A Natureza Brasileira nas Fontes Portuguesas do Século XVI

Transcrição

A Natureza Brasileira nas Fontes Portuguesas do Século XVI
Maria Lucília Barbosa Seixas
A Natureza Brasileira nas Fontes
Portuguesas do Século XVI
Para uma tipologia
das grandezas do Brasil
passagem editores
O ponto de vista que fundamenta a ideia de A Natureza
Brasileira nas Fontes Portuguesas do Século XVI – Para uma
tipologia das grandezas do Brasil, é o de traçar em três
unidades temáticas um quadro das primeiras imagens do
Brasil, retratadas pelos nautas, missionários, colonos e
viajantes lusos, tentando, assim, caracterizar aquelas que
foram vistas pelos autores portugueses de Quinhentos como
as maiores grandezas da terra brasileira.
Maria Lucília Barbosa Seixas licenciou-se em História na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Obteve o grau
de Mestre em História da Época dos Descobrimentos
Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade Católica
Portuguesa com o presente trabalho. Actualmente lecciona em
Torre de Moncorvo na Escola Secundária Dr. Ramiro
Salgado.
Edição patrocinada pela
Câmara Municipal de
Torre de Moncorvo
passagem editores
Título: A Natureza Brasileira nas Fontes Portuguesas do Século XVI.
Para uma tipologia das grandezas do Brasil
Autora: Maria Lucília Barbosa Seixas
© 2003 passagem editores
Cx. Postal 102 - Esculca - 3500 Viseu - Portugal
[email protected]
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor
Impressão e acabamento na U.E.
1.ª edição: Março de 2003
ISBN: 972-98770-4-1
Depósito legal: 192229/03
Prefácio
7
Nota prévia
11
Introdução
13
I-
Do Paraíso Terreal ao Paraíso Quinhentista
21
1.
“Deus Plantou um Jardim no Éden ao Oriente”
23
2.
Em Busca do Paraíso
27
3.
O Paraíso no Brasil ou do Maravilhoso e
Extraordinário Novo Mundo
31
3.1.
Das Regiões e Lugares Naturais
38
3.2.
Dos Seres Humanos e Antropomorfos
43
3.3.
O Reencontro da Fénix e do Unicórnio
49
3.4.
Reminiscências do Tempo em que os Animais
Falavam
52
II -
Das Grandezas Naturais do Brasil
61
1.
Da Novidade e Estranheza desta Terra
64
2.
Da Abundância e Variedade do Novo Mundo
72
3.
Da Excelência da Mãe-Natureza e da Botica
Natural
76
4.
Do Mantimento do Brasil a um Novo Portugal
em Terras Brasileiras
89
5.
Da Beleza e Exotismo do Novo Mundo
100
5.1.
Do Colorido Harmonioso das Paisagens
Brasileiras
103
5.2.
A Festa das Frutas
108
III -
Das Grandezas e Riquezas do Brasil
119
1.
Verdadeiras Minas do Brasil: Pau de Tinta e
Açúcar
119
1.1.
Do Pau-Brasil
127
1.2.
Do Ouro Branco
139
2.
De outras Riquezas Complementares do Novo
Mundo
151
2.1.
De Erva-Santa ao Lucrativo Tabaco
152
2.2.
Do Algodão
158
2.3.
Da Criação de Gado nas Terras do Novo
Mundo
164
3.
Na Esperança de Encontrar Ouro e Pedras
Preciosas
168
Conclusão
175
Bibliografia
183
Prefácio
Um dos grandes temas da Literatura Portuguesa de Viagens na
Época dos Descobrimentos é, sem dúvida, a descoberta da
natureza. E no caso da descrição da Terra de Vera Cruz, esta irá
tornar-se o tema por excelência. Se ao aflorarem terras ignotas,
os nautas portugueses prenderam o olhar na frondosa e colorida
natureza, sentindo-se protegidos pelos ares temperados que
assim faziam desta "pousada" um agradável e acolhedor jardim
apto a amenizar os ventos agrestes e imprevistos do Atlântico, o
assíduo e regular contacto confirmar-lhes-ia as prodigiosas
qualidades desta terra. Este será, concludentemente, um dos
motivos incondicionais para o nascimento de uma escrita
consagrada à realidade física do Brasil.
Ao descobrir a terra, os portugueses não deixaram
certamente de descobrir as suas gentes, mormente o índio
brasileiro, também este motivo de grande espanto e curiosidade.
Na verdade, também a ele serão consagradas muitas e longas
páginas nos escritos dedicados a esta parte do mundo. Mas o
grande e indelével contributo da terra brasileira para uma nova
cosmovisão do orbe terráqueo será o da sua natureza que,
prodigiosa e capaz de oferecer contínua e generosamente
novidades e maravilhas, não deixará de solicitar hinos de louvor
e engrandecimento. Este será, séculos após séculos, o símbolo
da sua singularidade. Tal como afirma Sérgio Buarque de
Holanda, na sua Visão do Paraíso, a terra-mãe brasileira irá ser a
impulsionadora de uma "procissão dos milagres" até à
actualidade.
Já nos primeiros escritos, relatos de viagens, monografias
histórico-geográficas, tratados, cartas, entre outros, os seus
autores falam-nos do deslumbramento ocasionado por uma
outra realidade física, tão surpreendente e prolífera. O espanto e
a admiração traduzem-se no cotejo que os autores desde logo
estabelecem com o paraíso, enunciado que lhes permite
compreender e classificar a prosa deste mundo. Daí que
inicialmente a descritiva denote a busca dos diferentes sinais que
assemelhem este espaço geográfico ao tão demandado éden.
De obra em obra, de autor em autor, os atributos naturais e
as potenciais qualidades de uma natureza fértil determinam o
olhar dos portugueses. Este novo lar, já um "outro Portugal",
permitiu aos que nele aportaram serem os obreiros de uma outra
realidade, em tudo semelhante à da sua terra natal, mas também,
invulgarmente, em tudo superior. Mostrando-se harmoniosa e
acolhedora, a natureza brasileira abrigou o trabalho dos novos
criadores.
Estas características irão depois espraiar-se por outros textos,
mormente literários. Não será assim pura coincidência que a
fertilidade e a beleza da terra de Vera Cruz se tornem o leitmotiv
da literatura brasileira, como já vários estudos o testemunharam.
Demonstrar como a natureza brasileira se assumiu como um
atributo particular e singular da imagem do Brasil nas fontes
portuguesas do século XVI foi o desafio proposto a Maria
Lucília Barbosa Seixas no ano lectivo de 1998-1999, quando
frequentou o mestrado da História da Época dos
Descobrimentos, realizado na Faculdade de Letras da Universidade Católica Portuguesa, em Viseu.
Partindo das ideias e perspectivas dos homens de
Quinhentos, a autora demonstrou como a ideia do paraíso
determinou substancialmente a primeira visão dos autores que
assim consideravam ter aflorado a um jardim das delícias em
terras brasileiras, enquanto o contacto mais prolongado lhes
inspirará admiração e encantamento pela novidade, a estranheza,
a abundância, a excelência, a beleza e o exotismo desta prodigiosa natureza.
Em A Natureza Brasileira nas Fontes Portuguesas do Século XVI.
Para uma Tipologia das Grandezas do Brasil, procedeu assim a uma
análise atenta e profunda de cada um dos textos redigidos entre
1500 e 1618, data da obra de Ambrósio Fernandes Brandão
intitulada Diálogos das Grandezas do Brasil, que constituiu o limite
cronológico do presente trabalho, uma vez que esta obra - cuja
titulação esteve na origem do título do presente estudo -,
testemunha a consagração de uma ideia e imagem forjada nas
obras precedentes: a de uma natureza promissora que não cessa
de maravilhar. E não se esgotando em surpresas, a terra
brasileira vai dar lugar a novos eldorados, acolhendo no seu seio
experiências inovadoras: o açúcar, o tabaco, o algodão ou outros
géneros agrícolas.
No cuidado e afã que deu à sua investigação, a Mestre em
História, Maria Lucília Seixas, soube bem tecer o fio da meada
que se propôs desfiar.
Para a Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, que em boa
hora decidiu apoiar a publicação desta obra, a palavra é de
agradecimento e felicitação. A divulgação de trabalhos científicos constitui um dos pilares de desenvolvimento cultural.
Pela nossa parte, mais não podemos que dirigir um convite
amigo à leitura da obra. Estamos em crer que encontrará leitores
não só entre estudiosos da História da Expansão Portuguesa ou
do Brasil, mas também entre interessados pela história e cultura
lusófonas.
Marília dos Santos Lopes
Nota prévia
A Natureza Brasileira nas Fontes Portuguesas do Século XVI constitui
o tema da minha tese de Mestrado realizada no período de
1999/2001, sob a orientação da Professora Doutora Marília dos
Santos Lopes, na Faculdade de Letras da Universidade Católica
Portuguesa em Viseu.
A elaboração desta investigação revelou-se um desafio
deveras aliciante e enriquecedor, até pelo fascínio que desde
logo em mim exerceram os extraordinários relatos que os nossos
autores redigiram acerca das surpreendentes novidades com que
se depararam neste “Novo Mundo”.
Este projecto contou com o apoio da Câmara Municipal de
Torre de Moncorvo. Uma palavra de sincero agradecimento ao
seu Presidente, Engenheiro Aires Ferreira, pelo interesso
manifestado quanto à publicação deste trabalho.
À Professora Doutora Marília dos Santos Lopes gostaria de
exprimir o meu reconhecimento pelo incentivo dado à
elaboração e publicação do trabalho. Revelou-se sempre uma
interlocutora instigante, indicando bibliografia, fazendo
sugestões, solidarizando-se com o meu projecto, ao acrescentar
constantemente algo de novo com as suas preciosas
observações. É igualmente, para mim, um privilégio que,
amavelmente, tenha acedido escrever a apresentação deste livro.
Aos meus pais Maria do Rosário e José Seixas, dedico este
livro com a profunda tristeza de saber que o meu pai não poderá
já ler estas páginas.
Torre de Moncorvo, Dezembro de 2002
Introdução
A carta de Pêro Vaz de Caminha, que dava conta ao rei D.
Manuel do achamento de uma nova terra, à qual deram o nome
de Vera Cruz, transmite-nos a primeira imagem de um território
prodigiosamente belo e com inúmeras promessas de riquezas. A
partir daí, surgem ao longo de todo o século XVI numerosos
autores a redigirem esplendorosas e minuciosas descrições
acerca das extraordinárias novidades com que se depararam nas
terras portuguesas do Novo Mundo.
Os navegadores, missionários, colonos e viajantes lusos
foram, com certeza, os mais importantes retratistas de um Brasil
que se lhes manifestou desde o início como uma terra
verdadeiramente paradisíaca, pois as realidades do Novo Mundo
revelavam-se, a cada momento, completamente preenchidas de
todos os símbolos paradisíacos, símbolos esses que eles tão bem
conheciam dos inúmeros relatos medievais que descreviam o
Jardim das Delícias, constituindo por isso, aos seus olhos, um
verdadeiro acervo de prodígios e maravilhas.
Este maravilhoso território estava igualmente repleto de
deslumbrantes riquezas naturais, com uma variedade e
abundância inauditas que o mostraram desde o início
completamente auto-suficiente. Para além do mais, a sua
assombrosa fertilidade revelou-o, com o decorrer dos anos,
como extraordinariamente propício à exploração e
desenvolvimento de cada vez mais «novas fortunas».
É assim que o entusiástico desejo de dar a conhecer as
espantosas e exóticas grandezas da Terra de Vera Cruz levou os
cronistas portugueses de Quinhentos a redigirem fascinantes e
14
A NATUREZA BRASILEIRA
pormenorizados textos acerca desta nova e estupenda natureza
com que se depararam. É, pois, na análise destes textos que
entronca o principal fundamento deste estudo.
Este trabalho visa, fundamentalmente, traçar uma tipologia
das principais grandezas entrevistas no Brasil pelos autores de
Quinhentos. Grandezas incomparavelmente maiores, e
completamente diversas das imaginadas e observadas no
Oriente. Enquanto na Índia se procuraram e encontraram as
sumptuosidades das sedas e dos veludos, no Brasil os
portugueses depararam-se com uma paisagem verdadeiramente
edénica, repleta de símbolos conhecidos, porque característicos
da Idade de Ouro, a par das «novas fortunas», todas elas obtidas
do aproveitamento e exploração de uma natureza
extraordinariamente formosa e ubérrima. Este não era, portanto,
o Novo, nem o Outro, mas sim o Mundo Previsto, desde
sempre ambicionado e incessantemente procurado.
Na nossa análise socorremo-nos de uma metodologia de
comparação entre alguns documentos escritos no século XVI
por cronistas portugueses de diversas condições e formações.
Elaborámos para esse fim grelhas comparativas das temáticas
mais representativas, relativas ao tratamento dado à natureza
brasílica nas diferentes obras que constituíram o objecto da
nossa análise.
Na Carta ao rei D. Manuel, de Pêro Vaz de Caminha, o autor
dá desde logo a imagem de uma terra paradisíaca e, por esse
motivo, também extraordinariamente rica.
Nas Cartas Jesuíticas I – Cartas do Brasil, do padre Manuel da
Nóbrega, o missionário, apesar de dedicar a maior parte da sua
atenção à missionação dos índios brasileiros, alude também à
extraordinária riqueza e fertilidade do território.
Nas Cartas Jesuíticas III, CARTAS, Informações, Fragmentos
Históricos e Sermões do padre José de Anchieta, o inaciano
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
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transmite a imagem de um território extremamente formoso e
aprazível, ao dizer que: «Todo o Brasil é um jardim».1
Na História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães
de Gândavo, o autor insiste na fertilidade e riqueza do território
brasílico. Esta obra constitui, na opinião de Luís de Matos, um
verdadeiro: «hino de louvor ao Brasil».2
Tratados da Terra e Gente do Brasil, do padre Fernão Cardim. A
sua prolongada e profunda experiência da realidade brasileira
levou este missionário a redigir uma vasta obra geográfica e
etnológica, onde se mostra deslumbrado e entusiasmado com a
rica e prodigiosa natureza da imensa colónia portuguesa da
América.
Notícia do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa. No Brasil, ao
mesmo tempo que desenvolvia a sua actividade de senhor de
engenho, ia, como observador atento que era, anotando com
minúcia o que se passava à sua volta nesse novo país, de que
resultou a Notícia do Brasil.
Coisas Notáveis do Brasil, do padre Francisco Soares. O texto
deste inaciano está dividido em duas partes. Uma histórica, onde
faz um esboço da história administrativa e religiosa do Brasil,
bem como uma descrição dos mais importantes centros urbanos
brasileiros, aludindo também às guerras entre colonos e índios.
A outra é uma riquíssima descrição da natureza brasílica, sobre
flora e fauna exóticas e sobre geografia física do Brasil. O relato
do padre Francisco Soares é o resultado de alguns anos de
residência no Novo Mundo e de uma constante itinerância por
todo o território brasileiro.
Alargámos a nossa análise a uma outra obra, esta dos inícios
do século XVII, Diálogos das Grandezas do Brasil, escrita ao que se
sabe por Ambrósio Fernandes Brandão. A escolha desta obra
1 Cartas Jesuíticas III, Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do padre
Joseph de Anchieta, S. J. (1554 – 1594), Civilização Brasileira S. A., Rio de
Janeiro, 1933, pp. 438-439.
2 Cf. Luís de Matos, Pêro de Magalhães de Gândavo e o Tratado da Província
do Brasil, in: Boletim Internacional de Bibliografia Luso Brasileira, Vol. III,
Lisboa, 1962, p. 633.
16
A NATUREZA BRASILEIRA
um pouco mais tardia teve como objectivo fundamental a
finalização da nossa reflexão e análise relativa aos inícios da
caracterização da natureza brasílica, pois reflecte todo o
primeiro período de descrição e caracterização das maravilhas,
riquezas e grandezas da colónia portuguesa do Novo Mundo. E
igualmente, porque esta obra evidencia claramente o manifesto
espírito ufanista transmitido por todos os nossos autores, que se
foi desenvolvendo e enraizando ao longo dos tempos, nas terras
brasílicas. De tal modo que as características que os nossos
cronistas modelaram sobre a natureza brasileira virão a perdurar
nas representações e concepções posteriores do Brasil,
nomeadamente na literatura brasileira. Maria Aparecida Ribeiro
fornece-nos alguns exemplos de como o espírito ufanista dos
primeiros cronistas do Brasil se manteve nos escritores
brasileiros das diferentes épocas até aos nossos dias, aludindo
aos escritores Frei António do Rosário, Manuel Botelho de
Oliveira, Frei Manuel de Santa Maria de Itaparica, Nuno
Marques Pereira, Gonçalves Dias e Chico Buarque. Os três
primeiros fazem a apologia da abundância dos excelentes frutos
brasileiros, enquanto os três últimos exaltam nos seus textos o
maravilhoso canto das aves brasílicas.3
O recurso aos textos coevos tem como finalidade a
contextualização da mensagem. Relato a relato, intentámos
descodificar o contributo destes tradutores das maravilhosas
realidades da natureza brasileira. Assim, esta pesquisa baseia-se
fundamentalmente nas fontes já anteriormente referenciadas.
Importa frisar que com o vivo intuito de realizar um trabalho
específico, com vista a traçar uma tipologia das primeiras
grandezas do Brasil entrevistas pelos primeiros cronistas
portugueses, não descurámos a consulta e análise de uma imensa
bibliografia complementar. É este o caso de Sérgio Buarque de
Holanda, na sua obra Visão do Paraíso, e também o de Jean
Cf. Maria Aparecida Ribeiro, Tupis, surucucus, Maracujás, Contribuições
Brasileiras para o Barroco, in: Revista de Estudos Barrocos, Claro/Escuro, n.º
6-7, Quimera, Lisboa, Maio/Novembro 1991, pp. 110-111.
3
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
17
Delumeau em Uma História do Paraíso – O Jardim das Delícias,
obras que analisámos detidamente. Apesar de estes autores
terem tratado unicamente a visão paradisíaca, não deixaram de
nos fornecer um contributo importante para a nossa análise.
Para a elaboração da segunda parte do nosso trabalho,
deparámo-nos com algumas dificuldades, dado o número exíguo
de obras que tratem este tema de forma específica e
pormenorizada. Socorremo-nos, no entanto, de algumas obras,
que igualmente nos forneceram um contributo precioso. É o
caso de Marília dos Santos Lopes, em Coisas maravilhosas e até
agora nunca vistas – Para uma iconografia dos Descobrimentos, Mariana
Bethencourt, A Fauna Brasileira, e Alfredo Margarido em As
Plantas inesperadas da América. No entanto, privilegiámos
fundamentalmente a análise exaustiva das fontes do nosso
estudo. Finalmente, e no que diz respeito ao último tema do
nosso trabalho, consultámos a bibliografia de renomados
historiadores como João Lúcio de Azevedo, Frédéric Mauro e
Vitorino Magalhães Godinho.
O ponto de vista que fundamenta a ideia de A Natureza
Brasileira nas Fontes Portuguesas do Século XVI – Para uma tipologia
das grandezas do Brasil, é o de traçar em três unidades temáticas
um quadro das primeiras imagens do Brasil, retratadas pelos
nautas, missionários, colonos e viajantes lusos, tentando, assim,
caracterizar aquelas que foram vistas pelos autores portugueses
de Quinhentos como as maiores grandezas da Terra Brasileira.
Para esse fim, dividimos o presente trabalho em três unidades
temáticas.
Na primeira unidade, Do Paraíso Terreal ao Paraíso Quinhentista,
acompanhamos a evolução da crença do homem ocidental
acerca da existência e localização de um Paraíso Terrestre.
Visamos essencialmente demonstrar que os nautas, missionários,
colonos e viajantes lusos, fizeram no Brasil o reconhecimento de
uma paisagem já conhecida através das inúmeras descrições
medievais, que tratavam dos cenários do sonhado Jardim das
Delícias. Ao reencontrarem notas edénicas, julgaram mesmo ver
concretizado no Brasil o mito da Idade de Ouro: serão estas as
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A NATUREZA BRASILEIRA
primeiras riquezas entrevistas nesta nova Terra. Foi esta a
primeira imagem do Brasil.
A segunda unidade, intitulada Das Grandezas Naturais do Brasil,
tem por fim anotar e descrever as principais características de
uma natureza extraordinariamente dadivosa, constatando a
existência no Brasil de uma natureza abundante, generosa e
belíssima, recriando-se assim a imagem de uma terra
verdadeiramente paradisíaca, que proporcionava sem trabalho a
subsistência e alegria daqueles que a habitavam. A esta unidade
dedicámos um espaço mais vasto de análise, precisamente
porque os cronistas em estudo dedicaram também a este
assunto mais atenção. Teremos novamente a oportunidade de
constatar o facto de os portugueses transmitirem nos primeiros
relatos sobre a terra brasileira a imagem de um território com
imensas potencialidades, que embora baseada nas visões
verdadeiramente paradisíacas, ultrapassam mesmo as
expectativas dos seus visitantes. É assim que ao longo das suas
obras procuram fornecer-nos provas inequívocas de que estão
realmente convencidos de que se não aportaram no Jardim do
Éden, estarão, pelo menos, muito próximos dele. Estas
grandezas são as que, tal como no Jardim das Delícias,
proporcionam a subsistência dos humanos, sem que para isso
seja necessário trabalhar. Para além disso, os seus ares são de tal
modo salutares, que permitem aos seus habitantes uma
longevidade comparável à dos patriarcas bíblicos. Numa leitura
cuidada dos textos, detectámos alguns conceitos explicativos e
representativos da natureza agora descrita. Em cada um dos
subcapítulos de Grandezas Naturais intentamos caracterizá-los e
apresentá-los: a novidade e estranheza, a abundância e
variedade, a excelência, o mantimento e a beleza e exotismo,
sugerindo um perfeito crescendo tal como se pode encontrar na
escrita descritiva dos nossos autores.
A terceira unidade, à qual demos o título Das Grandezas e
Riquezas do Brasil, procura precisamente identificar as «novas
fortunas», analisando o papel que os produtos que se revelaram
economicamente mais rentáveis desempenharam na economia
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
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do reino, tanto na época em análise, como em épocas
posteriores. Embora sendo também grandezas naturais, estes
produtos proporcionaram maiores rendimentos económicos do
que as riquezas analisadas na segunda unidade. Estas grandezas e
riquezas eram não só aquelas que os europeus encontraram
como naturais do Brasil, mas igualmente as que para lá
transplantadas produziam mais do que nos seus locais de
origem.
Assim, tal como entusiasmados coleccionadores, também os
cronistas portugueses de Quinhentos reuniram e compilaram
valiosos dados sobre as novas realidades, que constituíram
verdadeiramente as reais riquezas e grandezas do Brasil. Estas
riquezas revelaram-se, como a seguir constataremos, realmente
incomensuráveis.
20
A NATUREZA BRASILEIRA
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
21
I. Do Paraíso Terreal ao Paraíso Quinhentista
O novo conhecimento do mundo que resultou das grandes
descobertas fez com que se abandonassem as localizações mais
fantasistas da Idade Média, que colocavam o Paraíso nas
proximidades da lua ou para além do Oceano Circular.
Mas a hipótese equatorial, já proposta na Idade Média,
nomeadamente por São Tomás de Aquino, ganhou novamente
consistência nesta época, tendo surgido entre alguns ilustres do
século XVI a tese de que o Paraíso Terreal se localizava no Novo
Mundo, e mais precisamente no Brasil, pelas suas imensas
grandezas e maravilhas verdadeiramente prodigiosas. Já numa
carta apócrifa, supostamente escrita pelo Preste João e que
circulou na Europa desde 1165, reluziam miragens de riquezas
sem fim e uma fauna e flora extraordinariamente diversificadas.4
Ora, os portugueses que tinham procurado o Império do Preste
João já em África, ou seja, abaixo da linha equatorial, como o
demonstra a sua localização no mapa de Cantino (1502), vão
julgar, ao depararem com o acervo de prodígios e maravilhas
que constituíam as realidades do Novo Mundo, que tinham
aportado senão no Paraíso, pelo menos muito próximo dele.
Os navegantes, evangelizadores, colonos e aventureiros
portugueses julgaram ver concretizado no Brasil o mito da Idade
de Ouro. Era o regresso à primeira Idade da Humanidade, a um
Cf. Vitorino Magalhães Godinho, in: Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de
Navegar – Séculos XIII-XVII, Difel, Difusão Editorial, Lda, Lisboa, 1990, p.
155.
4
22
A NATUREZA BRASILEIRA
mundo onde não existia propriedade nem autoridade, e onde
também se usufruía da abundância. A nudez dos Índios fez com
que os navegadores, missionários e colonos portugueses
remontassem à Idade do Ouro, ao pretenderem transportar para
o futuro a idade edénica. Este era um Mundo do fantástico,
onde nem sequer faltavam a Fénix, os Unicórnios e as
Amazonas. E as celebradas montanhas resplandecentes, tão
amplamente descritas pelos nossos cronistas como realidade do
maravilhoso território brasílico que os nautas tinham
recentemente descoberto no ocidente do globo terrestre,
constituíam igualmente testemunho seguro de que, se não fosse
este o verdadeiro Paraíso Terreal, a sua localização não estaria
muito longe. Embora situado a ocidente, este local mantinha
intactos todos os indícios das descrições medievais do Paraíso.
Uma das criações do Ocidente medieval no âmbito do
maravilhoso foi precisamente a do país de Cocanha, que surgiu
no século XIII. Era um mundo ao contrário. É a ideia do
Paraíso Terrestre e da Idade de Ouro, era como que um
regresso às origens.5
Eram agora encontradas, nos autores portugueses de
Quinhentos, descrições como a famosa Viagem de São Brandão
em que o autor nos fala das paisagens viridentes, com bosques
frondosos, árvores belíssimas, carregadas de saborosos e
odoríferos frutos, prados férteis, eternamente verdes, cortados
de copiosas águas, possuindo uma extrema abundância e
culminando finalmente com uma belíssima montanha
resplandecente e repleta de pedras preciosas. Veja-se como o
«Jardim das Delícias é descrito na famosa Viagem de São Brandão:
«O donzel vai à frente, em cuja companhia entram no Paraíso.
Vêem aquela terra cheia de formosos bosques e rios. Os
prados são verdadeiros jardins, floridos com formosura perene –
como em moradas santas, as flores exalam doces odores – com
árvores esplêndidas, preciosas flores e frutas de deliciosos
perfumes. Nem cardos, nem silvas, nem ortigas podem
5
Cf. Jacques Le Goff, O Imaginário Medieval, Editorial Estampa, 1994, p. 52.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
23
prosperar. Entre árvores e plantas não há nada que não difunda
doçura.
Árvores e flores crescem e dão os seus frutos todos os dias
sem que as estações se atrasem; ali, cada dia, reina um verão
suave, cada dia, florescem as árvores e se carregam de fruta, cada
dia, os bosques estão cheios de veados, e todos os rios de peixe
saboroso. Correm rios de leite, e tudo derrama abundância. [...].
Como se fosse um imenso tesouro, levanta-se uma montanha,
toda ela esbanjando ouro e pedras preciosas. Ali o sol brilha
com esplendor eterno [...].»6
Estavam reunidas nas terras brasílicas todas as virtudes que
completavam o panorama edénico. Condensavam-se no
território brasileiro todas as características próprias das visões
paradisíacas. O Brasil mantinha todas as misteriosas e inegáveis
possibilidades, como se estivesse verdadeiramente restituído à
glória dos dias da criação.
1. “Deus Plantou um Jardim no Éden ao Oriente”
O Paraíso foi durante muito tempo o Paraíso Terrestre.
Durante séculos, judeus e depois os cristãos, com poucas
excepções, não puseram em dúvida o carácter histórico da
narrativa do Génesis (2, 8-17) relativo ao jardim maravilhoso
que Deus tinha feito surgir no Éden: «Depois, o Senhor Deus
plantou um jardim no Éden, ao Oriente, e nele colocou o
homem que havia formado. O Senhor Deus fez desabrochar da
terra toda a espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos
frutos para comer; a árvore da vida, ao meio do jardim; e a
árvore da ciência do bem e do mal.
Um rio nascia no Éden e ia regar o jardim, dividindo-se, a
seguir, em quatro braços. O nome do primeiro é Pison, rio que
Viagens de São Brandão, in: Do Imaginário do Atlântico ao Atlântico Imaginado,
Volume I da «Colecção O Atlântico: A Memória de um Oceano», Banco
Português do Atlântico, Venda Nova – Amadora, 1993, p. 76.
6
24
A NATUREZA BRASILEIRA
rodeia toda a região de Évilat, onde se encontra oiro, oiro puro,
sem misturas e também se encontra lá bdélio e ónix. O nome do
segundo rio é Gheon, o qual rodeia toda a terra de Cus. O nome
do terceiro é Tigre, e corre ao oriente da Assíria. O quarto rio é
o Eufrates.
O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden
para o cultivar e, também, para o guardar.»7
Desde a época da antiga aliança, a evocação paradisíaca
proposta pelo Génesis foi confirmada e enriquecida por muitos
e diversos textos. A imaginação poética elaborará sem limites
sobre estes temas. Idade de Ouro inicial, natureza clemente,
água generosa, doce luz, primavera perpétua, suaves perfumes,
música celestial serão habitualmente associados à noção de
recinto paradisíaco, será frequentemente situado numa alta
montanha ou num algures longínquo. Estabeleceram-se até
paralelos e ligações entre o jardim sagrado da Bíblia e os das
outras religiões e civilizações do Oriente de outros tempos.
Até muito tarde, numerosas civilizações acreditaram num
Paraíso inicial onde haviam reinado a perfeição, a liberdade, a
paz, a felicidade, a abundância, a ausência de coacção, de tensões
e de conflitos. Ali, os homens entendiam-se e viviam em
harmonia com os animais, e comunicavam sem esforço com o
mundo divino. Daí resultou uma profunda nostalgia na
consciência colectiva – a do Paraíso perdido mas não esquecido
– e o poderoso desejo de o encontrar.
Nas mentalidades de outrora, um elo quase estrutural unia
felicidade e jardim: é visível, neste domínio, a influência das
tradições greco-romanas com as quais se fundiram, pelo menos
parcialmente, a partir da era cristã, as evocações bíblicas do
pomar do Éden.
Bíblia Sagrada, Nova Edição Papal, Traduzida das Línguas Originais com
uso Crítico de Todas as Fontes Antigas pelos Missionários Capuchinhos,
Lisboa, C. D. Stampley Enterprises, Inc. Charlotte, North Carolina, U. S. A.,
1974.
7
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
25
Os primeiros escritores cristãos puseram de lado os mitos da
Idade do Ouro e das Ilhas Afortunadas. No entanto, a partir do
século II, esses mesmos mitos foram progressivamente
cristianizados, defendendo até que o que os poetas da cultura
pagã escreveram sobre os Campos Elísios advém realmente do
Paraíso Terrestre do Génesis.8
No século VI, um numeroso grupo de poetas latinos e
cristãos evoca o Paraíso Terrestre associando com êxito os
dados do Génesis e a tradição greco-romana.
Todos os escritos medievais reactualizaram de geração em
geração o anseio do paraíso perdido, misturando de maneira
indissociável Bíblia e cultura pagã.
Por muito tempo, manteve-se a crença de que o Jardim do
Éden não tinha desaparecido da terra, mas se tornara, contudo,
inacessível. A esta crença acrescia uma outra que incitou às
grandes descobertas: se o Paraíso Terrestre se achava a partir daí
inacessível, perduravam, mais ou menos próximas dele ou
algures ao longe, regiões ditosas e maravilhosas que podiam ser
alcançadas por homens audaciosos e que lhes trariam riquezas
fabulosas.9
No século XII, numerosos autores partilham e exprimem a
convicção de que o Paraíso Terrestre subsiste no Oriente. Foi
poupado pelo Dilúvio embelezado pela lonjura e preservado
pelo isolamento. Contudo, passou a estar fora do alcance por
causa da sua altitude e devido às terras e mares que se interpõem
entre ele e nós.
Não é de espantar que os viajantes medievais tenham
localizado frequentemente o Paraíso Terreal numa ou em várias
ilhas. Esta tradição foi herdada da Antiguidade Clássica, com
base na crença de que para lá do mar desconhecido, existiam
ilhas com uma fecundidade maravilhosa e de clima paradisíaco.
Colocavam-nas geralmente no Oriente onde situavam o Paraíso
Cf. Jean Delumeau, Uma História do Paraíso – O Jardim das Delícias, TerramarEditores, Lisboa, 1994, p. 18.
9 Cf. Vitorino Magalhães Godinho, op. cit., p. 78.
8
26
A NATUREZA BRASILEIRA
Terreal.10 Assim, na Vida de Merlim, a ilha Taprobana é descrita
do seguinte modo: «A ilha de Taprobana verdeja amavelmente
com fecundo solo, pois duas colheitas produz num ano, num
ano tem dois verões e duas primaveras, duas vezes uvas e outros
frutos e é agradabilíssima pelas suas brilhantes gemas.»11
As cartas e planisférios dos séculos XIV e XV não deram
acolhimento apenas aos mitos geográficos e zoológicos
transmitidos pelos textos de Mela, de Solino e outros escritores
antigos, ou vindos oralmente por tradições com várias origens;
outras lendas, nascidas ao longo da Idade Média, concretizaramse também nestas representações e legendas. Este é o caso, por
exemplo, da forma do Paraíso Terrestre. Nota-se também a
mesma origem relativamente a certas ilhas lendárias que os
cartógrafos delineavam pelo Atlântico de modo incerto.
Entre os lugares encantados do imaginário medieval, as Ilhas
Afortunadas, a de São Brandão e a do Brasil, foram as que maior
atenção e interesse despertaram nos marinheiros dos dois
séculos que antecederam o Renascimento, até mesmo depois de
ter começado a época dos Descobrimentos Portugueses no
Atlântico.12
Cf. José Mattoso, Antecedentes Medievais da Expansão Portuguesa, in: História da
Expansão Portuguesa, Volume I, Temas e Debates, Espanha, 1998, p. 23.
11 Vida de Merlim, in: Do Imaginário do Atlântico ao Atlântico Imaginado, As Fontes
de uma Memória, Volume I da Colecção «O Atlântico: A Memória de um Oceano»,
José Adriano F. de Carvalho e Luís Adão da Fonseca, Banco Português do
Atlântico, Porto, 1993, p. 56.
12 Cf. Luís de Albuquerque, Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses,
Publicações Europa-América-Biblioteca Universitária, s.d., p. 152.
10
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
27
2. Em Busca do Paraíso
Segundo antigas descrições, as Ilhas Afortunadas ligadas a
uma tradição poética greco-romana, baseada nos textos de
Homero, Hesíodo e Plutarco, que situava, além do gigantesco
Atlas, algumas ilhas de jardins maravilhosos e clima sempre
ameno, com brisas odoríferas e onde os homens não precisavam
de trabalhar, estavam perdidas entre as águas do Oceano, quase
inacessíveis aos simples mortais. Ora, isso mesmo seria dizer do
Éden que, fechado desde o pecado original, e perenemente
vigiadas as suas portas, só poderia ser posto num local muito
secreto e apartado de todo e qualquer contacto com os homens.
Na época cristã, Santo Isidoro de Sevilha13 deu um novo
ímpeto a esta crença, dando-lhe um lugar na sua geografia que
influenciou de maneira duradoura a cultura do Ocidente.
A tal respeito são unânimes os juízos mais abalizados. Todos
afiançam que, situado no Oriente, talvez na Índia – é essa a
versão mais usual sobre o seu sítio exacto – acha-se afastado do
resto do mundo por um imenso espaço de terra e mar. Dessa
opinião é o próprio Santo Agostinho e São Beda. Sérgio
Buarque de Holanda dá ainda o exemplo de Edoardo Coli que
cita e exibe alguns mapas no seu estudo sobre o Paraíso
Terrestre de Dante, em que este assume claramente uma forma
insular: ilha solitária no centro de um enorme oceano.14
Territórios isolados, as ilhas mantinham-se longe e, como
toda a memória que se fecha, a ideia corrente era de que
estariam perdidas, pelo que para reencontrar o início, havia que
as descobrir, ou re-descobrir.
Há, no entanto, outros que, dado o mar não constituir
barreira impermeável para os humanos, exageram a insularidade
13 Santo Isidoro de Sevilha, foi Bispo de Sevilha (570-636). Trabalhou na
conversão dos Visigodos. Os elementos geográficos encontram-se nas suas
Etimologias ou Origens, em 20 livros.
14 Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, Editora Brasiliense, São
Paulo, 1994, p. 160. No presente trabalho utiliza-se esta edição, que nas notas
subsequentes é identificada apenas com a menção Visão do Paraíso.
28
A NATUREZA BRASILEIRA
do Paraíso. No itinerário atribuído a John de Mandeville,
aparece-nos o Paraíso Terreal, situado na mais alta montanha da
Terra, tão alta que tocava a Lua; confessando que não o visitou,
por não ser homem bastante digno para merecer tal honra,
adianta que descreve o que lá foi observado por outros homens
com virtudes bastantes para gozarem essa felicidade que lhe foi
negada. Assim, afirma que: «Do Paraíso por certo não
conseguiria falar, pois não estive lá, do que não estou contente
por não ser digno. Mas o que ouvi dizer aos mais sábios daquela
terra, eu o direi. O Paraíso terreal dizem que é a mais alta terra
do mundo e é tão alto que quase toca no círculo da lua, isto é, o
círculo por onde faz a lua o seu curso. Não pôde chegar lá o
dilúvio e, assim, não cobriu a terra do Paraíso terreal.»15
A crença de que se encontraria num sítio íngreme era
favorecida por razões poderosas, a começar pela própria
eminência espiritual da sua condição, que não encontraria
melhor meio de se materializar. Outro motivo seriam os seus
ares puros e amenos, como naturalmente o são os que se
respiram em lugar elevado. Finalmente havia ainda a ideia de
que o horto dos inocentes, não podia ficar num sítio baixo,
exposto às águas do dilúvio universal, que se destinara a castigar
a malícia dos homens.
Por estes motivos, teve uma grande aceitação a ideia de que o
impedimento mais compatível com o carácter do Paraíso se
apresentaria melhor sob o aspecto de uma elevadíssima e
invencível montanha. Esta seria de tal modo alta que muitos a
elevavam até ao círculo por onde a Lua faz o seu trajecto. São
Tomás de Aquino pensava, no entanto, esta localização só em
sentido figurado, enquanto outros a recusaram por a
considerarem cientificamente inviável.16
Livro das Maravilhas do Mundo de João de Mandeville,- A Memória da Viagem
Imaginária – in: Do Imaginário do Atlântico ao Atlântico Imaginado, Banco
Português do Atlântico, Porto, 1993, op. cit., p. 93.
16 Cf. Visão do Paraíso, p. 160.
15
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
29
É possível que, com a divulgação de que gozou, Mandeville
também tivesse chegado a Portugal. Duarte Leite defende que o
Infante D. Henrique nunca o teria lido, devido talvez ao facto
de não aparecer citado nem pelo nome do autor, nem pelo título
mais vulgarizado, em qualquer das livrarias portuguesas do
século XV de que se possuem os inventários. No entanto,
aparece na livraria de D. Duarte um livro não identificado, com
o título Conquista d’oultre mer, nome que muito provavelmente
terá sido tirado das palavras com que termina a versão francesa.
Poderia dar-se o caso de aquele volume, embora com o título
modificado na tradução, conter o texto de Mandeville. É muito
possível que uma parte do Livro das Maravilhas do Mundo de
Mandeville tivesse circulado em Portugal de forma indirecta ou
oral. No entanto, a influência que este texto pode ter trazido aos
descobrimentos portugueses, dado o seu género e os países de
que trata, foi com certeza muito pouca, ou mesmo nenhuma.17
Surge também nesta época a ideia alvitrada por São Tomás
de Aquino de que o Paraíso sonhado poderia encontrar-se no
interior da própria zona tórrida, e exactamente debaixo da
equinocial.
O quase nada que daqueles lugares se sabia dava asas,
naturalmente, às mais variadas e surpreendentes conjecturas.
Não foi por isso necessário esperar pelas grandes navegações
que organizará o génio do glorioso Infante D. Henrique, para
que certas especulações autorizadas, na falta de uma experiência
ainda difícil ou inexequível, concluíssem, ao arrepio da corrente,
que tais lugares, apesar de tão infamados, eram perfeitamente
compatíveis com a vida humana. Não apenas compatíveis: eram
salutares, também, e ameníssimos, mais do que as partes do
globo já conhecidas. Podia-se aliás, para essa, como para
quaisquer outras opiniões, por surpreendentes que parecessem,
invocar o apoio ilustre e sempre bem-vindo de autores da
Antiguidade.
17
Cf. Luís de Albuquerque, op. cit., p. 138.
30
A NATUREZA BRASILEIRA
Nas livrarias medievais, encontramos frequentemente
representados os autores clássicos com obras de geografia ou
contendo capítulos que descrevem o Mundo ou algumas das
suas regiões. Plínio e Estrabão entram nesta lista; ao seu lado
Paulo Orósio,18 Macróbio e os escritores dos primeiros séculos
da Idade Média, mas, acima de todos, pela importância da
influência exercida, Caio Júlio Solino e Pompónio Mela.19
Invocava-se Eratóstenes, principalmente. E ainda Políbio
que, cento e cinquenta anos antes da nossa era, participara de
uma viagem de descobrimento entre as águas que bordejam o
noroeste do continente africano, em que foi ultrapassado o
monte Atlas e alcançada a região das cerradas florestas e dos
crocodilos.20
Nas suas Etimologias, Santo Isidoro de Sevilha, descreve o
Paraíso como um Jardim de Delícias, abundante em árvores e
frutos de todas as espécies, com uma eterna primavera, pois ali
não se conhece nem frio nem calor, mas uma constante
temperança do ar.
Assim, a mesma paisagem amena e viridente, a mesma eterna
primavera que já tinham empolgado os primeiros autores
medievais, será o que os descobridores renascentistas irão
buscar nas terras incógnitas do outro lado do Oceano.
Paulo Orósio nasceu em Braga na Lusitânia, as obras deste escritor eram
muito estimadas entre os sábios da Idade Média.
19 Cf. Luís de Albuquerque, op. cit., p. 120.
20 Cf. Visão do Paraíso, p. 164.
18
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
31
3. O Paraíso no Brasil ou do Maravilhoso e Extraordinário Novo Mundo
A sedução do tema paradisíaco influenciou os portugueses e
os outros povos cristãos de toda a Europa, como vimos, durante
a Idade Média, e continuará a exercer a sua influência na era dos
grandes descobrimentos marítimos. Tal sedução explica muitas
das reacções a que deu lugar, entre os lusos, o contacto de terras
ignoradas do Ultramar. O encontro de paisagens idílicas e
populações simples lembrava-lhes o Paraíso Terreal.21
Nos últimos séculos da Idade Média havia entre os eruditos
algumas discordâncias no que diz respeito à localização do
Paraíso Terreal, mas nenhum punha em dúvida a sua
existência.22 Este mito sobre a localização do Paraíso
encontramo-lo na Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, de
Azurara.23 quando o capitão Gomes Pires apela aos seus
companheiros para que o sigam na viagem que pretende
prosseguir ao longo do litoral africano, lembrando «a vontade
do senhor Infante como é por grande de saber parte da terra dos
Negros, especialmente do rio do Nilo [...]»24, Álvaro de Freitas
responde que está disposto a segui-lo até ao «Paraíso Terreal».
Também Cadamosto situava geograficamente o Paraíso
Terrestre, quando afirmava que o Senegal era um dos braços do
sagrado rio Gion.25 Embora bastante mais tarde, também
Colombo localizou geograficamente o Jardim das Delícias,
21 Cf. Marília dos Santos Lopes, Coisas maravilhosas e até agora nunca vistas,
Livros Quetzal, Lisboa, 1998, p. 98.
22 Cf. Luís de Albuquerque, Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, 3ª
edição revista, Publicações Europa-América, s.d., p. 111.
23 Introdução, Actualização de Texto e Notas de Reis Brasil, Publicações
Europa- América, pp. 162-163.
