administração e pol. publicas

Transcrição

administração e pol. publicas
Administração e Políticas Publicas de Saúde, Educação e Trabalho
Administração Geral
A atividade administrativa é caracterizada por seu traço multicientífico e multidisciplinar. Quase tudo
é administração. Qualquer trabalho que seja ralizado por duas ou mais pessoas, que tenham graus
de
poder
diferentes,
contém
elementos
de
administração.
(p.
9)
De nada adianta ter conhecimento, deter ou dominar, uma técnica se ao mesmo tempo não estiver
disponível uma habilidade de gerenciar essa técnica e esse conhecimento, ou seja, administrá-lo. (p.
12)
O que dificulta o enquadramento teórico da Administração é o fato de ela transitar livremente entre o
senso comum e as teses de mestrado e doutorado. A Administração é praticada não só entre
aqueles que possuem formação acadêmica específica, como também é possível encontrar em
diversas organizações administradores que não são formados e contam somente com o prática.( p.
12/13)
Encarar a Administração, como um corpo de conhecimentos dotados de um objeto (próprio) de
estudos, é requisito que a qualifica como ciência. (p. 13) O principal meio de acesso a ciência
administrativa é através da Teoria Geral da Administração, que resultou de uma imensa produção de
livros sobre Administração. (p. 13)
A Teoria Geral da Administração (TGA) corresponde a um compêndio das várias visões da gestão
empresarial que surgiram a partir da Revolução Industrial. Foi nessa época que a empresa foi
institucionalizada, como uma organização. (p. 17)
Uma das primeiras abordagens de administração, é a abordagem clássica, que inclui a
Administração científica, idealizada pelo engenheiro Taylor (1856-1915). (p. 17) Para Taylor, tudo era
uma questão de tornar perfeita a execução de cada tarefa. As condições para isso incluiriam desde a
absoluta separação das fases de planejamento, concepção e direção das tarefas de execução até o
emprego de um determinado tipo de operário, segundo suas palavras, "tão forte e tão imbecil, um
homem-boi". (p. 18)
Henry Fayol foi outro engenheiro que inscreveu-se como expoente da abordagem clássica da
Administração. Fayol passou a conceber a gestão da empresa a partir de determinadas funções
básicas: técnicas; comerciais; financeiras; de segurança; contábeis e administrativas. (p. 19)
A teoria de Fayol, representou um avanço em relação a teoria de Taylor, pela sua tentativa de pensar
a empresa como um todo, ao contrário da ênfase na tarefa, típica do taylorismo. A teoria clássica
acrescenta um novo elemento a TGA: a estrutura da empresa, o que representou uma ampliação dos
horizontes até então estabelecidos. No entanto, a empresa ainda era vista sob extremo racionalismo.
Ninguêm até aí havia pensado que a empresa é contituída também por gente. (p. 20)
A hegemonia da mentalidade taylorista suscitou entre os trabalhadores uma insatisfação crescente
com as condições desumanas de trabalho. (p. 20) Devido a esse descontentamento um grupo de
pesquisadores passou a investigar numa empresa as condições ambientais que otimizassem a
produtividade. A pesquisa ficou conhecida como Experiência de Hawthorne. Descobriu-se que
qualquer variação ambiental aumentava a produtividade. (p. 21)
Apesar da experiência ter deixado mais perguntas que respostas, ela serviu para mostrar que as
relações humanas no trabalho eram essenciais para a Administração. (p. 21) Assim, deu-se o
surgimento da Escola das Relações Humanas, que se caracterizou por enfatizar a adaptação do
homem à organização e vice-versa. (p. 22)
A principal figura dessa corrente que ficou conhecida como Escola Neoclássica foi Drucker (1909-).
Sua proposta consistia em espanar a poeira da abordagem clássica, tornando-a compatível com uma
nova realidade social, já marcada por uma acirrada concorrência entre as empresas. (p. 23)
A teoria neoclássica propõe a valorização do administrador, idealmente um elemento eclético capaz
de catalisar fundamentos de outras teorias e visualizar com clareza, na sua ação, as dimensões da
eficiência e da eficácia. A eficiência é definida como a capacidade da realização de uma tarefa,
porém sob o questionamento da importância da realização desta tarefa.(p. 23/24)
Esta escola tem como ponto de partida e de chegada a eficácia. O que importa é o que se quer
atingir, o resultado esperado. A maneira como se processará essa operação não é enfatizada. Mais
importante do que fazer as coisas corretamente é realizar as coisas essenciais ao cumprimento dos
objetivos. A ênfase na estrutura da teoria clássica e o espírito paternalista da Escola de Relações
Humanas deixam de ser fins em si mesmos para se constituírem em fatores de uma dimensão maior:
consecução dos objetivos traçados. (p. 24)
O planejamento estratégico é um ítem muito importante dentro de uma empresa. O planejador
estratégico é capaz de moderar a sua tara pelo lucro do trimestre e gastar parte do seu tempo imerso
num processo de como se antecipar às tendências sociais e fazer as coisas acontecerem sob a
menor incerteza possível. Num primeiro plano define a missão da empresa; depois estabelece os
objetivos, que são programas de trabalho para indicar o que será feito, quando e onde e por fim as
metas, com a quantificação da produção planejada e do lucro esperado. (p. 26)
Nos anos 40 passa a perceber-se a teoria da burocracia dentro da administração. O arcabouço
teórico constituído até então era insuficiente para fazer face a todas as dificuldades encontradas na
gestão empresarial. A gerência científica, de Taylor, reduzia reduzia tudo a uma questão de realizar
de maneira ótima as tarefas. A abordagem humanística só tinha olhos para o aperfeiçoamento das
relações sociais no trabalho, em prejuízo de todos os demais aspectos.(p. 28)
Max Weber, partindo da premissa de que o traço mais relevante da sociedade ocidental, no século
XX, era o agrupamento social em organizações, procurou fazer um mapeamento de como se
estabelece o poder nessas entidades. Construiu um modelo ideal, no qual as organizações são
caracterizadas por cargos formalmente bem definidos, ordem hierárquica com linhas de autoridade e
responsabilidade bem delimitadas, seleção de pessoal à base de qualificações técnicas ou
profissionais, normas e regulamentos para os atos oficiais, possibilidade de carreira e segurança no
cargo. (p. 28)
Assim, Weber cunhou a expressão burocracia para representar esse tipo ideal de organização,
porém ao fazê-lo, não estava pensando se o fenômeno burocrático era om ou mal, simplesmente
estava tentando traçar o seu perfil. (p. 28/29)
Entre as críticas que se fizeram à Escola de Relações Humanas, uma era a de que o seu caráter
predominantemente prescritivo tirava-lhe o status de uma ciência social substanciada por um rigor
experimental aceitável. Vários psícólogos, dentre os quais pode-se citar Lewin, Maslow, Herzberg,
McGregor, desenvolveram diferentes abordagens para explicar o comportamento humano no
trabalho. Desta forma teve origem a Escola Behaviorista. (p. 31-34)
Por volta de 1960, a escola behaviorista já havia dado novos contornos à teoria das relações
humanas, mostrando que era possível, por meio de experimentos científicos na área da psicologia
organizacional, mapear as relações sociais dentro de um grupo de indivíduos. De posse desse
instrumental teórico, mais uma vez a Administração oscila entre a investigação realista e o receituário
idealista. Surge o movimento do Desenvolvimento Organizacional, ou DO, com a idéia de intervir na
organização, em busca de uma melhoria no rendimento do trabalho grupal associado com a
perspectiva de uma elevação do nível de qualidade de vida nesse ambiente.(p. 34)
Na abordagem sistêmica da organização, a empresa é como um organismo vivo, cuja inércia o
impele para o desaparecimento e a morte. Mesmo na sua fase ascencial, suas energias, idealmente,
são despendidas para garantir-lhe s sobrevivência. Daí que a idéia de intervenção na organização
trazida pelo DO acabou associada a uma tentativa de desvendar a crise permanece que acompanha
a organização desde o seu surgimento.(p.35)
A DO se encaixa na empresa que apresenta um cenário carente de mudanças, incapaz de se autodiagnosticar e formular um programa de renovação, abre suas portas a um agente de mudanças, que
atue como um "facilitador" das mudanças necessárias. Essa figura é o consultor. (p. 36/37)
Existem dois tipos de consultorias, a de recursos e a de procedimentos. No primeiro caso, o
consultor é contratado para resolver um problema específico e nisso empenha seus conhecimentos
técnicos requeridos para aquele fim. Já o consultor de procedimentos reveste-se do papel de um
educador imbuído da missão de levar a empresa do cliente a tornar-se capaz de auto-diagnosticar-se
e pôr em prática as mudanças esperadas. (p. 38)
Em 1956, um biólogo alemão chamado Ludwig von Bertalanffy publicou um livro com o nome de
Teoria Geral dos Sistemas. Pretendia mostrar que um determinado modelo de funcionamento dos
sistemas poderia ser aplicado universalmente às ciências em geral, da física às humanidades. Essa
teoria logo estendeu suas influências para as diversas áreas do conhecimento, até mesmo para a
Administração. (p. 40)
Apesar da multidisciplinaridade inerente à ação da empresa, ela era vista até então como um sistema
fechado, com as atenções da gerência voltando-se para ela mesma. Com a teoria geral dos
sistemas, percebe-se que a empresa é um sistema aberto, que faz parte de um ambiente mutante,
constituído de outros sistemas, e que ela, a empresa, constitui-se de subsistemas. (p. 40)
O matemático Norbert Wiener (1894-1963), foi quem formulou o conceito daquilo que seria a
principal ferramenta da visão holística das ciências: a cibernética. Seu propósito é a busca das
propriedades globais de um sistema, resultantes do fato de tratar-se de um conjunto estruturado que
ultrapassa a simples soma de suas partes (sinergia). (p. 43)
Um sistema mantém-se em funcionamento enquanto é capaz de processar entradas, produzindo
saídas. Para isso, deve ser capaz de utilizar os resultados de seu próprio desempenho como
informação auto-reguladora, ajustando a si mesmo como parte do processo em andamento. Essa
capacidade, ou habilidade, foi chamada por Wiener de Feedback e cedo seu uso foi disseminado em
várias áreas de atividade. (p. 43)
Uma idéia que intrigava Wiener eram as semelhanças na maneira como funciona tanto um animal
quanto uma máquina auto-regulável. Ambos, vistos como um sistema, precisam de entradas,
processam estas entradas, transformando-as em saídas como produtos. Nesse processo autoregulam suas partes quando uma disfunção começa a surgir. Essa capacidade de perceber uma
disfunção e eliminá-la, para a cibernética, é a informação. (p. 43/44)
Como esse modelo de funcionamento se aplica também para organizações sociais, a difusão do uso
do computador na empresa leva à ocorrência de um fenômeno já contemplado pela cibernética: em
que instâncias o homem, depois (ou antes? de controlar o computador é por ele controlado? (p. 44)
Em princípio, a missão do computador seria poupar o homem de elevados volumes de trabalho. Mas
isso não é simples assim. O homem sempre interagiu com a natureza percebendo as suas infinitas
gradações e sutilezas. Mas o computador nega ao homem essas séries contínuas. O homem cria
máquinas para que estas lhe permitam alcançar diversos objetivos, mas o custo disso é que ele, na
sua inteireza, vê-se obrigado a adaptar-se a elas. (p. 44/45)
É na Administração que a informática encontra o seu principal meio de difusão e, mais que isso, o
meio de operar esse processo de interação "do homem para a máquina" mas não da "máquina para
o homem". Esse fenômeno não teria importância maior se o computador não tivesse se tornado um
entidade meio divinizada depois de seu uso ter sido difundido em nível massivo. Em outros tempos, a
mercadoria, a máquina, o automóvel tornaram-se fetiches. Agora é a vez do computador. (p. 45)
Verifica-se nas teorias administrativas, desde as propostas apresentadas por Taylor, uma evolução
para modelos mais elaborados, para uma busca de conceitos que contemplem a organização em
toda a sua complexidade. A teoria dos sistemas, trazendo em seu interior a cibernética, representa
um passo decisivo nesse sentido. A caminhada não parou por aí. A partir dos primeiros anos da
década de 50 começaram a surgir estudos que resultaram na teoria da contingência, que é uma
espécie de estado a arte atual da Administração. (p. 46)
A teoria contingencial pretende contemplar todas as bandeiras que surgiram desde o taylorismo e dar
um conformação ao estilo administrativo em função de cada realidade específica. (p. 47)
A abordagem contingencial enfatiza o ambiente e a adequação da empresa a ele. Este é um
imperativo básico. A empresa precisa fazer isso todos os dias porque o ambiente muda todos os
dias. Adaptar-se ao ambiente, entre outras graves implicações, exige mudanças na estrutura da
empresa, que demandam mexer com gente. E isso é complicado. É possível que para se tornar mais
ágil seja necessário dar mais responsabilidade e autoridade aos escalões inferiores, isto, por sua
vez, pode acarretar perda de poder e insegurança aos gerentes e demais pessoas que exercem
cargos mais altos dentro da empresa. (p. 49)
I. O que é Política?
Somos todos políticos, pois a política não é apenas a disposição de governar uma cidade, um Estado
ou um país. A política está onde existem, no mínimo, duas pessoas que precisam tomar decisões
para o bem comum. A política está onde existem relações de poder envolvidas na tomada de
decisão. Por isso, a política está dentro de casa, na relação entre marido e esposa, na relação de
pais e filhos, onde todos, diariamente, precisam expor seus pontos de vista e tomar decisões que
busquem o bem de todos. A política está na igreja, na escola, no trabalho e entre os vizinhos.
A palavra política, no sentido original não se refere apenas aos governos. Ela é derivada do grego
antigo (politéia) que indicava todos os procedimentos relativos a pólis (cidade). Por extensão, podia
significar tanto o governo, quanto às sociedades, comunidades e coletividades e outras definições
referentes à vida urbana.
Na Grécia Antiga, em meados do século VII a.C, os cidadãos livres participavam das assembléias
para discutir os problemas comuns a todos e tomar decisões destinadas a solucionar estes desafios.
Deste costume, surgiu à democracia (demos = povo e kratos = autoridade), que desde a sua origem
foi uma forma de organização que reconhecia a cada um dos membros da comunidade o direito de
participar da direção e gestão dos assuntos públicos. Nos sistemas democráticos o poder deveria
estar nas mãos do povo. As leis no Estado democrático deveriam expressar a vontade do povo, e
não os caprichos dos reis, ditadores, militares, líderes religiosos ou partidos políticos.
À medida que as sociedades foram se tornando complexas, a participação dos cidadãos nas
decisões públicas passou a se dar pelo sistema indireto ou representativo. Este sistema partia do
princípio que cada cidadão governaria seu município, Estado ou país através de seus
representantes, escolhidos através do voto.
Em nosso país, vivemos uma inversão de papéis. O povo que deveria governar através de seus
representantes, é governado por aqueles que o representam. Para muitos, eleger um político é darlhe um emprego, quando na verdade é fazê-lo seu representante.
Na verdade, o eleitor continua sendo o verdadeiro titular do mandato, e não o político eleito. O eleitor
pode destituí-lo, e não o político descartar o eleitor. O candidato eleito será a sua voz durante o
mandato.
II. O que são Políticas Públicas?
O termo Política Pública está relacionado com o que acontece em nosso meio eclesiástico com a
expressão Missão Integral. A expressão Missão Integral é redundante. A Bíblia não reconhece uma
missão que seja parcial. Mas como a igreja construiu conceitos de missão relacionados apenas a
alma, à espiritualidade e à fé, esquecendo-se do corpo e da vida, foi necessária uma expressão que
chamasse a atenção para o fato de que Missão era mais do que a igreja realizava. Então, agregouse a palavra integral, que significa completa; ampla; e para todo o ser humano.
Da mesma forma acontece agora com os espaços de formulação e implementação de políticas
públicas. Por diversas razões, elege-se um militar para cuidar dos interesses dos militares, um
empresário para cuidar dos interesses dos empresários, um médico para cuidar dos interesses dos
médicos (e parece que não dos pacientes), um evangélico para cuidar dos interesses dos
evangélicos.
Nesta prática, a maior fatia da sociedade brasileira ficou de fora, pois os pobres não conseguem
eleger um pobre para cuidar dos interesses dos pobres.
Como a política está privatizada no Brasil e cada um cuida de interesses de seu grupo, precisamos
agregar a palavra política à expressão pública, para que todos compreendam que as políticas de
saúde, educação, segurança, entre outras, devem ser voltadas para todas as pessoas.
Neste sentido, "políticas públicas" não é o que o governo realiza, mas o que é feito por todos em
favor de todos. É público, não a partir de quem faz a tarefa, mas a quem ela se destina.
Assim, política pública de acesso à água pode ser encampada por uma igreja, uma ong, ou um
governante municipal, e sempre será uma política pública, pois estará tratando do direito de todo o
cidadão e cidadã de ter acesso à água de qualidade e em quantidade suficiente para a sua vida e a
vida dos seus.
PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Para que se compreenda com adequação o sentido e a prática das políticas públicas, ou seja, o que
elas são e para que servem, primeiro serão apresentados os conceitos-chave de toda atividade de
planejamento gerencial (formular políticas públicas é determinar os rumos que as ações futuras
tomarão); depois será apresentada a lógica do planejamento. Optou-se por este procedimento para
facilitar tanto a compreensão deste documento quanto para auxiliar na das atividades que serão
desenvolvidas para que cada órgão do Estado esteja provido de um modelo de gestão logístico
adequado para o seu funcionamento.
O que é política?
As políticas, no processo gerencial, têm a finalidade de ordenamento de ações para a consecução de
objetivos pretendidos pelas organizações. Neste ordenamento entram em jogo os objetivos
pretendidos, o processo de tomada de decisão, as orientações normativas (o que pode e o que não
pode ser feito) e os meios (recursos) disponíveis e sua forma de utilização. A idéia de ordenamento
é, portanto, a maneira através da qual os objetivos devem ser alcançados.
Quadro 01 – Definições de política
Autor
Definição
Park (1997, p. 238)
São fins, metas, princípios, propósitos ou idéias em longo
prazo, amplos e harmônicos, de uma empresa
Pereira
(2004,
p. São orientações para a tomada de decisão
169-170)
Chiavenato (1999, p. São
230)
afirmações
genéricas
baseadas
nos
objetivos
organizacionais e visam oferecer rumos para as pessoas
dentro da organização
Daft (1999, p. 299)
É o uso do poder para influenciar decisões de modo que se
obtenham esses resultados
Moraes (2001, p. 71)
Políticas são orientações para a tomada de decisão
Bunge
286)
(2002,
p. É um conjunto de princípios gerais acerca dos fins e dos
meios de uma organização formal
Fonte: elaborado pelo autor.
PARK (1997, p. 238), por exemplo, explica que as políticas são espécies de fins, metas, princípios,
propósitos ou idéias. Essa variedade de entendimento é o que faz com que o termo política (e seus
derivados, como as políticas públicas) não apresente uma definição conceitual consensual. De fato,
uma política pode ser um fim a ser alcançado; um meta, que nada mais é do que uma forma
específica de objetivo; um princípio enquanto filosofia a ser seguida para o desenvolvimento de uma
determinada atividade ou alcance de objetivo; propósito, no sentido de proposição que deve ser
obedecida; ou idéia que norteará ações. Não importa o entendimento, duas condições devem ser
obedecidas: para ser política, os fins, metas, princípios, propósitos ou idéias têm que estar ligadas ao
longo prazo e não podem ser contraditórias ou antagônicas entre si.
A idéia de política enquanto ordenamento também é compartilhada por PEREIRA (2004, p. 169-170)
e MORAES (2001, p. 71), mas com vinculação ao processo de tomada de decisão, ou seja, é uma
maneira através da qual gerentes e seus subordinados vêem um objetivo refletido, que pode ser
tanto uma norma que não pode ser infringida ou orientações de como se deve proceder diante de
uma determinada situação. Subjaz a esta definição, portanto, a concepção de um julgamento que os
atores devem fazer diante de uma determinada situação, capaz de facilitar ou dificultar a ação ou o
alcance do objetivo pretendido. Sob a luz da política organizacional, os agentes terão subsídios
suficientes para decidir a melhor forma de agir, que é justamente aquela que qualquer pessoa, diante
da mesma situação, agiria exatamente da forma como um determinado ator agiu. É por isso que se
fala, por exemplo, que as políticas são definidas de maneira ampla, para permitir o julgamento,
enquanto que as normas e rotinas devem ser detalhadas, devem ser obedecidas ao pé da letra.
Quando se afirmar que as políticas são amplas é porque representam afirmativas genéricas cuja
validade engloba a organização como um todo. CHIAVENATO (1999, p. 230) mostra que, ao
envolver toda a organização, as políticas têm a capacidade de fornecer rumos, caminhos,
alternativas, que expandem a capacidade de ação das pessoas. Por incrível que pareça, ao
seguirem uma política, as pessoas de uma organização não têm sua liberdade reduzida; ao
contrário, têm-na ampliada, porque ser livre é ser capaz de fazer o máximo possível dentro dos
ditames legais, o que envolve a idéia de inteligência. Desta forma, ao definirem os limites ou
fronteiras das ações nos quais as pessoas podem tomar suas decisões, as políticas servem de guias
pra que diferentes pessoas diante de situações semelhantes tenham decisões similares.
DAFT (1999, p. 299) apresenta uma definição diferente das apresentadas até aqui, mas que é
convergente com a idéia geral de política: o uso do poder para influenciar decisões. O que é diferente
nesta concepção? O poder como ferramenta essencial da ação – ou da coerção para agir. Mas
inclusive esta concepção diferente já está contida nas explicações acima porque o uso do poder está
relacionado ao alcance de resultados, é uma relação meios (o poder) e fins (os objetivos
pretendidos), exatamente da forma como também a descreve BUNGE (2002, p. 286). Desta forma, a
política enquanto afirmativa genérica ou filosofia organizacional força os agentes a agir de
determinadas formas que não firam a orientação por ela expressa. Isso é suficiente para mostrar que
não há, aqui, conflito entre a idéia apresentada por Daft e as expostas anteriormente.
Política é um tipo de ordenamento que deve ser seguido para que
determinadas ações possam ser desenvolvidas ou objetivos possam ser
alcançados a contento
Como pode ser compreendido a partir das análises acima, política é um tipo de ordenamento que
deve ser seguido para que determinadas ações possam ser desenvolvidas ou objetivos possam ser
alcançados a contento. Sua finalidade é facilitar o alcance dos objetivos ao prover as pessoas com
orientações acerca do que deve ser feito ou o que deve ser evitado. Esta idéia facilitará o
entendimento das políticas públicas, a seguir analisadas.
O que são políticas públicas?
AZEVEDO (2003), de forma genérica, diz que tudo o que um determinado governo faz ou deixa de
fazer é política pública. De acordo com a teoria da ação, a inação quando é objeto de decisão,
também é ação, ou seja, aquele que, deliberadamente, não age, age. O que está por trás desta
definição é o fato de que toda ação está relacionada com o alcance de pelo menos um objetivo, de
maneira que não se age sem uma finalidade. A conseqüência, portanto, também é admitida como um
dos elementos do cálculo da ação, de maneira que o agente tem que se responsabilizar pelos
resultados dos seus atos. Do ponto de vista das políticas públicas, as ações e inações do governo
geram resultados esperados ou não sobre os quais o agente (o governo) tem que se responsabilizar.
O caráter finalístico das políticas públicas explica, por exemplo, o seu direcionamento para o alcance
de objetivos pretendidos pelos governo. Em comparação com as leis, como o faz BUCCI (2001, p.
11), as políticas públicas são ―forjadas‖ em direção a alvos determinados, enquanto que as leis são
gerais e abstratas. Nota-se aqui, também, um diferencial em relação à política: a política é geral e
abstrata, como as leis, o que, no fundo, faz com que uma política seja também uma lei, conforme
explicado na seção anterior. Também é possível compreender que quando alguém se refere a
políticas públicas está imprimindo um caráter de finalidade à sua expressão, ou seja, está-se
referindo a uma ação, digamos, mais operacional da lei.
Quadro 02 – Definições de políticas públicas
Autor
Definição
Azevedo (2003)
É tudo o que um governo faz e deixa de fazer, com todos os
impactos de suas ações e de suas omissões
Bucci (2001, p. 11)
São encaminhamentos forjados para a realização de
determinados objetivos
Dworkin
(1997,
p. São proposições que descrevem objetivos
90)
Comparato (1997, p. São
343)
programas
de
ação
governamental
voltados
à
concretização de direitos
Fonte: elaborado pelo autor.
É em direção a esta concepção de políticas públicas enquanto direcionamento de ações para o
alcance de objetivos que DWORKIN (1997, p. 90) expõe sua definição. Para este autor, as políticas
públicas são propostas de ações que descrevem objetivos a serem ou não buscados; em termos
mais amplos, as políticas públicas, quando propostas, descrevem e reconhecem a existência de
direitos que precisam ser garantidos. Por exemplo, se é proposta uma política pública de ―garantir à
população de até quatorze anos o acesso ao ensino fundamental‖, esta mesma política só é proposta
porque, antes, é reconhecido o direito ao acesso à educação. Ora, para que aquela política, aquela
orientação de ação cuja finalidade (objetivo) é assegurar a todos a educação fundamental seja
concretizada, há a necessidade de se planejar ações, escolher objetivos, disponibilizar recursos,
enfim, fazer toda uma programação ―voltada para a concretização desse direito‖, no falar de
COMPARATO (1997, p. 343). Por isso, políticas públicas são sinônimos de programas de ação
governamental.
Políticas públicas são o conjunto de diretrizes prescritas em lei cuja finalidade
é garantir que os direitos do cidadão sejam garantidos e promovidos
Política Pública (proposta) de Logística do Estado: Modernização da Estrutura e
Infra-estrutura Logística Estadual.
Políticas públicas são o conjunto de diretrizes prescritas em lei cuja finalidade é garantir que os
direitos do cidadão sejam garantidos e promovidos. Isso significa que não há políticas públicas que
não sejam formalizadas e que não estejam direcionadas para que os direitos dos cidadãos estejam a
todos eles assegurados. Propor políticas públicas, portanto, é identificar os direitos que serão
assegurados e promovidos para, posteriormente, serem objeto das formalidades legais.
O que é missão?
A definição de missão é consensual na literatura organizacional e gerencial. É a razão da existência
de uma organização. Uma organização é todo agrupamento humano que tenha pelo menos um
objetivo em comum. Quando as pessoas se reúnem para fazer alguma coisa, essa reunião não é
casual, tem um motivo maior que dão coesão e unidade à união. É a este motivo maior, a razão de
existência da organização, que a literatura denomina Missão.
Quadro 03 – Definições de missão
Autor
Definição
Maximiano (2004, p. É um objetivo conceitual, que define o propósito ou negócio
422)
Wright,
de uma organização
Kroll
e É o motivo da existência da organização
Parnell (2000, p. 92)
Pereira
(2004,
p. É a descrição dos valores da organização, suas aspirações e
168)
sua razão de ser
Chiavenato (1999, p. É a finalidade ou o motivo pelo qual a organização foi criada e
247)
para o que ela deve servir
Daft (1999, p. 32)
É o objetivo básico de uma organização
Moraes (2001, p. 70)
É a razão de existência da organização
Fonte: elaborado pelo autor.
MAXIMIANO (2004, p. 422) mostra que a missão é uma forma de objetivo, do tipo conceitual. Os
objetivos conceituais são extremamente abstratos, mas têm, por mais paradoxal que isso possa
parecer, um sentido prático perfeitamente compreensível. Uma organização cuja missão é ―saciar a
fome do mundo‖ diz ao seu ambiente de operação muitas coisas, como ―estar no mundo todo‖ ou
―ser capaz de atingir o mundo todo‖. A abstração, aqui, é decorrente da amplitude que o conceito (o
que é expresso em palavras) alcança; quanto mais amplo, mais abstrato – mas, ainda assim,
bastante compreensível porque as missões definem o propósito ou o negócio de uma organização.
WRIGHT, KROLL e PARNELL (2000, p. 92) vão um pouco além quando mostram que a missão é o
motivo da existência da organização e que as missões são diversas. Há a missão da corporação, da
organização como um todo, também chamada de ―missão corporativa‖ e as missões das unidades
negócios desta mesma organização. A razão é simples: toda organização tem um negócio, mesmo
que ela seja formada de apenas duas pessoas. Se uma empresa decide vender papel e tirar cópias,
são esses os seus negócios e, assim, cada um tem uma razão de existência, uma missão; da
mesma forma, uma Secretaria de Estado, com várias gerências, também tem sua missão corporativa
(da Secretaria de Estado) e várias missões de suas unidades (Gerência de Logística de Serviços,
Gerência de Logística de Compras e Gerência de Logística de Patrimônio). Se uma determinada
unidade de negócios não tem uma finalidade, uma razão de existência, deve ser extinta.
As missões, portanto, descrevem ―os valores da organização, suas aspirações e sua razão de ser‖
(PEREIRA, 2004, p. 168; MORAES, 2001, p. 70; DAFT, 1999, p. 32). Um valor é tudo o que é objeto
de alta consideração em uma organização ou em uma unidade de negócios; as aspirações denotam
certos encaminhamentos, direcionamentos em relação ao futuro e que, por isso, explicam e dão
sentido à razão de ser da organização. Na missão estão contidos, portanto, os propósitos e os
escopos das operações que a organização realiza. A localiza Rent a Car considera que ―encantar os
clientes é um valor inquestionável nas suas operações,‖ buscar a excelência é sua aspiração ―, por
isso sua razão de ser é‖ alugar carros e administrar frotas ―; diante disso, sua missão não poderia ser
diferente do que‖Encantar clientes em aluguel de carros e administração de frotas, buscando a
excelência‖. O mesmo sentido é impresso na missão do MacDonald´s de ―Satisfazer o apetite do
mundo com bons alimentos, bem-servidos, a um preço que as pessoas possam consumir‖.
Missão é a razão de existência de uma organização
Missão da SEAD: Propor, normatizar, executar, avaliar e melhorar sistematicamente
as políticas e ações públicas, voltados para o alinhamento e integração estratégicas
e operacionais dos sistemas de gestão de pessoas, logística e desenvolvimento
organizacional, no âmbito do poder executivo estadual e em benefício da sociedade.
Missão do Programa de Qualidade do Estado: Promover a excelência da gestão
pública estadual, mediante a avaliação continuada das práticas de gestão e dos
resultados das organizações públicas estaduais e municipais.
Missão da Gestão Logística do Estado: Promover a modernização da gestão do
setor logístico, de modo a possibilitar o suporte necessário às ações finalísticas do
Poder Executivo Estadual e a racionalização da aplicação dos recursos públicos.
CHIAVENATO (1999, p. 247), na sua explicação de missão, mostra que toda organização tem uma
razão para a qual foi criada e que, conseqüentemente, a ela deve servir. Explica que toda missão
tem que responder a três perguntas: Quem somos nós?, O que fazemos? Por que fazemos o que
fazemos? No fundo, são estas três perguntas que devem estar na mente de toda e qualquer pessoa
que faz parte de uma organização para que ela compreenda e dê sentido às suas atividades
cotidianas: a missão tem essas duas finalidades.
O que é visão?
Apesar de não haver uma definição com o mesmo grau de consenso obtido para o termo ―missão‖, a
visão é um fenômeno que apresenta algumas características comuns, segundo a literatura
consultada. Duas são as principais: a idéia de imagem mental e a expressão de futuro. Visão, então,
é a imagem mental que uma organização tem de seu futuro, hoje.
Quadro 04 – Definições de visão
Autor
Definição
MINTZBERG,
É uma representação mental de estratégia, criada ou ao
AHLSTRAND
e menos expressa na cabeça do líder
LAMPEL
p.
(2000,
98)
WRIGHT (2000, p. É o que a organização pode se tornar
312)
CHIAVENATO (1999, É a imagem que a organização tem a respeito de si
