de expectativas dos cidadãos e, ainda, a manifesta omissão política em implementar programas de manutenção dos equipamentos coletivos e de fiscalização das situações irregulares. Num segundo ponto de apresentação do problema, consideramos que o aumento das situações de risco e de incerteza verificado é um dos fatores, entre outros, que estimulam a tendência para a jurisdição das relações sociais. A tendência atual de resolução dos problemas pela via jurídica, por um lado, encoraja o sentimento e a ideologia da vitimização, com o conseqüente processo de indenização e, simultaneamente, a exigência de novas regras de regulação e, por outro, esta tendência para a criminalização ou responsabilização política e administrativa pode ser interpretada como uma nova sensibilidade política, que traduz uma percepção da indiferença dos poderosos (da esfera política e administrativa) pelo sofrimento do cidadão comum. Esta sensibilidade apresenta-se como uma procura de responsabilização individual, pagadora face a um quotidiano vivido como injusto e incerto: é uma reivindicação política (Beaud, 2000), entendida como uma exigência dos cidadãos, face ao estado e à elite política e administrativa, de responsabilidade política pelos seus atos. Pretende-se, assim, nesta última parte do texto, refletir sobre as diferentes fases da evolução sociológica da responsabilidade, nas quais e num contexto de direitos do cidadão, as incertezas e o risco foram sendo estruturados. Digamos, em termos de questões problemáticas, que a noção da responsabilidade e da culpa percorre fases distintas. A questão da responsabilidade, relativamente às incertezas dos indivíduos e aos riscos que surgem na vida em sociedade, tem vindo a sofrer significativas transformações ao longo do processo de individualização das sociedades. Por um lado, o processo social de individualização tem conduzido a um distanciamento dos indivíduos relativamente às comunidades tradicionais de pertença e a uma dependência institucional, laboral e urbana, que dificilmente podem, de maneira eficaz, funcionar como fatores de integração. É nessa nova relação de dependência que se situa a expansão das incertezas com as quais o indivíduo se confronta. Por outro lado, a noção de risco é evolutiva e inseparável da idéia de probabilidade — cálculo das conseqüências possíveis. A idéia de risco supõe que as ações não estão garantidas à partida. Além do mais, a sociedade de risco é uma sociedade orientada para o futuro: assim, desligar-se do passado e das comunidades e instituição de integração introduz incertezas quanto ao futuro da ação (Giddens, 2000). A questão da responsabilidade e da cidadania coloca-se de maneira muito diferente nas três fases mais distintivas da evolução das sociedades modernas: no início da industrialização e no regime político liberal; na sociedade industrial e no estado de direito; e na sociedade moderna com o seu estado regulador. Nos pontos a seguir tentaremos discutir, de maneira assaz sintética, a evolução das formas de responsabilidade, segundo o contexto histórico e, naturalmente, de organização política da sociedade. Sociedade liberal Na primeira fase que nos interessa considerar, ou seja, nos inícios da sociedade industrial e no contexto de um regime político relativamente liberal, o paralelismo entre industrialização, incerteza, pobreza e desintegração social é equacionado em termos de esferas autônomas de ação: pensa-se numa distinção clara entre direito e moral. Estes deveres de assistência não indicam que os pobres tenham direito à assistência, mas indicam, ao contrário, que o que está em discussão é o que pode ser, ou não ser, direito: são os critérios de juridicidade que se discutem, por forma a estabelecer o limite entre o direito e o dever (Ewald, 1996). O direito é contratual, supõe a troca de equivalentes e, assim, a sociedade não pode ajudar o outro sem contrapartidas: o que é moral não pode ser uma obrigação. As incertezas ou o infortúnio do indivíduo no seu relacionamento com a sociedade são, neste contexto, uma responsabilidade individual, uma responsabilidade de indivíduos mais ou menos previdentes com as eventuais situações aleatórias da sociedade e do trabalho. A moral da assistência e os deveres de socorro humanitário evidenciam a contradição entre a utopia liberal formulada pela economia de mercado do laissez-faire e as exigências da política (Bendix, 1974). O estado deve, por imperativo moral, promover o socorro mútuo e a assistência, mas sem que possa consagrá-los como obrigação jurídica. A pobreza é um comportamento e não pode ser equacionada como um direito. Sociedade industrial Numa segunda fase da evolução, em que a sociedade industrial e o contexto do estado de direito predominam, a sociedade redefine a sua filosofia da responsabilidade. O pensamento político e a prática social começam por admitir, face à regularidade da relação entre a industrialização e as incertezas e os riscos da existência, que a responsabilidade pelos atos da vida em comum, neste caso, pelo progresso econômico e social, pode ser imputada à entidade que constitui o progresso, ou seja, a sociedade. Qual é a razão deste deslocamento da noção de responsabilidade? Por um lado, a percepção de que existem razões econômicas, sociais e urbanas para as incertezas e infortúnios, nomeadamente a pobreza: a industrialização é um fenômeno sociológico que invade e altera os outros sectores da sociedade e modifica a relação dos indivíduos com o meio ambiente. Por outro, pensa-se que as zonas de incertezas e de riscos que a sociedade industrial produz obedecem a uma variedade de causas com efeitos diretos e indiretos e diferidos no tempo. Entre o estado e o indivíduo, num crescendo do processo de individualização, descobre-se, com base na regularidade dos acidentes de trabalho, que a sociedade opera uma distribuição dos infortúnios ou das desgraças segundo uma lógica própria do social, independentemente da boa ou má conduta de cada um (Beck, 1998): o crescimento econômico é um produto social. Por último, o desenvolvimento dos direitos de cidadania altera a noção da responsabilidade, na medida em que a igualdade perante a lei e a sua concretização nos regimes democráticos encoraja o estabelecimento de direitos sociais que funcionam como mecanismos de compensação das assimetrias e das incertezas resultantes do mercado (Flora e Heidenheimer, 1990). A figura jurídica do seguro de acidente de trabalho, nos finais do século XIX, torna-se o modelo típico da deslocação da percepção do direito e da discussão sobre os critérios de juridicidade. A relação salarial não é apenas uma troca de equivalentes. Do fato de o trabalhador estar sujeito à forma como é organizado o processo de trabalho, decorre que a questão da segurança no trabalho se torna uma responsabilidade do coletivo (Ewald, 1996). Estas medidas sociais e atos legislativos abrem a via para a noção de responsabilidade sem culpa. Doravante trata-se de equacionar a responsabilidade como uma gestão coletiva do risco, pressupondo, sociologicamente, que se pode gerir a incerteza social (Engel, 1995). Sociedade moderna Na questão das características da sociedade moderna e do seu estado regulador, interessa, antes do mais, assinalar que o problema que se apresenta com a sociedade industrial, em matéria de responsabilidade, é a contradição entre o conteúdo universal da sua modernidade e a estrutura seletiva das suas realizações. Considera-se que é neste âmbito que a responsabilidade pelas conseqüências das suas ações não é assumida positivamente face ao cidadão. No fundo, como refere Beck, trata-se de uma fratura na modernidade da sociedade industrial, de uma descontinuidade da sua trajetória: a expansão das zonas de incertezas e o descontrolo dos riscos — nomeadamente no ambiente e comercialização da natureza, nas transformações genéticas e no descontrolo das doenças e nos riscos da vida quotidiana e no trabalho — põem em causa a idéia de que a sociedade industrial é o ponto culminante da modernidade (Beck, 1998). Na sociedade moderna, a interdependência dos sistemas e a diversidade de causas dos fenômenos sociais sustentam a indefinição das responsabilidades. A produção de riquezas é acompanhada da produção e distribuição de riscos: os efeitos do desenvolvimento e do modelo praticado — assimétricos, seletivos, descontínuos, desiguais e casuísticos — tendem a escapar ao controlo das instituições de orientação e de projeção dos cidadãos (Beck, 2000): a lógica da produção domina a lógica do risco. No contexto da evolução complexa das sociedades a questão da responsabilidade desloca-se, relativamente à sociedade industrial, para assumir características mais abrangentes. Por um lado, a cidadania torna-se um princípio de organização da sociedade: mais do que um direito social ou um conjunto de direitos é um instrumento ou uma matriz de organização e de regulação das sociedades através da qual se equacionam as formas de integração. A função integradora desta categoria é tanto mais reforçada quanto mais a comunidade de trabalho, perante as mudanças ocorridas, vai perdendo a sua capacidade integradora. Por outro lado, na sociedade moderna, perante a expansão dos riscos e das incertezas sociais, a capacidade de gerir a conflitualidade de responsabilidade distributiva — como prevenir, limitar e distribuir os riscos e incertezas que acompanham a produção de bens e o controlo da natureza — exige maior competência e responsabilização do estado e da administração pública na sua função de socializar as incertezas e os riscos. Em suma, numa sociedade onde as formas de mediação entre os indivíduos e o estado têm vindo a perder importância, exige-se, da esfera do político, uma clara e direta responsabilização pelos efeitos do desenvolvimento e pela integração social. Sendo hoje a cidadania uma matriz de organização e de recomposição do tecido social das sociedades modernas e uma categoria social, na base da qual a sociedade assume coletivamente as incertezas e os riscos decorrentes da vida em comum, torna-se claro que a cidadania, como junção da subjetividade e da objetividade políticas, funciona, segundo Luhmann (1993), como base potencial de conflitos que já não podem ser tratados segundo as tradicionais disputas políticas e as ineficientes responsabilidades funcionais instituídas. Em síntese, o sentimento de responsabilidade, como dizia Max Weber (1959), é uma das qualidades mais significativas de um político, faz parte constitutiva da ética política. Esta qualidade, que raramente se evidencia, não é apenas importante porque caracteriza o sentido do serviço público, mas porque, neste contexto e juridicamente falando, a responsabilidade é sobretudo indireta. A responsabilidade política é total, mas é uma responsabilidade da função e não se afigura legítimo pensar que seja penal, dada a relação indireta com o que está em causa (Engel, 1995). Em termos de responsabilidade pública é direta, mas em termos jurídicos é diferida nos escalões hierárquicos da administração. Daí, portanto, a importância de um funcionamento da administração pública, em termos de direito administrativo, que estimule, encoraje e cumpra o controlo e a fiscalização dos atos e das decisões com efeitos conseqüentes na vida da sociedade. O sentido da responsabilidade do político é, no entanto, algo mais do que controlo e fiscalização: é um modelo de ação e de comportamento. Muito dificilmente a administração e o cidadão comum terão um comportamento de observância das normas e de empenhamento responsável num ambiente de desresponsabilidade política e administrativa face ao cidadão e à sociedade em geral. Nota 1 Este texto tem por base uma comunicação apresentada no colóquio Administração e Cidadania: Modernização dos Serviços Públicos, organizado pelo mestrado em Administração e Políticas Públicas, do ISCTE, em 23 e 24 de Maio de 2002. Referências bibliográficas Albertini, Pierre (2000), ―La responsabilité des élus locaux‖, Pouvoir: Revue Française d’Études Constitutionnelles et Politiques, 92. Araújo, Filipe F. Esteves de (2000), ―Contraction out and the challenges for accountability‖, Revista Portuguesa de Administração Pública, 1 (2). Aucoin, Peter, e Ralph Heintzman (2000), ―The dialectics of accountability for performance in public management reform‖, International Review of Administrative Science, 66 (1). Beaud, Olivier (2000), ―La responsabilité politique face à la concurrence d‘autres formes des responsabilité des gouvernants‖, Pouvoirs: Revue Française d’Études Constitutionnelles et Politiques, 92. 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O que se busca é uma administração voltada para a eficiência, ao contrário do que se tem hoje: uma administração voltada para o controle de processos. De outro lado, para garantir a estabilidade do Plano Real, o Governo precisa coibir o desperdício e racionalizar o gasto público. O que o Governo quer com a reforma é impedir que os gastos aumentem, consumindo os recursos do Estado, sem que haja uma contrapartida de eficiência e qualidade nos serviços prestados. Pela atual Constituição, o Governo enfrenta grandes obstáculos para introduzir políticas voltadas para a cobrança de desempenho do serviço público e para a racionalização das despesas. A proposta de reforma administrativa entrou na agenda da sociedade brasileira, está nos jornais, é discutida pelas pessoas. Ao contrário de 1988, hoje o País conta com uma administração transparente, tem consciência do tamanho do problema e as decisões a serem tomadas pelo Congresso poderão refletir o que pensa a sociedade. Volta ao início Principais pontos da Reforma A reforma administrativa passa pela aprovação das emendas constitucionais, que possibilitarão a flexibilização da estabilidade dos servidores públicos. As emendas também estabelecem que os aumentos salariais dos servidores do Executivo, Legislativo e Judiciário só possam ocorrer através de projetos de lei. Mas a reforma abrange também inúmeros outros importantes projetos, alguns já em implantação, como, por exemplo, a flexibilização de gestão das fundações e autarquias, avaliação de desempenho dos órgãos e dos servidores públicos, novos métodos de gestão, valorização do servidor e a abertura de concurso para a renovação dos quadros da administração federal. Volta ao início O que a Sociedade ganha com a Reforma Uma administração pública eficiente: a melhoria da eficiência significa que o Estado será capaz de gerar mais benefícios, na forma de prestação de serviços à sociedade, com os mesmos recursos disponíveis. Ou seja, o Governo entende que o problema não é simplesmente cortar gastos, mas gastar com eficiência e responsabilidade o que se tem. O equilíbrio das contas nos Estados e Municípios: Estados e Municípios terão condições legais de promover, de forma mais eficaz, seus processos de ajustamento das contas públicas. Existe hoje uma grave situação de quase inadimplência em muitos Estados e Municípios, nos quais a folha de pagamento responde por até 91% da receita disponível. O ajustamento é necessário e a sociedade só tem a ganhar, ainda que possam haver custos sociais localizados com o desligamento de servidores. O Estado deixa de ser um obstáculo à retomada do desenvolvimento econômico: hoje o setor privado já se ajustou e está voltando a investir. O Estado, entretanto, continua amarrado pelo desequilíbrio das contas e pela desorganização interna, perda de técnicos qualificados, baixo desempenho e persistência no uso de formas atrasadas de gestão. O Governo não quer desmontar o Estado. As experiências bem sucedidas no mundo inteiro mostram que é fundamental uma burocracia ágil, moderna, capaz de planejar e promover as condições necessárias para o crescimento sustentado e socialmente justo. Nunca poderemos abrir mão da presença do Estado, por exemplo, na estabilização da economia, na segurança do cidadão, na oferta de um bom sistema educacional que qualifique a força de trabalho, no estímulo à pesquisa e ao desenvolvimento científico e tecnológico, na garantia de bons serviços de saúde e de assistência social. Serviços públicos com qualidade: a retirada de normas e controles desnecessários, a flexibilização de gestão e a ênfase no desempenho vão ajudar a administração pública a oferecer serviços melhores, com maior qualidade. O serviço público poderá assimilar o que há de positivo na experiência de gestão das organizações e empresas mais modernas, direcionando a sua atuação para a satisfação do cidadão/contribuinte. Volta ao início O que o Servidor Público ganha com a Reforma O servidor ganhará o respeito da sociedade: a opinião pública tem hoje uma imagem muito negativa do servidor. Para reverter esta imagem, a sociedade precisa saber que a maioria dos servidores trabalha muito e é dedicada ao ideal de servir ao público. Por isso os servidores não devem temer medidas que visam a favorecer a sua profissionalização. Cobrar desempenho e até mesmo, como medida extrema, demitir o servidor que não se empenha no seu trabalho, não é "perseguir" a categoria, mas reforçar a sua profissionalização. A estabilidade só se justifica no interesse do Estado: ela não deve ser confundida com eternização no cargo público. O servidor terá certeza de que seu trabalho é necessário: é preciso que os servidores tenham claro que a função do Estado não é dar empregos, mas prestar os serviços de que a sociedade e o contribuinte necessitam. Dessa forma, não faz sentido manter empregos desnecessários. Os Estados ou Municípios, que, diante de uma situação insustentável nas contas públicas, tiverem de se ajustar pelo desligamento de servidores, poderão, daqui para a frente, retomar o crescimento acautelando-se contra o empreguismo. O servidor terá o seu desenvolvimento profissional estimulado: será permitida a reserva de vagas nos concursos públicos para os servidores. Dessa forma, muitos servidores que hoje ocupam cargos inferiores à qualificação que adquiriram serão estimulados a disputar um cargo melhor. Além disso, serão desencadeados programas de treinamento em massa e sistemas de promoção do servidor vinculados a cursos de aperfeiçoamento. O quadro de servidores será renovado: a abertura de concursos e a organização de carreiras irá renovar o quadro de servidores, com a entrada de sangue novo, e representará um avanço nas condições de trabalho e na qualidade dos serviços. As condições de trabalho vão melhorar: novos métodos de gestão, maior autonomia e profissionalização da gerência, indicadores de desempenho, sistemas de avaliação permanente do servidor e dos órgãos, serão projetos que deverão, a longo prazo, produzir uma verdadeira revolução gerencial no serviço público, que hoje está muito defasado em relação às organizações privadas. Volta ao início O que muda com as Emendas Constitucionais Estabilidade Só terão estabilidade no cargo os servidores contratados por concurso, depois de cinco anos de exercício, sendo exigida uma avaliação ao final do período. Hoje, os servidores ganham a estabilidade depois de dois anos. Poderão ser recrutados servidores que não terão direito à estabilidade, através de processo seletivo público, para ocuparem empregos. Este tipo de contratação deverá ser utilizado preponderantemente em áreas de atividades operacionais ou de apoio, que, pela sua natureza, tenham grande similaridade com as atividades do setor privado. Os servidores estáveis poderão perder o cargo por insuficiência de desempenho, mas será necessária a abertura de processo administrativo específico, com direito a ampla defesa por parte do servidor. Poderá haver o desligamento de servidores estáveis também em decorrência de necessidade da administração pública ou para redução de gastos com pessoal. Neste último caso, a redução de gastos se justificaria como alternativa, que os Estados e Municípios poderão adotar, para o cumprimento dos limites previstos na própria Constituição e regulamentados em lei recentemente aprovada no Congresso (Lei Complementar nº 82/95), que fixou em 60% o percentual máximo de gastos com pessoal considerando a receita disponível. Para inibir a utilização abusiva deste dispositivo, os cargos dos servidores desligados serão automaticamente extintos, ficando proibida a criação de novo cargo com as mesmas funções durante 4 anos. Além disso, o servidor terá direito a uma indenização por ocasião da dispensa. Os servidores responsáveis por atividades exclusivas de Estado, que requerem maiores garantias no exercício de suas funções, não serão alcançados pela modalidade de desligamento por necessidade administrativa. Entendeu-se que tais atividades (que compreendem, por exemplo, as áreas de segurança pública, tributação, diplomacia, etc.) expõem o