24 Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, Gomes Eanes de Azurara,
Introdução, Actualização de Texto e notas de Reis Brasil, Publicações
Europa-América, op. cit., p. 162.
25 Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra, Academia Portuguesa de
História, Lisboa, 1948, p. 116.
32
A NATUREZA BRASILEIRA
situando-o agora na América, quando julga que o rio Orenoco
terá a sua origem no Paraíso Terreal.26
A ilha do Brasil aparece pela primeira vez na carta de Dulcert
(1339) e daí passou por cópia ao atlas Mediceu e às cartas de
Solleri, de Pinelli, de Bianco, entre outros, até ao planisfério de
Mercator (1559). Na carta Pizzigani (1367) e no mapa de Pareto
há duas ilhas com o nome de Brasil: uma no arquipélago dos
Açores e outra, com forma circular, situada a Oeste da Irlanda.
A localização desta ilha variou, e o nome aplicou-se à Maída ou à
Ilha Terceira açoreana. No mapa catalão de 1375, aparece como
um conjunto de pequenas ilhas cercadas por um corpo circular
de água, o que poderia ser uma maneira de sugerir formalmente
a sua identificação com a Ilha das Sete Cidades.
Esta Ilha do Brasil persistirá nas cartas para além da
descoberta do Brasil, e ainda em 1560 e 1566 Nicolai e Zaltieri a
assinalavam nos respectivos mapas.27
Marco Polo fala «do grão brasil», fornecendo mesmo algumas
informações sobre a maneira como a planta era cultivada em
Samatra: terá nascido aí a ideia de que no Atlântico se
encontraria uma terra que produzia a famosa planta? Ou será
que a palavra Brasil terá origem no vocabulário celta, com o
significado de ilha encantada, espécie de terra de deleites, que
alguns mareantes afirmavam ter vislumbrado de relance por
entre a neblina?28
Neste contexto, a análise da carta escrita por Pêro Vaz de
Caminha, ao rei D. Manuel, em Abril de 1500, dando conta do
achamento de uma nova terra, a Terra de Vera-Cruz, leva-nos a
concluir que desde o início os portugueses consideraram a
hipótese de estarem ou perante o Paraíso Terreal ou muito
próximo dele, pois descrevem-na como sendo uma ilha e com
Cf. Luís de Albuquerque, op. cit., p. 112. Carta de Cristóvão Colombo ao
rei sobre a terceira viagem, in: Los Cuatro Viajes del Almirante y su Testamento,
ed. Espasa-Calpe, Buenos Aires, 1946, p. 191.
27 Cf. José Adriano F. de Carvalho, Do Imaginário do Atlântico ao Atlântico
Imaginado, Banco Português do Atlântico, Porto, 1993, pp. 178-179.
28 Cf. Luís de Albuquerque, op. cit., p. 154.
26
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
33
uma vegetação luxuriante: «E assim seguimos nosso caminho
por este mar de longo até terça-feira de oitavas de Páscoa, que
foram 21 dias de Abril, que topámos alguns sinais de terra,
sendo da dita ilha obra de 660 ou 670 léguas [...].
Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra!
Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; [...] e de
terra chã, com grandes arvoredos [...]».29 A imagem de Caminha
de uma terra verde e de bons ares, assim frios e temperados, de
águas infindas e vegetação luxuriante pejada de graciosos frutos,
aponta claramente quatro dos símbolos típicos que sugerem a
identificação desta terra com o Jardim das Delícias.30 Eis o que
dissera Santo Isidoro de Sevilha sobre as Ilhas Afortunadas: «[...]
felizes e ditosas pela abundância dos seus frutos da maneira mais
espontânea, em que o topo das colinas se cobre de vides sem
necessidade de serem plantadas; em vez de ervas, crescem por
todo o lado cereais e legumes»,31 é retomado e reiterado pelos
cronistas portugueses do século XVI, no que diz respeito ao
Brasil, transladando para o Atlântico os miríficos cenários, já
prenunciados com as tradições pagãs das Ilhas Afortunadas ou
do Jardim das Hespérides. É assim que todos os cronistas, cujos
textos nos propusemos analisar, descrevem unanimemente a
paisagem de Vera Cruz repleta de muitos e grandes arvoredos,
sempre verdes, onde a terra é muito formosa e fertilíssima,
regada com abundantes águas repletas de muito, variado e
saboroso pescado, com um clima ameno, sempre primaveril,
bafejada de bons e salutíferos ares e abundante em aves
belíssimas, de finas e alegres cores.
A Carta de Pêro Vaz de Caminha – Adaptação à linguagem actual, in: Jaime
Cortesão, Obras Completas 7, INCM, Lisboa, 1994, p. 157.
30 Cf. Alberto Carvalho, Caminhos Literários da carta de Pêro Vaz de
Caminha, in: Mare liberum, n.º 11-12, 1996, pp. 7-28.
31 Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, in: Do Imaginário do Atlântico ao
Atlântico Imaginado, As Fontes de uma Memória, Volume I da Colecção « O
Atlântico: A Memória de um Oceano », José Adriano F. de Carvalho e Luís
Adão da Fonseca, Banco Português do Atlântico, Porto, 1993, p. 56.
29
34
A NATUREZA BRASILEIRA
Logo na viagem inaugural, Caminha dá desta nova terra
descoberta uma imagem paradisíaca, salientando que os seus
habitantes vivem do que esta natureza prodigiosa lhes dá: «Eles
não lavram nem criam nem há aqui boi nem vaca nem cabra
nem ovelha nem galinha nem outra nenhuma alimária que
costumada seja ao viver dos homens, nem comem senão desse
inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos que a terra
e as árvores de si lançam; e com isto andam tais e tão rijos e tão
nédios que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes
comemos.»32 Era a alusão de semelhança a uma terra sem mal,
verdadeiro Jardim de Delícias, onde os seus habitantes não
tinham necessidade de trabalhar para poderem viver muito
melhor e mais saudáveis do que aqueles, que com muito esforço
a cultivavam em todos os outros lugares conhecidos,
nomeadamente os europeus.
Foi com deslumbramento, curiosidade e espanto que os
nautas portugueses encararam a natureza do Novo Mundo.
Nada os tinha preparado para o exotismo, a beleza, a novidade,
a abundância e a variedade da flora e fauna dessas paisagens
ignotas. E as anteriores representações reflectem-se agora nesta
terra recentemente descoberta, pelo que as descrições vão sendo
cada vez mais belas, completas e gráficas, à medida que se evolui
no tempo. Era a consciência de estar num mundo como nunca
se vira tal, era o corte com o passado, abrindo perspectivas de
porvir de felicidade na terra.
É assim que na década de 1540 o fundador da Companhia de
Jesus no Brasil, padre Manuel da Nóbrega, se revela maravilhado
com a natureza brasílica, afirmando que é «muito salubre e de
bons ares [...]; tem muitos fructos e de diversas qualidades e mui
saborosos; no mar egualmente muito peixe e bom. Similham os
montes grandes jardins e pomares, que não me lembra ter visto
panno de raz tão belo. Nos ditos montes há animaes de muitas
Pêro Vaz de Caminha, Carta ao Rei D. Manuel, in: O Reconhecimento do Brasil,
com Direcção, Texto modernizado e comentário final de Luís de
Albuquerque, Publicações Alfa, S. A., Lisboa, 1989, p. 23.
32
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
35
diversas feituras, quaes nunca conheceu Plinio [...]».33 Esta era
claramente uma visão paradisíaca, semelhante àquela que uns
anos mais tarde, nos anos cinquenta, nos transmite, também
completamente rendido aos encantos da maravilhosa terra
brasileira, o padre José de Anchieta, descrevendo-a como um
jardim verdadeiramente edénico: «Todo o Brasil é um jardim em
frescura e bosque e não se vê em todo o ano árvore nem erva
seca. Os arvoredos se vão às nuvens de admirável altura e
grossura e variedade de espécies. Muitos dão bons frutos e o que
lhes dá graça é que há neles muitos passarinhos de grande
formosura e variedade e em seu canto não dão vantagem aos
rouxinóis, pintassilgos, colorinos, e canários de Portugal e fazem
uma harmonia quando um homem vai por este caminho, que é
para louvar ao Senhor [...]».34
Um pouco mais tarde, já na década de setenta, o humanista
Gândavo também não foi imune aos encantos das paisagens
brasílicas. A imagem que nos transmite da realidade física do
Brasil é também a do deslumbramento do olhar e do sentir pela
beleza e variedade da natureza. Assim, regressa aos temas
edénicos para descrever uma natureza pródiga, belíssima e
luxuriante: «Esta província é à vista mui deliciosa e fresca em
grão maneira: toda está vestida de bastante alto e espesso
arvoredo, regada com as águas de muitas e mui preciosas
ribeiras de que abundantemente participa toda a terra: onde
permanece sempre a verdura com aquela temperança da
Primavera que cá nos oferece Abril e Maio. E isto causa não
haver lá frios nem ruínas de Inverno que ofendam as suas
plantas, como cá ofendem as nossas. Enfim, que assim se houve
a natureza com todas as coisas desta província, e de tal maneira
se comediu na temperança dos ares que nunca nelas se sente frio
nem quentura excessiva».35
33 Padre Manuel da Nóbrega, Cartas Jesuíticas I, Cartas do Brasil, Editora Itatiaia
Limitada, Editora da Universidade de São Paulo, Belo Horizonte, 1988, p. 89.
34 Padre Joseph de Anchieta, op. cit., p. 438-439.
35 Pêro de Magalhães de Gândavo, História da Província de Santa Cruz, in: O
Reconhecimento do Brasil, Direcção de Luís de Albuquerque, com texto
36
A NATUREZA BRASILEIRA
Nota-se nos seus depoimentos a presença dos mesmos
elementos que, durante toda a Idade Média, se tinham
apresentado como distintivos da paisagem do Éden, ou que
pareciam denunciar a sua proximidade imediata: primavera
perene ou temperatura sempre igual, sem a variedade das
estações que se encontra no clima europeu, bosques frondosos
de saborosos frutos e prados férteis, eternamente verdes,
cortados de copiosas águas.
Desses elementos, muitos viriam a encontrá-los os
navegantes quando aportassem às terras mais chegadas à linha
equinocial, em particular o das folhas sempre verdes. E não lhes
pareceria de má filosofia concluir que, existindo nelas algumas
dessas virtudes, não haveriam de faltar todas as outras, para
completar o panorama edénico.
Presos como se encontravam em geral aqueles homens a
concepções nitidamente medievais, pode supor-se que, perante
as terras recém-descobertas, pensassem reconhecer, com os seus
olhos, o que na sua memória se pintara das paisagens de sonho
descritas tanto em livros como em mapas e que, pela constante
reiteração dos mesmos pormenores, já deveriam pertencer a
uma fantasia colectiva. Os navegadores convenceram-se que,
nas suas viagens reais, tinham realmente deparado com o
mundo dos mitos, que acreditaram fosse verdadeiro.36
Ao descortinarem o espectáculo de além-mar, não faltavam
certamente os que julgassem ver enfim realizadas visões tais
como as que oferece a narrativa de Gândavo, quando pinta a
Terra de Vera Cruz: «[...] é esta província sem contradição a
melhor para a vida do homem que cada uma das outras da
América, por ser comumente de bons ares e fertilíssima, e em
grão maneira deleitosa e aprazível à vista humana».37
modernizado por Maria da Graça Pericão e comentário de Jorge Couto,
Publicações Alfa, S. A., Lisboa, p. 75. No presente trabalho utiliza-se esta
edição que nas notas subsequentes é identificada apenas com a menção
História.
36 Cf. Vitorino Magalhães Godinho, op. cit., p. 64.
37 História, op. cit., p. 74.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
37
Nóbrega, Anchieta, Gândavo e todos os nossos cronistas
reencontraram no Brasil o Paraíso.
A ideia de que do outro lado do mar se encontraria, se não o
verdadeiro Paraíso Terreal, sem dúvida uma terra de tal maneira
bela e prodigiosa, que em tudo seria digna dele, perseguia, com
pequenas diferenças, os espíritos dos coevos. A imagem daquele
jardim, fixada através dos tempos de formas rígidas, quase
invariáveis, num compêndio de concepções bíblicas e
idealizações pagãs, não se poderia separar da suspeita de que
essa miragem devesse ganhar corpo num hemisfério ainda
inexplorado, que os navegantes costumavam pintar da cor do
sonho. E a suspeita conseguia impor-se mesmo àqueles cujo
espírito não se formara no convívio continuado com os autores
da Antiguidade.
Ainda que confusamente, uma nostalgia do mundo
desaparecido parece ter acompanhado os navegadores e
cronistas portugueses, quando à esperança de magníficos
tesouros acrescentavam a de aparições hostis ou fabulosas.
O universo simbólico dos seres monstruosos era herança da
mitologia pagã. A água, um dos quatro elementos da natureza,
que possui as virtudes maravilhosas de dar fecundidade à terra e
a de lavar os pecados dos homens no baptismo, transforma-se,
quando acumulada em quantidade excessiva e separada dos
outros elementos, encrespando-se com as tempestades,
formando ondas como montanhas, e apresentando a estranha
particularidade de não crescer, pese embora todos os rios do
mundo desaguem no Oceano. O Oceano é então o lugar onde o
homem não sobrevive.38 A este terror do mar, juntava-se ainda a
conotação negativa que se atribuía ao lugar do pôr do Sol
(Ocidente), ao qual se associava a ideia de que seria o reino dos
mortos. Navegar para Ocidente era, por isso, tentar ir para além
da morte. Por contraste, o lugar onde o astro rei nasce (Oriente),
Cf. José Mattoso, Antecedentes Medievais da Expansão Portuguesa, in: História da
Expansão Portuguesa, Direcção de Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri,
Volume I, Temas e Debates, Navarra, Espanha, 1998, p. 15.
38
38
A NATUREZA BRASILEIRA
era onde era necessário voltar para recuperar a pureza dos
primeiros tempos. Face a todos estes perigos, a viagem de
Colombo e as navegações portuguesas rumo ao Ocidente
podem considerar-se temerárias, e representam uma enorme
vitória face às crenças medievais dominantes acerca do mar
Oceano.39
Assim, a ideia de Plínio de que: «A água dos oceanos é a mãe
de todos os monstros», que do mar se levantavam seres
monstruosos que engoliam navios e navegantes, ou que nas
águas apareceriam serpentes gigantescas, não demoveu os
viajantes de se aventurarem nas águas do Oceano, agora para as
Índias ocidentais, em busca de novos Jardins das Delícias, muito
próximos da terra das Amazonas, junto às lagoas douradas e de
«mirabilia».40
3.1. Das Regiões e Lugares Naturais
Um maravilhoso e extraordinário Novo Mundo seria
obviamente associado a uma terra prodigiosa. Assim, na mesma
linha, os cronistas portugueses ocuparam-se também da
peculiaridade da abundância das águas do rio São Francisco no
período do Verão, contrastando com o que acontece com os
demais rios que no Brasil correm para o Atlântico. Tanto mais
peculiar quanto o seu caudal no Verão é tão volumoso que as
suas águas continuam doces várias milhas dentro do mar. Os
motivos paradisíacos ganhavam consistência com o paralelo,
tentado por alguns autores, entre o rio São Francisco e o Nilo,
cujas águas teriam, segundo uma velha tradição, a sua origem no
Éden.
Cf. José Mattoso, Antecedentes Medievais da Expansão Portuguesa, op. cit., p. 16.
Cf. Maria Adelina Amorim, Monstros, Espantos e Prodígios, in: Condicionantes
culturais da Literatura de Viagens – Viagem e mirabilia, Edições Cosmos e Centro
de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, Março de
1999, p. 154.
39
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MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
39
Tal como as do São Francisco, as águas do Nilo mostravamse calmas e comedidas no Inverno e com a chegada do calor
encrespavam-se e enfureciam-se. Um facto como esse, tão
dissonante da ordem natural, só poderia ser um penhor seguro
de assombrosos mistérios. A convicção que se tinha
desenvolvido com o Cristianismo e ganhara crédito durante a
Idade Média de que o Nilo era um dos rios procedentes do
Paraíso Terreal, fornecia, talvez, a chave de tamanho prodígio.
Além do fenómeno das enchentes do Verão, outras
peculiaridades comuns poderiam, a propósito do São Francisco,
trazer à lembrança o Nilo. Não só haveria aqui uma réplica
notável das famosas cataratas, como o sumidouro seria uma
reprodução do trajecto subterrâneo que faria o Gion ao sair do
Horto das Delícias.
Estas aproximações entre os dois rios, o São Francisco e o
Nilo, provocaram com certeza as sugestões edénicas que
tendiam a situar o Dourado na nascente do São Francisco.
O humanista Gândavo é dos cronistas estudados o primeiro
a referir a cachoeira, o sumidouro e a nascente do São Francisco
nos seguintes termos: «Outro mui notável sai pela banda do
oriente ao mesmo oceano, a que chamam de São Francisco: [...]
E daí por diante se não pode passar por respeito de uma
cachoeira mui grande que há neste passo, onde cai o peso da
água de mui alto. E acima desta cachoeira se mete o mesmo rio
debaixo da terra e vem sair daí uma légua; e quando há cheias
arrebenta por cima e arrasa toda a terra. Este rio procede de um
lago mui grande que está no íntimo da terra, onde afirmam que
há muitas povoações, cujos moradores (segundo fama) possuem
grandes haveres de ouro e pedraria».41 Verificamos ainda que a
prodigiosa quantidade de água será, por certo, um sinal de
riquezas, e daí advindo a alusão ao ouro e às pedrarias. Assim,
não é de admirar que nos escritos dos nossos cronistas surja um
outro motivo edénico: as esmeraldas. É de certo modo
espantoso o fascínio que as esmeraldas despertaram nos
41
História, op. cit., p. 76.
40
A NATUREZA BRASILEIRA
viajantes e colonizadores portugueses do Brasil. Estas gemas
verdes converteram-se no alvo de todas as atenções, o que só
era explicável pela abundância, no Brasil, de pedras verdes e
verdoengas, ou pela atracção particular que pareciam exercer
sobre os naturais da terra, informantes e guias dos aventureiros.
Não só se iludiam os que, ao descobri-las, cuidavam que
seriam esmeraldas autênticas, como os próprios ensaiadores do
reino que, examinando as amostras mandadas do Brasil, raras
vezes desenganavam os que as tivessem por tais. Na pior
hipótese chegariam a admitir que eram pedras de superfície,
tostadas pela acção do sol ou do fogo: as de melhor jaez
continuavam escondidas nas entranhas da terra e haveriam de
surgir quando se aprofundassem as escavações. O fascínio
provocado pelas esmeraldas entroncaria numa tradição
imemorial, de que ficaram traços em toda a literatura da Idade
Média e que será conservada na era quinhentista. Elas
desempenham um papel considerável nas alegorias e visões
paradisíacas, que lhes costumam atribuir virtudes sobrenaturais.
Essa pedra era não só considerada um símbolo de castidade,
como também da vida eterna. Brandónio confirma essa mesma
ideia nos Diálogos das Grandezas do Brasil. Na sua conversa com
Alviano reage à provocação deste quanto ao facto de não se
terem, até essa altura, encontrado no Brasil significativas
amostras de ouro e pedras preciosas, segundo eles mais
proveitosas do que aquelas grandezas provenientes da fertilidade
da terra. Brandónio responde-lhe que tem alguma razão, pois
realmente as pedras preciosas alegram o coração. No que diz
respeito à esmeralda afirma ter «por verdadeiro que, se a pessoa
que a trouxer cometer algum ato sensual, que se quebra por si,
tanto ama a castidade.»42
Diálogos das Grandezas do Brasil, por José António Gonsalves de Mello, 1ª
edição integral, segundo o apógrafo de Leiden, Imprensa Universitária,
Recife, 1962, p. 5. No presente trabalho utiliza-se esta edição que nas notas
subsequentes é identificada apenas com a menção Diálogos.
42
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
41
A esmeralda gozava, pois, de um prestígio misterioso que lhe
conferia aquela sua correspondência com o sobrenatural, tão
propalada nos velhos lapidários. Como quer que seja, uma
espécie de auréola difusa, promessa de outras e maiores
maravilhas, estaria associada à sua presença, o que explica o afã
com que, no Brasil, os seus moradores não se cansavam em
procurá-la.
Os nossos cronistas não ficaram imunes ao apelo do ouro e
pedras preciosas do Brasil, especialmente ao das pedras verdes,
como a elas se referem o humanista Gândavo, o naturalista
agricultor Gabriel Soares de Sousa e o padre Francisco Soares.
O humanista bracarense Pêro de Magalhães de Gândavo
dá-nos notícia dos relatos feitos por índios que, aventurando-se
pelo sertão com o intento de, na sua opinião, «buscar sempre
terras novas, a fim de lhes parecer que acharam nelas
imortalidade e descanso perpétuo»,43encontraram povoações
muito ricas com ruas muito compridas, onde os moradores não
faziam mais que «lavrar peças de ouro e pedraria. [...], então lhes
deram certas rodelas todas chapadas de ouro e esmaltadas de
esmeraldas [...]».44
O senhor de engenho, Gabriel Soares de Sousa, refere-se a
uma serra quase toda de cristal e que, segundo a sua opinião, cria
muitas esmeraldas e outras pedras azuis, dizendo: «Desta serra a
banda do leste pouco mais de uma légua está uma serra que é
quase toda de cristal muito fino, a qual cria em si muitas
esmeraldas e outras pedras azuis. [...] e em muitas partes achou
esta gente pedras desacostumadas de grande peso, que afirmam
terem ouro e prata [...]».45 E acrescenta ainda sobre as pedras
preciosas, o ouro e a prata, em que é rica a região da Baía,
baseando-se no testemunho do gentio: «Em algumas partes do
sertão da Baía se acham esmeraldas dentro no cristal solto onde
elas nascem [...] e ao pé da mesma serra da banda do poente se
História, op. cit., p. 117.
Ibid., op. cit., p. 117.
45 Notícia, op. cit., p. 45.
43
44
42
A NATUREZA BRASILEIRA
acham outras pedras muito escuras que também nascem do
cristal, as quais mostram um roxo cor de púrpura muito fino e
tem-se grande presunção de estas pedras poderem ser muito
finas e de muita estima; e perto desta serra está outra de quem o
gentio conta que cria umas pedras muito vermelhas, pequenas e
de grande resplendor. [...] Dos metais de que o mundo faz mais
conta é o ouro e prata, fazemos aqui tão pouca que os
guardamos para o remate e fim desta história, havendo-se de
dizer deles primeiro, pois esta terra da Baía tem dele tanta parte
quanto se pode imaginar [...]».46 A intenção de Soares de Sousa é
claramente a de louvar e elogiar a região da Baía.
As pedras preciosas não passaram despercebidas à atenção
do inaciano Francisco Soares, que faz referência às minas de
metal, alabastro, salitre, cristal e, como salienta, de outra pedraria,
pelo que é com bastante acuidade e encanto que descreve a
grandeza do sertão e as suas minas: «Tem grande sertão, onde
dizem há grandes minas, assim de metal como de alabastro,
muito salitre, cristal e outra pedraria [...]».47 Os cristãos
consideraram sempre estes territórios, que continham as maiores
riquezas do Universo, como lugares verdadeiramente
paradisíacos. Assim, quando Santo Isidoro de Sevilha alude nas
suas Etimologias aos rios que têm a sua origem no Paraíso, diz a
propósito do Eufrates que: «Também o Eufrates é um rio da
Mesopotâmia que igualmente nasce no Paraíso; é
abundantíssimo em pedras preciosas e atravessa a babilónia».48
As celebradas montanhas resplandecentes, tão amplamente
Ibid., op. cit., p. p. 258-259.
Padre Francisco Soares, Coisas Notáveis do Brasil, in: O Reconhecimento do
Brasil, Direcção de Luís de Albuquerque, com texto modernizado por Maria
da Graça Pericão e comentário final da autoria de Luísa Black, Publicações
Alfa, S. A., Lisboa, 1989, p. 135. No presente trabalho utiliza-se esta edição
que nas notas subsequentes é identificada apenas com a menção Coisas
Notáveis do Brasil.
48 Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, in: Do Imaginário do Atlântico ao Atlântico
Imaginado, Volume I da «Colecção O Atlântico: A Memória de um Oceano»,
Banco Português do Atlântico, Venda Nova-Amadora, 1993, p. 52.
46
47
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
43
descritas pelos nossos cronistas como realidade do maravilhoso
território brasílico que os nautas tinham recentemente
descoberto no ocidente do globo terrestre, constituíam
testemunho seguro de que, se não fosse este o verdadeiro
Paraíso Terreal, encontravam-se, pelo menos, muito próximos
dele. De facto, embora localizado a ocidente, este local mantinha
intactos todos os indícios das descrições medievais do Paraíso.49
No Brasil, encontraram os portugueses aquelas que
consideraram as mais notáveis maravilhas existentes em toda a
superfície da esfera terrestre. Tratando-se ainda apenas de uma
simples esperança para alguns, as minas das terras brasílicas
nunca constituíram um problema, pois a enorme grandeza e
riqueza do Brasil não consentiam impossibilidades.
Nesta terra de eleição uma verdadeira procissão de
maravilhas de lagoas douradas e serras reluzentes geraram o
pensamento de tesouros encobertos e encantados do sertão.
3.2. Dos Seres Humanos e Antropomorfos
Não causa surpresa, na referência pelos cronistas aos
habitantes das terras descobertas, a detecção de um outro
motivo edénico, nomeadamente o da sua longevidade, atributo
dos patriarcas bíblicos e sucedâneo plausível da imortalidade
própria do estado de inocência em que foram postos os nossos
primeiros pais no Paraíso Terrestre. Assim acontece com o
jesuíta José de Anchieta, com o humanista Gândavo e com o
Nas histórias da Viagem de São Brandão contam-se também as inúmeras
riquezas com que os peregrinos se vão deparando, à medida que se
encaminham para o paraíso terreal: «Depois de percorrer um longo caminho
vêem de repente onde são conduzidos: – Uma formosíssima e riquíssima
abadia, como não há outra tão santa sob o céu.
O prior daquele lugar manda mostrar os tesouros e as relíquias; cruzes,
relicários e livros; missais ornados com ametistas, com pedras preciosas de
Arábia há – , com rubis e ágatas enormes e todas de uma só peça, com os
seus broches, rutilantes com jaspes e topázios.»
49
44
A NATUREZA BRASILEIRA
padre Fernão Cardim, quando reputam como verídica a
longevidade do índio brasileiro.
Para o padre José de Anchieta, o facto de o clima do Brasil
ser tão sadio e temperado leva a que os homens vivam tanto que
a terra está cheia de velhos, e reforça a ideia afirmando que os
padres da Companhia de Jesus são mais saudáveis no Brasil do
que em Portugal.50
Na opinião de Gândavo, o facto de, em geral, a terra ser «tão
salutífera e livre de enfermidades procede dos ventos que
geralmente cursam nela: os quais são nordestes e suestes, e
algumas vezes lestes e lés-suestes. E como todos estes procedam
da parte do mar, vêm tão puros e coados que não somente não
danam, mas recreiam e acrescentam a vida do homem.»51 No
entanto, à semelhança de Anchieta, também Gândavo evita
qualquer referência a números.
Tal como o padre José de Anchieta, na década de cinquenta,
e o humanista Gândavo, na de setenta, também o missionário
Fernão Cardim, que foi para o Brasil cerca de dez anos mais
tarde que este último, alude à longevidade do índio. Na sua
narrativa epistolar da viagem que realizou em companhia do
padre Cristóvão de Gouveia, dirá, registando as primeiras
impressões de Piratininga, que era terra «muito sadia, há nela
grandes frios e geadas e boas calmas, é cheia de velhos mais que
centenários, porque em quatro juntos e vivos se acharam
quinhentos anos.»52 Este clima, verdadeiramente paradisíaco,
tornava a existência das pessoas que viviam nesta terra quase tão
longa como a dos antigos patriarcas. A obsessão da paisagem
verdejante, de tão bons céus e ares que, se não liberta os seus
moradores da lei da morte, imuniza-os, ou quase, de mortais
pestilências e outros danos cruéis, capazes de fazer definhar e
padecer os homens em muitos lugares – com o que atingem
Padre Joseph de Anchieta, Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões
do Padre Joseph de Anchieta, S. J.(1554-1594), op. cit., p. 433.
51 História, op. cit., p. 74.
52 Tratados, op. cit., p. 274.
50
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
45
esses moradores excessiva longevidade, enlaça-se estreitamente
com os motivos edénicos, tão populares durante a época das
grandes descobertas.
Os autores quinhentistas revelam um pendor comum para
apresentar os mundos novos em termos que recordem os
esquemas já usados nos tempos medievais para a descrição do
Paraíso Terrestre. Mas se se encontram nestes relatos
reminiscências de um tempo feliz e belo, também se irá
encontrar a referência a seres fantásticos e monstruosos, tão do
imaginário medieval.
É assim que, a partir do missionário José de Anchieta, todos
os cronistas portugueses se vão referir com maior ou menor
ênfase à existência no Brasil de um «monstro marinho». Tal como
Luís Adão da Fonseca alude, há um maravilhoso monstruoso,
que é manifestação diversa; diversa porque indeterminada, pois,
de contrário, seria simplesmente animal e perderia quase toda a
sua monstruosidade.53 Este maravilhoso monstruoso, enraizado
na cultura europeia, só muito lentamente deixará de estar
presente no imaginário renascentista.54 Jacques Le Goff, na sua
obra O Imaginário Medieval, refere que a metamorfose é o
«verdadeiro» maravilhoso, pois não se contenta com ir além da
natureza, mas está mesmo contra a natureza. Aos olhos do
Cristianismo a metamorfose é mesmo escandalosa, pois
transforma o ser humano, «feito à imagem de Deus», num
animal.55
Foi Gândavo quem primeiro descreveu minuciosamente este
ser fantástico, relatando um episódio que terá acontecido na
capitania de São Vicente em 1564: «Na capitania de S. Vicente,
sendo já alta noite, a horas em que todos começavam de se
entregar ao sono, acertou de sair fora de casa uma índia escrava
53 Cf. Luís Adão da Fonseca, Os Descobrimentos e a Formação do Oceano Atlântico
Século XIV-Século XVI, C.N.C.D.P., Lisboa, 1999, p. 26.
54 Veja-se, a propósito da curiosa presença do monstro no imaginário
Renascentista, «Os monstros no Imaginário Quinhentista», in: Oceanos, n.º 13
(1993), pp. 72-79.
55 Cf. Jacques Le Goff, O Imaginário Medieval, op. cit., p. 62.
46
A NATUREZA BRASILEIRA
do capitão; a qual, lançando os olhos a uma várzea que está
pegada com o mar e com a povoação da mesma capitania, viu
andar nela este monstro, movendo-se de uma para outra, com
passos e meneios desusados, e dando alguns urros de quando
em quando tão feios, que, como pasmada e quase fora de si, se
veio ao filho do mesmo capitão, cujo nome era Baltazar
Ferreira, e lhe deu conta do que vira, parecendo-lhe que era
alguma visão diabólica. Mas como ele fosse homem não menos
sisudo que esforçado e esta gente da terra seja digna de pouco
crédito, não lho deu logo muito a suas palavras, e deixando-se
estar na cama, a tornou outra vez a mandar fora, dizendo-lhe
que se afirma-se bem no que era. E, obedecendo, a índia a seu
mandado foi: e tornou mais espantada, afirmando-lhe e
repetindo-lhe uma vez e outra que andava ali uma coisa tão feia
que não podia ser senão o Demónio.
Então se levantou ele mui depressa e laçou mão a uma
espada que tinha junto de si, com a qual botou somente em
camisa pela porta fora, tendo para si (quando muito) que seria
algum tigre ou outro animal da terra conhecido, com a vista do
qual se desenganasse do que a índia lhe queria persuadir. E
pondo os olhos naquela parte que ela assinalou, viu
confusamente o vulto do monstro ao longo da praia, sem poder
divisar o que era, por causa da noite lho impedir, e o monstro
também ser coisa não vista e fora do parecer de todos os outros
animais. E chegando-se um pouco mais a ele para que melhor se
pudesse ajudar da vista, foi sentido do mesmo monstro: o qual,
em levantando a cabeça, tanto que o viu, começou de caminhar
para o mar donde viera. Nisto conheceu o mancebo que era
aquilo coisa do mar e, antes que nele se metesse, acudiu com
muita presteza a tomar-lhe a dianteira. E vendo o monstro que
ele lhe embargava o caminho, levantou-se direito para cima
como um homem, fincado sobre as barbatanas do rabo, e,
estando assim a par com ele, deu-lhe uma estocada pela barriga,
e dando-lhe no mesmo instante se desviou para uma parte com
tanta velocidade que não pode o monstro levá-lo debaixo de si:
porém, não pouco afrontado, porque o grande torno de sangue
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
47
que saiu da ferida que lhe deu no rosto com tanta força que
quase ficou sem nenhuma vista. E tanto que o monstro se
lançou em terra deixou o caminho que levava, e assim ferido,
urrando com a boca aberta sem nenhum medo, remeteu a ele, e,
indo para o tragar a unhas e dentes, deu-lhe na cabeça uma
cutilada muito grande: com a qual ficou já mui débil, e, deixando
sua vã porfia, tornou então a caminhar outra vez para o mar. [...]
O retrato deste monstro é este que no fim do presente capítulo
se mostra, tirado pelo natural. Era quinze palmos de comprido e
semeado de cabelos pelo corpo e no focinho tinha umas sedas
mui grandes como bigodes. Os índios da terra lhe chamam em
sua língua hipupeara, que quer dizer demónio da água.»56
Este monstro suscita o medo. Além disso, recorda a
diversidade da natureza do ser humano, frente à criação
maravilhosa e diversa do seu Criador.
Também alguns anos mais tarde o padre Fernão Cardim se
refere ao monstro marinho, o ipupiara, descrevendo-o no
masculino e no feminino: estas criaturas parecem-se com
homens de estatura considerável, mas com olhos encovados,
enquanto as fêmeas parecem mulheres de cabelos compridos e
formosos. Cardim alude também à sua forma peculiar de matar
os humanos: «[...]abraçam-se com a pessoa tão fortemente
beijando-a, e apertando-a consigo que a deixam feita toda em
pedaços, ficando inteira, e como a sentem morta dão alguns
gemidos como de sentimento, e largando-a fogem».57
Um pouco mais tarde, tanto Gabriel Soares de Sousa como o
padre Francisco Soares repetem a informação de que estes
monstros marinhos assombravam de tal modo os seres humanos
que disso chegavam a morrer.
História, op. cit., p. 101.
Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil, Transcrição do texto,
introdução e notas por Ana Maria de Azevedo, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1997, p. 142. No
presente trabalho utiliza-se esta edição que nas notas subsequentes é
identificada apenas com a menção Tratados.
56
57
48
A NATUREZA BRASILEIRA
Nesta terra parcialmente mítica, tudo é possível: o
extraordinário torna-se real e o melhor surge ao lado do pior. E
o monstruoso realça certamente o difícil acesso ao Paraíso.
Gabriel Soares de Sousa lembra, assim, a propósito do pior:
«Como não há ouro sem fezes, nem tudo é à vontade dos
homens, ordenou Deus que entre tais coisas proveitosas para o
serviço dele como fez na Baía, houvesse algumas imundícies que
os enfadasse muito para que não cuidassem que estavam em
outro paraíso terreal [...]».58 De tal modo que Gabriel Soares de
Sousa dirá a respeito da reconstituição das gibóias: «Como se
sente pesada, lança-se ao sol como morta, até que lhe apodrece
o que tem na barriga, do que dá o faro logo a uns pássaros que
se chamam urubus e dão sobre ela comendo-lhe a barriga com o
que tem dentro e tudo o mais por estar podre e não lhe deixam
senão o espinhaço que está pegado na cabeça e na ponta do
rabo e é muito duro e com isto fica limpa da carne toda. Vão-se
os pássaros e torna-lhe a crescer a carne nova até que ficam e
assim como lhe vai crescendo a carne, começa a bulir com o
rabo e torna a reviver ficando como dantes».59
O cenário brasileiro mantinha para os numerosos viajantes e
cronistas as suas misteriosas e inegáveis possibilidades. Ali o
milagre parecia novamente incorporado à natureza: uma
natureza ainda cheia de graça matinal, em perfeita harmonia e
correspondência com o Criador.
Ainda a propósito das misteriosas e inegáveis possibilidades
que mantinha o cenário brasileiro, o missionário José de
Anchieta alude à existência de um extraordinário passarinho, o
guainumbî, que se alimentará unicamente de orvalho.60 E Gabriel
Gabriel Soares de Sousa, Notícia do Brasil, Direcção de Luís de
Albuquerque, com transcrição em português actual por Maria da Graça
Pericão e comentário de Luís de Albuquerque, Publicações Alfa, S. A.,
Lisboa, 1989, p. 188. No presente trabalho utiliza-se esta edição que nas
notas subsequentes é identificada apenas com a menção Notícia.
59 Notícia, op. cit., p. 182.
60 Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de
Anchieta, S. J., op. cit., p. 134.
58
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49
Soares de Sousa refere o milagre de reconstituição e ressurreição
de um bichinho a que os índios chamavam buijeja: «Tem este
bicho uma natureza tão estranha que parece encantamento e
tomando-o na mão parece um rubi mui resplandecente e se o
fazem em pedaços se torna logo a juntar e a andar como dantes
e sobre acinte se viu por vezes em diferentes partes cortar-se um
destes bichos com uma faca em muitos pedaços e se tornaram
logo a juntar e depois o embrulharam em um papel durante oito
dias e cada dia o despedaçavam em migalhas e tornava-se logo a
juntar e reviver até que enfadava e o largavam.»61 A alusão ao
fantástico e diferente só será entendida como efeito de uma mão
invisível, que lançou os seus poderes sobrenaturais na formação
e transformação desta natureza.
Ganha assim pleno significado a expressão Novo Mundo, no
que se refere à América, em geral, e à terra brasileira em
particular. Novo, não só porque ignorado, até então, das gentes
da Europa e ausente da geografia de Ptolomeu, fora
“novamente“ encontrado, mas porque parecia o mundo
renovar-se ali, e regenerar-se, vestido de verde imutável,
banhado numa constante primavera, alheio à variedade e aos
rigores das estações, como se estivesse verdadeiramente
restituído à glória dos dias da criação.
3.3. O Reencontro da Fénix e do Unicórnio
Tal como no maravilhoso medieval, encontramos aqui neste
Novo Mundo animais fantásticos ou imaginários.
A propósito da conversão das borboletas em colibris ou
beija-flor, o inaciano Fernão Cardim revela-se verdadeiramente
maravilhado. O milagre da Fénix parecia reproduzido a seu
modo, nesta espécie animal própria do Novo Mundo. E a
observação pessoal parece deduzir-se implicitamente do texto de
Cardim: «[...] e é cousa para ver, uma borboleta começar-se a
61
Notícia, op. cit., p. 189.
50
A NATUREZA BRASILEIRA
converter neste passarinho, porque juntamente é borboleta e
pássaro, e assim se vai convertendo até ficar neste formosíssimo
passarinho».62
Se a teoria da conversão das borboletas em colibris surgiu no
Brasil, transmitida talvez aos portugueses pelos antigos naturais
da terra, da outra, a da morte e ressurreição destes, que
reproduziria o milagre da Fénix, há indícios que a dão como
vinda das Índias de Castela. A tal origem faz alusão o padre
Fernão Cardim, notando: «[...] nas Antilhas lhe chamam o
pássaro ressuscitado, e dizem que seis meses dorme e seis meses
vive».63
Está de acordo com a mentalidade do tempo que os encantos
do beija-flor levassem facilmente os seus admiradores a adornálo de um halo de lenda. Na graça aérea e fugitiva dessa
criaturinha onde parecem reunir-se todos os mimos da natureza,
não se humilhava a realidade ante a fantasia, que tinha
embelezado muitos dos velhos bestiários.
Mas não foram com certeza os dotes de beleza da anhigma
que provocaram a extraordinária procura que durante muito
tempo tiveram essas aves. Embora haja quem encontre
principalmente nas crenças indígenas a fama das virtudes
terapêuticas do chifre que lhe sai do alto da cabeça, é difícil
dissociá-lo da figura do fabuloso unicórnio, que tanto seduzira, e
por tanto tempo, as imaginações dos europeus. A associação era
tanto mais fácil quanto pôde surgir noutros lugares, a propósito
de todos ou quase todos os cornígeros, a começar pelo
rinoceronte.
O corno da anhigma, e os esporões que lhe saem das asas, ou
mesmo os ossos, passaram a ser no Brasil remédio para todo o
tipo de maleitas. As suas raspas, bebidas em água ou vinho,
curavam até as mordeduras das cobras. Esse chifre daria o dom
da palavra aos mudos, tal como aconteceu a um menino que
começou a falar, conta o padre Fernão Cardim, quando lhe
62
63
Tratados, op. cit., p. 88.
Ibid., op. cit., p. 88.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
51
ataram ao pescoço o poderoso talismã: «[...] dizem os naturais
que este corno é grande medicina para os que se lhe tolhem a
fala como já aconteceu que pondo ao pescoço de um menino
que não falava, falou logo»64.
À imagem do Unicórnio, apresentado nos bestiários, tanto
quanto a Fénix, como símbolo de Jesus, não se associaria a da
anhigma apenas pela circunstância de ambos terem chifres, mas
pelo notável volume desta e também pelo seu estridente grito,
que Cardim diz escutar-se à distância de meia légua e mais.
Também o padre Francisco Soares diz dela, a esse propósito,
que dá brados, que se ouvem a uma légua de distância. A mesma
estridência, sugerindo idênticas comparações, atribui-se ao
brado que alguns autores dão como próprio do Unicórnio.
Da anhigma, apesar da impressão de fereza que poderiam dar
as suas dimensões, as suas armas naturais e a força do seu grito,
constava que ia a tais extremos a sua ternura pelo companheiro
que, morto este, não se apartava do seu corpo, deixando-se ficar
à mercê dos caçadores. Não haverá também nisto semelhança
com o terrível Unicórnio, capaz de se abrandar de tal modo
diante da mulher virgem, que desse engodo se valiam muitos
para o capturar e abater, só assim sendo possível abrandá-lo?
Tanto o padre José de Anchieta, como o humanista Gândavo
e, mais tarde, os missionários Fernão Cardim e Francisco Soares
se lhe referem. Anchieta alude à corpulência desta ave, dizendo
que o seu grito é semelhante ao zurrar de um asno. Gândavo, à
semelhança do missionário Anchieta, não faz qualquer
referência às suas qualidades medicinais, não lhe atribuindo
também qualquer nome descreve-a apenas como sendo uma ave
que existe na capitania de Pernambuco, e aludindo à sua
corpulência compara-lhe o tamanho ao de dois galos do Peru.
O padre Francisco Soares faz uma interessante e
pormenorizada descrição desta ave, dizendo que: «É pássaro de
admiração, assim em seu comer como em feição; tem uns
brados que se ouvem uma légua; é tamanho como um grou, mas
64
Tratados, op. cit., p. 92.
52
A NATUREZA BRASILEIRA
tem menos carne; é preto, os olhos formosos, o bico pouco
maior que de galo, tem um corpo junto com as ventas de um
palmo [...] é como corno, mas brando, e não quebra; tem muitas
penas em si, mas grossas; tem nos encontros das asas dois ferros
cruéis de um dedo polegar de um homem de grossura,
quadrados, muito duros na ponta [...] junta, tem outros dois com
os quais peleja com as outras aves; os três dedos dos pés são
mui descompassados de comprido; andam nos alagadiços,
comem erva; o corno dizem é bom para restituir a fala».65
Tal como afirma Marília dos Santos Lopes: «A América,
entendida como prolongamento das Índias, era o espaço ideal
para o ressurgimento da geografia mítica. O renascimento do
unicórnio estabelecia, deste modo, a ligação entre uma paisagem
nova, estranha e habitada por criaturas desconhecidas, e o
conhecimento de seres fantásticos comprovados na tradição
clássica e medieval».66 A presença de animais fantásticos ou
imaginários constituía penhor seguro de que esta era, sem
qualquer sombra de dúvida, uma terra verdadeiramente
paradisíaca.