p. 253)
mesmas e do seu futuro
DAFT (1999, p. 362)
É uma imagem do futuro idealizado para a organização
Fonte: elaborado pelo autor.
MINTZBERG, AHLSTRAND e LAMPEL (2000, p. 98) consideram a visão uma expressão mental que
se encontra na cabeça do líder de uma organização. Como está relacionada com o futuro, essa
representação se configura como uma forma de estratégia organizacional, ou seja, enquanto maneira
através da qual seus objetivos serão trabalhados e seus recursos, utilizados. Aqui, então, a visão é
um elemento estratégico para as organizações.
Visão é a imagem de como a organização quer ser no futuro
Visão da SEAD: Tornar-se, até 2007, um referencial de excelência em gestão
pública, contribuindo para o fortalecimento das políticas e ações públicas do governo
estadual.
Visão do Programa de Qualidade do Estado: Até 2010, a excelência em gestão
pública deverá ter um valor adquirido e preservado pelas instituições públicas
estaduais e municipais do Pará e um valor requerido no serviço público pelo
cidadão.
Visão da Gestão Logística do Estado: Tornar-se, em 2007, um referencial de
excelência na área de logística pública.
A definição obtida em WRIGHT (2000, p. 312) é bastante contundente: visão ―é o que a organização
pode se tornar‖. É fundamental que se perceba o caráter probabilístico: a visão não diz o que a
organização tem que ser, mas o que pode ou não vir a ser, denota uma dentre várias possibilidades.
Se o futuro é um leque de possibilidades, o mais adequado seria falar de ―cenários futuros‖.
Essa mesma perspectiva é conjugada por CHIAVENATO (1999, p. 253), de que a visão é uma
imagem que a organização tem de si mesma em relação ao seu futuro, e por DAFT (1999, p. 362),
com a exigência de que a visão tem que ser compartilhada. O que chama a atenção da posição de
Chiavenato é que a visão não significa o que a organização é, designação de tempo presente, mas
do que ela pretende ser, que ainda não é. Advém disso o duplo componente da visão, a
representação futura da organização em termos de tempo e espaço. Se esta representação não for
compartilhada, não poderá ser chamada ―visão‖, porque não é organizacional – uma organização é
sempre um agrupamento humano, o que exige a existência de pelo menos duas pessoas.
O que são objetivos?
A visão de que tratou a seção anterior é uma forma de manifestação do desejo organizacional em
relação ao seu futuro. Em termos probabilísticos, a visão terá maior ou menor chance de se
concretizar, o que vai depender da capacidade que a organização tem que alcançar os objetivos,
fatores capazes de aproximar a imagem do futuro presente na realidade desejada. Os objetivos são,
portanto, toda e qualquer situação futura desejada.
Quadro 05 – Definições de objetivos
Autor
Maximiano
p. 422)
Definição
(2004, É a situação final em direção à qual o comportamento se
orienta
Pereira (2004, p. É um estado desejado no futuro, que a organização quer
168)
alcançar, representando os propósitos permanentes a ser
atingidos
Chiavenato (1999, É um estado futuro desejado que se tenta tornar
p. 256)
Moraes (2001, p. É um estado desejado no futuro que a organização quer
70)
alcançar
Fonte: elaborado pelo autor.
Para MAXIMIANO (2004, p. 422), em conformidade com a literatura sobre objetivos, um objetivo
nada mais é do que um ―resultado desejado‖. Neste sentido particular, toda visão também é uma
forma de objetivo porque representa uma forma de desejo para o qual os recursos e esforços
organizacionais serão direcionados. No entanto, em termos mais exatos com a definição do autor (e
sua diferenciação também exata de visão, que é sempre uma situação interdiária), um objetivo é
sempre uma situação final – quando alcançado, acabou a necessidade de direcionamento de
esforços e recursos para tal, enquanto que a visão é projetada, o que garante seu caráter sempre
parcial.
PEREIRA (2004, p. 168) também considera os objetivos como um estado futuro desejado, mas o faz
de forma a relacioná-los com os ―propósitos permanentes‖ que a organização deseja atingir, que
pode ser tomado como sua missão. Dessa forma, os objetivos são maneiras através das quais as
organizações atualizam a sua missão ou formas de comprovação de que estão a ela direcionadas.
Objetivos são resultados futuros desejados
Exemplo de objetivo da Gestão de Patrimônio Imobiliário: Instituir um sistema de
gestão do acervo imobiliário estadual que permita conhecer a sua real dimensão e
valor.
A concepção de CHIAVENATO (1999, p. 256) apresenta uma ligeira variação porque leva em
consideração a idéia de especificidade temporal. Para este autor, a missão da organização é o seu
grande objetivo; os objetivos propriamente ditos, tomados em espaço de tempos para a sua
realização, são resultados específicos que precisam ser alcançados para que aquele grande objetivo
(sua missão) possa também ser alcançado. A diferença é que o grande objetivo tem um espaço de
tempo muitas vezes difícil de ser estipulado para que seus resultados sejam alcançados. É neste
sentido também a posição de MORAES (2001, p. 70).
O que são metas?
Para QUINN (2001, p. 20), metas são sinônimos de resultados a ser alcançados, o que as coloca no
mesmo patamar de objetivos. Assim, metas, objetivos e resultados pretendidos são a expressão do
mesmo fenômeno. Mas com uma diferença: as metas são tipos específicos de objetivos aos quais é
acrescida a dimensão temporal em que esses resultados serão alcançados. As metas são
declarações de objetivos, mas nada é dito acerca da maneira como devem ser alcançados. PARK
(1997, p. 237) extrapola ainda mais a abrangência conceitual de metas ao tomá-las como sinônimas
de propósitos, missões, metas e alvos.
Quadro 06 – Definições de metas
Autor
Definição
Quinn (2001, p. 20)
São indicações de quais e quando os resultados precisam ser
alcançados, mas não dizem como devem ser conseguidos
Maximiano
p. 421)
(2004, São objetivos quantificados, que definem prazos, volumes,
valores e responsabilidades
Park (1997, p. 237)
São sinônimos de propósitos, missões, metas ou alvos
Daft (999, p. 32)
São a descrição dos resultados mensuráveis específicos e
são muitas vezes previstas para curto prazo
Fonte: elaborado pelo autor.
MAXIMIANO (2004, p. 421) entende como meta todo objetivo quantificado. Essa quantificação pode
ser definida em termos de prazos, volumes, valores, medidas, responsabilidades ou qualquer outra
modalidade. DAFT (999, p. 32), ao invés de valorizar a quantificação encaminha seu entendimento
para a idéia de oficialização, formalização e operação. As metas oficiais teriam escopo (definição
exata) e resultados formalizados; as operativas teriam a preocupação de descrever os resultados
específicos a ser alcançados. Em ambos os casos, a maioria das metas tem dimensão temporal de
curto prazo (até um ano).
Meta é todo resultado futuro a ser alcançado, com objetivo, valor e horizonte
de tempo
Exemplo de Meta da Gerência de Patrimônio Imobiliário: Levantar e avaliar 3.600
imóveis próprios do Estado, localizados em todo território paraense, até dezembro
de 2006.
Talvez a definição mais exata de metas seja a de que metas são objetivos com prazo e valor
determinados. Dessa forma, para que uma meta seja criada ou identificada, basta responder a três
questões: a) o que deve ser feito?, b) quando tem que ser finalizado? e (c) qual o seu valor? A
primeira questão identifica o objetivo; a segunda, a dimensão temporal ou horizonte de tempo; a
terceira, o custo ou investimento necessário para que os resultados desejados sejam produzidos.
5- O APARELHO DO ESTADO E AS FORMAS DE PROPRIEDADE
Para enfrentar os principais problemas que representam obstáculos à implementação de um
aparelho do Estado moderno e eficiente, torna-se necessário definir um modelo conceitual, que
distinga os segmentos fundamentais característicos da ação do Estado. A opção pela construção
deste modelo tem como principal vantagem permitir a identificação de estratégias específicas para
cada segmento de atuação do Estado, evitando a alternativa simplista de proposição de soluções
genéricas a problemas que são peculiares dependendo do setor. Entretanto, tem a desvantagem da
imperfeição intrínseca dos modelos, que sempre representam uma simplificação da realidade. Estas
imperfeições, caracterizadas por eventuais omissões e dificuldades de estabelecimento de limites
entre as fronteiras de cada segmento, serão aperfeiçoadas na medida do aprofundamento do debate.
O Estado é a organização burocrática que possui o poder de legislar e tributar sobre a população de
um determinado território. O Estado é, portanto, a única estrutura organizacional que possui o "poder
extroverso", ou seja, o poder de constituir unilateralmente obrigações para terceiros, com
extravasamento dos seus próprios limites.
O aparelho do Estado ou administração pública lato senso, compreende (a) um núcleo estratégico ou
governo, constituído pela cúpula dos três poderes, (b) um corpo de funcionários, e (c) uma força
militar e policial.
O aparelho do Estado é regido basicamente pelo direito constitucional e pelo direito administrativo,
enquanto que o Estado é fonte ou sancionador e garantidor desses e de todos os demais direitos.
Quando somamos ao aparelho do Estado todo o sistema institucional-legal, que regula não apenas o
próprio aparelho do Estado mas toda a sociedade, temos o Estado.
5.1 Os Setores do Estado
No Aparelho do Estado é possível distinguir quatro setores:
NÚCLEO ESTRATÉGICO. Corresponde ao governo, em sentido lato. É o setor que define as leis e
as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento. É portanto o setor onde as decisões estratégicas
são tomadas. Corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e, no poder
executivo, ao Presidente da República, aos ministros e aos seus auxiliares e assessores diretos,
responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas públicas.
ATIVIDADES EXCLUSIVAS. É o setor em que são prestados serviços que só o Estado pode realizar.
São serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado - o poder de regulamentar, fiscalizar,
fomentar. Como exemplos temos: a cobrança e fiscalização dos impostos, a polícia, a previdência
social básica, o serviço de desemprego, a fiscalização do cumprimento de normas sanitárias, o
serviço de trânsito, a compra de serviços de saúde pelo Estado, o controle do meio ambiente, o
subsídio à educação básica, o serviço de emissão de passaportes, etc.
SERVIÇOS NÃO EXCLUSIVOS. Corresponde ao setor onde o Estado atua simultaneamente com
outras organizações públicas não-estatais e privadas. As instituições desse setor não possuem o
poder de Estado. Este, entretanto, está presente porque os serviços envolvem direitos humanos
fundamentais, como os da educação e da saúde, ou porque possuem "economias externas"
relevantes, na medida que produzem ganhos que não podem ser apropriados por esses serviços
através do mercado. As economias produzidas imediatamente se espalham para o resto da
sociedade, não podendo ser transformadas em lucros. São exemplos deste setor: as universidades,
os hospitais, os centros de pesquisa e os museus.
PRODUÇÃO DE BENS E SERVIÇOS PARA O MERCADO. Corresponde à área de atuação das
empresas. É caracterizado pelas atividades econômicas voltadas para o lucro que ainda
permanecem no aparelho do Estado como, por exemplo, as do setor de infra-estrutura. Estão no
Estado seja porque faltou capital ao setor privado para realizar o investimento, seja porque são
atividades naturalmente monopolistas, nas quais o controle via mercado não é possível, tornando-se
necessário no caso de privatização, a regulamentação rígida.
5.2 Setores do Estado e Tipos de Gestão
Cada um destes quatro setores referidos apresenta características peculiares, tanto no que se refere
às suas prioridades, quanto aos princípios administrativos adotados.
No núcleo estratégico, o fundamental é que as decisões sejam as melhores, e, em seguida, que
sejam efetivamente cumpridas. A efetividade é mais importante que a eficiência. O que importa saber
é, primeiro, se as decisões que estão sendo tomadas pelo governo atendem eficazmente ao
interesse nacional, se correspondem aos objetivos mais gerais aos quais a sociedade brasileira está
voltada ou não. Segundo, se, uma vez tomadas as decisões, estas são de fato cumpridas.
Já no campo das atividades exclusivas de Estado, dos serviços não-exclusivos e da produção de
bens e serviços o critério eficiência torna-se fundamental. O que importa é atender milhões de
cidadãos com boa qualidade a um custo baixo.
Como já vimos, existem ainda hoje duas formas de administração pública relevantes: a
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BUROCRÁTICA e a ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL. A
primeira, embora sofrendo do excesso de formalismo e da ênfase no controle dos processos, tem
como vantagens a segurança e a efetividade das decisões. Já a administração pública gerencial
caracteriza-se fundamentalmente pela eficiência dos serviços prestados a milhares senão milhões de
cidadãos. Nestes termos, no núcleo estratégico, em que o essencial é a correção das decisões
tomadas e o princípio administrativo fundamental é o da efetividade, entendido como a capacidade
de ver obedecidas e implementadas com segurança as decisões tomadas, é mais adequado que
haja um misto de administração pública burocrática e gerencial.
No setor das atividades exclusivas e de serviços competitivos ou não exclusivos, o importante é a
qualidade e o custo dos serviços prestados aos cidadãos. O princípio correspondente é o da
eficiência , ou seja, a busca de uma relação ótima entre qualidade e custo dos serviços colocados à
disposição do público. Logo, a administração deve ser necessariamente gerencial. O mesmo se diga,
obviamente, do setor das empresas, que, enquanto estiverem com o Estado, deverão obedecer aos
princípios gerenciais de administração.
5.3 Setores do Estado e Formas de Propriedade
Outra distinção importante é a relacionada às formas de propriedade. Ainda que vulgarmente se
considerem apenas duas formas, a PROPRIEDADE ESTATAL e a PROPRIEDADE PRIVADA, existe
no capitalismo contemporâneo uma terceira forma, intermediária, extremamente relevante: a
PROPRIEDADE PÚBLICA NÃO-ESTATAL, constituída pelas organizações sem fins lucrativos, que
não são propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas diretamente para o
atendimento do interesse público. O tipo de propriedade mais indicado variará de acordo com o setor
do aparelho do Estado.
No núcleo estratégico a propriedade tem que ser necessariamente estatal. Nas atividades exclusivas
de Estado, onde o poder extroverso de Estado é exercido, a propriedade também só pode ser
estatal.
Já para o setor não-exclusivo ou competitivo do Estado a propriedade ideal é a pública não-estatal.
Não é a propriedade estatal porque aí não se exerce o poder de Estado. Não é, por outro lado, a
propriedade privada, porque se trata de um tipo de serviço por definição subsidiado. A propriedade
pública não-estatal torna mais fácil e direto o controle social, através da participação nos conselhos
de administração dos diversos segmentos envolvidos, ao mesmo tempo que favorece a parceria
entre sociedade e Estado. As organizações nesse setor gozam de uma autonomia administrativa
muito maior do que aquela possível dentro do aparelho do Estado. Em compensação seus dirigentes
são chamados a assumir uma responsabilidade maior, em conjunto com a sociedade, na gestão da
instituição.
No setor de produção de bens e serviços para o mercado a eficiência é também o princípio
administrativo básico e a administração gerencial, a mais indicada. Em termos de propriedade, dada
a possibilidade de coordenação via mercado, a propriedade privada é a regra. A propriedade estatal
só se justifica quando não existem capitais privados disponíveis - o que não é mais o caso no Brasil ou então quando existe um monopólio natural. Mesmo neste caso, entretanto, a gestão privada
tenderá a ser a mais adequada, desde que acompanhada por um seguro sistema de regulação.
A RELAÇÃO ENTRE OS ELEMENTOS DE PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL
Os elementos de planejamento governamental (política, políticas públicas, missão, visão, objetivos e
metas) estão ligados tanto conceitual, quanto lógica e operacionalmente. A ligação conceitual é
decorrente do fato de que todos eles fazem parte da função planejamento, cuja finalidade é
identificar o que tem quer ser feito e como isso será feito. As políticas fazem parte do segundo grupo,
que tratam das maneiras através das quais os objetivos devem ser alcançados, ao apontar os limites
de ações das pessoas envolvidas tanto na formulação quanto da operacionalização das atividades
de planejamento; os demais elementos tratam da determinação do que deve ser feito, os objetivos de
planejamento. Essas são as duas ligações lógicas.
A lógica operacional dos elementos é a seguinte: as organizações, por terem uma razão de
existência, têm que realizar ações para concretizar a sua missão. Mas não as fazem ao acaso:
fazem-nas com base no que se chama de visão organizacional, exatamente aquela situação
desejada futura para a qual se encaminharão grupos de atividades específicas, com resultados
específicos, chamados de objetivos. Dessa forma, têm-se três tipos de objetivos: a missão, ou
macro-objetivo; a visão ou objetivo de longuíssimo prazo; e os objetivos de longo (maior que três
anos), médio (de um a dois anos) e curto prazo (até um ano).
Para que um objetivo seja atingido, precisa ter seu horizonte de tempo dividido em pequenas etapas,
perfeitamente quantitativadas, chamadas metas. Dessa forma, o alcance de todas as metas permite
que os objetivos sejam alcançados; o alcance dos objetivos de curto, médio e longo prazos
encaminha para a concreticidade da visão. Em todos os casos, os resultados alcançados ou não
farão a organização se distanciar ou se aproximar de sua missão. Se isso for compreendido com
adequação, pode-se também entender o processo de planejamento estratégico.
As etapas do planejamento estratégico
O gerenciamento das organizações modernas tem exigido o uso de ferramentas gerenciais para dar
conta das ameaças e oportunidades cada vez mais crescentes nos dias de hoje. O processo de
gerenciamento nada mais é do que o alcance de determinados resultados a partir do uso planejado,
organizado, dirigido e controlado dos recursos organizacionais. Emerge deste processo a
importância do planejamento como ferramenta que será utilizado para ―fazer funcionar‖ todas as
demais etapas do processo e, consequentemente, a própria organização. Mas no que consiste o
planejamento organizacional?
Para organizações que já atuam no ambiente (ou no mercado, para aquelas cuja finalidade
fundamental para a sua continuidade é o lucro monetário), ALMEIDA (2006) propõe cinco etapas: a
de avaliação da estratégia que a organização utiliza atualmente, a avaliação do ambiente para que
se possa determinar as possibilidades de sucesso da estratégia atual, o estabelecimento do perfil
estratégico que a organização poderá e/ou deverá utilizar de agora em diante, a qualificação dos
objetivos propostos e a finalização do planejamento em um documento chamado plano. A lógica
subjacente à idéia do autor é de que há a necessidade da análise da situação atual para que se
possa decidir acerca de que possibilidades de futuro a organização deverá seguir.
SILVA (2003), por outro lado, dá a idéia das etapas que uma nova organização, que ainda não atua
em nenhum mercado, deve seguir para a elaboração de seu plano estratégico. A primeira etapa é a
definição do âmbito de atuação da organização, que pode ser mais de um, também chamado de
negócio; a segunda é a definição do papel que a organização deverá desempenhar no seu negócio,
conhecido popularmente como ―missão organizacional‖; a terceira é a identificação e detalhamento
dos valores que a organização levará em consideração nos seus processos decisórios e que vai
determinar o comportamento da organização no cumprimento de sua missão, ou seja, mandamentos
que deverão ser seguidos por todos, tais como um estatuto ético.
A quarta etapa é a descrição da imagem que todos os membros da organização devem ter da
organização em relação ao seu futuro, isto é, como gostariam que a organização fosse vista no
futuro próximo aos olhos de seus clientes, principalmente; a quinta etapa é a análise ambiental, onde
procuram-se determinar quais as oportunidades e ameaças que o ambiente externo oferece para que
a missão e a visão da organização se concretizem, além da realização da análise interna, onde
busca-se saber os pontos fracos e fortes que determinarão o sucesso ou fracasso do
empreendimento.
A sexta etapa é a determinação dos objetivos (resultados quantitativos e/ou qualitativos) que a
organização deve alcançar em diferentes períodos de tempo para cumprir sua Missão. São definidas,
também, as estratégias, que são as atividades que devem ser realizadas para cada objetivo
estabelecido que levarão aos resultados pretendidos (respeitando-se, sempre, os princípios
escolhidos). Depois que tudo isso é feito, produz-se um documento, chamado plano, que servirá de
guia para a ação de cada membro da organização.
A partir da análise dessas duas propostas de planejamento estratégico, que é aquele planejamento
em que se recomenda que grande parte dos membros da organização participe, pode-se perceber
que há a necessidade de um plano global, envolvente de toda a organização, que deve ser apoiado
pelas pessoas que tomam as principais decisões da organização. Afinal, são elas que comandarão
cada etapa ou fase de sua implementação e que se responsabilizarão pelo seu sucesso ou fracasso.
Este princípio lógico de se planejar toda a organização em futuro de maior alcance possível permite
que se escolha com mais adequação o que se pode e deve fazer agora, para que aquele futuro
desejado seja alcançado. Isso é válido tanto para a venda de cachorro quente da esquina quanto
para a implantação de um sistema de informação, como relata CLEMENTE (2006).
As etapas apontadas por STONER e FREEMAN (1992) são basicamente as mesmas sugeridas por
SILVA (2003) e RUAS (2003), que foram utilizadas por CLEMENTE (2006): definição de objetivos,
identificação dos objetivos e da estratégia atuais, análise ambiental, análise dos recursos,
identificação de oportunidades e ameaças, determinação do grau de mudança necessário, decisão
da estratégia a ser adotada, implantação da estratégia, mensuração e controle. Este processo, aliás,
é bastante comum no dia-a-dia de organizações mediana e altamente profissionalizadas porque o
planejamento estratégico é uma das ferramentas mais poderosas que o homem já inventou para
transformar idéias em realidade. Além do mais, não se planeja para que as coisas permaneçam do
jeito que estão; o planejamento é uma ferramenta de mudança. Propõe-se planejar porque há
descontentamento com o presente e, por isso, almeja-se um futuro melhor.
É por isso que o planejamento estratégico é um processo, um conjunto de atividades que parte da
necessidade de se compreender a realidade atual (diagnóstico estratégico) para que a missão
organizacional possa ser claramente delineada; feito isso, é fundamental que os valores que devem
ser seguidos por todos sejam explicitamente trabalhados. De posse do diagnóstico, da missão e dos
valores, pode-se selecionar os objetivos que deverão ser alcançados para que a missão se efetive,
mas de forma controlada e avaliada, como propõe (MALDANER, 2006). Processos de planejamento
semelhantes são apresentados também por PEREIRA (2004) e MAXIMIANO (2004), com a diferença
apenas no grau de detalhamento de cada uma das etapas.
O que se deve compreender, nisso tudo, é que o planejamento é uma grande preparação para a
ação. O plano, o resultado do planejamento que estará contido em um documento, nada mais é do
que uma forma de guia calculado do que deverá ser feito; representa um grande experimento que é
feito antes de se colocar em prática, para que se evite os riscos de se perder os poucos recursos que
as organizações, principalmente as públicas, disponibilizam para fazer o que têm que fazer. Planejar,
então, é testar, antes, se as coisas que têm que ser feitas realmente têm grande probabilidade de
acontecer se determinadas estratégias e recursos forem utilizados. Não se investe tempo em
planejamento, então, como deleite ou frugalidade acadêmica, mas como uma necessidade de teste
da viabilidade técnica (se as pessoas da organização saberão fazer o que tem que ser feito) e
econômico-financeira (se haverá os recursos financeiros disponíveis para financiar aquilo que tem
que ser feito).
Quadro XX – As etapas do planejamento estratégico
Autor
Almeida e Giglio (2006)
Resposta
1) Avaliação da estratégia vigente
2) Avaliação do Ambiente
3) Estabelecimento do perfil estratégico
4) Qualificação dos objetivos
5) Finalização
Silva (2003)
1. Definição do Negócio
2. Definição da Missão
3. Definição dos Princípios
4. Definição da Visão
5. Análise do Ambiente
6. Identificação das Oportunidades
7. Identificação das Ameaças
8. Identificação das Forças Organizacionais
9. Identificação das Fraquezas Organizacionais
10. Definição dos Objetivos
11. Definição das Estratégias
12. Determinação do Horizonte de Planejamento
Stoner e Freeman (1992)
1) Definição de objetivos
2) Identificação dos objetivos e da estratégia atuais
3) Análise ambiental
4) Análise dos recursos
5) Identificação de oportunidades e ameaças
6) Determinação do grau de mudança necessário
7) Decisão da estratégia a ser adotada
8) Implantação da estratégia
9) Mensuração e controle
Ruas (2003)
1)) Definição da estratégia da organização
2) Análise e compreensão da estratégia atual da organização
3) Definição dos Inter-relacionamentos dos objetivos estratégicos
4) Definição de indicadores chave de desempenho
5) Monitoramento e controle da estratégia
Maldaner (2006)
1) Realização do diagnóstico estratégico
2) Definição da Missão da organização
3) Criação dos instrumentos prescritivos e quantitativos
4) Controle e avaliação
Chiavenato (1999)
1) construção do consenso sobre o futuro que se deseja
2) examinar as condições externas do ambiente
3) examinar as condições internas da organização
Pereira (2004)
1) determinação dos objetivos empresariais
2) análise das condições ambientais
3) análise das condições organizacionais
4) formulação de alternativas estratégicas
5) elaboração do planejamento estratégico
6) implementação do planejamento estratégico via planejamentos tático e operacional
Maximiano (2004)
1) Análise da situação estratégica presente da organização.
2) Avaliação das diretrizes superiores
3) Análise do ambiente externo
4) Análise do ambiente interno
5) Definição do plano estratégico
Fonte: dados coletados e organizados pelo autor.
POLÍTICAS PÚBLICAS: CULTURA E DIVERSIDADE
Pronunciamento do Secretário Sergio Mamberti na IV Conferência de Educação e Cultura na Câmara
dos Deputados (*)
O conceito de Diversidade Cultural é fator fundamental para a construção contemporânea das
Políticas Públicas, especialmente nas áreas da Cultura e das Políticas Sociais. A Declaração
Universal sobre a Diversidade Cultural e os atuais esforços que desenvolvemos no âmbito da
UNESCO, em torno de uma futura Convenção Internacional sobre a proteção e promoção da
Diversidade Cultural evidenciam a centralidade dessas discussões.
Os direitos culturais fazem parte dos direitos humanos e a dimensão cultural é indispensável e
estratégica para qualquer projeto de desenvolvimento. Segundo a Declaração Universal da
Diversidade Cultural, os indivíduos e grupos devem ter garantidas as condições de criar e difundir
suas expressões culturais; o direito à educação e à formação de qualidade que respeite sua
identidade cultural; a possibilidade de participar da vida cultural de sua preferência e exercer e fruir
suas próprias práticas culturais, desde que respeitados os limites dos direitos humanos. O direito à
diferença, e à construção individual e coletiva das identidades através das expressões culturais é
elemento fundamental da promoção de uma cultura de paz.
O reconhecimento e a valorização da diversidade cultural estão ligados à busca da solidariedade
entre os povos, à consciência da unidade do gênero humano e ao desenvolvimento dos intercâmbios
culturais. Os processos de globalização e/ou mundialização, caracterizados pela rápida evolução das
tecnologias da informação e da comunicação constituem hoje desafios para a preservação e
promoção dessa diversidade, criando condicionamentos e ameaçando o diálogo permanente entre
culturas, civilizações ou grupos sociais.
Por outro lado, é fundamental o respeito, a valorização e o convívio harmonioso das diferentes
identidades culturais existentes dentro dos territórios nacionais. O conceito de diversidade cultural
nos permite perceber que as identidades culturais nacionais não são um conjunto monolítico e único.
Ao contrário, podemos e devemos reconhecer e valorizar as nossas diferenças culturais, como fator
para a coexistência harmoniosa das várias formas possíveis de brasilidade.
Como o respeito a eventuais diferenças entre os indivíduos e grupos humanos é condição da
cidadania, devemos tratar com carinho e eficácia da promoção da convivência harmoniosa, dos
diálogos e dos intercâmbios entre os brasileiros – expressos através das diversas linguagens e
expressões culturais, para a superação da violência e da intolerância entre indivíduos e grupos
sociais em nosso país.
No plano das relações internacionais, os Ministérios da Cultura e das Relações Exteriores têm
trabalhado em conjunto em prol da chamada Convenção da UNESCO sobre Diversidade Cultural,
através da qual os países assumirão uma série de compromissos em torno da promoção e da
proteção da diversidade cultural. É fundamental que os mecanismos ativos de política cultural sejam
fortalecidos no nível das relações internacionais. Para o Governo brasileiro, proteger e promover as
expressões culturais em sua diversidade é direito legítimo dos cidadãos, da sociedade civil e dos
estados nacionais.
A Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, além de participar da construção da agenda
internacional sobre Diversidade Cultural, colabora na estruturação das políticas culturais no Brasil a
partir do conceito de Diversidade Cultural, o que nos coloca outros dois desafios.
O primeiro é o entendimento do conceito de Diversidade Cultural no contexto da cultura brasileira,
trabalhado de maneira transversal aos segmentos governamentais e da sociedade civil.
Outro desafio é o de estabelecer diálogos com grupos e redes culturais representativas da
Diversidade Cultural brasileira ainda excluídos do acesso aos instrumentos de política pública de
cultura e contribuir para o aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção e promoção da nossa
Diversidade Cultural.
Primeiro Desafio - Identidade e Diversidade Cultural no Contexto Brasileiro
A idéia Moderna de Cultura está, desde seu surgimento, associada à idéia de diversidade, passando
a reunir na mesma noção a tradição humanista de cultivo das realizações consideradas superiores
do espírito humano nas artes e ciências e a nova valorização, de raiz iluminista, da diversidade de
costumes e crenças dos povos como via para o conhecimento humano. A Cultura no sentido
moderno ao mesmo tempo seria o conjunto de expressões do espírito ou gênero humano e das
expressões singulares da humanidade. Podemos descrever a história da cultura moderna pela
evolução das tensões entre o que hoje chamaríamos de tendências globalizantes e as expressões
singulares dos indivíduos, grupos ou povos.
As sociedades ocidentais em geral e o Brasil em particular passam por transformações desde o final
do século XX, colocando em crise as noções Modernas de Cultura e de Identidade Cultural.
1 - O reconhecimento de situações específicas derivadas das distinções de classe ou do mundo do
trabalho (identidades de trabalhadores do campo ou da cidade, estudantes, etc);
2 - situações de gênero ou orientação sexual, reveladas pelos movimentos de mulheres e os
movimentos de gays, lésbicas, transgêneros e bissexuais;
3 - reconhecimento de direitos a partir da situação etária, como os idosos, jovens e crianças;
4 - o reconhecimento de desigualdades derivadas da situação étnica, como as dos afro-brasileiros,
dos povos indígenas ou de imigrantes de várias origens e a necessidade da valorização das diversas
expressões culturais ligadas a estes traços identitários. No caso brasileiro, é necessário reconhecer e
dar maior visibilidade às expressões ligadas às diversas etnias e povos, além dos tipos mestiços e de
expressões resultantes dos processos de miscigenação.
Como elementos específicos ao processo cultural brasileiro, podemos apontar outros três elementos
que tensionam as categorias utilizadas para a formulação de nossa visão sobre o processo cultural e
sobre as políticas públicas de cultura:

O primeiro é o tratamento contraditório e insuficiente em relação às expressões das Culturas
Populares. Há um reconhecimento do poder criativo do povo brasileiro na incorporação de
elementos populares como símbolos da Identidade Cultural Brasileira, tais como o samba a
feijoada ou carnaval. Porém, nunca houve um tratamento equilibrado entre os incentivos às
expressões das Cultural Populares (sejam as tradicionais ou as novas e urbanas como o Hiphop) e os mecanismos de proteção e fomento às manifestações artísticas e das indústrias
culturais. As culturas populares sempre sofreram o mesmo processo discriminatório que as
classes menos favorecidas, detentoras desse rico acervo cultural.

O segundo elemento diz respeito às dificuldade de reconhecimento das chamadas
expressões culturais locais ou regionais da cultura brasileira. Na linguagem cotidiana
reconhecemos as peculiaridades de culturas típicas, tais como a cultura nordestina,
pantaneira ou gaúcha. Mas este tema é tratado de maneira insuficiente nos processos de
formulação de políticas públicas.

Finalmente, um terceiro elemento é a questão da indução à produção cultural
descentralizada. Assim como para o Brasil é vital que haja proteção e estímulo à produção e
difusão de conteúdos nacionais através da limitação ao capital estrangeiro na propriedade
dos meios de comunicação, é necessária a regulação da área de audiovisual e o estímulo à
produção e difusão descentralizadas, além do fortalecimento dos intercâmbios culturais entre
os diversos rincões brasileiros, através de mecanismos como os dispostos no conhecido
projeto apresentado pela Deputada Jandira Feghalli.
Gostaria de destacar aqui a interface especial que o conceito de Diversidade Cultural produz nos
processos educacionais e das relações entre a produção cultural e o espaço da escola. A
importância deste tema foi reconhecida pelo Ministério da Educação na atual gestão, através da
criação de uma secretaria específica.
A escola é um espaço público em que cada um – aluno ou professor – relaciona-se no cotidiano
com o outro, com o diferente. A escola é um espaço da construção e reconstrução simbólica, e
os profissionais da educação são também profissionais da cultura. A reflexão sobre a diversidade
cultural é questão central para a qualificação das práticas dos profissionais da educação,
especialmente em relação ao conhecimento sobre os grupos sociais dominados e excluídos. É
fundamental para um projeto democrático, que os cidadãos brasileiros sejam formados com o
respeito e com a convivência dos diferentes grupos sociais como uma maneira de superar o
preconceito.
Para uma análise crítica
Segundo Desafio – Ampliação dos diálogos e apoios aos Grupos e Redes que fazem a
Diversidade Cultural Brasileira
No primeiro ano do Governo Lula o Ministério da Cultura promoveu um processo de reestruturação
interna, através do qual foi criada a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, para a qual
fui designado titular pelo Ministro Gilberto Gil. A Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural
está incumbida de promover e apoiar as atividades de incentivo à diversidade cultural como meios de
promoção da cidadania.
Na revisão do PPA Plano Brasil de Todos, foi aprovada a criação do Programa Brasil Plural –
Identidade e Diversidade Cultural, com o objetivo de ―garantir que os grupos e redes responsáveis
pelas manifestações características da diversidade cultural brasileira tenham acesso aos
mecanismos de apoio necessários à valorização de suas atividades culturais, promovendo o
intercâmbio cultural entre as regiões e grupos culturais brasileiros, considerando características
identitárias por gênero, orientação sexual, grupos etários, étnicos e das culturas populares.‖
A atuação da Secretaria em relação à promoção de diálogos com segmentos da comunidade cultural
e aperfeiçoamento institucional pode ser exemplificada na ação em relação às manifestações das
Culturas Populares. Por diversas razões, os artistas e grupos responsáveis pelo riquíssimo conjunto
de expressões culturais populares têm grande dificuldade de obter apoios, seja através de projetos
beneficiados por incentivo fiscal bem como àqueles apoiados pelo Fundo Nacional de Cultura.
Em conjunto com a Secretaria de Políticas Culturais e outros órgãos vinculados ao Ministério da
Cultura, como a Fundação Cultural Palmares, o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do
IPHAN e a FUNARTE, bem como em parceria com Fóruns da Sociedade Civil de Culturas Populares
do Rio de Janeiro e de São Paulo, articulou-se o maior número possível de representantes das
inúmeras expressões culturais populares em um Primeiro Seminário Nacional de Políticas Públicas
para as Culturas Populares. Foram 15 oficinas preparatórias e a etapa nacional tendo ocorrido, na
sede da Funarte em Brasília.
Os debates já realizados forneceram algumas demandas por parte destes segmentos da
comunidade cultural e entendeu-se que, além da necessidade de fortalecer os mecanismos de
proteção e preservação ligados à política patrimonial, deve-se direcionar recursos do Fundo Nacional
de Cultura para apoiar projetos que fortaleçam a atividade desses artistas e grupos.
Através de Editais de Fomento às Expressões das Culturas Populares, em parceria com a Secretaria
de Fomento e Incentivo à Cultura do MinC, queremos dar melhores condições para que os artistas
das culturas populares sejam sujeitos das políticas culturais como são, por exemplos, os
profissionais ligados ao teatro ou ao cinema. Essa estratégia participativa de ampliação dos diálogos
entre o Ministério da Cultura e segmentos responsáveis pela diversidade cultural brasileira com
dificuldade de acesso aos mecanismos federais de incentivo à cultura é principal contribuição
institucional da Secretaria ao processo da formulação e implementação de políticas públicas de
cultura.
Três outros exemplos dessa maneira participativa de trabalho estão nos diálogos e apoios à Rede
Cultural Estudantil – com a parceria estratégica com a UNE, a Rede Cultural da Terra – com parceria
estratégica com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e o Grupo de Trabalho para Políticas
Culturais ligadas às identidades Gay, Lésbicas, Trangêneros e Bissexuais. Na nossa visão
estratégica ainda temos os desafio de construir espaços de participação e instrumentos de
fortalecimento de expressões ligadas aos povos indígenas, às novas expressões populares urbanas
– como, por exemplo, o Hip Hop ou a Capoeira – que, por incrível que pareça, não é plenamente
reconhecida pelas Políticas Públicas de Cultura – bem como às redes ligadas às expressões de
trabalhadores urbanos e das populações ribeirinhas e litorâneas, além de apoiar projetos ligados aos
direitos culturais das crianças e adolescentes.
Finalmente, outro desafio colocado no horizontes desta gestão é o lançamento de novos projetos e
estudos de mapeamento da Diversidade Cultural, em complemento aos instrumentos da política
patrimonial a cargo do IPHAN. É necessário conhecer as nossas expressões culturais, pois só se
pode gostar daquilo que se conhece. E é direito dos cidadãos brasileiros conhecerem e usufruirem
as riquezas da Diversidade Cultural Brasileira.
(*) Texto redigido por Álvaro Magalhães a partir de debates internos na SID/MinC, especialemente com Ricardo Lima e Sérgio Mamberti.
RESPONSABILIDADE E A CIDADANIA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Juan Mozzicafreddo *
Resumo Neste texto pretende-se refletir acerca da responsabilidade enquanto conceito que, por um
lado, abrange o funcionamento do sistema administrativo — prestar contas, desempenho
profissional, etc. — e, por outro, afeta a produção de confiança dos cidadãos na administração e no
governo. A questão da responsabilidade será tratada em torno de três dimensões analíticas. Um
primeiro nível, organizacional, abordando-se as virtualidades e as limitações da accountability; um
segundo nível, em torno da dimensão institucional, entendida como responsabilidade política e
administrativa face aos direitos dos cidadãos; e, num terceiro nível, abordar-se-á a dimensão
contratual da responsabilidade política, equacionada como categoria constitutiva da democracia e da
governarão numa fase de sociedade de risco.
Palavras-chave Responsabilidade, accountability, ética, administração pública, cidadania, sociedade
de risco, poder político.
A responsabilidade como categoria central do sistema administrativo
Niklas Luhmann perguntou-se porque é que o indivíduo seria honesto no escuro?1 Porque ele assim
o deseja ou porque há regras e procedimentos de controlo dos comportamentos? (Luhmann, 1989).
É natural que não se possa responder univocamente a esta questão. Mas é normal que nos sirva de
reflexão sobre a responsabilidade e a ética no funcionamento dos sistemas administrativos e
políticos.
Tendo como pano de fundo o processo de modernização dos serviços públicos e aceitando que é
possível fazer uma distinção entre a mudança da administração pública, num amplo sentido, como
mudança na sua relação com o cidadão e, num sentido restrito, como mudança na estrutura interna
do sistema administrativo (Pitschas, 2001), penso que a questão da responsabilidade é um
instrumento analítico que permite articular estas duas dimensões. Isto é tanto mais importante
quanto, face à diferenciação dos sistemas sociais e à complexidade dos atos e funções, torna-se
necessário dispor de uma generalização de símbolos que exprimam a unidade do sistema: a
responsabilidade política e ética é um deles (Luhmann, 1980). A responsabilidade como conceito, por
um lado, abrange o funcionamento do sistema administrativo — prestar contas dos atos e decisões,
cumprir prazos e procedimentos, desempenho profissional, comportamentos neutros e impessoais,
etc. — e, por outro, afeta a produção (ou não) de confiança do cidadão no sistema, na difusão da
ética profissional e na realização eficaz dos programas públicos, como valor de legitimação do
funcionamento da administração. A adesão dos indivíduos ao processo de modernização e de
racionalização da administração é, além de um ato que diz respeito ao próprio interesse, um ato de
confiança na forma como a ética profissional é respeitada pela autoridade.
A ética é hoje um valor em relativo declínio, mas sem confiança nos comportamentos e nos
processos, não haverá adesão a uma reforma modernizadora. A ética profissional é um
procedimento e um modelo de ação. Ora, uma prática administrativa e política alheada das
exigências dos cidadãos em matéria de responsabilidade face à utilização dos recursos públicos
(menosprezando os programas de accountability, ou seja, a obrigação de responder pelos atos e
resultados), face às decisões vinculantes que a afetamos indivíduos e face aos riscos e incertezas da
sociedade, aprofunda o déficit de legitimidade e de desempenho dos sistemas administrativo e
político. Nesse sentido o conceito de responsabilidade, que, no nosso entender, vai além da noção
de accountability, constitui um dos fundamentos contratuais da vida em sociedade e da confiança
nas instituições políticas e administrativas. O conceito de responsabilidade assegura o princípio tanto
da utilização e prestação de contas dos recursos públicos e da autoridade política e administrativa,
como o princípio de precaução e segurança das sociedades cada vez mais complexas.
O objetivo deste artigo é aprofundar a questão da responsabilidade em três níveis. Uma dimensão
organizacional, enquanto funcionamento do sistema administrativo e prestação de contas dos
resultados;
umas
dimensões
institucionais,
entendidas
como
responsabilidade
política
e
administrativa face aos direitos da cidadania; e, por último, uma dimensão contratual da
responsabilidade política, entendida como categoria constitutiva da democracia numa fase de
sociedade de risco. Esta distinção é naturalmente arbitrária e tem apenas por função delimitar
melhores as diferentes competências e obrigações de cada um dos níveis. A categoria de cidadania,
como matriz de integração social e sistêmica, percorre cada uma das três dimensões do cidadão,
como contribuinte, como eleitor e como partícipe da sociedade. A categoria de cidadania, operando
como mediadora entre os indivíduos e as estruturas sociais, constitui-se como uma forma especial de
organizar o espaço político e onde assentam a diferenciação, a integração, as tensões e as
orientações sociais e organizacionais da vida coletiva em democracia.
A dimensão organizacional: accountability
A responsabilidade sobre os atos e as funções do sistema administrativo tem vindo a ser
equacionada em torno do conceito de accountability, interpretado como a obrigação de responder
pelos resultados (Araújo, 2000), no sentido do controlo orçamental e organizacional sobre os atos
administrativos, do respeito pela legalidade dos procedimentos e da responsabilização pelas
conseqüências da execução das políticas públicas.
Os métodos de controlo na administração pública assentam, normalmente, no controlo hierárquico
interno sobre as competências e funções, no controlo da prestação de contas dos programas e
políticas, no controle normativo prévio — orientações estipulando antecipadamente os procedimentos
administrativos de controlo a serem observados — e nas auditorias internas e externas à
administração por entidades certificadas ou por órgãos de soberania. Certamente que esta panóplia
de instrumentos não indica a efetividade dos mesmos: o descontrolo sobre os atos e a falta de
responsabilidade perante o cidadão — desde os prazos de respostas até o controlo dos gastos,
passando pela eficiência da função — por parte do sistema administrativo e da autoridade política
são, na nossa sociedade, alguns dos elementos fundamentais do déficit de confiança e da opacidade
da administração pública e do poder político.
O controlo externo, nomeadamente a publicidade dos atos, as informações veiculadas pelo sistema
de comunicação social, a abertura dos processos (audiências públicas) antes da tomada de decisão,
a intervenção orientadora e crítica dos grupos de interesse público, bem como o funcionamento do
próprio mercado, apesar da sua importância crescente no controlo exterior do sistema administrativo,
não têm vindo a ser suficiente para inverter a tendência da insuficiente credibilidade, em matéria de
responsabilidade, da administração pública e da autoridade política. A atual difusão do método de
accountability — obrigação de responder pelos resultados —, originário da tradição das organizações
privadas e das instituições simples, apresenta-se, em teoria, como a solução do problema da
responsabilidade da administração pública. A idéia da accountability, ou da obrigação de prestar
contas dos resultados, foi sendo transposta para as entidades públicas como instrumento do controlo
financeiro, tanto do ponto de vista do orçamento dos programas e medidas implementadas, como em
torno da relação cont, ou seja, critérios orientados pelos indicadores da eficiência e do controlo
orçamental.
Neste aspecto, deve assinalar-se que o princípio da accountability tem um forte potencial na reforma
da administração pública, nomeadamente no que se refere à ênfase posta na técnica de controlo dos
abusos orçamentais, na segurança relativa à utilização dos recursos públicos, bem como no
processo de aprendizagem no controlo dos custos e da gestão da qualidade (Wolf, 2000) dos
resultados. Contudo, no que diz respeito ao princípio de prestar contas dos resultados, parece haver
atualmente uma tendência para a deslocação dos aspectos legais, hierárquicos e políticos para, em
contrapartida, enfatizar os aspectos financeiros e econômicos (Romzek, 2000), particularmente nos
custos dos programas e de pessoal. O processo da accountability, portanto, é utilizado como meio
não apenas de controlar a utilização dos recursos públicos, segundo critérios e processos de
apresentação de contas e resultados, mas também como maneira de estimular ganhos econômicos e
eficiência com respeito aos recursos públicos. Hoje em dia não faltam razões para tal preocupação:
desde o problema do déficit fiscal, do peso do sector público na economia e dos gastos com o
pessoal, até à tendência para o incremento regular da carga fiscal no rendimento dos indivíduos e
das empresas.
Contudo, o conceito de accountability, apesar da sua centralidade na prestação de contas dos atos
administrativos e na definição, formulação e controlo das políticas públicas (Peters, 1995),
nomeadamente nos indicadores da relação resultados/custos, parecem ser menos pertinentes
quando se trata da qualidade dos produtos, da racionalidade das medidas e da equidade da
utilização, ou mesmo dos critérios de eficiência dos recursos públicos. Para estes resultados mais
qualitativos, parece não haver indicadores adequados no modelo financeiro da accountability. O
princípio da accountability na administração pública não pode ser reduzido a uma questão técnica,
pois trata-se de uma questão democrática (Wolf, 2000). É nesse contexto que se nos afigura
importante abordar a questão da obrigação de responder pelos resultados, num registro mais
político, onde o problema da responsabilidade pela utilização dos recursos públicos se relaciona mais
amplamente com a cidadania e a responsabilidade política. Afigura-se que a importância de prestar
contas dos resultados não pode visar apenas à eficiência das políticas, mas também o tipo de
orientação prevalecente numa sociedade democrática. Na terceira parte deste artigo voltaremos a
esta questão problemática. Por agora e ainda dentro deste ponto, pensamos ser necessário, para
uma melhor compreensão das virtualidades e dos limites das técnicas do accountability, tecer
algumas considerações sobre os problemas que este procedimento levanta na nossa administração,
tanto ao nível da atual estrutura organizacional da administração pública, como ao nível dos
comportamentos e do funcionamento do pessoal do sector público.
Em primeiro lugar, as reformas que, entretanto têm vindo a ser introduzida na administração pública,
nomeadamente a alteração das fronteiras do sector público, exemplificada no recurso a
subcontratação, nas parcerias entre público, privado e associativo e na delegação de competências,
contribuem para obscurecer o princípio da obrigação de prestar contas dos resultados e da gestão
dos recursos públicos. Com efeito, os sistemas de subcontratação e de parcerias, tendência em
aumento nesta fase do estado regulador e de esbatimento das fronteiras do sector público,
acarretam alguma dispersão da autoridade e das entidades às quais é devido à prestação de contas
dos resultados de gestão e de utilização dos recursos públicos (Walker, 2002).
O sistema de subcontratação praticado no sector público difere do sistema de contratação entre duas
entidades privadas independentes, na medida em que, por um lado, há mais entidades envolvidas e,
por outro, há uma separação entre o fornecimento e o financiamento. A complexidade relacional
entre as organizações limita a clareza das responsabilidades pelos atos de gestão e pelo controlo
dos resultados. Nestes sistemas há três tipos de relações: o cliente com o fornecedor, o fornecedor
com o financiador e o cidadão-cliente com o financiador. A hierarquia das responsabilidades e a
definição dos critérios de apreciação da obrigação de responder pelos resultados tornam-se mais
opacas e casuísticas. Neste sentido, a complexidade do modelo organizacional da administração
pública torna mais difícil, senão menos transparente, o processo de accountability.
Em segundo lugar e da mesma maneira que no precedente, a introdução de agências e institutos
independentes afeta o princípio de prestação de contas sobre os resultados e o controlo dos gastos,
seja porque há várias entidades envolvidas com competências de auditorias — entidades
administrativas e órgãos de soberania —, seja porque não é clara a delimitação de responsabilidades
e a compatibilizarão entre a autonomia de gestão e de produção por objetivos das agências e
institutos públicos independentes e os critérios de responsabilização oriundos da autoridade
administrativa e política (Aucoin e Heintzman, 2000).
Em terceiro lugar, o modo de funcionamento da administração, nomeadamente os princípios
organizativos e comportamentais em que assenta, em grande parte, o serviço público, limita as
virtualidades do modelo de controlo dos custos, da responsabilidade pelos atos administrativos e da
prestação de contas em face de entidades imparciais. A potencialidade do sistema de accountability,
em termos de modernização e de racionalização dos serviços públicos, pressupõe um funcionamento
pelo menos estandardizado-segundo os critérios profissionais dos atos de gestão — da
administração pública. Ora, pensamos que há vários aspectos a ter em conta na questão da
responsabilidade pelos atos de gestão e do respeito pelos procedimentos administrativos definidos.
Por um lado, a descoordenação dos vários subsistemas da administração pública, o fechamento do
processo da decisão, num âmbito de fragmentação da memória administrativa e processual, não
permite que as decisões e as medidas de controlem e fiscalização forme doutrina e precedentes na
acumulação de saber. A descontinuidade administrativa limita a fiscalização regular e continuada dos
atos administrativos e de controlo dos programas.
Por outro lado, a predominância de um ambiente de trabalho sem demasiado controlo interno e
externo, privilegia uma forma de recrutamento próxima da cultura clientelar e do conhecimento que,
por sua vez, fazem com que o desempenho profissional, a fiscalização, o controlo dos atos, estejam
imbuídos de um relativo subjetivismo, de compromissos e favores que limitam a objetividade dos
procedimentos. A cooptação é uma prática que não se limita apenas aos serviços públicos
administrativos. Também não se pode dizer que toda a administração partilha destas características:
é claro que existem situações diferenciadas e segmentos ou sectores cujo desempenho e
responsabilização são de assinalar. Trata-se, porém, de observar que, não obstante os exemplos de
excelência recentemente desenvolvidos (Mozzicafreddo, 2000), a regularidade de comportamentos
disfuncionais, uma das características da nossa administração pública — ajudada pelo déficit de
responsabilidade e de ética profissional da esfera política —, tem vindo a tornar-se mais evidente.
A dimensão política e institucional da responsabilidade
No estado de direito, a idéia de responsabilidade assenta num sistema normativo que define a sua
fundamentação legitimadora na prossecução e projeção dos direitos do cidadão e na defesa do
cidadão enquanto agente portador de um estatuto próprio no tecido social e político. A categoria de
cidadania constitui-se como uma forma especial e histórica de organizar o espaço político da
sociedade. A responsabilidade, como elemento distintivo da administração e da governarão, implica
a utilização de procedimentos e de métodos de atuação, numa perspectiva da construção de uma
sociedade de confiança, associando cidadãos, eleitos e decisores, na construção da democracia
(Albertini, 2000; Beaud e Blanquer, 1999).
Parece-nos importante, para melhor precisão da questão da responsabilidade política, abordar este
problema em dois níveis que, embora relacionados, remetem para argumentação específica.
Legitimidade e responsabilidade
Será que a eficiência nas contas públicas e a racionalização no controlo financeiro dos resultados
equivale a democraticidade dos atos de administração? Será que o aumento da responsabilidade
pelos atos de gestão pública equivale à responsabilidade política do sistema de governo?
Certamente que contribuem poderosamente para uma melhor utilização dos recursos coletivos e,
portanto, para o funcionamento democrático do sistema administrativo. Pensamos, contudo, que esta
situação, que está longe de corresponder à realidade quotidiana da nossa sociedade, não responde
adequadamente às necessidades de legitimação do sistema administrativo e político de governarão.
O respeito pelos preceitos legais, o controle das contas e a gestão eficiente dos atos e das medidas
administrativas, essenciais a uma administração racional e transparente, não podem anular ou
negligenciar a legitimidade das políticas e da utilização dos recursos coletivos: a responsabilidade
significa que o poder e, portanto, a autoridade administrativa, deve justificar-se perante os cidadãos.
Em concreto, o que parece ser central no problema da responsabilidade política é a gestão das
conseqüências das políticas e dos programas públicos que se implementam, ou seja, as
conseqüências da escolha efetuada pela autoridade política, no sentido de orientações e valores das
escolhas políticas. A confiança nas políticas públicas passa, necessariamente, pelo crivo da
prestação de contas e da transparência na utilização dos recursos públicos, mas deve assegurar,
igualmente, a equidade das políticas e da utilização dos recursos coletivos e a responsabilidade dos
atos de administração e de governo.
Aos indicadores de eficiência e de economia na gestão dos recursos públicos devem juntar-se
indicadores de avaliação da qualidade e justiça desses mesmos programas: os indicadores que
medem a positividade do controlo dos custos orçamentais e da racionalização dos atos
administrativos dos programas de combate à pobreza serão insuficientes, em termos de indicadores
de equidade, se o nível de pobreza não diminuir. Pensamos, ainda, que dificilmente aumentará a
confiança dos cidadãos nas instituições políticas se, apesar da eficiência da máquina fiscal na
arrecadação das receitas e a despeito das economias de gestão da mesma, o próprio sistema for
injusto na distribuição da carga fiscal, como é, aliás, reconhecidamente, o nosso sistema. A
realização dos valores da cidadania implica, de maneira credível, a conciliação entre a eficiência e a
justiça na esfera dos atos de administração e de governo da sociedade. Na questão da cidadania o
sistema jurídico e político têm precedência sobre a ordem funcional: os princípios de gestão
organizacional dos serviços públicos são sempre os de uma gestão para o bem público ou comum, o
qual está sujeito à prioridade do sistema jurídico e político (Pitschas, 2001).
Objetivação da responsabilidade
Com vista a refletir sobre a questão da responsabilidade política, para além da questão sobre o
contexto jurídico da responsabilidade dos decisores, interessa, para os objetivos deste texto, tecer
algumas considerações acerca do debate que tem vindo a ser levantado a propósito do déficit de
confiança nas instituições políticas e administrativas. A responsabilidade da função pública está
condicionada, por um lado, pelo fato de o exercício do poder ter por objetivo natural a obtenção de
resultados eficazes e, por outro, pela possibilidade, inerente à função, de se ser sancionado positiva
ou negativamente: não pode haver responsabilidade pela função sem sanção (Coicaud, 1999).
Para além da responsabilidade política propriamente dita, ou seja, a responsabilidade pela prestação
de contas perante os eleitores e perante os órgãos de soberania, nas suas várias dimensões de
moção de confiança, de rejeição, de demissão, interessa, neste caso, considerar a responsabilidade
política e administrativa enquanto obrigação de prestar contas pelos atos praticados no exercício da
função. Tanto ao nível da administração, como da autoridade política, é de admitir, em termos de
responsabilidade da função, que a coletividade pública, nomeadamente o estado, as câmaras, a
administração, têm o dever de reparar as conseqüências da má organização ou do não
funcionamento da administração (Moreau, 1986). Os atos do governo e da administração não podem
deixar de ter sanção administrativa ou penal pela falta ou culpa do serviço, seja culpa da organização
e do funcionamento — anônima —, seja culpa individual motivada pela ação pessoal.
A idéia de que os funcionários e os agentes políticos são responsáveis perante a autoridade
hierárquica e que estes são responsáveis perante os órgãos de soberania está bastante longe da
realidade. A responsabilidade sem sanção — para além do normal e regular ato de sanção eleitoral,
positivo ou negativo — não só é um dos principais elementos do déficit de credibilidade do sistema
administrativo e político, da perca de confiança nas instituições, como é uma das principais razões do
mau funcionamento da administração pública. Nesse contexto, é importante ter presente que o valor
pedagógico e processual, no seio da administração pública, da justiça comutativa, ou seja, do dever
público de justa indenização compensatória pela falta, independentemente da natureza ilícita do ato
praticado, impõe-se ao estado ou à administração, exclusivamente, com fundamento no princípio da
igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos (Brito, 2002).
O fato de os agentes terem que responder pelos seus atos administrativos ou decisórios obriga, em
termos de procedimentos do sistema administrativo, a terem um desempenho profissional positivo,
tanto em termos de prazos e de qualidade do ato, como da racionalidade e transparência do
funcionamento. A irresponsabilidade do sistema administrativo e da autoridade política, em termos de
funcionamento e de respeito pelos preceitos jurídicos e políticos dos direitos dos cidadãos, é
diretamente proporcional à insuficiência da sanção, positiva ou negativa, pelos atos de gestão
pública. Aliás, é razoável considerar, e veremos este assunto no último ponto deste texto, que o
declínio da responsabilidade pelos atos de administração e de governarão, está na base do aumento
da jurisdição da sociedade e das expectativas de responsabilidade penal e administrativa dos atos
decisórios.
Assinale-se ainda, a propósito da responsabilidade no funcionamento do sistema administrativo e da
autoridade política, que a disfuncionalidade da gestão pública tem, igualmente, por base razões
organizacionais e culturais, devido, justamente, à insuficiência de regras e procedimentos de atuação
orientadora da ação administrativa. As formas organizativas do trabalho, por um lado, carentes de
suficientes qualificações, tanto ao nível de quadros superiores como ao nível administrativo, e com
reduzida produtividade em termos de horas/produto e em termos de tecnologias de apoio à gestão,
e, por outro, dominadas pelas formas centralizadas das decisões, com circuitos hierárquicos e
segmentados de responsabilidades, limita o seguimento dos processos, a leitura atenta e
conscienciosa dos dossiês, a observância dos prazos e normas: incidem, em suma, negativamente
na responsabilização individual pelo desempenho do serviço público. A ausência de sanção, pela
não observância das normas de funcionamento e da fiscalização regular das decisões estabelecidas,
é igualmente um dos obstáculos ao princípio de responsabilidade e credibilidade do sistema.
Por outro lado, e relativamente à esfera política, nomeadamente ao nível dos altos cargos políticos e
institucionais, a prática exagerada do particularismo institucional (Ferrera, Hemerijk e Rhodes, 2000),
ou seja, as práticas que encorajam o corporativismo e as relações clientelares, onde não é raro
observar a mistura de agentes privados e públicos nas instituições públicas, limita a eficácia do
controlo, da fiscalização e da observância das normas. Neste contexto, as ações administrativas e
políticas, consistentes no normal prosseguimento dos dossiês, no andamento dos inquéritos e
avaliações, tornam-se, com exceção de algumas exemplares ações fiscalizadoras com forte impacto
mediático, casuísticas e instrumentais. Observe-se, contudo, que os particularismos institucionais,
sendo uma realidade política inerente aos regimes democráticos, onde a pluralidade de interesses,
as necessidades de alianças políticas que apóiam a estabilidade dos governos, faz parte das
estratégias dos executivos, não pode limitar os objetivos e a legitimidade democrática nem, o que é
por demais evidente, apresentar-se como uma das características mais salientes no lugar de um
modelo de ética política e de isenção pública.
A responsabilidade da administração face à sociedade de risco
O acumular de situações de risco e de incertezas em conseqüência do desenvolvimento da
sociedade e, sobretudo, da complexidade e das formas desse desenvolvimento, coloca a questão do
alcance e dos limites da responsabilidade pública, relativamente à sociedade democrática, numa
outra perspectiva, complementar, certamente, mas específica.
Como uma primeira observação de apresentação do problema, vale a pena lembrar a dimensão das
incertezas e das situações de risco da vida em comum que se manifestam atualmente, quer na rua,
nas estradas e pontes, nos locais de trabalho, nos hospitais e escolas, quer nos espaços lúdicos
noturnos, nos parques de divertimentos, etc. As incertezas e as situações de risco manifestam-se,
igualmente, no âmbito do controlo social, ambiental e técnico, adequado à preservação das
condições ambientais, na manipulação genética dos alimentos, no âmbito das novas tecnologias e
nos problemas da projeção da privacidade.
Os problemas com as situações imprevistas, com as incertezas e inseguranças dos cidadãos não
são, porém, novos na nossa sociedade. A sua visibilidade é hoje maior devido, sobretudo, à
acumulação de situações de ruptura técnica e social, ao aumento de expectativas dos cidadãos e,
ainda, a manifesta omissão política em implementar programas de manutenção dos equipamentos
coletivos e de fiscalização das situações irregulares.
Num segundo ponto de apresentação do problema, consideramos que o aumento das situações de
risco e de incerteza verificado é um dos fatores, entre outros, que estimulam a tendência para a
jurisdição das relações sociais. A tendência atual de resolução dos problemas pela via jurídica, por
um lado, encoraja o sentimento e a ideologia da vitimização, com o conseqüente processo de
indenização e, simultaneamente, a exigência de novas regras de regulação e, por outro, esta
tendência para a criminalização ou responsabilização política e administrativa pode ser interpretada
como uma nova sensibilidade política, que traduz uma percepção da indiferença dos poderosos (da
esfera política e administrativa) pelo sofrimento do cidadão comum. Esta sensibilidade apresenta-se
como uma procura de responsabilização individual, pagadora face a um quotidiano vivido como
injusto e incerto: é uma reivindicação política (Beaud, 2000), entendida como uma exigência dos
cidadãos, face ao estado e à elite política e administrativa, de responsabilidade política pelos seus
atos.
Pretende-se, assim, nesta última parte do texto, refletir sobre as diferentes fases da evolução
sociológica da responsabilidade, nas quais e num contexto de direitos do cidadão, as incertezas e o
risco foram sendo estruturados. Digamos, em termos de questões problemáticas, que a noção da
responsabilidade e da culpa percorre fases distintas.
A questão da responsabilidade, relativamente às incertezas dos indivíduos e aos riscos que surgem
na vida em sociedade, tem vindo a sofrer significativas transformações ao longo do processo de
individualização das sociedades. Por um lado, o processo social de individualização tem conduzido a
um distanciamento dos indivíduos relativamente às comunidades tradicionais de pertença e a uma
dependência institucional, laboral e urbana, que dificilmente podem, de maneira eficaz, funcionar
como fatores de integração. É nessa nova relação de dependência que se situa a expansão das
incertezas com as quais o indivíduo se confronta. Por outro lado, a noção de risco é evolutiva e
inseparável da idéia de probabilidade — cálculo das conseqüências possíveis. A idéia de risco supõe
que as ações não estão garantidas à partida. Além do mais, a sociedade de risco é uma sociedade
orientada para o futuro: assim, desligar-se do passado e das comunidades e instituição de integração
introduz incertezas quanto ao futuro da ação (Giddens, 2000).
A questão da responsabilidade e da cidadania coloca-se de maneira muito diferente nas três fases
mais distintivas da evolução das sociedades modernas: no início da industrialização e no regime
político liberal; na sociedade industrial e no estado de direito; e na sociedade moderna com o seu
estado regulador. Nos pontos a seguir tentaremos discutir, de maneira assaz sintética, a evolução
das formas de responsabilidade, segundo o contexto histórico e, naturalmente, de organização
política da sociedade.
Sociedade liberal
Na primeira fase que nos interessa considerar, ou seja, nos inícios da sociedade industrial e no
contexto de um regime político relativamente liberal, o paralelismo entre industrialização, incerteza,
pobreza e desintegração social é equacionado em termos de esferas autônomas de ação: pensa-se
numa distinção clara entre direito e moral. Estes deveres de assistência não indicam que os pobres
tenham direito à assistência, mas indicam, ao contrário, que o que está em discussão é o que pode
ser, ou não ser, direito: são os critérios de juridicidade que se discutem, por forma a estabelecer o
limite entre o direito e o dever (Ewald, 1996). O direito é contratual, supõe a troca de equivalentes e,
assim, a sociedade não pode ajudar o outro sem contrapartidas: o que é moral não pode ser uma
obrigação.
As incertezas ou o infortúnio do indivíduo no seu relacionamento com a sociedade são, neste
contexto, uma responsabilidade individual, uma responsabilidade de indivíduos mais ou menos
previdentes com as eventuais situações aleatórias da sociedade e do trabalho. A moral da
assistência e os deveres de socorro humanitário evidenciam a contradição entre a utopia liberal
formulada pela economia de mercado do laissez-faire e as exigências da política (Bendix, 1974). O
estado deve, por imperativo moral, promover o socorro mútuo e a assistência, mas sem que possa
consagrá-los como obrigação jurídica. A pobreza é um comportamento e não pode ser equacionada
como um direito.
Sociedade industrial
Numa segunda fase da evolução, em que a sociedade industrial e o contexto do estado de direito
predominam, a sociedade redefine a sua filosofia da responsabilidade. O pensamento político e a
prática social começam por admitir, face à regularidade da relação entre a industrialização e as
incertezas e os riscos da existência, que a responsabilidade pelos atos da vida em comum, neste
caso, pelo progresso econômico e social, pode ser imputada à entidade que constitui o progresso, ou
seja, a sociedade. Qual é a razão deste deslocamento da noção de responsabilidade?
Por um lado, a percepção de que existem razões econômicas, sociais e urbanas para as incertezas e
infortúnios, nomeadamente a pobreza: a industrialização é um fenômeno sociológico que invade e
altera os outros sectores da sociedade e modifica a relação dos indivíduos com o meio ambiente.
Por outro, pensa-se que as zonas de incertezas e de riscos que a sociedade industrial produz
obedecem a uma variedade de causas com efeitos diretos e indiretos e diferidos no tempo. Entre o
estado e o indivíduo, num crescendo do processo de individualização, descobre-se, com base na
regularidade dos acidentes de trabalho, que a sociedade opera uma distribuição dos infortúnios ou
das desgraças segundo uma lógica própria do social, independentemente da boa ou má conduta de
cada um (Beck, 1998): o crescimento econômico é um produto social. Por último, o desenvolvimento
dos direitos de cidadania altera a noção da responsabilidade, na medida em que a igualdade perante
a lei e a sua concretização nos regimes democráticos encoraja o estabelecimento de direitos sociais
que funcionam como mecanismos de compensação das assimetrias e das incertezas resultantes do
mercado (Flora e Heidenheimer, 1990).
A figura jurídica do seguro de acidente de trabalho, nos finais do século XIX, torna-se o modelo típico
da deslocação da percepção do direito e da discussão sobre os critérios de juridicidade. A relação
salarial não é apenas uma troca de equivalentes. Do fato de o trabalhador estar sujeito à forma como
é organizado o processo de trabalho, decorre que a questão da segurança no trabalho se torna uma
responsabilidade do coletivo (Ewald, 1996). Estas medidas sociais e atos legislativos abrem a via
para a noção de responsabilidade sem culpa. Doravante trata-se de equacionar a responsabilidade
como uma gestão coletiva do risco, pressupondo, sociologicamente, que se pode gerir a incerteza
social (Engel, 1995).
Sociedade moderna
Na questão das características da sociedade moderna e do seu estado regulador, interessa, antes do
mais, assinalar que o problema que se apresenta com a sociedade industrial, em matéria de
responsabilidade, é a contradição entre o conteúdo universal da sua modernidade e a estrutura
seletiva das suas realizações. Considera-se que é neste âmbito que a responsabilidade pelas
conseqüências das suas ações não é assumida positivamente face ao cidadão. No fundo, como
refere Beck, trata-se de uma fratura na modernidade da sociedade industrial, de uma
descontinuidade da sua trajetória: a expansão das zonas de incertezas e o descontrolo dos riscos —
nomeadamente no ambiente e comercialização da natureza, nas transformações genéticas e no
descontrolo das doenças e nos riscos da vida quotidiana e no trabalho — põem em causa a idéia de
que a sociedade industrial é o ponto culminante da modernidade (Beck, 1998).
Na sociedade moderna, a interdependência dos sistemas e a diversidade de causas dos fenômenos
sociais sustentam a indefinição das responsabilidades. A produção de riquezas é acompanhada da
produção e distribuição de riscos: os efeitos do desenvolvimento e do modelo praticado —
assimétricos, seletivos, descontínuos, desiguais e casuísticos — tendem a escapar ao controlo das
instituições de orientação e de projeção dos cidadãos (Beck, 2000): a lógica da produção domina a
lógica do risco.
No contexto da evolução complexa das sociedades a questão da responsabilidade desloca-se,
relativamente à sociedade industrial, para assumir características mais abrangentes. Por um lado, a
cidadania torna-se um princípio de organização da sociedade: mais do que um direito social ou um
conjunto de direitos é um instrumento ou uma matriz de organização e de regulação das sociedades
através da qual se equacionam as formas de integração. A função integradora desta categoria é
tanto mais reforçada quanto mais a comunidade de trabalho, perante as mudanças ocorridas, vai
perdendo a sua capacidade integradora. Por outro lado, na sociedade moderna, perante a expansão
dos riscos e das incertezas sociais, a capacidade de gerir a conflitualidade de responsabilidade
distributiva — como prevenir, limitar e distribuir os riscos e incertezas que acompanham a produção
de bens e o controlo da natureza — exige maior competência e responsabilização do estado e da
administração pública na sua função de socializar as incertezas e os riscos.
Em suma, numa sociedade onde as formas de mediação entre os indivíduos e o estado têm vindo a
perder importância, exige-se, da esfera do político, uma clara e direta responsabilização pelos efeitos
do desenvolvimento e pela integração social.
Sendo hoje a cidadania uma matriz de organização e de recomposição do tecido social das
sociedades modernas e uma categoria social, na base da qual a sociedade assume coletivamente as
incertezas e os riscos decorrentes da vida em comum, torna-se claro que a cidadania, como junção
da subjetividade e da objetividade políticas, funciona, segundo Luhmann (1993), como base potencial
de conflitos que já não podem ser tratados segundo as tradicionais disputas políticas e as ineficientes
responsabilidades funcionais instituídas.
Em síntese, o sentimento de responsabilidade, como dizia Max Weber (1959), é uma das qualidades
mais significativas de um político, faz parte constitutiva da ética política. Esta qualidade, que
raramente se evidencia, não é apenas importante porque caracteriza o sentido do serviço público,
mas porque, neste contexto e juridicamente falando, a responsabilidade é sobretudo indireta. A
responsabilidade política é total, mas é uma responsabilidade da função e não se afigura legítimo
pensar que seja penal, dada a relação indireta com o que está em causa (Engel, 1995). Em termos
de responsabilidade pública é direta, mas em termos jurídicos é diferida nos escalões hierárquicos da
administração. Daí, portanto, a importância de um funcionamento da administração pública, em
termos de direito administrativo, que estimule, encoraje e cumpra o controlo e a fiscalização dos atos
e das decisões com efeitos conseqüentes na vida da sociedade.
O sentido da responsabilidade do político é, no entanto, algo mais do que controlo e fiscalização: é
um modelo de ação e de comportamento. Muito dificilmente a administração e o cidadão comum
terão um comportamento de observância das normas e de empenhamento responsável num
ambiente de desresponsabilidade política e administrativa face ao cidadão e à sociedade em geral.
Nota
1 Este texto tem por base uma comunicação apresentada no colóquio Administração e Cidadania: Modernização dos Serviços Públicos, organizado pelo mestrado em Administração e
Políticas Públicas, do ISCTE, em 23 e 24 de Maio de 2002.
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Para uma análise crítica
A REFORMA DO APARELHO DO ESTADO - UMA SÍNTESE