servidor a pressões tornando recomendável, no interesse da própria administração, a preservação de uma estabilidade mais rígida. Os servidores estáveis poderão ser colocados em disponibilidade remunerada, como alternativa ao uso do desligamento por necessidade da administração. A remuneração a que farão jus será proporcional ao tempo de serviço e o servidor preserva o vínculo com a administração. Remunerações O Legislativo passa a ter de encaminhar, através de projeto de lei, qualquer proposta de aumento de remuneração dos seus servidores. Atualmente, estes assuntos são resolvidos por meio de simples atos internos do Congresso, que não estão sujeitos ao veto presidencial. Se os três Poderes ficarem obrigados a decidir estas questões através dos procedimentos da lei, poderá haver uma maior transparência e equilíbrio, inclusive com a contenção de possíveis excessos. Será reforçada a disposição constitucional no sentido da aplicação dos tetos de remuneração, que agora alcançam também os proventos dos servidores inativos. Ou seja, os proventos e pensões serão enquadrados nos tetos. A isonomia de vencimentos entre os servidores deixa de ser tratada no Texto Constitucional, passando a ser questão administrativa e não mais objeto de questionamentos e reivindicações na Justiça. Regime Jurídico dos Servidores Deixa de ser obrigatória a adoção de um regime jurídico único para todos os servidores. Cada esfera de Governo - União, Estados, Distrito Federal e Municípios poderá, se quiser, adotar mais de um regime, que poderá ser, inclusive, o regime celetista. Poderão ser criados regimes diferenciados para atender às peculiaridades das autarquias e fundações. Concursos Fica criado o processo seletivo público, que será uma modalidade de recrutamento de empregados públicos, mais simplificada e rápida que o concurso, mas que não conferirá estabilidade ao empregado. Esta modalidade, da mesma forma que o concurso, terá de atender a requisitos de publicidade, legalidade e impessoalidade. Poderão ser contratados estrangeiros para cargos, empregos e funções públicas, nos casos em que a lei expressamente o permitir. A Constituição atual proíbe o acesso de estrangeiros a cargos ou empregos em caráter permanente. Esta medida deverá favorecer, por exemplo, a contratação de professores estrangeiros nas instituições de ensino e pesquisa. Descentralização Será facilitada a formação de consórcios ou a celebração de convênios para a atuação cooperativa entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios quando se tratar da gestão de serviços públicos ou atividades que envolva mais de um nível de Governo. Dessa forma, poderão ser criados, por exemplo, órgãos intergovernamentais para a gestão de serviços públicos. Será permitida também, mediante acordo entre as partes, a transferência de servidores e de patrimônio de um para outro nível de Governo - por exemplo, da União para Estados ou Municípios, em situações onde seja necessária a descentralização de atividades. A REFORMA DO APARELHO DO ESTADO - PERGUNTAS E RESPOSTAS A Reforma O Regime Jurídico A Estabilidade Os Concursos A Remuneração A Reforma O que é a reforma do aparelho do Estado? A reforma do aparelho de Estado é a mudança nas leis, nos regulamentos e nas técnicas e formas de trabalho da administração pública, visando a melhoria da eficiência e do atendimento às necessidades da sociedade. São diversos projetos, dos quais as emendas constitucionais representam apenas uma parte, que serão desenvolvidos nos próximos anos, com o ativo envolvimento dos servidores e a participação da sociedade. O que é o aparelho do Estado? O aparelho do Estado é o Estado como organização, que conta com servidores públicos, recursos financeiros, máquinas, equipamentos e instalações, para a prestação de serviços no interesse da sociedade. O aparelho do Estado é o executor das decisões que são tomadas pelo Governo. Daí, a necessidade de que atue com eficiência e presteza, em respeito ao contribuinte e procurando sempre dar respostas às necessidades da sociedade. Por que o Governo decidiu fazer esta reforma? Porque há um consenso nacional de que a administração pública não tem conseguido atender adequadamente à sociedade. O cidadão que sustenta a administração pública com o pagamento de impostos deseja mais eficiência com melhores serviços. E o Governo entende que o problema hoje no Brasil não é pura e simplesmente reduzir o Estado, mas reorganizá-lo e até permitir o seu crescimento saudável naquelas áreas onde ele é efetivamente necessário, para assegurar serviços sociais de melhor qualidade para todos. Quais são as mudanças que acontecerão na Constituição? As mudanças ocorrerão nos seguintes pontos principais: 1. fim da obrigatoriedade de adoção de um regime jurídico único para os servidores; 2. mudança das regras que regem a estabilidade; 3. permissão de reserva de vagas nos concursos para os servidores; 4. maior transparência na política de remuneração; 5. maior flexibilidade de gestão na administração. Quais os resultados que o Governo espera da reforma? O Governo espera que a reforma conduza a uma administração pública mais eficiente, com serviços públicos de qualidade e com capacidade técnica de contribuir para o desenvolvimento econômico e social do País. Espera também que a reforma facilite o equilíbrio das contas, especialmente dos Estados e Municípios, e reduza desperdícios. Além disso, quando alcançarmos uma administração mais eficiente, estaremos também revalorizando o servidor e conquistando o respeito da sociedade pelo seu trabalho. A reforma do aparelho de Estado se conclui com a aprovação das emendas constitucionais? Não. As emendas constitucionais são apenas um momento de um processo muito mais amplo. Outros projetos importantes estão sendo implementados, dentro da reforma administrativa do Governo Federal, como, por exemplo: a abertura de concursos para contratação de novos servidores para os ministérios e autarquias da União; a flexibilização da gestão nas autarquias e fundações; o programa de qualidade na administração pública; a avaliação de desempenho e os programas de treinamento para os servidores; a implantação de indicadores de desempenho dos órgãos da administração; a criação de mecanismos de controle da sociedade sobre a administração, etc. Volta ao início O Regime Jurídico: O regime jurídico único vai acabar? Na verdade, o que o Governo pretende é o fim da obrigatoriedade de adoção de um único regime jurídico para os servidores. Ou seja, poderá existir mais de um regime jurídico, se a União, os Estados ou os Municípios assim o quiserem. Será possível, inclusive, a adoção do regime da CLT, utilizado nas empresas estatais e no setor privado. O objetivo é permitir maior flexibilidade gerencial, conforme as peculiaridades de cada setor. O que é regime jurídico? O regime jurídico é a lei com base na qual são definidos os direitos, deveres e demais parâmetros que devem regular o relacionamento entre empregado e empregador. O chamado "Regime Jurídico Único" - RJU - é o regime jurídico dos servidores públicos civis da administração direta, das autarquias e das fundações, instituído pela Lei n.º 8.112/90. O RJU regula a relação entre os servidores públicos e a administração. A este regime se incorporaram, por ocasião de sua criação, em 1990, os funcionários públicos que eram regidos pela antiga Lei n.º 1.711/52 (o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União) e os empregados públicos que eram regidos pelo regime celetista. A permissão de vários regimes não poderá desorganizar a administração? Eles não vão desorganizar a administração se atenderem à necessidade de adequar o regime jurídico às necessidades de cada segmento do aparelho do Estado. Em outras palavras, poderão ser criados regimes diferenciados ou adotado o regime celetista, conforme as características de cada área de atividade. Naquelas áreas onde estas características se aproximam mais do que é encontrado no setor privado, por exemplo, poderá ser adotado o regime celetista. Os servidores estatutários poderão ser enquadrados no regime celetista? Não. Se for adotado o regime celetista, ele será utilizado para a contratação de novos servidores em atividades onde este regime seja mais adequado. Os servidores que já estão no regime da Lei nº 8.112/90 poderão continuar como estatutários. A Estabilidade O Governo é contra a estabilidade do servidor público? O Governo não é contra a estabilidade, quando ela representa uma efetiva garantia do Estado para o exercício das suas funções, por intermédio de seus servidores. O que o Governo não quer é a estabilidade como puro e simples privilégio dos servidores. Por isso o Governo defende o aperfeiçoamento dos dispositivos que regulam a estabilidade na nossa Constituição. Por que os servidores públicos precisam da estabilidade? A estabilidade é uma proteção para o Estado. O servidor público estável, no seu trabalho, é um agente dos poderes públicos. Ele age em nome do Estado e por esta razão pode estar sujeito a pressões e conflitos no momento em que, para fazer cumprir a lei e as decisões do Estado, ele contraria interesses. Mas esta proteção deve ser entendida como uma garantia do Estado e não como um privilégio ou um "direito individual do servidor". A estabilidade é prejudicial à administração pública? Ela se torna prejudicial no momento em que deixa de ser tratada como uma garantia da administração para ser entendida como um privilégio ou um "direito" do servidor. Para uma boa gestão na administração pública ou em qualquer organização, ninguém pode deixar de ser cobrado pelo seu desempenho e compromisso com o trabalho. A estabilidade não pode ser um obstáculo ao afastamento dos maus servidores. O Governo vai acabar com a estabilidade? A estabilidade não vai acabar. Será aperfeiçoada de modo a se tornar compatível com a cobrança de desempenho do servidor e com a necessidade de reduzir o excesso de quadros. Ou seja, o Governo vai rever as condições em que a estabilidade é concedida, conforme as características de cada atividade do Estado. Nem todos os servidores precisam do mesmo tipo de estabilidade. Alguns, pela natureza do seu trabalho, requerem uma estabilidade mais rígida; outros, não. O Governo vai flexibilizar a estabilidade? Ela será flexibilizada de forma a que passem a existir diferentes regras de estabilidade, de acordo com a natureza de cada atividade. Assim, em alguns segmentos, a estabilidade será mais rígida, enquanto em outros ela será flexibilizada para permitir uma maior agilidade de gestão. Então, serão definidas diferentes regras de estabilidade? Sim. Os servidores que exercem as chamadas atividades exclusivas de Estado terão a estabilidade mais rígida. Os demais servidores poderão ser desligados por necessidade da administração pública. Nos dois casos, todos os servidores poderão perder os seus cargos por insuficiência de desempenho. Quais as diferenças, com relação à estabilidade, entre a Constituição atual e a proposta do Governo? A diferença está em que na Constituição atual o servidor só perde o cargo por ter cometido alguma falta grave apurada em processo judicial ou administrativo. Estas faltas graves estão definidas em lei como desvios de conduta, prática de atos desonestos, abandono do serviço, etc. Ou seja, a atual Constituição já admite a perda da estabilidade, nos casos de corrupção ou de grave descumprimento dos deveres do servidor. A proposta de emenda acrescentou a estas possibilidades duas outras: o desempenho insuficiente e a necessidade da administração. O desligamento do servidor poderá ocorrer por insuficiência de desempenho, como uma forma de afastar do serviço público os servidores descompromissados com o seu trabalho. O desligamento por necessidade da administração pública poderá ocorrer para a redução de quadros ou contenção das despesas com pessoal. Com a estabilidade mais flexível, o servidor não poderá denunciar irregularidades de seus superiores? As garantias em favor do servidor permanecem. Ele não poderá ser desligado por insuficiência de desempenho sem processo administrativo, onde terá direito a ampla defesa. O desligamento por necessidade da administração não poderá ser realizado de forma individual, para alcançar um servidor especificamente, porque os critérios para definir quem será desligado terão de ser impessoais. Como o Governo poderá atribuir a um servidor a insuficiência de desempenho? Através de sistemas permanentes de avaliação de desempenho, com regras conhecidas previamente pelo servidor e que deverão avaliar a todos, inclusive chefias. A insuficiência de desempenho será definida conforme as regras de cada sistema de avaliação e vai considerar as características de cada tipo de trabalho e as atribuições e responsabilidades do servidor. Estas regras deverão ainda prever critérios para a recomendação da dispensa do servidor, que só se aplicará aos casos de sucessivas avaliações desfavoráveis, assegurada ao servidor a oportunidade de se submeter a treinamento ou a mudança de função ou local de trabalho. O servidor não poderá sofrer injustiças na sua avaliação? Para proteger o servidor contra injustiças ou equívocos, a demissão por insuficiência de desempenho só poderá ocorrer através de "processo administrativo específico". É um tipo de processo administrativo previsto pela emenda constitucional para garantir a isenção e o direito de defesa do servidor nestes casos. Ou seja, mesmo apresentando um desempenho insuficiente, isto terá de ser devidamente apurado, com direito a defesa por parte do servidor, em processo administrativo. Se o servidor tem um desempenho insuficiente, a culpa não é da chefia? Para a sociedade, a responsabilidade é de todos, chefias e subordinados. Por isso, a avaliação de desempenho alcançará os servidores, independentemente de sua posição. A avaliação de desempenho vai deixar o servidor amedrontado, prejudicando o seu trabalho? O servidor que leva o seu trabalho a sério não tem o que temer. A avaliação de desempenho será para ele uma forma de mostrar a qualidade do seu trabalho e até de apontar as falhas que dificultam a obtenção de bons resultados e exigir soluções da chefia, quando for o caso. Além disso, os sistemas de avaliação de desempenho serão a base a partir da qual se implantarão gratificações de produtividade, em futuro próximo. Como será o desligamento do servidor por "necessidade da administração pública"? Quando se constatar objetivamente o excesso de servidores ou o crescimento das despesas com pessoal além do que é permitido em lei, a administração pode, se quiser, adotar o desligamento de servidores. Então, existe uma lei que estabelece limitações para os gastos com pessoal? Sim. A Lei Complementar n.º 82/95, recentemente aprovada pelo Congresso, regulamentou o art. 169 da Constituição, estipulando em 60% da receita disponível o limite de gastos com a folha de pagamento dos servidores. Esta lei alcança a União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Os Governos terão 3 anos para se ajustarem, a partir de 1996, sendo que, enquanto estes gastos não forem reduzidos até o teto mencionado, ficam proibidos reajustes ou alterações de remuneração dos seus servidores. Onde houver excesso de servidores, haverá demissões? A União não tem um problema global de excesso de servidores. Os Estados e Municípios que estiverem enfrentando problemas dessa natureza terão que decidir pela adoção ou não desta solução. A dispensa por necessidade da administração pública não será usada para perseguir servidores? Não. Uma lei complementar vai regular o desligamento por necessidade da administração pública, estabelecendo que a escolha dos servidores a serem desligados terá de obedecer a critérios impessoais. Ou seja, nenhum dirigente poderá apontar nomes para este desligamento. Ele terá de escolher um critério entre os permitidos pela lei e aplicá-lo. Que critérios poderão ser estes? Por exemplo, os servidores com menor tempo de serviço; os mais jovens; os de maior remuneração; os solteiros, etc. O objetivo é impedir que a escolha obedeça a preferências pessoais dos dirigentes. Além disso, a emenda constitucional determina que o cargo ocupado pelo servidor desligado por este motivo será automaticamente extinto, ficando proibida a sua recriação por um período de 4 anos. Muitas vezes o empreguismo não é uma forma de melhorar a situação da população em regiões mais pobres? O empreguismo é sempre um mal, porque só resolve o problema de uma minoria privilegiada pelo cargo público. Os recursos do Estado devem atender a todos os cidadãos. O emprego público só se justifica se houver trabalho a ser prestado, para atender a reais necessidades da sociedade. Quem for demitido será indenizado? Sim. A lei fixará regras para o pagamento de indenização ao servidor. Estas regras serão diferenciadas conforme o desligamento seja motivado por necessidade da administração ou por insuficiência de desempenho. Existem servidores que não serão alcançados pela demissão por necessidade da administração? Sim. Aqueles que sejam responsáveis por atividades exclusivas de Estado para as quais sejam necessárias garantias especiais. Eles poderão ser, entretanto, afastados por insuficiência de desempenho, como os demais. Por que os servidores das atividades exclusivas de Estado foram privilegiados? Na verdade, não se trata de privilegiar estes servidores, mas de garantir, de forma mais rígida, algumas atividades em cujo exercício o servidor se expõe quotidianamente a pressões e situações conflituosas. Quais são as atividades exclusivas de Estado? Estas atividades serão definidas em lei posterior à aprovação das emendas. São aquelas atividades onde o servidor é agente dos poderes do Estado para o exercício de uma série de atividades sem similar no setor privado, como, por exemplo, a manutenção da ordem pública e a defesa, a arrecadação e fiscalização de tributos e contribuições, a representação do Estado perante a Justiça, etc. O que muda no estágio probatório do servidor? O estágio probatório passa a ter uma duração maior, de 5 anos. Será obrigatória, também, a realização de avaliação periódica do servidor durante este período. Com uma maior duração do estágio probatório será possível a avaliação criteriosa do trabalho do servidor e da sua postura, antes da concessão da estabilidade. Como fica a situação de quem está cumprindo o estágio probatório? O servidor que já estiver nomeado por ocasião da promulgação da emenda constitucional terá de cumprir o prazo de 2 anos de estágio probatório, conforme previsto na atual Constituição. O prazo de 5 anos só vale para os que forem nomeados depois da aprovação da emenda. O que muda na disponibilidade? A disponibilidade dará ao servidor direito à percepção de remuneração proporcional ao tempo de serviço público. O que é a disponibilidade? A disponibilidade é o afastamento do servidor do seu cargo, quando este cargo não é mais necessário, até o seu reaproveitamento em outra colocação. A disponibilidade é um mecanismo para a reorganização da administração pública sem a dispensa dos servidores, que podem ser reciclados e preparados para serem inseridos em outras atividades. Durante a disponibilidade o servidor fica afastado de suas atividades, podendo empregar este tempo em programas de treinamento oferecidos pela administração com vistas ao seu reposicionamento em outra função. Volta ao início Os Concursos: O concurso público vai acabar? Não. O concurso público não vai acabar. Ele continua a ser a única forma permitida de recrutamento para cargos permanentes no serviço público, que conferem estabilidade ao servidor. Mas, será criado o processo seletivo público, que não poderá ser usado para a contratação de servidores com estabilidade. O que é o processo seletivo público? É uma forma de recrutamento criada para os empregos públicos. Ou seja, para recrutar quadros no regime celetista, sem direito à estabilidade. A novidade no processo seletivo é a possibilidade de recrutamento de candidato através de "prova de títulos". O que é a "prova de títulos"? É uma modalidade de seleção de candidatos a emprego público, baseada na análise de seus currículos e da sua experiência profissional. Esta análise tem de ser baseada em regras e critérios objetivos e previamente conhecidos por todos os candidatos. O objetivo é permitir a seleção daquele que tenha o perfil mais adequado, de forma rápida e segura. O processo seletivo poderá também, a critério de cada órgão, envolver a realização de provas de conhecimento ou provas práticas. O processo seletivo vai permitir contratações sem os devidos cuidados? Não, porque será exigido, da mesma forma que nos concursos, a obediência aos princípios de impessoalidade, legalidade