3.4. Reminiscências do Tempo em que os Animais
Falavam
Há, desde os primeiros contactos dos portugueses com a
terra brasileira, referências escritas aos papagaios. Na sua missiva
ao rei D. Manuel, dando conta do achamento de uma nova terra,
a que o capitão da armada pôs o nome de Terra de Vera Cruz,
Pêro Vaz de Caminha informa, como vimos, da existência de
um monte muito alto e de uma terra chã cheia de arvoredos.
Mais adiante, ao dar conta dos presentes trocados com os
indígenas, faz saber que estes ofereceram aos portugueses «um
Coisas Notáveis do Brasil, op. cit., p. 164.
Marília dos Santos Lopes, Coisas maravilhosas e até agora nunca vistas – Para
uma iconografia dos Descobrimentos, op. cit., p. 65.
65
66
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
53
sombreiro de penas de aves compridas com uma copazinha de
penas vermelhas e pardas como de papagaio».67 Caminha conta
o episódio de quando os navegadores portugueses, já
familiarizados com esta ave e demonstrando o interesse que a
mesma lhe suscita, mostraram vários objectos e animais aos
indígenas, com o intuito de se certificarem quanto às riquezas
existentes na nova terra descoberta. No que concerne aos
papagaios diz: «[...]mostraram-lhes um papagaio, que aqui o
capitão traz, tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra,
como que os havia aí».68 Ainda confirma a sua existência e
importância ao afirmar que «resgataram lá, por cascavéis e por
outras coisinhas de pouco valor que levavam, papagaios
vermelhos muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos
[...]».69 Refere ainda: «Enquanto andávamos nesta mata a cortar
lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles
verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me
parece que haverá nesta terra muitos, mas eu não veria mais que
até nove ou dez».70
O interesse dos portugueses por esta ave foi aumentando, à
medida que aumentavam os conhecimentos sobre a terra
brasílica. Este interesse teria a ver não só com o valor material
deste psitacídeo no velho continente, mas também com o seu
significado simbólico.
Para o apreço que lhe davam, não só contribuía o saberem
imitar a voz humana, ou a formosura da plumagem, como
também a sua procedência de países remotos, da Índia
sobretudo, que lhes comunicaria algum do seu mistério.
Possuíam, além disso, uma auréola mística, que nos livros de
devoção e aventura parecia cingir constantemente as aves
falantes. Não admira a associação do papagaio ao Paraíso,
quando se conhece a crença de que todos os animais falavam no
Carta ao Rei D. Manuel, op. cit., p. 10.
Ibid., op. cit., p. 12.
69 Carta ao Rei D. Manuel, op. cit., p. 20.
70 Ibid., op. cit., p. 21.
67
68
54
A NATUREZA BRASILEIRA
começo do mundo, e perderam a fala em consequência do
pecado. Conservando por especial graça divina essa faculdade
que o irmana aos homens, o papagaio parece assim guardar
algum vestígio daqueles ditosos tempos e, ao menos por essa
virtude, poderia presumir-se ser verdadeiramente uma ave do
Paraíso. A noção corrente na Antiguidade, e em grande parte da
Idade Média, de que o papagaio pertencia eminentemente à
fauna da Índia, onde alguns situavam o Éden Bíblico, contribuía
naturalmente para a sua inclusão entre as aves paradisíacas.
Já na viagem de São Brandão há notícia de uma ilha
milagrosa, povoada só de papagaios. Referindo-se ao Concerto no
Paraíso dos Pássaros, diz o seguinte: «Nas fontes daquele rio havia
uma árvore, tão branca como o mármore, com folhas
amplíssimas, salpicadas de vermelho e branco. [...] em toda a sua
folhagem, estão pássaros [...].» De tão maravilhado, São Brandão
terá rogado a Deus para que o esclarecesse quanto à natureza
dos pássaros. No final da oração, um deles voou e pousou no
barco e foi então que o frade se lhe dirigiu desta maneira: «Se tu
és criatura divina, rogo-te que cuides dos meus dias. Diz-me
primeiro quem és, e que fazeis neste lugar, tu e todos aqueles
pássaros de tão extraordinária beleza.» Ao que o pássaro
respondeu: «Somos anjos, e outrora habitávamos no céu. De
uma tão alta morada caímos tão baixo, juntamente com o
orgulhoso, [...] não padecemos outro sofrimento a não ser a
perda da glória de magestade, a ausência de alegria divina. O
nome deste lugar, pelo qual perguntaste, é o de Paraíso dos
Pássaros»71. Eis um exemplo do que, segundo Mário Martins, é:
«o gosto de interpretar as criaturas que enchem o mundo como
símbolos das realidades sobrenaturais».72 Qualidade que faz
parte dos quadros mentais do homem medieval. Os animais
71 Viagem de São Brandão, – A Memória da Viagem Imaginária – in: Do
Imaginário do Atlântico ao Atlântico Imaginado, Antologia de Textos, José
Adriano F. de Carvalho e Luís Adão da Fonseca, Banco Português do
Atlântico, Porto,1993, op. cit., p. 66.
72 Mário Martins, Estudos de Cultura Medieval, Verbo, Lisboa, 1969, p. 47.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
55
surgem, pois, quer como função simbólica, quer como guardiões
geniais, dotados de força mágica.
Nas viagens de Mandeville, há notícia de que no Império do
Preste João, num deserto existente a pouca distância de um rio
procedente do Paraíso Terreal, onde não corriam águas, mas
grande quantidade de pedras preciosas – sem dúvida uma
variante do Fison do Génesis, identificado geralmente com o
Ganges –, havia muitíssimos papagaios faladores. Costumavam
interpelar e saudar os que atravessavam o deserto e falavam
exactamente como homens. O autor adverte para o facto de
estes terem em cada pata cinco dedos, ao passo que outros, os
de três dedos na pata, não falavam, ou falavam pouco, e sendo
na verdade mais gritadores do que palradores. Esta distribuição
entre os cinco e três dedos, com as respectivas qualidades, fora
recebida de autores clássicos, provavelmente através de Vincent
Beauvais.
Na Idade Média portuguesa encontramos sinais desta sua
simbologia de personagem mágica na cantiga de amigo de D.
Dinis: O papagaio e a Pastora. O rei português tinha com certeza
conhecimento de que o papagaio era para os orientais uma
personagem mágica.73
No livro que narra as viagens imaginárias do Infante D.
Pedro, consta que pelas águas do Fison, um dos quatro rios do
Paraíso, descem os papagaios nos seus ninhos, como revelando
a sua origem no jardim maravilhoso.
Assim, como não podia deixar de ser, o papagaio figura
desde logo nas representações portuguesas, como no mapa de
Cantino74 (1502), no Atlas de Lopo Homem Reinéis (1519),
assim como nas gravuras do Atlas Miller.
73 Cf. Luciana Stegagno Picchio, A Lição do Texto, Filologia e Literatura, I –
Idade Média, Tradução de Alberto Pimenta, Edições 70, Lisboa, 1979, p. 57.
74 O planisfério português anónimo, concluído em Lisboa em 1502 no
armazém da Guiné e das Índias, é uma das obras mais importantes
relacionadas com o descobrimento do Brasil. Considerado como a obra mais
importante da História da cartografia portuguesa, é vulgarmente conhecido
pelo nome de «mapa de Cantino», pelo facto de ter sido encomendado e
56
A NATUREZA BRASILEIRA
Mas igualmente nas representações da América, realizadas
por alguns autores europeus, surgem com bastante frequência os
papagaios. Assim, no mapa desenhado pelo genovês Nicolau
Canério, de 1505, está representado o mundo de que à época
havia notícias, inspirado em modelos portugueses, tendo o seu
autor desenhado dois papagaios.75 E dois anos mais tarde, em
1507, na representação cartográfica «O Brasil no Mapa Mundo
de Waldseemüller», está desenhado um papagaio.76 Alguns anos
depois, em 1516, em: «O Brasil na Carta Marina de
Waldseemüller», o Brasil é designado como «Brasilia SVE Terra
Papagalli».77 E também se observam papagaios num denso
arvoredo representado no mapa anónimo de Turim (1523).78
Bastantes anos mais tarde, no desenho da sequência das quatro
partes do Mundo, realizado, em 1581, pelo famoso gravador
flamengo Jan Sadeler, o Velho (1550-1600), a América
personificada descansa à sombra de uma árvore adornada com
comprado pelo italiano Alberto Cantino. Era destinado a ser enviado a
Hercule de Este, duque de Ferrara, e Cantino, ao remetê-lo escreveu na parte
superior direita do verso da carta: «Carta da navegar per le isole novamente trovate in
la parte del’ Índia: dono Alberto Cantino al S. Duca Hercole». Há imensa bibliografia
sobre este mapa, pelo que nos limitamos aqui a referir, entre os trabalhos
mais importantes que o analisaram: Duarte Leite, História dos Descobrimentos,
vol. II, Lisboa, 1962, pp. 11-122; Armando Cortesão, Cartografia e cartógrafos
portugueses, vol. I, Lisboa, 1935, pp. 142-151; Armando Cortesão e Avelino
Teixeira da Mota, Portugaliae monumenta cartographica, vol. I, Lisboa, 1960, pp.
7-13.
75 Cf. Duarte Leite, A Exploração do Litoral do Brasil na Cartografia da Primeira
Década do século XVI, In: História da Colonização Portuguesa do Brasil, Edição
Monumental Comemorativa do Primeiro Centenário da Independência do
Brasil, Direcção e Coordenação Literária de Carlos Malheiro Dias, Direcção
Cartográfica do Conselheiro Ernesto de Vasconcelos, Direcção Artística de
Roque Gameiro, Litografia Nacional, Porto, MCMXXIII, Volume II, p. 427.
Nesta obra encontra-se também extra-texto, uma reprodução do mapa de
Nicolau Canério, p. 426.
76 Ibid., op. cit., extra-texto, p. 400.
77 Ibid., op. cit., extra-texto, p. 401.
78 Ibid., op. cit., extra-texto, «extraído de Maps illustrating early discoveries
and exploration in América, de Ed. Luth Setevenson», p. 422.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
57
dois papagaios; a América e o vistoso psitacídeo observam-se
mutuamente.79 E ainda cerca de cinquenta anos depois, em
1630, Claes Visscher, na sua Aetas aurea, gravura representativa
da paisagem do Éden, adornada de uma enorme variedade de
animais e plantas, embeleza a paisagem com um papagaio
empoleirado num tronco.80 Também um pouco mais tarde, em
1646, o importante gravador Matthaeus Merian, ao representar a
América, na sua Neue Archontologia cósmica, coloca poisado sobre
um ramo, aos pés de uma índia de formas barrocas, um
papagaio.81
Estas aves tiveram um papel importantíssimo nas transacções
comerciais do Novo com o Velho Mundo. Tiveram por isso
parte obrigatória e às vezes mesmo considerável nas cargas dos
navios que vinham das terras brasílicas ao Velho Continente.
Tanto assim era que durante algum tempo o nome definitivo
desta parte da América, proveniente da designação da famosa
madeira tintureira que abundava nessas paragens, competiu
durante algum tempo com outro, que o precedeu, originário dos
seus vistosos psitacídeos, o de “Terra dos Papagaios.“
Na sua carta dirigida ao doge Agostinho Barbarigo datada de
27 de Junho de 1501, Giovanni Matteo, que em 1500 foi
enviado pelo senado de Veneza a Portugal, refere
insistentemente os papagaios: «Acima do Cabo da Boa
Esperança, para ocidente, descobriram uma terra nova.
Chamam-na dos Papagaios, por terem o comprimento de um
braço e meio, de várias cores, dos quais vimos dois.» A carta é
conhecida por várias cópias, sendo publicada em 1507 na
colectânea Paesi novamente retrovati.82
79 Cf. Marília dos Santos Lopes, Coisas maravilhosas e até agora nunca vistas – Para
uma iconografia dos Descobrimentos, op. cit., p. 231.
80 Ibid., op. cit., p. 98.
81 Ibid., p. 258.
82 Cf. William B. Greenlee, A viagem de Pedro Álvares Cabral, Porto, 1951, pp.
221-226, in: O Descobrimento do Brasil nos textos de 1500 a 1571, Organização de
José Manuel Garcia, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2000, p. 40.
58
A NATUREZA BRASILEIRA
Domenico Pisano Núncio de Veneza em Portugal, na sua
carta enviada à Senhoria de Veneza, em 27 de Junho de 1501,
refere a propósito da nova terra descoberta pelos portugueses:
«Acima do Capo de Bona Speranza em direcção a Ocidente
descobriram uma terra nova a qual chamaram dos Papagaios».83
Também Pietro Pasqualigo, nomeado embaixador de Veneza
em Lisboa, que assistiu ao regresso da frota de Pedro Álvares
Cabral, alude, numa carta datada de 18 de Outubro de 1501
àquela “terra delli Papagá“: «Também acreditam estar ligada
(credeno conjugersi) com as Antilhas que foram descobertas
pelos reis de Espanha, e com a terra dos papagaios, novamente
encontrada (noviter trovata) pelos navios deste rei (de Portugal)
que foram a Calecut [...]»84 e daí ou de outra fonte passaria esse
nome, devidamente latinizado, para as cartas geográficas. Só
mais tarde começaria a prevalecer, generalizando-se, o de terra
do Brasil.
Do apreço que chegam a ter os papagaios americanos na
Europa dará ideia o que consta do libelo segundo do barão de
Saint Blanchard, datado de 1583; enquanto os toros de paubrasil transportados na nau Pélérine, apresada por uma armada
portuguesa, se avaliam em oito ducados o quintal, o preço de
cada um dos papagaios orçou-se em seis ducados. E seriam no
mínimo seiscentos, os papagaios que a nau francesa
transportava.85
Esta ave adquiriu um tal interesse na Europa em geral e
particularmente em Portugal, que o humanista e latinista
Gândavo, no capítulo da sua História da Província de Santa Cruz,
Cópia de um Capítulo das Cartas de D. Cretico, Núncio da Ilustríssima
Senhoria de Veneza em Portugal, Dada em 27 de Junho de 1501, in: Carmen
Radulet, Terra Brasil – 1500 – A Viagem de Pedro Álvares Cabral – Testemunhos e
comentários, Chaves Ferreira-Publicações, S. A., Edição exclusiva,
comemorativa do 5º Centenário da descoberta do Brasil, p. 111.
84 Cf. Ernesto do Canto, Os Corte-Reais: memória histórica, Arquivo dos
Açores, vol. IV, 1882 (1884?), pp. 587-588, in: O Descobrimento do Brasil nos
textos de 1500 a 1571, op. cit., p. 40.
85 Cf. Visão do Paraíso, op. cit., p. 21.
83
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
59
destinado às aves, chama a atenção para o facto de estas serem
de tantas variedades e em tanta quantidade que tratará somente
daquelas que têm mais valor para os portugueses e índios,
referindo seis espécies. Assinala-lhes o belo e variado colorido
das penas e a sua mansidão, mas também e sobretudo a
facilidade que alguns têm em falar, o que encantava muita gente
que os adoptava como animais de estimação.
Gândavo dá destaque especial ao valor comercial destas aves.
E para o comprovar refere que a venda destes papagaios aos
portugueses era de tal modo lucrativa para os índios, que estes
apanhavam outra espécie de papagaios, mais abundantes no
Brasil, mas que falavam com mais dificuldade e só à custa de
muito treino, sendo para além disso prejudiciais aos milharais.
Depois de capturados, os índios transformavam-nos,
depenando-os e pintando-os com o sangue de uma espécie de
rãs, vendendo-os posteriormente como se de papagaios
verdadeiros se tratasse.86
Também Fernão Cardim e Gabriel Soares de Sousa não
deixam de assinalar a grande diversidade de papagaios. Ambos
destacam a sua formosura e o facto de falarem se os
ensinarem.87A presença nas terras brasílicas destas formosas
aves, que tinham mantido, por graça divina especial a faculdade
de falar que as irmanava aos homens, era mais um sinal de que
estes lugares constituíam verdadeiramente o Jardim do Éden.
O Paraíso Quinhentista mantinha como válidos os mesmos
símbolos edénicos tão comuns nas descrições medievais do
Diz o humanista Gândavo que «Os índios da terra costumam depenar
alguns enquanto são novos e tingi-los com o sangue de umas certas rãs, com
outras misturas que lhes ajuntam: e depois que se tornam a cobrir de pena
ficam nem mais nem menos da cor dos verdadeiros: e assim acontece muitas
vezes enganarem com eles a algumas pessoas vendendo-lhos por tais.»
História, op. cit. pp. 94-95.
87 Cardim diz deles com graciosidade: «Os papagaios nesta terra são infinitos,
mais que gralhas, zorzais, estorninhos, nem pardais de Espanha, [...] são de
ordinário muito formosos e de muito várias cores, e várias espécies, e quasi
todos falam, se os ensinam.» Tratados, op. cit., p. 84.
86
60
A NATUREZA BRASILEIRA
Jardim das Delícias. E embora se colocassem dúvidas acerca da
sua localização, o que é certo é que no século XVI já não se pôs
em dúvida a sua existência.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
61
II – Das Grandezas Naturais do Brasil
Se nas primeiras viagens ao Brasil se reencontram notas
edénicas, a enumeração das grandezas e riquezas desta terra não
se esgota nesse reconhecimento de uma paisagem já conhecida.
Paralelamente ao deslumbramento de uma terra quase
paradisíaca, vão surgindo impressões e anotações de uma terra,
cujas qualidades surpreendem os seus primeiros visitantes.
Pêro Vaz de Caminha, o primeiro a descrever a natureza
brasílica que vagamente observa no curto espaço de tempo que
permanece na terra de Vera Cruz, afirma: «Esta terra, Senhor,
me parece que da ponta que mais contra o sul vimos, até a outra
ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto
houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou
vinte e cinco léguas por costa; trás ao longo do mar, em algumas
partes, grandes barreiras, delas vermelhas e delas brancas, e a
terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De
ponta a ponta é toda praia parma (sic), muito chã e muito
formosa. Pelo sertão nos pareceu do mar muito grande, porque
a estender os olhos não podíamos ver senão terra e arvoredos,
que nos parecia muito longa terra.»88 Este é um relato de certo
modo geral, mas que constitui um exemplo de precisão científica
e objectividade, pois o cronista afirma simplesmente e com um
rigor pouco comum para a época, que a terra lhe parece muito
grande. Isto significa que ainda não tem a certeza acerca das suas
potencialidades, pelas quais, porém, revela já muito interesse:
«[...] mas a terra em si é de muito bons ares, assim frios e
88
Carta ao Rei D. Manuel, op. cit., p. 25.
62
A NATUREZA BRASILEIRA
temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste
tempo de agora assim os achávamos como os de lá; águas são
muitas infindas; em tal maneira é graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem».89 A
temperança dos ares, a abundância de águas, a graciosidade, mas
principalmente o facto de nela se poder dar tudo, são qualidades
entrevistas desde o início por Caminha. Era a antevisão de uma
terra fértil, amena e abundante.
O Brasil surge, aliás, numa bela descrição do humanista
bracarense Pêro de Magalhães de Gândavo, como um
verdadeiro jardim das delícias: «Esta província é à vista mui
deliciosa e fresca em grão maneira: toda está vestida de mui alto
e espesso arvoredo, regada com as águas de muitas e mui
preciosas ribeiras de que abundantemente participa toda a terra:
onde permanece sempre a verdura com aquela temperança da
Primavera que cá nos oferece Abril e Maio.»90
Esta natureza exuberante, abundante e prodigiosa inspirou de
tal modo o nosso cronista que, ao pretender escrever uma obra
que fundamentalmente servisse para atrair colonos portugueses
ao Brasil, acabou por redigir um verdadeiro e belo hino de
louvor à magnificência da terra brasileira. Quando intenta
descrever as diferenças espécies brasílicas no seu texto
organizado, segundo moldes conhecidos e praticados das
histórias naturais e morais, acaba por tratar: «[...] principalmente
daquelas de cuja virtude e frutos participam os portugueses.»91
É também uma natureza sublime e belíssima, que alguns anos
mais tarde maravilha o missionário Cardim. Assim, ao descrever
a cidade do Rio de Janeiro, afirma: «A cidade está situada em um
monte de boa vista para o mar, e dentro da barra tem uma baía
que bem parece que a pintou o supremo pintor e arquitecto do
mundo Deus Nosso Senhor, e assim é cousa formosíssima e a
mais aprazível que há em todo o Brasil [...]». O pintor e
Ibid., op. cit., p. 25.
História, op. cit., p. 75.
91 Ibid., op. cit., p. 82.
89
90
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
63
arquitecto do mundo esmerou-se na sua obra e criou uma
natureza formosa, bela, em uníssono com a sua imagem.
Para reforçar este seu testemunho, Cardim acrescenta «que
nem lhe chega a vista do Mondego e Tejo»,92 estuários que o
autor por certo bem conhecia da sua terra natal. Revela-se, pois,
uma constante deste nosso autor a comparação entre aquilo que
vê no Brasil e o que já conhece do reino. Curiosamente o que
observa e experimenta surge sempre melhor no Brasil que na
Metrópole. Aqui evidencia-se desde já um dos tópicos
fundamentais da apresentação e descrição desta natureza que
supera o conhecido.
Da constatação de uma nova e bela natureza surge
imperiosamente o desejo de a anotar, de a descrever. Assim foi
com Gabriel Soares de Sousa, que redigiu a sua Notícia do Brasil
em 1587 (com o subtítulo de Descrição Verdadeira da Costa Daquele
Estado Que Pertence à Coroa do Reino de Portugal, Sítio da Baía de
Todos-os-Santos). Este texto tem circulado também sob a
designação de Tratado Descritivo do Brasil e é, na acepção de Luís
de Albuquerque, o texto quinhentista mais completo sobre a
fauna e a flora da área do actual estado da Baía.93
O processo descritivo apura-se e alarga-se em Gabriel Soares
de Sousa, assinala um maior conhecimento. A maneira como
organiza o conhecimento permite não só identificar mas
também começar a classificar as espécies, fazendo um inventário
mais sistemático. Neste inventário, os autores como Cardim, e
Soares de Sousa designam as espécies pelos nomes indígenas,
preservando a identidade local das mesmas – difícil de traduzir –
a que juntam igualmente as suas qualidades e benefícios. Perante
a variedade e a novidade, Brandónio um dos interlocutores de
os Diálogos das Grandezas do Brasil, adverte: «E se quereis ouvir
das naturezas e qualidades das alimárias que havia na terra,
Tratados, op. cit., pp. 267-268.
Cf. Luís de Albuquerque, “Comentário“, in: Gabriel Soares de Sousa,
Notícia do Brasil, direcção e comentários de Luís de Albuquerque e texto
modernizado por Maria da Graça Pericão, Publicações Alfa, S. A. , Lisboa,
1989, p. 260.
92
93
64
A NATUREZA BRASILEIRA
natural dela, dai-me atenção e pode ser que vos faça arcar as
sobrancelhas de espantado.»94 A exuberância da vegetação
brasileira, a abundância das várias e diferentes espécies, animais
e vegetais, as suas estranhezas, que fazem delas verdadeiros
prodígios da criação e as suas imensas qualidades nutritivas, irão
com toda a certeza espantar o outro interlocutor de os Diálogos
das Grandezas do Brasil, Alviano, que chegado recentemente da
Europa estava habituado a uma natureza mais comedida.
Vejamos com Alviano como se apresentou e descreveu esta
natureza nas primeiras fontes portuguesas.
1. Da Novidade e Estranheza desta Terra
Um dos primeiros fenómenos que caracterizam a descrição
desta natureza é a sua novidade. É a descoberta de inúmeras
espécies, sobre as quais nunca se ouvira falar. Este facto incute,
assim, fascínio e também curiosidade por uma natureza que
ficou tantos séculos escondida dos homens. Assim, muitas
destas espécies, pela sua novidade, beleza e estranhezas, foram
vistas como verdadeiros prodígios da criação.
Vejamos alguns exemplos. No que respeita à Anta, que é o
maior animal terrestre da fauna brasileira, todos os nossos
autores a descrevem, face à circunstância de se encontrarem
perante uma espécie desconhecida, como sendo um animal
grande, encontrando-lhe semelhanças com o boi ou a vaca, e
ainda com a mula. Alimentando-se de frutos silvestres e erva, a
sua carne é, no entanto, saborosa e parecida com a de vaca.95
Este animal tem ainda, segundo Soares de Sousa, a
particularidade de mudar de cor com a idade, sendo quando
Diálogos, op. cit., p.174.
Gabriel Soares de Sousa alude ao facto de a pele ser consumida pelos
índios, cozida juntamente com a carne, servindo ainda para os portugueses
fazerem «muito boas couras que não as passa estocada». Notícia, op. cit., p.
170.
94
95
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
65
pequenas, muito formosas, com o corpo listado de preto e
amarelo torrado e tornam-se pardas com a idade.
Destes autores, aquele que talvez melhor a descreve é Gabriel
Soares de Sousa que, depois de afirmar que são os maiores
animais que se criam naquela terra acrescenta que «[...] são
pardas com o cabelo assentado, do tamanho de uma mula mas
mais baixas de pernas e têm as unhas fendidas como vaca e o
rabo muito curto sem mais cabelo que nas ancas e têm o
focinho como mula e o beiço de cima mais comprido que o de
baixo em que têm muita força.»96 Foram com certeza, a
corpulência, a robustez, bem como a sua utilidade, as
características que mais chamaram a atenção dos autores
portugueses de Quinhentos.
O conhecimento da novidade sugere muitas vezes
estranheza. O que não se conhece é, em primeiro lugar,
diferente e estranho. Os nossos autores serão assim muitas
vezes confrontados com espécies que nunca viram, e que
naturalmente lhes incutem um misto de curiosidade e espanto.
A aparência do tatu despertou a atenção e admiração dos
nossos cronistas que por o acharem um animal deveras
estranho, utilizaram mais uma vez a analogia, prática corrente na
época, para o descreverem, de modo a possibilitar aos que
estavam longe uma melhor visualização daquilo que estava tão
afastado do seu conhecimento. Os nossos autores são unânimes
na opinião de que existiam variadas espécies de tatu e em grande
quantidade. Estes animais têm o corpo semelhante ao de um
leitão e abrem com as suas grandes unhas covas no chão, onde
parem e criam os filhos. Este estranho animal a que chamam
cavalo armado, alimenta-se de frutas e minhocas, desloca-se
devagar, e se cai de costas, custa-lhe muito virar-se. A sua carne
é saborosa, comendo-se cozida e assada, com um gosto
semelhante ao de leitão e galinha. A pele é também útil para
confeccionar bolsas. Gabriel Soares de Sousa descreve quatro
variedades deste animal. «[...] as pernas curtas cheias de escamas,
96
Ibid., op. cit., p. 170.
66
A NATUREZA BRASILEIRA
o focinho comprido cheio de conchas, as orelhas pequenas e a
cabeça toda cheia de conchinhas, os olhos pequeninos, o rabo
comprido cheio de lâminas em redondo que cavalga uma sobre
outra e tem o corpo todo coberto de conchas feitas em lâminas
que atravessam o corpo todo, de que tem armado uma formosa
coberta; e quando este animal teme de outro, mete-se todo
debaixo destas armas sem lhe ficar nada de fora, as quais são
muito fortes; têm as unhas grandes [...]».97
Ainda a propósito do tatu, o autor de os Diálogos das Grandezas
do Brasil salienta que aparece pintado em mapas por ser
estranho, porque anda armado de couraças, agasalhando o corpo
pequeno debaixo das armaduras. Conta ainda que tentou levar
um para Portugal e que este lhe terá morrido na viagem. Este
episódio recorda-nos a tentativa que sempre houve de trazer
estas espécies para a Europa, servindo como objectos de
exposição, representativos da nova realidade além-mar. Não será
então por acaso que a novidade e estranheza deste animal o
transformaram no símbolo não só do Brasil, mas também da
América, pelo que aparece pintado com muita frequência em
mapas.98 Só uma natureza prodigiosa poderia criar animais tão
singularmente fantásticos e diferentes.
Notícia, op. cit., p. 176.
Um exemplo da frequência da representação do tatu como símbolo da
América, é a que nos surge num pormenor de Americae/Pars/Meridionalis: aí
aparece-nos um tatu, encimando um escudo da América, ladeado por um
macaco e um papagaio; completam a decoração do escudo alguns íncolas, um
formoso passarinho de vivas cores, assim como alguns frutos. Cartografia
Impressa, gravura, América do Sul, c. 1656, Lisboa, Arquivo Histórico
Ultramarino, in: Carmen Radulet, Terra Brasil 1500, A viagem de Pedro Álvares
Cabral, Testemunhos e comentários, Chaves Ferreira-Publicações, S.A.,
Edição exclusiva, comemorativa do 5º Centenário da descoberta do Brasil,
Lisboa, 2000, p. 143. O tatu surge-nos igualmente no painel cujo título é
Paraíba no Brasil (1666), de Jan van Kessel, no qual, entre os vários animais
que rodeiam os dois índios aí representados, se reconhece o tatu. Jan van
Kessel: Allegorie der vier Erdteile (America), 1666; Alte Pinakothek
Munchen, in: Marília dos Santos Lopes, Coisas maravilhosas e até agora nunca
vistas – Para uma iconografia dos Descobrimentos, op. cit., p. 256.
97
98
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
67
Este animal nunca antes vislumbrado e muito abundante no
Brasil, revelava-se curiosamente de grande utilidade para a
alimentação da população, e sua pele servia como matéria prima
na confecção de bolsas. Este facto suscita ainda mais surpresa:
trata-se de um mundo estranho, mas de grande aproveitamento.
A diferença caracteriza muitas vezes a novidade. Assim, se
encontram porcos monteses, estes são descritos com interesse pelos
autores de Quinhentos, não só por serem muito abundantes, e
de várias espécies, mas também pelo seu curioso aspecto, pois
possuem uma glândula dorsal que segrega um líquido com
cheiro desagradável, glândula essa que desde logo foi
identificada pelos observadores quinhentistas como sendo o
umbigo do referido animal.
Muito parecidos com os porcos e de cor parda, alimentam-se
essencialmente de frutos. E como existem várias castas, são
também, por isso, de vários tamanhos. Têm todos uma carne
gostosa, que serve de alimento aos naturais da terra e a toda a
outra população. Afirmam ainda que o umbigo que têm nas
costas, por expelir mau cheiro, facilita o trabalho de cães e
caçadores, pois é através dele que os cães o seguem e
encontram. Como se deslocam em bandos pelo mato, os mais
bravos tornam-se extremamente perigosos.
O padre Fernão Cardim diz a seu respeito: «Estes acometem
os cães, e os homens, e tomando-os, os comem, e são tão
bravos que é necessário subirem-se os homens nas árvores para
lhes escapar, e alguns esperam ao pé das árvores alguns dias até
que o homem se desça, e por que lhes sabem esta manha,
sobem-se logo com os arcos e frechas às árvores e de lá os
matam.»99
Mas esta terra que todos descreveram como ditosa, tinha
também a capacidade de criar espécies tão extraordinariamente
novas e estranhas, que foram vistas como verdadeiros prodígios
da criação. Assim, os bugios despertaram interesse,
essencialmente pelas semelhanças físicas e comportamentais que
99
Tratados, op. cit., p. 67.
68
A NATUREZA BRASILEIRA
lhe encontraram com o homem. Bugio é o nome vulgar dado em
Portugal a várias espécies de macacos. Estes animais mereceram
especial atenção de Pêro de Magalhães de Gândavo, que se
mostrou deveras encantado e maravilhado com algumas das
suas particularidades, como sejam a cor e o cheiro agradável que
alguns exalam. O nosso autor não se afasta, no entanto, do
objectivo a que se propôs, e faz por isso uma descrição simples
e breve de algumas espécies de bugios. Apesar disso, nota-se-lhe
certa admiração e encantamento com algumas características
destes animais, que chega a comparar aos homens.
Os aquigquig são uma espécie de bugio que, de certo modo,
encantaram Cardim, que os descreveu com rigor científico,
nomeadamente no que diz respeito ao aparelho ressonante que
possuem, um órgão anexo à laringe que reforça os sons emitidos
por ela: «[...]têm uma cousa muito para notar, e é, que se põem
em uma árvore, e fazem tamanho ruído que se ouve muito
longe, no qual atura muito sem descansar, e para isto tem
particular instrumento esta casta, o instrumento é certa cousa
côncava como feita de pergaminho muito rijo, e tão rija que
serve para brunir, do tamanho de um ovo de pata e começa do
princípio da goela até junto da campainha, entre ambos os
queixos e é este instrumento tão ligeiro que em lhe tocando se
move como a tecla de um cravo».100 O comportamento destes
animais revelava-se, na opinião de Cardim, muito semelhante ao
dos homens, pois enquanto estes pregavam, deitavam muita
espuma pela boca, que ia sendo limpa por um pequeno que lhe
sucederia.
O padre Francisco Soares compara fisicamente os bugios
aquiqui a rapazes louros de dezoito ou vinte anos, e acrescenta
que se não tivessem rabo comprido podiam chamar-lhes gente
assim: «se não tiveram rabo comprido como têm, melhor lhe
chamaram gente, porque lhe não falta senão falar; têm os
braços, pés, corpo, como homem.»101 A terra brasileira revela-se
100
101
Tratados, op. cit., p. 75.
Coisas Notáveis do Brasil, op. cit., p.155.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
69
tão surpreendente nas suas potencialidades, que até surgem
animais semelhantes ao homem.
As castas de bugios são muitas, na opinião dos nossos
autores. Brandónio, nos Diálogos das Grandezas do Brasil, diz ao
seu interlocutor que, por haver tanto que contar, tem receio que
o tome por «fabuloso».
O marsupial também intrigou os autores portugueses desta
época e ainda de outras posteriores, por ser diferente, um
verdadeiro prodígio da criação. Designado pelo nome indígena,
o sarigué, é descrito como sendo um animal do tamanho de um
gato, sem pêlos, parecido com raposas, e com a particularidade
estranha de possuir uma bolsa na barriga onde transporta os
filhos. A diversidade da natureza está patente neste animal.
Gabriel Soares diz que «parem quatro e cinco e têm as tetas
junto do bolso onde os filhos mamam e quando emprenham,
geram neste bolso que está fechado e se abre quando parem
onde trazem os filhos até que podem andar com a mãe, que se
lhe fecha o bolso.»102 Esta confusão, foi comum a todos os
cronistas por nós estudados. Este animal intrigou os
observadores europeus pelas suas estranhas características
físicas.
Um outro animal estranho e com uma técnica peculiar de
defesa foi designado pelos nossos autores com diferentes
nomes, o missionário Cardim, chamou-lhe biarataca; Soares de
Sousa, jaguarecaqua; e o padre Francisco Soares, maratacaca. Este
prodigioso animal terá chamado a atenção, não pelo seu aspecto
físico mas sim por usar uma técnica de defesa que a todos
espantava, e era a de como diz Gabriel Soares de Sousa lançar
«tanta ventosidade e tão peçonhenta que perfuma desta maneira
a quem lhe fica perto [...]».103 Brandónio chamou-lhe nos Diálogos
das Grandezas do Brasil, jaratacaca, designando-o como o animal
mais estranho do mundo, pois quando é atacada larga um cheiro
de tal modo terrível, que todos os seres vivos são derrubados
102
103
Notícia, op. cit., p. 173.
Ibid., op. cit., p. 174.
70
A NATUREZA BRASILEIRA
por ele. A este propósito conta a sua experiência: «E a mim me
sucedeu, estando um dia vendo pesar açúcar, entrar na casa um
homem ao qual havia mais de sete dias que havia ticado a
ventosidade do animal, e com vir já lavado muitas vezes, cabelo
e barba feita, e outro vestido, foi tanto o mau cheiro que de si
lançou, que nos obrigou, aos que ali estávamos, a desamparar a
casa e sair fugindo para fora, com ignorarmos o caso, até que ele
próprio contou o que lhe havia sucedido.»104
Um outro animal, que devido ao seu estranho hábito em se
alimentar de formigas causou a admiração dos nossos cronistas,
que o descreveram minuciosamente, foi sem dúvida o tamanduá.
Dele dizem geralmente que tem o tamanho de um cão, ou de
uma raposa, com um rabo que terá o dobro do comprimento do
corpo, de tal modo que permite ao animal abrigar-se debaixo
dele.
Cardim compara-lhe o formato da boca ao de uma almotolia.
E terá uma forma peculiar de se alimentar, que consiste em
deitar-se ao longo de um formigueiro com a língua de fora,
recolhendo-a depois de bem cheia de formigas, e repetirá a
mesma operação, até sentir-se completamente cheio: «e deitando
a língua de fora pegam-se nela as formigas, e assim a sorve
porque não tem boca para mais que quanto lhe cabe a língua
cheia delas.»105
A preguiça, nome que lhe será atribuído pela forma
extremamente lenta de se movimentar, associada a um estranho
aspecto físico, foi outro animal que causou espanto aos
observadores quinhentistas.
Cardim será talvez aquele que a descreve de forma mais
engraçada, pois compara-lhe o rosto ao de uma mulher toucada.
No seu dizer, este é um animal feio, compara-o a um cão
perdigueiro felpudo. Ainda segundo ele, alimenta-se de folhas de
uma espécie de figueiras que não existem em Portugal, por tal
facto, não pode ir para o reino, porque logo morre.
104
105
Diálogos, op. cit., p. 177.
Tratados, op. cit., p. 70.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
71
Gabriel Soares de Sousa, descreve-a como tendo o pêlo e o
tamanho de um cão de água, de cor cinzenta, com braços e
pernas compridos mas magros, com olhos e dentes como os de
um gato. A sua forma peculiar de locomover-se despertou a
atenção dos nossos autores. Descreveram-na como
extremamente vagarosa no andar, de tal modo que os índios a
agarram com grande facilidade.
Brandónio, nos Diálogos das Grandezas do Brasil, descreve-a
como sendo um animal «de um estranho rosto e feições».106
Todos os nossos cronistas falam ainda do peixe-boi, que
embora sendo um cetáceo é considerado por eles um peixe, que
descrevem como extremamente corpulento, possuindo dois
cotos semelhantes a braços e com umas mãos sem dedos.
O missionário Cardim faz dele uma descrição minuciosa:
«Este peixe nas feições parece animal terrestre, e principalmente
boi com couro, e cabelos, orelhas, olhos e língua; os olhos são
muito pequenos em extremo para o corpo que tem; fecha-os, e
abre-os, quando quer, o que não têm os outros peixes; sobre as
ventas tem dois courinhos com que as fecha, e por elas
resfolega; e não pode estar muito tempo debaixo de água sem
resfolegar; não tem mais barbatana que o rabo, o qual é todo
redondo e fechado; o corpo é de grande grandura, todo cheio de
cabelos ruivos; tem dois braços de comprimento de um côvado
com suas mãos redondas como pás, e nelas tem cinco dedos
pegados todos uns com os outros, e cada um tem sua unha
como humana; debaixo destes braços têm as fêmeas duas
mamas com que criam seus filhos, e não parem mais que um; o
interior deste peixe, e intestinos são propriamente como de boi,
com fígados, bofes, etc. Na cabeça sobre os olhos junto aos
miolos tem duas pedras de bom tamanho, alvas e pesadas».107
Apesar do seu bizarro aspecto, os autores estudados
consideram-no muito saboroso, com um gosto semelhante ao
de carne de vaca, podendo ingerir-se salgado ou fresco.
106
107
Diálogos, op. cit. , p. 181.
Tratados, op. cit., p. 130.
72
A NATUREZA BRASILEIRA
Brandónio considera-o um peixe estranho, pois: «é
conhecido por peixe-boi, nome que lhe foi pôsto por se semelhar
no rosto quase com o mesmo animal, pôsto que é maior dois
tantos, não em ser alevantado, mas na largura e compridão,
porque em alguns desta espécie se acha mais pêso do que têm
dois bois.»108 A própria denominação espelha a dificuldade em
caracterizar
estes
seres
até
então
completamente
desconhecidos.109
Estas são as qualidades de uma terra paradisíaca, onde o
estranho e prodigioso se associam de tal modo, que até algumas
espécies se podem assemelhar e confundir com os seres
humanos.
2. Da Abundância e Variedade do Novo Mundo
Outra das qualidades que os autores portugueses descobrem
nesta natureza é a sua abundância. Assim, não só aparecem
várias e estranhas espécies, como estas existem em grande
quantidade. Por isso, quase todos os nossos cronistas,
exceptuando Gândavo, fazem referência por exemplo à
inumerável abundância de coelhos e ratos, que existindo no sertão
brasileiro serviam de alimento a todos sem distinção e seriam,
no seu dizer, muito saborosos. Esta é, de certo modo, uma
informação que nos elucida sobre a progressiva adaptação dos
sabores e dos hábitos alimentares das populações europeias
residentes no território brasileiro.
Diálogos, op. cit., p. 160.
Um outro exemplo são os Meros, designados cunapu pelos índios, que, na
opinião de Soares de Sousa, são tão grandes, que depois de mortos lhes
caberá na boca um leitão grande de seis meses. A esse propósito conta até
uma engraçada história: «e por façanha se meteu já um negrinho de três anos
dentro da boca de um destes peixes, os quais têm tamanhos fígados como
um carneiro..., e têm o bucho tamanho como uma grande cidra...; o couro
deste peixe é tão grosso como um dedo e muito gordo.» Notícia, op. cit., p.
200.
108
109
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
73
E porque eram igualmente abundantes e variadas, também as
plantas tintureiras despertaram desde o início a atenção dos
nautas portugueses, de tal modo que a primeira planta a que
Pêro Vaz de Caminha faz referência tem a ver com as pinturas
corporais dos índios: «Este, que assim os andava afastando,
trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos
peitos e espáduas e pelos quadris, coxas e pernas até abaixo, e os
vazios, com a barriga e estômago, era de sua própria cor; e a
tintura era assim vermelha que a água não lha comia nem
desfazia, antes quando saía da água era mais vermelho.» 110
A cor vai atrair os nautas portugueses, que procuravam
constantemente pigmentos para a tecelagem. A planta é o anatu
ou urucu. A esta planta tintureira se refere também Brandónio,
nos Diálogos das Grandezas do Brasil, ao dizer que a terra do Brasil
tem muitas tintas, para além do pau-brasil: «E sem tratar do pau
chamado do Brasil, por ser bem conhecido, há outra tinta tão
bôa como a que ele dá, quando não seja de vantagem, a qual é a
que chamam urucu, que dá uma tinta vermelha, maravilhosa; e
assim uns cachos que tem uma fruta semelhante a ameixas, que
se produzem de umas pacoveiras pequenas, a qual faz uma
excelente tinta, de mais transformações que um camaleão,
porque se aplica para diferentes côres, e depois de sêca dura
muito tempo, com conservar a sua tinta perfeita; outro pau
pardo a que não sei o nome, que em tudo faz o efeito da galha,
porque lançado dentro na água em rachas se, se lhe ajunta uma
pequena de caparrosa, incontinenti se tornam o pau e a água tão
negros como a tinta. Êste pau fiz experimentar no Reino, e
acharam os tintureiros ser bom para com êle se dar a primeira
tinta, sôbre que se assentam as outras; Também se faz tinta
amarela muito boa de um pau chamado tatajuba. E da fruta de
uma árvore por nome genipapo se forma uma tinta preta, o qual
fruto, com dar o sumo branco, se qualquer pessoa se untasse
com êle, ficaria na parte untada negra, e não lhe tirará a negridão
110
Carta ao Rei D. Manuel, op. cit., p. 15.
74
A NATUREZA BRASILEIRA
por espaço de alguns dias, ainda que se lave muitas vezes.» 111
Daqui se depreende da abundância da terra brasileira em plantas
que serviam para tingir.
A planta tintureira mais famosa deste território, foi sem
dúvida o pau-brasil, de tal modo que a possessão portuguesa do
Novo mundo, viria a adoptar definitivamente o seu nome. A
importância do pau-brasil, atingiu uma proporção de tal modo
acentuada na economia portuguesa e europeia, juntamente com
o açúcar, que a estes dois produtos dedicaremos atenção especial
e particular, no último capítulo deste trabalho.