Uma Administração eficiente

Principais pontos da Reforma

O que a Sociedade ganha com a Reforma

O que o Servidor Público ganha com a Reforma

O que muda com as Emendas Constitucionais
Uma Administração eficiente
O objetivo da reforma é permitir que a administração pública se torne mais eficiente e ofereça ao
cidadão serviços com maior qualidade. Ou seja, que atenda melhor utilizando com mais eficiência os
recursos disponíveis. O que se busca é uma administração voltada para a eficiência, ao contrário do
que se tem hoje: uma administração voltada para o controle de processos.
De outro lado, para garantir a estabilidade do Plano Real, o Governo precisa coibir o desperdício e
racionalizar o gasto público. O que o Governo quer com a reforma é impedir que os gastos
aumentem, consumindo os recursos do Estado, sem que haja uma contrapartida de eficiência e
qualidade nos serviços prestados. Pela atual Constituição, o Governo enfrenta grandes obstáculos
para introduzir políticas voltadas para a cobrança de desempenho do serviço público e para a
racionalização das despesas.
A proposta de reforma administrativa entrou na agenda da sociedade brasileira, está nos jornais, é
discutida pelas pessoas. Ao contrário de 1988, hoje o País conta com uma administração
transparente, tem consciência do tamanho do problema e as decisões a serem tomadas pelo
Congresso poderão refletir o que pensa a sociedade.
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Principais pontos da Reforma
A reforma administrativa passa pela aprovação das emendas constitucionais, que possibilitarão a
flexibilização da estabilidade dos servidores públicos. As emendas também estabelecem que os
aumentos salariais dos servidores do Executivo, Legislativo e Judiciário só possam ocorrer através
de projetos de lei.
Mas a reforma abrange também inúmeros outros importantes projetos, alguns já em implantação,
como, por exemplo, a flexibilização de gestão das fundações e autarquias, avaliação de desempenho
dos órgãos e dos servidores públicos, novos métodos de gestão, valorização do servidor e a abertura
de concurso para a renovação dos quadros da administração federal.
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O que a Sociedade ganha com a Reforma
Uma administração pública eficiente: a melhoria da eficiência significa que o Estado será capaz de
gerar mais benefícios, na forma de prestação de serviços à sociedade, com os mesmos recursos
disponíveis. Ou seja, o Governo entende que o problema não é simplesmente cortar gastos, mas
gastar com eficiência e responsabilidade o que se tem.
O equilíbrio das contas nos Estados e Municípios: Estados e Municípios terão condições legais
de promover, de forma mais eficaz, seus processos de ajustamento das contas públicas. Existe hoje
uma grave situação de quase inadimplência em muitos Estados e Municípios, nos quais a folha de
pagamento responde por até 91% da receita disponível. O ajustamento é necessário e a sociedade
só tem a ganhar, ainda que possam haver custos sociais localizados com o desligamento de
servidores.
O Estado deixa de ser um obstáculo à retomada do desenvolvimento econômico: hoje o setor
privado já se ajustou e está voltando a investir. O Estado, entretanto, continua amarrado pelo
desequilíbrio das contas e pela desorganização interna, perda de técnicos qualificados, baixo
desempenho e persistência no uso de formas atrasadas de gestão. O Governo não quer desmontar o
Estado. As experiências bem sucedidas no mundo inteiro mostram que é fundamental uma
burocracia ágil, moderna, capaz de planejar e promover as condições necessárias para o
crescimento sustentado e socialmente justo. Nunca poderemos abrir mão da presença do Estado,
por exemplo, na estabilização da economia, na segurança do cidadão, na oferta de um bom sistema
educacional que qualifique a força de trabalho, no estímulo à pesquisa e ao desenvolvimento
científico e tecnológico, na garantia de bons serviços de saúde e de assistência social.
Serviços públicos com qualidade: a retirada de normas e controles desnecessários, a
flexibilização de gestão e a ênfase no desempenho vão ajudar a administração pública a oferecer
serviços melhores, com maior qualidade. O serviço público poderá assimilar o que há de positivo na
experiência de gestão das organizações e empresas mais modernas, direcionando a sua atuação
para a satisfação do cidadão/contribuinte.
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O que o Servidor Público ganha com a Reforma
O servidor ganhará o respeito da sociedade: a opinião pública tem hoje uma imagem muito
negativa do servidor. Para reverter esta imagem, a sociedade precisa saber que a maioria dos
servidores trabalha muito e é dedicada ao ideal de servir ao público. Por isso os servidores não
devem temer medidas que visam a favorecer a sua profissionalização. Cobrar desempenho e até
mesmo, como medida extrema, demitir o servidor que não se empenha no seu trabalho, não é
"perseguir" a categoria, mas reforçar a sua profissionalização. A estabilidade só se justifica no
interesse do Estado: ela não deve ser confundida com eternização no cargo público.
O servidor terá certeza de que seu trabalho é necessário: é preciso que os servidores tenham
claro que a função do Estado não é dar empregos, mas prestar os serviços de que a sociedade e o
contribuinte necessitam. Dessa forma, não faz sentido manter empregos desnecessários. Os
Estados ou Municípios, que, diante de uma situação insustentável nas contas públicas, tiverem de se
ajustar pelo desligamento de servidores, poderão, daqui para a frente, retomar o crescimento
acautelando-se contra o empreguismo.
O servidor terá o seu desenvolvimento profissional estimulado: será permitida a reserva de
vagas nos concursos públicos para os servidores. Dessa forma, muitos servidores que hoje ocupam
cargos inferiores à qualificação que adquiriram serão estimulados a disputar um cargo melhor. Além
disso, serão desencadeados programas de treinamento em massa e sistemas de promoção do
servidor vinculados a cursos de aperfeiçoamento.
O quadro de servidores será renovado: a abertura de concursos e a organização de carreiras irá
renovar o quadro de servidores, com a entrada de sangue novo, e representará um avanço nas
condições de trabalho e na qualidade dos serviços.
As condições de trabalho vão melhorar: novos métodos de gestão, maior autonomia e
profissionalização da gerência, indicadores de desempenho, sistemas de avaliação permanente do
servidor e dos órgãos, serão projetos que deverão, a longo prazo, produzir uma verdadeira revolução
gerencial no serviço público, que hoje está muito defasado em relação às organizações privadas.
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O que muda com as Emendas Constitucionais
Estabilidade

Só terão estabilidade no cargo os servidores contratados por concurso, depois de
cinco anos de exercício, sendo exigida uma avaliação ao final do período. Hoje, os
servidores ganham a estabilidade depois de dois anos.

Poderão ser recrutados servidores que não terão direito à estabilidade, através de
processo seletivo público, para ocuparem empregos. Este tipo de contratação deverá
ser utilizado preponderantemente em áreas de atividades operacionais ou de apoio,
que, pela sua natureza, tenham grande similaridade com as atividades do setor
privado.

Os servidores estáveis poderão perder o cargo por insuficiência de desempenho, mas
será necessária a abertura de processo administrativo específico, com direito a ampla
defesa por parte do servidor.

Poderá haver o desligamento de servidores estáveis também em decorrência de
necessidade da administração pública ou para redução de gastos com pessoal. Neste
último caso, a redução de gastos se justificaria como alternativa, que os Estados e
Municípios poderão adotar, para o cumprimento dos limites previstos na própria
Constituição e regulamentados em lei recentemente aprovada no Congresso (Lei
Complementar nº 82/95), que fixou em 60% o percentual máximo de gastos com
pessoal considerando a receita disponível. Para inibir a utilização abusiva deste
dispositivo, os cargos dos servidores desligados serão automaticamente extintos,
ficando proibida a criação de novo cargo com as mesmas funções durante 4 anos.
Além disso, o servidor terá direito a uma indenização por ocasião da dispensa.

Os servidores responsáveis por atividades exclusivas de Estado, que requerem
maiores garantias no exercício de suas funções, não serão alcançados pela
modalidade de desligamento por necessidade administrativa. Entendeu-se que tais
atividades (que compreendem, por exemplo, as áreas de segurança pública,
tributação, diplomacia, etc.) expõem o servidor a pressões tornando recomendável, no
interesse da própria administração, a preservação de uma estabilidade mais rígida.

Os servidores estáveis poderão ser colocados em disponibilidade remunerada, como
alternativa ao uso do desligamento por necessidade da administração. A remuneração
a que farão jus será proporcional ao tempo de serviço e o servidor preserva o vínculo
com a administração.
Remunerações

O Legislativo passa a ter de encaminhar, através de projeto de lei, qualquer proposta
de aumento de remuneração dos seus servidores. Atualmente, estes assuntos são
resolvidos por meio de simples atos internos do Congresso, que não estão sujeitos ao
veto presidencial. Se os três Poderes ficarem obrigados a decidir estas questões
através dos procedimentos da lei, poderá haver uma maior transparência e equilíbrio,
inclusive com a contenção de possíveis excessos.

Será reforçada a disposição constitucional no sentido da aplicação dos tetos de
remuneração, que agora alcançam também os proventos dos servidores inativos. Ou
seja, os proventos e pensões serão enquadrados nos tetos.

A isonomia de vencimentos entre os servidores deixa de ser tratada no Texto
Constitucional, passando a ser questão administrativa e não mais objeto de
questionamentos e reivindicações na Justiça.
Regime Jurídico dos Servidores

Deixa de ser obrigatória a adoção de um regime jurídico único para todos os
servidores. Cada esfera de Governo - União, Estados, Distrito Federal e Municípios poderá, se quiser, adotar mais de um regime, que poderá ser, inclusive, o regime
celetista. Poderão ser criados regimes diferenciados para atender às peculiaridades
das autarquias e fundações.
Concursos

Fica criado o processo seletivo público, que será uma modalidade de recrutamento de
empregados públicos, mais simplificada e rápida que o concurso, mas que não
conferirá estabilidade ao empregado. Esta modalidade, da mesma forma que o
concurso, terá de atender a requisitos de publicidade, legalidade e impessoalidade.

Poderão ser contratados estrangeiros para cargos, empregos e funções públicas, nos
casos em que a lei expressamente o permitir. A Constituição atual proíbe o acesso de
estrangeiros a cargos ou empregos em caráter permanente. Esta medida deverá
favorecer, por exemplo, a contratação de professores estrangeiros nas instituições de
ensino e pesquisa.
Descentralização

Será facilitada a formação de consórcios ou a celebração de convênios para a atuação
cooperativa entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios quando se tratar da
gestão de serviços públicos ou atividades que envolva mais de um nível de Governo.
Dessa forma, poderão ser criados, por exemplo, órgãos intergovernamentais para a
gestão de serviços públicos. Será permitida também, mediante acordo entre as partes,
a transferência de servidores e de patrimônio de um para outro nível de Governo - por
exemplo, da União para Estados ou Municípios, em situações onde seja necessária a
descentralização de atividades.
A REFORMA DO APARELHO DO ESTADO - PERGUNTAS E RESPOSTAS