e publicidade. Ou seja, o processo seletivo terá de seguir regras previamente determinadas e conhecidas pelos candidatos e assegurar ampla divulgação a toda a população. O servidor contratado por processo seletivo terá estabilidade? Ele não terá estabilidade porque será contratado no regime celetista. Mas, ainda assim, por ser tratar de administração pública, não pode haver a dispensa imotivada. Ou seja, no caso de dispensa de um empregado a administração está obrigada a fundamentar e manifestar as razões que a levaram a abrir mão daquele empregado. Os servidores terão reserva de vagas nos concursos e seleções? Sim. Será permitida a reserva de até 20% das vagas dos concursos e seleções para os servidores públicos. A reserva de vagas é um privilégio? Não é um privilégio porque atende à necessidade de motivar os quadros da administração e estimular a movimentação de quem se qualificou e precisa alcançar uma posição melhor. Muitos servidores hoje conseguiram prosseguir nos seus estudos e estão qualificados a disputar um cargo melhor. A reserva de vagas será uma forma de estimulá-los a procurar este reposicionamento. A reserva de vagas vai rebaixar o nível dos concursos? Os servidores se submeterão ao mesmo concurso que os demais candidatos e a sua reserva é limitada a um percentual reduzido. Os estrangeiros poderão prestar concurso público? A lei poderá permitir o acesso de estrangeiros a cargos públicos, nas áreas em que se entender pertinente esta medida. Por que permitir a concorrência de estrangeiros nos concursos? Esta medida vem atender à necessidade de permitir a atração de quadros altamente qualificados para as atividades de ensino e de pesquisa. Estes quadros podem trazer uma importante contribuição para o País, ajudando a formar novos pesquisadores e professores e trazendo a sua bagagem de conhecimento para as nossas universidades e institutos. Haverá limites de idade nos concursos públicos? Poderão ser adotados limites de idade para os cargos ou setores em que se considere necessário um perfil mais jovem. Isto dependerá das características de cada segmento da administração. A Remuneração A isonomia vai acabar? A isonomia é retirada do Texto Constitucional, mas não deixará de orientar a política remuneratória da administração. O que é a isonomia? A isonomia é o princípio segundo o qual servidores que desempenhem as mesmas funções em diferentes órgãos devem receber a mesma remuneração. Ou seja, a administração pública não deve permitir a existência de discrepâncias entre um órgão e outro ou entre um Poder e outro, na fixação do salário dos seus servidores, uma vez que todos são servidores de um único Estado. Existe isonomia de fato na administração pública? Persistem inúmeros desequilíbrios na estrutura de remuneração dos servidores, cuja correção vai exigir uma maior transparência e coordenação entre os diversos setores da administração. Por que retirar a isonomia da Constituição? Porque a presença deste dispositivo no texto da Constituição permitia a proliferação de demandas na Justiça pela equiparação de vencimentos. Se o problema for enfrentado desta forma, nunca se alcançará de fato a isonomia, porque sempre que um setor conseguir, isoladamente, a sua equiparação de vencimentos, imediatamente outro setor pleiteará o mesmo, sucessivamente. A correção dos desequilíbrios só poderá ocorrer a longo prazo, na medida em que existam recursos disponíveis. Vai mudar alguma coisa nos reajustes dos servidores? Sim. Na fixação dos reajustes ou de qualquer alteração na remuneração dos servidores, os três Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, ficam obrigados a apresentar projeto de lei, sujeito à sanção pelo Presidente da República. Atualmente, muitas destas mudanças no Legislativo e no Judiciário são promovidas através de atos internos, dificultando a transparência e o equilíbrio entre os Poderes. Esta medida vai contribuir positivamente para a efetiva adoção de uma política de isonomia na administração pública. A FUNÇÃO EDUCATIVA DA SOCIEDADE CIVIL EM HEGEL Habermas cita várias vezes o nome de Hegel em sua Filosofia do Direito, normalmente, para discordar de Hegel. Assim, no Prefácio, ele começa por dizer que adere à filosofia do direito kantiana e não à hegeliana, evidentemente, por não aderir mais ao conceito de eticidade, mas, também, por timidez, já que não se consegue mais atingir os padrões exigidos por Hegel. Ele conseguiu manter coesos os pensamentos envolvidos na teoria da sociedade em geral, na economia política, na história e mesmo nas questões próprias da teoria do direito, como o papel dos juízes, a administração da justiça, a jurisdição, o procedimento jurisdicional, a publicidade. Além, é claro, das questões que hoje diríamos serem as propriamente filosóficas, como a legitimidade do direito ou a racionalidade da jurisdição, conceitos estes que a Filosofia tem por tarefa tornar transparentes. O tratamento da sociedade civil em Hegel, no presente contexto, decorre da necessidade de marcar as diferenças no tratamento desse conceito feitas por Habermas, tanto em relação a Hegel, quanto em relação a Marx. Marx é devedor das formulações da sociedade civil de Hegel e como esse conceito é mais claramente trabalhado por Hegel, preferiu-se apresentá-lo a partir da perspectiva hegeliana, mas com a intenção de marcar a diferença com o tratamento da questão também por Marx. Este ponto é relevante pela filiação de Habermas à Escola de Frankfurt e, portanto, ao marxismo, mesmo que indiretamente. Em sua Filosofia do Direito, Hegel começa pela figura do direito abstrato, buscando escrutinar a liberdade que está depositada nas estruturas do direito, mas, neste momento, apenas enquanto determinação externa do querer jurídico. Será somente o delito, como uma espécie de última etapa do direito abstrato, que irá revelar a que se refere, verdadeiramente, o direito abstrato, a saber, revelará a dimensão da liberdade subjetiva que subjaz ao mesmo. O delito revela uma particularidade infinita que reside na subjetividade, enquanto poder de autodeterminação absoluta. Essa autodeterminação vai revelar-se no capítulo sobre a moralidade. Por ora, ainda sob o direito abstrato, importa que ―a subjetividade da liberdade, por si infinita, constitui o princípio do ponto de vista da moralidade‖ (§ 104), a saber, ―o ponto de vista moral é o ponto de vista da vontade enquanto infinita, não meramente em si, mas por si‖ (§ 105). A moralidade é o direito da vontade subjetiva (§107). A explicitação dos momentos dessa autodeterminação da subjetividade perfecciona-se no direito abstrato, do seguinte modo: pela propriedade que é o meu externo; pelo contrato que é o meu mediatizado por outra vontade; pelo delito que revela a vontade como contingência que é a infinita acidentalidade em si da vontade: sua subjetividade. Pelo delito manifesta-se a infinita possibilidade da vontade de autodeterminar-se. Nesse momento, temos a vontade por si, independente do que é em si, ou seja, a forma da infinita autodeterminação (§ 108). O momento seguinte do percurso de Hegel será, portanto, a moralidade, onde se mostrará à subjetividade o seu caminho rumo à idéia do bem, a qual se revelará como sua substância (§ 130), como sua essência (§ 132-3). A moralidade será a superação desse momento de particularidade, mas será a sua conservação, pois a universalidade não passa da revelação da própria substancialidade dessa particularidade (§ 129). Temos agora duas totalidades relativas que em si já são idênticas, ou seja, a subjetividade da certeza pura de si mesmo, liberta de sua vacuidade, é idêntica com a universalidade abstrata do bem; a ética será a identidade concreta do bem e da vontade subjetiva (§ 141). A forma infinita da subjetividade enquanto infinita possibilidade deverá ser reconduzida (para si), sob o ponto de vista de seu próprio conteúdo, para a universalidade do bem. A ética representará exatamente o modo como estas duas totalidades serão reunidas concretamente, ou seja, de um modo determinado. O direito é a liberdade realizada (§ 4), é o momento onde o em si e o para si da vontade unem-se (§ 33). Já, no âmbito da eticidade, a família e a sociedade civil parecem cumprir o que se poderia chamar hoje de um processo de aprendizagem ou, na linguagem de Hegel, a mediação entre direito abstrato e moralidade. Tal processo pode contar com uma determinação necessária porque Hegel baseia-a no reino das necessidades. Ou seja, a sociedade civil força o indivíduo à atitude performativa de busca do universal, do correto, do justo. No entanto, já há um conteúdo dado pela moralidade, ao modo da eticidade que, em todo caso, não pode ser só formal, ao qual a vontade individual deverá se adaptar. Ao contrário de Marx e Habermas, para os quais o Estado não tem determinações éticas enquanto tal, Hegel concebe no próprio Estado uma determinação ética, permitindo-lhe olhar a sociedade civil com olhos de quem busca estratégias de realização, ao modo da filosofia da história, dos conteúdos já cristalizados na eticidade do Estado. O Estado tem um papel ativo sobre a sociedade civil e não só reativo como em Marx. O ethos tem um conteúdo estável que independe da opinião subjetiva e do capricho, corporificado nas leis e instituições (§ 144). Estas leis éticas, como vimos, não são estranhas ao sujeito, posto serem sua própria essência, mas não são, ainda, a determinação dos seus atos em suas infinitas escolhas. Por isso, será necessário um percurso de aprendizagem. Bem entendido, o dever só aparece como limitação à vontade abstrata e ao impulso natural, mas, na verdade, representa a liberdade do indivíduo, já que brota de sua autonomia (§ 149). É na dimensão ética que direito e moral se unem e o homem passa a ser portador de direitos (§155). Esse processo de aprendizagem acontece na família, uma substancialidade natural e, depois, na sociedade civil, uma união entre indivíduos, segundo certas regras, ditadas por necessidades, permanecendo, por isso mesmo, uma ordem externa, que só atingirá a sua dimensão própria com o Estado (§ 157). O ponto, aqui, será ver qual função exerce a sociedade civil nesse percurso da individualidade para a universalidade. A função cumprida pela sociedade civil é explicada em razão dos dois princípios envolvidos que a estruturam: a pessoa concreta como uma mistura de necessidade natural e arbítrio; a relação e interdependência entre as pessoas, implicando em que uma só possa se satisfazer por intermédio da outra (§ 182). Segundo Hegel, o fim egoísta da sociedade civil, enquanto reino das necessidades, só é efetivamente real e assegurado quando condicionado e perpassado pela universalidade, ou seja, por laços mútuos de dependência, onde acontece a satisfação recíproca das necessidades (§ 183). O fim egoísta é a base de um sistema de dependência recíproca. É assim que a universalidade e o direito se mostram como a forma necessária dessas particularidades (§ 184). Ou seja, para satisfazer minhas necessidades eu preciso dos outros e, por isso, preciso do direito e do Estado. Fascinado pela ciência social de seu tempo, a economia política, como Habermas é hoje fascinado pela sociologia, Hegel pôde vislumbrar a vida econômica como ―um conjunto organizado segundo leis que expressam a verdade da ações atomísticas dos agentes econômicos‖1. Portanto, aqui, a sociedade civil é só um meio para o fim da universalidade (§ 184)2. O exemplo de Hegel, compilado por seus alunos, é o pagamento de impostos. Mesmo parecendo contrário aos interesses particulares, é por intermédio dos impostos que o Estado pode fortalecer os próprios interesses particulares. Na sociedade civil acontece ―o processo de elevar, pela necessidade natural assim como pelo arbítrio das carências, a singularidade e a naturalidade desses à liberdade formal e à universalidade formal do saber e do querer, de formar pelo cultivo a subjetividade na sua particularidade‖ (§ 187). As Anotações a este parágrafo explicam tratar-se do duro trabalho contra a mera subjetividade do comportamento, contra a imediatez dos desejos, assim como contra a vaidade subjetiva do sentimento e o arbítrio do capricho. É por este trabalho de formação, porém, que a própria vontade subjetiva ganha dentro de si a objetividade, na qual, unicamente, por sua parte, ela é digna e capaz de ser a realidade da Idéia. Hegel analisa passo a passo como essa universidade imiscui-se na particularidade e brota dela. No § 192 temos a dimensão social da satisfação das carências, na medida em que adquiro dos outros os meios de satisfação: ―tudo o que é particular torna-se nessa medida social‖. No § 198 é analisada a dependência recíproca na divisão do trabalho. No § 201 os meios infinitamente variados da produção e da troca, bem como o entrecruzamento igualmente infinito desses no mercado, acabam formando sistemas particulares, os estamentos (agrícola, comercial, industrial), nos quais o egoísmo se vincula ao universal. No § 209, com o direito, finalmente a universalidade toma a forma da pessoa, no que todos são considerados como idênticos. A administração pública3 (Polizei) e a corporação dispensam maiores comentários. A esse respeito comenta Müller: ―por meio da polícia e da corporação, o Estado penetra na estrutura jusnaturalista da sociedade civil para controlar, relativizar e superar a contingência do mercado e o seu antagonismo social, transformando a racionalidade econômica e estratégica em aparência, porém necessária, da racionalidade ética‖4. A administração pública tem a função de regular o mercado, controlando a qualidade e o preço dos produtos, de vigiar a escola pública e prover a assistência social. A corporação ajuda a prover a subsistência do particular frente às contingências do mercado, bem como torna os indivíduos, nas palavras de Müller, membros de um todo ético particular sendo um elo intermediário entre o atomismo da esfera do mercado e o Estado. A corporação é uma segunda família (§ 252) ―que forma os indivíduos na sua própria atividade egoísta, interessando-os ao que é universal, ao que é coletivo‖5, surgindo, desta forma, maneiras novas de solidariedade. Sendo assim, a sociedade civil, definida a partir do mercado, tem a sua grande finalidade material ao satisfazer as necessidades, criando riquezas. Mas, nem Hegel, nem Marx, pensarão que os desdobramentos da sociedade civil ficarão restritas à produção de riquezas. Cônscios da importância da categoria do trabalho como categoria privilegiada de explicação social, eles, fiéis, nesse sentido, aos ditames da economia política, irão perscrutar o que, além de riqueza, o trabalho pode produzir. Não seria incorreto dizer que, no nível político, o trabalho produz, para Hegel, a humanização do ser humano, na medida em que força o indivíduo a ter que se determinar por parâmetros comuns, adaptando o seu querer a normas comuns, seja nas atividades de polícia do Estado, seja nos imperativos da corporação, mesmo sendo ainda uma relação externa com essas regras, cuja proximidade e afetuosidade adequadas com as mesmas só acontecerá no Estado. Ora, assim, Hegel retira da sociedade civil o que ela parece não ter, ou seja, harmonia e ética, metamorfoseando o indivíduo, transformando a semente na árvore, a criança no homem, a lagarta na borboleta, de forma imperceptível e necessária. Nessa mesma realidade Marx lerá coisas diferentes. Segundo ele, a anatomia da sociedade civil será a anatomia do próprio Estado. A anatomia da sociedade burguesa, vertida em conceitos da economia política, possui um efeito desmascarador: revela que o esqueleto que mantém coeso o organismo social não é mais o conjunto das relações de direito, e sim, o das relações de produção (...) E com isso o mecanismo do mercado, descoberto e analisado pela economia política, passa a tomar as rédeas da teoria da sociedade. O modelo realista de uma socialização anônima não-intencional, que se impõe sem a consciência dos atores, vai substituir o modelo idealista de uma associação intencional de parceiros do direito6. O Estado não será uma metamorfose da sociedade civil, mas seu sósia disfarçado pela roupagem da universalidade. Habermas, ao contrário de Hegel, adere à versão sistêmica do Estado, mas busca uma leitura do Estado ao modo da neutralidade, permitindo que à sua dimensão sistêmica possa ser vinculado um conteúdo que lhe ilumine e, mais importante, dirija suas forças. Assim, fica a necessidade, sob o ponto de vista da legitimidade, da união do Estado com a moralidade, entendida por ele como a livre adesão motivada por razões, no caso do direito, razões morais, éticas e pragmáticas e não mais a moral entendida como eticidade substancial; bem como a necessidade do próprio Estado, enquanto instituição não superável. Com relação a Marx, no caso de Habermas, as políticas compensatórias serão o que restará de seu marxismo, entendido como proposta política concreta, tentando resolver a dialética entre igualdade de direito e desigualdade de fato. Será o aspecto material de sua teoria da emancipação. Assim, a sociedade civil teria uma função organizatória dos átomos individuais e uma função educadora, na medida em que a particularidade seria integrada à universalidade. Nesse sentido, o trabalho produz e o trabalho educa7. A FUNÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL EM HABERMAS Habermas toma o aparelho estatal, sob o ponto de vista sistêmico, como sendo uma potência neutra com relação aos fins que o determinarão. Nessa perspectiva, a esfera pública e o parlamento formam o lado que faz entrar conteúdos, a partir dos quais o poder social organizado flui para o processo de legislação. A administração pública, que tem que implementar esses conteúdos legislados, encontra resistência de um poder social que se põe entre a administração pública e o campo de sua atuação. O poder social age fora do poder democrático e por interesses sistêmicos próprios8. Esse poder social, autônomo à democracia interfere tanto no lado de entrada de conteúdos, quanto no lado de sua implementação. O poder social, nesse sentido, age pela determinação do poder como capacidade de impor a própria vontade. A superação desse poder social, não democrático, que age cercando o poder (autarquias, fundações, empresas públicas e de economia mista, a administração direta e indireta, que são muito mais competentes para agirem e influenciarem a administração9), tanto no lado de entrada, quanto de saída, só pode acontecer pelos impulsos vitais de solidariedade dependentes da força da sociedade civil. A força do direito econômico mostra a força do poder social não democrático10. Nesse sentido, poder social é a ―possibilidade de um ator impor interesses próprios em relações sociais, mesmo contra as resistências de outros. O poder social tanto pode possibilitar como restringir a formação do poder comunicativo‖11. O poder social é a implantação fática de interesses privilegiados, pela sua capacidade de determinar os conteúdos para os quais a administração pública se dirige, bem como nos modos de sua realização. Em oposição ao poder social do mercado e da burocracia estatal, Habermas trabalha com dois conceitos complementares, o de esfera pública e o de sociedade civil. A sociedade civil é a esfera pública institucionalizada. Assim, o elemento básico que as distingue é o aspecto institucional. Esses conceitos têm aspectos normativos e sociológicos12. Da definição de esfera pública decorre a diferença do conceito de sociedade civil com relação a Hegel e Marx. Desta forma, pode-se compreender como acontece o que Habermas chama de função de cerco13 (Belagerungsfunktion). De fato, pode-se considerar o poder administrativo do Estado como estando cercado pelo poder comunicativo, ou seja, pelo poder da opinião pública e da sociedade civil. A política, enquanto complexo parlamentar, continua sendo a destinatária de todos os problemas. A sociedade civil pode influenciar na programação do sistema estatal, protegida pelo Estado de direito14, mas não abdicar dele enquanto um sistema eficiente na implementação de fins. A esfera pública não é uma instituição, não tem aspectos organizacionais, tampouco constitui-se num sistema delimitado, mas caracteriza-se por horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis. Nela, ―os fluxos comunicativos são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas‖15, as quais não são especializadas em nada. A força da opinião pública é indicar para um argumento legitimador e influenciar. Mesmo o poder social tem que angariar adesão, implicando que tem que usar de uma linguagem convincente. Ou seja, dinheiro e poder têm que se ocultar enquanto tais para angariar tal convicção. Segundo Habermas, uma esfera pública pode ser manipulada, mas