O missionário Cardim refere com entusiasmo e fascínio a
abundância do ananás, e descreve esta odorífera e saborosa fruta
das terras brasílicas, afirmando: «Há tanta abundância desta fruta
que se cevam os porcos com ela, e não se faz tanto caso pela
muita abundância: e também se fazem em conserva, e cruas
desenjoam muito no mar [...]».112 Só uma terra cuja natureza
fértil e próspera faz lembrar o Jardim das Delícias poderia
produzir em tal abundância uma fruta que mesmo em épocas
posteriores foi considerada como «o rei dos frutos».
Mas também o mar e as suas imensas riquezas, os extensos e
caudalosos rios, as inúmeras lagoas e riachos são parte
integrante desta paisagem brasileira e, por isso, determinantes da
sua vasta grandeza.
Os nossos autores referem a abundância de peixes e
mariscos, e também todas as inumeráveis riquezas que advinham
da imensidão das águas brasílicas.
Logo com a carta de Pêro Vaz de Caminha ao Rei D.
Manuel, somos informados da abundância de águas nas terras
do Novo Mundo: «[...] e passaram um rio (que por aí corre água
doce) de muita água, que lhes dava pela braga, e outros muitos
com eles».113 Mais adiante confirma: «E então o capitão passou o
rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os
Diálogos, op. cit., p. 137.
Tratados, op. cit., p. 115.
113 Carta ao Rei D. Manuel, op. cit., p. 13.
111
112
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75
batéis assim a carão da terra, e fomos até uma lagoa grande de
água doce que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira
do mar é apaulada por cima, e sai a água por muitos lugares».114
Acrescenta ainda que as «águas são muitas infindas.»115
Gândavo diz a propósito dos peixes existentes nas águas do
Brasil, que são muito abundantes, saborosos e sadios, e
acrescenta que se não houvesse outro tipo de caça, ele só seria
suficiente para alimentar em abundância os moradores.
Gabriel Soares de Sousa, na sua Notícia do Brasil, descreve
mais de cem rios, designando-os não só pelos nomes atribuídos
pelos europeus, mas também pelos nomes indígenas. Na sua
descrição minuciosa e sistemática da costa brasileira, o
naturalista agricultor fala abundantemente das enormes
potencialidades das águas brasílicas. Assim, faz referência à
navegabilidade dos diferentes cursos de água; ao seu caudal e
respectivo aproveitamento para o funcionamento dos engenhos
de açúcar; à fertilidade das terras que por eles são banhadas; à
abundância de pescado e marisco; à quantidade e qualidade do
âmbar que o mar lança fora no Inverno, e que tanto intrigou os
observadores de Quinhentos.
As águas do Brasil eram também povoadas de camarões,
lagostins, caranguejos, ostras, tartarugas, tubarões. A beleza invulgar
das espécies brasileiras encantou o missionário Fernão Cardim,
de tal modo que chega a comparar a beleza dos peixes voadores
a pedras preciosas. Só uma natureza excepcional e prodigiosa
poderia criar tamanhas maravilhas.
Na sua descrição, o nosso autor alude também a diferentes
espécies de caranguejos, mexilhões, berbigões, búzios, coral branco.
Acerca deste último, diz Cardim que existe em grande
quantidade, embora seja difícil de obter, acrescentando ainda
que este coral branco é utilizado para fazer cal.
No que diz respeito aos rios, o padre Fernão Cardim fala da
abundância, formosura, claridade e salubridade das águas e ainda
114
115
Ibid., op. cit., p. 18.
Ibid., op. cit., p. 25.
76
A NATUREZA BRASILEIRA
da utilidade e abundância dos peixes de água doce, que se dão,
tal como a maior parte dos outros, como remédio aos doentes.
Dá especial atenção a um, a que os indígenas chamam jaú, que é
parecido no sabor ao solho de Espanha. Este peixe mede entre
catorze a quinze palmos, é muito gordo e saboroso, e serve
também para fazer manteiga. Cardim mostra-se maravilhado
com a abundância de peixes, nos rios do Brasil, e diz que às
vezes são tantos que se utilizam na engorda dos porcos.
Conclui dizendo que até os regatos têm camarões: «Em os
regatos pequenos há muitos camarões, e alguns de palmo e mais
de comprimento, e de muito bom gosto e sabor.»116 Mais uma
vez nos deparamos com a abundância, neste caso de espécies
das águas brasílicas, característica que reforça o carácter
paradisíaco deste Mundo Novo, repleto de recursos inimagináveis.
É bem visível mais uma vez, o deslumbramento perante a
exuberância de uma natureza abundante e variada.
3. Da Excelência da Mãe-Natureza e da Botica Natural
Esta natureza, diferente e rica em variadas espécies,
caracteriza-se ainda pela excelência das suas potencialidades.
Assim, os veados eram muitos e de várias espécies, e o jesuíta
Fernão Cardim compara-os a formosos cavalos. Só uma
natureza com uma excepcional prodigalidade e excelência podia
criar seres tão excepcionais, pois é-nos extremamente difícil
imaginar veados com o tamanho de cavalos.
Gabriel Soares de Sousa descreve três espécies: uns têm
chifres, tal como os de Espanha, outros não os têm, sendo uns
brancos e outros ruivos. O que é certo é que todos eles são bons
para comer, pois a sua carne, apesar de dura, é muito saborosa.
As suas peles são também proveitosas, uma vez que, depois de
curtidas com a casca dos mangues, ficam mais macias que as dos
veados de Espanha, e utilizam-se para confeccionar botas.
116
Tratados, op. cit., p. 152.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
77
Cardim aponta-lhes ainda uma outra utilidade, que é a de os
seus chifres e nervos servirem aos Carijós, para fazerem os bicos
das suas flechas e bolas de arremesso.
O padre Francisco Soares descreve os mais pequenos,
citando Nicolau Monardes, médico e naturalista espanhol, que
nasceu em Sevilha em 1493, aí falecendo em 1588. Apesar de
não ter estado na América, dedicou-se ao estudo das produções
naturais desse continente e através dos testemunhos de
viajantes, conseguiu formar em 1554 um pequeno Museu de
História Natural, que foi um dos mais antigos da Europa. Na
sua descrição, Francisco Soares, afirma que estes pequenos
animais são tal qual Monardes os descreve: «Há outros mais
pequenos, suaçupiranga; não têm cornos e nadam muito, [...] e
um que não tem cornos é como o pinta Monardes. Deve de ter
pedras bazares.»117 O missionário revela aqui claramente ter
conhecimento dos seus contemporâneos como Nicolau
Monardes, que, como já referimos, foi um médico e naturalista
espanhol, autor de várias obras sobre os produtos vindos da
América.
Os mangarazes serão parecidos com nozes e avelãs,
arrancando-se da terra do mesmo modo que a junça: cada pé
terá entre 200 a 300 mangarazes e tem as folhas como as dos
espinafres, mas maiores. Mais uma vez se nota a utilização dos
superlativos, que é uma constante nas descrições que os nossos
autores fazem das espécies do Novo Mundo, com certeza com o
objectivo de exaltar a excelência dos produtos brasílicos.
Do milho, diz Soares de Sousa ser produto natural do Brasil,
indicando o nome pelo qual é conhecido entre os Índios
(ubatim). Descreve-o como tendo espigas de mais de um palmo,
sendo a árvore mais alta que um homem, com a grossura das
«canas da roça» e dando em cada vara três, quatro e mais
espigas. Os índios comem-no assado, e fazem vinho com ele
cozido, com o qual, na opinião do nosso autor, se embebedam
eles, os mestiços e os brancos que têm contacto com eles. As
117
Coisas Notáveis do Brasil, op. cit., p. 152.
78
A NATUREZA BRASILEIRA
potencialidades medicinais do milho são também apontadas por
Soares de Sousa, e delas falaremos mais adiante.
Quanto às pimentas, Gabriel Soares descreve seis variedades,
dizendo que umas são do tamanho de cerejas, outras são
grandes e compridas e tornam-se vermelhas quando maduras,
outra têm um bico semelhante ao dos ervanços, ainda outras
que sendo também compridas e finas quando maduras queimam
mais do que verdes, outras, finalmente, parecidas com a
abóbora, quando verdes têm uma cor azulada e depois de
maduras ficam vermelhas.
Estas especiarias do Brasil são sempre, na opinião dos nossos
autores, iguais ou superiores às da Índia.
Ainda a propósito da pimenta, diz Brandónio, nos Diálogos das
Grandezas do Brasil, que há pimentas de muitas sortes e castas,
como por exemplo o gengibre, que segundo ele é no Brasil muito
abundante e em tudo melhor do que o da Índia; a invira, que no
seu dizer «usurpa para si o efeito que faz a pimenta, cravo e canela,
com tingir como açafrão, cousa que o não crerá senão quem o
experimentar, e tem muito bom cheiro.»118 Verificamos como na
opinião destes autores as diferentes especiarias do Brasil têm
qualidades superiores às da Índia, tanto que no dizer de
Brandónio uma só, a invira, acumulará as qualidades da pimenta,
cravo, canela e do açafrão.
No que respeita ao anil, afirma Brandónio ser tão abundante
no Brasil, que não se desinça da sua planta a terra, mas, ao
contrário do que acontece na Índia, onde «se planta e granjeia
com muito cuidado e diligência» não lhe dão qualquer
importância no Brasil, onde: «nasce sem nenhuma indústria, e a
pouco trabalho se poderá dela fazer cópia grande de anil [...]».119
Gabriel Soares, ao referir-se às palmeiras que dão os cocos, diz
que se dão melhor na Baía, do que na Índia, e exemplifica,
afirmando que, metendo-se um coco na terra, a árvore que dele
118
119
Diálogos, op. cit., p. 136-137.
Ibid., op. cit., p. 137.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
79
nasce, na Baía, dá cocos no prazo de cinco a seis anos, enquanto
que na Índia nem em vinte anos os dá.
Brandónio, um dos interlocutores dos Diálogos das Grandezas
do Brasil, dá mais uma vez testemunho da fertilidade e
abundância da terra brasileira que, quando comparada com a da
Índia, revela uma incalculável superioridade. No Brasil, a maior
parte dos produtos naturais são em tudo melhores do que na
Índia, tanto pela sua superior qualidade, como também porque
no seu cultivo e colheita não é necessário grande trabalho,
tornando-se por isso mais rentáveis.
A este respeito, também Brandónio se manifesta, afirmando
a excelência das terras brasílicas para o cultivo de todas as
espécies idas de qualquer dos territórios conhecidos dos
portugueses, e aponta, como único senão, o pouco interesse que
terão os habitantes do Brasil nesse mesmo cultivo.
Qualquer um destes autores, refere: os pepinos que, no seu
dizer, se darão melhor no Brasil que em Lisboa, pois não
precisam de ser regados nem estrumados; as abóboras de
conserva são maiores e melhores que as das ortas de Alvalade;
as melancias são também maiores e melhores que as de Espanha,
delas se fazendo uma conserva muito substancial; a mostarda
semeia-se à volta das casas nas fazendas e dá muita mostarda e
saborosa.
Quando se refere ao Brasil, também o missionário Cardim
encontra que quase tudo é melhor do que no reino, quer seja o
clima que é mais ameno, e onde por isso os homens vivem
muito mais e com menos doenças, o mar com mais abundância
de peixe sadio, ou ainda as coisas que Deus criou na terra. O
nosso autor fala também das espécies levadas para o Brasil pelos
portugueses, referindo que se dão melhor nestas terras do Novo
Mundo que nos seus locais de origem. Assim, os cavalos, vacas e
porcos eram já muito abundantes, sendo os cavalos já em
número suficiente para fornecer Angola, enquanto a carne de
vaca e a de porco é por ele considerada muito saborosa. Das
ovelhas diz que são também já muitas, e refere com graça que
algumas engordam de tal modo, que acabam por rebentar. As
80
A NATUREZA BRASILEIRA
galinhas e adens (gansos) são muitos, maiores e mais bonitos
que os de Portugal.
Verificámos que as espécies não originárias do território
brasileiro se adaptaram tão bem ou melhor a esta natureza
generosa do que nas regiões de onde procediam, tornando-se
geralmente, na opinião dos nossos autores, muito superiores,
pois produziam mais e com maior qualidade, dando a maior
parte das vezes várias colheitas no ano. As diferentes espécies
eram aqui maiores e mais saborosas que nos locais donde
provinham.
Só o padre Fernão Cardim e Gabriel Soares de Sousa se
referem ao beijupirá, considerando-o um peixe parecido com a
solha; de cor parda, terá a cabeça grande e tão gorda como o
toucinho. E, segundo opinião de Gabriel Soares, os ossos da
cabeça serão tão tenros que se desfazem na boca. O autor faz
também o inventário da quantidade de ovas que cada fêmea
pode fornecer: cada uma dará um prato grande de ovas amarelas
e gostosas. Acrescenta que, como este peixe se movimenta nos
baixios, é tarefa fácil apanhá-los com o arpão ou à linha.
As baleias mereceram também atenção especial dos nossos
cronistas. Este grande cetáceo foi tratado por todos no capítulo
dos peixes, e a atenção que lhe dedicaram deve-se não só ao
facto de ser um animal muito corpulento, mas também à ideia
que quase todos, embora revelando algumas dúvidas, referiram
de ser ela a origem do formoso e valioso âmbar. Todos estão de
acordo quanto a este ser um animal de arribação, afirmando o
missionário Cardim que a principal razão para acudirem à costa
brasileira se deve a esta ser cheia de baías, enseadas e esteiros.
A origem e o modo como aparecia o âmbar cinzento nas
praias do Brasil provocaram grande controvérsia entre os
autores quinhentistas.
Segundo Gândavo, para uns é esterco de baleia e para outros
o esperma da mesma baleia. Mas ele tem uma interpretação mais
interessante e até possivelmente um pouco lírica do fenómeno,
pois na sua opinião o âmbar será um licor que nasce em alguns
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
81
sítios do mar e constitui um manjar para as baleias, que o
comem até à embriaguez, lançando os restos para as praias.
Cardim não emite sobre o mesmo assunto qualquer opinião,
limitando-se a referir as opiniões de outros: «querem dizer que
elas deitam o âmbar que acham no mar, e de que também se
sustentam, e por isso se acha algum nesta costa; outros dizem
que o mesmo mar o deita nas praias com as grandes
tempestades e comumente se acha depois de alguma grande.»120
As baleias eram consideradas valiosas não só por produzirem,
na opinião de alguns cronistas de Quinhentos, o precioso
âmbar, mas ainda porque delas se fazia muito azeite.
Brandónio revela grandes incertezas ao tratar da proveniência
do âmbar nos Diálogos das grandezas do Brasil, afirmando
inicialmente ser um completo engano pensar-se que as baleias
produzem o âmbar. Em sua opinião, este nascerá no fundo do
mar, em recifes, e depois de partido pelas baleias e outros
peixes, o mar lança-o fora. Mais adiante faz uma ressalva ao que
acabara de dizer, afirmando que «pôsto que há poucos dias me
certificaram uma cousa que sucedeu nos limites do Rio Grande,
assaz verdadeira a qual desbarata tudo o que acima digo, acêrca
da criação do âmbar. [...] Afirmaram-me dois homens dignos de
fé e crédito, pelo haverem visto com o ôlho, que nas praias do
Rio Grande, no Cabo Negro, um morador da mesma capitania,
por nome Diogo de Almeida, [...] achara nela um pau do
comprimento de um braço e quase da mesma grossura, que o
mar lançara à costa, [...] e por este pau vinha pegado (ao modo
que o faz a resina pelas árvores) três ou quatro onças de âmbargris, muito bom, que parece que no fundo das águas se criam
também árvores da sorte daquele pau, que dão o âmbar por
resina. E se assim é, enganaram-se os que entenderam até agora
que nascia como arrecifes, e deram no alvo os que queriam que
fosse resina, porque o pau achado dá disso bastante prova.»121
120
121
Tratados, op. cit., p. 133.
Diálogos, op. cit., p. 166.
82
A NATUREZA BRASILEIRA
As águas constituíram, de facto, para o Brasil de Quinhentos
um dos factores propiciadores de algumas das suas imensas
grandezas. Por um lado, pela abundância de peixes e crustáceos,
que habitando a água doce ou salgada eram um importante
recurso na alimentação humana, sobretudo se tivermos em
conta o facto de a religião dominante, o Cristianismo, impor aos
seus habitantes, em determinadas épocas do ano, uma dieta
alimentar baseada essencialmente no consumo de peixe. Mas
ainda também porque tornavam a terra extremamente fértil,
propícia ao desenvolvimento da agricultura. Os prados sempre
verdejantes eram favoráveis a uma criação de gado também
muito valiosa. Mas as águas eram importadas sobretudo porque
constituíam factor fundamental da existência das verdadeiras
unidades industriais que eram os engenhos de açúcar. A água era
a principal força motriz dos engenhos, sendo também
fundamental para o transporte das caixas de açúcar, no
escoamento deste produto para o litoral. A abundância de água
era também um factor paradisíaco e, como vimos, constituiu
tema comum, largamente tratado por todos os cronistas que são
objecto do nosso estudo.
Além disso, todos os nossos autores, sem excepção, louvam a
excelência das saborosas, odoríferas, sumarentas, coloridas,
exóticas e utilitárias frutas deste maravilhoso e extraordinário
Mundo Novo.
Esta terra será de tal modo excelente que, na opinião de
Brandónio, superará de certo modo o Paraíso sonhado pelos
poetas. Os frutos brasileiros serão em tudo superiores aos que
os poetas imaginaram e celebraram como pertencentes aos
campos Elísios, como afirma o autor: «Mas já que imos tratando
dos frutos que os campos produzem, quero vos mostrar que são
tais estes brasilenses, que lhes ficam muito atrás os Elísios, tão
celebrados dos poetas em seus fingimentos [...]».122 Só um
território extraordinariamente fértil poderia produzir com tal
abundância e excelência, que levava os cronistas de Quinhentos
122
Diálogos, op. cit., p. 130.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
83
a compará-lo ou a elevá-lo, mesmo bastas vezes, a um nível
superior ao do Jardim das Delícias, numa tentativa de retorno
aos tempos ditosos da primeira Idade de Ouro.
A excelência das terras brasílicas revelava-se também no
vasto e excelente aproveitamento medicinal de grande parte da
sua grandiosa natureza. O território brasileiro mostrava-se cada
vez mais também como um grande fornecedor de matéria
médica exótica. Muitas das abundantes plantas, árvores e
animais, serviam de antídoto contra as várias doenças que na
época pululavam no território.
E a maioria dos cronistas portugueses da época,
particularmente os Jesuítas, deram atenção especial ao
tratamento das diferentes qualidades terapêuticas das várias
espécies brasílicas, mostrando possuir a esse respeito vastos
conhecimentos e revelando-se frequentemente maravilhados
com a grande utilidade médica das espécies brasileiras.
O padre Francisco Soares dá ao capítulo V da sua obra Coisas
Notáveis do Brasil, o seguinte título: Das ervas que Dioscórides123 não
teve conhecimento nem fez menção, nem outros autores. O missionário
revela não só o seu deslumbramento com a quantidade,
variedade e potencialidades das ervas medicinais existentes nas
terras brasílicas, como manifesta também um perfeito
conhecimento dos clássicos mais eminentes.
No presente estudo trataremos em primeiro lugar das
espécies que os nossos autores referem como medicamentos
para várias enfermidades, nomeadamente o tratamento de
feridas, boubas, postemas, sinais e resfriados.
Dioscorides nasceu em Tarsos e estudou em Alexandria, foi ele o médico
do exército romano no tempo do imperador Nero. Foi um grande nome da
medicina na sua época, descreveu cerca de seiscentas plantas, tendo também
estudado a sua acção terapêutica, quer usadas simples, quer misturadas. Foi
um nome muito divulgado e comentado no período da Renascença. Cf. J.
Caria Mendes, O Livro Commentarii de Varia Rei Medicae (Antuérpia, 1564) de
Garcia Lopes, in: A Universidade e os Descobrimentos, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, INCM, Lisboa, 2000, p.
277.
123
84
A NATUREZA BRASILEIRA
Neste rol de espécies com vastas qualidades curativas está a
árvore apelidada Copaíba, a cujo óleo o padre Cardim, Gabriel
Soares e o missionário Francisco Soares atribuem propriedades
verdadeiramente milagrosas, referindo a propósito que se revela
excelente na cura de feridas, para retirar sinais, frialdades e dores
de barriga. Todos eles afiançam também que até os animais
feridos se esfregam no tronco desta árvore para sararem as suas
feridas.
O padre Francisco Soares conta a propósito das virtudes
terapêuticas do óleo desta árvore a sua experiência pessoal
afirmando o seguinte: «testemunha sou eu que me cortaram uma
cabeça de um dedo num navio, e foi ao mar, e pus-lhe um
pequeno (bocado) deste óleo e logo sarou e fiquei são, só
escassamente se enxergava um branquinho como linha delgada
por onde foi o golpe, e não cria matéria».124 Semelhantes
maravilhas só se tornavam possíveis numa região cujas riquezas
naturais se revelavam cada vez mais extraordinárias.
A cura das boubas125 é com certeza uma preocupação dos
habitantes das terras brasílicas. A maioria dos nossos autores
refere-se com frequência às qualidades medicinais de diversas
espécies para o tratamento desta enfermidade. Ainda no que
concerne a espécies com diversas virtudes terapêuticas, diz-nos
o padre Fernão Cardim que a árvore Caarobmoçorandigba, à qual o
missionário Francisco Soares chama Caroba, tem o pau parecido
com o da China, e possui, na opinião dos dois, qualidades
medicinais para corrimentos, boubas e resfriados.
Uma árvore que o missionário Cardim descreve como tendo
a folha semelhante à dos pessegueiros de Portugal, mas que
deita um leite semelhante ao das figueiras de Espanha, é a
Curupicaígba, que tem óptimas virtudes curativas para feridas
Coisas Notáveis do Brasil, op. cit., p. 173.
As boubas, uma doença muito comum entre os indígenas do Brasil,
provocava lesões cutâneas e ósseas. Do contacto com os Ameríndios, esta
doença, a par da sífilis, acabou por ser introduzida na Europa. Cf. Jorge
Couto, A Construção do Brasil, Ameríndios, Portugueses e Africanos, Do início do
povoamento a finais de Quinhentos, Lisboa, Ed. Cosmos, 1995, pp. 326-330.
124
125
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
85
velhas e novas, tirando até o sinal que deixam, servindo
igualmente para curar boubas. O padre Francisco Soares
aconselha-a para os mesmos fins.
As folhas do Maracujá são igualmente, na opinião de Cardim,
excelente remédio na cura de chagas velhas e boubas,
acrescentando-lhe Gabriel Soares a virtude de o fruto ser
também excelente para os doentes de febres.
São também notórias as virtudes medicinais da árvore que
Cardim apelida de Ambaigba e que, numa breve descrição,
identifica como sendo uma figueira não muito grande. Gabriel
Soares designa-a pelo nome de Embaíba. Na sua opinião são de
tal modo extraordinárias as qualidades curativas do olho desta
árvore e do óleo da Copaíba, espécie a que fizemos já referência,
que, diz o autor da Notícia do Brasil, na Baía não é necessário
ocupar os cirurgiões, porque cada um é em sua casa o seu
próprio cirurgião, graças a estas duas espécies. São exemplos das
imensas potencialidades de uma natureza extraordinariamente
dadivosa.
As espécies proveitosas na cura de feridas, bostelas, boubas,
postemas, fogagem seca, sinais, sarna ou inchaços são
extensamente tratadas por Fernão Cardim, Gabriel Soares de
Sousa e pelo padre Francisco Soares. Os autores referem o
Camará, que o jesuíta Cardim afirma ser parecido com as silvas
de Portugal, com uma flor muito formosa parecida com um
cravo amarelo almiscarado. A água de cozer esta planta tem, na
opinião dos autores Fernão Cardim e Gabriel Soares, virtudes
medicinais na cura das doenças atrás mencionadas.
As potencialidades do Jenipapo são mais uma vez postas em
evidência, quando os nossos cronistas lhe atribuem igualmente
excelentes virtudes terapêuticas. Tanto o naturalista Gabriel
Soares, como o missionário Cardim referem que é utilizado pelo
gentio na cura das bostelas das bubas.
O fruto mais formoso, excelente e exótico das terras
brasílicas era com toda a certeza o Ananás possuía também, na
opinião dos cronistas portugueses de Quinhentos, excelentes e
vastas virtudes terapêuticas. Assim, estaria indicado, nas
86
A NATUREZA BRASILEIRA
opiniões de Gabriel Soares e do missionário Francisco Soares,
para curar feridas, pois no seu dizer “come a carne podre.” O
padre Cardim indica-o ainda como excelente remédio para
doentes de pedra, e também para resolver problemas de enjoos
no mar. Serviria ainda, segundo o missionário Francisco Soares,
na cura das mordeduras de cobra, pois para além de fazer deitar
a peçonha, tinha também a virtude de curar a ferida. A natureza
excelente e diversa desta terra verdadeiramente prodigiosa era de
um aproveitamento extraordinário.
Para além das virtudes medicinais do ananás, na cura da dor
de pedra, os nossos autores indicam também com as mesmas
qualidades, para alívio da referida dor, o chamado peixe-boi. Este
animal possui uma assinalável importância no campo medicinal,
pois as duas pedras que tem junto aos miolos, são, como diz o
padre Fernão Cardim, «único remédio para dor de pedra, porque
feita em pó e bebida em vinho, ou água, faz deitar a pedra,
como aconteceu que dando-a a uma pessoa, deixando muitas
outras experiências, antes de uma hora botou uma pedra como
uma amêndoa e ficou sã estando dantes para morrer.»126
A natureza brasílica revela-se constantemente pela sua
prodigalidade. Os autores portugueses de Quinhentos falam-nos
igualmente de muitas outras espécies existentes nas terras
brasílicas e que possuem excelentes qualidades curativas para o
fígado, dores de dentes, estômago, chagas da boca, dores de
cabeça e câmaras de sangue.
O missionário Fernão Cardim refere, maravilhado, as
virtudes de uma árvore a que chama Iabigrandi, que na sua
opinião teria sido descoberta há muito pouco tempo e da qual
os estudiosos dos assuntos da Índia dizem ser o betele (planta
existente na Índia). As suas folhas são, na opinião do nosso
missionário, «o único remédio para as doenças de fígado, e
muitos neste Brasil sararam já de mui graves enfermidades do
fígado, comendo delas.»127 A raiz de uma segunda variedade de
126
127
Tratados, op. cit., p. 130.
Ibid., op. cit., p. 104.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
87
betele, mais pequena, servirá, na opinião do mesmo autor, para
curar dores de dentes: «metendo-a na cova deles queima como
gengibre.»128 Uma natureza tão extraordinariamente excelente
era verdadeiramente característica dos maravilhosos cenários
que os autores medievais tanto tinham exaltado.
Ainda no que concerne às espécies com qualidades curativas
para o fígado e dores de dentes o naturalista agricultor Gabriel
Soares de Sousa fala-nos da Jaborandiba, que tudo leva a crer seja
a mesma que o missionário Fernão Cardim descreve como
Iabigrandi, pois a descrição e qualidades medicinais são muito
semelhantes. Gabriel Soares afirma que quem esteve na Índia
lhe chama betele, sendo a água das folhas cozidas medicinal para
o fígado. O autor acrescenta ainda que: «Quem se lava com estas
cozidas nas partes eivadas do fígado, lhas cura em poucos
dias.»129 As suas folhas mastigadas são também boas para as
dores de dentes.
O padre Francisco Soares fala também das qualidades
medicinais da espécie que designa por Bétele-da-Índia – Jaborandi,
afirmando que existe no Brasil em tal quantidade «que se podem
carregar navios nos brejos e onde há água».130 Adianta ainda que
é óptimo remédio para o fígado, câmaras de sangue e dores de
dentes.
Uma outra espécie que possuirá virtudes para curar doenças
do fígado é a fruta que o naturalista Soares de Sousa designa por
Curuanha, afirmando que tanto se ingere crua como assada,
sendo de qualquer forma excelente farmacopeia para o fígado.
Para alívio das doenças de estômago, os nossos autores
indicam também algumas excelentes espécies, nomeadamente a
Ambaigtinga, o Caju e a Erva Santa ou Tabaco. O missionário
Fernão Cardim identifica a Ambaigtinga como figueira do inferno,
afirmando que se encontra nas aldeias ou casas abandonadas. E
ao referir-se ao seu aproveitamento medicinal diz que, segundo
Ibid., op. cit., p. 104.
Notícia, op. cit., p. 140.
130 Coisas Notáveis, op. cit., p. 177.
128
129
88
A NATUREZA BRASILEIRA
o médico e naturalista espanhol Monardes, têm grande virtude,
sendo as folhas boas para cólicas do estômago.
Uma fruteira que para além do seu exotismo e excelente
sabor possui igualmente, na opinião abalizada de Gabriel Soares
de Sousa, amplas virtudes medicinais é o Caju. Afirma o
cronista, que para além de ser óptimo remédio para o estômago,
é igualmente excelente medicina para o fastio, hálito e digestão.
A chamada erva santa ou tabaco foi amplamente descrita pelos
autores portugueses de Quinhentos, que a designaram deste
modo pelas enormes virtudes medicinais que lhe atribuíram.
Assim, o missionário Manuel da Nóbrega foi o primeiro a
elogiar-lhe as virtudes terapêuticas, e o padre Fernão Cardim
refere-a em termos francamente elogiosos, sendo na sua opinião
remédio para várias doenças, tais como feridas ou catarros, mas
principalmente para as doenças do estômago, para a asma e
dores de cabeça. Cardim afirma que beber o fumo da erva santa
constitui uma das delícias e mimos das terras brasílicas, pelo que
é utilizada por índios e portugueses, como acrescenta: «são
todos os naturais, e ainda os Portugueses perdidos por ela, e têm
por grande vicio estar todo o dia e noite deitados nas redes a
beber fumo, e assim se embebedam dela, como se fora vinho.»131
Alguns anos mais tarde, também um dos interlocutores de os
Diálogos das Grandezas do Brasil, Brandónio, louva as virtudes
medicinais do tabaco ou erva santa.
No que concerne a medicinas para o alívio das dores de
cabeça, os nossos autores indicam também uma fruta que
designam por pino, à qual atribuem excelentes qualidades
terapêuticas para o referido mal.
As câmaras de sangue incomodaram com certeza os
habitantes do Brasil de Quinhentos, de tal modo que todos os
nossos autores referem cuidadosa e longamente várias das
medicinas que consideram úteis para o alívio do referido mal.
Assim a fruta igbacamuci, semelhante aos marmelos, com a forma
de uma panela ou pote, tem dentro umas pequenas sementes
131
Tratados, op. cit., p. 124.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
89
que, na opinião do padre Fernão Cardim, são excelente remédio
para câmaras de sangue.
Um outro remédio excelente para a mesma doença será, na
opinião do mesmo autor, a raiz da igpecacóaya. O nosso autor
descreve da seguinte forma a maneira de preparar a mezinha:
«esta raíz moída botada em um pouco de água se põe a serenar
uma noite toda, e pela manhã se aguenta a água com a mesma
raiz moída, e coada se bebe somente a água, e logo se faz purgar
de maneira que cessam as câmaras.»132 O peixe sapo é também
indicado pelo missionário Fernão Cardim para a cura da mesma
enfermidade.
Finalizamos este assunto com a referência às importantes
virtudes terapêuticas que o padre Fernão Cardim atribui ao
esterco do jacaré, afirmando o autor que é bom especialmente:
«para belidas», que Ana Maria Azevedo traduz para «manchas na
córnea do olho.»133
Esta é a excelência de uma natureza prodigiosa e com
aproveitamento verdadeiramente extraordinário, para benefício
da qualidade de vida dos habitantes da imensa terra brasileira.
4. Do Mantimento do Brasil a um Novo Portugal em
Terras Brasileiras
As grandezas naturais da terra brasileira são evidentes na
abundância das várias e diferentes espécies com excelentes
qualidades nutritivas; na excelente adaptação ao solo brasílico,
daquelas que os portugueses, na boa tradição de transplante das
espécies, levaram de Portugal, das Ilhas e mesmo da longínqua
Ásia, para o ambiente novo e único das terras de Vera-Cruz; e
Ibid., op. cit., p. 120.
Cf. Ana Maria Azevedo, in: Tratados da terra e Gente do Brasil, Fernão
Cardim, Transcrição do texto, introdução e notas por Ana Maria Azevedo,
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, Lisboa, 1997, p. 154.
132
133
90
A NATUREZA BRASILEIRA
nos imensos prodígios da criação, notórios nas novidades e
estranhezas desta natureza prodigiosa e belíssima de espécies
originárias do Brasil e até aí nunca observadas, nem sequer
imaginadas. A terra fértil, os bons ares, os imensos arvoredos e
águas cristalinas e abundantes geram uma infinidade de espécies
autóctones e fazem com que as de outros mundos se
desenvolvam de tal modo que são a maior parte das vezes mais
abundantes e excelentes no Brasil do que nas suas terras de
origem.
Esta natureza grandiosa, diversa e exótica foi tratada pelos
autores que se integram no âmbito do nosso estudo, com maior
ou menor especificidade, minuciosidade e rigor, conforme as
épocas em que o fizeram e as finalidades e interesses que os
moveram. Mas a motivação prática constituía um dos anseios da
época, um dos interesses inerentes aos Descobrimentos e à sua
motivação económica e era por isso natural que, ao descreverem
os seres vivos os cronistas os apreciassem não só pela sua beleza
ou exotismo mas também pelo seu valor como recursos.134
Todos os autores por nós analisados vão interessar-se, por isso,
também pelas diferentes espécies brasílicas e analisar o seu valor
como recursos alimentares e outros.
A mandioca é considerada pelos cronistas portugueses de
Quinhentos como o mantimento do Brasil, dedicando-lhe todos
eles, a partir de Gândavo, extensas descrições. Chamam a
atenção para as suas qualidades nutritivas, mas também para o
perigo que pode constituir se preparada e consumida sem se
terem em conta os devidos cuidados na sua preparação.
Magalhães de Gândavo faz, no seu texto, uma descrição
pormenorizada da mandioca e chama a atenção para as suas
funções alimentares, dizendo que, porque não semeiam nem se
dá outro mantimento no Brasil, come-se, em lugar do pão, a
farinha de pau. Descreve com cuidado esta planta desconhecida e
põe em evidência os elementos tóxicos contidos na sua raiz.
134 Cf. Carlos Almaça, «Os Portugueses do Brasil e a Zoologia Pré-Lineana»,
in: A Universidade e os Descobrimentos, INCM, Lisboa, 1993, p. 192.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
91
Gabriel Soares de Sousa, dedica-lhe seis capítulos, consideraa o principal mantimento do Brasil e o mais substancial. O
nosso autor descreve-a pormenorizadamente, afirmando, que
enquanto uma casta é parecida com inhames e batatas, outra terá
a rama estreita como a do sabugueiro, e uma outra como a da
parra, mas com um verde mais escuro, com os pés compridos e
vermelhos como os das parreiras. De seguida, dá uma
informação sobre as diferentes maneiras de a plantar, e sobre as
suas diferentes castas. Explica a utilidade da mandioca e o modo
de a tornar comestível: «[...] e para se aproveitarem os Índios e
mais gentes destas raízes depois de arrancadas, rapam-nas muito
bem até ficarem alvíssimas, o que fazem com cascas de ostras e
depois de lavadas, ralam-nas em uma pedra ou ralo que para isso
têm depois de bem raladas espremem esta massa em um
engenho de palma a que chamam tupitim, que lhe faz lançar a
água que tem toda fora e fica toda esta massa toda enxuta muito
bem, da qual se faz a farinha que se come, que cozem em um
alguidar para isso feito em o qual deitam esta massa e a enxugam
sobre o fogo onde uma índia a mexe com um meio cabaço
como quem faz confeitos, até que fica enxuta e sem nenhuma
humidade e fica como cuscuz, mas mais branda e desta maneira
se come e é muito saborosa.»135
De seguida, o autor refere o facto de as mulheres portuguesas
terem inventado uma receita de filhós ou beijus com esta massa
obtida da raiz da mandioca, os quais acha muito saborosos e de
fácil digestão, acrescentando que são alimento de «gente de
primor». A adaptação a esta nova e excelente natureza é bem
real por parte dos portugueses. O desconhecimento das plantas
leva-os à observação dos exemplos dos gentios e a seguir o seu
aproveitamento da natureza.
Gabriel Soares de Sousa adianta também outra utilidade da
massa que serve igualmente para fazer tapioca, mas informa que
não é de tão fácil digestão como os beijus e acrescenta a melhor
135
Notícia, op. cit., p. 112.
92
A NATUREZA BRASILEIRA
maneira de a ingerir: «quentes e com leite têm muita graça e com
açúcar clarificado também.»136
Na sua exaltação por esta natureza, os autores não escondem,
por exemplo, a nocividade e utilidade da água da mandioca,
considerando-a a mais terrível peçonha que há no Brasil. Essa
água bebida por qualquer animal ou ser humano é mortal. Numa
natureza prodigiosa, a excelência e a beleza podem ter também
lados nocivos.137
Soares de Sousa informa ainda da existência de três tipos de
farinha de mandioca – a fresca, o carimá e a de guerra –,
indicando também os diferentes modos de obtenção dessas
farinhas. O cronista tece rasgados elogios às suas qualidades,
sendo este, no seu dizer, o melhor mantimento que se conhecia
no Brasil, exclusão feita ao trigo.
Outras plantas despertaram nos autores quinhentistas
considerados na nossa análise, especial atenção, tanto pelo
exotismo e novidade, como pelas suas potencialidades
alimentares, pois acabaram por dar origem, em épocas
subsequentes, a verdadeiras revoluções nos hábitos alimentares
dos Europeus. É o caso da vulgarização, embora tardia, do
milho e da batata, o que acabou por provocar profundas
alterações na demografia do Velho Continente.
Assim, não podiam faltar neste breve apontamento os carazes,
mangarazes, milho, feijões, amendoins, pimenta e azeites, produtos com
qualidades alimentares excepcionais e de que falam mais
pormenorizadamente Gabriel Soares de Sousa na sua Notícia do
Brasil e Brandónio nos Diálogos das Grandezas do Brasil.
Ibid., op. cit., p.112.
O autor reforça a ideia de que é coisa muito nociva, apontando mais um
exemplo dessa mesma nocividade, que é o de comer a ferrugem a qualquer
objecto metálico, facto que a pode tornar útil para certas coisas,
nomeadamente, para tirar a ferrugem de algumas armas. Gabriel Soares,
acrescenta-lhe ainda uma particularidade interessante que é a de criarem uns
bichos muito peçonhentos, que, segundo ele, serão utilizados pelas mulheres
brancas e índias quando se querem livrar dos maridos.
136
137
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
93
Dos carazes, diz Soares de Sousa serem umas raízes maiores
que batatas, que se plantam do mesmo modo. Comem-se cozidas
e assadas tal como os inhames, mas serão mais saborosos que
estes. É a abundância e excelência das espécies brasílicas.
Afirma também que os portugueses fazem da sua massa
manjares doces, acrescentando que se comem cozidos com
carne. A adaptação do gosto dos portugueses aos novos sabores
dos produtos que descobriram no Novo Mundo é evidente,
chegando ao ponto de descobrirem novas receitas para um
melhor aproveitamento das enormes potencialidades com que se
depararam.
Os mangarazes comem-se de esparregado e cozidos com
peixe, as mulheres farão com eles muitos manjares com
açúcar.138
Os feijões serão também naturais das terras brasílicas, e as
fontes descrevem-nos como sendo de várias cores, mais
compridos que os de Espanha e com a folha e a flor como as
das ervilhas. Os cronistas descrevem-nos como muito saborosos
e apontam aquelas que consideram ser as melhores maneiras de
os consumir: cozidos, secos e verdes.
Os amendoins são descritos pormenorizadamente, mas com
alguma imprecisão, pois ao contrário do que afirmam, não
nascem «nas pontas das raízes». A de Gabriel Soares é talvez a
melhor descrição quinhentista desta planta e revela que o
naturalista agricultor vê bem, mesmo faltando-lhe o rigor que
lhe pode acrescentar o especialista dos nossos dias. Quanto às
suas diferentes utilizações, o nosso autor diz que servem para
comer, acrescentando os diferentes modos de os consumir.
Com a casca, diz que sabem a «ervanços», mas quando assados e
cozidos com essa mesma casca serão muito saborosos, sendo-o
ainda mais se torrados com a casca. Indica ainda as diferentes
formas de preparação que lhe darão as mulheres portuguesas.
Notícia, op. cit., p. 118. Constata-se que a imaginação culinária das
mulheres portuguesas de Quinhentos tem um papel fulcral no
aproveitamento alimentar das espécies brasileiras.
138
94
A NATUREZA BRASILEIRA
Revelando estar bem informado quanto às práticas culinárias da
terra brasileira, refere mais uma vez a boa adaptação das
mulheres portuguesas aos novos produtos encontrados no
Brasil, afirmando que fazem dos amendoins toda a variedade de
doces que costumam fazer com amêndoas, cortando-os,
cobrindo-os com açúcar e misturando-os com os confeitos e
fazendo também pinhocas com eles.
A adaptação do paladar europeu aos sabores do Novo Mundo
é uma realidade cada vez mais evidente à medida que se avança
no tempo. Concluímos, pelo estudo das fontes coevas, que os
portugueses souberam aproveitar bem os imensos recursos
destas paragens, e facilmente adaptaram o paladar aos exóticos
produtos que encontraram. Esta abundância e variedade de
produtos alimentares era completamente nova para o europeu,
habituado desde sempre a dificuldades na obtenção de alimentos
em quantidades suficientes que lhes permitissem uma
subsistência sem sobressaltos de escassez de víveres.
Mas acerca desta terra, cujo solo fecundo e com uma
vegetação tão generosa que muitas vezes produzia sem ser
cultivada, não podiam faltar descrições sobre as mais diversas
especiarias, que na opinião dos nossos autores excediam sempre
as da Índia, quer em produtividade, quer em qualidade, nem
sequer sobre a abundância de plantas tintureiras que também
existiam em grandes quantidades, e desde o início interessaram
Caminha.
Se se referem ao valor económico e comercial das aves
brasílicas, os autores por nós analisados aludem manifestamente
ao valor alimentar da imensa variedade de aves com que
depararam nessa terra de inigualáveis riquezas.
Gabriel Soares de Sousa diz, a propósito do rio Real, que
«para cima dez ou doze léguas se pode também navegar com
barquinhos pequenos e por aqui acima é terra muito boa para se
poder povoar, porque dá muito bem todos os mantimentos que
lhe plantam e dará muito bons canaviais de açúcar, [...] pelo que
povoando-se este rio, se podem fazer nele engenhos de açúcar
porque tem ribeiras que se nele metem muito acomodadas para
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
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isso».139 O autor dá especial importância à hidrografia brasileira,
não só pela imensa quantidade de peixes que habitavam as suas
águas e pela fertilidade que proporcionavam, mas ainda porque
as águas dos rios eram vitais para o funcionamento dos
engenhos de açúcar, sendo os cursos de água necessários como
força motriz para o funcionamento dos engenhos. As águas
eram ainda fundamentais para a circulação dos barcos que
transportavam as matérias primas e as caixas de açúcar para os
navios.
As riquezas que nas terras brasílicas provinham tanto do mar
e dos rios, como das lagoas, riachos e baías, um assunto que
mereceu o interesse do padre Fernão Cardim, que dedicou
particular atenção às diferentes qualidades de peixes e ao
precioso âmbar.
Dos peixes, distinguiu os que habitavam em água salgada dos
que viviam na água doce e falou também dos peçonhentos e de
outras espécies da fauna marinha, como os caranguejos, lagartos
de água e lobos do mar. O seu gosto pelos peixes é evidente,
devido talvez à dieta alimentar, que permitia maior consumo
deste alimento do que de carne. Quando faz a comparação entre
os peixes de Portugal e os das terras brasílicas, afirma ser sua a
opinião de que estes são sempre mais sadios e saborosos.