A Reforma

O Regime Jurídico

A Estabilidade

Os Concursos

A Remuneração
A Reforma
O que é a reforma do aparelho do Estado?
A reforma do aparelho de Estado é a mudança nas leis, nos regulamentos e nas técnicas e formas
de trabalho da administração pública, visando a melhoria da eficiência e do atendimento às
necessidades da sociedade. São diversos projetos, dos quais as emendas constitucionais
representam apenas uma parte, que serão desenvolvidos nos próximos anos, com o ativo
envolvimento dos servidores e a participação da sociedade.
O que é o aparelho do Estado?
O aparelho do Estado é o Estado como organização, que conta com servidores públicos, recursos
financeiros, máquinas, equipamentos e instalações, para a prestação de serviços no interesse da
sociedade. O aparelho do Estado é o executor das decisões que são tomadas pelo Governo. Daí, a
necessidade de que atue com eficiência e presteza, em respeito ao contribuinte e procurando
sempre dar respostas às necessidades da sociedade.
Por que o Governo decidiu fazer esta reforma?
Porque há um consenso nacional de que a administração pública não tem conseguido atender
adequadamente à sociedade. O cidadão que sustenta a administração pública com o pagamento de
impostos deseja mais eficiência com melhores serviços. E o Governo entende que o problema hoje
no Brasil não é pura e simplesmente reduzir o Estado, mas reorganizá-lo e até permitir o seu
crescimento saudável naquelas áreas onde ele é efetivamente necessário, para assegurar serviços
sociais de melhor qualidade para todos.
Quais são as mudanças que acontecerão na Constituição?
As mudanças ocorrerão nos seguintes pontos principais:
1. fim da obrigatoriedade de adoção de um regime jurídico único para os servidores;
2. mudança das regras que regem a estabilidade;
3. permissão de reserva de vagas nos concursos para os servidores;
4. maior transparência na política de remuneração;
5. maior flexibilidade de gestão na administração.
Quais os resultados que o Governo espera da reforma?
O Governo espera que a reforma conduza a uma administração pública mais eficiente, com serviços
públicos de qualidade e com capacidade técnica de contribuir para o desenvolvimento econômico e
social do País. Espera também que a reforma facilite o equilíbrio das contas, especialmente dos
Estados e Municípios, e reduza desperdícios. Além disso, quando alcançarmos uma administração
mais eficiente, estaremos também revalorizando o servidor e conquistando o respeito da sociedade
pelo seu trabalho.
A reforma do aparelho de Estado se conclui com a aprovação das emendas constitucionais?
Não. As emendas constitucionais são apenas um momento de um processo muito mais amplo.
Outros projetos importantes estão sendo implementados, dentro da reforma administrativa do
Governo Federal, como, por exemplo: a abertura de concursos para contratação de novos servidores
para os ministérios e autarquias da União; a flexibilização da gestão nas autarquias e fundações; o
programa de qualidade na administração pública; a avaliação de desempenho e os programas de
treinamento para os servidores; a implantação de indicadores de desempenho dos órgãos da
administração; a criação de mecanismos de controle da sociedade sobre a administração, etc.
Volta ao início
O Regime Jurídico: O regime jurídico único vai acabar?
Na verdade, o que o Governo pretende é o fim da obrigatoriedade de adoção de um único regime
jurídico para os servidores. Ou seja, poderá existir mais de um regime jurídico, se a União, os
Estados ou os Municípios assim o quiserem. Será possível, inclusive, a adoção do regime da CLT,
utilizado nas empresas estatais e no setor privado. O objetivo é permitir maior flexibilidade gerencial,
conforme as peculiaridades de cada setor.
O que é regime jurídico?
O regime jurídico é a lei com base na qual são definidos os direitos, deveres e demais parâmetros
que devem regular o relacionamento entre empregado e empregador. O chamado "Regime Jurídico
Único" - RJU - é o regime jurídico dos servidores públicos civis da administração direta, das
autarquias e das fundações, instituído pela Lei n.º 8.112/90. O RJU regula a relação entre os
servidores públicos e a administração. A este regime se incorporaram, por ocasião de sua criação,
em 1990, os funcionários públicos que eram regidos pela antiga Lei n.º 1.711/52 (o Estatuto dos
Funcionários Públicos Civis da União) e os empregados públicos que eram regidos pelo regime
celetista.
A permissão de vários regimes não poderá desorganizar a administração?
Eles não vão desorganizar a administração se atenderem à necessidade de adequar o regime
jurídico às necessidades de cada segmento do aparelho do Estado. Em outras palavras, poderão ser
criados regimes diferenciados ou adotado o regime celetista, conforme as características de cada
área de atividade. Naquelas áreas onde estas características se aproximam mais do que é
encontrado no setor privado, por exemplo, poderá ser adotado o regime celetista.
Os servidores estatutários poderão ser enquadrados no regime celetista?
Não. Se for adotado o regime celetista, ele será utilizado para a contratação de novos servidores em
atividades onde este regime seja mais adequado. Os servidores que já estão no regime da Lei nº
8.112/90 poderão continuar como estatutários.
A Estabilidade
O Governo é contra a estabilidade do servidor público?
O Governo não é contra a estabilidade, quando ela representa uma efetiva garantia do Estado para o
exercício das suas funções, por intermédio de seus servidores. O que o Governo não quer é a
estabilidade como puro e simples privilégio dos servidores. Por isso o Governo defende o
aperfeiçoamento dos dispositivos que regulam a estabilidade na nossa Constituição.
Por que os servidores públicos precisam da estabilidade?
A estabilidade é uma proteção para o Estado. O servidor público estável, no seu trabalho, é um
agente dos poderes públicos. Ele age em nome do Estado e por esta razão pode estar sujeito a
pressões e conflitos no momento em que, para fazer cumprir a lei e as decisões do Estado, ele
contraria interesses. Mas esta proteção deve ser entendida como uma garantia do Estado e não
como um privilégio ou um "direito individual do servidor".
A estabilidade é prejudicial à administração pública?
Ela se torna prejudicial no momento em que deixa de ser tratada como uma garantia da
administração para ser entendida como um privilégio ou um "direito" do servidor. Para uma boa
gestão na administração pública ou em qualquer organização, ninguém pode deixar de ser cobrado
pelo seu desempenho e compromisso com o trabalho. A estabilidade não pode ser um obstáculo ao
afastamento dos maus servidores.
O Governo vai acabar com a estabilidade?
A estabilidade não vai acabar. Será aperfeiçoada de modo a se tornar compatível com a cobrança de
desempenho do servidor e com a necessidade de reduzir o excesso de quadros. Ou seja, o Governo
vai rever as condições em que a estabilidade é concedida, conforme as características de cada
atividade do Estado. Nem todos os servidores precisam do mesmo tipo de estabilidade. Alguns, pela
natureza do seu trabalho, requerem uma estabilidade mais rígida; outros, não.
O Governo vai flexibilizar a estabilidade?
Ela será flexibilizada de forma a que passem a existir diferentes regras de estabilidade, de acordo
com a natureza de cada atividade. Assim, em alguns segmentos, a estabilidade será mais rígida,
enquanto em outros ela será flexibilizada para permitir uma maior agilidade de gestão.
Então, serão definidas diferentes regras de estabilidade?
Sim. Os servidores que exercem as chamadas atividades exclusivas de Estado terão a estabilidade
mais rígida. Os demais servidores poderão ser desligados por necessidade da administração pública.
Nos dois casos, todos os servidores poderão perder os seus cargos por insuficiência de
desempenho.
Quais as diferenças, com relação à estabilidade, entre a Constituição atual e a proposta do
Governo?
A diferença está em que na Constituição atual o servidor só perde o cargo por ter cometido alguma
falta grave apurada em processo judicial ou administrativo. Estas faltas graves estão definidas em lei
como desvios de conduta, prática de atos desonestos, abandono do serviço, etc. Ou seja, a atual
Constituição já admite a perda da estabilidade, nos casos de corrupção ou de grave descumprimento
dos deveres do servidor. A proposta de emenda acrescentou a estas possibilidades duas outras: o
desempenho insuficiente e a necessidade da administração. O desligamento do servidor poderá
ocorrer por insuficiência de desempenho, como uma forma de afastar do serviço público os
servidores descompromissados com o seu trabalho. O desligamento por necessidade da
administração pública poderá ocorrer para a redução de quadros ou contenção das despesas com
pessoal.
Com a estabilidade mais flexível, o servidor não poderá denunciar irregularidades de seus
superiores?
As garantias em favor do servidor permanecem. Ele não poderá ser desligado por insuficiência de
desempenho sem processo administrativo, onde terá direito a ampla defesa. O desligamento por
necessidade da administração não poderá ser realizado de forma individual, para alcançar um
servidor especificamente, porque os critérios para definir quem será desligado terão de ser
impessoais.
Como o Governo poderá atribuir a um servidor a insuficiência de desempenho?
Através de sistemas permanentes de avaliação de desempenho, com regras conhecidas
previamente pelo servidor e que deverão avaliar a todos, inclusive chefias. A insuficiência de
desempenho será definida conforme as regras de cada sistema de avaliação e vai considerar as
características de cada tipo de trabalho e as atribuições e responsabilidades do servidor. Estas
regras deverão ainda prever critérios para a recomendação da dispensa do servidor, que só se
aplicará aos casos de sucessivas avaliações desfavoráveis, assegurada ao servidor a oportunidade
de se submeter a treinamento ou a mudança de função ou local de trabalho.
O servidor não poderá sofrer injustiças na sua avaliação?
Para proteger o servidor contra injustiças ou equívocos, a demissão por insuficiência de desempenho
só poderá ocorrer através de "processo administrativo específico". É um tipo de processo
administrativo previsto pela emenda constitucional para garantir a isenção e o direito de defesa do
servidor nestes casos. Ou seja, mesmo apresentando um desempenho insuficiente, isto terá de ser
devidamente apurado, com direito a defesa por parte do servidor, em processo administrativo.
Se o servidor tem um desempenho insuficiente, a culpa não é da chefia?
Para a sociedade, a responsabilidade é de todos, chefias e subordinados. Por isso, a avaliação de
desempenho alcançará os servidores, independentemente de sua posição.
A avaliação de desempenho vai deixar o servidor amedrontado, prejudicando o seu trabalho?
O servidor que leva o seu trabalho a sério não tem o que temer. A avaliação de desempenho será
para ele uma forma de mostrar a qualidade do seu trabalho e até de apontar as falhas que dificultam
a obtenção de bons resultados e exigir soluções da chefia, quando for o caso. Além disso, os
sistemas de avaliação de desempenho serão a base a partir da qual se implantarão gratificações de
produtividade, em futuro próximo.
Como será o desligamento do servidor por "necessidade da administração pública"?
Quando se constatar objetivamente o excesso de servidores ou o crescimento das despesas com
pessoal além do que é permitido em lei, a administração pode, se quiser, adotar o desligamento de
servidores.
Então,
existe
uma
lei
que
estabelece
limitações
para
os
gastos
com
pessoal?
Sim. A Lei Complementar n.º 82/95, recentemente aprovada pelo Congresso, regulamentou o art.
169 da Constituição, estipulando em 60% da receita disponível o limite de gastos com a folha de
pagamento dos servidores. Esta lei alcança a União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Os
Governos terão 3 anos para se ajustarem, a partir de 1996, sendo que, enquanto estes gastos não
forem reduzidos até o teto mencionado, ficam proibidos reajustes ou alterações de remuneração dos
seus servidores.
Onde houver excesso de servidores, haverá demissões?
A União não tem um problema global de excesso de servidores. Os Estados e Municípios que
estiverem enfrentando problemas dessa natureza terão que decidir pela adoção ou não desta
solução.
A dispensa por necessidade da administração pública não será usada para perseguir
servidores?
Não. Uma lei complementar vai regular o desligamento por necessidade da administração pública,
estabelecendo que a escolha dos servidores a serem desligados terá de obedecer a critérios
impessoais. Ou seja, nenhum dirigente poderá apontar nomes para este desligamento. Ele terá de
escolher um critério entre os permitidos pela lei e aplicá-lo. Que critérios poderão ser estes? Por
exemplo, os servidores com menor tempo de serviço; os mais jovens; os de maior remuneração; os
solteiros, etc. O objetivo é impedir que a escolha obedeça a preferências pessoais dos dirigentes.
Além disso, a emenda constitucional determina que o cargo ocupado pelo servidor desligado por este
motivo será automaticamente extinto, ficando proibida a sua recriação por um período de 4 anos.
Muitas vezes o empreguismo não é uma forma de melhorar a situação da população em
regiões mais pobres?
O empreguismo é sempre um mal, porque só resolve o problema de uma minoria privilegiada pelo
cargo público. Os recursos do Estado devem atender a todos os cidadãos. O emprego público só se
justifica se houver trabalho a ser prestado, para atender a reais necessidades da sociedade.
Quem for demitido será indenizado?
Sim. A lei fixará regras para o pagamento de indenização ao servidor. Estas regras serão
diferenciadas conforme o desligamento seja motivado por necessidade da administração ou por
insuficiência de desempenho.
Existem servidores que não serão alcançados pela demissão por necessidade da
administração?
Sim. Aqueles que sejam responsáveis por atividades exclusivas de Estado para as quais sejam
necessárias garantias especiais. Eles poderão ser, entretanto, afastados por insuficiência de
desempenho, como os demais.
Por que os servidores das atividades exclusivas de Estado foram privilegiados?
Na verdade, não se trata de privilegiar estes servidores, mas de garantir, de forma mais rígida,
algumas atividades em cujo exercício o servidor se expõe quotidianamente a pressões e situações
conflituosas.
Quais são as atividades exclusivas de Estado?
Estas atividades serão definidas em lei posterior à aprovação das emendas. São aquelas atividades
onde o servidor é agente dos poderes do Estado para o exercício de uma série de atividades sem
similar no setor privado, como, por exemplo, a manutenção da ordem pública e a defesa, a
arrecadação e fiscalização de tributos e contribuições, a representação do Estado perante a Justiça,
etc.
O que muda no estágio probatório do servidor?
O estágio probatório passa a ter uma duração maior, de 5 anos. Será obrigatória, também, a
realização de avaliação periódica do servidor durante este período. Com uma maior duração do
estágio probatório será possível a avaliação criteriosa do trabalho do servidor e da sua postura, antes
da concessão da estabilidade.
Como fica a situação de quem está cumprindo o estágio probatório?
O servidor que já estiver nomeado por ocasião da promulgação da emenda constitucional terá de
cumprir o prazo de 2 anos de estágio probatório, conforme previsto na atual Constituição. O prazo de
5 anos só vale para os que forem nomeados depois da aprovação da emenda.
O que muda na disponibilidade?
A disponibilidade dará ao servidor direito à percepção de remuneração proporcional ao tempo de
serviço público.
O que é a disponibilidade?
A disponibilidade é o afastamento do servidor do seu cargo, quando este cargo não é mais
necessário, até o seu reaproveitamento em outra colocação. A disponibilidade é um mecanismo para
a reorganização da administração pública sem a dispensa dos servidores, que podem ser reciclados
e preparados para serem inseridos em outras atividades. Durante a disponibilidade o servidor fica
afastado de suas atividades, podendo empregar este tempo em programas de treinamento
oferecidos pela administração com vistas ao seu reposicionamento em outra função.
Volta ao início
Os Concursos: O concurso público vai acabar?
Não. O concurso público não vai acabar. Ele continua a ser a única forma permitida de recrutamento
para cargos permanentes no serviço público, que conferem estabilidade ao servidor. Mas, será
criado o processo seletivo público, que não poderá ser usado para a contratação de servidores com
estabilidade.
O que é o processo seletivo público?
É uma forma de recrutamento criada para os empregos públicos. Ou seja, para recrutar quadros no
regime celetista, sem direito à estabilidade. A novidade no processo seletivo é a possibilidade de
recrutamento de candidato através de "prova de títulos".
O que é a "prova de títulos"?
É uma modalidade de seleção de candidatos a emprego público, baseada na análise de seus
currículos e da sua experiência profissional. Esta análise tem de ser baseada em regras e critérios
objetivos e previamente conhecidos por todos os candidatos. O objetivo é permitir a seleção daquele
que tenha o perfil mais adequado, de forma rápida e segura. O processo seletivo poderá também, a
critério de cada órgão, envolver a realização de provas de conhecimento ou provas práticas.
O
processo
seletivo
vai
permitir
contratações
sem
os
devidos
cuidados?
Não, porque será exigido, da mesma forma que nos concursos, a obediência aos princípios de
impessoalidade, legalidade e publicidade. Ou seja, o processo seletivo terá de seguir regras
previamente determinadas e conhecidas pelos candidatos e assegurar ampla divulgação a toda a
população.
O servidor contratado por processo seletivo terá estabilidade?
Ele não terá estabilidade porque será contratado no regime celetista. Mas, ainda assim, por ser tratar
de administração pública, não pode haver a dispensa imotivada. Ou seja, no caso de dispensa de um
empregado a administração está obrigada a fundamentar e manifestar as razões que a levaram a
abrir mão daquele empregado.
Os servidores terão reserva de vagas nos concursos e seleções?
Sim. Será permitida a reserva de até 20% das vagas dos concursos e seleções para os servidores
públicos.
A reserva de vagas é um privilégio?
Não é um privilégio porque atende à necessidade de motivar os quadros da administração e
estimular a movimentação de quem se qualificou e precisa alcançar uma posição melhor. Muitos
servidores hoje conseguiram prosseguir nos seus estudos e estão qualificados a disputar um cargo
melhor. A reserva de vagas será uma forma de estimulá-los a procurar este reposicionamento.
A reserva de vagas vai rebaixar o nível dos concursos?
Os servidores se submeterão ao mesmo concurso que os demais candidatos e a sua reserva é
limitada a um percentual reduzido.
Os estrangeiros poderão prestar concurso público?
A lei poderá permitir o acesso de estrangeiros a cargos públicos, nas áreas em que se entender
pertinente esta medida.
Por que permitir a concorrência de estrangeiros nos concursos?
Esta medida vem atender à necessidade de permitir a atração de quadros altamente qualificados
para as atividades de ensino e de pesquisa. Estes quadros podem trazer uma importante
contribuição para o País, ajudando a formar novos pesquisadores e professores e trazendo a sua
bagagem de conhecimento para as nossas universidades e institutos.
Haverá limites de idade nos concursos públicos?
Poderão ser adotados limites de idade para os cargos ou setores em que se considere necessário
um perfil mais jovem. Isto dependerá das características de cada segmento da administração.
A Remuneração
A isonomia vai acabar?
A isonomia é retirada do Texto Constitucional, mas não deixará de orientar a política remuneratória
da administração.
O que é a isonomia?
A isonomia é o princípio segundo o qual servidores que desempenhem as mesmas funções em
diferentes órgãos devem receber a mesma remuneração. Ou seja, a administração pública não deve
permitir a existência de discrepâncias entre um órgão e outro ou entre um Poder e outro, na fixação
do salário dos seus servidores, uma vez que todos são servidores de um único Estado.
Existe isonomia de fato na administração pública?
Persistem inúmeros desequilíbrios na estrutura de remuneração dos servidores, cuja correção vai
exigir uma maior transparência e coordenação entre os diversos setores da administração.
Por que retirar a isonomia da Constituição?
Porque a presença deste dispositivo no texto da Constituição permitia a proliferação de demandas na
Justiça pela equiparação de vencimentos. Se o problema for enfrentado desta forma, nunca se
alcançará de fato a isonomia, porque sempre que um setor conseguir, isoladamente, a sua
equiparação de vencimentos, imediatamente outro setor pleiteará o mesmo, sucessivamente. A
correção dos desequilíbrios só poderá ocorrer a longo prazo, na medida em que existam recursos
disponíveis.
Vai mudar alguma coisa nos reajustes dos servidores?
Sim. Na fixação dos reajustes ou de qualquer alteração na remuneração dos servidores, os três
Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, ficam obrigados a apresentar projeto de lei, sujeito à
sanção pelo Presidente da República. Atualmente, muitas destas mudanças no Legislativo e no
Judiciário são promovidas através de atos internos, dificultando a transparência e o equilíbrio entre
os Poderes. Esta medida vai contribuir positivamente para a efetiva adoção de uma política de
isonomia na administração pública.
A FUNÇÃO EDUCATIVA DA SOCIEDADE CIVIL EM HEGEL
Habermas cita várias vezes o nome de Hegel em sua Filosofia do Direito, normalmente, para
discordar de Hegel. Assim, no Prefácio, ele começa por dizer que adere à filosofia do direito kantiana
e não à hegeliana, evidentemente, por não aderir mais ao conceito de eticidade, mas, também, por
timidez, já que não se consegue mais atingir os padrões exigidos por Hegel. Ele conseguiu manter
coesos os pensamentos envolvidos na teoria da sociedade em geral, na economia política, na
história e mesmo nas questões próprias da teoria do direito, como o papel dos juízes, a
administração da justiça, a jurisdição, o procedimento jurisdicional, a publicidade. Além, é claro, das
questões que hoje diríamos serem as propriamente filosóficas, como a legitimidade do direito ou a
racionalidade da jurisdição, conceitos estes que a Filosofia tem por tarefa tornar transparentes.
O tratamento da sociedade civil em Hegel, no presente contexto, decorre da necessidade de
marcar as diferenças no tratamento desse conceito feitas por Habermas, tanto em relação a Hegel,
quanto em relação a Marx. Marx é devedor das formulações da sociedade civil de Hegel e como
esse conceito é mais claramente trabalhado por Hegel, preferiu-se apresentá-lo a partir da
perspectiva hegeliana, mas com a intenção de marcar a diferença com o tratamento da questão
também por Marx. Este ponto é relevante pela filiação de Habermas à Escola de Frankfurt e,
portanto, ao marxismo, mesmo que indiretamente.
Em sua Filosofia do Direito, Hegel começa pela figura do direito abstrato, buscando escrutinar a
liberdade que está depositada nas estruturas do direito, mas, neste momento, apenas enquanto
determinação externa do querer jurídico. Será somente o delito, como uma espécie de última etapa
do direito abstrato, que irá revelar a que se refere, verdadeiramente, o direito abstrato, a saber,
revelará a dimensão da liberdade subjetiva que subjaz ao mesmo. O delito revela uma
particularidade infinita que reside na subjetividade, enquanto poder de autodeterminação absoluta.
Essa autodeterminação vai revelar-se no capítulo sobre a moralidade. Por ora, ainda sob o direito
abstrato, importa que ―a subjetividade da liberdade, por si infinita, constitui o princípio do ponto de
vista da moralidade‖ (§ 104), a saber, ―o ponto de vista moral é o ponto de vista da vontade enquanto
infinita, não meramente em si, mas por si‖ (§ 105). A moralidade é o direito da vontade subjetiva
(§107). A explicitação dos momentos dessa autodeterminação da subjetividade perfecciona-se no
direito abstrato, do seguinte modo:

pela propriedade que é o meu externo;

pelo contrato que é o meu mediatizado por outra vontade;

pelo delito que revela a vontade como contingência que é a infinita acidentalidade em si da
vontade: sua subjetividade. Pelo delito manifesta-se a infinita possibilidade da vontade de
autodeterminar-se.

Nesse momento, temos a vontade por si, independente do que é em si, ou seja, a forma da
infinita autodeterminação (§ 108).
O momento seguinte do percurso de Hegel será, portanto, a moralidade, onde se mostrará à
subjetividade o seu caminho rumo à idéia do bem, a qual se revelará como sua substância (§ 130),
como sua essência (§ 132-3). A moralidade será a superação desse momento de particularidade,
mas será a sua conservação, pois a universalidade não passa da revelação da própria
substancialidade dessa particularidade (§ 129).
Temos agora duas totalidades relativas que em si já são idênticas, ou seja, a subjetividade da
certeza pura de si mesmo, liberta de sua vacuidade, é idêntica com a universalidade abstrata do
bem; a ética será a identidade concreta do bem e da vontade subjetiva (§ 141). A forma infinita da
subjetividade enquanto infinita possibilidade deverá ser reconduzida (para si), sob o ponto de vista
de seu próprio conteúdo, para a universalidade do bem. A ética representará exatamente o modo
como estas duas totalidades serão reunidas concretamente, ou seja, de um modo determinado. O
direito é a liberdade realizada (§ 4), é o momento onde o em si e o para si da vontade unem-se (§
33).
Já, no âmbito da eticidade, a família e a sociedade civil parecem cumprir o que se poderia chamar
hoje de um processo de aprendizagem ou, na linguagem de Hegel, a mediação entre direito abstrato
e moralidade. Tal processo pode contar com uma determinação necessária porque Hegel baseia-a
no reino das necessidades. Ou seja, a sociedade civil força o indivíduo à atitude performativa de
busca do universal, do correto, do justo. No entanto, já há um conteúdo dado pela moralidade, ao
modo da eticidade que, em todo caso, não pode ser só formal, ao qual a vontade individual deverá se
adaptar. Ao contrário de Marx e Habermas, para os quais o Estado não tem determinações éticas
enquanto tal, Hegel concebe no próprio Estado uma determinação ética, permitindo-lhe olhar a
sociedade civil com olhos de quem busca estratégias de realização, ao modo da filosofia da história,
dos conteúdos já cristalizados na eticidade do Estado. O Estado tem um papel ativo sobre a
sociedade civil e não só reativo como em Marx.
O ethos tem um conteúdo estável que independe da opinião subjetiva e do capricho, corporificado
nas leis e instituições (§ 144). Estas leis éticas, como vimos, não são estranhas ao sujeito, posto
serem sua própria essência, mas não são, ainda, a determinação dos seus atos em suas infinitas
escolhas. Por isso, será necessário um percurso de aprendizagem. Bem entendido, o dever só
aparece como limitação à vontade abstrata e ao impulso natural, mas, na verdade, representa a
liberdade do indivíduo, já que brota de sua autonomia (§ 149). É na dimensão ética que direito e
moral se unem e o homem passa a ser portador de direitos (§155).
Esse processo de aprendizagem acontece na família, uma substancialidade natural e, depois, na
sociedade civil, uma união entre indivíduos, segundo certas regras, ditadas por necessidades,
permanecendo, por isso mesmo, uma ordem externa, que só atingirá a sua dimensão própria com o
Estado (§ 157). O ponto, aqui, será ver qual função exerce a sociedade civil nesse percurso da
individualidade para a universalidade.
A função cumprida pela sociedade civil é explicada em razão dos dois princípios envolvidos que a
estruturam:

a pessoa concreta como uma mistura de necessidade natural e arbítrio;

a relação e interdependência entre as pessoas, implicando em que uma só possa se
satisfazer por intermédio da outra (§ 182).
Segundo Hegel, o fim egoísta da sociedade civil, enquanto reino das necessidades, só é
efetivamente real e assegurado quando condicionado e perpassado pela universalidade, ou seja, por
laços mútuos de dependência, onde acontece a satisfação recíproca das necessidades (§ 183). O
fim egoísta é a base de um sistema de dependência recíproca. É assim que a universalidade e o
direito se mostram como a forma necessária dessas particularidades (§ 184). Ou seja, para satisfazer
minhas necessidades eu preciso dos outros e, por isso, preciso do direito e do Estado. Fascinado
pela ciência social de seu tempo, a economia política, como Habermas é hoje fascinado pela
sociologia, Hegel pôde vislumbrar a vida econômica como ―um conjunto organizado segundo leis que
expressam a verdade da ações atomísticas dos agentes econômicos‖1. Portanto, aqui, a sociedade
civil é só um meio para o fim da universalidade (§ 184)2. O exemplo de Hegel, compilado por seus
alunos, é o pagamento de impostos. Mesmo parecendo contrário aos interesses particulares, é por
intermédio dos impostos que o Estado pode fortalecer os próprios interesses particulares.
Na sociedade civil acontece ―o processo de elevar, pela necessidade natural assim como pelo
arbítrio das carências, a singularidade e a naturalidade desses à liberdade formal e à universalidade
formal do saber e do querer, de formar pelo cultivo a subjetividade na sua particularidade‖ (§ 187). As
Anotações a este parágrafo explicam tratar-se do
duro trabalho contra a mera subjetividade do comportamento, contra a imediatez dos desejos,
assim como contra a vaidade subjetiva do sentimento e o arbítrio do capricho. É por este trabalho de
formação, porém, que a própria vontade subjetiva ganha dentro de si a objetividade, na qual,
unicamente, por sua parte, ela é digna e capaz de ser a realidade da Idéia.
Hegel analisa passo a passo como essa universidade imiscui-se na particularidade e brota dela.

No § 192 temos a dimensão social da satisfação das carências, na medida em que adquiro
dos outros os meios de satisfação: ―tudo o que é particular torna-se nessa medida social‖.

No § 198 é analisada a dependência recíproca na divisão do trabalho.

No § 201 os meios infinitamente variados da produção e da troca, bem como o
entrecruzamento igualmente infinito desses no mercado, acabam formando sistemas particulares, os
estamentos (agrícola, comercial, industrial), nos quais o egoísmo se vincula ao universal.

No § 209, com o direito, finalmente a universalidade toma a forma da pessoa, no que todos
são considerados como idênticos.