não criada a bel-prazer. Sendo a sociedade civil a institucionalização da esfera pública, ela exclui a economia, a qual, através do trabalho, do direito privado e do capital, foram os aspectos fundamentais à época de Marx e Hegel. O núcleo institucional da sociedade civil é formado por movimentos, associações e organizações sociais (fundações) não estatais e não econômicas. Essas instituições cristalizam os problemas e os transferem para a esfera política. Apesar da mídia, a sociedade civil continua o espaço das pessoas privadas que podem se organizar para influenciar, cercar, o poder político, na busca de soluções para seus problemas. A sociedade civil alicerça-se nos direitos de expressão, reunião e associação. O Estado conecta-se com a esfera pública e a sociedade civil, através dos partidos políticos e das eleições. A proteção à privacidade preserva domínios vitais privados livres para o exercício de atos no espaço da autonomia. Trata-se dos direitos da personalidade, crença, consciência, sigilo de correspondência, inviolabilidade de residência. O Estado totalitário fere o nexo entre cidadania autônoma e esfera privada intacta. Nele ―um Estado pan-ótico controla diretamente a base privada dessa esfera pública‖16. Quando essa dimensão é ferida, a racionalidade comunicativa é ferida, sufocando a liberdade comunicativa presente nos domínios da vida privada. A função política da sociedade civil é dramatizar problemas que deverão refletir sobre o complexo parlamentar17. Ora, a função desse espaço é exatamente gestar conteúdos legítimos, a partir da racionalidade comunicativa. A partir dessa formulação, constrói-se uma estrutura de direitos para proteger esse espaço, exatamente porque ele é a condição da própria democracia. Esse conjunto de direitos, porém, não é suficiente, pois o poder social, baseado principalmente no dinheiro e no poder, interfere nesse espaço, muitas vezes sob a roupagem do código que é próprio da esfera pública, a saber, o da convicção e da persuasão racional. Por isso, a sociedade civil tem que se proteger, através de uma função crítica aguçada que, embora, protegida pelo Estado, por um conjunto de direitos fundamentais, não se deixa determinar pelos imperativos do poder e nem pelo dinheiro, sendo, exatamente por isso, constituída por agrupamentos não governamentais e não econômicos. Assim, ela consegue mobilizar bons argumentos e criticar argumentos ruins e exercer cerco sobre autoridades, tribunais e parlamentos, ou seja, sobre os poderes do Estado e seus agentes. ―As discussões não ‗governam‘. Elas geram um poder comunicativo que não pode substituir, mas simplesmente influenciar o poder administrativo‖18. Temos, assim, uma esfera pública organizada como sociedade civil. Esta é a base da soberania popular, diluída comunicativamente e protegida por um espaço a partir de direitos, a qual não pode mais ser identificada com o povo ou a nação, como se esses fatores tivessem alguma substancialidade que pudesse ser apreendida na perspectiva do observador, tão somente. Mesmo que protegida juridicamente nestes termos, ela tem que estar atenta aos estudos das ciências sociais, que podem levar a um ceticismo com relação à mesma. A proteção contra esta perspectiva cética dá-se pela afirmativa da função crítica da própria sociedade civil. Assim, Habermas está entre os que se perfilam na defesa de uma perspectiva democratizante da sociedade civil. Logo, esse ceticismo não pode atingir o cerne da democracia e o coração da sociedade civil como fontes de razões. A tecnocracia é a alternativa, contrária a esta, que resta19. Outra alternativa é o pós-civil. Exemplos de tipos de abordagem assim são aquelas de Foucault e Hardt. Para Foucault, o poder está espalhado microfisicamente pela sociedade, ele, portanto, não pode ser cercado pela sociedade civil; ele está diluído na sociedade civil. O poder provém de todos os lugares e invade, microfisicamente, todos os lugares, a partir, em última análise, da disciplina do próprio corpo. A sociedade civil que Hegel analisa como organização e educação, Foucault critica como adestramento e disciplina. Hardt adere a esse caráter derrotista da análise da sociedade civil, acreditando que o Estado se fortaleceu e a sociedade civil se enfraqueceu. Restaria como alternativa para esses pensadores uma personalidade absolutamente isolada e poliédrica em suas determinações. Em razão destas críticas ao conceito de sociedade civil subsumida pelas determinações estatais ou ligada ao processo de trabalho e produção é que Habermas desloca, tanto do Estado, quanto da economia, do reino da necessidade o seu conceito de sociedade civil. De fato, a sociedade civil não está mais ligada às determinações do poder, como em Foucault, nem às determinações da economia como em Hegel, mas está ligada à esfera pública, não estatal e de caráter não econômico, embora protegida por um conjunto de direitos assegurados estatalmente. É necessário separar as forças democratizantes do Estado e da economia porque ambos têm determinações sistêmicas que não podem ser transformadas em determinações políticas, digamos, a partir de dentro. Quando o Estado e a economia são totalmente perpassados por determinações políticas, eles perdem a sua capacidade funcional. Exemplo disto pode ser visto na falência do socialismo de estado20. Por isso, não se trata de abolir o mercado ou o poder burocrático do Estado, mas domesticá-los democraticamente, isso na medida em que conteúdos democráticos podem ser injetados no Estado, a partir da sociedade civil. CONCLUSAO: SOCIEDADE CIVIL, MERCADO, OPINIAO PÚBLICA Podemos dizer que, a partir da idéia de domesticação democrática do mercado e da burocracia, Habermas não mistura mais essas esferas, seja, como Hegel, para extrair do próprio mercado formulações éticas, seja, como Marx, para suprimir o mercado por decisões políticas de controle e planejamento, supressão esta levada a cabo por determinações da própria sociedade civil que cria seus próprios coveiros. Com isto, Habermas livra-se, não só da dificuldade teórica de vislumbrar tais pontes de ligação e entrecruzamento, como também, de pressupostos deterministas presentes nestas duas formulações. Por isso, ele separa a sociedade civil, tanto do Estado, quanto da economia. Só assim, ela pode ser o coração da democracia, como um espaço de liberdade privada, protegido por um conjunto de direitos, onde os atos de fala podem ser exercidos sem a coação do dinheiro e do poder. Essa proteção da sociedade civil por um conjunto de direitos, em Habermas, não é um sucedâneo dos determinismos de Marx e Hegel com relação a essa temática, pois não implica em qualquer conteúdo pré-estabelecido, nem muito menos na tese de uma aprendizagem moral necessária. Certamente, o tratamento do tema específico da sociedade civil defende que ela não pode mais ser definida ao modo de Hegel, como sendo propriamente colada ao mercado e, portanto, ao sistema das necessidades. É como se Habermas oferecesse um outro caminho de acesso aos indivíduos às determinações do Estado, as quais não ocorrem mais ao modo adaptativo a um conteúdo já dado pela eticidade, mas ao modo construtivo da democracia, cuja raiz vai residir, de maneira mais palpável, para além das profundezas do coração humano, na sociedade civil como arena ou fórum de debates, entendida a partir do conceito de racionalidade comunicativa. A sociedade civil, em Hegel, começa pelo sistema de necessidades, ou seja, pelo mercado ou pelo trabalho, fatores esses tão bem trabalhados pela economia política, com a qual Hegel tanto ficou fascinado. Parece plausível pensar que as demais figuras que se seguem, como a administração da justiça, a administração pública e a corporação, não tenham determinações próprias, mas sejam simples reflexos de aspectos do mercado ou exigências de um comportamento racional nos termos do próprio mercado. Assim, a administração da justiça visaria a resolver conflitos que o mercado não resolveria por si e a administração pública visaria a resolver as disfunções do mercado, como é o caso da própria atividade do que veio a ser apelidado, posteriormente, como seguridade social, com atividades providenciárias, de atendimento à saúde e de assistência social. Se considerarmos as críticas de Hegel ao contratualismo e se admitirmos que a estrutura jurídica básica presente na sociedade civil seja contratual, então, faz sentido pensar que as determinações estatais presentes na sociedade civil sejam regidas pelos caracteres da primeira figura posta na sociedade civil, qual seja, o mercado ou o sistema das necessidades. No entanto, Hegel pretende ver, através do olhar perscrutador e profundo de dialético um outro processo que se desenvolve, de forma oblíqua, ou seja, não visível diretamente. Hegel escrutina esse processo, ardiloso e sinuoso, mediante o qual se realizam, para além das determinações privadas e das determinações instrumentais da estrutura contratual, conteúdos éticos ou conteúdos legítimos, ou seja, como, através desse processo instrumental de assunção de relações, acaba acontecendo a formação de um homem moral ou a criação de uma cultura ética. Não se trata, bem entendido, só de uma questão de motivação, ou seja, da passagem de uma ação conforme ao dever para uma ação por dever, mas da ocorrência de conteúdos legítimos corporificados no ethos presente no Estado. Na verdade, e, neste sentido, fiel a Marx, Habermas desconfia que a sociedade civil, entendida a partir do mercado, não seja capaz, nem de formar o homem moral, nem de averiguar ou desenvolver, através de suas características, conteúdos legítimos. Ou seja, o contratualismo traz um momento de verdade a propósito de sua relação com a sociedade civil, qual seja, a particularidade dos interesses, e nem a visão aguçada de Hegel, nem o seu mecanismo do ardil da razão são capazes para o crítico Habermas, de arrancar determinações morais do mercado, o que é profundamente marxista. Se a economia política, ao buscar como a economia se determina em política, ou como influencia a política, serviu a Hegel para ver como determinações propriamente políticas podem se desenvolver a partir da economia, Habermas tem em mente os esclarecimentos da sociologia sistêmica de Luhmann que levantam o caráter sistêmico do mercado, recursivamente fechado, aspectos sistêmicos do mercado que já Marx trabalhara com maestria e que o impedira de olhar a sociedade civil com base no mercado com o mesmo olhar de Hegel. Por isso, Habermas desloca a fonte de conteúdos legítimos ou de determinações morais do âmbito do mercado para aquilo que Hegel chamaria de opinião pública, fugindo, com isso, dessa difícil visão da formação do ethos que deveria perpassar a sociedade civil. De fato, não há como não ver nessas formulações de Habermas semelhanças com a opinião pública em Hegel. Isso é bem plausível, se considerarmos que a opinião pública, em Hegel, seja o espaço de reconhecimento das decisões como sendo legítimas, concretizando o princípio da liberdade subjetiva como questionamento (§ 316), implicando, por isso, provas e razões21. Além disso, a topos da opinião pública, situa-se no capítulo que trata do poder legislativo, o que seria indicativo, para o democrata Habermas, da sua função justificadora, sob o ponto de vista normativo. As semelhanças, no entanto, param aí, pois a opinião pública parece mais um meio educativo (§ 315), cuja finalidade é que o particular chegue à convicção de uma universalidade ou conteúdo já dado, ou seja, ela ―encontra a sua substância em uma outra coisa que não ela: ela é o conhecimento apenas como aparição‖ 22. Neste sentido, a publicidade serve aí apenas para a ―integração da opinião subjetiva na objetividade que o espírito se deu na figura do Estado‖23. Mesmo Hegel desconfia da sociedade civil devido à sua falta de organicidade, pois, apesar de a economia política ter apontado leis da sociedade civil, o que impressionou Hegel, ele continua a acentuar o caráter anárquico e antagônico da sociedade civil24. Isto determina a necessidade do Estado, como sendo anterior à sociedade civil, na medida em que é um meio que deixa tal antagonismo dentro de limites aceitáveis, bem como implica na crítica de que um Estado confundido com a sociedade civil seria só um Estado visando à segurança e proteção da propriedade. Em Habermas, diferentemente, não está disponível, já de início, esse elemento substantivo, que teria, apenas, como que se verificar no espaço público. A posição de Habermas é construtivista sob o ponto de vista do conteúdo, sendo o espaço público, portanto, criativo, despido de conteúdo e remetido radicalmente a esse espaço de liberdade subjetiva indeterminada, base da legitimidade democrática e, portanto, criadora de conteúdos legítimos. Além do mais, a sociedade civil é a opinião pública sob a forma de instituição, organizada, elemento esse não presente na formulação de Hegel. Em suma, para Hegel, a categoria do trabalho é uma estratégia que ele usa para contribuir com a eticidade, que ele incorpora em seu sistema e faz com que ela funcione ao máximo, chegando mesmo ao ponto de querer atribuir a ela mais do que ela pode render. Já, para Habermas, a categoria da comunicação requererá para si o que antes se atribuía ao trabalho, sendo, ao menos na opinião de Habermas, mais competente para realizar a tarefa a que se propõe, a saber, gestar legitimidade. Mesmo que Hegel tenha vislumbrado isso na incipiente opinião pública então nascente, preferiu ficar no solo mais seguro da ação humana que transforma a natureza, criando, junto com isso, relações sociais e o próprio homem. OBSERVAÇAO FINAL O Prof. José N. Heck questiona o por quê do não tratamento da sociedade civil em Rousseau, visto que, da análise do texto decorre um claro direcionamento das idéias de Habermas em direção a Rousseau. A resposta a essa questão pode ser dada na razão inversa pela qual Hegel aceita, com críticas, o conceito de sociedade civil dado por Rousseau. Ou seja, o que Hegel aceita da conceituação de Rousseau é exatamente o que Habermas recusa no tratamento desse conceito. De fato, assim se pronuncia Hegel sobre o genebrino ―Rousseau teve o mérito de ter estabelecido como princípio do Estado um princípio que não só segundo a sua forma (como, por exemplo, o impulso à sociabilidade, a autoridade divina), mas, também segundo o seu conteúdo é pensamento, e que, na verdade é o próprio pensar, a saber, a vontade. Só que como ele tomou a vontade somente na forma determinada da vontade singular (...) e apreendeu a vontade universal não como o em si e por si racional da vontade, mas somente como o comunitário, que provém desta vontade singular enquanto vontade consciente, a união dos singulares no Estado torna-se um contrato, que tem por base o arbítrio dos indivíduos singulares, por conseguinte, a sua opinião e o seu consentimento‖25. O que Habermas vai recusar é exatamente esse caráter substantivo da vontade geral em Rousseau, ou seja, essa ‗democracia de opinião não-pública‘26. De fato, Rousseau afirma que a vontade geral presume uma só vontade27; numa tal concepção, quando da formulação de normas, leis, afirma Rousseau, ―o primeiro que as propõe não faz nada mais do que dizer o que todos já sentiram, não é questão de intrigas, nem de eloqüência para transformar em lei o que qualquer um já resolveu fazer‖28. Não que Habermas adira a uma formulação contratualista, visto que a sua formulação é moral29. No entanto, trata-se de uma moral não substacialista, mas formal. * As citações da obra de Hegel Linhas fundamentais da Filosofia do Direito ou direito natural e ciência do estado em compêndio serão feitas a partir dos parágrafos da mesma e, preferencialmente, segundo a tradução de M. L. Müller. A obra de Habermas Faktizität und Geltung será abreviada por FG e a tradução portuguesa por TrFG1 e TrFG2, referindo-se, respectivamente, ao volume I e II. 1. ROSENFIELD, D (1983): Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, p. 163. 2. Nesse sentido, para além das determinações conceituais, o direito só entra na existência porque é útil às necessidades (§ 209, adendo). 3. Essa tradução é sugerida por ROSENFIELD, D (1983): Op. cit., p. 196. 4. MÜLLER, M L (2000): ―Apresentação‖. In: HEGEL, G. W. F. A sociedade civil. Trad. Marcos Lutz Müller. Textos didáticos. Campinas: nº. 21, p. 9. 5. ROSENFIELD, D (1983): Op. cit., p. 207. 6. TrFG1: p. 69 (FG: p. 65). 7. HARDT, M (2001): Il deperimento della società civile. WWW. deriveapprodi. org/revista/ I/hardt17.html. Outubro. 8. Cfr. TrFG2: pp. 57-8. 9. Cfr. TrFG2: p. 87. 10. Cfr. TrFG1: p. 63. 11. Cfr. TrFG1: p. 219. 12. Cfr. TrFG2: p. 106. 13. Cfr. FG: pp. 626, 630. 14. Cfr. TrFG2: p. 105. 15. Cfr. TrFG2: p. 92. 16. Cfr. TrFG2: p.101. 17. Cfr. TrFG2: p. 91. 18. HABERMAS, J (1999): ―O espaço público‖: 30 anos depois‖. Trad. V. L. C. Westin, L. Lamounier. Caderno de Filosofia da ciências humanas. Belo Horizonte: v. VII, nº. 12, abril, p. 25. 19. Cfr. TrFG2: p. 106. 20. HABERMAS, J (1999): ―O espaço público‖: 30 anos depois‖. Ed. Cit., p. 20. 21. Cfr. ROSENFIELD, D (1983): Política e liberdade em Hegel. Ed.cit., p. 259. 22. HABERMAS, J (1984): Mudança estrutural da esfera pública. (F. R. Kothe: Strukturwandel der Öffentlichkeit). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 143. 23. Ibid., p. 147. 24. Ibid., p. 143. 25. HEGEL, G. W. F. (1998): O Estado. Trad. Marcos Lutz Müller. Textos didáticos. Campinas: nº. 32, § 257. 26. Cfr. HABERMAS, J (1999): ―O espaço público‖: 30 anos depois. Ed. Cit., p. 21. HABERMAS, J (1984): Mudança estrutural da esfera pública. Ed. Cit., § 12. 27. Cfr. ROUSSEAU, J-J (1943): Du contrat social. Paris: Aubier, p. 361. 28. Ibid., pp. 361-2. 