O valor alimentar dos peixes das águas do Novo Mundo é
imenso, facto pelo qual todos os nossos autores, exceptuando
Pêro Vaz de Caminha, fazem descrições pormenorizadas das
várias espécies de pescados que abundavam nas águas brasílicas.
O naturalista agricultor Soares de Sousa chega ao ponto de
sugerir algumas indicações culinárias para tornar a carne do
peixe-boi mais saborosa: «feita toda em fêveras com sua gordura
misturada e em fresco e salpresa, de vinha-d’alhos assada parece
lombo de porco e faz-lhe vantagem no sabor; as mãos cozidas
deste peixe são como as de porco, mas têm mais que comer
[...]».140 O mesmo autor refere igualmente a melhor maneira de
139
140
Notícia, op. cit., p. 28.
Notícia, op. cit., p. 199.
96
A NATUREZA BRASILEIRA
ingerir os meros, dizendo que o «bucho» é muito saboroso
recheado de fígados do mesmo peixe, que «salpreso» é muito
saboroso.
Os nossos cronistas indicam ainda algumas qualidades de
peixes, úteis não só para serem consumidos frescos, secos e
salpresos, mas também para fabricar manteiga, banha e azeites,
com diferentes aproveitamentos culinários. Assim, o olho-de-boi,
que é parecido no tamanho e aspecto interior e exterior com os
atuns de Espanha, embora tenha os olhos semelhantes aos de
boi, é muito saboroso e dele se faz manteiga e banha como a de
porco.
O camurupig, que ocorre pela primeira vez num texto
português na História da Província de Santa Cruz de Pêro de
Magalhães de Gândavo,141 para além de ser utilizado na
alimentação, serve também para fazer manteiga. Cardim não
aconselha, no entanto, que se ingira este peixe, pois tem muitas
espinhas, tornando-se perigoso para quem o consome.
No que diz respeito aos peixes identificados como
semelhantes aos europeus, a opinião comum aos nossos
cronistas, era que os das águas brasílicas os excediam geralmente
em sabor, qualidade e excelência.
Os tubarões, embora descritos como extremamente perigosos,
são também assinalados por Cardim pelas suas utilidades, quer
pelo azeite que dão, quer pelos dentes, utilizados pelos Índios na
elaboração de flechas, de modo a torná-las mais eficazes nas
suas funções.
No rol das frutas naturais do Brasil não podiam faltar aquelas
que, na tradição da fácil adaptação dos portugueses aos novos
sabores, eles utilizaram para confeccionar uma especialidade
grata ao seu paladar, a marmelada. Neste grupo incluímos o guti,
o qual se come cru, sendo ainda mais saboroso se, na opinião de
Gabriel Soares, for comida misturada com vinho. O autor
141 Cf. Ana Maria de Azevedo, in: Tratados da Terra e Gente do Brasil, op. cit., p.
131.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
97
acrescenta que também se come em marmelada, que será muito
saborosa.
Mas não podia faltar na descrição das frutas inéditas, com
excepcional sabor e variado aproveitamento, aquela que era
designada por curuanha. Gabriel Soares começa por descrever a
fruteira que será semelhante a vides, trepa pelas outras árvores e
tem pouca folha. A fruta come-se crua ou assada, tendo quer de
uma maneira, quer de outra o sabor e o aroma das maçãs
camoesas. Serve também para fazer marmelada muito saborosa,
com cheiro agradável a almíscar, afirmando Gabriel Soares que
quem não a conhece a confunde com «perada»142.
Decorrente da fertilidade da terra, bondade dos ares e
abundância das águas, desenvolviam-se fácil e abundantemente
no território todas as espécies idas de fora do Brasil e Gabriel
Soares de Sousa na descrição que faz do litoral brasileiro, dedica
atenção especial aos campos sempre cobertos de erva verdejante
e aos imensos cursos de água, propícios à criação de gado: «por
onde estas aldeias estão é a terra boa, aonde se dão todos os
mantimentos da terra mui bem por ser muito fresca com muitas
ribeiras de água»143
Os mantimentos da terra de que todos beneficiavam eram,
como acabámos de ver, muitos e variados, mas a terra é de tal
modo fértil e o clima do Brasil tão aprazível, que ultrapassa em
seu entender tudo o que de bom se encontra no reino. Por isso,
todos os nossos autores referem largamente a abundância de
recursos, derivados dessa mesma fertilidade da terra e
amenidade do clima, que fazia com que tudo o que era levado de
fora do Brasil se adaptasse de tal modo que se tornava melhor
do que era nos seus lugares de origem. Gabriel Soares faz,
contudo, no nosso entender, uma análise mais pormenorizada,
detendo-se com mais atenção naquilo que diz respeito à região
da Baía.
142
143
Notícia, op. cit., p. 130.
História, op. cit., p. 30.
98
A NATUREZA BRASILEIRA
O exemplo da Baía é significativo da extraordinária
abundância que caracterizava a terra brasileira, pois, no dizer de
Gabriel Soares, tudo o que foi levado para a Baía produzia mais
que nos seus sítios de origem. A exuberância da terra brasileira é
de tal ordem que as frutas brasílicas são sempre melhores que as
da Europa, mesmo quando dela são originárias.144
Assim, as uvas amadurecem durante todo o ano, sendo muito
gostosas e doces; as figueiras dão figos todo o ano, que são
grandes e saborosos; as romeiras, produzem passados dois anos
depois de se plantar um raminho e dão fruto todo o ano; as
romãs são grandes e têm um sabor maravilhoso; as laranjeiras
passados três anos de se semear a pevide, transformam-se em
árvores mais altas que homens e começam a dar laranjas, que no
dizer de Soares de Sousa «têm mui suave sabor e seu doce mui
agradável é tanto, que a camisa branca com que as vestem os
gomos, é também muito doce».145
Da flor da laranjeira faz-se no Brasil uma água muito fina e
com cheiro mais suave que a de Portugal. As limas dão-se da
mesma maneira que as laranjas, as doces são muito grandes,
formosas e saborosas, muito superiores às de Portugal, quer no
tamanho, quer no sabor. As cidreiras plantam-se de estaca,
embora dêem melhor de pevide, e dão fruto todo o ano, cidras
maiores e mais saborosas que as de Portugal. Os limões franceses
são tão grandes como as cidras de Portugal, fazem-se árvores
formosas rapidamente e dão muito fruto.
Ao mencionar as sementes de Espanha que se dão na Baía, Gabriel
Soares, nomeia uma infinidade, considerando que produzem em
muito maior quantidade sem precisarem de tantos cuidados,
sendo muito mais saborosas, maiores e de melhor qualidade. É
o louvor constante da terra brasileira, de tal modo excelente que
Cf. Maria Aparecida Ribeiro, Literatura Brasileira, Lisboa, Universidade
Aberta, 1994, p. 34.
145 Notícia, op. cit., p. 107.
144
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
99
além de produzir os deliciosos frutos nativos, torna mais
delicioso o sabor dos trazidos de fora.146
Dos peixes, distinguiu o missionário Fernão Cardim, como já
tivemos oportunidade de referir, os que habitavam em água
salgada dos que viviam na água doce. As águas da Baía
mereceram-lhe especial atenção, tanto pela beleza, como pela
variedade de espécies que mais satisfaziam o seu paladar,
afirmando que «Folgara de saber descrever a formosura de toda
esta Bahia e recôncavo, as enseadas e esteiros que o mar bota
três, quatro léguas pela terra dentro, os muito frescos e grandes
rios caudais que a terra deita ao mar, todos cheios de muita
fartura de pescados, lagostins, polvos, ostras de muitas castas,
caranguejos e outros mariscos.»147 Quando estabelece o cotejo
entre os peixes de Portugal e os das terras brasílicas, na sua
opinião estes são sempre mais sadios e saborosos.
A comparação dos peixes do Brasil com os de Portugal é
uma constante, e estas descrições da fauna marinha são tão
marcadamente rigorosas que podemos considerá-las quase
científicas, pois permitem-nos, graças aos pormenores,
identificar perfeitamente as espécies descritas e até visualizá-las e
confrontá-las com as que ainda hoje existem no actual território
brasileiro.148
O humanista e missionário Fernão Cardim afirma por
diversas vezes nos seus textos que o Brasil é «um novo
Portugal»: «dão-se pelos matos amoras de silva, pretas e brancas,
e pelos campos bredos, beldroegas, almeirões bravos e
mentrastos, não falo nos fetos, que são muitos, e de altura de
uma lança se os deixam crescer. Em fim esta terra parece um
novo Portugal.»149 O Brasil era assim para o padre Cardim, assim
146 Cf. Maria Aparecida Ribeiro, Qual Barroco? Qual Brasil, in: Claro-Escuro
4&5, Lisboa, 1991, p. 17.
147 Tratados, op. cit., p. 243.
148 Cf. Ana Maria de Azevedo, Tratados da Terra e Gente do Brasil, Transcrição
do texto, introdução e notas por Ana Maria de Azevedo, Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, op. cit., p. 29.
149 Tratados, op. cit., p. 275.
100
A NATUREZA BRASILEIRA
como para todos os nossos autores, «um novo Portugal». Os
colonos, missionários e administradores tentavam assemelhá-lo
o mais possível ao território pátrio, baptizando lugares, rios,
lagos, enseadas, montes, vales, e cidades com os nomes
portugueses, imbuídos talvez no início de um certo sentimento
de nostalgia. Porém, o que é certo é que a terra brasílica se tinha
revelado, na opinião dos coevos, como um território em tudo
muito melhor que o solo pátrio. Assim, numa atitude
maravilhada, exaltavam constantemente a extrema fertilidade e
abundância de uma terra, que por isso mesmo era, no seu dizer,
um Portugal novo: Portugal, porque as designações eram
portuguesas, mas novo por ser verdadeiramente melhor, pois
revelara-se muito superior ao primeiro, suplantando-o em todos
os aspectos.
5. Da Beleza e Exotismo do Novo Mundo
A natureza brasileira criou, como temos vindo a salientar,
espécies abundantes, excelentes e por isso, aos olhos dos
descobridores portugueses, belas: a admiração e o espanto por
esta natureza, leva a defini-la como bela. Recordemos o padre
Cardim quando, ao exaltar a formosura da Baía do Rio de
Janeiro, diz que «A cidade está situada em um monte de boa
vista para o mar, e dentro da barra tem uma baía que bem
parece que a pintou o supremo pintor e arquitecto do mundo
Deus Nosso Senhor, e assim é cousa formosíssima e a mais
aprazível que há em todo o Brasil, nem lhe chega a vista do
Mondego e Tejo; é tão capaz que terá 20 léguas em roda cheia
pelo meio de muitas ilhas frescas de grandes arvoredos, e não
impedem a vista umas às outras que é o que lhe dá graça».150
Cardim revela, pois, sinais claros de adoração por esta terra,
150
Tratados, op. cit., p. 267-268.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
101
onde até os rios são alegres: «e o rio mui alegre , cheio de muitas
flores e frutas [...]».151
Ora, esta constante admiração e reconhecimento levam os
nossos autores a exaltarem como belo o que nem sempre é
assim definido. Vejamos. A excelência da terra é tal que até as
cobras podem ser vistas como seres formosos, tal como o faz o
missionário Cardim, que a propósito da igbigboboca (cobra coral)
afirma: «Esta cobra é muito formosa, a cabeça tem vermelha,
branca e preta, e assim todo o corpo manchado destas três
cores.»152 Curiosamente, salienta igualmente o bom e suave
cheiro das jararacas.
Uma outra cobra é descrita por Cardim como sendo muito
formosa, a caninana, que no seu dizer será comprida e grossa, de
cor verde e «muito formosa». A propósito da cobra sucurijuba
diz: «Esta cobra é a mor, ou das maiores que há no Brasil, assim
na grandeza como na formosura; [...] Tem uma cadeia pelo
lombo de notável pintura e formosa [...]».153 O amor por esta
terra é de tal forma grande que o leva a admirar e respeitar tudo
o que a natureza tenha criado, procurando explicação para a
anormalidade e os perigos das espécies existentes.
Deste modo, e embora as cobras despertem medo e respeito
em Cardim, como na maioria dos nossos autores, o nosso
missionário procura tecer uma interessante analogia entre a
quantidade de ofídios e o tipo de clima do Brasil, justificando
assim a existência de espécies nocivas e perigosas: «Parece que
este clima influi peçonha, assim pelas infinitas cobras que há,
como pelos muitos Alacrás (lacraus), aranhas e outros animais
imundos, e as lagartixas são tantas que cobrem as paredes das
casas, e agulheiros delas.»154
Ibid., op. cit., p. 272.
Ibid., op. cit., p. 83.
153 Ibid., op. cit., pp. 152-153.
154 Ibid., op. cit., p. 84. Cardim, como observador e um amante e estudioso
da natureza, chama ainda a atenção para os perigos que representam as
cobras, e dá indicações sobre o que deve ser feito no caso de se ser atacado e
151
152
102
A NATUREZA BRASILEIRA
Entre outros, Cardim refere ainda o peixe voador. Descrevendo
primorosamente porque se revela encantado com a sua beleza,
indica que terá mais ou menos cerca de um palmo a palmo e
meio de comprimento, com os olhos muito bonitos e o corpo
todo pintado, de tal modo que «parecem pedras preciosas; a
cabeça também é muito formosa. Têm asas como de morcegos,
mas muito prateadas [...]. Também são bons para comer, e
quando voam alegram os mareantes, e muitas vezes caem dentro
das naus, e entram pelas janelas dos camarotes.»155 A beleza
invulgar das espécies brasileiras encantou o nosso missionário,
de tal modo que chega a comparar a beleza dos peixes voadores
a pedras preciosas, só uma natureza excepcional e prodigiosa
poderia criar tamanhas maravilhas.
Assim, se o clima e a terra do Brasil eram por um lado,
geradores de «peçonha», o que justifica a infinidade de cobras e
de outros animais «imundos», por outro são o mesmo clima e a
mesma terra os responsáveis pela beleza das aves: «Assim como
este clima influi peçonha, assim parece influir formosuras nos
pássaros, e assim como toda a terra é cheia de bosques, e
arvoredos, assim o é de formosíssimos pássaros de todo o
género de cores.»156
A beleza e exotismo das espécies brasileiras eram tais, que
extasiaram os nossos cronistas. Mas é certamente o missionário
Fernão Cardim aquele que revela maior sensibilidade na
descrição da formosa e exótica natureza brasílica. O Brasil
continuava a possuir, nas abalizadas opiniões dos nossos
autores, as maiores maravilhas do Universo. E é ao observarem
as aves dotadas de belas cores e harmoniosos sons, bem como
as lindas e coloridas plumagens, que os autores mais reforçam a
sua admiração e espanto por uma natureza perfeita e bela.
mordido por alguma. Divide-as, tal como os outros autores, em duas espécies
fundamentais: as que não têm peçonha, e as que a têm.
155 Ibid., op. cit., p. 136.
156 Tratados, op. cit., p. 84.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
103
5.1. Do Colorido Harmonioso das Paisagens Brasileiras
O Brasil é, para todos os nossos autores, muito rico também
pela beleza das cores e pelos sons maravilhosos da sua natureza
luxuriante e dotada de uma beleza às vezes quase excessiva e
exótica. Um dos aspectos retratados onde mais se evidencia esta
característica é nas sonoridades e variado colorido das aves
brasílicas.
Já Pêro Vaz de Caminha, no seu depoimento sobre a nova
terra descoberta, faz alusão às aves, que ele imagina existirem em
quantidade considerável nas terras de Vera Cruz, como
resultado da existência de enorme quantidade de arvoredos: «[...]
mas segundo os arvoredos são mui muitos e grandes e de
infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas
aves.»157
A beleza das cores e a sonoridade do canto das aves brasílicas
seduziram todos os autores quinhentistas que são objecto do
nosso estudo. Todos sem excepção se mostraram maravilhados
com as aves deste Mundo Novo, nos testemunhos escritos que
nos deixaram sobre as apaixonantes experiências que
constituíram a sua passagem e permanência nas terras brasileiras.
O humanista Gândavo inicia o tratamento das aves, referindo
que, de todos os assuntos a que se pode fazer referência na sua
história, este é o mais aprazível e formoso. Revela-se
maravilhado com «[...] a grande variedade das finas e alegres
cores das muitas aves que nesta província se criam [...]».158 Estas
cores e sons das aves brasílicas revelam a perfeição, a proporção
e o esplendor das belezas da natureza brasileira que são, sem
sombra de dúvidas, qualidades verdadeiramente paradisíacas.
Os papagaios mereceram a atenção e o apreço de todos os
autores por nós estudados, não só pela beleza da sua plumagem,
mas também pelo seu significado simbólico, pois para além de
157
158
Carta ao Rei D. Manuel, op. cit., p. 21.
História, op. cit., p. 93.
104
A NATUREZA BRASILEIRA
saberem imitar a voz humana, procediam de países remotos, da
Índia essencialmente, o que lhes emprestava, como vimos,
algum do seu mistério.159
Também Gabriel Soares de Sousa estabelece a relação entre a
grande quantidade de arvoredos existentes no Brasil e as aves
que se criam nesses mesmos arvoredos, atribuindo-lhes nomes
indígenas tal como Cardim, e comparando-as com as de
Espanha, Alemanha ou mesmo África. Revela-se
completamente seduzido com a beleza do canto das aves
brasílicas, de tal modo que dedica um capítulo aos «passarinhos
que cantam». Termina sempre a descrição de cada um deles
afirmando que «cantam muito bem», e no que diz respeito aos
muiepererus acrescenta que: «[...] cantam como rouxinóis mas não
dobram tanto como eles.»160 Símbolo de harmonia e felicidade, a
música do canto dos passarinhos era o eco da alegria celestial.
Nesta natureza tudo parecia assim estar em ordem e em
harmonia com o Deus Criador.
Do mesmo modo, Brandónio, nos Diálogos das Grandezas do
Brasil, depois de alertar o seu interlocutor para a grande
quantidade de aves do Brasil, afirma: «Nesse particular lhe
sobrepuja sumamente toda esta província, que, se me derdes
atenção, e a mim me ocorrer à memória o nome e natureza
delas, vos causará espanto; pôsto que, por muito que diga,
sempre devo de ficar curto.»161
Revela a mesma opinião acerca do rouxinol do Brasil, que não
cantará tão bem como o de Portugal: «rouxinol, pôsto que não
tão músicos como os da nossa terra, por carecerem daquele
doce dobrar e requebros, que os outros têm, porque todos os
pássaros do Brasil são faltos de semelhante suavidade [...]».162
O padre Fernão Cardim foi talvez aquele que se revelou mais
sensível aos encantos das aves brasílicas, chegando ao pormenor
Veja-se o subcapítulo 3.4.
Notícia, op. cit., p. 165.
161 Diálogos, op. cit., p. 150.
162 Ibid., op. cit., p. 152.
159
160
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
105
de lhes apontar a cor dos olhos, ou mesmo aquilo que ele
considerou os hábitos estranhos de algumas.
Assim, os guigrajúba são, na sua opinião, «um pássaro
melancólico», pois não falam, nem brincam. Revela serem
contudo muito valiosos para os índios, de tal modo que chegam
a dar por cada um deles duas pessoas.
O iapú é descrito por Cardim como sendo do tamanho de
uma pega, com o corpo preto, o rabo amarelo e gracioso,
possuindo na cabeça dois pequenos penachos semelhantes a uns
cornitos, sendo, na sua opinião, muito bonito, pois tem os olhos
azuis e o bico amarelo. Para além disto, aponta-lhe uma estranha
e interessante particularidade, que é a de ter um cheiro muito
intenso quando se zanga.
O colorido das penas do canindé encantou os autores de
Quinhentos. Soares de Sousa descreve-o com muita beleza, e de
uma forma atenta e minuciosa. Diz que é do tamanho de um
grande galo: «[...] tem as penas das pernas, barriga e colo
amarelas, de cor muito fina e as costas acatasoladas de azul e
verde e nas asas e rabo azul, o qual tem muito comprido e a
cabeça por cima azul e o redor do bico amarelo; tem o bico
preto, grande e grosso e as penas do rabo e das asas são
vermelhas pela banda de baixo.»163
Acrescenta que estas aves falam e gritam muito alto e grosso.
Mordem muito e alimentam-se de frutos. Os índios comem-lhe
a carne, apesar de ser dura, e utilizam-lhes as penas amarelas
para confecção de carapuças, e as do rabo, que têm entre três a
quatro palmos, servem-lhes «para as embagadeiras das suas
espadas.»164
Vestindo-se com as plumagens das aves, os índios brasileiros
recordam a sua estreita relação com a natureza, tornando a
presença humana colorida e bela para quem os observa.
Colorindo-se com a própria natureza, eles faziam assim parte da
mesma.
163
164
Notícia, op. cit., p. 157.
Ibid., op. cit., p. 157.
106
A NATUREZA BRASILEIRA
O guigranheéngetá cujo termo tupi significa «pássaro que fala ou
canta muito»165 é, na opinião de Cardim, uma ave muito bela, do
tamanho de um pintassilgo, com as costas e as asas azuis e o peito
e a barriga amarelos, e uma particularidade que o torna
realmente maravilhoso: um diadema amarelo que tem na testa.
No dizer do nosso autor, canta e fala muito bem, imitando os
outros pássaros. Cardim admira-lhe não só a beleza das cores,
como a sua capacidade de falar de muitas maneiras, assim como
a bela sonoridade do seu canto.
Os hábitos do tangará impressionaram vivamente Cardim,
que depois de o descrever como sendo mais ou menos do
tamanho de um pardal, de cor preta, excepto a cabeça que é de
um amarelo alaranjado muito suave, acrescenta: «[...] não canta,
mas tem uma cousa maravilhosa que tem acidentes como de
gota coral, e por esta razão o não comem os índios por não
terem a doença; tem um género de baile gracioso, um deles se
faz de morto, e os outros o cercam ao redor, saltando, e fazendo
um cantar de gritos estranhos que se ouve muito longe, e como
acabam esta festa, grita, e então todos se vão, e acabam sua
festa, e nela estão tão embebidos quando a fazem que ainda que
sejam vistos, e os espreitem não fogem».166
Cardim inicia a descrição do quereiuá afirmando que as cores
formosas da plumagem fazem estes pássaros muito estimados, e
os índios chegam por isso a dar três pessoas por uma destas
aves, utilizando as suas belas penas em adornos de várias
espécies. O autor diz que são metade azuis claros, metade azuis
escuros, tendo o peito roxo e as asas quase pretas.
Cf. Ana Maria de Azevedo, in: Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do
Brasil, Transcrição do texto, introdução e notas por Ana Maria de Azevedo,
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, op. cit., p. 89.
166 Tratados, op. cit., p. 89.
165
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
107
O guigrapónga ou pássaro «ferreiro»,167 chamou a atenção de
Cardim pela estranheza do seu canto, semelhante ao toque de
um sino.
O padre Francisco Soares descreveu também maravilhado
algumas das que ele considerou as mais belas aves brasílicas. O
colorido das suas penas e o som maravilhoso do seu canto
encantaram-no e seduziram-no, captando tanto a sua atenção
como a de todos os nossos autores de Quinhentos.
Tal como Cardim, também este missionário foi ao pormenor
de fornecer informação sobre as cores dos olhos das diferentes
aves que observou, revelando claramente um projecto de
conhecer a natureza, um exemplo de ambição de realização de
saber enciclopédico. Assim, comparando o tamanho do tucano,
ao de uma perdiz, descreve-o como sendo «[...] preto por fora e
amarelo pelo meio e por dentro vermelho; alguns têm os olhos
azuis; toda a cor é boa desta pena; os papos são amarelos e já vi
mais de quatro mil papos juntos nos Carijós; é vestido dos
naturais, alguns quando se querem vestir de festa, scilicet suas
carapuças e outras coisas; há outros mais pequenos, têm o peito
vermelho, os olhos verdes e os pés.»168
Uma particularidade que não deixa de ser de certo modo
estranha é o facto de tanto o padre Francisco Soares, como
Brandónio, nos Diálogos das Grandezas do Brasil, serem os únicos,
daqueles autores por nós analisados, que não fazem qualquer
referência ao longo e caricatural bico desta estranha ave sul
americana. Brandónio diz a seu respeito: «tucano, ave
formosíssima, emplumada de várias côres, de sorte que alegra a
vista a contemplação delas».169
Concluímos pelas expressões maravilhadas de todos os
autores analisados que esta natureza é de tal modo esplendorosa
e bela que gera felicidade e alegria em quem a observa.
Cf. Ana Maria de Azevedo, in: Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do
Brasil, op. cit., p. 90.
168 Coisas Notáveis do Brasil, op. cit., p. 162.
169 Diálogos, op. cit., p. 152.
167
108
A NATUREZA BRASILEIRA
5.2. A Festa das Frutas
Os frutos que os portugueses viram no Brasil também os
encontraram verdadeiramente paradisíacos, mas o que mais os
surpreendeu e deslumbrou foi igualmente a já referenciada
enorme quantidade de frutas com que se depararam e que não
conheciam de nenhum dos outros continentes. Assim, também
neste aspecto a terra brasileira constituía um autêntico viveiro de
maravilhas.
As saborosas, sumarentas, odoríferas e coloridas frutas
brasílicas constituíram para os europeus que aportavam às terras
do Novo Mundo uma verdadeira festa para os sentidos. Nas suas
deslumbrantes e minuciosas descrições, quase todos os autores
portugueses de Quinhentos distinguem normalmente as frutas
derivadas das ervas que são fruto e se comem, daquelas provenientes
das árvores de fruto.
Os nossos autores, sem excepção, louvam a excelência das
saborosas, odoríferas, sumarentas, coloridas, exóticas e utilitárias
frutas deste maravilhoso e extraordinário Mundo Novo.
Todos eles dão destaque particular ao ananás, que descrevem
com entusiasmo, surpresa e minúcia, recorrendo mais uma vez à
analogia para uma melhor visualização desta extraordinária
fruteira originária da América.
Os cronistas que se enquadram no âmbito do nosso estudo,
incluem o ananás no agrupamento das ervas que são fruto e se comem.
Todos lhe louvam e registam o bom e suave odor, o excelente
sabor, a abundância de sumo e a formosura.
O humanista Gândavo revela-se um verdadeiro apreciador
desta fruta, que considera a melhor do reino: «Outra fruta há
nesta terra muito melhor, e mais prezada dos moradores de
todas, que se cria em uma planta humilde junto do chão: a qual
planta tem umas pencas como de erva babosa. A esta fruta
chamam ananases e nascem como alcachofras, os quais parecem
naturalmente pinhas, e são do mesmo tamanho e alguns
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
109
maiores. Depois que são maduros, têm um cheiro mui suave, e
comem-se aparados feitos em talhadas. São tão saborosos que, a
juízo de todos, não há fruta neste reino que no gosto lhes faça
vantagem.»170
Gabriel Soares de Sousa dedica um capítulo inteiro ao ananás
e ao justificar a razão porque o descreveu em último lugar
relativamente às outras frutas, diz que tal aconteceu, porque em
sua opinião se lhe tivesse dado o primeiro lugar, ninguém
repararia nas restantes, e para além disso tinha que o tratar
isoladamente, pois no seu dizer «[...] se lhe não podia dar
companhia que convém a seus merecimentos.»171 O autor louvalhe entusiasticamente a beleza, o sabor, o aroma, e chega até a
inventariar a quantidade de sumo que cada um produzirá: «Para
se comerem os ananases hão-de-se aparar muito bem, lançandolhe a casca toda fora e a ponta de junto do olho por não ser tão
doce e depois de aparado este fruto, o cortam em talhadas
redondas como de laranja ou ao comprido ficando-lhe o grelo
que vai correndo do pé e até ao olho e quando se corta, fica o
prato cheio de sumo que dele sai como é de cor dos gomos da
laranja e alguns há de cor mais amarela e desfaz-se todo o sumo
na boca como o gomo de laranja, mas é muito mais
sumarento».172 Eis uma fruta tão excepcional,173 que serve de
excelente alimento não só ao corpo, mas também aos
sentidos.174
Gabriel Soares revela a sua predilecção pela conserva de
ananás em detrimento do fruto fresco, afirmando que esta não é
nem tão quente, nem tão húmida. A conserva de ananás servia
História, op. cit., p. 84.
Notícia, op. cit., p. 133.
172 Ibid., op. cit., p. 134.
173 Todos os nossos cronistas que descreveram o ananás lhe louvam também
as qualidades de tirar a ferrugem das espadas e facas, assim como as nódoas
da roupa, servindo igualmente para fazer conserva muito boa e saborosa, e
ainda vinhos igualmente gostosos, mas não só para as populações indígenas,
mas igualmente apreciados por todos.
174 Este fruto não só é belo, como igualmente muito utilitário.
170
171
110
A NATUREZA BRASILEIRA
talvez para colmatar o facto de esta planta não se ter aclimatado
no reino, ao contrário do que tinha acontecido na Índia, onde
por estas alturas já tinha chegado, segundo a opinião de
Cristóvão da Costa.175
Só uma terra cuja natureza fértil e próspera faz lembrar o
Jardim das Delícias, poderia produzir em tal abundância uma
fruta que mesmo em épocas posteriores foi considerada como
«o rei dos frutos». Tanto assim é que, bastante mais tarde, já nos
inícios do século XVIII, também Frei António do Rosário, na
sua obra Frutas do Brasil,176 bem elucidativa do que significava a
festa das frutas para os coevos, considera o ananás como o «Rey
dos pomos», pois a casca assemelha-se a um brocado como a
opa real, e tem formosa e grande estatura, ao que se acrescenta
um sabor delicioso.177
Ainda neste grupo Das ervas que são fruto e se comem,
referiremos uma outra igualmente apreciada pelos seus
maravilhosos e suculentos frutos: o maracujá. Este é geralmente
descrito tal como todos os outros desconhecidos até então, com
recurso à analogia relativamente ao que é já conhecido. Os
maracujás são frequentemente comparados a laranjas. Gabriel
Soares descreve-o dizendo: «dá uma flor branca muito formosa
e grande que cheira muito bem, donde nascem umas frutas
como laranjas pequenas, muito lisas por fora, a casca é da
grossura da das laranjas de cor verde clara; o que tem dentro se
come, que além de ter bom cheiro tem suave sabor [...]».178 O
maracujá é, no dizer dos autores de Quinhentos, fruta de
maravilhoso aroma e sabor, podendo não só apenas comer-se
Cit. in: Alfredo Margarido, As surpresas da flora no tempo dos Descobrimentos,
As Plantas inesperadas da América, Lisboa, Ed. Elo, 1994, p. 108.
176 O franciscano Frei António do Rosário redigiu uma imensa alegoria,
constituída por uma vistosa relação de frutos tropicais, em honra de Nossa
Senhora.
177 Frei António do Rosário, Frutas do Brasil Numa Nova, e Ascetica Monarquia,
Consagrada à Santíssima Senhora do Rosário, Lisboa, na officina de António
Pedrozo Galram, Ano de 1702, p. 1.
178 Notícia, op. cit., p. 132.
175
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
111
fresca, mas servindo igualmente para fazer conserva. Só um solo
maravilhosamente generoso e um território com uma perene
primavera dava de si espontaneamente tão saborosos e
extraordinários frutos. O maracujá com sabor e aroma tão
excepcionais era também muito abundante nas terras brasileiras.
Uma outra fruteira que os autores portugueses, residentes no
Brasil descreveram foi a pacobeira.179 Cardim considera esta planta
verdadeiramente formosa, de tal modo que faz uma analogia
interessante entre as suas folhas e o veludo de Bragança,180
afirmando que: «[...] as folhas que deita são formosíssimas e
algumas de comprimento de uma braça, e mais, todas rachadas
como veludo de Bragança, tão finas que se escreve nelas, tão
verdes, e frias, e frescas que deitando-se um doente de febres
sobre elas fica a febre temperada com sua frialdade, são muito
frescas para enramar as casas e igrejas».181
Mas neste rol de frutas exóticas, odoríferas, sumarentas e
extraordinariamente gostosas, incluiremos também algumas
daquelas que os nossos autores, a partir de Gândavo,
descreveram no capítulo das árvores de fruto.
A Pacoba ou bananeira, é constituída por cachos de vários tamanhos,
nutritiva e saborosa. No território brasileiro existem várias espécies de
bananeiras. A bananeira terá sido levada pelos portugueses de São Tomé para
o Brasil no início do século XVI. Gabriel Soares de Sousa distingue a pacoba
brasileira da banana importada de São Tomé.
180 Esta referência à indústria da seda e dos veludos de Bragança dá-nos uma
ideia de como era já próspera esta actividade que teve um importante
desenvolvimento no Nordeste Transmontano. No capítulo referente à seda,
o autor de Memórias Arqueológico–Históricas do Distrito de Bragança atesta a
antiguidade da indústria da seda no referido distrito afirmando que «Em 1475
o duque de Guimarães representou a el-rei que tendo feito contrato com Ruy
Gonçalves de Portilho e Gabriel Pinello, genovez, para lavramento da seda
em Bragança [...]» e acrescentando ainda que: «Em 1531 pedia-se ás côrtes
que as sedas que se creassem e obrassem em velludos, tafetás, retrozes e
outras obras, assim na cidade (de Bragança) como na terra, podessem ir
livremente pelo reino vender-se, [...].», in: Memórias Arqueológico-Históricas do
Distrito de Bragança, por Francisco Manuel Alves, Reitor de Baçal, Tomo II,
Tipografia Académica, Bragança, 1982, p. 452.
181 Tratados, op. cit., p. 116.
179
112
A NATUREZA BRASILEIRA
Neste capítulo aquela que pelo seu extraordinário exotismo
constituía um verdadeiro milagre da criação era o cajueiro.
Tornava-se verdadeiramente complicada a sua descrição para o
entendimento das mentalidades europeias, que não estavam
minimamente preparadas para a explicação da prodigiosa
evolução das fases de crescimento do caju. Não havia na Europa
a mais pequena notícia desta inédita planta, pelo que ninguém
podia imaginar que a prodigiosa natureza americana levasse tão
longe a fantasia na produção de frutos. Mas neste mundo
fantástico e prodigioso tudo parecia possível, porque
verdadeiramente paradisíaco. É assim que todos os autores que
a descreveram, se revelaram encantados e surpresos com
tamanho exotismo.
Gabriel Soares de Sousa descreve a árvore e o fruto apelando
mais uma vez à analogia: «Estas árvores são como figueiras
grandes, têm a casca da mesma cor e a madeira branca e mole
como figueira, cujas folhas são da feição das da cidreira e mais
macias. As folhas dos olhos novos são vermelhas e muito
brandas e frescas, a flor é como a do sabugueiro de bom cheiro
mas muito breve. [...], o fruto é formosíssimo, algumas árvores
dão fruto vermelho e comprido, outras o dão da mesma cor e da
mesma feição, mas há partes vermelhas, há outras de cor
almecegada e há outras árvores que dão o fruto amarelo e
comprido como peros-de-el-rei, mas são em tudo maiores que
peros e da mesma cor. Há outras árvores que dão este fruto
redondo e um e outro são muito gostosos e sumarentos e de
suave cheiro, os quais se desfazem todos em água.»182
O naturalista agricultor revela-nos na sua atenta e
pormenorizada descrição o enorme apreço que tem por esta
planta singular, que na sua abundância e diversidade não se
limita a produzir, como todas as conhecidas da Europa, uma só
espécie de fruta: «É para notar que no olho deste pomo tão
formoso cria a natureza outra fruta parda a que chamamos
castanha, que é da feição e tamanho de um rim de cabrito, a qual
182
Notícia, op. cit., p. 122.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
113
castanha tem a casca muito dura e de natureza calidíssima como
o miolo que tem dentro [...]. Tem esta castanha o miolo branco
tamanho como o de uma amêndoa grande, o qual é muito
saboroso e quer arremedar no sabor aos pinhões, mas é de
muita vantagem.»183 Esta terra parcialmente mítica mantinha
para a generalidade dos nossos cronistas, em particular para
Gabriel Soares, misteriosas e inegáveis possibilidades, de tal
modo que, na sua opinião, tudo no Brasil, especialmente na
região da Baía, é melhor do que o já conhecido.
Outra fruteira que chamou a atenção dos cronistas
portugueses de Quinhentos, por produzir fruto de excelente
sabor, e de tal modo leve e saudável que as pessoas não se
fartavam dele, foi a mangabeira.
Cardim revela-se encantado com a beleza da árvore, que
descreve da seguinte forma: «[...] na feição se parece com
macieira de anafega, e na folha com a de freixo; são árvores
graciosas, e sempre têm folhas verdes. Dão duas vezes fruto no
ano: a primeira de botão, porque não deitam então flor, mas o
mesmo botão é a fruta; acabada esta camada que dura dous ou
três meses, dá outra, tomando primeiro flor, a qual é toda como
de jasmim, e de tão bom cheiro, mas mais esperto».184 É mais
uma vez a visão de uma terra prodigiosamente formosa e
fertilíssima. Esta árvore era extraordinariamente abundante na
região da Baía e produzia frutos duas vezes no ano, que seriam
de cor amarelo avermelhados, semelhantes algumas vezes a
pêssegos carecas, outras a ameixas. A mangaba, fruta que não
amadurece na árvore, é extremamente aromática, saborosa e
sadia, quer verde quer em conserva, e era, na opinião de Gabriel
Soares: «de boa digestão e faz bom estômago ainda que comam
Ibid., op. cit., p. 122. Esta planta é de tal modo extraordinária nas suas
potencialidades que Cardim afirma, a propósito da goma que se lhe retira do
tronco: «A madeira desta árvore serve pouco ainda para o fogo, deita de si
goma boa para pintar, e escrever em muita abundância.»
184 Tratados, op. cit., p. 94.
183
114
A NATUREZA BRASILEIRA
muitas, cuja natureza é fria, pelo que é muito boa para os
doentes de febres por ser muito leve.»185
O missionário Cardim acrescenta ainda que os Índios se
aproveitam desta fruta para fazerem vinhos.
E o deslumbramento e surpresa é tal perante esta natureza,
que são exemplos como o da espécie designada ombu que
poderão equilibrar o hino de louvor. Esta espécie chamou a
atenção dos europeus pelos seus estranhos efeitos. A fruta seria,
na opinião do jesuíta Fernão Cardim, semelhante a ameixas
alvares, de formato redondo e cor amarela, e apesar de serem
frios e saudáveis, tanto que se utilizavam para curar os doentes
de febres, tinham no entanto uma particularidade que os tornava
de certo modo perigosos: «[...] faz perder os dentes e os Índios
que as comem os perdem facilmente».186 Mais uma vez, o
enunciado de frutos tão prodigiosos que serão simultaneamente
excelentes e nocivos, revela o ineditismo de uma natureza
esplendorosa e excepcional, onde o exótico é a regra.
Os cronistas portugueses ficaram também de certo modo
deslumbrados com uma outra fruteira que apelidaram com a
designação indígena de jaçapucaya.187 A árvore que os produzia
era uma das maiores e mais formosas da terra brasileira e tinha,
de acordo com Cardim: «[...] uma fruta como panela, do
tamanho de uma grande bola de grossura de dois dedos, com
uma cobertura por cima, e dentro está cheia de umas castanhas
como mirabolanos [...]».188 Mas a particularidade mais estranha
do fruto estaria no facto de fazer cair todos os pelos do corpo,
no caso de se comer muita quando verde. Cardim afirma a
propósito disso que «Quando estão já de vez se abre aquela
sapadoura, e cai a fruta; se comem muita dela verde, pela uma
Notícia, op. cit., p. 125.
Tratados, op. cit., p. 97.
187 Jaçapucaya ou sapucaia – é o nome de uma planta com frutos lenhosos, em
geral de forma cilíndrica quando abertos, e que apresentam a forma de uma
cuia.
188 Tratados, op. cit., p. 97.
185
186
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
115
pessoa quantos cabelos tem em seu corpo; assadas é boa
fruta».189
Uma outra fruta de certo modo exótica e também com
excelente sabor, por ter um interior tão doce como o mel, é
aquela que Gabriel Soares de Sousa denomina por piquiá. Tendo
mais ou menos o tamanho de marmelos, com a casca dura e
grossa como a de uma cabaça, era por fora «[...] de cor parda»190
e tinha o interior cheio de uma substância branca com umas
sementes misturadas semelhantes às das maçãs, e tão doce como
o mel. Sobre esta substância extremamente doce e saborosa, diz
o autor que se «sorve»,191 ajudando a refrescar no Verão. Alguns
anos mais tarde também Brandónio a refere nos Diálogos das
Grandezas do Brasil, compara-a a uma laranja que: «dentro do qual
se tira mel maravilhoso, como clarificado, que se come com
colher.»192
Só uma terra prodigiosa, com características paradisíacas
podia produzir tão naturalmente frutos de tal maneira
extraordinários, cuja doçura era comparada pelos nossos autores
à do mel.
Outra árvore de fruto tratada por todos os nossos autores, a
partir de Pêro de Magalhães de Gândavo, foi aquela que
produzia um fruto com a designação tupi de jenipapo, e se
revelou, nas descrições pormenorizadas e atentas dos nossos
cronistas, uma fruteira com características excepcionais, pelo
vasto aproveitamento que deram aos seus frutos não só os
colonos, como os indígenas naturais da terra. Esta árvore, que o
missionário Fernão Cardim descreve primorosamente, e
imbuído até de um certo encantamento, era na sua opinião «[...]
muito formosa, de um verde alegre, todos os meses muda a
folha que se parece com folha de nogueira; as árvores são
grandes, e a madeira muito boa, e doce de lavrar».193 O motivo
Ibid., op. cit., p. 97.
Notícia, op. cit., p. 129.
191 Ibid., op. cit., p. 129.
192 Diálogos, op. cit., p. 130.
193 Tratados, op. cit., p. 106.
189
190
116
A NATUREZA BRASILEIRA
edénico do verde imutável e perene das folhas está
constantemente presente nas belas descrições que os autores
portugueses de Quinhentos fazem da inédita e prodigiosa
natureza brasileira.
Gabriel Soares descreve os jenipapos como sendo do tamanho
e formato de limões, de cor esverdeada quando verdes, e pardos
e moles quando maduros. Em sua opinião «têm honesto sabor e
muito que comer com algumas pevides».194 Já para o jesuíta
Fernão Cardim, serão semelhantes no tamanho a laranjas
grandes e parecidos com marmelos ou pêras pardas. Entre as
várias utilizações, esta fruta pequena servirá para fazer conserva,
depois de grande e madura, e os gentios utilizam-lhe o sumo
para as suas pinturas corporais, como afirma Gabriel Soares:
«[...] com a qual tinta se tinge toda a nação do gentio no Brasil
em lavores pelo corpo e quando põe esta tinta em branca como
em água e como se enxuga, se faz preta como azeviche e quanto
mais a lavam mais preta se faz e dura nove dias, no cabo dos
quais se vai tirando.»195 O colorido da fruta embeleza também o
corpo dos seus autóctones, misturando-se, e tornando-se parte
integrante desta maravilhosa e extraordinária natureza.
Mas é o missionário Cardim que, na nossa opinião, faz a mais
interessante descrição sobre estas pinturas corporais feitas pelo
gentio brasileiro com a tinta do jenipapo, afirmando com certo
humor e admiração: «é dos Índios muito estimada, e com esta
fazem em seu corpo imperiais gibões, e dão certos riscos pelo
rosto, orelhas, narizes, barba, pernas e braços, e o mesmo fazem
as mulheres, e ficam muito galantes, e este é o seu vestido assim
de semana, como de festa, ajuntando-lhe algumas penas com
que se ornam, e outras jóias de osso».196
Esta terra será de tal modo excelente que, na opinião de
Brandónio, superará de certo modo o Paraíso sonhado pelos
poetas. Os frutos brasileiros serão em tudo superiores aos que
Notícia, op. cit., p. 129.
Ibid., op. cit., p. 129.