A administração pública3 (Polizei) e a corporação dispensam maiores comentários. A esse
respeito comenta Müller: ―por meio da polícia e da corporação, o Estado penetra na estrutura
jusnaturalista da sociedade civil para controlar, relativizar e superar a contingência do mercado e o
seu antagonismo social, transformando a racionalidade econômica e estratégica em aparência,
porém necessária, da racionalidade ética‖4. A administração pública tem a função de regular o
mercado, controlando a qualidade e o preço dos produtos, de vigiar a escola pública e prover a
assistência social. A corporação ajuda a prover a subsistência do particular frente às contingências
do mercado, bem como torna os indivíduos, nas palavras de Müller, membros de um todo ético
particular sendo um elo intermediário entre o atomismo da esfera do mercado e o Estado. A
corporação é uma segunda família (§ 252) ―que forma os indivíduos na sua própria atividade egoísta,
interessando-os ao que é universal, ao que é coletivo‖5, surgindo, desta forma, maneiras novas de
solidariedade.
Sendo assim, a sociedade civil, definida a partir do mercado, tem a sua grande finalidade material
ao satisfazer as necessidades, criando riquezas. Mas, nem Hegel, nem Marx, pensarão que os
desdobramentos da sociedade civil ficarão restritas à produção de riquezas. Cônscios da importância
da categoria do trabalho como categoria privilegiada de explicação social, eles, fiéis, nesse sentido,
aos ditames da economia política, irão perscrutar o que, além de riqueza, o trabalho pode produzir.
Não seria incorreto dizer que, no nível político, o trabalho produz, para Hegel, a humanização do ser
humano, na medida em que força o indivíduo a ter que se determinar por parâmetros comuns,
adaptando o seu querer a normas comuns, seja nas atividades de polícia do Estado, seja nos
imperativos da corporação, mesmo sendo ainda uma relação externa com essas regras, cuja
proximidade e afetuosidade adequadas com as mesmas só acontecerá no Estado. Ora, assim, Hegel
retira da sociedade civil o que ela parece não ter, ou seja, harmonia e ética, metamorfoseando o
indivíduo, transformando a semente na árvore, a criança no homem, a lagarta na borboleta, de forma
imperceptível e necessária.
Nessa mesma realidade Marx lerá coisas diferentes. Segundo ele, a anatomia da sociedade civil
será a anatomia do próprio Estado.
A anatomia da sociedade burguesa, vertida em conceitos da economia política, possui um efeito
desmascarador: revela que o esqueleto que mantém coeso o organismo social não é mais o conjunto
das relações de direito, e sim, o das relações de produção (...) E com isso o mecanismo do mercado,
descoberto e analisado pela economia política, passa a tomar as rédeas da teoria da sociedade. O
modelo realista de uma socialização anônima não-intencional, que se impõe sem a consciência dos
atores, vai substituir o modelo idealista de uma associação intencional de parceiros do direito6.
O Estado não será uma metamorfose da sociedade civil, mas seu sósia disfarçado pela roupagem
da universalidade. Habermas, ao contrário de Hegel, adere à versão sistêmica do Estado, mas busca
uma leitura do Estado ao modo da neutralidade, permitindo que à sua dimensão sistêmica possa ser
vinculado um conteúdo que lhe ilumine e, mais importante, dirija suas forças. Assim, fica a
necessidade, sob o ponto de vista da legitimidade, da união do Estado com a moralidade, entendida
por ele como a livre adesão motivada por razões, no caso do direito, razões morais, éticas e
pragmáticas e não mais a moral entendida como eticidade substancial; bem como a necessidade do
próprio Estado, enquanto instituição não superável. Com relação a Marx, no caso de Habermas, as
políticas compensatórias serão o que restará de seu marxismo, entendido como proposta política
concreta, tentando resolver a dialética entre igualdade de direito e desigualdade de fato. Será o
aspecto material de sua teoria da emancipação.
Assim, a sociedade civil teria uma função organizatória dos átomos individuais e uma função
educadora, na medida em que a particularidade seria integrada à universalidade. Nesse sentido, o
trabalho produz e o trabalho educa7.
A FUNÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL EM HABERMAS
Habermas toma o aparelho estatal, sob o ponto de vista sistêmico, como sendo uma potência
neutra com relação aos fins que o determinarão. Nessa perspectiva, a esfera pública e o parlamento
formam o lado que faz entrar conteúdos, a partir dos quais o poder social organizado flui para o
processo de legislação. A administração pública, que tem que implementar esses conteúdos
legislados, encontra resistência de um poder social que se põe entre a administração pública e o
campo de sua atuação. O poder social age fora do poder democrático e por interesses sistêmicos
próprios8. Esse poder social, autônomo à democracia interfere tanto no lado de entrada de
conteúdos, quanto no lado de sua implementação. O poder social, nesse sentido, age pela
determinação do poder como capacidade de impor a própria vontade. A superação desse poder
social, não democrático, que age cercando o poder (autarquias, fundações, empresas públicas e de
economia mista, a administração direta e indireta, que são muito mais competentes para agirem e
influenciarem a administração9), tanto no lado de entrada, quanto de saída, só pode acontecer pelos
impulsos vitais de solidariedade dependentes da força da sociedade civil.
A força do direito econômico mostra a força do poder social não democrático10. Nesse sentido,
poder social é a ―possibilidade de um ator impor interesses próprios em relações sociais, mesmo
contra as resistências de outros. O poder social tanto pode possibilitar como restringir a formação do
poder comunicativo‖11. O poder social é a implantação fática de interesses privilegiados, pela sua
capacidade de determinar os conteúdos para os quais a administração pública se dirige, bem como
nos modos de sua realização.
Em oposição ao poder social do mercado e da burocracia estatal, Habermas trabalha com dois
conceitos complementares, o de esfera pública e o de sociedade civil. A sociedade civil é a esfera
pública institucionalizada. Assim, o elemento básico que as distingue é o aspecto institucional. Esses
conceitos têm aspectos normativos e sociológicos12.
Da definição de esfera pública decorre a diferença do conceito de sociedade civil com relação a
Hegel e Marx. Desta forma, pode-se compreender como acontece o que Habermas chama de função
de cerco13 (Belagerungsfunktion). De fato, pode-se considerar o poder administrativo do Estado como
estando cercado pelo poder comunicativo, ou seja, pelo poder da opinião pública e da sociedade
civil. A política, enquanto complexo parlamentar, continua sendo a destinatária de todos os
problemas. A sociedade civil pode influenciar na programação do sistema estatal, protegida pelo
Estado de direito14, mas não abdicar dele enquanto um sistema eficiente na implementação de fins.
A esfera pública não é uma instituição, não tem aspectos organizacionais, tampouco constitui-se
num sistema delimitado, mas caracteriza-se por horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis. Nela,
―os fluxos comunicativos são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões
públicas‖15, as quais não são especializadas em nada. A força da opinião pública é indicar para um
argumento legitimador e influenciar. Mesmo o poder social tem que angariar adesão, implicando que
tem que usar de uma linguagem convincente. Ou seja, dinheiro e poder têm que se ocultar enquanto
tais para angariar tal convicção. Segundo Habermas, uma esfera pública pode ser manipulada, mas
não criada a bel-prazer.
Sendo a sociedade civil a institucionalização da esfera pública, ela exclui a economia, a qual,
através do trabalho, do direito privado e do capital, foram os aspectos fundamentais à época de Marx
e Hegel. O núcleo institucional da sociedade civil é formado por movimentos, associações e
organizações sociais (fundações) não estatais e não econômicas. Essas instituições cristalizam os
problemas e os transferem para a esfera política. Apesar da mídia, a sociedade civil continua o
espaço das pessoas privadas que podem se organizar para influenciar, cercar, o poder político, na
busca de soluções para seus problemas. A sociedade civil alicerça-se nos direitos de expressão,
reunião e associação.
O Estado conecta-se com a esfera pública e a sociedade civil, através dos partidos políticos e das
eleições. A proteção à privacidade preserva domínios vitais privados livres para o exercício de atos
no espaço da autonomia. Trata-se dos direitos da personalidade, crença, consciência, sigilo de
correspondência, inviolabilidade de residência. O Estado totalitário fere o nexo entre cidadania
autônoma e esfera privada intacta. Nele ―um Estado pan-ótico controla diretamente a base privada
dessa esfera pública‖16. Quando essa dimensão é ferida, a racionalidade comunicativa é ferida,
sufocando a liberdade comunicativa presente nos domínios da vida privada.
A função política da sociedade civil é dramatizar problemas que deverão refletir sobre o complexo
parlamentar17. Ora, a função desse espaço é exatamente gestar conteúdos legítimos, a partir da
racionalidade comunicativa. A partir dessa formulação, constrói-se uma estrutura de direitos para
proteger esse espaço, exatamente porque ele é a condição da própria democracia. Esse conjunto de
direitos, porém, não é suficiente, pois o poder social, baseado principalmente no dinheiro e no poder,
interfere nesse espaço, muitas vezes sob a roupagem do código que é próprio da esfera pública, a
saber, o da convicção e da persuasão racional. Por isso, a sociedade civil tem que se proteger,
através de uma função crítica aguçada que, embora, protegida pelo Estado, por um conjunto de
direitos fundamentais, não se deixa determinar pelos imperativos do poder e nem pelo dinheiro,
sendo, exatamente por isso, constituída por agrupamentos não governamentais e não econômicos.
Assim, ela consegue mobilizar bons argumentos e criticar argumentos ruins e exercer cerco sobre
autoridades, tribunais e parlamentos, ou seja, sobre os poderes do Estado e seus agentes. ―As
discussões não ‗governam‘. Elas geram um poder comunicativo que não pode substituir, mas
simplesmente influenciar o poder administrativo‖18.
Temos, assim, uma esfera pública organizada como sociedade civil. Esta é a base da soberania
popular, diluída comunicativamente e protegida por um espaço a partir de direitos, a qual não pode
mais ser identificada com o povo ou a nação, como se esses fatores tivessem alguma
substancialidade que pudesse ser apreendida na perspectiva do observador, tão somente. Mesmo
que protegida juridicamente nestes termos, ela tem que estar atenta aos estudos das ciências
sociais, que podem levar a um ceticismo com relação à mesma. A proteção contra esta perspectiva
cética dá-se pela afirmativa da função crítica da própria sociedade civil. Assim, Habermas está entre
os que se perfilam na defesa de uma perspectiva democratizante da sociedade civil. Logo, esse
ceticismo não pode atingir o cerne da democracia e o coração da sociedade civil como fontes de
razões. A tecnocracia é a alternativa, contrária a esta, que resta19. Outra alternativa é o pós-civil.
Exemplos de tipos de abordagem assim são aquelas de Foucault e Hardt.
Para Foucault, o poder está espalhado microfisicamente pela sociedade, ele, portanto, não pode
ser cercado pela sociedade civil; ele está diluído na sociedade civil. O poder provém de todos os
lugares e invade, microfisicamente, todos os lugares, a partir, em última análise, da disciplina do
próprio corpo. A sociedade civil que Hegel analisa como organização e educação, Foucault critica
como adestramento e disciplina. Hardt adere a esse caráter derrotista da análise da sociedade civil,
acreditando que o Estado se fortaleceu e a sociedade civil se enfraqueceu. Restaria como alternativa
para esses pensadores uma personalidade absolutamente isolada e poliédrica em suas
determinações.
Em razão destas críticas ao conceito de sociedade civil subsumida pelas determinações estatais
ou ligada ao processo de trabalho e produção é que Habermas desloca, tanto do Estado, quanto da
economia, do reino da necessidade o seu conceito de sociedade civil. De fato, a sociedade civil não
está mais ligada às determinações do poder, como em Foucault, nem às determinações da economia
como em Hegel, mas está ligada à esfera pública, não estatal e de caráter não econômico, embora
protegida por um conjunto de direitos assegurados estatalmente. É necessário separar as forças
democratizantes do Estado e da economia porque ambos têm determinações sistêmicas que não
podem ser transformadas em determinações políticas, digamos, a partir de dentro. Quando o Estado
e a economia são totalmente perpassados por determinações políticas, eles perdem a sua
capacidade funcional. Exemplo disto pode ser visto na falência do socialismo de estado20. Por isso,
não se trata de abolir o mercado ou o poder burocrático do Estado, mas domesticá-los
democraticamente, isso na medida em que conteúdos democráticos podem ser injetados no Estado,
a partir da sociedade civil.
CONCLUSAO: SOCIEDADE CIVIL, MERCADO, OPINIAO PÚBLICA
Podemos dizer que, a partir da idéia de domesticação democrática do mercado e da burocracia,
Habermas não mistura mais essas esferas, seja, como Hegel, para extrair do próprio mercado
formulações éticas, seja, como Marx, para suprimir o mercado por decisões políticas de controle e
planejamento, supressão esta levada a cabo por determinações da própria sociedade civil que cria
seus próprios coveiros. Com isto, Habermas livra-se, não só da dificuldade teórica de vislumbrar tais
pontes de ligação e entrecruzamento, como também, de pressupostos deterministas presentes
nestas duas formulações. Por isso, ele separa a sociedade civil, tanto do Estado, quanto da
economia. Só assim, ela pode ser o coração da democracia, como um espaço de liberdade privada,
protegido por um conjunto de direitos, onde os atos de fala podem ser exercidos sem a coação do
dinheiro e do poder. Essa proteção da sociedade civil por um conjunto de direitos, em Habermas,
não é um sucedâneo dos determinismos de Marx e Hegel com relação a essa temática, pois não
implica em qualquer conteúdo pré-estabelecido, nem muito menos na tese de uma aprendizagem
moral necessária.
Certamente, o tratamento do tema específico da sociedade civil defende que ela não pode mais
ser definida ao modo de Hegel, como sendo propriamente colada ao mercado e, portanto, ao sistema
das necessidades. É como se Habermas oferecesse um outro caminho de acesso aos indivíduos às
determinações do Estado, as quais não ocorrem mais ao modo adaptativo a um conteúdo já dado
pela eticidade, mas ao modo construtivo da democracia, cuja raiz vai residir, de maneira mais
palpável, para além das profundezas do coração humano, na sociedade civil como arena ou fórum
de debates, entendida a partir do conceito de racionalidade comunicativa.
A sociedade civil, em Hegel, começa pelo sistema de necessidades, ou seja, pelo mercado ou pelo
trabalho, fatores esses tão bem trabalhados pela economia política, com a qual Hegel tanto ficou
fascinado. Parece plausível pensar que as demais figuras que se seguem, como a administração da
justiça, a administração pública e a corporação, não tenham determinações próprias, mas sejam
simples reflexos de aspectos do mercado ou exigências de um comportamento racional nos termos
do próprio mercado. Assim, a administração da justiça visaria a resolver conflitos que o mercado não
resolveria por si e a administração pública visaria a resolver as disfunções do mercado, como é o
caso da própria atividade do que veio a ser apelidado, posteriormente, como seguridade social, com
atividades providenciárias, de atendimento à saúde e de assistência social. Se considerarmos as
críticas de Hegel ao contratualismo e se admitirmos que a estrutura jurídica básica presente na
sociedade civil seja contratual, então, faz sentido pensar que as determinações estatais presentes na
sociedade civil sejam regidas pelos caracteres da primeira figura posta na sociedade civil, qual seja,
o mercado ou o sistema das necessidades. No entanto, Hegel pretende ver, através do olhar
perscrutador e profundo de dialético um outro processo que se desenvolve, de forma oblíqua, ou
seja, não visível diretamente. Hegel escrutina esse processo, ardiloso e sinuoso, mediante o qual se
realizam, para além das determinações privadas e das determinações instrumentais da estrutura
contratual, conteúdos éticos ou conteúdos legítimos, ou seja, como, através desse processo
instrumental de assunção de relações, acaba acontecendo a formação de um homem moral ou a
criação de uma cultura ética. Não se trata, bem entendido, só de uma questão de motivação, ou seja,
da passagem de uma ação conforme ao dever para uma ação por dever, mas da ocorrência de
conteúdos legítimos corporificados no ethos presente no Estado.
Na verdade, e, neste sentido, fiel a Marx, Habermas desconfia que a sociedade civil, entendida a
partir do mercado, não seja capaz, nem de formar o homem moral, nem de averiguar ou desenvolver,
através de suas características, conteúdos legítimos. Ou seja, o contratualismo traz um momento de
verdade a propósito de sua relação com a sociedade civil, qual seja, a particularidade dos interesses,
e nem a visão aguçada de Hegel, nem o seu mecanismo do ardil da razão são capazes para o crítico
Habermas, de arrancar determinações morais do mercado, o que é profundamente marxista. Se a
economia política, ao buscar como a economia se determina em política, ou como influencia a
política, serviu a Hegel para ver como determinações propriamente políticas podem se desenvolver a
partir da economia, Habermas tem em mente os esclarecimentos da sociologia sistêmica de
Luhmann que levantam o caráter sistêmico do mercado, recursivamente fechado, aspectos
sistêmicos do mercado que já Marx trabalhara com maestria e que o impedira de olhar a sociedade
civil com base no mercado com o mesmo olhar de Hegel.
Por isso, Habermas desloca a fonte de conteúdos legítimos ou de determinações morais do âmbito
do mercado para aquilo que Hegel chamaria de opinião pública, fugindo, com isso, dessa difícil visão
da formação do ethos que deveria perpassar a sociedade civil. De fato, não há como não ver nessas
formulações de Habermas semelhanças com a opinião pública em Hegel. Isso é bem plausível, se
considerarmos que a opinião pública, em Hegel, seja o espaço de reconhecimento das decisões
como sendo legítimas, concretizando o princípio da liberdade subjetiva como questionamento (§
316), implicando, por isso, provas e razões21. Além disso, a topos da opinião pública, situa-se no
capítulo que trata do poder legislativo, o que seria indicativo, para o democrata Habermas, da sua
função justificadora, sob o ponto de vista normativo. As semelhanças, no entanto, param aí, pois a
opinião pública parece mais um meio educativo (§ 315), cuja finalidade é que o particular chegue à
convicção de uma universalidade ou conteúdo já dado, ou seja, ela ―encontra a sua substância em
uma outra coisa que não ela: ela é o conhecimento apenas como aparição‖ 22. Neste sentido, a
publicidade serve aí apenas para a ―integração da opinião subjetiva na objetividade que o espírito se
deu na figura do Estado‖23.
Mesmo Hegel desconfia da sociedade civil devido à sua falta de organicidade, pois, apesar de a
economia política ter apontado leis da sociedade civil, o que impressionou Hegel, ele continua a
acentuar o caráter anárquico e antagônico da sociedade civil24. Isto determina a necessidade do
Estado, como sendo anterior à sociedade civil, na medida em que é um meio que deixa tal
antagonismo dentro de limites aceitáveis, bem como implica na crítica de que um Estado confundido
com a sociedade civil seria só um Estado visando à segurança e proteção da propriedade.
Em Habermas, diferentemente, não está disponível, já de início, esse elemento substantivo, que
teria, apenas, como que se verificar no espaço público. A posição de Habermas é construtivista sob o
ponto de vista do conteúdo, sendo o espaço público, portanto, criativo, despido de conteúdo e
remetido radicalmente a esse espaço de liberdade subjetiva indeterminada, base da legitimidade
democrática e, portanto, criadora de conteúdos legítimos. Além do mais, a sociedade civil é a opinião
pública sob a forma de instituição, organizada, elemento esse não presente na formulação de Hegel.
Em suma, para Hegel, a categoria do trabalho é uma estratégia que ele usa para contribuir com a
eticidade, que ele incorpora em seu sistema e faz com que ela funcione ao máximo, chegando
mesmo ao ponto de querer atribuir a ela mais do que ela pode render. Já, para Habermas, a
categoria da comunicação requererá para si o que antes se atribuía ao trabalho, sendo, ao menos na
opinião de Habermas, mais competente para realizar a tarefa a que se propõe, a saber, gestar
legitimidade. Mesmo que Hegel tenha vislumbrado isso na incipiente opinião pública então nascente,
preferiu ficar no solo mais seguro da ação humana que transforma a natureza, criando, junto com
isso, relações sociais e o próprio homem.
OBSERVAÇAO FINAL
O Prof. José N. Heck questiona o por quê do não tratamento da sociedade civil em Rousseau,
visto que, da análise do texto decorre um claro direcionamento das idéias de Habermas em direção a
Rousseau. A resposta a essa questão pode ser dada na razão inversa pela qual Hegel aceita, com
críticas, o conceito de sociedade civil dado por Rousseau. Ou seja, o que Hegel aceita da
conceituação de Rousseau é exatamente o que Habermas recusa no tratamento desse conceito. De
fato, assim se pronuncia Hegel sobre o genebrino ―Rousseau teve o mérito de ter estabelecido como
princípio do Estado um princípio que não só segundo a sua forma (como, por exemplo, o impulso à
sociabilidade, a autoridade divina), mas, também segundo o seu conteúdo é pensamento, e que, na
verdade é o próprio pensar, a saber, a vontade. Só que como ele tomou a vontade somente na forma
determinada da vontade singular (...) e apreendeu a vontade universal não como o em si e por si
racional da vontade, mas somente como o comunitário, que provém desta vontade singular enquanto
vontade consciente, a união dos singulares no Estado torna-se um contrato, que tem por base o
arbítrio dos indivíduos singulares, por conseguinte, a sua opinião e o seu consentimento‖25. O que
Habermas vai recusar é exatamente esse caráter substantivo da vontade geral em Rousseau, ou
seja, essa ‗democracia de opinião não-pública‘26. De fato, Rousseau afirma que a vontade geral
presume uma só vontade27; numa tal concepção, quando da formulação de normas, leis, afirma
Rousseau, ―o primeiro que as propõe não faz nada mais do que dizer o que todos já sentiram, não é
questão de intrigas, nem de eloqüência para transformar em lei o que qualquer um já resolveu
fazer‖28. Não que Habermas adira a uma formulação contratualista, visto que a sua formulação é
moral29. No entanto, trata-se de uma moral não substacialista, mas formal.
* As citações da obra de Hegel Linhas fundamentais da Filosofia do Direito ou direito natural e ciência do estado em compêndio serão feitas a partir dos
parágrafos da mesma e, preferencialmente, segundo a tradução de M. L. Müller. A obra de Habermas Faktizität und Geltung será abreviada por FG e a
tradução portuguesa por TrFG1 e TrFG2, referindo-se, respectivamente, ao volume I e II.
1. ROSENFIELD, D (1983): Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, p. 163.
2. Nesse sentido, para além das determinações conceituais, o direito só entra na existência porque é útil às necessidades (§ 209, adendo).
3.
Essa tradução é sugerida por ROSENFIELD, D (1983): Op. cit., p. 196.
4. MÜLLER, M L (2000): ―Apresentação‖. In: HEGEL, G. W. F. A sociedade civil. Trad. Marcos Lutz Müller. Textos didáticos. Campinas: nº. 21, p. 9.
5. ROSENFIELD, D (1983): Op. cit., p. 207.
6. TrFG1: p. 69 (FG: p. 65).
7. HARDT, M (2001): Il deperimento della società civile. WWW. deriveapprodi. org/revista/ I/hardt17.html. Outubro.
8. Cfr. TrFG2: pp. 57-8.
9. Cfr. TrFG2: p. 87.
10. Cfr. TrFG1: p. 63.
11. Cfr. TrFG1: p. 219.
12. Cfr. TrFG2: p. 106.
13. Cfr. FG: pp. 626, 630.
14. Cfr. TrFG2: p. 105.
15. Cfr. TrFG2: p. 92.
16. Cfr. TrFG2: p.101.
17. Cfr. TrFG2: p. 91.
18. HABERMAS, J (1999): ―O espaço público‖: 30 anos depois‖. Trad. V. L. C. Westin, L. Lamounier. Caderno de Filosofia da ciências humanas. Belo
Horizonte: v. VII, nº. 12, abril, p. 25.
19. Cfr. TrFG2: p. 106.
20. HABERMAS, J (1999): ―O espaço público‖: 30 anos depois‖. Ed. Cit., p. 20.
21. Cfr. ROSENFIELD, D (1983): Política e liberdade em Hegel. Ed.cit., p. 259.
22. HABERMAS, J (1984): Mudança estrutural da esfera pública. (F. R. Kothe: Strukturwandel der Öffentlichkeit). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 143.
23. Ibid., p. 147.
24. Ibid., p. 143.
25. HEGEL, G. W. F. (1998): O Estado. Trad. Marcos Lutz Müller. Textos didáticos. Campinas: nº. 32, § 257.
26. Cfr. HABERMAS, J (1999): ―O espaço público‖: 30 anos depois. Ed. Cit., p. 21. HABERMAS, J (1984): Mudança estrutural da esfera pública. Ed. Cit., §
12.
27. Cfr. ROUSSEAU, J-J (1943): Du contrat social. Paris: Aubier, p. 361.
28. Ibid., pp. 361-2.
29. Para uma distinção entre contrato e moral ver TUGENDHAT, E (1996): Lições sobre ética. (Trad. Grupo de doutorandos da UFRGS sob a resp. de E.
Stein: Vorlesungen über Ethik). Petrópolis: Vozes.
Trabalho infantil produtivo e desenvolvimento humano
Herculano Ricardo CamposI; Rosângela FrancischiniII
I
Professor-doutor, Chefe do Departamento de Psicologia e Professor do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Pesquisador do Núcleo
de
Estudos
Socioculturais
da
Infância
e
Adolescência
-
NESCIA.
II
Professor-doutor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Coordenadora do Núcleo de Estudos
Socioculturais da Infância e Adolescência - NESCIA
RESUMO
O propósito deste artigo é apresentar e discutir algumas dentre as possíveis conseqüências do
trabalho produtivo precoce sobre o desenvolvimento da criança, na dinâmica da vida dos
adolescentes e no interior das famílias. Os dados empíricos foram buscados em vivências do
trabalho por crianças e adolescentes no cotidiano de um município do interior do Rio Grande do
Norte, onde há participação significativa desses sujeitos na produção de redes, nas tecelagens. A
cultura de valorização/dignificação do trabalho, a ineficiência (se não inexistência) de políticas
públicas voltadas para essa população e a condição de pobreza a que estão submetidas, dentre
outros fatores, têm contribuído para a manutenção da exploração da mão-de-obra infanto-juvenil, a
despeito do ECA e dos esforços para seu combate.
Palavras-chave: trabalho precoce, infância, adolescência.
INTRODUÇÃO
A preocupação com os processos de constituição/desenvolvimento do sujeito, de alguma forma e
desde sempre perpassa as mais diversas correntes que foram se configurando historicamente e hoje
se aglutinam no que denominamos Ciência Psicológica. No entanto, se há relativa unanimidade no
que se refere ao "objeto de investigação", o mesmo não pode ser observado quando se constroem
os pressupostos que fundamentam esses processos e, coerentemente com eles, os procedimentos
mais apropriados para sua compreensão. Exemplo dessa condição é o recorrente debate, na
bibliografia especializada, sobre a influência, mais ou menos determinante, do ambiente sobre o
desenvolvimento humano.
Nesse sentido, as clássicas concepções sobre a natureza humana desenvolvidas, por um lado, por
Locke (1632-1704) e Hume (1711-1776) e, por outro, por Rousseau (1712-1778), constituem-se,
respectivamente, como alicerces das tradições empirista, cuja ênfase recai sobre o papel
determinante do ambiente, e inatista, que acentua as características herdadas — a bondade natural,
em Rousseau, por exemplo —, principalmente na Psicologia evolutiva, tradições essas cujo poder
explicativo e influência no desenvolvimento dessa ciência são inquestionáveis1.
No entanto, cabe-nos apontar que, se o debate em torno desses modelos explicativos — empirista e
inatista — ainda persiste, atualmente lhes são acrescentados enfoques teóricos de caráter
interacionista, que ultrapassam as fronteiras por eles delimitadas e sinalizam para novas
perspectivas interpretativas do desenvolvimento humano, dentre as quais se destacam: a etológica,
com ênfase em pesquisas em ambientes naturais; a ecológica, representada, sobretudo, por
Bronfenbrenner (1992, 1996) e, por fim, a perspectiva sócio-histórico-cultural, cujo destaque vem se
acentuando, principalmente a partir da década de 70, com o "descobrimento" das obras de seu
principal teórico, Vygotsky (1984, 1988, 1996, 1997)2.
Duas contribuições principais ao estudo do desenvolvimento são devidas, segundo Coll (1995), à
perspectiva etológica. A primeira é o destaque ao conceito de ambiente de adaptação e ajustes
necessários da conduta às exigências que esse ambiente apresenta, o segundo, a importância da
prática de observação em ambientes nos quais a conduta se produz. Esta última característica está
presente, também, em pesquisas que assumem a perspectiva ecológica. No entanto, ainda segundo
o autor acima citado, à observação em ambientes naturais devem ser acrescidas a preocupação com
os múltiplos fatores que influenciam o desenvolvimento, a consideração para com as influências
mútuas criança-ambiente e, por fim, a crença de que realidades não imediatamente presentes
exercem influência sobre o comportamento da criança.
Quanto à última perspectiva, no interior da qual se procurará desenvolver as reflexões deste estudo,
o processo de desenvolvimento consiste na internalização de regras, valores, modos de pensar e de
agir ocorrentes nas interações sociais do cotidiano dos sujeitos, nas práticas sociais e discursivas
que permeiam as instituições sociais (família, escola, igreja, trabalho...) e os meios de comunicação.
Nessas interações, recorre-se aos instrumentos de mediação semiótica disponíveis na sociedade,
entre os quais a linguagem ocupa posição privilegiada. Da afirmação acima destacam-se, portanto, o
papel das interações sociais, o caráter mediado dessas interações e a posição da linguagem
enquanto instrumento principal de intercâmbio com o outro. Em relação ao primeiro aspecto, a "lei
genética geral do desenvolvimento cultural" explicita a verdadeira dimensão do processo de
internalização. Nas palavras do autor:
Qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece duas vezes, ou em dois planos.
Primeiro, ela aparece no plano social e, depois, no plano psicológico. Primeiro, aparece entre as
pessoas como uma categoria interpsicológica, e depois dentro da criança como uma categoria
intrapsicológica. (...) Não é necessário dizer que a internalização transforma o próprio processo e
muda sua estrutura e funções (Vygotsky, 1981, p. 163).
O processo de internalização, no entanto, implica na utilização de instrumentos técnicos e sistemas
de signos enquanto mediadores da relação do homem com o ambiente, com o outro. Particular
atenção, conforme sinalizado anteriormente, é dada ao signo lingüístico. Consideradas um dos
temas mais complexos no interior da psicologia sócio-histórica, as relações entre a linguagem e o
desenvolvimento do pensamento é objeto de reflexão sobretudo no sétimo capítulo de Pensée &
langage (1997). Dessa reflexão, interessa-nos, neste trabalho, acentuar o papel da linguagem na
constituição da consciência. Enquanto prática social, a linguagem é considerada atividade
constitutiva do ser humano. "A linguagem (...) regula a atividade psíquica, constituindo a consciência,
porque é expressão de signos que encarnam o sentido com elemento da cultura. Sentido que
exprime a experiência vivida nas relações sociais, entendidas estas com espaço de imposições,
confrontos, desejos, paixões, retornos, imaginação e construções." (Kramer, 1994, p. 107).
Com essas idéias em mente, procura-se, neste estudo, examinar e discutir os impactos do trabalho
precoce3, e o faremos a partir de três ângulos de observação: 1º.) o desenvolvimento da criança; 2.)
efeitos do trabalho precoce no interior das famílias, e, por fim, 3º.) implicações sobre a dinâmica de
vida dos adolescentes trabalhadores.
Nesta perspectiva, tomam-se como dado empírico os resultados de uma pesquisa realizada no
município de Jardim de Piranhas, localizado no interior do Rio Grande do Norte, cujas características
são descritas a seguir.
O CENÁRIO E UM POUCO DE HISTÓRIA
Jardim de Piranhas4 dista 315 km. de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, sendo
cortado pelo rio Piranhas, fator de desenvolvimento regional. A região onde está situado o município
tinha tradicionalmente como atividade principal a agropecuária e, dessa forma, uma ocupação
populacional concentrada principalmente na zona rural. Com os ininterruptos anos de forte seca,
sendo assim forçados a abandonar o cultivo da terra e a criação de animais, agricultores e suas
famílias passaram a migrar para centros urbanos, tendo sido esse município um dos principais
destinos desses imigrantes. Tal escolha deveu-se, em grande parte, ao fato de ter se desenvolvido
em Jardim uma indústria de tecelagem de grande importância para a região, pelo número de
empregos gerados e pelo total de recursos movimentado, que, ao menos a princípio, aparecia como
uma possibilidade de absorver a mão-de-obra desses agricultores, agora sem terra, sem casa e sem
trabalho.
Em decorrência da migração aumentou o número de famílias dotadas de parcos recursos financeiros
e com precário acesso a bens públicos como saúde, educação, saneamento e habitação.
Observaram-se, então, no município, significativas modificações no tecido social, no interior do
núcleo familiar, na estrutura do trabalho e, particularmente, no comportamento dos jovens. O
componente salário do custo do trabalho no setor produtivo caiu a níveis significativamente baixos.
Sob tais condições os trabalhadores se viram na contingência de lançar mão da força de trabalho de
suas crianças, as quais foram contratadas, informalmente, para realizar atividades periféricas - e de
menor valor - na cadeia produtiva de certos produtos, inserindo-se no mercado enquanto
trabalhadores precarizados.
Além de ser decorrente da pobreza generalizada, a exploração do trabalho infantil no interior das
tecelagens reflete o baixo grau de regulação a que está submetido o trabalho no município e o alto
nível de desorganização dos trabalhadores. Se, para os empresários, a inserção precoce das
crianças em atividades produtivas é justificada em face do barateamento dos custos de produção e
crescimento dos lucros, do ponto de vista das crianças e de suas famílias ela tem sido justificada por
liberar os adultos para outros trabalhos, complementar a renda familiar, prevenir situações de
envolvimento com a marginalidade, obter recursos para o custeio de objetos pessoais, assim
deixando transparecer a confluência dos interesses das famílias e dos empresários.
No ano de 1997, a fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho e Emprego do Rio Grande do
Norte (DRTE/RN, Brasil: 1998a) encontrou trabalhando, diretamente nas tecelagens de Jardim de
Piranhas, um grupo de 123 crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos. Em decorrência,
na intenção de suprimir o trabalho infantil no município, em 1998 foi montado um programa de
atendimento - Jardim Esperança -, anterior ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI),
para onde foram encaminhados aqueles trabalhadores infantis. Uma bolsa foi prometida a suas
famílias, como forma de compensar a perda do rendimento auferido pelas crianças.
Contudo não obstante, visto que as bolsas só começaram a ser pagas em meados de 2000, depois
de iniciadas as ações do PETI, de maneira geral permaneceu e se agravou o quadro do trabalho de
crianças, embora com alguns ajustes. Ou seja, afastadas das indústrias diante da pressão da
fiscalização, é no interior das residências que se passa a observar sua inserção precoce no trabalho
produtivo. Logo, não é de estranhar que, no mesmo ano da criação do Jardim Esperança, as
estimativas apontavam para a existência de 400 crianças trabalhando sob condições precárias.
Como não é difícil concluir, essas condições tiveram impactos consideráveis em várias esferas da
dinâmica do município.
IMPACTOS DO TRABALHO PRECOCE NO DESENVOLVIMENTO DAS CRIANÇAS
Em outro contexto deste artigo afirma-se que, no interior da perspectiva sócio-histórica, o
desenvolvimento humano é entendido como um processo de internalização de regras, de valores e
de modos de pensar e de agir que ocorre nas interações sociais das quais o sujeito participa em seu
dia-a-dia. Nesse sentido, como pensar esse processo em crianças e adolescentes que vivenciam,
em seu contexto social, a realidade do trabalho precoce? Na tentativa de refletir sobre ele, ao menos
dois aspectos nos são colocados. O primeiro deles diz respeito à internalização do sentido atribuído
ao trabalho, pelos adultos, nesse contexto. O segundo, aos impactos dessa prática no
desenvolvimento dos sujeitos que a ela estão submetidos/expostos cotidianamente.
Iniciando pela questão do sentido atribuído ao trabalho, pelos adultos, pode-se depreender dos