29. Para uma distinção entre contrato e moral ver TUGENDHAT, E (1996): Lições sobre ética. (Trad. Grupo de doutorandos da UFRGS sob a resp. de E. Stein: Vorlesungen über Ethik). Petrópolis: Vozes. Trabalho infantil produtivo e desenvolvimento humano Herculano Ricardo CamposI; Rosângela FrancischiniII I Professor-doutor, Chefe do Departamento de Psicologia e Professor do Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Pesquisador do Núcleo de Estudos Socioculturais da Infância e Adolescência - NESCIA. II Professor-doutor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Coordenadora do Núcleo de Estudos Socioculturais da Infância e Adolescência - NESCIA RESUMO O propósito deste artigo é apresentar e discutir algumas dentre as possíveis conseqüências do trabalho produtivo precoce sobre o desenvolvimento da criança, na dinâmica da vida dos adolescentes e no interior das famílias. Os dados empíricos foram buscados em vivências do trabalho por crianças e adolescentes no cotidiano de um município do interior do Rio Grande do Norte, onde há participação significativa desses sujeitos na produção de redes, nas tecelagens. A cultura de valorização/dignificação do trabalho, a ineficiência (se não inexistência) de políticas públicas voltadas para essa população e a condição de pobreza a que estão submetidas, dentre outros fatores, têm contribuído para a manutenção da exploração da mão-de-obra infanto-juvenil, a despeito do ECA e dos esforços para seu combate. Palavras-chave: trabalho precoce, infância, adolescência. INTRODUÇÃO A preocupação com os processos de constituição/desenvolvimento do sujeito, de alguma forma e desde sempre perpassa as mais diversas correntes que foram se configurando historicamente e hoje se aglutinam no que denominamos Ciência Psicológica. No entanto, se há relativa unanimidade no que se refere ao "objeto de investigação", o mesmo não pode ser observado quando se constroem os pressupostos que fundamentam esses processos e, coerentemente com eles, os procedimentos mais apropriados para sua compreensão. Exemplo dessa condição é o recorrente debate, na bibliografia especializada, sobre a influência, mais ou menos determinante, do ambiente sobre o desenvolvimento humano. Nesse sentido, as clássicas concepções sobre a natureza humana desenvolvidas, por um lado, por Locke (1632-1704) e Hume (1711-1776) e, por outro, por Rousseau (1712-1778), constituem-se, respectivamente, como alicerces das tradições empirista, cuja ênfase recai sobre o papel determinante do ambiente, e inatista, que acentua as características herdadas — a bondade natural, em Rousseau, por exemplo —, principalmente na Psicologia evolutiva, tradições essas cujo poder explicativo e influência no desenvolvimento dessa ciência são inquestionáveis1. No entanto, cabe-nos apontar que, se o debate em torno desses modelos explicativos — empirista e inatista — ainda persiste, atualmente lhes são acrescentados enfoques teóricos de caráter interacionista, que ultrapassam as fronteiras por eles delimitadas e sinalizam para novas perspectivas interpretativas do desenvolvimento humano, dentre as quais se destacam: a etológica, com ênfase em pesquisas em ambientes naturais; a ecológica, representada, sobretudo, por Bronfenbrenner (1992, 1996) e, por fim, a perspectiva sócio-histórico-cultural, cujo destaque vem se acentuando, principalmente a partir da década de 70, com o "descobrimento" das obras de seu principal teórico, Vygotsky (1984, 1988, 1996, 1997)2. Duas contribuições principais ao estudo do desenvolvimento são devidas, segundo Coll (1995), à perspectiva etológica. A primeira é o destaque ao conceito de ambiente de adaptação e ajustes necessários da conduta às exigências que esse ambiente apresenta, o segundo, a importância da prática de observação em ambientes nos quais a conduta se produz. Esta última característica está presente, também, em pesquisas que assumem a perspectiva ecológica. No entanto, ainda segundo o autor acima citado, à observação em ambientes naturais devem ser acrescidas a preocupação com os múltiplos fatores que influenciam o desenvolvimento, a consideração para com as influências mútuas criança-ambiente e, por fim, a crença de que realidades não imediatamente presentes exercem influência sobre o comportamento da criança. Quanto à última perspectiva, no interior da qual se procurará desenvolver as reflexões deste estudo, o processo de desenvolvimento consiste na internalização de regras, valores, modos de pensar e de agir ocorrentes nas interações sociais do cotidiano dos sujeitos, nas práticas sociais e discursivas que permeiam as instituições sociais (família, escola, igreja, trabalho...) e os meios de comunicação. Nessas interações, recorre-se aos instrumentos de mediação semiótica disponíveis na sociedade, entre os quais a linguagem ocupa posição privilegiada. Da afirmação acima destacam-se, portanto, o papel das interações sociais, o caráter mediado dessas interações e a posição da linguagem enquanto instrumento principal de intercâmbio com o outro. Em relação ao primeiro aspecto, a "lei genética geral do desenvolvimento cultural" explicita a verdadeira dimensão do processo de internalização. Nas palavras do autor: Qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece duas vezes, ou em dois planos. Primeiro, ela aparece no plano social e, depois, no plano psicológico. Primeiro, aparece entre as pessoas como uma categoria interpsicológica, e depois dentro da criança como uma categoria intrapsicológica. (...) Não é necessário dizer que a internalização transforma o próprio processo e muda sua estrutura e funções (Vygotsky, 1981, p. 163). O processo de internalização, no entanto, implica na utilização de instrumentos técnicos e sistemas de signos enquanto mediadores da relação do homem com o ambiente, com o outro. Particular atenção, conforme sinalizado anteriormente, é dada ao signo lingüístico. Consideradas um dos temas mais complexos no interior da psicologia sócio-histórica, as relações entre a linguagem e o desenvolvimento do pensamento é objeto de reflexão sobretudo no sétimo capítulo de Pensée & langage (1997). Dessa reflexão, interessa-nos, neste trabalho, acentuar o papel da linguagem na constituição da consciência. Enquanto prática social, a linguagem é considerada atividade constitutiva do ser humano. "A linguagem (...) regula a atividade psíquica, constituindo a consciência, porque é expressão de signos que encarnam o sentido com elemento da cultura. Sentido que exprime a experiência vivida nas relações sociais, entendidas estas com espaço de imposições, confrontos, desejos, paixões, retornos, imaginação e construções." (Kramer, 1994, p. 107). Com essas idéias em mente, procura-se, neste estudo, examinar e discutir os impactos do trabalho precoce3, e o faremos a partir de três ângulos de observação: 1º.) o desenvolvimento da criança; 2.) efeitos do trabalho precoce no interior das famílias, e, por fim, 3º.) implicações sobre a dinâmica de vida dos adolescentes trabalhadores. Nesta perspectiva, tomam-se como dado empírico os resultados de uma pesquisa realizada no município de Jardim de Piranhas, localizado no interior do Rio Grande do Norte, cujas características são descritas a seguir. O CENÁRIO E UM POUCO DE HISTÓRIA Jardim de Piranhas4 dista 315 km. de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, sendo cortado pelo rio Piranhas, fator de desenvolvimento regional. A região onde está situado o município tinha tradicionalmente como atividade principal a agropecuária e, dessa forma, uma ocupação populacional concentrada principalmente na zona rural. Com os ininterruptos anos de forte seca, sendo assim forçados a abandonar o cultivo da terra e a criação de animais, agricultores e suas famílias passaram a migrar para centros urbanos, tendo sido esse município um dos principais destinos desses imigrantes. Tal escolha deveu-se, em grande parte, ao fato de ter se desenvolvido em Jardim uma indústria de tecelagem de grande importância para a região, pelo número de empregos gerados e pelo total de recursos movimentado, que, ao menos a princípio, aparecia como uma possibilidade de absorver a mão-de-obra desses agricultores, agora sem terra, sem casa e sem trabalho. Em decorrência da migração aumentou o número de famílias dotadas de parcos recursos financeiros e com precário acesso a bens públicos como saúde, educação, saneamento e habitação. Observaram-se, então, no município, significativas modificações no tecido social, no interior do núcleo familiar, na estrutura do trabalho e, particularmente, no comportamento dos jovens. O componente salário do custo do trabalho no setor produtivo caiu a níveis significativamente baixos. Sob tais condições os trabalhadores se viram na contingência de lançar mão da força de trabalho de suas crianças, as quais foram contratadas, informalmente, para realizar atividades periféricas - e de menor valor - na cadeia produtiva de certos produtos, inserindo-se no mercado enquanto trabalhadores precarizados. Além de ser decorrente da pobreza generalizada, a exploração do trabalho infantil no interior das tecelagens reflete o baixo grau de regulação a que está submetido o trabalho no município e o alto nível de desorganização dos trabalhadores. Se, para os empresários, a inserção precoce das crianças em atividades produtivas é justificada em face do barateamento dos custos de produção e crescimento dos lucros, do ponto de vista das crianças e de suas famílias ela tem sido justificada por liberar os adultos para outros trabalhos, complementar a renda familiar, prevenir situações de envolvimento com a marginalidade, obter recursos para o custeio de objetos pessoais, assim deixando transparecer a confluência dos interesses das famílias e dos empresários. No ano de 1997, a fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho e Emprego do Rio Grande do Norte (DRTE/RN, Brasil: 1998a) encontrou trabalhando, diretamente nas tecelagens de Jardim de Piranhas, um grupo de 123 crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos. Em decorrência, na intenção de suprimir o trabalho infantil no município, em 1998 foi montado um programa de atendimento - Jardim Esperança -, anterior ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), para onde foram encaminhados aqueles trabalhadores infantis. Uma bolsa foi prometida a suas famílias, como forma de compensar a perda do rendimento auferido pelas crianças. Contudo não obstante, visto que as bolsas só começaram a ser pagas em meados de 2000, depois de iniciadas as ações do PETI, de maneira geral permaneceu e se agravou o quadro do trabalho de crianças, embora com alguns ajustes. Ou seja, afastadas das indústrias diante da pressão da fiscalização, é no interior das residências que se passa a observar sua inserção precoce no trabalho produtivo. Logo, não é de estranhar que, no mesmo ano da criação do Jardim Esperança, as estimativas apontavam para a existência de 400 crianças trabalhando sob condições precárias. Como não é difícil concluir, essas condições tiveram impactos consideráveis em várias esferas da dinâmica do município. IMPACTOS DO TRABALHO PRECOCE NO DESENVOLVIMENTO DAS CRIANÇAS Em outro contexto deste artigo afirma-se que, no interior da perspectiva sócio-histórica, o desenvolvimento humano é entendido como um processo de internalização de regras, de valores e de modos de pensar e de agir que ocorre nas interações sociais das quais o sujeito participa em seu dia-a-dia. Nesse sentido, como pensar esse processo em crianças e adolescentes que vivenciam, em seu contexto social, a realidade do trabalho precoce? Na tentativa de refletir sobre ele, ao menos dois aspectos nos são colocados. O primeiro deles diz respeito à internalização do sentido atribuído ao trabalho, pelos adultos, nesse contexto. O segundo, aos impactos dessa prática no desenvolvimento dos sujeitos que a ela estão submetidos/expostos cotidianamente. Iniciando pela questão do sentido atribuído ao trabalho, pelos adultos, pode-se depreender dos depoimentos apresentados pelos sujeitos entrevistados que, do ponto de vista das famílias, em face do quadro de carências a que se encontram submetidas, o trabalho infantil já foi incorporado à sua rotina, de modo que tanto não é questionado quanto é reiteradamente solicitado. Assim, o contexto de pobreza em que estão inseridas as famílias forja um discurso de justificação da inserção precoce no trabalho, naturalizando-o, discurso que tanto serve para negar os evidentes prejuízos às crianças quanto afirmar a importância do emprego delas pelos capitalistas5. Em Jardim de Piranhas, ademais, tal discurso também é utilizado para justificar a ociosidade de um grande número de homens adultos, excluídos do emprego formal em face das características que assumiu a precarização do trabalho, na região. Sob essas condições, as relações de exploração que se efetivam pelo trabalho, por oferecerem as chances de subsistência da família e de ocupação dos meninos e meninas, vistas de um prisma invertido, são consideradas benéficas. Esta não é, entretanto, uma situação nova, tampouco restrita a Jardim. Ao tratar do desenvolvimento do capitalismo, desde o século XVIII, Marx (1867/1996) já denunciava os acordos levados a termo pelos capitalistas, negociados junto a abrigos suspeitos ou familiares famintos. Por meio deles as crianças eram entregues à mais completa exploração, justificada pelo aprendizado de um ofício, de que se valeriam no trabalho desenvolvido, e pelas dificuldades da família para se manter e mantê-las. Da mesma forma, ao tratar da evolução do industrialismo no Brasil, no início do século XIX, o estudo de Dulles (1977) permite observar algumas das situações anteriormente constatadas na Inglaterra, particularmente o aluguel de crianças. Os familiares que as entregavam aos capitalistas, em face do alto grau de pobreza a que estavam submetidos, consideravam tais empresários benfeitores da família e das próprias crianças6. As informações contidas nos depoimentos permitem observar a particularidade dos dados revelados por inúmeros levantamentos, de que é exemplo a Pesquisa Nacional por Amostragem Familiar — PNAD -, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE (1999). Os exemplos consubstanciados nos depoimentos dos sujeitos7 indicam como são socialmente construídos os índices de pobreza, exploração do trabalho infantil, baixa escolaridade, má nutrição, mortalidade infantil etc., num movimento circular em face do qual é compreensível sua naturalização. As famílias, submetidas às mais duras condições de vida, ao buscarem em estratégias como o trabalho das crianças a mitigação dos seus males, por um lado aprofundam a miséria em que vivem e, por outro, garantem a base para a reprodução do mesmo quadro. O depoimento abaixo ilustra a precocidade com que as crianças são inseridas no trabalho e a naturalização desse discurso no interior de suas famílias. De acordo com a mãe de uma família, Quase todos eles [os filhos] começaram a passar8 com sete anos [de idade]. Tem um com nove anos, que já passa; uma menina com 12, que começou também a passar bem novinha e tem um com 14, que quando começou a passar rede tava na faixa dos oito anos. Tudinho eu comecei a botar pra passar rede perto de oito anos. É curioso como essa mãe aparenta não se dar conta da dramaticidade do quadro em que está inserida e para onde arrasta seus filhos, tratando com naturalidade um problema que se repete e vem sendo combatido há séculos. A seqüência desse mesmo depoimento nos dá a exata dimensão do segundo aspecto que apontamos anteriormente, qual sejam as conseqüências do trabalho precoce na saúde das crianças. Segundo a entrevistada, "Quando passava a mamucaba9, os meninos reclamava demais, que sentia muita dor nos quadril, que sentia dor de cabeça; tinha dias que alguns deles não conseguia passar, são tudo pequeno. Eu nunca levei eles pro médico, por conta das dores que eles sentiam no espinhaço". Um outro depoimento segue a mesma direção. Veja-se: "(...) os meninos se queixam do espinhaço", e um deles "tem uma perna menor, por causa da mamucaba". Ela é "doente dos ossos", já tendo tomado injeção de "dexacitoneurin" e se encontra tomando "chá de casca de pau, para curar inflamação". Embora no primeiro depoimento as referências ao trabalho das crianças sejam feitas a um passado cuja condição, subentende-se, não mais persiste na família da entrevistada, podemos afirmar que o mesmo não se passa em todas as famílias. Ainda no início de 2001, constatou-se que crianças com até nove anos de idade confeccionavam, nas suas residências, a mamucaba, valendo-se de teares manuais, rudimentares, em condições que lembram as referências ao modo de produção artesanal. As atividades domésticas, por encontrarem-se protegidas da fiscalização do Ministério do Trabalho, possibilitam que os pais imponham às crianças jornadas muitas vezes proibitivas até mesmo para um adulto, em condições de trabalho extremamente prejudiciais. Além dos efeitos que a rotina descrita pode trazer à vida das pessoas envolvidas, as condições mesmas nas quais as atividades de trabalho são desempenhadas, ou seja, o fio em si, que circula no ar e adere a tudo, o calor das latadas10 improvisadas com amianto, o chão de barro batido, as refeições instáveis e as incômodas posturas assumidas por horas ininterruptas, trazem irremediáveis comprometimentos da coluna, do equilíbrio e do desenvolvimento físico. Foram identificados, também, significativos índices de tristeza, desânimo e apatia entre os trabalhadores precoces, explicados pela monotonia das tarefas e dispêndio de energia que requerem. (Brasil, 1999). Por estarem submetidas a uma carga de trabalho estafante e de alta responsabilidade até para um adulto, há um comprometimento da organização psicológica das crianças, de modo que o adulto que serão não terá, muito provavelmente, o equilíbrio emocional suficiente para fazer frente às novas demandas que lhe serão postas. À debilitação da sua condição física acrescente-se um estado de fadiga e falta de disposição (e tempo) para engajamento em outras atividades, déficit de atenção e de concentração e restrições às possibilidades de relações sociais. Em decorrência, as crianças ficam privadas de brincar, ou seja, de uma das atividades que mais contribuem para o desenvolvimento saudável de aspectos físicos, cognitivos e sociais. Segundo Vygotsky (1984), no exercício de atividades lúdicas a criança "faz o que mais gosta de fazer, porque o brinquedo está unido ao prazer". (1984, p. 113). Ainda de acordo com esse autor, dois outros aspectos determinam a importância do brincar. O primeiro é ser uma atividade que favorece a maturação de certas necessidades da criança, estando assim, diretamente associado ao desenvolvimento; o segundo, possibilitar à criança em idade pré-escolar a efetivação de desejos não realizáveis no mundo real. Em relação às possibilidades engendradas através de e nas atividades lúdicas, Vygotsky (1984) assinala que nestas se dá a criação, por parte da criança, de uma situação imaginária em que as relações/vinculações entre o objeto, as ações sobre ele e seu significado podem ser diferenciadas daquelas habitualmente concebidas. Assim, a possibilidade de operar nessas situações imaginárias "é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às restrições situacionais" (p. 113)11. Considerando que, como sinalizado por Jobim e Souza (2001), a psicologia do desenvolvimento "formula os ideais para o desenvolvimento, providencia os meios para realizá-los e, mais do que tudo isso, acaba por desenvolver as crianças, os adolescentes e nós mesmos - adultos - com base em determinados enquadramentos, participando de nossa formação como sujeitos e como objetos" (2001, p. 41), como pensarmos a infância dos sujeitos deste estudo? Em decorrência das condições de existência a que estão submetidas, certamente não se enquadram no "ideal de infância" preconizado por algumas vertentes tradicionais da Psicologia do Desenvolvimento. São, antes, sujeitos que não só interiorizam os elementos de seu universo, mas também vivenciam uma infância em que não há lugar para a singularidade exercida na escolha ou prazer daquilo que fazem. Assim, determinados aspectos coercitivos da "dura" realidade (dentre eles, o do trabalho) que, imaginariamente, não encontrariam eco na infância, ocupam, desde cedo, lugar na existência desses sujeitos. É possível concluir, então, que a vida dessas crianças as leva a se identificar muito mais com os adultos que com os modelos configurados para a infância por parcela da Psicologia. Quando se pensa na escola em um contexto como esse, o fracasso acadêmico aparece como o resultado mais esperado, tendo-se em vista as condições nas quais se encontram as crianças trabalhadoras. Objeto de investigação em inúmeras pesquisas, o fracasso escolar, manifesto, principalmente, nos altos índices de evasão e repetência das crianças oriundas das camadas desfavorecidas da população, continua sendo uma realidade no sistema educacional brasileiro. O objetivo de "conseguir, antes de 1999, a escolarização de todas as crianças em idade escolar, oferecendo-lhes uma educação geral mínima com duração de 8 a 10 anos", estabelecido no Projeto Principal de Educação para América Latina e Caribe, a partir da Conferência Regional de Ministros da Educação dos países que compreendem essas regiões (Ferreiro, 1992, p. 7-8), está longe de ser alcançado. Em análise do Documento Base do Congresso Brasileiro de Alfabetização (citado por Klein, 1997),o Grupo de Estudos e Trabalhos em Alfabetização ressalta: "O fato mais marcante apontado pelo diagnóstico do sistema de ensino brasileiro é sua improdutividade, expressa nas elevadas taxas de evasão e repetência entre as crianças e jovens que chegam a freqüentar as escolas. A repetência na primeira série do primeiro grau, (...) alcança mais da metade das crianças. (...) A cada ano, através da repetência e da evasão, milhões de crianças são expulsas do ensino básico, particularmente da rede pública" (Klein, 1997, p. 22). Na Região Nordeste, os índices escolares apontam para uma desigualdade considerável em relação à Região Sudeste: "a proporção de analfabetos no grupo etário de 10-14 anos e no de 15-17 anos é de 5 a 6 vezes maior no Nordeste que no Sudeste" (Azevedo, 1994, p. 34). Não destoando do quadro identificado na região, o município de Jardim de Piranhas apresenta uma situação de escolarização extremamente precária. Os dados fornecidos pela Secretaria Estadual de Educação/RN, constantes das Tabelas 15 e 16, abrangem o período de 1996 a 1998, da primeira à oitava séries do Ensino Fundamental, compreendendo as escolas situadas nas zonas urbana e rural. Na Tabela 1 observam-se os índices de repetência, enquanto na Tabela 2, os de evasão. Os números acima refletem uma tendência nacional, qual seja uma alta concentração de retenção na primeira e quinta séries do Ensino Fundamental. Observe-se, entretanto, que estes altos índices de repetência refletem, igualmente, as desigualdades sociais entre as regiões brasileiras, confirmando a posição desfavorável que o Nordeste ocupa em relação às outras regiões do país. Ou seja, as médias de 46% e 14% (da primeira e quinta séries respectivamente) apresentadas nas Tabelas 1 e 2 são mais altas que as médias de outras regiões brasileiras. Da mesma forma que a Tabela 1, a Tabela 2 apresenta altos índices de evasão no município, especialmente na primeira série do Ensino Fundamental. Em relação às últimas séries (quinta à oitava) há uma particularidade: índices elevados perpassando todas estas séries. A interpretação destes dados sugere que os índices podem estar refletindo a inserção desta população estudada no mundo