196 Tratados, op. cit., p. 107.
194
195
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
117
os poetas de outrora imaginaram e celebraram como
pertencentes aos Campos Elísios. Uma larga lista de frutos que
festejam a obra do Criador e que enternecem o olhar de quem
os saboreia gostosamente. Não admira que bastantes anos mais
tarde, já nos inícios do século XVIII, Frei António do Rosário
inclua neste rol de frutas brasileiras, a cana-de-açúcar, que
considera a «rainha das frutas do Brasil».197
Por tudo o que atrás fica dito, podemos concluir que as
grandezas do Brasil, serão: a abundância, a variedade e a
excelência de mantimentos, derivados da inumerável quantidade
e variedade de espécies autóctones existentes; a existência de
uma enorme variedade de espécies vegetais e animais trazidas
das diferentes regiões já conhecidas dos portugueses, que se
adaptaram primorosamente à terra brasileira, adaptação só
possível num território tão extraordinariamente fértil, abundante
e generoso que produzia mesmo sem ser cultivado e gerava
espécies maiores, melhores e mais abundantes que as de
qualquer outro lugar do mundo; também porque esta natureza
abundante, variada, excelente e belíssima tinha ainda a
particularidade de criar seres extraordinários, inofensivos,
desconhecidos, úteis e belos, que pelas suas particularidades,
eram verdadeiros prodígios da criação.
As verdadeiras grandezas do Brasil eram então aquelas que
advinham de uma excepcional natureza abundante, generosa e
belíssima, que assim não passou despercebida aos nossos
autores.
197
Frutas do Brasil, op. cit., pp. 46-47.
118
A NATUREZA BRASILEIRA
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
119
III – Das Grandezas e Riquezas do Brasil
Vimos no capítulo anterior como a natureza brasileira era
fértil e produtiva. Vamos agora verificar como os portugueses
tiraram partido dessa mesma natureza, alterando-a e tirando dela
muito proveito.
A primeira imagem do Brasil que desperta a atenção dos
nautas lusos são os seus imensos arvoredos, e por essa razão
serão sem dúvida as madeiras a primeira grande fonte de
rendimentos desta terra recentemente descoberta. Mas outros se
seguirão, tal como o açúcar, o tabaco, o algodão, a criação de
gado, e o mais ansiado de todos, o ouro e as pedras preciosas.
Embora o gosto e desejo de aventura, e a sede de evangelização
estivessem presentes nos espíritos dos navegantes portugueses,
também era notória a ambição de alcançar um rápido
enriquecimento. Sérgio Buarque de Holanda diz a esse
propósito que «O que o português vinha buscar era, sem dúvida,
a riqueza».198 Vejamos.
1. Verdadeiras Minas do Brasil de Quinhentos: Pau de
Tinta e Açúcar
O deslumbramento perante uma paisagem repleta de infindos
arvoredos, com todas as espécies de árvores que pareciam tocar
o céu e nunca perdiam a folhagem, é comum a todos os nossos
cronistas. Logo na viagem inaugural, Pêro Vaz de Caminha
confessa a sua dificuldade em descrever a exuberante e variada
vegetação com que se depara nas Terras de Vera Cruz, dizendo
a esse respeito: «o arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e
de tantas plumagens que não pode homem dar conta.»199
Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, José Olímpio Editora, Rio de
Janeiro, 1986, pp. 19-21.
199 Carta ao Rei D. Manuel, op. cit., p. 22.
198
120
A NATUREZA BRASILEIRA
Mas bastante mais tarde, também Brandónio, nos Diálogos das
Grandezas do Brasil, se revela completamente estupefacto com a
exuberância da vegetação brasílica, pois considera que as árvores
brasileiras são tantas e de tantas variedades que «se embaraçam
os olhos na contemplação delas, e somente se satisfazem com
dar graças a Deus de as haver criado daquela sorte.»200 Tamanho
deslumbramento só era possível com a visão destas grandezas e
excelências próprias de uma terra verdadeiramente paradisíaca e
abençoada.
Perante tão vasto arvoredo, próprio do Jardim do Éden, a
quantidade, a variedade, a excelência e a beleza das madeiras
brasílicas é uma realidade e constitui também tema
abundantemente tratado por alguns dos cronistas portugueses
de Quinhentos. O missionário Fernão Cardim fala maravilhado
das qualidades das madeiras brasílicas. Aludindo à sua
incorruptibilidade, afirma que a maior parte delas mesmo que
enterradas na terra não apodrecem, e outras depois de metidas
na água não só não apodrecem, como acabam por ficar mais
verdes.
A excelência das madeiras do Novo Mundo, e mais
propriamente do Brasil, advinha também das suas múltiplas
utilizações. Assim, encontramos, nas belas descrições das obras
dos autores por nós analisados, madeiras que eram utilizadas
para obras dos engenhos, na construção das casas e mobiliário
(as chamadas obras de primor), também no fabrico de
embarcações e remos para as mesmas, para extracção de tintas, e
finalmente aquelas que eram apreciadas pelo maravilhoso odor
que de si expeliam quando queimadas.
O naturalista agricultor Gabriel Soares de Sousa chama
«árvores reais»201 àquelas que servem para madeira, por, como
explica, delas se fazerem os engenhos de açúcar e muitas outras
obras grandiosas.
200
201
Diálogos, op. cit., p. 105.
Notícia, p. 142.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
121
A Sabigejuva ou Vinhático202 é aquela que o autor descreve em
primeiro lugar, dizendo que é uma madeira de cor amarela, que
não se corrompe e é fácil de trabalhar, e por estas razões, será
utilizada no fabrico de rodas de engenhos, casas e outras obras
de primor. Os paus maiores e ocos eram usados para fazer
canoas muito compridas, utilizando-se os maciços para fazer
tábuas de três ou quatro palmos de largura. Esta excelente
madeira só podia existir numa terra tão extraordinariamente
abençoada que não a corrompia.
Gabriel Soares viveu na Baía, por esse facto vai
preferencialmente falar das madeiras que ele considera as mais
excelentes desta região, que tão bem conheceu e amou. Assim
descreve os Cedros da Baía que o gentio apelida de Acajacatinga,
dizendo que a árvore é parecida com os Cedros das Ilhas, embora
apresentasse, quer na aparência das folhas, quer na qualidade da
madeira, significativas diferenças. A madeira é excelente porque
não se corrompe e é fácil de trabalhar. Esta é preferencialmente
usada para tábuas que se utilizam nos forros das casas e em
barcos, assim como em caixas para guardar a roupa. Nesta
última aplicação suplanta em muito a madeira de Cedro das Ilhas,
pois ao contrário daquela a madeira de Cedro da Baía perde o
cheiro, o que é excelente porque a roupa não fica com o odor
do cedro e conserva-se melhor. Às excepcionais qualidades da
madeira de cedro, refere-se também o Jesuíta Francisco Soares,
afirmando que: «um pau destes veio entre o Camumu e os
Ilhéus, donde se não sabe, acharam-no no mar, de que se fez a
Misericórdia dos Ilhéus toda, que é uma formosa casa, sem se
meter outro pau senão este e sobejou. Eu vi uma raíz que tinha
30 palmos de diâmetro.»203 Mais uma vez está evidente a certeza
202 Em Vinhático, eram realizadas algumas obras de mobiliário, sendo exemplo
disso uma mesa e um banco de ourives, pertencentes à Colecção Beatriz e
Mário Pimenta Camargo, São Paulo, in: A Construção do Brasil 1500-1825,
Brasil/brasis, cousas notáveis e espantosas, Exposição Palácio Nacional da Ajuda,
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, Lisboa, 2000, pp. 192-193.
203 Coisas Notáveis do Brasil, op. cit., p. 174.
122
A NATUREZA BRASILEIRA
de ser esta terra tão especial e excelente, no que diz respeito às
suas grandezas naturais, que suplanta mesmo neste pormenor de
conferir qualidades especiais às suas madeiras todas as outras. O
Brasil mantinha assim as suas misteriosas e inegáveis
possibilidades.
Ainda no que concerne às madeiras reais, Gabriel Soares de
Sousa descreve as qualidades e excelências do Pequií. Começa
por dizer que a árvore é grande, e descreve a madeira como
sendo: «parda estopenta, muito pesada».204 Esta madeira também
é incorruptível, sendo utilizada para diferentes obras dos
engenhos, pois não apodrece, ainda que esteja ao sol e à chuva
sobre a terra. Tem ainda uma particularidade deveras
interessante, pois quando trabalhada cheira a vinagre e está
sempre molhada, ainda que tenha sido cortada há cem anos. A
este propósito Gabriel Soares de Sousa conta que «já se viu
meter um prego por uma gangorra que havia dezasseis anos que
estava debaixo da telha em um engenho e tanto que o prego
começou a entrar para dentro, começou a rebentar pelo mesmo
furo um torno de água em fio que correu até ao chão, o qual
cheirava a vinagre».205 O Jesuíta Francisco Soares diz sobre as
excelências e formosuras desta madeira que é excelente para
fabricar leitos, acrescentando que: «tem um amarelo gracioso e
com ele se esmaltam muitas obras.»206Tamanhas maravilhas,
onde até das árvores escorre vinagre, só se tornam possíveis
numa terra tão extraordinariamente repleta de prodígios.
Muitas outras madeiras utilizadas fundamentalmente nos
engenhos são descritas por Gabriel Soares, sendo todas elas
incorruptíveis. Provêm de árvores muito grandes, fáceis de
trabalhar, e o autor chama-as geralmente pelos nomes indígenas:
a Quoaparaiva, cuja madeira é de cor vermelha e as árvores são
tão altas que dão vigas com oitenta a cem palmos de
comprimento; a Jutaipeba é também vermelha e fácil de trabalhar;
Notícia, op. cit., p. 143.
Notícia, op. cit., p. 143.
206 Coisas Notáveis do Brasil, op. cit., p. 175.
204
205
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
123
Sabucai são igualmente árvores grandes cuja madeira é também
vermelha, tendo, no entanto, uma particularidade que a torna
algo diferente das outras: é de tal modo dura que quando se
corta os machados soam como se batessem em ferro, chegando
mesmo a partir-se; a Maçarandiba é uma árvore muito alta e
direita, cuja madeira é da cor da carne do presunto e é também
muito dura, pelo que tal como as outras serve para fazer as
obras dos engenhos; Jataimandé, uma árvore de tamanho
mediano, com a madeira amarela e muito bonita, dura, mas fácil
de trabalhar, é também utilizada nas obras dos engenhos, e tal
como as anteriores também não se corrompe; Curuá, semelhante
no formato, na folha e na cor da madeira aos carvalhos, é
utilizada nas mesmas obras que as anteriores.
No que concerne às madeiras utilizadas em obras para o
fabrico das casas, elas são igualmente variadas. Assim temos a de
Ubirapiroca que é muito pesada e dura de trabalhar, e que
segundo o naturalista Gabriel Soares de Sousa era utilizada para
fabricar: «tirantes e frechais de casas».207 A Sereíba que usavam na
construção de casas, mais especificamente nas do mato e nas
dos engenhos, bem como a de Ubirarema, apesar de cheirar
muito mal. Gabriel Soares alude ao seu mau cheiro com uma
descrição que pode considerar-se quase gráfica, assim diz: «a
madeira por fora é almecegada e o âmago por dentro mui preto,
mas quando a lavram não há quem lhe sofra o fedor, porque é
pior que o de umas necessárias e chegar os cavacos ao nariz é
morrer, que tão terrível fedor têm e metendo-as no fogo se
refina mais o fedor; a estas árvores chamam os índios ubirarema
que quer dizer madeira que fede muito.»208
Gabriel Soares fala também com admiração daquelas
madeiras brasílicas que eram utilizadas para produzir «obras
delicadas», como é ocaso da árvore que apelida de conduru, que
descreve como tendo um tronco bastante grosso, branco por
fora e vermelho por dentro. A parte vermelha, embora pequena,
207
208
Notícia, op. cit., p. 147.
Notícia, op. cit., p. 151.
124
A NATUREZA BRASILEIRA
tem a particularidade de não se corromper, fazendo-se dela
mobiliário diverso, como: «leitos, cadeiras e outras obras
delicadas.»209 A madeira dos condurus novos serve para fazer
espeques para os engenhos, pois não partem.
A árvore Jacarandá é descrita pelo autor como sendo bastante
grande, cuja madeira é de cor preta «com algumas águas».210 É
muito dura mas fácil de trabalhar, dela se fabricando igualmente
obras primas. Nunca apodrece, ainda que esteja na terra ao sol e
à chuva, e tem também a particularidade de cheirar muito bem.
À preciosidade e importância desta madeira para os Europeus
alude igualmente Brandónio nos Diálogos das Grandezas do Brasil,
afirmando que é uma madeira muito apreciada em Espanha,
para confeccionar leitos e outras obras. Nesta terra maravilhosa
eram possíveis todos os prodígios da natureza, mesmo aquele de
possuir algumas castas de madeiras que se revelavam
incorruptíveis, ainda que em condições climatéricas muito
adversas.
A Jucuriaçu é, na opinião do naturalista Gabriel Soares de
Sousa, uma madeira muito formosa, que sendo de duas espécies,
têm ambas a particularidade de possuírem um bom e suave
odor, afirmando o autor a esse respeito que «na casa onde se
lavra sai o cheiro por toda a rua e os seus cavacos no fogo
cheiram muito bem, a qual madeira é muito estimada em toda a
parte pelo cheiro e formosura».211 Esta formosa e odorífera
madeira será igualmente utilizada para fabricar obras de primor.
Uma outra madeira brasílica apontada por Gabriel Soares
como servindo para fabricar obras de valor é a Mocetaíba ou o
famoso e conhecido Pau-Santo. Afirma este nosso autor que a
árvore não é muito grande, sendo a madeira bastante grossa,
dura e pesada, mas boa de trabalhar e tornear, possuindo ainda a
particularidade de exalar um muito bom e suave odor. A
Ibid., op. cit., p. 147.
Ibid., op. cit., p. 150.
211 Ibid., op. cit., p. 150.
209
210
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
125
propósito do pau-santo diz também Brandónio, nos Diálogos das
Grandezas do Brasil, que é apreciado e conhecido em todo o lado.
Não é pois de admirar, mais tarde, a grande importação de
madeiras do Brasil para realização de mobiliário, como o
comprovam os palácios europeus, assim como os Museus, e
Igrejas portugueses.212 Também a cidade de Angra terá recebido
avidamente as preciosas madeiras do Brasil que, no século
XVIII, se dirigiam para Lisboa. Estas madeiras, depois de
trabalhadas pelas hábeis mãos dos artífices, embelezaram os
interiores dos edifícios civis e religiosos desta cidade açoreana.
Assim aparecem-nos, realizados em preciosas madeiras
brasílicas, retábulos, grades de capelas, tectos em caixotões,
imagens, peças de mobiliário, sendo igualmente utilizadas em
maravilhosas soluções arquitectónico-escultóricas.213
Continuando a falar das excelências das madeiras brasílicas,
Brandónio refere um pau a que dá o nome de quiri, afirmando
ser mais duro que o ferro. Diz também com admiração que a
sua parte branca, por ser tão formosa e parecida com o marfim,
pode substituí-lo em qualquer trabalho. Ainda na opinião de
Brandónio, o interior desta madeira é também de uma
formosura inaudita: «o âmago de dentro demonstra as águas e
Para comprovar a importância que teve a madeira de pau-santo na
realização dos móveis mais ricos da Metrópole a partir do séc. XVII, veja-se a
obra de Fernanda Castro Freire, 50 Dos Melhores Móveis Portugueses, Chaves
Ferreira, Publicações S.A., Lisboa, 1995. Esta obra fornece-nos a informação
de que 30 desses móveis são realizados em pau-santo. Assim, temos toda
uma parafernália de belos móveis, executados em pau-santo, ou ainda outros
em pau-santo misturado com outras formosas madeiras exóticas, como por
exemplo o vinhático ou o pau rosa. No entanto, a obra que pela sua raridade
e beleza, nos merece menção especial, é uma Arca dos Santos Óleos, realizada
em pau-santo entalhado e adornada com ferragens de bronze dourado. Data
do séc. XVIII e pertence ao Museu do Abade de Baçal, Bragança, Inv: 1121,
op. cit., p. 88.
213 Cf. Teresa Bettencourt da Câmara, De Angra ao Brasil, (Séculos XVIXVIII), In: Revista de Estudos Barrocos, Claro/Escuro Nº 6 & 7, Quimera
Editores, Lisboa, Maio/Novembro 1991, pp. 117-121.
212
126
A NATUREZA BRASILEIRA
cores de um jaspe muito formoso».214 Madeiras tão formosas,
utilitárias e odoríferas eram com certeza encontradas somente
nestes lugares verdadeiramente excelentes.
Mas numa terra tão prodigiosa e abundantemente regada por
copiosas águas, seria de esperar que fosse também povoada de
variadas espécies de árvores que dessem a madeira indicada para
o fabrico das mais diversas embarcações. O naturalista Gabriel
Soares de Sousa descreve algumas das madeiras especialmente
indicadas para este fim. Assim, diz que a Paparaíba é uma árvore
comprida e grossa com a casca esbranquiçada que vista de longe
parece, quer pelo tamanho, quer pela cor um álamo. Tem uma
folha parecida com a da figueira, a madeira mole e oca por
dentro serve para fazer «bombas aos caravelões da costa [...]» 215
A Apeíba é uma espécie alta e direita, com a casca muito
verde e lisa e tem uma madeira muito mole, que é utilizada pelos
índios para fazer jangadas para pescar.
Uma árvore cuja madeira leve e da cor do pinheiro será
utilizada para fazer os mastros e vergas das embarcações é a
Penaíba.
Tal como no Paraíso, também nas terras brasílicas,
verdadeiras terras de eleição, se encontravam madeiras
possuidoras de odores maravilhosos. Assim, para além das já
referidas utilidades, possuíam igualmente outras virtudes,
existindo mesmo algumas, que eram unicamente admiradas pelo
excelente odor que delas se desprendia quando queimadas. O
Carunje teria um odor semelhante ao do loureiro e servia
unicamente para alimentar o fogo dos engenhos.
A Anhaibaatãa é uma árvore do tamanho e formato do
loureiro cuja madeira é mole e tem cor, cheiro e sabor a canela.
Mas, no dizer de Gabriel Soares de Sousa, «tem a quentura mais
branda e sem dúvida que parece canela e parece que se a
214
215
Diálogos, op. cit., p. 110.
Notícia, op. cit., p. 149.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
127
beneficiarem, que será muito fina porque o entrecasco dos
ramos queima mais do que o tronco da árvore.»216
Uma outra madeira brasílica que, para além de ter uma
formosa cor parda, possuía também muito bom cheiro, era a
que provinha de uma árvore pequena, a Ubirataía. Esta madeira
servia unicamente para o fogo, pois, no dizer de Soares de Sousa
«na casa onde se queima rescende o cheiro por toda a rua.»217
O bom odor era igualmente a característica fundamental da
madeira que provinha da árvore que era conhecida pelo nome
indígena de Entagapena.
Em conclusão, as madeiras brasílicas eram abundantes e
variadas pela sua quantidade e profusão de castas existentes,
excelentes nas suas diversas utilidades e características, mas
igualmente formosas na diversidade das suas cores. Existiam no
Brasil madeiras de praticamente todas as cores: amarelas,
vermelhas, negras, brancas, cor de marfim, de jaspe e de canela.
1.1. Do Pau-Brasil
Os cronistas portugueses utilizaram para a descrição da
natureza brasileira todos os lugares comuns da literatura
paradisíaca, evocando sempre nesta terra fertilíssima de clima
ameno um variado e infindável número de altíssimas árvores,
que na sua excelência nunca chegavam a perder as folhas, e que,
como Brandónio considerou nos Diálogos das Grandezas do Brasil,
produziam as mais variadas e excelentes castas de madeiras do
mundo. O autor considera-as, de tal modo abundantes e
preciosas, que as descreve da seguinte forma: «muitas e
excelentes, as melhores que há no mundo. E há tanta quantidade
das tais que não haverá homem que as possa conhecer, nem
saber-lhes o nome para as haver de nomear, de vinte partes a
uma, ainda que o tal fôsse carpinteiro, cujo ofício não seja outro
216
217
Ibid., op. cit., p. 150.
Ibid., op. cit., p. 150.
128
A NATUREZA BRASILEIRA
que cortá-las nas matas.»218 A economia brasileira foi
inicialmente dominada pelo pau-brasil, e só mais tarde o açúcar
se tornou ainda mais importante que a madeira corante.219
Sabia-se da existência de pau-brasil no Ocidente desde a
segunda viagem de Cristóvão Colombo.220 Mas o pau de tinta,
ou brasil era uma espécie já conhecida dos europeus pois
também existia na Índia. Quando em 1501, a seguir à expedição
de Pedro Álvares Cabral que tinha levado à descoberta das
novas terras da América, os portugueses realizaram uma viagem
de reconhecimento do litoral brasílico, Américo Vespúcio, que
acompanhou esta expedição, faz um relatório daquilo que vê nas
matas da costa brasileira, referindo a abundância de pau-brasil,
do seguinte modo: «e nesta costa não vimos coisa de proveito,
senão infinitas árvores de brasil [...]».221 Esta expedição trouxe
para o reino de Portugal as primeiras amostras da madeira que
iria dar o nome definitivo à Terra de Vera Cruz e, porque se
trazia com muita mais facilidade do Brasil do que da Índia, iria
tornar-se numa razão económica de peso para a futura
exploração destas terras recentemente descobertas.
Como acabamos de ver na descrição de Vespúcio,
encontrava-se pela mata do litoral brasílico enorme quantidade
de pau-brasil, sendo este também de muitas e variadas espécies.
No entanto, aquela que revelou ser de qualidade superior foi o
ibirapitanga, que tinha a altura semelhante à do carvalho e flores
brancas.222 Tanto os portugueses como os Índios preferiam-no
Diálogos, op. cit., p. 109.
Cf. Frédéric Mauro, Portugal, o Brasil e o Atlântico, Tradução de Manuela
Barreto, Imprensa Universitária, Editorial Estampa, Lisboa, 1989, p. 163.
220 O Comércio do pau-brasil, In: História da Colonização Portuguesa do Brasil,
Edição Monumental Comemorativa do Primeiro Centenário da
Independência do Brasil, Direcção e Coordenação Literária de Carlos
Malheiro Dias, Direcção Cartográfica do Conselheiro Ernesto de
Vasconcelos, Direcção Artística de Roque Gameiro, Litografia Nacional,
Porto MCMXXIII, Volume II, p. 320.
221 Amérigo Vespuci, Cartas de Viaje, ed. Luciano Formisano, Madrid, 1986, p.
131.
222 Cf. Frédéric Mauro, Portugal, o Brasil e o Atlântico, op. cit., p. 167.
218
219
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
129
por ter o tronco mais largo e o interior mais vermelho.223 Muito
mais tarde, Lamarck224 descreve o pau-brasil no Dictionnaire
Encyclopédic de Botanique da seguinte forma: «BRASILETE,
Caesalpinia, género de planta com flores polipétalas, da família
das leguminosas, que tem relação com as poncianas e as
canafístulas e que compreende árvores ou arbustos exóticos,
geralmente com espinhos e cujas folhas são duplamente
alargadas... É uma árvore que se torna muito grande e muito
grossa e cuja casca é castanha e armada de espinhos curtos e
dispersos. Os ramos são longos e curvados para terra; as folhas
são semelhantes, duplamente aladas e têm folíolos ovais, obtusas
e comparáveis às do buxo. As bagas formam cachos simples, são
matizadas de amarelo e vermelho e têm um perfume agradável.
Produzem vagens oblongas, achatadas, castanhas escuras,
exteriormente eriçadas de pequenos espinhos, que contêm
algumas sementes lisas e dum vermelho acastanhado [...]. A
madeira do tronco é vermelha, mas encontra-se coberta por um
alburno muito espesso. Esta madeira é muito pesada, muito seca
e arde com uma chama brilhante, quase sem fumo devido à sua
secura. Trabalha-se bem ao torno e recebe bem o polimento.»225
O humanista Pêro de Magalhães de Gândavo faz algumas
referências ao pau-brasil, mas essencialmente quando pretende
admoestar os portugueses para o facto de terem vulgarizado de
tal modo este nome que, embora não sendo aquele com que os
seus descobridores «baptizaram» as terras recentemente
descobertas, ter-se-ia tornado na sua designação mais corrente,
afirmando o humanista a este propósito que «Pedro Álvares
Cabral, [...] mandou alçar uma cruz no mais alto lugar de uma
Cf. O Império Luso-Brasileiro 1500-1620, coordenação de Harold Johnson e
Maria Beatriz Nizza da Silva, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira
Marques, Editorial Estampa, Dezembro de 1992, Lisboa, p. 208.
224 João Baptista Pedro António de Monet, cavaleiro de Lamarck, foi um
notável naturalista francês, nascido em 1744, publicou muitos trabalhos sobre
História Natural. In: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial
Enciclopédia, Limitada, Lisboa-Rio de Janeiro, Volume XIV, p. 595.
225 Cit. in: Frédéric Mauro, Portugal, o Brasil e o Atlântico, op. cit., p. 167.
223
130
A NATUREZA BRASILEIRA
árvore, [...] dando à terra este nome de Santa Cruz: cuja festa
celebrava naquele mesmo dia a Santa Madre Igreja (que era aos
3 de Maio). [...]. Por onde não parece razão que lhe neguemos
este nome, nem que nos esqueçamos dele tão indevidamente
por outro que lhe deu o vulgo mal considerado, depois que o
pau-da-tinta começou de vir a estes reinos. Ao qual chamaram
brasil por ser vermelho e ter semelhança de brasa, e daqui ficou
a terra com este nome de Brasil».226
A madeira cor de brasa revelou-se de tal modo importante
para a economia do reino que o rei D. Manuel a declarou desde
o início monopólio da coroa, arrendando o Brasil a Fernão de
Loronha pelo prazo de três anos, em contrato renovável,
comprometendo-se o rei a suspender as importações do paubrasil asiático. O arrendatário, obrigado a pagar um imposto
sobre a quantidade de madeira transportada, deveria ainda
descobrir 300 léguas da costa brasileira por cada ano, bem como
construir fortalezas no litoral.
A qualidade do pau vermelho aprimora-se com a
proximidade do Equador, sendo por isso mais fino no Paraíba.
Alguns autores tentam justificar a melhor qualidade do pau de
tinta de Sul para Norte. Pêro de Magalhães de Gândavo diz a
esse propósito que «o qual pau se mostra claro, ser produzido da
quentura do Sol e criado com a influência dos seus raios, porque
não se acha senão debaixo da tórrida zona: e assim, quanto mais
perto está da linha equinocial, tanto é mais fino e de melhor
tinta.»227
O pau-brasil constituiu o primeiro comércio de vulto entre o
reino e as terras brasílicas. Segundo Cá Messer, agente de
Veneza em Lisboa, viriam em cada ano para a Europa grandes
quantidades desta madeira.228 O regime de exploração do paubrasil, após ter acabado a concessão de arrendamento por dez
História, op. cit., p. 73.
Ibid., op. cit., p. 85.
228 Cit. in: Dicionário de História de Portugal, (direcção de Joel Serrão), op. cit.,
Vol. II, pp. 108-110.
226
227
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
131
anos (1506-1516), foi o de monopólio régio, posto em prática
pelo rei com recurso a agentes assalariados, assim como através
de licenças concedidas a diversos candidatos que podiam, deste
modo, colher e transportar a madeira para Lisboa, a expensas
próprias.
O negócio e importância do pau de tinta são primorosamente
descritos por Brandónio nos seus Diálogos das Grandezas do Brasil:
«O pau do Brasil é droga sua e, como tal, defeso, de modo que
ninguém pode tratar nele senão o mesmo Rei ou os que tiverem
licença sua por contrato. Antigamente era lícito negociarem
todos nêle, como pagarem á fazenda de Sua Majestade um
cruzado por quintal de saída; mas por se entender que se usava
mal desta ordem que estava dada, se revogou, para que corresse
o negócio por contrato, como hoje em dia corre, e se paga de
arrendamento por ele no Reino à fazenda de Sua Majestade
quarenta mil cruzados, pouco mais ou menos, com declaração
que os contratadores não poderão tirar em cada um ano dêste
Estado, especialmente das três capitanias que tenho apontado,
mais de dez mil quintais de pau, e quanto um ano tirassem
menos, o poderão perfazer no outro.»229
O pau-brasil revelou-se de tal modo útil e rentável que, desde
muito cedo, outros europeus começam a interessar-se pelas
terras brasileiras, fazendo-lhe visitas regulares. Os que mais
persistiram nesta fase inicial foram, sem dúvida, os franceses que
fizeram várias viagens ao Brasil, onde acabavam por carregar o
pau de tinta em quantidades consideráveis. Temos dados sobre a
primeira viagem de um barco francês, o Espoir, que terá
aportado no Brasil, em 1504. Esta viagem foi organizada por
empresários da cidade de Honfleur, uma cidade normanda,
donde partiriam futuramente muitos comerciantes com destino
ao Brasil.
Os empresários do Espoir, não tinham inicialmente como
destino a terra brasileira e sim a Ásia, cujas riquezas os tinham
maravilhado aquando de uma visita que terão efectuado a
229
Diálogos, op. cit., p. 98.
132
A NATUREZA BRASILEIRA
Lisboa. Mas as dificuldades da viagem levaram-nos a escolher o
Brasil onde trocaram os diferentes produtos que levavam por
uma considerável quantidade de pau-brasil e outras mercadorias
como papagaios, macacos, penas de pássaros exóticos, enfim,
todas elas produtos extremamente valiosos em França.
O interesse que os franceses revelavam pela Terra de Santa
Cruz devia-se fundamentalmente ao pau-brasil, pois tinha
importância primordial para a industria têxtil francesa que se
centrava na época em Rouen, não muito longe dos portos
normandos de Honfleur e Dieppe. Os ataques dos franceses
eram tão prejudiciais e causavam tanta preocupação aos
portugueses que, Abreu de Brito230 propôs ao rei, em 1591, que
fosse criado o ofício de Guarda-Mor e se construíssem cinco
fortalezas, de modo a proteger a costa brasílica dos
«luteranos».231
A indústria têxtil europeia utilizava nesta época, e na fase da
tinturaria, produtos naturais. O pau de tinta utilizava-se então na
obtenção da cor vermelha, ou de brasa. A procura crescente
deste produto devia-se essencialmente ao desenvolvimento que
na época vivia a indústria têxtil europeia.
Mas os franceses não se limitavam, quando regressavam dos
territórios lusitanos do Novo Mundo, a trazer mercadorias que o
rei português considerava monopólio seu, mas atacavam
também os navios que eram utilizados pelo monarca de Portugal
no seu comércio.232
230 Domingos de Abreu de Brito foi um alto funcionário ao serviço da coroa
que realizou em 1590-1591 uma viagem a Angola, com a finalidade de levar a
cabo um inquérito sobre a administração do falecido Governador Geral,
Paulo Dias de Novais. Publicou, como resultado, um relatório intitulado
Sumário e Descrição do reino de Angola e o descobrimento da ilha de Luanda, e da
Grandeza das capitanias do Estado do Brasil. In: Dicionário de História de Portugal,
vol. I, op. cit., p. 386.
231 Cf. Frédéric Mauro, in: Portugal, o Brasil e o Atlântico, op. cit., p. 193.
232 Cf. O Império Luso-Brasileiro 1500-1620, coordenação de Harold Johnson e
Maria Beatriz Nizza da Silva, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira
Marques, Editorial Estampa, Lisboa, 1992, pp. 213-219.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
133
Os súbditos do rei de França constituíam, pois, uma ameaça
séria às pretensões portuguesas neste território sul americano.
Era necessário colonizar a costa brasileira de modo a evitar que
os franceses se instalassem definitivamente no território, pelo
que foram para isso criadas as capitanias donatárias, à
semelhança do que tinha sido já feito nos territórios da Madeira
e dos Açores.
De entre os autores portugueses de Quinhentos por nós
analisados, aqueles que maior atenção dedicaram ao pau «cor de
brasa» foram o naturalista e próspero senhor de engenho nas
terras da Baía, Gabriel Soares de Sousa, na sua Notícia do Brasil, e
o autor de Os Diálogos das Grandezas do Brasil, Ambrósio
Fernandes Brandão. No seu relato cuidado e minucioso, Gabriel
Soares dá-nos conta das principais regiões brasílicas onde
abundava o pau de tinta, assim como do facto de os franceses se
interessarem por esta madeira com propriedades corantes,
indicando com precisão as regiões que seriam por eles mais
procuradas para a realização deste tráfico, sem esquecer de
apontar algumas soluções para a resolução deste grave
problema. No seu dizer, o pau-brasil abundaria próximo do rio
Pequeno; também existiria em grande quantidade junto ao rio
Grande, ou seja, perto do porto de Búzios; e ainda, na baía da
Traição, onde os franceses fariam muito bons carregamentos
deste pau corante, que eles tanto apreciavam e necessitavam
para a sua indústria têxtil. A esse propósito diz Gabriel Soares:
«Nesta baía fazem cada ano os franceses muito pau de tinta e
carregam dele muitas naus».233
Mas, segundo este nosso autor, era na região da vila de
Olinda, ou seja na capitania de Pernambuco, que se encontrava
o pau-brasil mais fino deste território da América do Sul, à custa
do qual, e também do açúcar, terá enriquecido muita gente:
«desta terra saíram muitos homens ricos para estes reinos que
foram a eles muito pobres, em os quais entram cada ano desta
capitania quarenta e cinco navios carregados de açúcar e pau233
Notícia, op. cit., p. 14.
134
A NATUREZA BRASILEIRA
brasil, o qual é o mais fino que se acha em toda a costa; importa
tanto este pau a Sua Majestade, que o tem agora novamente
arrendado por tempo de dez anos por vinte mil cruzados cada
ano e parece que será tão rica e tão poderosa donde saem tantos
provimentos para estes reinos que se devia ter mais conta com a
fortificação dela e não consentir que esteja arriscada a um
corsário a saquear e destruir, o que se pode atalhar com pouca
despesa e menos trabalho.»234 O pau-brasil abundará também
junto do rio Cururupe, onde se encontram os recifes de Dom
Francisco, também apelidados de porto dos franceses por, no
dizer de Gabriel Soares, «se eles costumarem acolher aqui com
suas naus à abrigada».235 Há também, na opinião do autor, muito
pau-brasil junto à cachoeira do rio São Francisco. Também no
sertão do rio Cotinguiba há grandes matas desta madeira
corante, bem como pelo sertão do rio Real. Aqui Gabriel Soares
permite-se também dar alguns conselhos para que, com pouco
esforço, se possa carregar e trazer para o reino o também
designado pau cor de brasa: «Pelo sertão deste rio há muito paubrasil que com pouco trabalho todo pode vir ao mar para se
poder carregar para estes reinos; e, para que esta costa esteja
segura do gentio, e os franceses desenganados de não poderem
vir resgatar com o gentio entre a Baía e Pernambuco, convém ao
serviço de Sua Majestade que mande povoar e fortificar este rio,
o que se pode fazer com pouca despesa de sua fazenda [...]».236
Uma terra tão abundante de produtos naturais, tão
extraordinariamente ricos e proveitosos e geradores de tantas
cobiças, deveria, na opinião de Gabriel Soares de Sousa, ser alvo
de maior atenção e protecção por parte da coroa.
Ainda alguns anos mais tarde, nos Diálogos das Grandezas do
Brasil, os dois interlocutores dedicam também especial atenção
ao famoso pau corante, tanto que quando Brandónio resolve
enumerar as seis daquelas que, na sua opinião, constituirão as
Ibid., op. cit., p. 19.
Ibid., op. cit., p. 21.
236 Ibid., op. cit., p. 27.
234
235
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
135
maiores riquezas do Brasil, coloca o pau de tinta em terceiro
lugar. As Terras de Vera Cruz serão, na opinião de Brandónio,
mais ricas e proveitosas que toda a Índia, pois em somente três
capitanias, Pernambuco, Tamaracá e Paraíba, produzia-se
açúcar suficiente para carregar todos os anos entre cento e trinta
a cento e quarenta naus, e o pau-brasil, que se levava também
todos os anos destas mesmas capitanias renderia, no seu dizer,
«mais de quarenta mil cruzados por ano, que os ministros de Sua
Majestade cobram no reino dos contratadores dele, e assim o
rendimento das alfândegas do Estado».237
Ao referir as qualidades do pau-brasil diz o mesmo
Brandónio que deste se extrai uma tinta de cor vermelha que
servirá para «tingir panos de lã e seda, e se fazer dela outras
pinturas e curiosidades».238 Lamark virá mais tarde a explicitar no
Dictionnaire Enciclopédique de Botanique as utilidades do pau-brasil:
«A madeira do Brasil é boa para as obras de torno e recebe bem
o polimento; no entanto a sua principal aplicação é na tinturaria,
onde serve para tingir de vermelho, mas é uma falsa cor que se
evapora facilmente e que não se pode empregar sem alúmen e
tártaro. É com esta madeira que se tingem de vermelho os ovos
de Páscoa, as raízes de alteia para limpar os dentes e várias
outras coisas. Do pau-brasil de Pernambuco tira-se uma espécie
de carmim por meio de ácidos; faz-se também laca líquida para
as miniaturas. E com a tinta desta madeira compõe-se um giz
avermelhado que se chama vermelhão e que serve para a
pintura».239 Lamark acrescenta sobre a qualidade da tinta do paubrasil: «A cor natural do pau-brasil, e aquela pela qual ele é mais
empregado, é o falso escarlate que não deixa de ser bela e de ter
brilho, mas um brilho muito inferior ao do escarlate de
cochinilha ou de goma laca [...]».240
Diálogos, op. cit., p. 80.
Ibid., op. cit., p. 97.
239 Cit. in: Frédéric Mauro, Portugal, o Brasil e o Atlântico, Tradução de Manuela
Barreto, Imprensa Universitária, Editorial Estampa, Lisboa, 1989, p. 198.
240 Ibid., op. cit., p. 198.
237
238
136
A NATUREZA BRASILEIRA
O pau-brasil era, nesta terra de eleição, onde quase tudo
nascia e crescia naturalmente, um dos produtos mais rendíveis
para o reino, tanto que no dizer de Bradónio existiria muita
gente no Brasil que vivia unicamente da extracção e comércio
deste produto, tendo muitos feito mesmo grandes fortunas.
O autor de os Diálogos das Grandezas do Brasil não se escusa a
dar uma explicação precisa sobre qual é a região onde o paubrasil se encontra com maior abundância, acrescentando
também alguns pormenores sobre a forma de o extrair assim:
«O modo é este: vão-no buscar doze, quinze e ainda vinte léguas
distante da Capitania de Pernambuco, aonde há o maior
concurso dêle, porque se não pode achar mais perto pelo muito
que é buscado, e ali, entre grandes matas o acham, o qual tem
uma fôlha miúda e alguns espinhos pelo tronco, e êstes homens
ocupados neste exercício levam consigo para a feitura do pau
muitos escravos da Guiné e da terra, que, a golpes de machados,
derribam a árvore, à qual, depois de estar no chão, lhe tiram
todo o branco, porque no âmago dêle está o brasil; e por êste
modo uma árvore de muita grossura vem a dar o pau que a não
tem maior de uma perna, o qual, depois de limpo, se ajunta em
rumas, donde o vão acarretando em carros por pousas, até o
porem nos passos para que os batéis o possam vir a tomar.»241
O negócio do pau de tinta dava grande proveito, tendo sido
sem sombra de dúvidas o produto mais exportado do Brasil na
primeira fase da colonização. Manteve-se, até meados do século
XVI, como a principal fonte de rendimentos brasileira, quer
para o monarca, quer para os colonos e comerciantes. E mesmo
nos começos do século XVII, Diogo de Meneses, nono
governador-geral, considerou o famoso pau corante e o açúcar
como os produtos mais valiosos do Brasil, referindo numa carta
ao rei de Portugal que «as verdadeiras minas do Brasil são açúcar
e pau-brasil».242
Diálogos, op. cit., p. 99.
Cit., in: Nova História da Expansão – O Império Luso-Brasileiro 1500-1620,
coordenação de Harold Johnson e Maria Beatriz Nizza da Silva, direcção de
241
242
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
137
Brandónio considerou o pau de tinta como a principal
exportação do Brasil, a seguir ao açúcar, acrescentando que esta
foi e é uma mercadoria com a qual «se têm feito muitos homens
ricos».243
E, ou porque os ataques dos franceses ao litoral brasílico se
intensificavam com o passar do tempo, sendo necessário
expulsá-los, ou pela diminuição dos lucros do comércio asiático
e do consequente desejo de expandir a produção de açúcar no
Atlântico, o rei D. João III vai desenvolver, cada vez mais
políticas para uma melhor e mais eficaz ocupação da terra
brasileira. Essa ocupação passava, necessariamente, pela
valorização dos solos a nível agrícola, impondo-se a mudança de
uma actividade unicamente recolectora, como era a do corte do
pau-brasil, para uma actividade produtora como por exemplo a
do cultivo da cana-de-açúcar.
O historiador João Lúcio de Azevedo considerou a história
económica portuguesa dividida em ciclos, conforme o papel
fundamental que ele considera ter tido determinado produto em
determinada época.244 Ao falarmos da história económico-social
do Brasil, falamos do ciclo do pau-brasil, do ciclo do açúcar e do
ciclo do ouro, não querendo contudo dizer que foram estes os
únicos produtos que tiveram interesse fundamental na economia
desses períodos. Entre 1500 até cerca de 1530, decorre aquele
que se designa habitualmente como «ciclo do pau-brasil»,
durante o qual o Brasil forneceu a Portugal pau-brasil,
papagaios, macacos, escravos e algum algodão.
Numa segunda fase, aquela a que vulgarmente se chama de
«ciclo do açúcar», as terras brasílicas continuarão a fornecer ao
reino o pau de tinta, para além do açúcar, que nesta fase é o
produto dominante, algumas especiarias (como o gengibre),
assim como alguns produtos do sertão (mel e cera), e o tabaco e
Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Editorial Estampa, Dezembro de
1992, Lisboa, p. 224.
243 Diálogos, op. cit., p. 99.
244 Cf. João Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Económico, Livraria Clássica
Editora, Porto, 1978.
138
A NATUREZA BRASILEIRA
a aguardente transportados para a África para trocar por
escravos. Esta ideia dos ciclos dá, na opinião de Vitorino
Magalhães Godinho, uma imagem muito simplista da realidade,
pois para além do açúcar o Brasil fornece na mesma época
outros produtos, cuja importância não é, de modo algum, menor
que a daquele.245
Como acabámos de concluir, a passagem de um ciclo para
outro não implica que o produto que no anterior ciclo dominava
as actividades económicas desapareça do mercado, significando
apenas que a sua importância passa a ser secundária
relativamente a outro produto que entretanto se tornou
dominante. É assim que durante o «ciclo do açúcar», ou seja, na
segunda metade do século XVI, o corte e comércio do paubrasil não abrandaram, antes terão mesmo aumentado. E este
aumento deveu-se a factores vários, todos eles relacionados com
a produção do açúcar. Para a expansão do cultivo da cana-deaçúcar era fundamental desbravarem-se cada vez maiores áreas
de terra. Por outro lado, e porque o Índio não era rendível,
chegavam às terras brasílicas, para trabalharem nas plantações de
cana-de-açúcar, cada vez maior número de escravos africanos,
que eram também utilizados no corte do pau-brasil. Um outro
factor que terá contribuído também para aumentar o
abastecimento do mercado no que diz respeito ao pau corante
foi com certeza a utilização dos animais de tiro no transporte,
desde o local do corte até ao rio por onde era expedido. O
aumento no corte da madeira foi de tal ordem que o monarca
temeu a desarborização, factor que o terá levado a regulamentar
esse mesmo corte.