depoimentos apresentados pelos sujeitos entrevistados que, do ponto de vista das famílias, em face
do quadro de carências a que se encontram submetidas, o trabalho infantil já foi incorporado à sua
rotina, de modo que tanto não é questionado quanto é reiteradamente solicitado. Assim, o contexto
de pobreza em que estão inseridas as famílias forja um discurso de justificação da inserção precoce
no trabalho, naturalizando-o, discurso que tanto serve para negar os evidentes prejuízos às crianças
quanto afirmar a importância do emprego delas pelos capitalistas5.
Em Jardim de Piranhas, ademais, tal discurso também é utilizado para justificar a ociosidade de um
grande número de homens adultos, excluídos do emprego formal em face das características que
assumiu a precarização do trabalho, na região. Sob essas condições, as relações de exploração que
se efetivam pelo trabalho, por oferecerem as chances de subsistência da família e de ocupação dos
meninos e meninas, vistas de um prisma invertido, são consideradas benéficas.
Esta não é,
entretanto, uma situação nova,
tampouco restrita a Jardim. Ao tratar do
desenvolvimento do capitalismo, desde o século XVIII, Marx (1867/1996) já denunciava os acordos
levados a termo pelos capitalistas, negociados junto a abrigos suspeitos ou familiares famintos. Por
meio deles as crianças eram entregues à mais completa exploração, justificada pelo aprendizado de
um ofício, de que se valeriam no trabalho desenvolvido, e pelas dificuldades da família para se
manter e mantê-las. Da mesma forma, ao tratar da evolução do industrialismo no Brasil, no início do
século XIX, o estudo de Dulles (1977) permite observar algumas das situações anteriormente
constatadas na Inglaterra, particularmente o aluguel de crianças. Os familiares que as entregavam
aos capitalistas, em face do alto grau de pobreza a que estavam submetidos, consideravam tais
empresários benfeitores da família e das próprias crianças6.
As informações contidas nos depoimentos permitem observar a particularidade dos dados revelados
por inúmeros levantamentos, de que é exemplo a Pesquisa Nacional por Amostragem Familiar —
PNAD -, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE (1999). Os exemplos
consubstanciados nos depoimentos dos sujeitos7 indicam como são socialmente construídos os
índices de pobreza, exploração do trabalho infantil, baixa escolaridade, má nutrição, mortalidade
infantil etc., num movimento circular em face do qual é compreensível sua naturalização. As famílias,
submetidas às mais duras condições de vida, ao buscarem em estratégias como o trabalho das
crianças a mitigação dos seus males, por um lado aprofundam a miséria em que vivem e, por outro,
garantem a base para a reprodução do mesmo quadro.
O depoimento abaixo ilustra a precocidade com que as crianças são inseridas no trabalho e a
naturalização desse discurso no interior de suas famílias. De acordo com a mãe de uma família,
Quase todos eles [os filhos] começaram a passar8 com sete anos [de idade]. Tem um com nove
anos, que já passa; uma menina com 12, que começou também a passar bem novinha e tem um
com 14, que quando começou a passar rede tava na faixa dos oito anos. Tudinho eu comecei a botar
pra passar rede perto de oito anos.
É curioso como essa mãe aparenta não se dar conta da dramaticidade do quadro em que está
inserida e para onde arrasta seus filhos, tratando com naturalidade um problema que se repete e
vem sendo combatido há séculos. A seqüência desse mesmo depoimento nos dá a exata dimensão
do segundo aspecto que apontamos anteriormente, qual sejam as conseqüências do trabalho
precoce na saúde das crianças. Segundo a entrevistada,
"Quando passava a mamucaba9, os meninos reclamava demais, que sentia muita dor nos quadril,
que sentia dor de cabeça; tinha dias que alguns deles não conseguia passar, são tudo pequeno. Eu
nunca levei eles pro médico, por conta das dores que eles sentiam no espinhaço".
Um outro depoimento segue a mesma direção. Veja-se:
"(...) os meninos se queixam do espinhaço", e um deles "tem uma perna menor, por causa da
mamucaba". Ela é "doente dos ossos", já tendo tomado injeção de "dexacitoneurin" e se encontra
tomando "chá de casca de pau, para curar inflamação".
Embora no primeiro depoimento as referências ao trabalho das crianças sejam feitas a um passado
cuja condição, subentende-se, não mais persiste na família da entrevistada, podemos afirmar que o
mesmo não se passa em todas as famílias. Ainda no início de 2001, constatou-se que crianças com
até nove anos de idade confeccionavam, nas suas residências, a mamucaba, valendo-se de teares
manuais, rudimentares, em condições que lembram as referências ao modo de produção artesanal.
As atividades domésticas, por encontrarem-se protegidas da fiscalização do Ministério do Trabalho,
possibilitam que os pais imponham às crianças jornadas muitas vezes proibitivas até mesmo para um
adulto, em condições de trabalho extremamente prejudiciais.
Além dos efeitos que a rotina descrita pode trazer à vida das pessoas envolvidas, as condições
mesmas nas quais as atividades de trabalho são desempenhadas, ou seja, o fio em si, que circula no
ar e adere a tudo, o calor das latadas10 improvisadas com amianto, o chão de barro batido, as
refeições instáveis e as incômodas posturas assumidas por horas ininterruptas, trazem irremediáveis
comprometimentos da coluna, do equilíbrio e do desenvolvimento físico. Foram identificados,
também, significativos índices de tristeza, desânimo e apatia entre os trabalhadores precoces,
explicados pela monotonia das tarefas e dispêndio de energia que requerem. (Brasil, 1999). Por
estarem submetidas a uma carga de trabalho estafante e de alta responsabilidade até para um
adulto, há um comprometimento da organização psicológica das crianças, de modo que o adulto que
serão não terá, muito provavelmente, o equilíbrio emocional suficiente para fazer frente às novas
demandas que lhe serão postas.
À debilitação da sua condição física acrescente-se um estado de fadiga e falta de disposição (e
tempo) para engajamento em outras atividades, déficit de atenção e de concentração e restrições às
possibilidades de relações sociais. Em decorrência, as crianças ficam privadas de brincar, ou seja,
de uma das atividades que mais contribuem para o desenvolvimento saudável de aspectos físicos,
cognitivos e sociais. Segundo Vygotsky (1984), no exercício de atividades lúdicas a criança "faz o
que mais gosta de fazer, porque o brinquedo está unido ao prazer". (1984, p. 113). Ainda de acordo
com esse autor, dois outros aspectos determinam a importância do brincar. O primeiro é ser uma
atividade que favorece a maturação de certas necessidades da criança, estando assim, diretamente
associado ao desenvolvimento; o segundo, possibilitar à criança em idade pré-escolar a efetivação
de desejos não realizáveis no mundo real.
Em relação às possibilidades engendradas através de e nas atividades lúdicas, Vygotsky (1984)
assinala que nestas se dá a criação, por parte da criança, de uma situação imaginária em que as
relações/vinculações entre o objeto, as ações sobre ele e seu significado podem ser diferenciadas
daquelas habitualmente concebidas. Assim, a possibilidade de operar nessas situações imaginárias
"é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às restrições situacionais" (p.
113)11.
Considerando que, como sinalizado por Jobim e Souza (2001), a psicologia do desenvolvimento
"formula os ideais para o desenvolvimento, providencia os meios para realizá-los e, mais do que tudo
isso, acaba por desenvolver as crianças, os adolescentes e nós mesmos - adultos - com base em
determinados enquadramentos, participando de nossa formação como sujeitos e como objetos"
(2001, p. 41), como pensarmos a infância dos sujeitos deste estudo?
Em decorrência das condições de existência a que estão submetidas, certamente não se enquadram
no "ideal de infância" preconizado por algumas vertentes tradicionais da Psicologia do
Desenvolvimento. São, antes, sujeitos que não só interiorizam os elementos de seu universo, mas
também vivenciam uma infância em que não há lugar para a singularidade exercida na escolha ou
prazer daquilo que fazem. Assim, determinados aspectos coercitivos da "dura" realidade (dentre eles,
o do trabalho) que, imaginariamente, não encontrariam eco na infância, ocupam, desde cedo, lugar
na existência desses sujeitos. É possível concluir, então, que a vida dessas crianças as leva a se
identificar muito mais com os adultos que com os modelos configurados para a infância por parcela
da Psicologia.
Quando se pensa na escola em um contexto como esse, o fracasso acadêmico aparece como o
resultado mais esperado, tendo-se em vista as condições nas quais se encontram as crianças
trabalhadoras. Objeto de investigação em inúmeras pesquisas, o fracasso escolar, manifesto,
principalmente, nos altos índices de evasão e repetência das crianças oriundas das camadas
desfavorecidas da população, continua sendo uma realidade no sistema educacional brasileiro. O
objetivo de "conseguir, antes de 1999, a escolarização de todas as crianças em idade escolar,
oferecendo-lhes uma educação geral mínima com duração de 8 a 10 anos", estabelecido no Projeto
Principal de Educação para América Latina e Caribe, a partir da Conferência Regional de Ministros
da Educação dos países que compreendem essas regiões (Ferreiro, 1992, p. 7-8), está longe de ser
alcançado.
Em análise do Documento Base do Congresso Brasileiro de Alfabetização (citado por Klein, 1997),o
Grupo de Estudos e Trabalhos em Alfabetização ressalta: "O fato mais marcante apontado pelo
diagnóstico do sistema de ensino brasileiro é sua improdutividade, expressa nas elevadas taxas de
evasão e repetência entre as crianças e jovens que chegam a freqüentar as escolas. A repetência na
primeira série do primeiro grau, (...) alcança mais da metade das crianças. (...) A cada ano, através
da repetência e da evasão, milhões de crianças são expulsas do ensino básico, particularmente da
rede pública" (Klein, 1997, p. 22).
Na Região Nordeste, os índices escolares apontam para uma desigualdade considerável em relação
à Região Sudeste: "a proporção de analfabetos no grupo etário de 10-14 anos e no de 15-17 anos é
de 5 a 6 vezes maior no Nordeste que no Sudeste" (Azevedo, 1994, p. 34). Não destoando do
quadro identificado na região, o município de Jardim de Piranhas apresenta uma situação de
escolarização extremamente precária.
Os dados fornecidos pela Secretaria Estadual de Educação/RN, constantes das Tabelas 15 e 16,
abrangem o período de 1996 a 1998, da primeira à oitava séries do Ensino Fundamental,
compreendendo as escolas situadas nas zonas urbana e rural. Na Tabela 1 observam-se os índices
de repetência, enquanto na Tabela 2, os de evasão.
Os números acima refletem uma tendência nacional, qual seja uma alta concentração de retenção
na primeira e quinta séries do Ensino Fundamental. Observe-se, entretanto, que estes altos índices
de repetência refletem, igualmente, as desigualdades sociais entre as regiões brasileiras,
confirmando a posição desfavorável que o Nordeste ocupa em relação às outras regiões do país. Ou
seja, as médias de 46% e 14% (da primeira e quinta séries respectivamente) apresentadas nas
Tabelas 1 e 2 são mais altas que as médias de outras regiões brasileiras.
Da mesma forma que a Tabela 1, a Tabela 2 apresenta altos índices de evasão no município,
especialmente na primeira série do Ensino Fundamental. Em relação às últimas séries (quinta à
oitava) há uma particularidade: índices elevados perpassando todas estas séries. A interpretação
destes dados sugere que os índices podem estar refletindo a inserção desta população estudada no
mundo do trabalho, uma vez que a faixa etária estimada fica em torno dos 11 aos 15 anos.
De acordo com a DRT/RN (Brasil, 1998a), dos 446 empregados na indústria têxtil que trabalhavam
em jornada superior a 8 horas diárias, apenas 100 eram estudantes, ao passo que 291 pararam de
estudar. Excetuando-se aqueles com o ensino médio ou o curso superior concluídos, há um total de
425 empregados fora da escola. Alguns deles, com idade entre 15 e 17 anos, alegam que o
desinteresse ou o trabalho foi a razão para tal decisão.
Outros dados mais recentes, apresentados no relatório do MTE/OIT (Brasil,1999), apontam para o
aprofundamento dessa problemática, na medida em que mais de 70% das crianças e adolescentes
do município estão em série inadequada à idade. Além disso, tal documento revela que mais de 60%
da população infanto-juvenil são repetentes de pelo menos um ano, e que 85,9% dos pais (chefes de
família) não têm escolaridade ou têm, no máximo, três anos de estudo, indicando a existência de um
ciclo repetitivo entre pais e filhos no tocante à questão da baixa escolaridade.
Em acréscimo, é importante informar que, no mesmo ano de 1996, 100% dos adolescentes maiores
de 14 anos, matriculados na rede de ensino municipal, encontravam-se cursando entre a primeira e
quarta séries do Ensino Fundamental, levando-nos a crer que a irregularidade da trajetória escolar
dessa população pode estar diretamente associada à inserção no trabalho precoce.
O município de Jardim de Piranhas apresenta, pois, um quadro nada alentador: 58,1% da renda
familiar são produzidos por uma força de trabalho composta por crianças e adolescentes que
freqüentam a escola de forma irregular, bem como por aqueles, juntamente com adultos, que nunca
a freqüentaram. (Brasil, 1998a; 1999).
As considerações acima apontam, assim, para a necessidade de se considerar, além dos
irremediáveis danos à saúde, o comprometimento no processo de escolarização. De maneira geral,
os depoimentos aqui descritos ilustram e ressaltam o ingresso tardio no percurso, as constantes
desistências, a reincidência das reprovações na série inicial e, perigosamente, a incapacidade dos
adultos para entender que essa situação se deve ao trabalho.
Essa condição pode ser ilustrada, também, com a seguinte observação.
Em uma das famílias entrevistadas, dos 7 filhos em idade escolar, apenas um ainda não viveu a
experiência da desistência ou da reprovação. No ano de 2000, a mãe alega: "Júnior desistiu da
escola porque a situação da família estava ruim e não tinha merenda na escola: aí ele vinha passar
rede em casa".
Nesse contexto, reprovação e desistência são tão-somente explicadas como decorrentes de
brincadeiras, desatenção, falta de interesse das crianças. Ainda que tais alegações sejam
procedentes, elas parecem não depor contra os pequenos trabalhadores mas, ao contrário, acentuar
o grau de influência maléfica do trabalho sobre seu estado de crianças, sua infância. As famílias não
conseguem entender que, ante o trabalho precoce, a estada na escola representa o único momento
em que é possível a elas encontrar os colegas, conversar, brincar etc.
Reiterando as estatísticas que associam baixa escolaridade com pobreza, bem como expressando a
incapacidade para identificar os reais motivos da dificuldade mostrada pelas crianças para obterem
sucesso na escola, informa uma das entrevistadas:
"Eles [os filhos] já foram reprovados muitas vezes. O de 14 anos fez a primeira série num sei quantos
anos; agora mesmo que ele veio passar. Outro, foi reprovado na primeira série, mas já vai fazer a
terceira. A menina tá na quarta [série]. Muitas vezes eles desistiam, eles mesmo queria desistir. Aí,
eu comecei a castigar eles, dizer que não podiam desistir, aí eles ficaram [na escola]. O mais velho
nunca desistiu; ele fez a primeira [série] com 11 anos, passou, depois começou a estudar o supletivo
e todos os anos ele passa no supletivo; agora ele já vai fazer o 1º ano do 2º grau [primeira série do
ensino médio]. Mas, já a menina que é encostada a ele [apenas um ano mais nova] desistiu na
quarta série: noivou, casou e desistiu. Eu acho que eles são reprovados na escola por falta de
interesse deles, porque não liga de aprender. Eu tiro pelo mais velho, que tem interesse e nunca foi
reprovado. Ele trabalha, chega do serviço, toma banho e vai de carreira pra escola. Esses outros vão
todos os dias, mas eles não se interessam, começam a brincar e não ligam de aprender."
A exemplo do que se observou com relação às crianças, o quadro identificado em Jardim de
Piranhas também implica sérias conseqüências sobre a vida dos adolescentes. É este o aspecto
que focalizaremos a seguir, e, de modo a tornar mais claras nossas observações, descreveremos,
inicialmente, mais alguns detalhes do contexto do município.
DINÂMICA FAMILIAR
Visto que a grande maioria dos homens adultos que migraram para a cidade só dispunha de
experiência com o trato da terra e dos animais e considerando-se as demandas especializadas da
indústria, lhes faltaram os empregos na cidade. Por outro lado, dada a tradição da indústria local de
empregar crianças em atividades que não requeriam qualificação, era razoavelmente fácil encontrar
uma colocação para os filhos pequenos.
No mesmo processo, se as crianças trabalhavam em atividades menos importantes, era aos
adolescentes que se destinavam os postos de trabalho mais especializados e melhor remunerados
que surgiam, tanto mais quanto se aproximasse o final de cada ano, quando crescia a demanda do
comércio pelos produtos lá confeccionados. Ainda que não tivessem experiência com as atividades
industriais, os adolescentes tinham mais disponibilidade para as duras jornadas e maior facilidade
para o aprendizado, que seus pais, já cansados da dura lida no campo, não mais se dispunham a
enfrentar. Por fim, dada a experiência adquirida pelas mulheres com o trabalho realizado em casa,
para elas também não faltava trabalho — na residência.
Em decorrência dessa situação, ainda hoje é significativo o contingente de homens adultos ociosos,
auferindo pequena renda com trabalhos eventuais como serventes de pedreiro, vendedores de frutas
ou verduras etc. Seu lugar de chefes de família está mantido por força dos papéis sexuais, muito
embora sua função de mantenedores tenha sido repassada para os demais membros da família,
particularmente às crianças e aos adolescentes. Estes, em decorrência da responsabilidade que lhes
é atribuída e do status a que foram alçados pelo seu trabalho, subvertem o papel dos pais na
estrutura familiar. Os depoimentos colhidos junto a algumas mulheres, mães de família
subcontratadas pelas tecelagens para desenvolver a mamucaba em suas casas, são profundamente
ilustrativos dessa realidade.
Esclarece Dona Maria dos Cordões que seu marido, antes de migrarem para Jardim de Piranhas, há
dez anos, agricultor no interior da Paraíba — morando "de favor" em um sítio -, comprometeu "o
espinhaço" lidando com animais e agora não tem mais condições de trabalho diário. Planta, para
subsistência, no quintal da sua casa, trabalhando dois dias por semana, apenas. Na mesma
perspectiva, informa Dona Neuzete que seu esposo,
"há mais de um ano, está parado. Ele trabalhava de agricultura lá no sítio, mas aqui está parado;
também por causa de um problema nos rins. No fim de semana, ele compra umas batatas pra
revender, na feira".
Da mesma forma Cordélia, ex-coordenadora do primeiro programa de atendimento, nascida no
município e nele morando desde menina, profunda conhecedora da realidade das famílias em que há
crianças e adolescentes trabalhadores, afirma que,
"Na maioria das famílias que vieram da zona rural e até de outras cidades o homem, o chefe de
família, fica ocioso e a mulher é quem trabalha com os filhos, dentro da própria casa (...) Isso vicia
tanto, que após um tempo sem trabalhar o chefe de família não quer mais trabalhar e não aceita a
criança sair do trabalho."
Como pode ser visto nos depoimentos anteriores, a situação socioeconômica de Jardim de Piranhas
promove uma reorganização na estrutura familiar, alterando funções e o status de seus membros e,
conseqüentemente, a forma como cada um deles se vê e também como vêem um ao outro. Nesse
cenário há uma total inversão de papéis, aparecendo o adolescente como o membro de mais status
e "poder". É quem tem o emprego melhor, quem ganha mais, quem provê mais ao sustento familiar
e - pode se dizer também - quem tem mais liberdade na família, por ser quem tem mais dinheiro.
Alguns deles chegam a ganhar até mais de quatro salários-mínimos por mês.
É interessante comentar que a mudança de status do adolescente na família não ocorre apenas
como resultado de sua ascensão financeira, mas também por um deslocamento de função da figura
paterna. Diferentemente de outras realidades, em que o sustento da família recai sobre a mãe e os
filhos em decorrência da ausência do pai, em Jardim de Piranhas o pai está presente, embora não
ocupe o lugar de provedor da família. Esta mudança de lugar pôde ser constatada durante o
desenvolvimento deste estudo, por exemplo, quando da realização de entrevistas. Naquela
oportunidade, em 100% das famílias visitadas, a pessoa que respondia era a mulher, a mãe e não o
marido, o pai, apesar de freqüentemente ele se encontrar em casa. Tal deslocamento do homem, do
pai, de seu lugar de mantenedor, pode implicar, também, sua ausência como orientador, como
modelo para os filhos.
TRABALHO PRECOCE E OS ADOLESCENTES
As mudanças no interior das famílias especificadas acima, provocadas pela entrada precoce dos
adolescentes no mundo do trabalho, representam, para eles, uma inserção artificial na vida adulta.
Nessas condições, independência financeira pode ser experimentada como independência
emocional e social por um indivíduo que, na verdade, ainda está se descobrindo, está em plena
construção de identidade, que ainda precisaria de limites e de orientação e, efetivamente, ainda não
viveu o suficiente para ter maturidade física, cognitiva, emocional ou social para o exercício das
funções por ele assumidas.
Na comunidade estudada os jovens, embalados com os ganhos decorrentes do trabalho por
produção, que variavam de 400 a 600 e até 800 reais (note-se que o valor do salário-mínimo, a partir
de 01 de maio de 1998, passou a ser R$ 130,00), tanto assumiram papel preeminente no interior das
famílias, para onde destinavam parte da renda auferida, quanto passaram a ser considerados, no
município, uma força consumidora de produtos como roupas "de marca", perfumes, bebidas etc. e de
serviços como lanchonetes, bares, boates etc. Na esteira dessa realidade, tornou-se preocupante o
número de consumidores de álcool e outras drogas e de prostitutos e prostitutas entre eles, numa
clara evidência de que, além dos danos físicos e mentais, seu trabalho também os compromete sob
o ponto de vista da moral e da educação.
O lugar a que foram alçados, pela disponibilização de recursos decorrentes de atividades que não
exigiam especialização, também resultou em forte desvalorização da escola. Neste pormenor, eles
eram reforçados pelas atitudes dos empresários, para muitos dos quais um importante critério a ser
considerado na escolha dos futuros empregados era que o candidato à vaga não estivesse
estudando. A esse respeito, Cordélia13 esclarece que,
"Mesmo que o menino estudasse, o empresário contratava, mas não liberava antes da primeira aula.
Às vezes ele [o menino] chegava na escola na segunda ou terceira aula, sem tomar banho e sem
comer; passava em casa só pra mudar de roupa e ia pra escola, porque o patrão não liberava. E
quando ele [o empresário] podia rejeitar o menino [estudante], se tinha outro pra assumir a vaga, ele
rejeitava. Porque, pra ele [o empresário], era mais vantajoso o que não estudava".
Continuando seu depoimento, Cordélia revela quanto a desvalorização da escola está presente na
família. Segundo ela,
"Aqui [em Jardim], os pais não valorizam a escola. O menino que quiser estudar, estuda, mas se não
quiser, os pais não obrigam. Os pais entendem que, pra ganhar dinheiro, não precisa saber. Tem as
tecelagens, as estamparias, o comércio informal, não precisa saber. O promotor anterior [na cidade
até meados de 2000] indiciou vários pais, porque as crianças se evadiam da escola e eles não
tomavam providências, eram até coniventes com isso. Depois da ação do promotor, por força da
justiça, os pais começaram a colocar os filhos na escola, mas eles não valorizam o ensino. Na minha
própria casa, quando eu vou orientar meus filhos sobre a necessidade de estudar, eles dizem - mãe,
você tem duas formaturas mas não ganha dinheiro, enquanto fulano de tal, que é analfabeto, é rico! E aí vão dizer os bens que a pessoa tem. As crianças vão trabalhar porque elas querem o dinheiro
pra entrar na boate, pra comprar roupa de marca. Os adolescentes já se sentem poderosos, e vão
ficando mais poderosos e aí começam com as drogas, com a prostituição".
Expressão do sentido particular que assume o trabalho no capitalismo, esse evidente desinteresse
pela escola e subordinação ao trabalho, de acordo com Mészáros (1995), não passaria de um
epifenômeno da subsunção do trabalho pelo capital. Neste sentido os adolescentes, inclusive,
chegam a zombar dos professores, os quais, segundo eles, apesar dos anos de estudo, não ganham
salários suficientes para uma vida tranqüila, ao contrário de muitos analfabetos, que são empresários
ricos. Contraditoriamente, tal subordinação se insere na atual lógica da produção capitalista,
marcada pelo desemprego estrutural e pela diminuição do emprego de trabalho variável, cuja
crescente competitividade entre os trabalhadores para se inserirem nos postos disponíveis vale-se
do requisito da escolarização, nos termos da teoria do capital humano.
CONCLUSÃO
Não é fácil visualizar todas as relações envolvidas numa realidade complexa, que apresenta uma teia
de fatores interagindo e afetando uns aos outros. Ressalte-se, no entanto, que a exploração do
trabalho produtivo de crianças e adolescentes, observada em contextos de precarização das
famílias, possibilita o aumento da renda familiar, por um lado, e o crescimento do lucro do
empresário, por outro. Nesse contexto, a despeito da contribuição para o aumento da renda da
família, o trabalho não só não contribui para superar o estado de miséria em que elas se encontram,
como reproduz as condições de perpetuação da pobreza.
Em relação aos impactos dessa exploração, procuramos mostrar que a condição a que estão
submetidos crianças, adolescentes e suas famílias traz como conseqüência uma rearrumação das
relações estabelecidas, seja no interior dessas famílias, seja na dinâmica do próprio município.
Pensando-se no desenvolvimento humano, a realidade observada em Jardim de Piranhas, do
trabalho precoce, evidenciada pelos depoimentos dos sujeitos entrevistados, ilustra como este fato
pode ter efeitos danosos para as crianças e adolescentes, afetando, principalmente, sua saúde, seu
processo de escolarização e de formação da sua identidade.
Expressão do apetite desmedido do capital e da falta de políticas consistentes, voltadas para a
criança e o adolescente, o trabalho precoce também exprime a força da "ideologia ou valorização do
trabalho, que o mostra como dignificante, como escola, almejado pelos pais porque afasta a criança
da rua e da marginalidade" (Jornal do Cress, 1996). Não obstante a ampla divulgação, desde pelos
menos um século atrás, dos prejuízos advindos do exercício do trabalho precoce em atividades
produtivas, seu combate encontra barreiras de porte, seja nas próprias vítimas da situação seja nas
suas famílias, em face da força dessa ideologia, que se alimenta da luta pela sobrevivência.
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A educação infantil no contexto das políticas públicas1
Angela Maria Rabelo Ferreira Barreto2
As análises desenvolvidas neste trabalho, solicitado pelo GT de Educação Infantil da Anped,
visam subsidiar a discussão sobre a situação atual da educação infantil como política pública, no
Brasil. Buscando-se aproximar de objeto de estudo tão complexo, procura-se situar o lugar das
políticas e programas atuais, de âmbito federal, dirigidos à criança de zero a seis anos,
especialmente daqueles que se referem ao atendimento em creches e pré-escolas, bem como
analisar alguns desafios impostos pelo Plano Nacional de Educação no que tange à educação
infantil.
1
Trabalho encomendado pelo GT de Educação Infantil, da Anped.
Doutoranda em Psicologia da Universidade de Brasília e pesquisadora do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada).
2
Este trabalho serve-se de dois estudos anteriores. O primeiro foi desenvolvido no âmbito da
pesquisa ―Crianças de zero a seis anos: suas condições de vida e seu lugar nas políticas públicas‖
(Barreto, 2001). O segundo, em co-autoria (Barreto e Abrahão, 2002), foi elaborado para o Simpósio
Educação Infantil: Construindo o Presente.
1. Políticas e programas federais destinados à criança de zero a seis anos
Barreto (2001) realiza um mapeamento e a análise descritivo-interpretativa das políticas e
programas federais destinados à criança de zero a seis anos, em andamento na atual gestão
(segundo mandato do Governo Fernando Henrique Cardoso), especialmente nas áreas de educação,
saúde e assistência social, buscando identificar os alcances e limites dessas políticas/programas. O
estudo incluiu análise documental e entrevistas com dirigentes e técnicos, realizadas por Barreto
(2001), Almeida (2001) e Barros (2001). Foram analisados os documentos Avança Brasil: proposta
de governo (1998), o Plano Plurianual (PPA 2000-2003), o Orçamento da União para os anos 2000 e
2001, os sistemas de acompanhamento da execução orçamentária, além de documentos técnicos,
peças de divulgação institucional e relatórios gerenciais dos órgãos federais, alguns disponíveis nos
sítios das instituições.
A análise das intenções de políticas relativas à criança de zero a seis anos, do segundo
governo de Fernando Henrique Cardoso, explicitadas no documento Avança Brasil, permite
identificar três perspectivas sobre as quais se assentam tais intenções: a que se fundamenta nos
direitos da criança como cidadã; a que considera a criança pequena como uma faixa vulnerável por
sua condição de dependência econômica e social, e a que leva em conta os direitos da mulher e a
igualdade de oportunidades para mulheres e homens.
Verifica-se que as intenções de políticas relativas à criança de zero a seis anos explicitadas
se fazem a partir de perspectivas que vêm se consolidando no cenário brasileiro, consagradas na
Constituição de 1988 e leis setoriais posteriores, como Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB, Lei 9294/96), a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e a legislação própria da
área da saúde, entre outras. Observa-se, entretanto, em algumas passagens, que aspectos
assegurados nas leis não são ainda completamente incorporados nas propostas do governo. Isto é
mais evidente quando se trata da educação da criança de zero a seis anos: embora, com a LDB, a
creche tenha sido incluída, junto com a pré-escola, na educação infantil, reconhecida como primeira
etapa da educação básica, muitos dos objetivos explicitados no Avança Brasil referem-se apenas à
pré-escola (formação de professores, merenda escolar, para citar dois deles). O texto que trata da
educação infantil no Avança Brasil inspira-se em versão do Plano Nacional de Educação
apresentada pelo MEC e que foi superada por aquela aprovada no Congresso Nacional e
sancionada pelo Presidente da República em janeiro de 2001. Nesta última, as inconsistências
foram minimizadas.
O documento "Avança Brasil - mais quatro anos de desenvolvimento para todos" constituiu
referência fundamental na elaboração do Plano Plurianual (PPA) 2000-2003, que passou inclusive a
incorporar em seu título a expressão Avança Brasil. Utilizando como fontes privilegiadas de
informações o PPA 2000-2003 e os orçamentos da União de 2000 e 2001, os quais constituem os
principais instrumentos legais de planejamento e alocação de recursos da gestão do atual governo,
Barreto (2001) identifica os programas/ações dirigidas à criança de zero a seis anos. Verifica que dos
365 programas que compõem o PPA, a criança de zero a seis anos comparece como público-alvo
específico de dois programas: ―Atenção à Criança‖, e ―Saúde da Criança e Aleitamento Materno‖.
Além disso, está incluída como público específico de três ações: Assistência pré-escolar aos
dependentes dos servidores e empregados (Programa Assistência ao Trabalhador) e Incentivo
financeiro a municípios habilitados à parte variável do Piso de Atenção Básica – PAB para ações de
combate às carências nutricionais e Qualificação de municípios para recebimento do Incentivo
financeiro a municípios habilitados à parte variável do Piso de Atenção Básica – PAB para ações de
combate às carências nutricionais (Programa Alimentação Saudável), ação que está sendo
substituída pelo Bolsa-Alimentação.
As crianças de zero a seis anos constituem público-alvo explícito de outras ações, junto com
outros segmentos vulneráveis, não sendo definidas, portanto, no PPA, metas específicas pertinentes
ao segmento etário: no Programa Alimentação Saudável, nas ações Aquisição e distribuição de
micronutrientes para crianças, gestantes e idosos em áreas endêmicas de má nutrição; (2) Estudos e
pesquisas sobre recuperação nutricional e alimentação saudável; (3) Promoção de eventos técnicos
sobre recuperação nutricional e alimentação saudável; (4) Implantação de sistema de informação em
má nutrição por micronutrientes. No Programa Brasil Jovem, na ação Abrigo, também se inclui a
criança de zero a seis anos violada ou ameaçada em seus direitos básicos.
Ainda que sua condição de público-alvo da ação não seja explicitada no PPA, a criança de
zero a seis anos é também beneficiária de ações que envolvem outros públicos vulneráveis: no
Programa Atenção à pessoa portadora de deficiência, nas ações
Atendimento à pessoa
portadora de deficiência, e, Pagamento de Benefício de prestação continuada à pessoa portadora de
deficiência; no Programa Aceleração da Aprendizagem (atualmente denominado Toda Criança na
Escola), na ação Alimentação Escolar.
O programa
Atenção à Criança é o que mais nos interessa neste estudo. Incluído no
Macroobjetivo ―assegurar os serviços de proteção à população mais vulnerável à exclusão social‖, o
programa tem por objetivo assegurar o atendimento a crianças carentes de até 6 anos em creches e
pré-escolas.
O indicador definido é a taxa de crianças de até 6 anos atendidas, com renda familiar per
capita de até ½ salário mínimo. A taxa apresentada como mais recente no PPA é de 19% e a
prevista para o final do período é 30%. No quadro abaixo são apresentadas outras informações
sobre o programa.
Programa “Atenção à Criança” – Demonstrativo das Ações
Ações
P, A
Unidade responsável
Meta/produto
FNAS/
6.930.284
Ou O*
2556 – Atendimento a crianças em creche
A
Previsão Custos em
R$1
MPAS,
Mun. e DF
Estados,
Crianças atendidas
1.083.925.281
4003 - Funcionamento da EI
A
IFES/ MEC
4.508
856.000
alunos matriculados
3088 - Aquisição e distribuição de material didático
P
FNDE/ MEC
para EI **
2.545.000
22.673.000
módulos distribuídos
3097 - Formação continuada de professores da EI
P
FNDE/ MEC
75.920
professor
34.164.000
capacitado
3101 - Implementação do referencial curricular
P
FNDE/ MEC
nacional para a EI
TOTAL
47.760
21.492.000
professor capacitado
---
---
1.163.110.281
Fonte: PPA 2000-2003
*P- Projeto; P – Atividade; O – Outras ações
** EI – Educação Infantil
Embora não apareça no PPA 2000-2003 (Projeto de Lei), outra ação vem sendo incluída no
Programa Atenção à Criança por meio de emendas parlamentares, nos orçamentos 2000 e 2001.
Trata-se da Construção, ampliação e modernização das creches. No ano 2000, o orçamento
executado nesta ação foi da ordem de 2,47 milhões de reais.
A análise do quadro acima evidencia que a ação mais significativa em termos de volume de
recursos no Programa Atenção à Criança é a que financia o atendimento de crianças em creches e
que está sob a gestão da Secretaria de Estado de Assistência Social - SEAS. Responsável por
aproximadamente 93% do orçamento do Programa Atenção à Criança, esta ação caracteriza-se
como um ―Serviço Assistencial de Ação Continuada‖.
A ação é executada de forma descentralizada por estados e municípios, e o apoio financeiro
da União é realizado mediante a transferência de recursos "fundo a fundo", isto é, do Fundo Nacional
de Assistência Social para os Fundos Estaduais e Municipais, para a manutenção de creches/préescolas públicas ou conveniadas com o Poder Público.
A história dessa ação na área da assistência social remonta ao final da década de 70, quando
a então Legião Brasileira de Assistência - LBA - instituição do Governo Federal extinta em 1995 e
que teve suas atividades assumidas pela SEAS -, criou e implantou o denominado Projeto Casulo. O
projeto teve significativa expansão na década de 80, sendo operacionalizado por meio de convênios
com instituições privadas ou com prefeituras que mantinham crianças de baixa renda em creches e
pré-escolas. Essa expansão foi realizada com a utilização de espaços ociosos disponíveis na
comunidade e, freqüentemente, com pessoal sem formação específica, atuando com precárias
condições de trabalho. Vários estudos têm abordado essa história (Vieira, 1988; Campos,
Rosemberg e Ferreira, 1993, entre outros).
Como na época da LBA, os recursos são repassados para a manutenção do serviço com
base em valores per capita, diferenciados segundo a jornada em que a criança é atendida