do trabalho, uma vez que a faixa etária estimada fica em torno dos 11 aos 15 anos. De acordo com a DRT/RN (Brasil, 1998a), dos 446 empregados na indústria têxtil que trabalhavam em jornada superior a 8 horas diárias, apenas 100 eram estudantes, ao passo que 291 pararam de estudar. Excetuando-se aqueles com o ensino médio ou o curso superior concluídos, há um total de 425 empregados fora da escola. Alguns deles, com idade entre 15 e 17 anos, alegam que o desinteresse ou o trabalho foi a razão para tal decisão. Outros dados mais recentes, apresentados no relatório do MTE/OIT (Brasil,1999), apontam para o aprofundamento dessa problemática, na medida em que mais de 70% das crianças e adolescentes do município estão em série inadequada à idade. Além disso, tal documento revela que mais de 60% da população infanto-juvenil são repetentes de pelo menos um ano, e que 85,9% dos pais (chefes de família) não têm escolaridade ou têm, no máximo, três anos de estudo, indicando a existência de um ciclo repetitivo entre pais e filhos no tocante à questão da baixa escolaridade. Em acréscimo, é importante informar que, no mesmo ano de 1996, 100% dos adolescentes maiores de 14 anos, matriculados na rede de ensino municipal, encontravam-se cursando entre a primeira e quarta séries do Ensino Fundamental, levando-nos a crer que a irregularidade da trajetória escolar dessa população pode estar diretamente associada à inserção no trabalho precoce. O município de Jardim de Piranhas apresenta, pois, um quadro nada alentador: 58,1% da renda familiar são produzidos por uma força de trabalho composta por crianças e adolescentes que freqüentam a escola de forma irregular, bem como por aqueles, juntamente com adultos, que nunca a freqüentaram. (Brasil, 1998a; 1999). As considerações acima apontam, assim, para a necessidade de se considerar, além dos irremediáveis danos à saúde, o comprometimento no processo de escolarização. De maneira geral, os depoimentos aqui descritos ilustram e ressaltam o ingresso tardio no percurso, as constantes desistências, a reincidência das reprovações na série inicial e, perigosamente, a incapacidade dos adultos para entender que essa situação se deve ao trabalho. Essa condição pode ser ilustrada, também, com a seguinte observação. Em uma das famílias entrevistadas, dos 7 filhos em idade escolar, apenas um ainda não viveu a experiência da desistência ou da reprovação. No ano de 2000, a mãe alega: "Júnior desistiu da escola porque a situação da família estava ruim e não tinha merenda na escola: aí ele vinha passar rede em casa". Nesse contexto, reprovação e desistência são tão-somente explicadas como decorrentes de brincadeiras, desatenção, falta de interesse das crianças. Ainda que tais alegações sejam procedentes, elas parecem não depor contra os pequenos trabalhadores mas, ao contrário, acentuar o grau de influência maléfica do trabalho sobre seu estado de crianças, sua infância. As famílias não conseguem entender que, ante o trabalho precoce, a estada na escola representa o único momento em que é possível a elas encontrar os colegas, conversar, brincar etc. Reiterando as estatísticas que associam baixa escolaridade com pobreza, bem como expressando a incapacidade para identificar os reais motivos da dificuldade mostrada pelas crianças para obterem sucesso na escola, informa uma das entrevistadas: "Eles [os filhos] já foram reprovados muitas vezes. O de 14 anos fez a primeira série num sei quantos anos; agora mesmo que ele veio passar. Outro, foi reprovado na primeira série, mas já vai fazer a terceira. A menina tá na quarta [série]. Muitas vezes eles desistiam, eles mesmo queria desistir. Aí, eu comecei a castigar eles, dizer que não podiam desistir, aí eles ficaram [na escola]. O mais velho nunca desistiu; ele fez a primeira [série] com 11 anos, passou, depois começou a estudar o supletivo e todos os anos ele passa no supletivo; agora ele já vai fazer o 1º ano do 2º grau [primeira série do ensino médio]. Mas, já a menina que é encostada a ele [apenas um ano mais nova] desistiu na quarta série: noivou, casou e desistiu. Eu acho que eles são reprovados na escola por falta de interesse deles, porque não liga de aprender. Eu tiro pelo mais velho, que tem interesse e nunca foi reprovado. Ele trabalha, chega do serviço, toma banho e vai de carreira pra escola. Esses outros vão todos os dias, mas eles não se interessam, começam a brincar e não ligam de aprender." A exemplo do que se observou com relação às crianças, o quadro identificado em Jardim de Piranhas também implica sérias conseqüências sobre a vida dos adolescentes. É este o aspecto que focalizaremos a seguir, e, de modo a tornar mais claras nossas observações, descreveremos, inicialmente, mais alguns detalhes do contexto do município. DINÂMICA FAMILIAR Visto que a grande maioria dos homens adultos que migraram para a cidade só dispunha de experiência com o trato da terra e dos animais e considerando-se as demandas especializadas da indústria, lhes faltaram os empregos na cidade. Por outro lado, dada a tradição da indústria local de empregar crianças em atividades que não requeriam qualificação, era razoavelmente fácil encontrar uma colocação para os filhos pequenos. No mesmo processo, se as crianças trabalhavam em atividades menos importantes, era aos adolescentes que se destinavam os postos de trabalho mais especializados e melhor remunerados que surgiam, tanto mais quanto se aproximasse o final de cada ano, quando crescia a demanda do comércio pelos produtos lá confeccionados. Ainda que não tivessem experiência com as atividades industriais, os adolescentes tinham mais disponibilidade para as duras jornadas e maior facilidade para o aprendizado, que seus pais, já cansados da dura lida no campo, não mais se dispunham a enfrentar. Por fim, dada a experiência adquirida pelas mulheres com o trabalho realizado em casa, para elas também não faltava trabalho — na residência. Em decorrência dessa situação, ainda hoje é significativo o contingente de homens adultos ociosos, auferindo pequena renda com trabalhos eventuais como serventes de pedreiro, vendedores de frutas ou verduras etc. Seu lugar de chefes de família está mantido por força dos papéis sexuais, muito embora sua função de mantenedores tenha sido repassada para os demais membros da família, particularmente às crianças e aos adolescentes. Estes, em decorrência da responsabilidade que lhes é atribuída e do status a que foram alçados pelo seu trabalho, subvertem o papel dos pais na estrutura familiar. Os depoimentos colhidos junto a algumas mulheres, mães de família subcontratadas pelas tecelagens para desenvolver a mamucaba em suas casas, são profundamente ilustrativos dessa realidade. Esclarece Dona Maria dos Cordões que seu marido, antes de migrarem para Jardim de Piranhas, há dez anos, agricultor no interior da Paraíba — morando "de favor" em um sítio -, comprometeu "o espinhaço" lidando com animais e agora não tem mais condições de trabalho diário. Planta, para subsistência, no quintal da sua casa, trabalhando dois dias por semana, apenas. Na mesma perspectiva, informa Dona Neuzete que seu esposo, "há mais de um ano, está parado. Ele trabalhava de agricultura lá no sítio, mas aqui está parado; também por causa de um problema nos rins. No fim de semana, ele compra umas batatas pra revender, na feira". Da mesma forma Cordélia, ex-coordenadora do primeiro programa de atendimento, nascida no município e nele morando desde menina, profunda conhecedora da realidade das famílias em que há crianças e adolescentes trabalhadores, afirma que, "Na maioria das famílias que vieram da zona rural e até de outras cidades o homem, o chefe de família, fica ocioso e a mulher é quem trabalha com os filhos, dentro da própria casa (...) Isso vicia tanto, que após um tempo sem trabalhar o chefe de família não quer mais trabalhar e não aceita a criança sair do trabalho." Como pode ser visto nos depoimentos anteriores, a situação socioeconômica de Jardim de Piranhas promove uma reorganização na estrutura familiar, alterando funções e o status de seus membros e, conseqüentemente, a forma como cada um deles se vê e também como vêem um ao outro. Nesse cenário há uma total inversão de papéis, aparecendo o adolescente como o membro de mais status e "poder". É quem tem o emprego melhor, quem ganha mais, quem provê mais ao sustento familiar e - pode se dizer também - quem tem mais liberdade na família, por ser quem tem mais dinheiro. Alguns deles chegam a ganhar até mais de quatro salários-mínimos por mês. É interessante comentar que a mudança de status do adolescente na família não ocorre apenas como resultado de sua ascensão financeira, mas também por um deslocamento de função da figura paterna. Diferentemente de outras realidades, em que o sustento da família recai sobre a mãe e os filhos em decorrência da ausência do pai, em Jardim de Piranhas o pai está presente, embora não ocupe o lugar de provedor da família. Esta mudança de lugar pôde ser constatada durante o desenvolvimento deste estudo, por exemplo, quando da realização de entrevistas. Naquela oportunidade, em 100% das famílias visitadas, a pessoa que respondia era a mulher, a mãe e não o marido, o pai, apesar de freqüentemente ele se encontrar em casa. Tal deslocamento do homem, do pai, de seu lugar de mantenedor, pode implicar, também, sua ausência como orientador, como modelo para os filhos. TRABALHO PRECOCE E OS ADOLESCENTES As mudanças no interior das famílias especificadas acima, provocadas pela entrada precoce dos adolescentes no mundo do trabalho, representam, para eles, uma inserção artificial na vida adulta. Nessas condições, independência financeira pode ser experimentada como independência emocional e social por um indivíduo que, na verdade, ainda está se descobrindo, está em plena construção de identidade, que ainda precisaria de limites e de orientação e, efetivamente, ainda não viveu o suficiente para ter maturidade física, cognitiva, emocional ou social para o exercício das funções por ele assumidas. Na comunidade estudada os jovens, embalados com os ganhos decorrentes do trabalho por produção, que variavam de 400 a 600 e até 800 reais (note-se que o valor do salário-mínimo, a partir de 01 de maio de 1998, passou a ser R$ 130,00), tanto assumiram papel preeminente no interior das famílias, para onde destinavam parte da renda auferida, quanto passaram a ser considerados, no município, uma força consumidora de produtos como roupas "de marca", perfumes, bebidas etc. e de serviços como lanchonetes, bares, boates etc. Na esteira dessa realidade, tornou-se preocupante o número de consumidores de álcool e outras drogas e de prostitutos e prostitutas entre eles, numa clara evidência de que, além dos danos físicos e mentais, seu trabalho também os compromete sob o ponto de vista da moral e da educação. O lugar a que foram alçados, pela disponibilização de recursos decorrentes de atividades que não exigiam especialização, também resultou em forte desvalorização da escola. Neste pormenor, eles eram reforçados pelas atitudes dos empresários, para muitos dos quais um importante critério a ser considerado na escolha dos futuros empregados era que o candidato à vaga não estivesse estudando. A esse respeito, Cordélia13 esclarece que, "Mesmo que o menino estudasse, o empresário contratava, mas não liberava antes da primeira aula. Às vezes ele [o menino] chegava na escola na segunda ou terceira aula, sem tomar banho e sem comer; passava em casa só pra mudar de roupa e ia pra escola, porque o patrão não liberava. E quando ele [o empresário] podia rejeitar o menino [estudante], se tinha outro pra assumir a vaga, ele rejeitava. Porque, pra ele [o empresário], era mais vantajoso o que não estudava". Continuando seu depoimento, Cordélia revela quanto a desvalorização da escola está presente na família. Segundo ela, "Aqui [em Jardim], os pais não valorizam a escola. O menino que quiser estudar, estuda, mas se não quiser, os pais não obrigam. Os pais entendem que, pra ganhar dinheiro, não precisa saber. Tem as tecelagens, as estamparias, o comércio informal, não precisa saber. O promotor anterior [na cidade até meados de 2000] indiciou vários pais, porque as crianças se evadiam da escola e eles não tomavam providências, eram até coniventes com isso. Depois da ação do promotor, por força da justiça, os pais começaram a colocar os filhos na escola, mas eles não valorizam o ensino. Na minha própria casa, quando eu vou orientar meus filhos sobre a necessidade de estudar, eles dizem - mãe, você tem duas formaturas mas não ganha dinheiro, enquanto fulano de tal, que é analfabeto, é rico! E aí vão dizer os bens que a pessoa tem. As crianças vão trabalhar porque elas querem o dinheiro pra entrar na boate, pra comprar roupa de marca. Os adolescentes já se sentem poderosos, e vão ficando mais poderosos e aí começam com as drogas, com a prostituição". Expressão do sentido particular que assume o trabalho no capitalismo, esse evidente desinteresse pela escola e subordinação ao trabalho, de acordo com Mészáros (1995), não passaria de um epifenômeno da subsunção do trabalho pelo capital. Neste sentido os adolescentes, inclusive, chegam a zombar dos professores, os quais, segundo eles, apesar dos anos de estudo, não ganham salários suficientes para uma vida tranqüila, ao contrário de muitos analfabetos, que são empresários ricos. Contraditoriamente, tal subordinação se insere na atual lógica da produção capitalista, marcada pelo desemprego estrutural e pela diminuição do emprego de trabalho variável, cuja crescente competitividade entre os trabalhadores para se inserirem nos postos disponíveis vale-se do requisito da escolarização, nos termos da teoria do capital humano. CONCLUSÃO Não é fácil visualizar todas as relações envolvidas numa realidade complexa, que apresenta uma teia de fatores interagindo e afetando uns aos outros. Ressalte-se, no entanto, que a exploração do trabalho produtivo de crianças e adolescentes, observada em contextos de precarização das famílias, possibilita o aumento da renda familiar, por um lado, e o crescimento do lucro do empresário, por outro. Nesse contexto, a despeito da contribuição para o aumento da renda da família, o trabalho não só não contribui para superar o estado de miséria em que elas se encontram, como reproduz as condições de perpetuação da pobreza. Em relação aos impactos dessa exploração, procuramos mostrar que a condição a que estão submetidos crianças, adolescentes e suas famílias traz como conseqüência uma rearrumação das relações estabelecidas, seja no interior dessas famílias, seja na dinâmica do próprio município. Pensando-se no desenvolvimento humano, a realidade observada em Jardim de Piranhas, do trabalho precoce, evidenciada pelos depoimentos dos sujeitos entrevistados, ilustra como este fato pode ter efeitos danosos para as crianças e adolescentes, afetando, principalmente, sua saúde, seu processo de escolarização e de formação da sua identidade. Expressão do apetite desmedido do capital e da falta de políticas consistentes, voltadas para a criança e o adolescente, o trabalho precoce também exprime a força da "ideologia ou valorização do trabalho, que o mostra como dignificante, como escola, almejado pelos pais porque afasta a criança da rua e da marginalidade" (Jornal do Cress, 1996). Não obstante a ampla divulgação, desde pelos menos um século atrás, dos prejuízos advindos do exercício do trabalho precoce em atividades produtivas, seu combate encontra barreiras de porte, seja nas próprias vítimas da situação seja nas suas famílias, em face da força dessa ideologia, que se alimenta da luta pela sobrevivência. REFERÊNCIAS Azevedo, M. A. & Marques, M. L. (Orgs.). (1994). Alfabetização hoje. São Paulo: Cortez Editora. Biaggio, A. M. B. (1988). Psicologia do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes. BRASIL. (1998). Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil. (3 Vol.) Brasília: MEC/SEF. BRASIL. (1998a.). Ministério do Trabalho e Emprego. Delegacia Regional do Trabalho e Emprego no Rio Grande do Norte. Projeto "Empregador legal, trabalhador cidadão", indústria têxtil de Jardim de Piranhas/RN. Natal/RN. (relatório de agosto a outubro de 1998.) BRASIL. (1999). 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Doutoranda em Psicologia da Universidade de Brasília e pesquisadora do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). 2 Este trabalho serve-se de dois estudos anteriores. O primeiro foi desenvolvido no âmbito da pesquisa ―Crianças de zero a seis anos: suas condições de vida e seu lugar nas políticas públicas‖ (Barreto, 2001). O segundo, em co-autoria (Barreto e Abrahão, 2002), foi elaborado para o Simpósio Educação Infantil: Construindo o Presente. 1. Políticas e programas federais destinados à criança de zero a seis anos Barreto (2001) realiza um mapeamento e a análise descritivo-interpretativa das políticas e programas federais destinados à criança de zero a seis anos, em andamento na atual gestão (segundo mandato do Governo Fernando Henrique Cardoso), especialmente nas áreas de educação, saúde e assistência social, buscando identificar os alcances e limites dessas políticas/programas. O estudo incluiu análise documental e entrevistas com dirigentes e técnicos, realizadas por Barreto (2001), Almeida (2001) e Barros (2001). Foram analisados os documentos Avança Brasil: proposta de governo (1998), o Plano Plurianual (PPA 2000-2003), o Orçamento da União para os anos 2000 e 2001, os sistemas de acompanhamento da execução orçamentária, além de documentos técnicos, peças de divulgação institucional e relatórios gerenciais dos órgãos federais, alguns disponíveis nos sítios das instituições. A análise das intenções de políticas relativas à criança de zero a seis anos, do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, explicitadas no documento Avança Brasil, permite identificar três perspectivas sobre as quais se assentam tais intenções: a que se fundamenta nos direitos da criança como cidadã; a que considera a criança pequena como uma faixa vulnerável por sua condição de dependência econômica e social, e a que leva em conta os direitos da mulher e a igualdade de oportunidades para mulheres e homens. Verifica-se que as intenções de políticas relativas à criança de zero a seis anos explicitadas se fazem a partir de perspectivas que vêm se consolidando no cenário brasileiro, consagradas na Constituição de 1988 e leis setoriais posteriores, como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9294/96), a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e a legislação própria da área da saúde, entre outras. Observa-se, entretanto, em algumas passagens, que aspectos assegurados nas leis não são ainda completamente incorporados nas propostas do governo. Isto é mais evidente quando se trata da educação da criança de zero a seis anos: embora, com a LDB, a creche tenha sido incluída, junto com a pré-escola, na educação infantil, reconhecida como primeira etapa da educação básica, muitos dos objetivos explicitados no Avança Brasil referem-se apenas à pré-escola (formação de professores, merenda escolar, para citar dois deles). O texto que trata da educação infantil no Avança Brasil inspira-se em versão do Plano Nacional de Educação apresentada pelo MEC e que foi superada por aquela aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República em janeiro de 2001. Nesta última, as inconsistências foram minimizadas. O documento "Avança Brasil - mais quatro anos de desenvolvimento para todos" constituiu referência fundamental na elaboração do Plano Plurianual (PPA) 2000-2003, que passou inclusive a incorporar em seu título a expressão Avança Brasil. Utilizando como fontes privilegiadas de informações o PPA 2000-2003 e os orçamentos da União de 2000 e 2001, os quais constituem os principais instrumentos legais de planejamento e alocação de recursos da gestão do atual governo, Barreto (2001) identifica os programas/ações dirigidas à criança de zero a seis anos. Verifica que dos 365 programas que compõem o PPA, a criança de zero a seis anos comparece como público-alvo específico de dois programas: ―Atenção à Criança‖, e ―Saúde da Criança e Aleitamento Materno‖. Além disso, está incluída como público específico de três ações: Assistência pré-escolar aos dependentes dos servidores e empregados (Programa Assistência ao Trabalhador) e Incentivo financeiro a municípios habilitados à parte variável do Piso de Atenção Básica – PAB para ações de combate às carências nutricionais e Qualificação de municípios para recebimento do Incentivo financeiro a municípios habilitados à parte variável do Piso de Atenção Básica – PAB para ações