Brandónio alude ainda ao facto de o pau-brasil ser
monopólio da coroa, acrescentando também uma informação
sobre a necessidade que o monarca terá tido de regulamentar a
extracção desta madeira, perante o excessivo abate de árvores
desta espécie: «Antigamente era lícito negociarem todos nêle,
245 Cf. Vitorino Magalhães Godinho, Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de
Navegar – Séculos XIII – XVIII, Difel, Lisboa, p. 482.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
139
com pagarem à fazenda de Sua Majestade um cruzado por
quintal de saída; mas por se entender que se usava mal desta
ordem que estava dada, se revogou, para que corresse o negócio
por contrato, como hoje em dia corre, e se paga de
arrendamento por ele no reino à fazenda de Sua Majestade
quarenta mil cruzados, pouco mais ou menos, com declaração
que os contratadores não poderão tirar em cada um ano dêste
estado especialmente das capitanias que tenho apontado, mais
de dez mil quintais de pau, e quanto um ano o não tirassem o
poderão perfazer no outro.»246
Concluímos, então, que o comércio do pau de tinta foi em
todas as épocas, e logo a partir da descoberta das terras de Vera
Cruz, extremamente lucrativo quer para a coroa, quer para os
particulares. A indústria açucareira não limitou o comércio do
pau-brasil, mas antes terá fornecido as razões e os elementos
propiciadores ao aumento do corte desta valiosa e lucrativa
madeira corante, que se irá tornar um elemento bem presente na
decoração dos interiores dos palácios e casas nobres
portugueses.
1.2. Do Ouro Branco
O açúcar era inicialmente, muito antes de a cana ser cultivada
na Madeira e mais tarde no Brasil, uma especiaria rara e por isso
cara, sendo utilizada apenas pelos mais ricos como remédio.
Constituía mesmo presente de luxo enviado quer aos chefes de
Estado, quer aos grandes dignitários da Igreja.
A cana-de-açúcar terá, ao que parece, a sua origem na Índia,
tendo sido levada pelos árabes para o Mediterrâneo no século
VII. E existiriam já plantações de cana no Algarve, mesmo antes
de ter sido descoberta a Madeira, como afirma João Lúcio de
Azevedo: «Em 1404 foram coutadas por D. João I umas terras
no Algarve, em favor de João de Palma, genovês de nação, para
246
Diálogos, op. cit., p. 98.
140
A NATUREZA BRASILEIRA
nelas plantar cana de açúcar».247 Do território continental
português, a cana de açúcar foi levada para as ilhas Atlânticas,
tendo-se revelado especialmente rentável na Ilha da Madeira,
embora a produção aqui tenha sido largamente ultrapassada pela
do território brasileiro, a partir da segunda metade do século
XVI.
E porque a experiência trouxera desilusão quanto às riquezas
que se esperavam do Oriente, endividando-se a coroa cada vez
mais para manter um Império tão vasto, era imperioso procurar
fontes de rendimento mais seguras noutras latitudes, sobretudo
porque os estrangeiros se mostravam cada vez mais interessados
em fixar-se no Brasil. Não é por isso de admirar que a coroa
tenha conferido desde o início alguns incentivos à produção
açucareira no Brasil. A carta régia de 18 de Junho de 1541
estabelecia alguns privilégios à refinação do açúcar; o alvará de
20 de Julho de 1551 isentava do pagamento de impostos, por
um período de dez anos, os engenhos mais recentes, medida que
foi renovada sucessivamente ao longo dos anos. Ainda na
década de 1580, o inaciano Fernão Cardim refere essa isenção
quando menciona os vultuosos gastos dos senhores de engenho,
quer para a manutenção da laboração nos mesmos, quer nos
luxos de que se rodeiam: «Ainda que estes gastos são mui
grandes, os rendimentos não são menores, antes mui
avantajados, porque um engenho lavra no ano quatro ou cinco
mil arrobas, que pelo menos valem em Pernambuco cinco mil
cruzados, e postas no Reino por conta dos mesmos senhores
dos engenhos (que não pagam direitos por dez anos de açúcar
que mandam por sua conta, e estes dez acabados não pagam
mais que meios direitos) valem três em dobro.»248
Ainda no que concerne à lavoura dos açúcares, quando alude
aos excessos e vaidades a que se entregam os mais ricos
senhores de engenhos de Pernambuco, o padre Fernão Cardim
Carta Régia de 16 de Janeiro de 1404, cit. in: Épocas de Portugal Económico,
João Lúcio de Azevedo, Livraria Clássica Editora, 1978, Porto, p. 218.
248 Tratados, op. cit., p. 245.
247
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
141
fornece-nos a importante informação de que eram os Vianenses
que dominavam a vida económica e social da referida capitania,
referindo-se-lhe nos seguintes termos: «Enfim em Pernambuco
se acha mais vaidade que em Lisboa. Os vianezes são senhores
de Pernambuco, e quando se faz algum arruido contra algum
vianez dizem em lugar de: ai que d´ el-rei, ai que de Viana, etc.»249
De facto, apesar de terem participado na colonização do
Brasil, ao longo da centúria de Quinhentos, povoadores vindos
de todas as regiões metropolitanas, assim como dos arquipélagos
dos Açores e Madeira e ainda alguns estrangeiros,
fundamentalmente Italianos e Flamengos, era originária de
Viana do Castelo, a maior parte dos colonos do Nordeste
brasileiro. A sua importância era tão significativa, que quando
Duarte de Albuquerque Coelho, herdeiro do primeiro donatário
de Pernambuco, instituiu as primeiras bandeiras de
desbravamento do sertão, teve o cuidado de organizar a
companhia dos vianenses.250
Mas os incentivos à produção açucareira mantiveram-se, e
aperfeiçoaram-se mesmo, ao longo dos anos como o
comprovam os alvarás de 13 de Julho de 1555 e 16 de Março de
1560, que concederam benefícios fiscais ao açúcar, ou o de 29
de Março de 1559, que reduziu as taxas relativas à importação de
escravos negros que se destinavam aos engenhos.251
Foi a expedição de Martim Afonso de Sousa que assinalou o
grande arranque do cultivo da cana-de-açúcar no Brasil. No
entanto, durante o século XIX tomou-se conhecimento da
existência de registos que comprovariam que já em 1526 seria
recebido nos armazéns da Casa da Índia açúcar proveniente das
Ibid., op. cit., p. 256.
Cf. Carlos Xavier Paes Barreto, Os Primitivos Colonizadores Nordestinos e seus
Descendentes, Rio de Janeiro, Melso, 1960, pp. 150-151 e Jorge Couto, op. cit.,
pp. 280-295.
251 Cf. Vera Lúcia Amaral Ferlini, A Civilização do Açúcar, In: A Construção do
Brasil – Ameríndios, Portugueses e Africanos, do início do povoamento a finais de
Quinhentos, Jorge Couto, Edições Cosmos, Lisboa, 1995, p. 291.
249
250
142
A NATUREZA BRASILEIRA
terras de Vera Cruz.252 Este açúcar teria provavelmente origem
num pequeno engenho fundado possivelmente por Pero Capico,
no ano de 1516, junto da feitoria de Igaraçu.253
Na missão pastoral que realizou a Pernambuco, o Jesuíta
Fernão Cardim fornece na década de 1580 as seguintes
informações sobre aquela que era à data a mais importante
capitania açucareira das terras de Vera Cruz: «A terra é toda
muito chã; o serviço das fazendas é por terra e em carros; a
fertilidade dos canaviais não se pode contar; tem 66 engenhos,
que cada um é uma boa povoação; lavram-se alguns anos 200
mil arrobas de açúcar, e os engenhos não podem esgotar a cana,
porque em um ano se faz de vez para moer, e por esta causa a
podem vencer, pelo que mói cana de três, quatro anos; e com
virem cada ano quarenta navios ou mais a Pernambuco, não
podem levar todo o açúcar [...]».254
No Brasil, a cana-de-açúcar encontrou de facto condições
excelentes para se expandir, um território vasto e
extraordinariamente rico, cujo clima era tão propício que as
plantações não necessitavam sequer de ser adubadas nem
irrigadas. A este propósito, Gabriel Soares de Sousa revela-se
bem informado e autenticamente maravilhado com as
potencialidades do território brasílico, dizendo que as «canas-deaçúcar, cuja planta levaram à capitania dos Ilhéus da Madeira e
de Cabo Verde, as recebeu esta terra de maneira em si que as dá
maiores e melhores que nas ilhas e partes donde vieram a ela e
em nenhuma outra parte se sabe que se criem canas-de-açúcar,
porque na ilha da Madeira, Cabo Verde, São Tomé, Trudente,
Canárias, Valência e na Índia não se dão as canas se não regam
os canaviais como as hortas e se lhe não estercam as terras e na
Baía plantam-se pelos altos e pelos baixos sem se estercar a terra
Cf. M. de Oliveira Lima, Pernambuco. Seu Desenvolvimento Histórico, 2ª ed.,
Recife, 1975, pp.3-4.
253 Cf. Roberto C. Simonsen, História Económica do Brasil (1500-1820), 8ª ed.,
São Paulo, 1978, p. 96.
254 Tratados, op. cit., p. 255.
252
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
143
e nem se regar; e como as canas são de seis meses, logo acamam
e é necessário cortá-las para as plantar em outra parte, porque
assim se dão tão compridas como lanças; e na terra baixa não se
faz açúcar da primeira novidade que preste para nada, porque
acamam as canas e estão tão viçosas que não coalha o sumo
delas se as não misturam com canas velhas e como são de
quinze meses, logo dão novidade as canas de pranta; e as de
soca, que são as que rebentam e brotam das primeiras cortadas,
como são de ano, logo se cortam; e na ilha da Madeira e em as
mais partes onde se faz açúcar, cortam as canas de pranta de
dois anos por diante e as de soca de três anos e ainda assim são
canas muito curtas, onde a terra não dá mais que duas
novidades. Na Baía há muitos canaviais que há trinta anos que
dão canas e ordinariamente as terras baixas nunca cansam e as
altas dão quatro e cinco novidades e mais.»255
A extraordinária fertilidade e abundância da terra brasileira
torna-a superior a todas as outras até então observadas pelos
portugueses nas suas inúmeras viagens, fazendo com que
frequentemente seja de novo entrevisto, como foi referido
anteriormente, um verdadeiro jardim de delícias neste território
do Novo Mundo, recentemente descoberto. Esta admiração não
se verificou só inicialmente. Como afirma Gabriel Soares,
deslumbrado com a fertilidade da Baía, estas terras são
extraordinariamente ricas: as terras baixas cultivavam-se
ininterruptamente sem se esgotarem e as altas chegavam a
produzir cinco e mais colheitas seguidas. No final da centúria, as
terras eram cultivadas havia já cerca de trinta anos, sem
interrupção. Tudo era propício no Brasil a abundantes
produções: neste solo ainda inexplorado não existiam doenças e
houve desde início abundância de mão-de-obra, inicialmente
índia e depois negra, sendo o clima ameno e por isso saudável.
Alguns anos mais tarde, ao descrever as riquezas, fertilidade e
abundância do Novo Mundo, Brandónio revela algumas
dificuldades em começar a falar delas, por serem tão vastas. Mas
255
Notícia, op. cit., p. 106.
144
A NATUREZA BRASILEIRA
na sua opinião são seis aquelas com as quais os colonos das
terras brasílicas enriqueceram, colocando o cultivo da cana-deaçúcar em primeiro lugar, ou seja, como a maior riqueza do
Brasil: «o principal nervo e sustância da riqueza da terra é a
lavoura dos açúcares.»256 Acrescenta ainda que o açúcar
brasileiro dá mais rendimento ao rei do que «tôdas essas Índias
Orientais.»257 No seu dizer, irão todos os anos para o reino
quantidades verdadeiramente espantosas de açúcar, pois
unicamente as capitanias de Pernambuco, Tamaracá e Paraíba,
mandarão para a Metrópole cerca de quinhentas mil arrobas
deste precioso produto, que darão um extraordinário
rendimento à coroa, uma vez que «pagam de direitos na
alfândega de Lisboa, o branco e mascavado a 250 réis a arrôba, e
os panelas a 150 réis a arrôba, isto afora o consulado, do que
feito soma vem a importar à fazenda de Sua Majestade mais de
trezentos mil cruzados, sem êle gastar nem despender na
sustentação do Estado um só real de sua casa, porquanto o
rendimento dos dízimos que se colhem na própria terra, basta
para sua sustentação».258 Mais adiante, e para explicar melhor a
sua teoria quanto ao facto de as riquezas do Brasil excederem
em muito as de toda a Índia, o autor alude às imensas despesas
que o rei faz em cada ano para sustentar a Índia e o seu
comércio, acabando por concluir o seguinte: «notai bem o que
houver de avanço para o igualardes com o rendimento que colhe
do Brasil, das três capitanias referidas tão somente, e vereis com
quanto excesso sobrepuja ao da Índia [...]».259 Tanto assim é, que
um número cada vez maior de emigrantes portugueses
procurava as terras brasílicas, que se lhes afiguravam cada vez
mais como a verdadeira terra prometida, preferindo-a à Goa
«dourada» assim como a todo o Oriente.260
Diálogos, op. cit., p. 75.
Ibid., op. cit., p. 76.
258 Ibid., op. cit., p. 80.
259 Ibid., op. cit., p. 80.
260 Cf. C. R. Boxer, O Império Marítimo Português 1415-1825, Edições 70,
Lisboa, 1977, p. 101.
256
257
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
145
Como diz A. H. de Oliveira Marques, os lucros do açúcar
terão durante muitos anos excedido mesmo os do ouro e
diamantes em conjunto: «Na realidade, porém, o açúcar
situou-se acima do ouro e dos diamantes combinados durante
muitíssimos anos.»261 O açúcar foi, sem sombra de dúvida, a
alma e o coração do comércio brasileiro, de tal modo que, em
1618, Brandão afirmava que as três capitanias de Pernambuco,
Itamaracá e Paraíba produziam açúcar suficiente para carregar
130 a 140 barcos com cerca de 500.000 arrobas (400.000 branco
e amarelo; e 100.000 do inferior ou «panelas)».262
A complementaridade financeira existente entre o pau-brasil
e o açúcar era uma realidade. O pau-brasil constituiu uma ajuda
preciosa, pois os colonos que tivessem pau-brasil na sua
sesmaria podiam explorá-lo, possibilitando-lhes fundos
monetários para investir nos engenhos de açúcar.
Mas o comércio do açúcar estimulou ainda outras actividades
económicas complementares e também rentáveis. Aquela que
terá sido a mais importante e lucrativa foi a que consistiu no
tráfico de escravos da África para o Brasil. Na opinião de Duarte
Gomes Solis «Sem Angola não haverá escravos, e sem escravos
não haverá açúcar nem Brasil».263
O Brasil era, sem sombra de dúvidas, um território com
potencialidades prodigiosas, e Gabriel Soares de Sousa, na sua
Notícia do Brasil, redigiu um verdadeiro hino à extraordinária
abundância das terras brasílicas. Revelando-se um agricultor e
naturalista extremamente atento, mostrou ser fundamentalmente
um interessado e próspero senhor de engenho, dedicando
especial atenção à actividade do cultivo dos canaviais e à
produção do açúcar. Assim, faz uma análise cuidada e minuciosa
261 A. H. de Oliveira Marques, in: História de Portugal, Palas Editores, Lisboa,
1978, p. 594.
262 Diálogos, op. cit., p. 80.
263 Cf. Nova História da Expansão, O Império Luso-Brasileiro 1500-1620, direcção
de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, coordenação de Harold Johnson
e Maria Beatriz Nizza da Silva, Volume VI, Editorial Estampa, Dezembro de
1992, p. 279.
146
A NATUREZA BRASILEIRA
das potencialidades da terra brasileira para a cultura da cana-deaçúcar. Na opinião de Soares de Sousa, são muitos os locais
onde é viável a construção de engenhos, não só pela fertilidade
da terra para a cultura dos canaviais, mas ainda pela imensa
quantidade de ribeiras que lhe passam perto, fundamentais
como força motriz para mover os engenhos e para o transporte
das caixas de açúcar dos locais de produção para os portos do
litoral. Aponta duas razões fundamentais para o facto de estas
terras não estarem ainda aproveitadas com prósperos engenhos.
Os impedimentos devem-se sobretudo aos constantes ataques
do gentio, bem como ainda às frequentes contendas entre
colonos pela posse das águas de algumas ribeiras.
Gabriel Soares de Sousa faz um levantamento minucioso e
pormenorizado daquelas que na sua opinião serão as terras mais
férteis e próprias para o cultivo dos canaviais, mas que não
estarão ainda a ser convenientemente aproveitadas. No seu
dizer, estas terras estendem-se pelo rio Grande, da Costa do
Cabo de São Roque até ao Porto dos Búzios, passando pelas
terras férteis da Paraíba e pelas do rio São Francisco até à
cachoeira. As terras do rio Real até ao Itapocum merecem
especial atenção do autor: «é terra muito boa para se poder
povoar, porque dá muito bem todos os mantimentos que lhe
plantam e dará muito bons canaviais de açúcar, porque quando
Luís de Brito foi dar guerra ao gentio do rio Real, se acharam
pelas roças destes índios que viviam ao longo deste rio, mui
grossas e mui formosas canas de açúcar porque tem ribeiras que
nele se metem muito acomodadas para isso». 264 Mas existem
ainda neste cuidadoso e entusiasmado relato outras regiões que
o autor considera propícias ao cultivo da cana de açúcar pela sua
extrema fertilidade, e favoráveis à construção de engenhos pela
abundância de águas das suas inúmeras ribeiras: da ponta do
Padrão até ao rio Camamu, deste aos Ilhéus, do rio das
Caravelas até Cricaré, na terra junto ao rio Doce, deste até ao
Espírito Santo, no Rio de Janeiro, e deste a São Vicente.
264
Notícia, op. cit., p. 28.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
147
O naturalista agricultor faz referências pormenorizadas e
deslumbradas quanto à existência de um grande número de
engenhos de açúcar nas terras brasílicas, enumerando cerca de
cento e treze, chegando mesmo ao pormenor de indicar a maior
parte dos nomes dos seus proprietários. Revela-se maravilhado
com a prosperidade e esplendor de alguns, que descreve em
termos francamente elogiosos. São, no entanto, os engenhos da
Baía aqueles que descreve com maior admiração e
deslumbramento.
Gabriel Soares de Sousa começa por referir que as razões
fundamentais para a riqueza e grandeza da região baiana são,
sem dúvida, o cultivo da cana-de-açúcar e o comércio do
mesmo, elucidando-nos do facto de chegarem a estar no porto
da cidade de Salvador da Baía a carregar açúcar e algodão, entre
quinze a vinte naus.265
Na região baiana merecem-lhe especial atenção alguns
engenhos, quer pelo seu extraordinário rendimento, quer ainda
pelo esplendor e magnificência das construções que exibiam.
Assim, faz a descrição precisa de um engenho que no seu dizer é
pertença do rei e está arrendado por uma soma considerável de
açúcar, pagando o arrendatário anualmente ao monarca
seiscentas e cinquenta arrobas do precioso produto, que com
bastante frequência foi mesmo apelidado de «ouro branco».266
Outros engenhos que merecem também rasgados elogios do
autor são os dois de Sebastião de Faria, situados na região do rio
Matoim. Sobre o primeiro afirma: «Sebastião de Faria tem feito
um soberbo engenho de água com grandes edifícios de casas de
purgar e de vivenda e uma igreja de São Jerónimo, tudo de pedra
e cal, no que gastou mais de doze mil cruzados.»267 Acerca do
segundo refere também a sua magnificência e beleza, dizendo a
propósito que é um engenho movido a bois e possui: «grandes
edifícios, assim de engenho, casas de purgar e de vivenda como
Notícia, op. cit., p. 86.
Ibid., op. cit., p. 90.
267 Ibid., op. cit., p. 92.
265
266
148
A NATUREZA BRASILEIRA
de outras oficinas e tem uma formosa igreja de Nossa Senhora
da Piedade, [...], a qual fazenda mostra tanto aparato da vista do
mar que parece uma vila».268
No rol daqueles que considera os mais prósperos e
maravilhosos engenhos de açúcar situados na região da Baía,
Gabriel Soares faz uma referência muito especial a um de que é
proprietário, descrevendo-o com orgulho da seguinte forma: «E
tornando abaixo ao esteiro da mão direita que se chama Caípe,
indo por ele acima está um soberbo engenho com grandes casas
de purgar e de vivenda e muitas outras oficinas, com uma
grande e formosa igreja de São Loureço, onde vivem muitos
vizinhos e uma povoação que se diz a Graciosa. Esta terra é
muito fértil e abastada de todos os mantimentos e de muitos
canaviais de açúcar, a qual é de Gabriel Soares de Sousa».269
Aqueles engenhos, que o autor considera como os mais
prósperos, descreve-os geralmente como possuindo uma terra
semeada de formosos canaviais, com um grande número de
escravos, grande profusão de edifícios de casa de purgar, de
vivenda e como sendo comum a todos uma formosa igreja
dedicada sempre a um padroeiro específico, tudo isto construído
em pedra e cal.
Mas a abundância e excelência das canas-de-açúcar do
território brasílico levaram também à construção de algumas
«casas de méis»,270 das quais o autor fala com bastante
pormenor, pois indica o nome dos proprietários da quase
totalidade das oito que diz existirem no território baiano,
apontando o nome de seis. Assim, falando das «casas de méis»
que diz existirem à época na circunscrição da Baía, afirma que
são muito rendosas e pertencem a António Martins Reimão,
Ibid., op. cit., p. 93.
Ibid., op. cit., p. 100.
270 Frédéric Mauro diz que estas «casas de meles» são engenhos sem refinaria.
Cf. Portugal, o Brasil e o Atlântico, Imprensa Universitária, Editorial Estampa,
Tradução de Manuela Barreto, Lisboa, 1989, nota 81, p. 259.
268
269
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
149
Marcos da Costa, João Adrião, António Penela, António
Rodrigues e finalmente a Gaspar de Freitas.
Ao concluir sobre o poder, as grandezas e as riquezas da
Baía, Gabriel Soares de Sousa afirma que elas passam
fundamentalmente pelo número de engenhos desta terra,
contabilizando-os em trinta e seis: «se particularmente
disséssemos de cada um seu pouco, havendo que dizer deles e
de sua máquina, muito diríamos e não diríamos tudo, os quais
são moentes e correntes trinta e seis, convém a saber: vinte e um
que moem com bois e quatro que se andam fazendo; tem de
mais oito casas de fazer méis de muita fábrica e muito
proveitosas.»271
O naturalista agricultor sublinha mais uma vez a fertilidade e
abundância desta terra que considera verdadeiramente
extraordinária, confirmando a grande riqueza da Baía em
açúcares, ao revelar que por ano saem dos engenhos baianos
mais de cento e vinte mil arrobas do precioso «ouro branco».
Alguns anos mais tarde, Brandónio, nos Diálogos das Grandezas
do Brasil, considera a «lavoura dos açúcares» como a maior
riqueza destas terras do Novo Mundo, pois, na sua opinião, o
açúcar é o produto que mais enobrece e enriquece todo o Brasil.
E quando o seu interlocutor Alviano lhe responde afirmando
que os engenhos de Potosi, que ao moerem a terra tiram prata,
devem ter maior rendimento que os de fazer açúcares,
responde-lhe Brandónio que os rendimentos dos açúcares são
bem maiores que os da prata, e acrescenta: «E é bastante prova
desta verdade o vermos muitos senhores deles riquíssimos e os
que têm engenhos para a prata os mais dêles pobríssimos e
endividados.»272 Brandónio insiste na riqueza que proporciona o
açúcar aos senhores de engenho, os quais vivem com grande
fausto, fazendo também grandes obras de caridade, e descreve o
seu nível de vida da seguinte forma: «E eu vi já afirmar a
homens mui experimentados na côrte de Madrid, que se não
271
272
Notícia, op. cit., p. 103.
Diálogos, op. cit., p.91.
150
A NATUREZA BRASILEIRA
traja melhor nela do que se trajam no Brasil os senhores de
engenhos, suas mulheres e filhas, e outros homens afazendados,
e mercadores. E para prova disto quero dar sómente uma assaz
bastante, qual é que na capitania de Pernambuco há uma casa de
Misericórdia, a qual faz de despesa em cada um ano, na
obrigação dela, treze e catorze mil cruzados, [...], e estes são
todos dados de esmolas pelos moradores da mesma capitania,
[...]. E é tanto isto assim que os provedores que sucedem para
serviço dela em cada um ano, gastam de sua bolsa mais de três
mil cruzados [...]».273
A importância do açúcar foi tão grande para a economia da
América Portuguesa que, tal como afirma o historiador
brasileiro Evaldo Cabral de Mello, «De meados de Quinhentos
até à descoberta das minas em finais de Seiscentos e começos de
Setecentos, o açúcar foi o outro nome do Brasil».274 O
denominado «ouro branco» foi de tal modo fundamental para a
economia do reino, que tornou possível a Restauração de 1640,
constituindo um dos seus mais significativos motivos. De tal
forma que em Pernambuco a senha da revolta era a palavra
«açúcar». A revolução de 1640 foi não só sustentada
financeiramente pelo açúcar, como teve ainda a finalidade de
recuperar o antigo monopólio de Portugal sobre o produto,
através do controle de todas as regiões do Brasil que o
produziam e também de Angola, da qual dependia a mão-deobra escrava necessária à indústria do açúcar.275
Foi a concorrência do açúcar das Antilhas que fez baixar os
preços do precioso produto nos mercados europeus, a partir da
segunda metade do século XVII. A descoberta e exploração das
minas brasileiras trouxe algumas consequências negativas às
tradicionais zonas de produção de açúcar do Nordeste,
Ibid., op. cit., p. 92.
Cf. Evaldo Cabral de Mello, O Açúcar, in: Brasil brasis – cousa notáveis e
espantosas – A Construção do Brasil – 1500-1825, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 2000, op. cit., p.
25.
275 Ibid., p. 26.
273
274
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
151
disputando-lhe a mão-de-obra africana e deslocando para o
Centro e Sul a dinâmica da economia do Brasil. Mesmo assim, a
lavoura dos açúcares foi a principal actividade económica
desenvolvida nas terras de Vera Cruz desde meados de
Quinhentos até meio do século XIX. De tal forma que nos
inícios do século XVIII Frei António do Rosário, na sua obra
Frutas do Brasil, exalta a excelência da cana-de-açúcar, ao
considerá-la mesmo «a rainha das frutas do Brasil», afirmando
com ênfase que «Se o Ananás he rey dos pomos da América
pelas prendas com que a natureza o coroou, & qualidades de
que o dotou a cana de assucar, por mercê da mesma natureza, &
parecer do mundo todo, he dignamente a Rainha deste vasto e
doce Império do Brasil [...]».276
Mesmo quando a exploração aurífera estava no seu apogeu, o
açúcar manteve sempre o primeiro lugar na lista de exportações.
A superioridade das exportações do açúcar manteve-se, por isso,
uma realidade, mesmo depois das descobertas das minas de
ouro e dos diamantes, que tendo embora o mérito de
promoverem um novo impulso expansionista, tanto a nível
económico, como geográfico, nos territórios portugueses do
Novo Mundo, nunca ultrapassaram o denominado «ouro
branco».277
2. De Outras Riquezas Complementares do Novo Mundo
As culturas de tabaco, do algodão e a criação de gado foram
também importantes actividades económicas do Brasil no século
XVI, embora se destinassem essencialmente ao consumo
interno. Só nos séculos seguintes o tabaco, o algodão e os
couros foram ganhando um peso cada vez maior e bastante
significativo nas exportações. O tabaco assumiu até a partir de
Frutas do Brasil, op. cit., pp. 46-47.
Cf. Evaldo Cabral de Mello, op. cit., p. 28. e Jorge Couto, op. cit., pp. 286287.
276
277
152
A NATUREZA BRASILEIRA
1620 um papel preponderante como meio de pagamento na
compra de escravos em África.
De início, o algodão serviu essencialmente para fabricar
tecidos para os Índios que frequentavam a catequese, pois um
dos objectivos dos Jesuítas era a irradicação da nudez, pelo
menos parcial nos aldeamentos que dirigiam. No entanto, no
final da década de 1560, o humanista de Braga Pêro de
Magalhães de Gândavo afirmava já que o algodão era a segunda
actividade económica mais rentável do Brasil, a seguir ao açúcar
e antes do pau-brasil: «[...] há outras de que os moradores fazem
suas fazendas, convém a saber, muitas canas-de-açúcar e
algodoais, que é a principal fazenda que há nestas partes, de que
todos se ajudam e fazem muito proveito em cada uma destas
capitanias, especialmente na de Pernambuco [...], e se dá infinito
algodão, e mais sem comparação que em nenhuma das
outras».278
Paralelamente, assistimos a um grande investimento na
criação de gado, que evoluiu favoravelmente nas terras
brasileiras, de tal modo que o missionário Fernão Cardim,
testemunhando a sua abundância, refere que havia currais onde
se encontravam 500 a 1000 cabeças de bovinos, especialmente
nos campos de Piratininga, devido aos excelentes pastos.
2.1. De Erva-Santa ao Lucrativo Tabaco
Como referimos já no capítulo destinado ao estudo das
virtudes terapêuticas de algumas espécies brasileiras, também o
petum, erva-santa ou tabaco foi tal como o açúcar, inicialmente
usado para fins medicinais, sendo utilizado pelos portugueses e
silvícolas para a cura de uma infinidade de maleitas.
É controversa a origem da planta e da palavra, embora
algumas teses a indiquem como originária da Ásia e dos Andes.
É uma planta tropical, adaptável a regiões de diferentes latitudes,
278
História, op. cit., p. 85.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
153
exigindo, no entanto, solo fértil, calor e humidade.279 A planta
do tabaco foi, com certeza, conhecida mais cedo em Portugal do
que no resto da Europa, havendo mesmo quem afirme que, em
finais do século XV, já era conhecida. No entanto, a sua
divulgação só acontece verdadeiramente a partir da segunda
metade do século XVI. O que se sabe é que antes do ano de
1559, Luís de Góis280 terá trazido esta planta do Brasil, onde já
era utilizada pelos colonos portugueses.281 O crescimento da
produção tabaqueira está directamente ligado ao aumento do
consumo e ao tráfico de escravos. Assim, o tabaco ocupou
durante o século XVI o segundo lugar nas exportações da terra
brasileira.282
No Brasil, os Jesuítas exaltaram o seu valor medicinal. Já em
1550, o padre Manuel da Nóbrega, fundador da Companhia de
Jesus no Brasil, considerava o tabaco uma erva-santa, tendo sido
o primeiro a atribuir-lhe virtudes terapêuticas, cujo fumo, na sua
abalizada opinião, ajudava «muito à digestão e a outros males
corporaes e a purgar a fleuma do estomago».283
Também o padre Fernão Cardim lhe louva as virtudes
medicinais, sendo aliás esta qualidade que leva a que o produto
passe a ser conhecido, e mais tarde bastante apreciado pela
279 Cf. José Roberto do Amaral Lapa, Cultura e Comércio de tabaco brasileiro, in:
Portugal no Mundo, Direcção de Luís de Albuquerque, Selecções do Reader’s
Digest, S.A., Lisboa, 1989, p. 291.
280 Quem deu a informação de que as primeiras plantas do tabaco foram
trazidas para Portugal por Luís de Góis, foi Damião de Góis, que embora
tendo o mesmo sobrenome, não era seu familiar. Cf. Eduardo Bueno, in:
Capitães do Brasil – A Saga dos Primeiros Colonizadores, Colecção Terra Brasilis,
Vol. III, Rio de Janeiro, 1999, p. 136.
281 Cf. Dicionário de História de Portugal, VI Volume, Direcção de Joel Serrão,
Livraria Figueirinhas/Porto, 1985, p. 105.
282 Cf. Frédéric Mauro, Nova História da Expansão Portuguesa, Volume VIII, O
Império Luso-Brasileiro – 1620 –1750, Direcção de Joel Serrão e A. H. de
Oliveira Marques, Coordenação de Frédéric Mauro, Editorial Estampa,
Lisboa, 1991, p. 65.
283 Cartas Jesuíticas I, Cartas do Brasil, Manuel da Nóbrega, Editora Itatiaia
Limitada, Editora da Universidade de São Paulo, Belo Horizonte, 1988, op.
cit., p. 112.
154
A NATUREZA BRASILEIRA
generalidade dos Europeus. O embaixador francês na corte de
Lisboa, João Nicot, tomando conhecimento das virtudes
terapêuticas do tabaco, enviou, por volta de 1559, umas folhas
da preciosa planta à rainha de França, Catarina de Médicis, a
qual terá curado de uma terrível enxaqueca que a afligia. O
mesmo resultado terá tido o cardeal da Lorena, a quem o
embaixador Nicot terá igualmente enviado algumas folhas de
tabaco. O sucesso desta diligência ligou para sempre o nome do
referido embaixador ao do tabaco.284
Mas, durante a maior parte do século XVI, o tabaco foi
somente considerado como uma planta de jardim e os colonos
da Baía, tal como os gentios, cultivaram-no nas hortas e quintais,
tal como afirma o naturalista agricultor, Gabriel Soares de Sousa:
«Petume é a erva a que em Portugal chamam santa e há muita
dela pelas hortas e quintais, pelas mostras que tem dado da sua
virtude, com a qual se têm feito curas estranhas [...]».285
É só no fim de Quinhentos que o tabaco adquire importância
económica, expandindo-se gradualmente, e os solos arenosos do
Recôncavo Baiano constituíram o local ideal para a sua cultura
que era feita em tabuleiros.286
A produção do tabaco foi-se convertendo gradualmente em
indústria colateral do açúcar. O tabaco passou a servir cada vez
mais de moeda de troca na aquisição de escravos africanos na
Costa da Mina, sem os quais os engenhos não funcionavam.
Como referimos já, os motivos do desenvolvimento da cultura
do tabaco terão sido, por um lado, a necessidade de o utilizar
como moeda de troca no comércio negreiro e, por outro, o vício
europeu.287 No primeiro quartel do século XVIII, época áurea da
284 Cf. Dicionário de História de Portugal, VI Volume, Direcção de Joel Serrão,
op. cit., p. 105.
285 Notícia, op. cit., p. 139.
286 Cf. Jorge Couto, A Construção do Brasil, Edições Cosmos, Lisboa, 1995, p.
297.
287 Cf. J. Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Económico, op. cit., p. 275.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
155
indústria do tabaco, eram utilizados por ano no tráfico negreiro
cinco mil rolos, de 13 a 15 mil arrobas.288
Mas o tabaco brasileiro revelava-se também cada vez mais
importante para o sucesso das trocas comerciais entre a
Metrópole e o Extremo Oriente. Aquilo que se procurou, a
partir de Seiscentos, foi a sua utilização como moeda de troca
neste comércio oriental, a fim de reduzir o envio de moeda
metálica, situação que já se verificava em África na aquisição de
escravos.289 O vício de fumar propagou-se de tal forma, que por
todo o país todas as classes sociais tinham adquirido o hábito,
levando a que se experimentasse a cultura da planta do tabaco
na Metrópole. E essa cultura revelou-se um verdadeiro sucesso.
De tal modo se generalizou o cultivo do vicioso produto na
Metrópole, que as autoridades, com receio de verem diminuídas
as receitas do Estado, se viram obrigadas a proibir a sua cultura,
alegando que as terras consagradas ao tabaco faziam falta para
semear o pão.290 O comércio português deste produto tornou-se
realmente vultuoso, o que levou o governo a elaborar leis para
disciplinar o sector que cada vez tinha maior importância para a
Fazenda Real.291
No século XVII, João Antonil descreveu pormenorizadamente as diferentes etapas da transformação do tabaco,
referindo com ênfase a excelência do tabaco brasileiro. O
melhor tabaco do Brasil era, no entanto, produzido na região do
recôncavo baiano, especialmente na Cachoeira, nos campos de
Santo Amaro de Pitanga, Maragojipe e Sergipe do Conde.292
Ibid., op. cit., p. 275.
Sabemos que por exemplo, de 1776 até 1799 cerca de 22 navios num total
de 29 que viajavam para o Extremo-Oriente fizeram escala no Brasil para
carregar tabaco. Cf. Vitorino Magalhães Godinho, Mito e Mercadoria, Utopia e
Prática de Navegar, op. cit., p. 455.
290 Ibid., p. 277.
291 Cf. José Roberto do Amaral Lapa, Cultura e Comércio de tabaco brasileiro, in:
Portugal no Mundo, Direcção de Luís de Albuquerque, Selecções do Reader’s
Digest, S.A., Lisboa, 1989, p. 297.
292 Ibid., op. cit., p. 305.
288
289
156
A NATUREZA BRASILEIRA
A produção do tabaco no Novo Mundo português era de tal
ordem, que as suas exportações satisfaziam plenamente as
necessidades da Metrópole, sendo igualmente um produto
muito procurado, fundamentalmente para o comércio com a
costa africana, como referimos já anteriormente. Este género
tornou-se tão precioso, que negreiros franceses de La Rochelle
faziam com frequência escala no porto de Lisboa, com o
objectivo de o adquirirem, pois ao largo da Costa de África os
negreiros brasileiros vendiam-lho ao preço do ouro.293
A cultura tabaqueira alternava com a pecuária, recorrendo
aos denominados «currais portáteis» ou «currais itinerantes»: os
colonos verificaram que o terreno estercado pelos animais dava
plantas mais viçosas e resistentes e o produto final era de
qualidade superior. Dessa forma, foi-se adoptando de maneira
espontânea a solução de compatibilizar a cultura do tabaco com
a criação de gado. Os bois vivos ou abatidos eram
extremamente úteis na produção do tabaco. Era do seu couro
que se fabricavam as «capas» para acondicionar os rolos que se
destinavam à exportação. Para além disso, o carro de bois era
um excelente meio de transporte para o tabaco. E se tivermos
em consideração as enormes quantidades de rolos de tabaco que
se enviavam para África, Europa e Ásia, concluímos que os
rebanhos a abater eram em elevado número, considerando o
processo de acondicionamento atrás referido. Há pois uma
dependência entre a lavoura do tabaco e a actividade da criação
de gado.294 Concluímos assim que a produção de açúcar, do
tabaco, e a criação de gado eram actividades estreitamente
dependentes entre si.
Na opinião de Frédéric Mauro, as riquezas da terra brasileira
mostraram-se, desde o início, demasiado importantes para o
Cf. Frédéric Mauro, in: Nova História da Expansão Portuguesa – O Império
Luso-Brasileiro, 1620-1750, Direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira
Marques, Coordenação de Frédéric Mauro, Editorial Estampa, Lisboa, 1991,
p. 65.
294 Cf. José Roberto do Amaral Lapa, op. cit., p. 292.
293
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
157
mercado português. O tabaco constituía um caso exemplar, pois
o duque de Cadaval, presidente do Conselho Ultramarino,
aconselha num relatório de 1698 a que se limite a produção
brasileira do tabaco para 30000 arrobas, alegando que a
Metrópole consumia pouco mais de 2400, enquanto que o resto
da Europa absorvia dez vezes mais.295
Os rendimentos do tabaco evoluíram de tal modo, que, em
1659, dava à coroa o dobro dos rendimentos dos quintos do
ouro, constituindo mesmo renda de grande importância na
fazenda do Estado.296 O produto era de tal modo precioso, que
em 1699 uma decisão régia, que tornava livre o tráfico negreiro
directo, autorizava a que as cargas de produtos vindos do Brasil,
nomeadamente o tabaco, fossem trocadas por ouro, marfim,
cera e negros.297 O produto constituiu-se como produto
colateral da indústria açucareira, tendo-se transformado assim
num dos recursos mais ricos e lucrativos do imenso território da
América portuguesa.298
295 Cf. A. J. Antonil, cit. in: Nova História da Expansão Portuguesa – O Império
Luso-Brasileiro – 1620-1750, Direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira
Marques, Coordenação de Frédéric Mauro, Editorial Estampa, Lisboa, 1991,
p. 78.
296 Cf. J. Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Económico – Esboços de História,
op. cit., p. 280.
297 Cf. Frédéric Mauro, in: Nova História da Expansão Portuguesa – O Império
Luso-Brasileiro – 1620-1750, op. cit., p. 210.
298 A importância do tabaco era de tal ordem, que, em 1674, por se verificar
um agravamento da crise do tesouro, decide-se em Cortes uma autorização
da subida de imposto sobre o seu consumo. Dá-se então o agravamento
sobre o imposto do consumo do tabaco, ao mesmo nível que aquele dos
produtos de uso corrente. Sendo inicialmente decidida por um período de
seis anos, a concessão deste imposto tornou-se definitiva, tendo-se
restabelecido para o efeito o monopólio do Estado sobre o tabaco. Nesta
mesma altura foi instituída a Junta Nacional do Tabaco pelo regente D.
Pedro II. A Junta viria a revelar-se o órgão mais importante na administração
dos negócios referentes àquele produto, tendo como primeiro presidente o
duque de Cadaval.
Tendo permitido uma carga tributária pesada, o crescimento da produção e
comércio do tabaco propiciaram também o contrabando, o que acarretou
158
A NATUREZA BRASILEIRA
Aquela que inicialmente havia sido designada de erva-santa
tornou-se verdadeiramente milagrosa, no que concerne aos
imensos lucros económicos que acabou por proporcionar à
maioria dos estados Europeus. Devendo-se a sua divulgação
inicialmente ao facto de ser considerada como medicina eficaz
para maleitas várias, foi, no entanto, a sua comercialização que
se revelou verdadeiramente atractiva para os mercadores
Europeus. Concluímos pois, que tal como os do «ouro branco»,
também os lucros do tabaco brasileiro terão ultrapassado em
muito os proventos auferidos com as minas de ouro e diamantes
da colónia portuguesa do Novo Mundo.
2.2. Do Algodão
Os portugueses sabiam do valor económico do algodoeiro,
que possivelmente foi introduzido nas hortas do Algarve e nos
campos do Mondego na mesma altura que a cana-de-açúcar,
após ensaios feitos por Sicilianos e Andaluzes. Tanto uma como
a outra eram plantas que se davam bem quer em terras quentes e
húmidas, quer em regiões semi-áridas, desde que fossem
regadas. Ambas desempenharam um papel importante no
desenvolvimento do Brasil. Os arroteamentos orientados pelo
prejuízos consideráveis ao Estado e aos contratadores. Houve por isso a
necessidade de actualizar periodicamente a legislação sobre o tabaco. Na
administração do Marquês de Pombal, elaboraram-se respectivamente o
Novo Regimento da Alfândega do Tabaco (1751) e o Regimento das Casas
de Inspecção do Açúcar e Tabaco (1751), assim como os alvarás de 30 de
Abril de 1774 e 15 de Julho de 1775, que acabaram por reorganizar e
estimular a produção e o comércio deste valioso produto. Na opinião de João
Lúcio de Azevedo, ao findar o absolutismo, em 1820, o tabaco, era depois
das Alfândegas, a mais importante receita do Estado, pois o montante anual
do seu arrendamento era 1351 contos, quantia que nunca as minas de ouro e
diamantes do Brasil renderam à coroa lusitana. Para este assunto consulte-se
João Lúcio de Azevedo em Épocas de Portugal Económico, op. cit., pp. 281 e 287,
e José Roberto do Amaral Lapa, Cultura e Comércio do tabaco brasileiro, in:
Portugal no Mundo, op. cit., pp. 297 e 298.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
159
donatário de Pernambuco Duarte Coelho começaram pela
plantação de campos de algodão e cana-de-açúcar.299 Não se
pode, no entanto, comparar a importância do algodão à do
açúcar. Os caminhos de expansão do algodão foram mais
pequenos que os do denominado «ouro branco».300
O primeiro Provincial da Companhia de Jesus no Brasil
(padre Manuel da Nóbrega), considerou, desde o início, que a
capitania de São Vicente era a mais preparada para se fazer a
conversão do gentio. A acção dos Jesuítas no Brasil iniciou-se
por esse motivo, sob a acção do seu primeiro provincial, a partir
de 1554, com a fundação do Colégio de São Paulo de
Piratininga, no planalto onde hoje se situa a cidade de São Paulo.