diariamente: parcial (4 horas) ou integral (8 horas). Atualmente, esses valores são de R$ 17,02 e R$
8,51, respectivamente. Cabe à unidade de atendimento “oferecer alimentação, atividades
pedagógicas em horário integral ou parcial, além de trabalho sócio-educativo com famílias e com as
próprias crianças”. Segundo dados da SEAS, são cerca de 3.773 entidades responsáveis pela
execução desse atendimento, em todas as unidades da Federação e em 59% dos municípios.
Os recursos da União representam apenas parte do financiamento do serviço. Entretanto, não
há informações sobre quanto se gasta no atendimento nos diferentes municípios, qual é a parcela
das outras instâncias governamentais e não governamentais, o que torna pouco visível para a SEAS
a parte co-financiada por elas (Almeida, 2001).
Não há dados sobre número de crianças em jornada parcial ou integral de atendimento. Na
verdade, verifica-se que há ainda grandes deficiências quanto a informações gerenciais nessa e nas
outras ações de responsabilidade da SEAS, embora esforços nesta direção estejam sendo
realizados.
Esta ação de apoio financeiro da União ao atendimento em creches, que, conforme visto, tem
uma história de quase três décadas, vem atualmente passando por um momento delicado na
administração pública federal, e como conseqüência, nas demais esferas de governo, em razão da
ainda precária articulação entre os setores de assistência social e de educação. Com a consolidação,
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, da concepção de educação infantil como
primeira etapa da educação básica, incluindo os segmentos da creche (zero a três anos) e préescolas (quatro a seis anos), vem se observando embates entre as duas áreas sobre a gestão e o
financiamento das ações.
Em julho de 2000, a SEAS publicou a portaria 2.854, introduzindo novas modalidades de
atendimento, além de creches e pré-escolas, a serem financiadas com recursos da ação
"atendimento à criança em creches". Assim, define a portaria, em seu anexo, as modalidades de
atenção à criança de zero a seis anos:
"APOIO À CRIANÇA DE 0 A 6 ANOS
Atendimento em Unidades de Jornada Integral ou Parcial: essa modalidade era
tradicionalmente desenvolvida apenas em creches e pré-escolas. Abre-se a possibilidade de
realizar esse atendimento também em outros espaços físicos, utilizando inclusive outras
formas de trabalhos com crianças, tais como: brinquedotecas, creches volantes (veículos
equipados com jogos, brinquedos, com supervisão de educadoras infantis que se deslocam
para diferentes pontos do município com a finalidade de realizar ação sócio-educativa para
adultos encarregados de trabalho com as crianças), atendimento domiciliar (crianças
atendidas em casas de família com adequada supervisão técnica) etc. Em todas essas
ações devem estar integradas as crianças portadoras de deficiência e as crianças em
situação de extremo risco.
Ações sócio-educativas de apoio à família: são ações comunitárias de promoção e
informação às famílias de crianças de 0 a 6 anos, tais como: palestras sobre
desenvolvimento infantil, oficinas pedagógicas promovendo interação pais/crianças por meio
de jogos e brincadeiras, cursos de capacitação profissional com vistas a ampliação de renda
familiar etc. Devem ser priorizadas as famílias em situação de extremo risco: famílias de
detentos, de ex-detentos, famílias com membros portadores do vírus HIV/AIDS, famílias
sem teto, famílias sem terra, famílias vivendo em assentamentos, vítimas de enchentes,
seca etc., na perspectiva de promovê-las e apoiá-las nos cuidados com seus filhos".
Deve-se observar que a introdução dessas novas modalidades não fica transparente no PPA
e nem nos orçamentos da União 2000 e 2001, onde a ação, tal como descrita, restringe-se ao
"atendimento a crianças em creches". No relatório de gestão da SEAS de 2000 também não constam
informações sobre as "novas modalidades". Conforme levantado por Almeida (2001), a SEAS ainda
não tem um controle preciso dos municípios/estados que estão remanejando recursos para as novas
ações instituídas pela Portaria 2854/00 da SEAS, nem quantos per capita estariam sendo
remanejados e para quais modalidades.
As demais ações do programa Atenção à Criança, todas com recursos financeiros de pouca
monta, estão sob a responsabilidade do Ministério da Educação. Essas ações consistem na
assistência financeira, por intermédio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE,
a projetos educacionais que visem formação continuada de professores e aquisição de material
didático. Os recursos para essas ações nos anos de 2000 e 2001 foram destinados aos municípios
com Índice de Desenvolvimento Humano inferior a 0,500. Os projetos de formação de professores
apoiados devem visar a implementação do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil,
publicados pelo MEC em 1998. Incluem-se no programa do MEC denominado Parâmetros em Ação,
principal ação da Secretaria de Educação Fundamental nos últimos anos.
Ainda no âmbito do MEC/FNDE, a educação infantil é contemplada no Programa de
Alimentação Escolar (Merenda Escolar). Os recursos repassados aos municípios para a merenda
escolar abrangem, entretanto, apenas as crianças das pré-escolas públicas e filantrópicas, ou seja,
a faixa etária de quatro a seis anos. Além de não ter uma cobertura para toda e educação infantil, o
valor per capita (R$ 0,06/dia letivo) é menos da metade do direcionado aos alunos do ensino
fundamental público (R$ 0,13). A estimativa é de que em 2000 os recursos do programa destinaramse a 3,8 milhões de crianças de pré-escola, o que significou um gasto aproximado de 45,6 milhões
de reais.
Procurando-se avaliar os alcances e limites das políticas e programas federais destinados à
criança de zero a seis anos, evidencia-se no âmbito das intenções de governo o crescente
reconhecimento da importância da infância como fase do desenvolvimento humano, bem como dos
direitos das crianças como cidadãs.
Nota-se que grandes avanços no âmbito jurídico-legal vêm ocorrendo especialmente após a
Constituição de 1988, no que tange aos direitos da criança. O Estatuto da Criança e do Adolescente,
de 1990, a Lei Orgânica da Assistência Social, de 1993 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, de 1996 consagram tais avanços. Destacam-se entre estes, o direito à educação da
criança de zero a seis anos de idade, em creches e pré-escolas. Essas instituições passam a
constituir a educação infantil, primeira etapa da educação básica.
Progressos também têm-se verificado na gestão governamental, com a descentralização
político-administrativa e a participação da sociedade, especialmente no controle social das ações dos
governos. A estruturação do Sistema Único de Saúde - SUS, a municipalização nas áreas de saúde,
educação e assistência social, mesmo que em processo, respondem a esses parâmetros da
Constituição. Das ações analisadas, várias têm mostrado avanço em sua gestão, como o observado
no programa da merenda escolar, que ao longo desta década passou por grande reformulação em
seus processos de execução. No caso da área da saúde, deve-se mencionar a instituição do repasse
do Piso de Atenção Básica e a implementação do Programa Saúde da Família.
Ainda que venham se observando avanços também nas condições de vida das crianças, no
País, redundando, por exemplo, em significativa melhora nas taxas de mortalidade infantil, muito
ainda há a se fazer para garantir à criança pequena um desenvolvimento integral adequado.
Observa-se que ainda é tímido o lugar ocupado pela criança menor de sete anos nas políticas
públicas, apesar de ser esse o segmento populacional mais afetado pelas condições de pobreza e
desigualdade. O percentual de crianças dessa faixa etária em famílias com renda inferior a 1/2
salário mínimo per capita chega a 42,2%, bem superior àquele da população em geral. (Dados da
PNAD/IBGE de 1999).
Esta observação é especialmente grave no caso da educação. Na verdade, a criança de zero
a seis anos é quase ausente na política educacional em curso no atual governo federal. Tal ausência
é percebida, por exemplo, no Plano Plurianual 2000-2003, em que a educação infantil não apresenta
sequer o status de programa, ao contrário dos outros níveis de ensino e até mesmo das
modalidades.
Evidencia-se uma pronunciada fragmentação das ações destinadas à criança de zero a seis
anos, mesmo no interior dos ministérios setoriais. A articulação entre as áreas é ainda mais precária,
embora esforços estejam sendo feitos especialmente com a criação do Comitê da Primeira Infância CODIPI, em 2000, no âmbito do Programa Comunidade Ativa (antes Comunidade Solidária).
Outro aspecto que demanda maiores investimentos diz respeito aos sistemas de informações
gerenciais. Observa-se uma carência de dados sistematizados que permitam a formulação adequada
de ações, bem como seu acompanhamento e avaliação.
Uma ausência também percebida diz respeito a processos efetivos de avaliação das ações.
De um modo geral, não tem se observado grandes esforços nesta direção. Algumas iniciativas do
Ministério da Saúde merecem ser acompanhadas, como a avaliação sistemática da implementação e
dos impactos do Bolsa-Alimentação que está sendo delineada.
Entre os limites e entraves para a oferta de serviços públicos de qualidade à criança pequena
provavelmente o mais importante diz respeito à formação dos recursos humanos envolvidos na
operacionalização das ações. Em todas as três áreas analisadas - educação, saúde e assistência
social - este problema se impõe e exige estratégias de solução. No caso da saúde, o PROFAE Programa de formação dos profissionais de enfermagem constitui uma importante iniciativa para
minorar esse entrave.
Também no âmbito das equipes do Governo Federal, o qual é responsável pela normatização
e coordenação das ações, verificam-se grandes carências relativas aos profissionais. As equipes são
muito reduzidas e os técnicos freqüentemente têm contratos temporários de trabalho.
Uma questão que necessita de estudos aprofundados e solução urgente diz respeito ao
financiamento da educação infantil e distribuição de encargos entre as diversas esferas de governo,
atendendo ao Artigo 30, Inciso VI, da Constituição. Visando contribuir com a discussão desse tópico
fundamental, Barreto e Abrahão (2002) desenvolveram um estudo sobre os desafios impostos pelo
Plano Nacional de Educação, comentado a seguir.
2. Os desafios impostos pelo PNE: financiamento e gestão da educação infantil
O Plano Nacional de Educação estabelece um conjunto de 25 objetivos e metas para a
educação infantil. Esses objetivos/metas tratam da ampliação da oferta de creches e pré-escolas, da
elaboração de padrões mínimos de qualidade de infra-estrutura para o funcionamento adequado das
instituições de educação infantil, da autorização de funcionamento dessas instituições, da formação
dos profissionais da área, da garantia da alimentação escolar para as crianças atendidas nos
estabelecimentos públicos e conveniados, do fornecimento de materiais adequados às faixas etárias,
do estabelecimento de padrões de qualidade como referência para a supervisão, controle e avaliação
e aperfeiçoamento da educação infantil, entre outros aspectos. Todos esses objetivos e metas têm
custo e, portanto, reflexos sobre o financiamento da área. O PNE explicita ainda objetivos/metas
específicos sobre a questão do financiamento da educação infantil. São eles:
21. Assegurar que, em todos os Municípios, além de outros recursos municipais os 10% dos
recursos de manutenção e desenvolvimento do ensino não vinculados ao FUNDEF sejam aplicados,
prioritariamente, na educação infantil.
20. Promover debates com a sociedade civil sobre o direito dos trabalhadores à assistência gratuita a
seus filhos e dependentes em creches e pré-escolas, estabelecido no art. 7o, XXV, da Constituição
Federal.
Encaminhar ao Congresso Nacional projeto de lei visando à regulamentação daquele
dispositivo.
25. Exercer a ação supletiva da União e do Estado junto aos Municípios que apresentem maiores
necessidades técnicas e financeiras, nos termos dos arts. 30, VI e 211, § 1º, da Constituição Federal.
23. Realizar estudos sobre custo da educação infantil com base nos parâmetros de qualidade, com
vistas a melhorar a eficiência e garantir a generalização da qualidade do atendimento.
Dos objetivos/metas do Plano Nacional de Educação para a Educação Infantil deve-se
destacar o que trata da ampliação da oferta, pelo seu impacto sobre os demais objetivos,
especialmente sobre a questão do financiamento. Prevê o PNE no primeiro objetivo/meta:
1. Ampliar a oferta de educação infantil de forma a atender, em cinco anos, a 30% da população de
até 3 anos de idade e 60% da população de 4 e 6 anos (ou 4 e 5 anos) e, até o final da década,
alcançar a meta de 50% das crianças de 0 a 3 anos e 80% das de 4 e 5 anos.
O estabelecimento de metas específicas para as duas faixas de idade (zero a 3 e 4 a 6) é
justificada, no Plano, pela história do atendimento a essas faixas etárias no Brasil, com o predomínio
da área da assistência social para as crianças menores. O que essas metas de cobertura significam
em termos de expansão da matrícula?
A Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio - PNAD, do IBGE, de 1999, aponta uma
taxa de freqüência à creche/pré-escola das crianças de zero a três anos, no Brasil, de cerca de 9,2%.
Para a faixa de 4 a 6 anos, a freqüência à creche/pré-escola era de 52,1%, além de 8,1% que já se
encontravam no ensino fundamental. Somadas, seriam 60,2% das crianças de quatro a seis anos já
freqüentando escola em 1999. É importante lembrar que os dados da PNAD não abrangem a zona
rural da região Norte, à exceção do estado de Tocantins. Certamente a freqüência à escola na zona
rural da região Norte é baixa, o que deveria diminuir este percentual.
Considerando, portanto os dados da PNAD de 1999, pode-se afirmar que a meta do PNE
para 2006, se tomada a faixa de 4 a 6 anos, e o Brasil como um todo, já estaria alcançada ou
próxima de ser atingida. Para a faixa de zero a três anos, cuja meta é 30%, para 2006, há um
enorme caminho a percorrer, pois a taxa de cobertura segundo a PNAD não atinge 10%.
Entretanto, a média nacional encobre uma pronunciada heterogeneidade nas taxas de
atendimento nas diferentes unidades da federação. Ora, é também explicitado no PNE, em sua
introdução, o objetivo de redução das desigualdades sociais e regionais no tocante ao acesso e à
permanência, com sucesso, na educação pública. Evidentemente, esse objetivo também se aplica à
educação infantil, na qual a desigualdade de acesso é fortemente sentida, especialmente quando se
considera a renda familiar das crianças atendidas. Se na classe de maior renda (acima de 5 salários
mínimos per capita), conforme os dados da PNAD/99, 32,5% das crianças de zero a três anos já
freqüentam creche, na de menor renda (menos de 1/2 salário mínimo), a cobertura não chega a 6%.
Das crianças de 4 a 6 anos, de famílias de maior renda, cerca de 90% já freqüentam pré-escola ou
ensino fundamental; para as de menor renda, este percentual é de apenas 50%.
A análise dos impactos financeiros do PNE parte, portanto, do princípio de eqüidade regional
explicitado no Plano. Considera-se, assim, que a demanda pela educação infantil nos anos 2006 e
2011 resultaria, em cada unidade da federação, dos percentuais do Plano aplicados à população.
Por não haver projeções populacionais por unidade da federação baseadas em dados recentes,
utiliza-se, grosso modo, a mesma população do ano 2000. No caso dos estados que já
ultrapassaram a meta do PNE, manteve-se o mesmo nível de cobertura (resultado da divisão do
número de matrículas pelo quantitativo da população na faixa etária) de 2000. (Barreto e Abrahão,
2002)
Considerando as metas do PNE para a creche e pré-escola à população de 2000 de cada
unidade da federação, na faixa de zero a três anos, levantada pelo Censo do IBGE,
haveria
aumento, para o Brasil, de mais de 3 milhões de matrículas até 2006 e, entre 2000 a 2011,
crescimento de 5,7 milhões de matrículas. Para as faixas de 4-5 anos, haveria em 2006 mais 1,4
milhões de matrículas e de 2000 a 2011, o acréscimo seria de cerca de 3,5 milhões.
Para a faixa de 6 anos, considerou-se que em 2006, 100% já estariam no sistema de ensino:
80% no ensino fundamental e 20% na pré-escola. Para 2011, estimou-se que 100% freqüentariam o
ensino fundamental. Somando a faixa de 4 a 6 anos, essas metas significariam 1,4 milhão a mais de
matrículas em 2006 e 3,6 milhões a mais em 2011, comparadas a 2000. Aqui também pode haver
uma pequena redução dependendo da diminuição da população desta faixa etária.
A análise da questão do financiamento público da educação infantil exige que se considerem
os outros níveis e modalidades de ensino, uma vez que esses concorrem por recursos das mesmas
fontes. Assim, procurou-se estimar as matrículas nos anos de 2006 e 2011 para os outros níveis e
modalidades da educação, interpretando as metas do PNE e considerando as taxas de atendimento
em 2000, calculadas pela razão entre matrículas e população por faixa etária. Dadas as dificuldades
de estimar as demandas por ensino superior e para a educação de jovens e adultos a partir dos 24
anos, esses segmentos não foram incluídos no estudo, o que significa que são tomados os mesmos
valores do atendimento e dos recursos de 2000 na elaboração dos cenários de financiamento.
Com base nessas estimativas de demanda, Barreto e Abrahão (2002) constróem alguns
cenários relativos aos recursos financeiros necessários à implementação do PNE. Como se tratam
de hipóteses, alguns fatores são tomados como constantes; por exemplo, as matrículas da rede
privada em cada nível de ensino e a distribuição das matrículas entre instâncias estaduais e
municipais.
A inexistência de estudos sobre os custos da oferta de educação com níveis de qualidade
adequados, em seus diferentes níveis e modalidades, é um grande entrave para a análise das
necessidades de financiamento das políticas. Desse modo, freqüentemente se usam dados dos
gastos despendidos. Também no caso dos gastos, devido à organização da oferta da educação
básica, em que os mesmos recursos materiais e humanos servem aos diferentes níveis e
modalidades, é extremamente complexo depurar o gasto/aluno em cada um deles. É necessário,
portanto, trabalhar com aproximações.
No estudo, Barreto e Abrahão (2002) calculam quanto cada estado e o conjunto de
municípios de cada unidade da federação teriam de recursos para a educação, considerando as
receitas de impostos (dados do Ministério da Fazenda). Para determinar a ―capacidade de gasto
associado à educação" no Brasil, admitem como hipótese, que os diversos níveis de governo
respeitem a imposição legal vigente nas regras constitucionais. Assim:
i)
A União vincula à educação 18% dos recursos oriundos da receita de impostos federais
a ela destinados, de acordo com Art. 212 da Constituição Federal;
ii)
Os Estados vinculam à educação 25% das receita de impostos que arrecadam como
também daquelas que lhe são transferidas, de acordo com o Art. 212;
iii) Os Municípios vinculam à educação, 25% das receita de impostos que serão
transferidas, de acordo com o Art. 212.
Considera-se também a aplicação da Contribuição social do Salário-Educação (Quota
estadual e federal).
Com base nesses mínimos, são calculados os quantitativos de recursos das instâncias
estaduais e o montante de todos os municípios de cada unidade da federação. Desses quantitativos,
são subtraídos os gastos com a educação superior e o restante é dividido pelo número de matrículas
em todos os níveis e modalidades da educação básica. Chega-se, assim, a valores per capita
médios para a instância estadual e as municipais de cada unidade da federação. Os resultados
assim obtidos mostram uma grande variação nesse per capita médio, com algumas unidades da
federação apresentando valores muito baixos (como Pará, Maranhão, Piauí, Ceará e Bahia).
Multiplicando-se o valor per capita médio pelo total de matrículas na educação infantil no ano
2000, chega-se a uma aproximação de um gasto público total, no Brasil, de 3,2 bilhões de reais com
essa etapa da educação. Considerando-se as demandas calculadas para o PNE, já comentadas,
seriam necessários 5,2 bilhões de reais no ano 2006 e 7,74 bilhões em 2011, para o atendimento em
creches e pré-escolas. Isto significa um incremento de recursos da ordem de 60% em cinco anos e
de 140%, em 10 anos, tomando-se o Brasil como um todo.
Esse cenário considera constantes os níveis de qualidade do atendimento e de eficiência dos
sistemas de ensino em 2000. Alterações nesses fatores são, entretanto, necessárias e devem
implicar mudanças nos valores aqui estimados.
A desigualdade observada nos resultados dos cálculos dos recursos per capita disponíveis
nas diferentes unidades da federação fortalecem a necessidade de que a instância federal atue no
sentido de minimizá-las, com formas consistentes de assistência financeira aos municípios,
responsáveis pela oferta da educação infantil.
Essas análises evidenciam que dois objetivos do PNE relativos ao financiamento devem
pautar a luta política pela educação infantil. Seu cumprimento precisa ser buscado, o que implica a
necessidade de criação de mecanismos de controle social. São eles:
21. Assegurar que, em todos os Municípios, além de outros recursos municipais os 10% dos
recursos de manutenção e desenvolvimento do ensino não vinculados ao FUNDEF sejam aplicados,
prioritariamente, na educação infantil.
25. Exercer a ação supletiva da União e do Estado junto aos Municípios que apresentem maiores
necessidades técnicas e financeiras, nos termos dos arts. 30, VI e 211, § 1º, da Constituição Federal.
Isto significa que aqueles que lutam pela expansão e melhoria da educação infantil precisam
compreender mais sobre as questões pertinentes ao financiamento e gestão educacional, temas
freqüentemente considerados áridos e pouco interessantes.
Referências bibliográficas:
Abrahão, J. e Fernandes, M. A . C. (1999). Sistema de informações sobre os gastos públicos da área de educação – SIGPE: diagnóstico
para 1995. Brasília: IPEA. TD 674.
Almeida, A .C., E. (2001) Ações governamentais destinadas à criança de zero a seis anos na área de assistência social - Relatório
preliminar. Brasília: IPEA.
Barreto, A . M.R.F. (2001) Políticas e programas federais destinados á criança de zero a seis anos - Relatório final. Brasília: IPEA
Barreto, A . M.R.F. e Abrahão, J. (2002). Financiamento da educação infantil: alguns desafios e cenários para a implementação do Plano
Nacional de Educação. Brasília: Senado Federal.
Barros, E. (2001) Ações governamentais destinadas à criança de zero a seis anos na área de saúde e nutrição - Relatório preliminar.
Brasília: IPEA.
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_______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: 1991.
_______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: 1996.
_______. Plano Nacional de Educação. Brasília: 2001.
______. Ministério do Planejamento, Gestão e Orçamento (2000). Avança Brasil: Plano Plurianual 2000-2003. Brasília: MPO.
Campos, M.M.; Rosemberg, F. & Ferreira, I. M. (1993) Creches e Pré-escolas no Brasil. São Paulo, Cortez.
Cardoso, Fernando Henrique (1998). Avança Brasil: proposta de governo. Brasília.
Vieira, L.M.F. (1988). Mal necessário: creches no Departamento Nacional da Criança. Cadernos de Pesquisa (67), pp. 3-16.
ANEXO
A doutrina da proteção integral: da exploração do trabalho precoce ao ócio criativo.
Autor:André Viana Custódio
A doutrina da proteção integral encontra-se consubstanciada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente da Organização das Nações Unidas. No entanto, desde 1988 o Brasil adotou tal concepção ao inseri-la no art.
227, da Constituição da República Federativa do Brasil, nos seguintes termos:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
Além de garantir um complexo conjunto de direitos a nova doutrina trouxe aos direitos da criança e do adolescente o
status de prioridade absoluta, bem como, uma ampla garantia de proteção. Os novos direitos infanto-juvenis foram
o
disciplinados com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990.
É claro que o Estatuto da Criança e do Adolescente ―[...[ tem a difícil, porém relevante, função de fazer com que o
texto constitucional não seja letra morta; e para tanto, não basta a existência de leis que assegurem direitos sociais, mas
que a estas sejam conjugada uma política social eficaz.‖ (SILVA, VERONESE, 1998). Para COSTA, a doutrina da proteção
integral
[...] afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa
em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade de seu povo e da
espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção
integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atual através de políticas específicas para promoção
e defesa de seus direitos. (1992, p. 19)
AMARAL E SILVA anota que o novo direito da criança e do adolescente ―traz normas e institutos exclusivos, não de
alguns, mas de todas as crianças e adolescentes. Consagra na ordem jurídica a doutrina da proteção integral; reúne,
sistematiza e normatiza a proteção preconizada pelas Nações Unidas.‖ (1994, p. 37)
É, portanto, a doutrina da proteção integral a base configuradora de todo um novo conjunto de princípios e normas
jurídicas voltadas à efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, que traz em sua essência a proteção
e a garantia do pleno desenvolvimento humano reconhecendo a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento e a
articulação das responsabilidades entre a família, a sociedade e o Estado para a sua realização por meio de políticas
sociais públicas.
Diante do novo contexto jurídico-político constituído a partir da incorporação da Doutrina da Proteção Integral, a
violação dos direitos infanto-juvenis assumiu uma nova centralidade. No entanto, a exploração do trabalho de crianças e
adolescentes ainda obtém destaque no cenário brasileiro, caracterizadas como uma das principais violações de direitos
humanos. Segundo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em pesquisa realizada no ano de 2004 havia
5,4 milhões de crianças e adolescentes sendo explorados no trabalho. Do universo pesquisado constatou-se que 48%
destes pequenos trabalhadores não recebem qualquer remuneração pelo trabalho realizado. SCHARTZMAN anota que
[...] na Região Sul quase metade da população de crianças e adolescentes cujos pais trabalham em atividade agrícola
também trabalha nessa atividade, percentagem muito superior à Região Nordeste. Como a renda familiar na área rural do
Sul correspondem ao dobro da renda no Nordeste, fica claro que existem diferenças sociais e culturais importantes que
explicam esse padrão de trabalho de crianças e adolescentes, que não é conseqüência exclusiva da pobreza. (2001, p. 07)
Segundo GRUNSPUN, no Brasil ―[...] milhões de crianças são exploradas no trabalho, muitas vezes como braços das
famílias contratadas. O trabalho agrícola e serviços domésticos absorvem a maiorias das crianças que trabalham.‖ (2000, p.
21)
LIMA anota que
O trabalho precoce ocorre em nosso país como em diversos outros países do mundo por diferentes razões. Entre esses
motivos à concentração de renda nas mãos de poucos e a pobreza que delas resulta, e a necessidade de complementar a
renda familiar, se constitui no mais importante e freqüente fator, conforme comprovam as pesquisas realizadas no Brasil e
no mundo. (2000, p. 17)
Os estudos e pesquisas e realizados pelo Instituto Ócio Criativo também constatam que o trabalho precoce é o principal
fator determinante pela evasão escolar e pela reprodução do ciclo intergeracional de pobreza. (2003, p. 07)
Crianças e adolescentes trabalhadores dificilmente atingem oito anos de escolaridade. Para o rompimento do ciclo
intergeracional de pobreza são necessários ao menos onze anos de escolarização. Se o Brasil não constituir, com
urgência, um conjunto de políticas sociais públicas capazes de reverterem este ciclo vicioso estar-se-á condenando milhões
de crianças e adolescentes a um processo de exclusão estrutural.(2003, p. 15)
Por isso, a legislação brasileira estabelece limites de idade mínima para realização de trabalho como forma de
proteger o desenvolvimento pleno das crianças e dos adolescentes. A Constituição da República Federativa do Brasil prevê
o
em seu art. 7 , XXXIII, ―a proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) e de qualquer
trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 (quatorze) anos.‖
O Estatuto da Criança e do Adolescente ainda prevê, no art. 67, a proibição dos trabalhos penosos, bem como,
daqueles realizados em locais prejudiciais à formação e ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social ou realizado em
horários e locais que não permitam à freqüência à escola a todas as crianças e adolescentes.
Portanto, há no ordenamento jurídico brasileiro um conjunto de normas protetivas contra a exploração laboral, que
estabelecem limites da idade mínima para o trabalho, tanto para crianças, quanto para adolescentes, sendo, portanto,
inadequada a utilização da expressão trabalho infantil para abarcar este universo conceitual. Daí, a necessidade de
constituir o conceito jurídico de trabalho precoce, considerado como todo trabalho realizado pela criança ou adolescente
antes dos limites protetivos da idade mínima para o trabalho no Brasil.
Mas segundo OLIVEIRA,
[...] enganam-se aqueles que vêem nas normas jurídicas que definem as idades mínimas apenas seus aspectos negativos.
Elas resguardam outros valores, outros direitos e têm especial relevância porque assinalam um marco importante: abaixo
da idade mínima o trabalho deve ser eliminado. Preserva-se assim O DIREITO DE SER CRIANÇA, direito ao lazer, à
educação, à pré-escola, direito a ser usufruído por toda a população infanto-juvenil e, não apenas, por uma minoria
privilegiada. (1994, p. 08)
É notável que a partir da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente a exploração do trabalho precoce recebeu
maior atenção, sendo considerado como uma bárbara violação de direito fundamental da criança e do adolescente. Daí o
estabelecimento de uma nova normatividade protetivas como forma de provocar mudanças sociais profundas em relação
ao tema. Em que pese à distância existente entre lei e realidade, percebe-se um início de ações voltadas a proteção efetiva
dos direitos infanto-juvenis frente à exploração no trabalho, ao menos no âmbito da garantia dos direitos. ―Para o sociólogo
Carlos Amaral, há duas saídas para reduzir os índices de trabalho infantil no país. Uma é o crescimento econômico e a
maior distribuição de renda. A outra é a maior efetividade das ações institucionais [...]‖ (PERES, BENEDICTO, 2002, p. 109)
No entanto, mais do que apenas reduzir ou controlar os indicadores sociais das crianças e adolescentes trabalhadores uma
vez que se reconhece como estratégia histórica de disciplinamento das classes excluídas, pois sua incorporação no mundo
do trabalho serve de estratégia de manutenção de um poder dominante, produzindo uma cultura que subtrai o lazer e o
desenvolvimento humano de crianças e adolescentes como demonstram os estudos realizados por SILVA. (2000)
Visto sob outro ângulo, a transição histórica entre a exploração do trabalho precoce e o direito ao exercício do ócio
criativo requer uma reflexão sobre o real papel do trabalho como elemento constitutivo do ser humano e do ócio como
oportunidade de desenvolvimento integral.
A obra de Paul LAFARGUE, sobre o Direito à Preguiça, traz elementos desmistificadores da supervalorização do trabalho
na sociedade industrial, como pode se notar: ―os gregos dos tempos áureos também só sentiam desprezo pelo trabalho:
apenas aos escravos era permitido trabalhar; o homem livre conhecia apenas os exercícios corporais e os jogos da
inteligência.‖ (1999, p. 65) Ou em suas denúncias
Uma estranha loucura apossa-se das classes operárias das nações onde impera a civilização capitalista. Esta loucura tem
como conseqüência as misérias individuais e sociais que, há dois séculos, torturam a triste humanidade. Esta loucura é o
amor pelo trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada até o esgotamento das forças vitais do indivíduo e de sua
prole. (LAFARGUE, 1999, p. 63)
RUSSEL, em seu Elogio ao Ócio também faz uma crítica profunda do papel do trabalho na sociedade capitalista
industrial, nos seguintes termos ―quero dizer, com toda a seriedade, que muitos malefícios estão sendo causados no mundo
moderno pela crença na virtude do trabalho, e pela convicção de que o caminho da felicidade e da prosperidade está na
redução organizada do trabalho.‖ (2002, p. 65) Percebendo que o trabalho essencialmente subtrai o lazer enfatiza que
A moderna técnica trouxe consigo a possibilidade de que o lazer, dentro de certos limites, deixe de ser uma prerrogativa de
minorias privilegiadas e se tornem um direito a ser distribuído de maneira equânime por toda a coletividade. A moral do
trabalho é uma moral de escravos, e o mundo moderno não precisa da escravidão. (RUSSEL, 2002, p. 27)
É neste contexto que o sociólogo italiano MASI, propõe o conceito de ócio criativo como a oportunidade de
compatibilização entre trabalho, estudo e jogo ou lazer. Deste modo destaca que
A plenitude da atividade humana é alcançada somente quando nela coincidem, se acumulam, se exaltam e se mesclam o
trabalho, o estudo e o jogo (...); isto é, quando nós trabalhamos, aprendemos e nos divertimos, tudo ao mesmo tempo. Por
exemplo, é o que acontece comigo quando estou dando aula. E é o que eu chamo de ‗ócio criativo‘, uma situação que,
segundo eu, se tornará cada vez mais difundida no futuro. (MASI, 2000, p. 148)
O reconhecimento que o ócio é necessário à produção de idéias e ao desenvolvimento da criatividade, traz rupturas
na concepção do trabalho como elemento construtor da humanidade. Se o paradigma do desenvolvimento humano e a
doutrina da proteção integral destacam que para a constituição da integralidade do ser humano, principalmente de crianças
e adolescentes, são necessários o desenvolvimento da educação, do lazer, da cultura, da saúde, da convivência familiar e
comunitária, ou seja, de um universo de oportunidades voltadas à globalidade do ser humano, não deveria ser apenas o
trabalho o elemento constitutivo da identidade humana.
Então, a relação trabalho precoce como constituinte do ser-trabalhador entra em contradição com a relação de proteção
integral como configurador do elemento ser-humano, estabelecendo relações políticas, econômicas e culturais da exclusão.
Surge daí, a compreensão de uma concepção alargada de ócio criativo, ou seja, que não compatibilize apenas trabalho,
estudo e lazer, mas que ampare o desenvolvimento humano e integral das crianças e dos adolescentes. Reconhecendo
seus direitos fundamentais como referências estratégicas para a construção do ócio criativo como um princípio essencial de
desenvolvimento humano. A inter-relação entre as concepções de LAFAGUE, RUSSEL, MASI e os princípios da Doutrina
da Proteção Integral e o Paradigma do Desenvolvimento Humano abrem um caminho desafiador para todos nós, qual seja,
a garantia dos direitos da criança e do adolescente ao pleno desenvolvimento.
REFERÊNCIAS
AMARAL E SILVA, Antonio Fernando do. O Estatuto, o novo Direito da Criança e do Adolescente e a Justiça da Infância e da Juventude. In: SIMONETTI,
Cecília, BLECHER, Margaret, MENDEZ, Emilio Garcia (Orgs.). Do avesso ao direito. São Paulo: Malheiros/UNICEF, 1994.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1998.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.
COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Natureza e implantação do novo Direito da Criança e do Adolescente. In: PEREIRA, Tänia da Silva (Coord.). Estatuto da
Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90: estudos sócio-jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.
GRUNSPUN, Haim. O Trabalho das Crianças e dos Adolescentes. São Paulo: LTr, 2000.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese dos Indicadores Sociais 2003. Brasília: IBGE, 2004.
INSTITUTO ÓCIO CRIATIVO. O Trabalho Precoce. Lauro Müller: mimeo, 2003.
LAFARGUE, Paul. Direito à Preguiça. São Paulo: Hucitec/UNESP. 1999.
LIMA, Consuelo Generoso Coelho de. Trabalho Precoce, Saúde e Desenvolvimento Mental. In: MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Proteção Integral
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OLIVEIRA, Oris. O Trabalho Infantil. Brasília: OIT, 1994.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional dos Direitos da Criança, 1989.
PERES, Andréia, BENEDICTO, Nair. A Caminho da Escola: 10 anos de luta pela erradicação do trabalho infantil no Brasil. Rio de Janeiro: ISC, 2002.
RUSSEL, Bertrand. O Elogio ao Ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.
SCHAWARTZMAN, Simon. Trabalho Infantil no Brasil. Brasília: OIT, 2001.
SILVA, Maurício Roberto da. O assalto à infância no mundo amargo da cana-de-açúcar: onde está o lazer? O gato comeu!. (Tese de Doutorado). Campinas:
UNICAMP, 2000.
SILVA, Moacyr Motta da, VERONESE, Josiane Rose Petry. A Tutela Jurisdicional dos Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1998.
(Artigo elaborado em setembro de 2006)
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