de combate às carências nutricionais (Programa Alimentação Saudável), ação que está sendo substituída pelo Bolsa-Alimentação. As crianças de zero a seis anos constituem público-alvo explícito de outras ações, junto com outros segmentos vulneráveis, não sendo definidas, portanto, no PPA, metas específicas pertinentes ao segmento etário: no Programa Alimentação Saudável, nas ações Aquisição e distribuição de micronutrientes para crianças, gestantes e idosos em áreas endêmicas de má nutrição; (2) Estudos e pesquisas sobre recuperação nutricional e alimentação saudável; (3) Promoção de eventos técnicos sobre recuperação nutricional e alimentação saudável; (4) Implantação de sistema de informação em má nutrição por micronutrientes. No Programa Brasil Jovem, na ação Abrigo, também se inclui a criança de zero a seis anos violada ou ameaçada em seus direitos básicos. Ainda que sua condição de público-alvo da ação não seja explicitada no PPA, a criança de zero a seis anos é também beneficiária de ações que envolvem outros públicos vulneráveis: no Programa Atenção à pessoa portadora de deficiência, nas ações Atendimento à pessoa portadora de deficiência, e, Pagamento de Benefício de prestação continuada à pessoa portadora de deficiência; no Programa Aceleração da Aprendizagem (atualmente denominado Toda Criança na Escola), na ação Alimentação Escolar. O programa Atenção à Criança é o que mais nos interessa neste estudo. Incluído no Macroobjetivo ―assegurar os serviços de proteção à população mais vulnerável à exclusão social‖, o programa tem por objetivo assegurar o atendimento a crianças carentes de até 6 anos em creches e pré-escolas. O indicador definido é a taxa de crianças de até 6 anos atendidas, com renda familiar per capita de até ½ salário mínimo. A taxa apresentada como mais recente no PPA é de 19% e a prevista para o final do período é 30%. No quadro abaixo são apresentadas outras informações sobre o programa. Programa “Atenção à Criança” – Demonstrativo das Ações Ações P, A Unidade responsável Meta/produto FNAS/ 6.930.284 Ou O* 2556 – Atendimento a crianças em creche A Previsão Custos em R$1 MPAS, Mun. e DF Estados, Crianças atendidas 1.083.925.281 4003 - Funcionamento da EI A IFES/ MEC 4.508 856.000 alunos matriculados 3088 - Aquisição e distribuição de material didático P FNDE/ MEC para EI ** 2.545.000 22.673.000 módulos distribuídos 3097 - Formação continuada de professores da EI P FNDE/ MEC 75.920 professor 34.164.000 capacitado 3101 - Implementação do referencial curricular P FNDE/ MEC nacional para a EI TOTAL 47.760 21.492.000 professor capacitado --- --- 1.163.110.281 Fonte: PPA 2000-2003 *P- Projeto; P – Atividade; O – Outras ações ** EI – Educação Infantil Embora não apareça no PPA 2000-2003 (Projeto de Lei), outra ação vem sendo incluída no Programa Atenção à Criança por meio de emendas parlamentares, nos orçamentos 2000 e 2001. Trata-se da Construção, ampliação e modernização das creches. No ano 2000, o orçamento executado nesta ação foi da ordem de 2,47 milhões de reais. A análise do quadro acima evidencia que a ação mais significativa em termos de volume de recursos no Programa Atenção à Criança é a que financia o atendimento de crianças em creches e que está sob a gestão da Secretaria de Estado de Assistência Social - SEAS. Responsável por aproximadamente 93% do orçamento do Programa Atenção à Criança, esta ação caracteriza-se como um ―Serviço Assistencial de Ação Continuada‖. A ação é executada de forma descentralizada por estados e municípios, e o apoio financeiro da União é realizado mediante a transferência de recursos "fundo a fundo", isto é, do Fundo Nacional de Assistência Social para os Fundos Estaduais e Municipais, para a manutenção de creches/préescolas públicas ou conveniadas com o Poder Público. A história dessa ação na área da assistência social remonta ao final da década de 70, quando a então Legião Brasileira de Assistência - LBA - instituição do Governo Federal extinta em 1995 e que teve suas atividades assumidas pela SEAS -, criou e implantou o denominado Projeto Casulo. O projeto teve significativa expansão na década de 80, sendo operacionalizado por meio de convênios com instituições privadas ou com prefeituras que mantinham crianças de baixa renda em creches e pré-escolas. Essa expansão foi realizada com a utilização de espaços ociosos disponíveis na comunidade e, freqüentemente, com pessoal sem formação específica, atuando com precárias condições de trabalho. Vários estudos têm abordado essa história (Vieira, 1988; Campos, Rosemberg e Ferreira, 1993, entre outros). Como na época da LBA, os recursos são repassados para a manutenção do serviço com base em valores per capita, diferenciados segundo a jornada em que a criança é atendida diariamente: parcial (4 horas) ou integral (8 horas). Atualmente, esses valores são de R$ 17,02 e R$ 8,51, respectivamente. Cabe à unidade de atendimento “oferecer alimentação, atividades pedagógicas em horário integral ou parcial, além de trabalho sócio-educativo com famílias e com as próprias crianças”. Segundo dados da SEAS, são cerca de 3.773 entidades responsáveis pela execução desse atendimento, em todas as unidades da Federação e em 59% dos municípios. Os recursos da União representam apenas parte do financiamento do serviço. Entretanto, não há informações sobre quanto se gasta no atendimento nos diferentes municípios, qual é a parcela das outras instâncias governamentais e não governamentais, o que torna pouco visível para a SEAS a parte co-financiada por elas (Almeida, 2001). Não há dados sobre número de crianças em jornada parcial ou integral de atendimento. Na verdade, verifica-se que há ainda grandes deficiências quanto a informações gerenciais nessa e nas outras ações de responsabilidade da SEAS, embora esforços nesta direção estejam sendo realizados. Esta ação de apoio financeiro da União ao atendimento em creches, que, conforme visto, tem uma história de quase três décadas, vem atualmente passando por um momento delicado na administração pública federal, e como conseqüência, nas demais esferas de governo, em razão da ainda precária articulação entre os setores de assistência social e de educação. Com a consolidação, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, da concepção de educação infantil como primeira etapa da educação básica, incluindo os segmentos da creche (zero a três anos) e préescolas (quatro a seis anos), vem se observando embates entre as duas áreas sobre a gestão e o financiamento das ações. Em julho de 2000, a SEAS publicou a portaria 2.854, introduzindo novas modalidades de atendimento, além de creches e pré-escolas, a serem financiadas com recursos da ação "atendimento à criança em creches". Assim, define a portaria, em seu anexo, as modalidades de atenção à criança de zero a seis anos: "APOIO À CRIANÇA DE 0 A 6 ANOS Atendimento em Unidades de Jornada Integral ou Parcial: essa modalidade era tradicionalmente desenvolvida apenas em creches e pré-escolas. Abre-se a possibilidade de realizar esse atendimento também em outros espaços físicos, utilizando inclusive outras formas de trabalhos com crianças, tais como: brinquedotecas, creches volantes (veículos equipados com jogos, brinquedos, com supervisão de educadoras infantis que se deslocam para diferentes pontos do município com a finalidade de realizar ação sócio-educativa para adultos encarregados de trabalho com as crianças), atendimento domiciliar (crianças atendidas em casas de família com adequada supervisão técnica) etc. Em todas essas ações devem estar integradas as crianças portadoras de deficiência e as crianças em situação de extremo risco. Ações sócio-educativas de apoio à família: são ações comunitárias de promoção e informação às famílias de crianças de 0 a 6 anos, tais como: palestras sobre desenvolvimento infantil, oficinas pedagógicas promovendo interação pais/crianças por meio de jogos e brincadeiras, cursos de capacitação profissional com vistas a ampliação de renda familiar etc. Devem ser priorizadas as famílias em situação de extremo risco: famílias de detentos, de ex-detentos, famílias com membros portadores do vírus HIV/AIDS, famílias sem teto, famílias sem terra, famílias vivendo em assentamentos, vítimas de enchentes, seca etc., na perspectiva de promovê-las e apoiá-las nos cuidados com seus filhos". Deve-se observar que a introdução dessas novas modalidades não fica transparente no PPA e nem nos orçamentos da União 2000 e 2001, onde a ação, tal como descrita, restringe-se ao "atendimento a crianças em creches". No relatório de gestão da SEAS de 2000 também não constam informações sobre as "novas modalidades". Conforme levantado por Almeida (2001), a SEAS ainda não tem um controle preciso dos municípios/estados que estão remanejando recursos para as novas ações instituídas pela Portaria 2854/00 da SEAS, nem quantos per capita estariam sendo remanejados e para quais modalidades. As demais ações do programa Atenção à Criança, todas com recursos financeiros de pouca monta, estão sob a responsabilidade do Ministério da Educação. Essas ações consistem na assistência financeira, por intermédio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, a projetos educacionais que visem formação continuada de professores e aquisição de material didático. Os recursos para essas ações nos anos de 2000 e 2001 foram destinados aos municípios com Índice de Desenvolvimento Humano inferior a 0,500. Os projetos de formação de professores apoiados devem visar a implementação do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, publicados pelo MEC em 1998. Incluem-se no programa do MEC denominado Parâmetros em Ação, principal ação da Secretaria de Educação Fundamental nos últimos anos. Ainda no âmbito do MEC/FNDE, a educação infantil é contemplada no Programa de Alimentação Escolar (Merenda Escolar). Os recursos repassados aos municípios para a merenda escolar abrangem, entretanto, apenas as crianças das pré-escolas públicas e filantrópicas, ou seja, a faixa etária de quatro a seis anos. Além de não ter uma cobertura para toda e educação infantil, o valor per capita (R$ 0,06/dia letivo) é menos da metade do direcionado aos alunos do ensino fundamental público (R$ 0,13). A estimativa é de que em 2000 os recursos do programa destinaramse a 3,8 milhões de crianças de pré-escola, o que significou um gasto aproximado de 45,6 milhões de reais. Procurando-se avaliar os alcances e limites das políticas e programas federais destinados à criança de zero a seis anos, evidencia-se no âmbito das intenções de governo o crescente reconhecimento da importância da infância como fase do desenvolvimento humano, bem como dos direitos das crianças como cidadãs. Nota-se que grandes avanços no âmbito jurídico-legal vêm ocorrendo especialmente após a Constituição de 1988, no que tange aos direitos da criança. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, a Lei Orgânica da Assistência Social, de 1993 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996 consagram tais avanços. Destacam-se entre estes, o direito à educação da criança de zero a seis anos de idade, em creches e pré-escolas. Essas instituições passam a constituir a educação infantil, primeira etapa da educação básica. Progressos também têm-se verificado na gestão governamental, com a descentralização político-administrativa e a participação da sociedade, especialmente no controle social das ações dos governos. A estruturação do Sistema Único de Saúde - SUS, a municipalização nas áreas de saúde, educação e assistência social, mesmo que em processo, respondem a esses parâmetros da Constituição. Das ações analisadas, várias têm mostrado avanço em sua gestão, como o observado no programa da merenda escolar, que ao longo desta década passou por grande reformulação em seus processos de execução. No caso da área da saúde, deve-se mencionar a instituição do repasse do Piso de Atenção Básica e a implementação do Programa Saúde da Família. Ainda que venham se observando avanços também nas condições de vida das crianças, no País, redundando, por exemplo, em significativa melhora nas taxas de mortalidade infantil, muito ainda há a se fazer para garantir à criança pequena um desenvolvimento integral adequado. Observa-se que ainda é tímido o lugar ocupado pela criança menor de sete anos nas políticas públicas, apesar de ser esse o segmento populacional mais afetado pelas condições de pobreza e desigualdade. O percentual de crianças dessa faixa etária em famílias com renda inferior a 1/2 salário mínimo per capita chega a 42,2%, bem superior àquele da população em geral. (Dados da PNAD/IBGE de 1999). Esta observação é especialmente grave no caso da educação. Na verdade, a criança de zero a seis anos é quase ausente na política educacional em curso no atual governo federal. Tal ausência é percebida, por exemplo, no Plano Plurianual 2000-2003, em que a educação infantil não apresenta sequer o status de programa, ao contrário dos outros níveis de ensino e até mesmo das modalidades. Evidencia-se uma pronunciada fragmentação das ações destinadas à criança de zero a seis anos, mesmo no interior dos ministérios setoriais. A articulação entre as áreas é ainda mais precária, embora esforços estejam sendo feitos especialmente com a criação do Comitê da Primeira Infância CODIPI, em 2000, no âmbito do Programa Comunidade Ativa (antes Comunidade Solidária). Outro aspecto que demanda maiores investimentos diz respeito aos sistemas de informações gerenciais. Observa-se uma carência de dados sistematizados que permitam a formulação adequada de ações, bem como seu acompanhamento e avaliação. Uma ausência também percebida diz respeito a processos efetivos de avaliação das ações. De um modo geral, não tem se observado grandes esforços nesta direção. Algumas iniciativas do Ministério da Saúde merecem ser acompanhadas, como a avaliação sistemática da implementação e dos impactos do Bolsa-Alimentação que está sendo delineada. Entre os limites e entraves para a oferta de serviços públicos de qualidade à criança pequena provavelmente o mais importante diz respeito à formação dos recursos humanos envolvidos na operacionalização das ações. Em todas as três áreas analisadas - educação, saúde e assistência social - este problema se impõe e exige estratégias de solução. No caso da saúde, o PROFAE Programa de formação dos profissionais de enfermagem constitui uma importante iniciativa para minorar esse entrave. Também no âmbito das equipes do Governo Federal, o qual é responsável pela normatização e coordenação das ações, verificam-se grandes carências relativas aos profissionais. As equipes são muito reduzidas e os técnicos freqüentemente têm contratos temporários de trabalho. Uma questão que necessita de estudos aprofundados e solução urgente diz respeito ao financiamento da educação infantil e distribuição de encargos entre as diversas esferas de governo, atendendo ao Artigo 30, Inciso VI, da Constituição. Visando contribuir com a discussão desse tópico fundamental, Barreto e Abrahão (2002) desenvolveram um estudo sobre os desafios impostos pelo Plano Nacional de Educação, comentado a seguir. 2. Os desafios impostos pelo PNE: financiamento e gestão da educação infantil O Plano Nacional de Educação estabelece um conjunto de 25 objetivos e metas para a educação infantil. Esses objetivos/metas tratam da ampliação da oferta de creches e pré-escolas, da elaboração de padrões mínimos de qualidade de infra-estrutura para o funcionamento adequado das instituições de educação infantil, da autorização de funcionamento dessas instituições, da formação dos profissionais da área, da garantia da alimentação escolar para as crianças atendidas nos estabelecimentos públicos e conveniados, do fornecimento de materiais adequados às faixas etárias, do estabelecimento de padrões de qualidade como referência para a supervisão, controle e avaliação e aperfeiçoamento da educação infantil, entre outros aspectos. Todos esses objetivos e metas têm custo e, portanto, reflexos sobre o financiamento da área. O PNE explicita ainda objetivos/metas específicos sobre a questão do financiamento da educação infantil. São eles: 21. Assegurar que, em todos os Municípios, além de outros recursos municipais os 10% dos recursos de manutenção e desenvolvimento do ensino não vinculados ao FUNDEF sejam aplicados, prioritariamente, na educação infantil. 20. Promover debates com a sociedade civil sobre o direito dos trabalhadores à assistência gratuita a seus filhos e dependentes em creches e pré-escolas, estabelecido no art. 7o, XXV, da Constituição Federal. Encaminhar ao Congresso Nacional projeto de lei visando à regulamentação daquele dispositivo. 25. Exercer a ação supletiva da União e do Estado junto aos Municípios que apresentem maiores necessidades técnicas e financeiras, nos termos dos arts. 30, VI e 211, § 1º, da Constituição Federal. 23. Realizar estudos sobre custo da educação infantil com base nos parâmetros de qualidade, com vistas a melhorar a eficiência e garantir a generalização da qualidade do atendimento. Dos objetivos/metas do Plano Nacional de Educação para a Educação Infantil deve-se destacar o que trata da ampliação da oferta, pelo seu impacto sobre os demais objetivos, especialmente sobre a questão do financiamento. Prevê o PNE no primeiro objetivo/meta: 1. Ampliar a oferta de educação infantil de forma a atender, em cinco anos, a 30% da população de até 3 anos de idade e 60% da população de 4 e 6 anos (ou 4 e 5 anos) e, até o final da década, alcançar a meta de 50% das crianças de 0 a 3 anos e 80% das de 4 e 5 anos. O estabelecimento de metas específicas para as duas faixas de idade (zero a 3 e 4 a 6) é justificada, no Plano, pela história do atendimento a essas faixas etárias no Brasil, com o predomínio da área da assistência social para as crianças menores. O que essas metas de cobertura significam em termos de expansão da matrícula? A Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio - PNAD, do IBGE, de 1999, aponta uma taxa de freqüência à creche/pré-escola das crianças de zero a três anos, no Brasil, de cerca de 9,2%. Para a faixa de 4 a 6 anos, a freqüência à creche/pré-escola era de 52,1%, além de 8,1% que já se encontravam no ensino fundamental. Somadas, seriam 60,2% das crianças de quatro a seis anos já freqüentando escola em 1999. É importante lembrar que os dados da PNAD não abrangem a zona rural da região Norte, à exceção do estado de Tocantins. Certamente a freqüência à escola na zona rural da região Norte é baixa, o que deveria diminuir este percentual. Considerando, portanto os dados da PNAD de 1999, pode-se afirmar que a meta do PNE para 2006, se tomada a faixa de 4 a 6 anos, e o Brasil como um todo, já estaria alcançada ou próxima de ser atingida. Para a faixa de zero a três anos, cuja meta é 30%, para 2006, há um enorme caminho a percorrer, pois a taxa de cobertura segundo a PNAD não atinge 10%. Entretanto, a média nacional encobre uma pronunciada heterogeneidade nas taxas de atendimento nas diferentes unidades da federação. Ora, é também explicitado no PNE, em sua introdução, o objetivo de redução das desigualdades sociais e regionais no tocante ao acesso e à permanência, com sucesso, na educação pública. Evidentemente, esse objetivo também se aplica à educação infantil, na qual a desigualdade de acesso é fortemente sentida, especialmente quando se considera a renda familiar das crianças atendidas. Se na classe de maior renda (acima de 5 salários mínimos per capita), conforme os dados da PNAD/99, 32,5% das crianças de zero a três anos já freqüentam creche, na de menor renda (menos de 1/2 salário mínimo), a cobertura não chega a 6%. Das crianças de 4 a 6 anos, de famílias de maior renda, cerca de 90% já freqüentam pré-escola ou ensino fundamental; para as de menor renda, este percentual é de apenas 50%. A análise dos impactos financeiros do PNE parte, portanto, do princípio de eqüidade regional explicitado no Plano. Considera-se, assim, que a demanda pela educação infantil nos anos 2006 e 2011 resultaria, em cada unidade da federação, dos percentuais do Plano aplicados à população. Por não haver projeções populacionais por unidade da federação baseadas em dados recentes, utiliza-se, grosso modo, a mesma população do ano 2000. No caso dos estados que já ultrapassaram a meta do PNE, manteve-se o mesmo nível de cobertura (resultado da divisão do número de matrículas pelo quantitativo da população na faixa etária) de 2000. (Barreto e Abrahão, 2002) Considerando as metas do PNE para a creche e pré-escola à população de 2000 de cada unidade da federação, na faixa de zero a três anos, levantada pelo Censo do IBGE, haveria aumento, para o Brasil, de mais de 3 milhões