Nesse planalto empreenderem arroteamentos e plantaram
campos de algodão.301 A produção indígena de algodão na Baía
era tão importante no século XVI, que já na década de quarenta
o mesmo padre Manuel da Nóbrega assinalava a sua abundância
nos seguintes termos: «[...] e para vestir farão um algodoal, que
há cá muito.»302
Nas primeiras décadas de colonização, a maior parte da
produção servia essencialmente, como já tivemos oportunidade
de mencionar, para fabricar tecidos para os índios que
frequentavam a catequese, pois um dos objectivos dos Jesuítas
era a irradicação da nudez, pelo menos parcialmente nos
aldeamentos que dirigiam. 303 E o fundador da Companhia de
Jesus no Brasil, ao referir-se ao facto de precisarem de roupa
para os indígenas, que vão à missa ao domingo completamente
nus, alude mais uma vez à abundância do valioso produto: «e
Cf. Bartolomé Bennassar e Richard Marin, História do Brasil, tradução de
Serafim Ferreira, Teorema, Lisboa, 2000, p. 38.
300 Cf. Dicionário de História de Portugal, Direcção de Joel Serrão, Volume I, op.
cit., pp. 100-101.
301 Cf. Bartolomé Bennassar e Richard Marin, História do Brasil, Tradução de
Serafim Ferreira, Teorema, Lisboa, 2000, p. 45.
302 Cartas Jesuíticas I, Cartas do Brasil, Manuel da Nóbrega, op. cit., p. 84.
303 Cf. Jorge Couto, A Construção do Brasil, Edições Cosmos, Lisboa, 1995, p.
296.
299
160
A NATUREZA BRASILEIRA
isto agora sómente no começo, que elles farão algodão para se
vestirem ao deante».304
Poucos anos mais tarde, também o inaciano José de Anchieta
refere a abundância de algodão nas terras brasílicas, afirmando:
«Para vestir há muito algodão que se encontra em umas árvores
frescas como sabugueiros e todos os anos dão uns folhelhos ou
capuchos cheios de algodão.»305 O missionário assinala também
o facto de serem os índios a vestir de algodão, acrescentando,
no entanto, que vulgarmente andam nus, ou então
estranhamente ataviados: «nisto usam de primores a seu modo,
porque um dia saem com gorro, carapuça ou chapéu na cabeça e
o mais nu; outros dias com seus sapatos ou botas e o mais nu,
outras vezes trazem uma roupa curta até á cintura sem mais
outra cousa.», acrescenta ainda a propósito da maneira de vestir
das mulheres, e confirmando a utilização do algodão nas vestes
dos silvícolas que: «trazem suas camisas de algodão sôltas até o
calcanhar sem outra roupa [...]».306
É provável que os carregamentos regulares de algodão para a
Metrópole tenham começado em 1565 em Pernambuco.307 E já
no final da década de 1560, o humanista de Braga, Pêro de
Magalhães de Gândavo, afirmava que o algodão era a segunda
actividade económica mais rentável do Brasil, a seguir ao açúcar
e antes do pau-brasil. A propósito das grandezas e
potencialidades das terras de Santa Cruz, afirma: «[...] há outras
de que os moradores fazem suas fazendas, convém a saber,
muitas canas-de-açúcar e algodoais, que é a principal fazenda
que há nestas partes, de que todos se ajudam e fazem muito
proveito em cada uma destas capitanias, especialmente na de
Cartas Jesuíticas I, Cartas do Brasil, Manuel da Nóbrega, op. cit., p. 85.
Cartas Jesuíticas III, Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e
Sermões do Padre Joseph de Anchieta, op. cit., p. 434.
306 Cartas Jesuíticas III, Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre
Joseph de Anchieta, S. J. (1554-1594), op. cit., p. 434.
307 Cf. Alexander Marchant, in: Do Escambo à Escravidão. As Relações Económicas
de Portugueses e Índios na Colonização do Brasil (1500-1580), tradução portuguesa,
São Paulo, 1980, pp. 74-76304
305
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
161
Pernambuco [...], e se dá infinito algodão, e mais sem
comparação que em nenhuma das outras. Também há muito
pau-brasil nestas capitanias, de que os mesmos moradores
alcançam grande proveito».308
Alguns anos mais tarde, o missionário Fernão Cardim dá
preciosos esclarecimentos acerca das primitivas utilizações dadas
pelo silvícola ao fio de algodão. Assim, afirma acerca “do modo
que têm em dormir” que os gentios utilizam como camas redes
de algodão,309 acrescentando que também utilizam fios de
algodão para cobrir os mortos.310
Sobre as regiões mais favoráveis à cultura de algodão, aponta
as capitanias de Ilhéus e a de Porto Seguro, afirmando que esta
última, apesar de ter tido abundância deste produto em época
anterior, se encontra quase despovoada, devido aos ataques dos
Guaimurés. A capitania de Espírito Santo será também, na
opinião deste missionário, rica em algodão.311
É contudo o naturalista agricultor Gabriel Soares de Sousa
que, já na década de oitenta, dá o maior número de informações
acerca do aspecto da planta do algodão e do seu
aproveitamento. Assim, refere que os índios chamam ao
algodoeiro maniim, e descreve-o com minúcia e
deslumbramento, dizendo que as «árvores parecem marmeleiros
arruados em pomares, mas a madeira dele é como sabugueiro
mole mas oca por dentro; a folha parece de parreira com o pé
comprido e vermelho [...]. A flor do algodão é uma campainha
amarela muito formosa donde nasce um capulho que ao longe
parece noz verde, o qual se fecha com três folhas grossas e duras
da feição das com que se fecham as dos botões das rosas e
como o algodão está de vez, que é de Agosto por diante, abremse estas folhas com que se fecham estes capulhos e vão-se
secando e mostrando o algodão que tem dentro muito alvo e se
História, op. cit., p. 85.
Tratados, op. cit., p. 169.
310 Ibid., op. cit., p. 179.
311 Ibid., op. cit., pp. 225,229 e 263.
308
309
162
A NATUREZA BRASILEIRA
não se apanham logo, cai no chão; e em cada capulho destes
estão quatro de algodão, cada um do tamanho de um capulho de
seda e cada capulho destes tem dentro um caroço preto com
quatro ordens de carocinhos pretos e cada carocinho é do
tamanho e da feição do feitio dos ratos, que é a semente de que
o algodão nasce, o qual no mesmo ano que se semeia dá
novidade.»312
Quanto ao aproveitamento do valioso produto, refere
Gabriel Soares de Sousa que as velas das armadas se podem
fazer de algodão, acrescentando que todos os anos se fazem
grandes carregamentos deste produto, o que faz pressupor que
já na década de oitenta do século dezasseis o algodão seria
produto muito rentável e largamente comercializado para a
Europa. O Velho Continente necessitaria dele para modernizar a
indústria têxtil, que nesta época pretendia substituir o fabrico
dos pesados tecidos de lã pelos leves e coloridos panos de
algodão, semelhantes aos que chegavam do Oriente. O
naturalista agricultor da região baiana refere, contudo, o destino
mais frequente que se dava nesta época ao algodão brasileiro,
afirmando que servia para confeccionar pano grosso: «muito
bom para velas, de muita dura e muito leves, de que andam
veleados os navios e barcos da costa e dentro na Baía trazem
muitos barcos vela de pano de algodão que se fia na terra, para o
que há muitas tecedeiras que se ocupam em tecer teias de
algodão que se gastam em vestidos dos índios e escravos da
Guiné e outra muita gente branca de trabalho.»313
Das informações fornecidas por Gabriel Soares de Sousa se
conclui que, assim como a do tabaco, também a cultura do
algodão é cultura subsidiária e complementar à indústria
açucareira, pois ao possibilitar a confecção das velas dos barcos,
facilitava o transporte do açúcar até aos seus pontos de
escoamento. O algodão era ainda importante para fabrico das
vestes dos trabalhadores de engenhos, e a sua exportação
312
313
Notícia, op. cit., p. 139.
Ibid., op. cit., p. 225.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
163
forneceu complemento de capitais, sempre bem vindos e
necessários ao trabalho dos engenhos.
Mas os cronistas portugueses de Quinhentos por nós
analisados assinalaram também a importância que a cultura do
algodão terá adquirido no «imenso país continente», não só para
os portugueses, como para a generalidade dos Europeus. Assim,
o padre Francisco Soares informa-nos dos verdadeiros motivos
que aguçariam o apetite dos restantes europeus pelo imenso
território português do Novo Mundo: «Por causa do muito pau
e pimenta e algodão, veio Mr. de Villegaignon, grão capitão, por
mandado, segundo dizem, do rei; secretamente, fez uma grãfortaleza no Rio de Janeiro, esteve ali quatro ou cinco anos, e
cada ano mandava vinte e duas, vinte e quatro naus carregadas;
mandou el-rei de Portugal fazer queixume a França [...]».314
Mas o algodão só revelou as suas plenas potencialidades a
partir da segunda metade do século XVIII, quando devido à
política do Marquês de Pombal se verificou um grande
desenvolvimento algodoeiro no Brasil, prelúdio da Revolução
Industrial. Nesta altura chegam ao porto de Lisboa, vindas do
Norte, do Grão Pará e do Maranhão as «frotas de algodão», que
até então tinham trazido predominantemente cacau.315
A cultura do algodão foi-se assim revelando, a partir do
século XVI, um dos mais importantes produtos para a economia
nacional, vindo a atingir o seu apogeu a partir da segunda
metade do século XVIII, coincidindo com o arranque da
Revolução Industrial. Exactamente quando na Inglaterra se
tornava cada vez mais premente a necessidade de abundância de
fio de algodão para o avanço da indústria têxtil.
Coisas Notáveis do Brasil, op. cit., p. 140.
Cf. Vitorino Magalhães Godinho, Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de
Navegar séculos XIII-XVIII, op. cit., p. 490.
314
315
164
A NATUREZA BRASILEIRA
2.3. Da Criação de Gado nas Terras do Novo Mundo
O desenvolvimento da criação de gado verificou-se nas terras
portuguesas do Novo Mundo como actividade ancilar da
economia açucareira, mas foi posteriormente afastada dos
canaviais, pela necessidade de os proteger. Os bois foram
desviados para o interior para regiões cada vez mais distanciadas
das zonas agrícolas, desbravando as terras do sertão. Nas terras
da capitania de Pernambuco, que não eram favoráveis à cultura
da cana-de-açúcar (zonas agrestes e do sertão), foram instaladas
fazendas de gado.316
Gabriel Soares de Sousa faz, na sua Notícia do Brasil, um
minucioso inventário de todas as regiões que ele considera mais
propícias à criação de gado, no imenso território brasileiro.
Assim concluímos, a partir das informações do cronista, que as
terras mais utilizadas para este fim eram aquelas que, por serem
mais alagadiças, não serviam para o cultivo da cana-de-açúcar,
mas eram óptimas para a criação de gado, pois estavam
permanentemente cobertas de viçosos pastos. O autor assinala
as regiões que terão essas qualidades, referindo a costa de
Tatuapara até ao rio Joane, que diz estar povoada de currais de
vacas, propriedade não só de Garcia de Ávila (criado do
governador Tomé de Sousa) e de pessoas próximas dele, mas
igualmente de outras diversas pessoas. Outras regiões também
indicadas pelo autor como sendo aquelas mais propícias à
criação de gado nas terras portuguesas do Novo Mundo são a
região da costa do rio Joane à Baía, de Porto Seguro ao rio das
Caravelas, e na capitania de São Vicente onde segundo o
cronista: «se criam muitos porcos, cujo couro os moradores
utilizam para fazerem botas e couros de cadeiras. As vacas dãose aqui melhor do que em Espanha, e por isso há-as em grande
quantidade, cuja carne é gorda e saborosa, melhor que a das
outras capitanias, pois a terra é mais fria.»317 Gabriel Soares de
316
317
Cf. Jorge Couto, A Construção do Brasil, op. cit., p. 299.
Notícia, op. cit., p. 66.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
165
Sousa assinala igualmente as maravilhosas qualidades que possui
para a criação de gado a terra que compreende a costa do rio
dos Patos até ao da Alagoa, uma vez que «está vestida de erva
verde como a de Espanha [...]».318 Outras terras são ainda
assinaladas pelo autor como muito fracas para o cultivo da cana
e por tal facto só indicadas para a criação de vacas, como é o
caso das do rio Paraguaçu ao longo do mar da Baía até à boca
do rio Jaguaripe e por ele acima, da barra deste rio até ao rio de
Una e deste até Tinharé.
A indústria açucareira exigia uma grande produção de gado
bovino, que servia para assegurar no local a tracção animal
necessária ao transporte do produto e à produção dos recursos
energéticos do engenho. Assim, a criação de gado dos sertões da
Baía e Pernambuco tornou-se o complemento ideal do Brasil
costeiro da cana. Para além do mais, as peles eram exportadas.319
O rio São Francisco atraiu para as suas margens grandes
rebanhos de bovinos, que um pouco mais tarde se
encaminharam para o Piauí e Maranhão.320 A região do Piauí era
uma zona de pecuária, de tal forma que, em 1697, teria, segundo
o relato de um sacerdote, 129 fazendas de gado.321
A criação de gado foi iniciada nas terras brasílicas por Martim
Afonso de Sousa, que promoveu a criação de bovinos, equídeos
e ovinos. Nos começos do seu governo, Tomé de Sousa (1º
governador geral), mandou ir para o Brasil animais de Cabo
Verde, trocando-os por madeira do Brasil. Jorge Couto alude ao
assunto, dizendo que o criado de Tomé de Sousa, Garcia de
Ávila, foi o primeiro grande criador de gado conhecido no
Brasil, tendo-se especializado em actividades pecuárias, nas
terras que recebeu em Sesmaria, e acabando por se expandir
Ibid., op. cit., p. 70.
Cf. Frédéric Mauro, in: Nova História da Expansão Portuguesa, Volume VII,
op. cit., p. 218.
320 Dicionário de História de Portugal, Volume I, Direcção de Joel Serrão, Livraria
Figueirinhas, Porto, 1985, p. 378.
321 Cf. Frédéric Mauro, in: Nova História da Expansão Portuguesa, Volume VII,
op. cit., p. 282.
318
319
166
A NATUREZA BRASILEIRA
depois até ao vale médio do rio São Francisco e, no sertão, até
ao Piauí.322 Aliás, já Gabriel Soares de Sousa nos dá conta da
origem dos primeiros animais que foram levados para a região
do Brasil onde reside, informando que as primeiras vacas que
foram para a Baía foram levadas de Cabo Verde, as quais se
deram tão bem que parem todos os anos, mesmo depois de
velhas. E, acentuando a abundância de gado na região da Baía,
acrescenta: «as novilhas, como são de ano esperam ao touro e
aos dois anos vêm paridas, pelo que acontece muitas vezes
mamar o bezerro na novilha e a novilha na vaca, o que se
também vê nas éguas, cabras, ovelhas e porcas [...], as vacas são
muito gordas e dão muito leite, de que se faz muita manteiga e
as mais coisas de leite que se fazem em Espanha [...]».
Assinalando a qualidade das peles, afirma: «têm o couro de fora
como o couro da banda do carnaz; as peles das mais velhas são
pretas e lisas que parecem vidradas no resplendor e brandura e
umas e outras são muito leves e duras e dizem que têm
virtude».323
É também o naturalista agricultor que nos dá conta de que
Garcia de Ávila se transformou num dos principais e mais ricos
moradores da cidade de Salvador, e isto porque tem «toda a sua
fazenda em criações de vacas e éguas e terá alguns dez currais
por esta terra e ao diante».324
A criação de gado para tracção nos engenhos e fazendas
cresceu de uma forma tão rápida que, na década de 1580, o
padre Fernão Cardim testemunhava já a abundância de bovinos
em todo o Brasil, dizendo que havia currais onde se
encontravam entre 500 a 1000 cabeças, especialmente nos
campos de Piratininga, o que se devia aos excelentes pastos. O
Jesuíta referia ainda, com ênfase, a importância da criação de
cavalos em grande quantidade e qualidade, de tal modo que já se
começavam a vender para Angola. Além destas espécies de
Cf. Jorge Couto, A Construção do Brasil, op. cit., p. 298.
Notícia, op. cit., p. 104.
324 Ibid., op. cit., p. 29.
322
323
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
167
grande porte, o inaciano alude também ao cada vez maior
desenvolvimento da criação de animais levados de Portugal, tais
como ovelhas, porcos, galinhas e uma outra de origem
americana: o perú.325
Alguns anos mais tarde, também o naturalista agricultor
Gabriel Soares de Sousa testemunha a crescente prosperidade da
criação de bovinos nas terras portuguesas da América, e assinala
a riqueza dos Jesuítas em gado vacum na região de São Salvador
da Baía: «da vantagem importar-lhe-á outra renda que tem na
terra outro tanto; porque tem muitos currais de gado onde se
afirma que trazem mais de duas mil vacas de monte que naquela
terra parem todos os anos [...]».326
No século XVII, o Brasil exportava peles, quer em bruto,
quer curtidas, e também gado vivo, cujo destino era a África
portuguesa e a Metrópole. Os verdes e vastos prados da região
do rio São Francisco permitiam grande criação de gado, o que
levava a Baía a exportar, no ano de 1722, cerca de 133.000 peles
curtidas.327
Concluímos, portanto, que a criação de gado nas terras
brasileiras se iniciou desde muito cedo, não só para suprir as
necessidades alimentares dos colonos, mas fundamentalmente
para complemento da indústria açucareira, sendo igualmente
importante, como vimos já, na cultura do tabaco, assim como
no transporte do pau-brasil, e acabando por atingir já durante o
século XVIII a sua máxima prosperidade, como resultado de
uma cada vez maior exportação de gado e peles.
Tratados, op. cit., p. 158.
Notícia, op. cit., p. 82.
327 Cf. Frédéric Mauro, Nova História da Expansão Portuguesa, Volume VII, op.
cit., p. 66.
325
326
168
A NATUREZA BRASILEIRA
3. Na Esperança de Encontrar Ouro e Pedras Preciosas
Os descobridores, colonos e missionários europeus tinham a
esperança de encontrar no Novo Mundo um território repleto
de riquezas em ouro e gemas extraordinariamente valiosas, que
se lhes ofereceriam sem grandes canseiras, como um dom
gratuito.
Assim, a esperança de encontrar metais e pedras preciosas
agitou, desde início, o pensamento dos navegadores portugueses
que aportaram na imensidão das terras de Vera Cruz. Foi essa a
razão fundamental que levou à proliferação de lendas
relacionadas com a abundância de ouro e pedras preciosas no
interior do sertão brasílico.
Gabriel Soares de Sousa revela-se preocupado com a cobiça
dos estrangeiros pela terra brasileira, mostrando que já no século
XVI o interesse dos europeus pelas lendárias riquezas minerais
do Brasil era uma realidade. Pois se este era o Paraíso Terreal,
não deveria possuir cobiçados tesouros em ouro, prata e pedras
preciosas? As inúmeras descrições do Paraíso feitas pelos
autores da época medieval referem-nas abundantemente. No
Brasil encontraram os portugueses aquelas que eles
consideraram as mais notáveis maravilhas existentes em toda a
superfície da esfera terrestre.
Tratando-se ainda apenas de uma simples esperança para
alguns, as minas das terras brasílicas nunca se imaginaram como
algo de inatingível, pois a evidente grandeza e opulência do
Brasil não consentiam impossibilidades. Nesta terra de eleição,
uma verdadeira procissão de maravilhas de lagoas douradas e
serras reluzentes geraram o pensamento de tesouros encobertos
e encantados do sertão.
Assim, para além dos bons e temperados ares, das
abundantes, doces, aprazíveis e salutíferas águas, do jardim
natural que constituía a exuberante vegetação do rio São
Francisco, encontravam-se também sinais de abundantíssimas
riquezas minerais. Gabriel Soares de Sousa diz a esse propósito
que «Ao longo deste rio vivem agora alguns caetês, [...] e além
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
169
delas vive outro gentio, não tratando dos que comunicam com
os portugueses que se ataviam com jóias de ouro de que há
certas informações». Afirma ainda o autor que «Depois que este
estado se descobriu por ordem dos reis passados, se trabalhou
muito para se acabar de descobrir este rio por todo o gentio que
nele viveu e por ele andou e afirmar que pelo seu sertão havia
serras de ouro e prata, à conta da qual informação se fizeram
muitas entradas de todas as capitanias sem poder ninguém
chegar ao cabo».328
E já Pêro Vaz de Caminha registava na sua missiva, que dava
conta ao rei D. Manuel do achamento da Terra de Vera Cruz, a
curiosa maneira como os portugueses, no seu desejo sempre
confessado de encontrar ouro, terão interpretado os sinais do
gentio que prontamente apontaram para terra quando
depararam com o colar de ouro do capitão: «acenderam tochas e
entraram e não fizeram nenhuma menção de cortesia nem de
falar ao capitão nem a ninguém; mas um deles pôs olho no colar
do capitão e começou a acenar com a mão para terra e depois
para o colar, como que nos dizia que havia em terra ouro; e
também viu um castiçal de prata, e assim mesmo acenava para a
terra e então para o castiçal, como que havia também prata».329
Verificamos, assim, que o desejo de encontrar o cobiçado
ouro nas possessões portuguesas da América moveu desde o
início as vontades de todos. Já em 1514, a «Nova Gazeta da
Terra do Brasil»330 informa que a carga de um navio, enviado
por D. Nuno Manuel, Cristóvão de Haro e outros, seria
constituída por enormes quantidades de pau-brasil, escravos,
peles de boa qualidade, referindo ainda a existência de
Notícia, op. cit., p. 24.
Carta ao Rei D. Manuel, op. cit., p. 12.
330 O autor da «Nova Gazeta da Terra do Brasil» era Clemente
Brandenburger, agente comercial ao serviço de uma casa de Antuérpia, que
na época se encontrava estabelecido na ilha da Madeira. Cf. Jorge Couto, A
Construção do Brasil, op. cit., p. 283.
328
329
170
A NATUREZA BRASILEIRA
canafístula, mel e cera, e informava da existência de enormes
quantidades de ouro e prata no interior montanhoso do Brasil.331
Em 1529, perante a necessidade evidente de afastar franceses
e espanhóis do território brasílico, o monarca português D. João
III vai recusar as duas propostas para criação de núcleos
populacionais ao longo da costa, feitas pelos particulares João de
Melo da Câmara e Cristóvão Jaques. Jorge Couto aventa a
hipótese de que o monarca português terá recusado estas
propostas, com base em fundadas informações acerca da
existência na região platina de jazidas importantes de metais
preciosos. D. João III decidia assim guardar para a coroa um
território que tudo indicava ser riquíssimo em ouro e prata.332
Ainda na década de 1530, foram dadas a Martim Afonso de
Sousa, para além de outras tarefas, as de assentar padrões em
sítios estratégicos da «Costa do Ouro e da Prata», que se
estendia desde São Vicente até ao rio de Santa Maria, e descobrir
metais preciosos.333
O humanista Gândavo refere também as notícias do muito
ouro que existirá no sertão brasílico. Estas notícias eram dadas
pelo gentio, homens que ele considera de pouca fé e verdade, a
quem, contudo, dava crédito, por a maior parte deles serem
conformes nesse ponto e falarem disso do mesmo modo em
diferentes sítios: «Esta província, além de ser tão fértil como
digo e abastada de todos os mantimentos necessários para a vida
do homem, é certo ser também mui rica e haver nela muito ouro
e pedraria, de que se tem grandes esperanças».334 O autor
assinala também as maravilhosas riquezas que os índios
encontraram no seu constante deambular à procura de uma terra
onde pudessem ter descanso eterno. Diz o autor que «pelo
trabalho e má vida que neste caminho passaram, morreram
muitos deles: e os que escaparam foram dar a uma terra onde
Ibid., op. cit., p. 283.
Cf. Jorge Couto, A Construção do Brasil, op. cit., p. 210.
333 Ibid., op. cit., p. 211.
334 História, op. cit., p. 117.
331
332
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
171
havia algumas povoações mui grandes e de muitos vizinhos, os
quais possuíam tanta riqueza que afirmaram haver ruas mui
compridas entre eles: nas quais se não fazia outra coisa senão
lavrar peças de ouro e pedraria».335
A paisagem mágica do Brasil ataviara-se de uma grande lagoa
fabulosamente rica que Gabriel Soares de Sousa procurou
afanosamente e que se vestiu para o cronista de cores
deslumbrantes e auréola paradisíaca: «Este gentio se afirma viver
à vista da alagoa Grande, afamada e desejada de se descobrir
[...]».336 Os sinais de abundantíssimas riquezas eram igualmente
evidentes em notícias de certos discos ornamentais dos gentios
de que falam o humanista Gândavo e o naturalista Gabriel
Soares. Afirma Gândavo: «[...] então lhes deram certas rodelas
todas chapadas de ouro e esmaltadas de esmeraldas: e lhes
pediram que as levassem, para que, se acaso fossem ter com eles
a suas terras, lhes dissessem que, se a troco daquelas peças e
outras semelhantes lhes queriam levar ferramentas e ter
comunicação com eles, o fizessem, que estavam prestes para os
receberem com muito boa vontade».337
Gabriel Soares de Sousa dá-nos conta, na sua Notícia do Brasil,
do afã dos portugueses na busca constante de ouro, prata e
pedras preciosas, relatando algumas das maravilhas vistas ou
ouvidas pelos expedicionários de pedras verdoengas: pedras
azuis e semelhantes a turquesas, pedreiras de esmeraldas e
safiras, montanhas de cristais verdes e vermelhos, compridos
como os dedos das mãos e ouro em quantidade, são algumas das
maravilhas por eles observadas. O autor afirma que «[...] mais
acima quatro ou cinco léguas da banda do sul está outra serra
em que afirma o gentio haver pedras verdes e vermelhas tão
compridas como dedos e outras azuis todas mui
resplandecentes».338
Ibid., op. cit., p. 117.
Notícia, op. cit., p. 24.
337 História, op. cit., p. 117.
338 Notícia, op. cit., p. 45.
335
336
172
A NATUREZA BRASILEIRA
Atestando o facto de as incursões dos portugueses no sertão
serem já uma realidade durante o século XVI, Gabriel Soares faz
referência à expedição do mameluco António Dias Adorno,
neto do Caramuru, nesta jornada, na qual, diz o autor, também
foram vistas esmeraldas e safiras, de que tiraram amostras.
Encontraram também pedras de tamanho invulgar e muito
pesadas. Dessas não levaram nada, pois não podiam carregar
mais do que as primeiras, julgando no entanto que deviam
conter ouro.339
O autor alude também ao modo que na época utilizavam
para extrair as pedras preciosas. Dizendo que ao encontrarem
algumas no meio do cristal, trataram de o aquecer ao fogo, com
o qual rebentava soltando assim as gemas. O resultado era que
estas pedras, mesmo limpas e de razoável tamanho, perdiam a
cor e brilho natural. Soares de Sousa justifica tal facto,
argumentando que isso se devia a estas constituírem a escória
das boas, ainda escondidas na terra, não sendo por isso de
admirar que os entendidos não lhes atribuíssem grande valor. A
solução por ele apontada era que se deviam procurar a maior
profundidade, onde acreditava se achavam as mais valiosas.340
Gabriel Soares de Sousa terá encontrado sinais de ouro e
prata na sua expedição ao sertão no lugar de Pedra Furada. As
minas de Potosi situavam-se muito perto do local, produzindo
fabulosas quantidades desse precioso metal desde 1542, o que
levou à divulgação de uma lenda sobre a existência de minas de
prata nesse local. Proliferou até a lenda de que existiria uma
cidade encantada (Manoa) que tinha a particularidade de brilhar
de tal modo que se assemelhava à Via Láctea.341
Ibid., op. cit., p. 45.
Ibid., op. cit., p. 45.
341 Cf. Laura de Mello e Souza, in: Brasil/Brasis Cousas Notáveis e espantosas – A
Construção do Brasil – 1500-1825, Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 2000, p. 42.
339
340
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
173
A grande riqueza aurífera do Brasil iria ser encontrada pelos
paulistas.342 No entanto, foi só cerca de 1693 e 1700 que se
encontraram as grandes minas de ouro da América portuguesa.
A miragem de adquirir riqueza fácil atraiu então milhares de
pessoas, verificando-se na época o maior movimento migratório
de sempre no espaço do Império Português.343
Depois das grandezas decorrentes e resultantes da prodigiosa
e fertilíssima natureza brasileira, importava analisar aquelas que
o homem soube introduzir nesta terra. Com o seu saber,
engenho, vontade, estes homens souberam tornar as enormes
potencialidades do Brasil lucrativas do ponto de vista
económico. Eram assim o resultado quer da extracção directa,
como por exemplo as madeiras, quer da transformação da
natureza, pelo cultivo, como é o caso do açúcar, aquela que foi
considerada a produção mais rentável das terras portuguesas da
América. As culturas e exploração do tabaco e algodão, assim
como a pecuária, revelaram-se igualmente rentáveis, e em
estreita dependência quer entre si, quer com as anteriormente
referidas. Finalmente, a descoberta das minas de ouro e pedras
preciosas, concretizada já em período posterior àquele sobre o
qual incide o nosso estudo, viria a concretizar o sonho maior,
342 Inicialmente, as incursões dos paulistas, realizadas ao interior do sertão e a
partir do planalto de Piratininga, tinham como finalidade principal a
escravização do íncola, para os utilizar como mão de obra e afastar os grupos
mais aguerridos. Posteriormente, as bandeiras tornaram-se mais ambiciosas e
com um raio mais vasto. Em 1655 organizou-se, por ordem do rei D. João
IV, e com o objectivo de resolver, deste modo, as dificuldades financeiras
que se viviam no reino, uma expedição à região do Pará, que procurava ouro.
Esta expedição foi dirigida por André Vidal de Negreiros, na altura
governador do Maranhão, e acabou por não dar os resultados pretendidos.
Também sem resultados e por ordem do monarca se realizou uma outra pelo
rio Tocantins em 1678. Em 1683 descobriram-se duas minas de ouro e prata,
uma no rio Urubu e outra no Jutumã. Cf. História da Expansão Portuguesa,
Volume 2, op. cit., pp. 48 e 64.
343 Cf. Laura de Melo e Sousa, in: Brasil/Brasis – Cousas Notáveis e espantosas –
A Construção do Brasil – 1500-1825, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 2000, p. 42.
174
A NATUREZA BRASILEIRA
aquele que desde o início, tinha alimentado todas as esperanças
de enriquecimento nas terras do Novo Mundo.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
175
Conclusão
No encontro com as terras do Novo Mundo, os portugueses
depararam-se com uma natureza que julgaram como
verdadeiramente paradisíaca. Verificámos como já Pêro Vaz de
Caminha, na sua missiva ao rei D. Manuel, dá conta de uma
terra magnífica, pejada de infindos arvoredos, abundante de
água, com um clima de tal modo ameno, que as folhas se
mantinham sempre verdes, em claro contraste com os rigores
dos invernos europeus. A visão do Paraíso Terrestre é, desde o
início, o que se pretende divulgar sobre essa terra
verdadeiramente extraordinária, onde se reconhecem quase
todos os símbolos característicos do Jardim das Delícias, sendo
os que não se vêem deixados à imaginação.
Todos os textos por nós analisados descrevem
unanimemente a paisagem brasileira, repleta de muitos e grandes
arvoredos, sempre verdes, com uma terra muito formosa,
fertilíssima, regada de abundantíssimas águas, repletas de muito,
variado e saboroso pescado, e com um clima ameno e
primaveril, bafejada de bons e salutares ares, abundante de aves
belíssimas vestidas de finas e alegres cores, que alegravam a vida
dos habitantes com os seus cantos celestiais.
Todos os nossos cronistas procuram transmitir a ideia de que
a Terra de Vera Cruz se assemelha a uma terra sem mal, onde os
seus habitantes não têm necessidade de trabalhar para poderem
viver muito melhor e mais saudáveis do que aqueles, que com
muito esforço a cultivam em todos os lugares já conhecidos.
É o exotismo, a beleza, a novidade, a abundância e a
variedade da flora e fauna destas paisagens ignotas que levam os
nautas, missionários, colonos e viajantes lusos a descreverem a
176
A NATUREZA BRASILEIRA
natureza brasílica como sendo verdadeiramente a do Jardim do
Éden. As anteriores representações do Jardim das Delícias
reflectem-se agora nesta terra recentemente descoberta. Tal
como o demonstram as fontes, nenhum dos coevos ficou imune
aos encantos do Brasil. Por esse motivo, nota-se nos seus
depoimentos a presença dos mesmos elementos que, durante
toda a Idade Média, se tinham apresentado como distintivos da
paisagem do Éden.
Sendo os motivos edénicos muito populares na época das
descobertas, era natural que perante as terras recém-descobertas
os navegadores pensassem reconhecer as paisagens de sonho
que tinham visto descritas, tanto em livros como em mapas. De
tal modo que julgaram ter deparado, nas suas viagens reais, com
o mundo dos mitos, que acreditaram fosse verdadeiro.
Os nossos cronistas demonstraram pois que, embora
localizado a Ocidente, o Brasil mantinha intactos todos os
indícios das descrições medievais do Paraíso Terrestre. Os
nossos autores do século XVI reencontraram no Brasil o Paraíso
Terreal. Este era, verdadeiramente, um maravilhoso e
extraordinário Novo Mundo associado a uma terra prodigiosa,
onde os motivos edénicos ganham cada vez mais consistência,
nomeadamente quando tentam um paralelo entre as correntes
do rio São Francisco e o Nilo, cujas águas teriam, segundo uma
velha tradição medieval, a sua origem no Éden. Também as
prodigiosas quantidades de água que encontraram no Brasil são
sinal de riquezas, tendo daí surgido a crença que, se ela existia
em abundância no Brasil, existiriam também o ouro e as pedras
preciosas, a que os cronistas fazem constantes alusões, sem que
nunca tenham perdido a esperança de as encontrar.
A longevidade era um outro motivo edénico, e também este
foi supostamente encontrado nas terras portuguesas do Novo
Mundo, sendo disso exemplo a alegada longevidade do índio
brasileiro, dada como verídica e confirmada por alguns dos
nossos autores.
Nem sequer falta, nestes textos por nós analisados e
relacionados com o Brasil, o maravilhoso monstruoso, factor
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
177
que comprova, mais uma vez, como esta terra foi considerada
parcialmente mítica, uma vez que o extraordinário se tornava
real e o melhor surgia ao lado do pior, realçando o monstro o
difícil acesso ao Paraíso.
Os animais fantásticos ou imaginários, tal como no
maravilhoso medieval, são igualmente uma constante nestes
relatos sobre a natureza do Novo Mundo. Surgem alusões, quer
à Fénix, identificada na figura do Guainumbig (ou beija-flor), quer
ao Unicórnio, na figura da Anhigma. O Unicórnio fazia a ligação
desta paisagem nova, estranha e habitada por criaturas
desconhecidas e fantásticas, com os seres imaginários que se
conheciam das tradições pagã e medieval. Ora, a existência
destes seres era para os coevos penhor seguro de que esta era
uma terra verdadeiramente paradisíaca, de tal forma que até o
missionário Fernão Cardim faz referência ao milagre do
processo de metamorfose e ressurreição do passarinho
(Guainumbig). Assim, a alusão ao fantástico e diferente só será
entendida como efeito de uma mão invisível, que lançou os seus
poderes sobrenaturais na formação e transformação desta
natureza. Era o deslumbramento perante uma natureza
grandiosa, ainda cheia de graça matinal, em perfeita harmonia e
correspondência com o Criador.
As grandezas do Brasil são, assim, aquelas que derivam da
sua natureza plena de novidade e estranhezas, é certo, mas
igualmente da abundância, que se traduz na variedade e
excelência das espécies autóctones, que proporcionam remédio
para todos os males e mantimento à imensa variedade daqueles
que a habitam. A excelência é de tal ordem, que o padre Fernão
Cardim chega mesmo ao ponto de chamar ao Brasil Um Novo
Portugal. Portugal, certamente porque as gentes chegadas do
reino foram baptizando com nomes portugueses: montes, rios,
riachos, baías, enseadas, lugares, cidades, ruas, instituições,
pessoas, peixes, pássaros, plantas, árvores, enfim, certamente
tudo o que foram encontrando e criando. Mas novo, porque
muito melhor, pois produzia mais e melhor tudo, o seu e o que
vinha do reino. Como é evidente, a intenção do nosso
178
A NATUREZA BRASILEIRA
missionário não seria de modo algum a de transmitir a ideia, de
que o Brasil era a cópia recém criada de Portugal, pois embora
baptizado com nomes portugueses, o território brasileiro era em
tudo superior.
Desde o início, todos os nossos cronistas acentuam a beleza
e exotismo das coloridas e harmoniosas paisagens brasileiras,
cujo exemplo mais significativo se encontra na bela descrição do
padre Fernão Cardim, que ao querer exaltar a formosura da Baía
do Rio de Janeiro, afirma que «parece que a pintou o supremo
pintor e arquitecto do mundo Deus Nosso Senhor».344 A
admiração e o reconhecimento por esta natureza são uma
constante, de tal modo que os cronistas chegam a considerar
como belo, aquilo que nem sempre é assim definido. Assim, a
terra é tão excelente que o inaciano Cardim chega a considerar
como formosas e odoríferas certas espécies de cobras.
As grandezas do Brasil manifestavam-se igualmente, para
todos os nossos cronistas, nas maravilhosas e diversas
sonoridades e no variado e formoso colorido das aves brasílicas.
As cores e sons das imensas e variadas aves brasileiras
revelavam, sem dúvida, a perfeição, a proporção e o esplendor
das belezas da natureza que caracterizava o território português
da América. De tal forma que, ao utilizarem as formosas
plumagens das aves brasileiras para vestirem o corpo, os íncolas
nos recordam a sua estreita relação com a natureza,
transformando a presença humana numa imagem colorida e bela
para aqueles que a observam.
As grandezas do Brasil serão igualmente relacionadas com a
prodigiosa fertilidade da terra, decorrente de um clima ameno e
da extraordinária abundância de águas. Mas as suas grandezas
ultrapassavam a semelhança do território brasileiro com o
Paraíso, de que conta a presença de quase todos os seus
símbolos. A excelência do Brasil concretizava-se na abundância,
na variedade, na beleza e no exotismo, que proporcionavam a
subsistência dos autóctones, sem que para tal fosse necessário
344
Tratados, op. cit., p. 272.
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
179
demasiado esforço, que transmitia, sem qualquer sombra de
dúvida, a ideia da proporção, perfeição e esplendor da natureza
brasileira.
As grandezas, primeiro vislumbradas no território brasileiro,
vieram a transformar-se com o tempo e a acção dos
colonizadores em fontes de rendimentos extraordinariamente
vultuosos. Neste caso, podemos, desde logo, referir as
abundantes, variadas e preciosas madeiras do Brasil, extraídas
das espessas e extensas matas brasílicas. As madeiras
transformaram-se facilmente, na primeira grande fonte de
rendimentos das terras de Vera Cruz. E se bem que inicialmente
a única que se revelou verdadeiramente rentável, foi a do paubrasil, devido às suas qualidades corantes que a tornavam, desde
logo, apetecível à próspera indústria têxtil europeia, o que é
certo é que com o tempo há uma imensa variedade de madeiras
brasileiras que se revelam, quer pelas suas características
estéticas, quer pelas suas várias utilidades, extremamente
valiosas.
A cana-de-açúcar, que veio alterar as paisagens brasílicas,
revelou-se o produto mais rentável do território brasileiro, de tal
modo que o seu comércio se manteve próspero até meados do
século XIX. A cultura da cana revelou a extrema fertilidade e
abundância da terra brasileira. Era a confirmação de que as
verdadeiras grandezas do Brasil se deviam realmente à
surpreendente fertilidade do seu solo, à amenidade do clima e à
abundância de águas. A maior grandeza e riqueza do território
brasileiro era a sua natureza, que sendo ubérrima, era geradora
de muitas outras grandezas, todas elas relacionadas com as suas
características naturais. No Brasil reuniram-se todas as
condições que levaram a que, pela primeira vez, se iniciasse em
grande escala a ocupação e colonização da terra, fora do espaço
metropolitano. Era a primeira vez que entrava no circuito
ultramarino um sector agrícola. É a primeira vez que se assiste
também à implantação de um sistema industrial, em volta da
transformação da cana. Tudo isto leva a que um vasto leque da
180
A NATUREZA BRASILEIRA
população metropolitana se sinta atraída para integrar o número
dos colonizadores desta terra.
Mas na activação da economia brasileira entram ainda outros
sectores e culturas igualmente relevantes. Sendo a terra de Vera
Cruz também extremamente propícia à criação de gado, a
pecuária transformou-se igualmente num grande agente de
ocupação da terra, tendo proporcionado também rendimentos
consistentes. E não podemos ignorar as culturas do tabaco e
algodão, também relevantes, porque significativamente
lucrativas.
No entanto, as grandezas naturais do Brasil só se
completaram, quando em finais do século XVII e princípios do
XVIII se descobriram as grandes minas de ouro e pedras
preciosas da América portuguesa. Era a concretização do sonho
maior, que desde o início da descoberta do Novo Mundo tinha
agitado as mentes de todos aqueles que sucessivamente foram
aportando às terras de Vera Cruz.
Progrediu de tal forma a riqueza no Brasil, que já em 1610
um forasteiro, Francisco Pyrard de Laval, retratou a
prosperidade brasileira do seguinte modo: «A riqueza desta terra
é principalmente em açúcares dos quais os portugueses carregam
seus navios (principalmente em Pernambuco que é o lugar onde
se faz maior tráfico de açúcares e onde se produz maior
quantidade de pau do Brasil), porque não julgo que haja em
todo o mundo, onde se crie açúcar em tanta abundância como
ali. Não se fala em França senão do açúcar da Madeira e da Ilha
de S. Tomé mas este é uma bagatela em comparação do, do
Brasil, porque na Ilha da Madeira não há mais de sete ou oito
engenhos a fazer açúcar, e quatro ou cinco na de S. Tomé. [...].
O que os portugueses extraem deste país é dinheiro, açúcar,
conservas, bálsamo e tabaco, mas não pau-brasil que El-Rei
reserva para si. Nunca vi terra onde o dinheiro seja tão comum,
como é nesta do Brasil, [...]. Nesta terra do Brasil os portugueses
não têm gente bastante para a povoar e ocupam toda a costa
onde têm quantidade de cidades, fortalezas e belas casas nobres,
até vinte e trinta léguas pelo sertão. Há senhores que possuem
MARIA LUCÍLIA BARBOSA SEIXAS
181
grandes territórios e neles muitos engenhos de açúcar. E estes
senhores dão terras a quem quer ir morar nelas e plantar canas
de açúcar, com a condição de mandarem moer estas aos
moinhos e engenhos dos mesmos senhores. Estes colonos
edificam ali casas, com jardins e plantações de toda a sorte de
frutos, criam muito gado, aves e outros comestíveis. [...]. Desta
maneira, o rendimento do Brasil é mais que suficiente para sua
sustentação sem necessidade de enviar dinheiro de Portugal e
ainda por cima de tudo, El-Rei tira dali outros muitos proveitos
em cada ano assim em pau-brasil, como nos açúcares e outras
mercadorias [...].
Os que do Brasil tornam para Portugal carregam seus navios
de açúcares e conservas, assim secas como liquidas, tais como
laranjas, limões, e outras frutas e principalmente gengibre verde,
do qual há nestas paragens maravilhosa abundância ... e além de
tudo isto, levam grande quantidade de dinheiro. Depois de
estarem nove ou dez anos nestas terras recolhem mui ricos
[...]».345
Em suma o que melhor caracterizou o território brasileiro
foram a novidade, a estranheza, a abundância, a variedade, a
excelência, a beleza e o exotismo da sua natureza. Por fim, as
grandezas naturais do seu solo e subsolo transformaram-se em
abundantes e extraordinárias riquezas, as quais estiveram,
certamente, na base da criação e formação da imagem de um
extraordinário «País Continente»: o Brasil.
Todas estas qualidades apareceram, desde cedo, descritas e
caracterizadas pelos nossos autores, atentos a este maravilhoso
Novo Mundo.
Cit. in: História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa – Linhas e Rumos da
Colonização Portuguesa, Aurélio de Oliveira, Universidade Aberta, Lisboa, 1990,
pp. 301-302.
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