de matrículas até 2006 e, entre 2000 a 2011, crescimento de 5,7 milhões de matrículas. Para as faixas de 4-5 anos, haveria em 2006 mais 1,4 milhões de matrículas e de 2000 a 2011, o acréscimo seria de cerca de 3,5 milhões. Para a faixa de 6 anos, considerou-se que em 2006, 100% já estariam no sistema de ensino: 80% no ensino fundamental e 20% na pré-escola. Para 2011, estimou-se que 100% freqüentariam o ensino fundamental. Somando a faixa de 4 a 6 anos, essas metas significariam 1,4 milhão a mais de matrículas em 2006 e 3,6 milhões a mais em 2011, comparadas a 2000. Aqui também pode haver uma pequena redução dependendo da diminuição da população desta faixa etária. A análise da questão do financiamento público da educação infantil exige que se considerem os outros níveis e modalidades de ensino, uma vez que esses concorrem por recursos das mesmas fontes. Assim, procurou-se estimar as matrículas nos anos de 2006 e 2011 para os outros níveis e modalidades da educação, interpretando as metas do PNE e considerando as taxas de atendimento em 2000, calculadas pela razão entre matrículas e população por faixa etária. Dadas as dificuldades de estimar as demandas por ensino superior e para a educação de jovens e adultos a partir dos 24 anos, esses segmentos não foram incluídos no estudo, o que significa que são tomados os mesmos valores do atendimento e dos recursos de 2000 na elaboração dos cenários de financiamento. Com base nessas estimativas de demanda, Barreto e Abrahão (2002) constróem alguns cenários relativos aos recursos financeiros necessários à implementação do PNE. Como se tratam de hipóteses, alguns fatores são tomados como constantes; por exemplo, as matrículas da rede privada em cada nível de ensino e a distribuição das matrículas entre instâncias estaduais e municipais. A inexistência de estudos sobre os custos da oferta de educação com níveis de qualidade adequados, em seus diferentes níveis e modalidades, é um grande entrave para a análise das necessidades de financiamento das políticas. Desse modo, freqüentemente se usam dados dos gastos despendidos. Também no caso dos gastos, devido à organização da oferta da educação básica, em que os mesmos recursos materiais e humanos servem aos diferentes níveis e modalidades, é extremamente complexo depurar o gasto/aluno em cada um deles. É necessário, portanto, trabalhar com aproximações. No estudo, Barreto e Abrahão (2002) calculam quanto cada estado e o conjunto de municípios de cada unidade da federação teriam de recursos para a educação, considerando as receitas de impostos (dados do Ministério da Fazenda). Para determinar a ―capacidade de gasto associado à educação" no Brasil, admitem como hipótese, que os diversos níveis de governo respeitem a imposição legal vigente nas regras constitucionais. Assim: i) A União vincula à educação 18% dos recursos oriundos da receita de impostos federais a ela destinados, de acordo com Art. 212 da Constituição Federal; ii) Os Estados vinculam à educação 25% das receita de impostos que arrecadam como também daquelas que lhe são transferidas, de acordo com o Art. 212; iii) Os Municípios vinculam à educação, 25% das receita de impostos que serão transferidas, de acordo com o Art. 212. Considera-se também a aplicação da Contribuição social do Salário-Educação (Quota estadual e federal). Com base nesses mínimos, são calculados os quantitativos de recursos das instâncias estaduais e o montante de todos os municípios de cada unidade da federação. Desses quantitativos, são subtraídos os gastos com a educação superior e o restante é dividido pelo número de matrículas em todos os níveis e modalidades da educação básica. Chega-se, assim, a valores per capita médios para a instância estadual e as municipais de cada unidade da federação. Os resultados assim obtidos mostram uma grande variação nesse per capita médio, com algumas unidades da federação apresentando valores muito baixos (como Pará, Maranhão, Piauí, Ceará e Bahia). Multiplicando-se o valor per capita médio pelo total de matrículas na educação infantil no ano 2000, chega-se a uma aproximação de um gasto público total, no Brasil, de 3,2 bilhões de reais com essa etapa da educação. Considerando-se as demandas calculadas para o PNE, já comentadas, seriam necessários 5,2 bilhões de reais no ano 2006 e 7,74 bilhões em 2011, para o atendimento em creches e pré-escolas. Isto significa um incremento de recursos da ordem de 60% em cinco anos e de 140%, em 10 anos, tomando-se o Brasil como um todo. Esse cenário considera constantes os níveis de qualidade do atendimento e de eficiência dos sistemas de ensino em 2000. Alterações nesses fatores são, entretanto, necessárias e devem implicar mudanças nos valores aqui estimados. A desigualdade observada nos resultados dos cálculos dos recursos per capita disponíveis nas diferentes unidades da federação fortalecem a necessidade de que a instância federal atue no sentido de minimizá-las, com formas consistentes de assistência financeira aos municípios, responsáveis pela oferta da educação infantil. Essas análises evidenciam que dois objetivos do PNE relativos ao financiamento devem pautar a luta política pela educação infantil. Seu cumprimento precisa ser buscado, o que implica a necessidade de criação de mecanismos de controle social. São eles: 21. Assegurar que, em todos os Municípios, além de outros recursos municipais os 10% dos recursos de manutenção e desenvolvimento do ensino não vinculados ao FUNDEF sejam aplicados, prioritariamente, na educação infantil. 25. Exercer a ação supletiva da União e do Estado junto aos Municípios que apresentem maiores necessidades técnicas e financeiras, nos termos dos arts. 30, VI e 211, § 1º, da Constituição Federal. Isto significa que aqueles que lutam pela expansão e melhoria da educação infantil precisam compreender mais sobre as questões pertinentes ao financiamento e gestão educacional, temas freqüentemente considerados áridos e pouco interessantes. Referências bibliográficas: Abrahão, J. e Fernandes, M. A . C. (1999). Sistema de informações sobre os gastos públicos da área de educação – SIGPE: diagnóstico para 1995. Brasília: IPEA. TD 674. Almeida, A .C., E. (2001) Ações governamentais destinadas à criança de zero a seis anos na área de assistência social - Relatório preliminar. Brasília: IPEA. Barreto, A . M.R.F. (2001) Políticas e programas federais destinados á criança de zero a seis anos - Relatório final. Brasília: IPEA Barreto, A . M.R.F. e Abrahão, J. (2002). Financiamento da educação infantil: alguns desafios e cenários para a implementação do Plano Nacional de Educação. Brasília: Senado Federal. Barros, E. (2001) Ações governamentais destinadas à criança de zero a seis anos na área de saúde e nutrição - Relatório preliminar. Brasília: IPEA. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: 1988. _______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: 1991. _______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: 1996. _______. Plano Nacional de Educação. Brasília: 2001. ______. Ministério do Planejamento, Gestão e Orçamento (2000). Avança Brasil: Plano Plurianual 2000-2003. Brasília: MPO. Campos, M.M.; Rosemberg, F. & Ferreira, I. M. (1993) Creches e Pré-escolas no Brasil. São Paulo, Cortez. Cardoso, Fernando Henrique (1998). Avança Brasil: proposta de governo. Brasília. Vieira, L.M.F. (1988). Mal necessário: creches no Departamento Nacional da Criança. Cadernos de Pesquisa (67), pp. 3-16. ANEXO A doutrina da proteção integral: da exploração do trabalho precoce ao ócio criativo. Autor:André Viana Custódio A doutrina da proteção integral encontra-se consubstanciada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente da Organização das Nações Unidas. No entanto, desde 1988 o Brasil adotou tal concepção ao inseri-la no art. 227, da Constituição da República Federativa do Brasil, nos seguintes termos: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Além de garantir um complexo conjunto de direitos a nova doutrina trouxe aos direitos da criança e do adolescente o status de prioridade absoluta, bem como, uma ampla garantia de proteção. Os novos direitos infanto-juvenis foram o disciplinados com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990. É claro que o Estatuto da Criança e do Adolescente ―[...[ tem a difícil, porém relevante, função de fazer com que o texto constitucional não seja letra morta; e para tanto, não basta a existência de leis que assegurem direitos sociais, mas que a estas sejam conjugada uma política social eficaz.‖ (SILVA, VERONESE, 1998). Para COSTA, a doutrina da proteção integral [...] afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade de seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atual através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos. (1992, p. 19) AMARAL E SILVA anota que o novo direito da criança e do adolescente ―traz normas e institutos exclusivos, não de alguns, mas de todas as crianças e adolescentes. Consagra na ordem jurídica a doutrina da proteção integral; reúne, sistematiza e normatiza a proteção preconizada pelas Nações Unidas.‖ (1994, p. 37) É, portanto, a doutrina da proteção integral a base configuradora de todo um novo conjunto de princípios e normas jurídicas voltadas à efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, que traz em sua essência a proteção e a garantia do pleno desenvolvimento humano reconhecendo a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento e a articulação das responsabilidades entre a família, a sociedade e o Estado para a sua realização por meio de políticas sociais públicas. Diante do novo contexto jurídico-político constituído a partir da incorporação da Doutrina da Proteção Integral, a violação dos direitos infanto-juvenis assumiu uma nova centralidade. No entanto, a exploração do trabalho de crianças e adolescentes ainda obtém destaque no cenário brasileiro, caracterizadas como uma das principais violações de direitos humanos. Segundo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em pesquisa realizada no ano de 2004 havia 5,4 milhões de crianças e adolescentes sendo explorados no trabalho. Do universo pesquisado constatou-se que 48% destes pequenos trabalhadores não recebem qualquer remuneração pelo trabalho realizado. SCHARTZMAN anota que [...] na Região Sul quase metade da população de crianças e adolescentes cujos pais trabalham em atividade agrícola também trabalha nessa atividade, percentagem muito superior à Região Nordeste. Como a renda familiar na área rural do Sul correspondem ao dobro da renda no Nordeste, fica claro que existem diferenças sociais e culturais importantes que explicam esse padrão de trabalho de crianças e adolescentes, que não é conseqüência exclusiva da pobreza. (2001, p. 07) Segundo GRUNSPUN, no Brasil ―[...] milhões de crianças são exploradas no trabalho, muitas vezes como braços das famílias contratadas. O trabalho agrícola e serviços domésticos absorvem a maiorias das crianças que trabalham.‖ (2000, p. 21) LIMA anota que O trabalho precoce ocorre em nosso país como em diversos outros países do mundo por diferentes razões. Entre esses motivos à concentração de renda nas mãos de poucos e a pobreza que delas resulta, e a necessidade de complementar a renda familiar, se constitui no mais importante e freqüente fator, conforme comprovam as pesquisas realizadas no Brasil e no mundo. (2000, p. 17) Os estudos e pesquisas e realizados pelo Instituto Ócio Criativo também constatam que o trabalho precoce é o principal fator determinante pela evasão escolar e pela reprodução do ciclo intergeracional de pobreza. (2003, p. 07) Crianças e adolescentes trabalhadores dificilmente atingem oito anos de escolaridade. Para o rompimento do ciclo intergeracional de pobreza são necessários ao menos onze anos de escolarização. Se o Brasil não constituir, com urgência, um conjunto de políticas sociais públicas capazes de reverterem este ciclo vicioso estar-se-á condenando milhões de crianças e adolescentes a um processo de exclusão estrutural.(2003, p. 15) Por isso, a legislação brasileira estabelece limites de idade mínima para realização de trabalho como forma de proteger o desenvolvimento pleno das crianças e dos adolescentes. A Constituição da República Federativa do Brasil prevê o em seu art. 7 , XXXIII, ―a proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) e de qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 (quatorze) anos.‖ O Estatuto da Criança e do Adolescente ainda prevê, no art. 67, a proibição dos trabalhos penosos, bem como, daqueles realizados em locais prejudiciais à formação e ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social ou realizado em horários e locais que não permitam à freqüência à escola a todas as crianças e adolescentes. Portanto, há no ordenamento jurídico brasileiro um conjunto de normas protetivas contra a exploração laboral, que estabelecem limites da idade mínima para o trabalho, tanto para crianças, quanto para adolescentes, sendo, portanto, inadequada a utilização da expressão trabalho infantil para abarcar este universo conceitual. Daí, a necessidade de constituir o conceito jurídico de trabalho precoce, considerado como todo trabalho realizado pela criança ou adolescente antes dos limites protetivos da idade mínima para o trabalho no Brasil. Mas segundo OLIVEIRA, [...] enganam-se aqueles que vêem nas normas jurídicas que definem as idades mínimas apenas seus aspectos negativos. Elas resguardam outros valores, outros direitos e têm especial relevância porque assinalam um marco importante: abaixo da idade mínima o trabalho deve ser eliminado. Preserva-se assim O DIREITO DE SER CRIANÇA, direito ao lazer, à educação, à pré-escola, direito a ser usufruído por toda a população infanto-juvenil e, não apenas, por uma minoria privilegiada. (1994, p. 08) É notável que a partir da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente a exploração do trabalho precoce recebeu maior atenção, sendo considerado como uma bárbara violação de direito fundamental da criança e do adolescente. Daí o estabelecimento de uma nova normatividade protetivas como forma de provocar mudanças sociais profundas em relação ao tema. Em que pese à distância existente entre lei e realidade, percebe-se um início de ações voltadas a proteção efetiva dos direitos infanto-juvenis frente à exploração no trabalho, ao menos no âmbito da garantia dos direitos. ―Para o sociólogo Carlos Amaral, há duas saídas para reduzir os índices de trabalho infantil no país. Uma é o crescimento econômico e a maior distribuição de renda. A outra é a maior efetividade das ações institucionais [...]‖ (PERES, BENEDICTO, 2002, p. 109) No entanto, mais do que apenas reduzir ou controlar os indicadores sociais das crianças e adolescentes trabalhadores uma vez que se reconhece como estratégia histórica de disciplinamento das classes excluídas, pois sua incorporação no mundo do trabalho serve de estratégia de manutenção de um poder dominante, produzindo uma cultura que subtrai o lazer e o desenvolvimento humano de crianças e adolescentes como demonstram os estudos realizados por SILVA. (2000) Visto sob outro ângulo, a transição histórica entre a exploração do trabalho precoce e o direito ao exercício do ócio criativo requer uma reflexão sobre o real papel do trabalho como elemento constitutivo do ser humano e do ócio como oportunidade de desenvolvimento integral. A obra de Paul LAFARGUE, sobre o Direito à Preguiça, traz elementos desmistificadores da supervalorização do trabalho na sociedade industrial, como pode se notar: ―os gregos dos tempos áureos também só sentiam desprezo pelo trabalho: apenas aos escravos era permitido trabalhar; o homem livre conhecia apenas os exercícios corporais e os jogos da inteligência.‖ (1999, p. 65) Ou em suas denúncias Uma estranha loucura apossa-se das classes operárias das nações onde impera a civilização capitalista. Esta loucura tem como conseqüência as misérias individuais e sociais que, há dois séculos, torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor pelo trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada até o esgotamento das forças vitais do indivíduo e de sua prole. (LAFARGUE, 1999, p. 63) RUSSEL, em seu Elogio ao Ócio também faz uma crítica profunda do papel do trabalho na sociedade capitalista industrial, nos seguintes termos ―quero dizer, com toda a seriedade, que muitos malefícios estão sendo causados no mundo moderno pela crença na virtude do trabalho, e pela convicção de que o caminho da felicidade e da prosperidade está na redução organizada do trabalho.‖ (2002, p. 65) Percebendo que o trabalho essencialmente subtrai o lazer enfatiza que A moderna técnica trouxe consigo a possibilidade de que o lazer, dentro de certos limites, deixe de ser uma prerrogativa de minorias privilegiadas e se tornem um direito a ser distribuído de maneira equânime por toda a coletividade. A moral do trabalho é uma moral de escravos, e o mundo moderno não precisa da escravidão. (RUSSEL, 2002, p. 27) É neste contexto que o sociólogo italiano MASI, propõe o conceito de ócio criativo como a oportunidade de compatibilização entre trabalho, estudo e jogo ou lazer. Deste modo destaca que A plenitude da atividade humana é alcançada somente quando nela coincidem, se acumulam, se exaltam e se mesclam o trabalho, o estudo e o jogo (...); isto é, quando nós trabalhamos, aprendemos e nos divertimos, tudo ao mesmo tempo. Por exemplo, é o que acontece comigo quando estou dando aula. E é o que eu chamo de ‗ócio criativo‘, uma situação que, segundo eu, se tornará cada vez mais difundida no futuro. (MASI, 2000, p. 148) O reconhecimento que o ócio é necessário à produção de idéias e ao desenvolvimento da criatividade, traz rupturas na concepção do trabalho como elemento construtor da humanidade. Se o paradigma do desenvolvimento humano e a doutrina da proteção integral destacam que para a constituição da integralidade do ser humano, principalmente de crianças e adolescentes, são necessários o desenvolvimento da educação, do lazer, da cultura, da saúde, da convivência familiar e comunitária, ou seja, de um universo de oportunidades voltadas à globalidade do ser humano, não deveria ser apenas o trabalho o elemento constitutivo da identidade humana. Então, a relação trabalho precoce como constituinte do ser-trabalhador entra em contradição com a relação de proteção integral como configurador do elemento ser-humano, estabelecendo relações políticas, econômicas e culturais da exclusão. Surge daí, a compreensão de uma concepção alargada de ócio criativo, ou seja, que não compatibilize apenas trabalho, estudo e lazer, mas que ampare o desenvolvimento humano e integral das crianças e dos adolescentes. Reconhecendo seus direitos fundamentais como referências estratégicas para a construção do ócio criativo como um princípio essencial de desenvolvimento humano. A inter-relação entre as concepções de LAFAGUE, RUSSEL, MASI e os princípios da Doutrina da Proteção Integral e o Paradigma do Desenvolvimento Humano abrem um caminho desafiador para todos nós, qual seja, a garantia dos direitos da criança e do adolescente ao pleno desenvolvimento. REFERÊNCIAS AMARAL E SILVA, Antonio Fernando do. O Estatuto, o novo Direito da Criança e do Adolescente e a Justiça da Infância e da Juventude. In: SIMONETTI, Cecília, BLECHER, Margaret, MENDEZ, Emilio Garcia (Orgs.). Do avesso ao direito. São Paulo: Malheiros/UNICEF, 1994. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1998. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Natureza e implantação do novo Direito da Criança e do Adolescente. In: PEREIRA, Tänia da Silva (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90: estudos sócio-jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. GRUNSPUN, Haim. O Trabalho das Crianças e dos Adolescentes. São Paulo: LTr, 2000. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese dos Indicadores Sociais 2003. Brasília: IBGE, 2004. INSTITUTO ÓCIO CRIATIVO. O Trabalho Precoce. Lauro Müller: mimeo, 2003. LAFARGUE, Paul. Direito à Preguiça. São Paulo: Hucitec/UNESP. 1999. LIMA, Consuelo Generoso Coelho de. Trabalho Precoce, Saúde e Desenvolvimento Mental. In: MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Proteção Integral para Crianças e Adolescentes: fiscalização do trabalho, saúde e aprendizagem. Florianópolis: DRT/SC, 2000. OLIVEIRA, Oris. O Trabalho Infantil. Brasília: OIT, 1994. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional dos Direitos da Criança, 1989. PERES, Andréia, BENEDICTO, Nair. A Caminho da Escola: 10 anos de luta pela erradicação do trabalho infantil no Brasil. 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