Eternos Como o Amor

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Eternos Como o Amor
ETERNOS COMO O AMOR
Extremos são como lentes que revelam o estado mais puro das coisas. Desse modo, quando expostas à pressão, rudes
uvas destilam o doce vinho, capaz de inebriar o mais sóbrio coração. Não à toa, a Bíblia utiliza justamente a metáfora de
uvas sendo esmagadas para descrever o caminho pelo qual devemos passar antes de “entrarmos no Reino de Deus” (Atos
14.22b). O radical grego utilizado para aquilo que entendemos por “tribulação”, θλιψις (thlipsis), metaforiza o processo de
criação do vinho, aquele em que as frutas são esmagadas para alcançar a excelência do sabor que conquistou reis e derru­
bou impérios.
A bebida, que aquece corações, os óleos, que embelezam o corpo, o perfume, que enfeitiça a alma, tudo que nos define e
nos faz suspirar nesse “Dia dos Namorados”, é produto da pressão, resultado de coisas simples que revelaram­se fantásti­
cas quando expostas a extremos. Mas quando ligamos a televisão ou lemos os jornais, conectando nossas mentes a grande
“colméia” global de parasitas, somos expostos ao lixo do qual querem que nos alimentemos. A didática do medíocre, que
a publicidade nos empurra goela abaixo nesses dias, ensina o amor como matéria fácil, resumida a uma ou duas lições de
sexo animal, bons suspiros, uma gorda fatura no cartão de crédito, e só. Dormimos nas restantes trezentas e sessenta e
quatro noites do ano sozinhos, como se nada tivesse acontecido. O animalesco que atribuem ao sexo, aliás, anuncia o fu­
turo que nos espera logo ali, quando negociarmos em Wall Street a última gleba de humanidade que resta em nossa cons­
ciência coletiva.
Essas noites frias de inverno me fazem pensar. A estática, que nos prende em casa, e confina o intelecto a livros esqueci­
dos em prateleiras empoeiradas, também liberta a noção da coletividade absurda, e finalmente podemos vislumbrar al­
guns momentos de interação com o real. Por mais absurdo que pareça, a realidade não consiste no dia­a­dia de palavras e
gestos trocados, com uma ou duas dúzias de indivíduos de nosso círculo de convivência, mas naquilo que realmente so­
mos e pensamos. É impossível ser quem realmente sou quando sei que todos me observam, medindo minhas fraquezas e
desejando as qualidades, como serpentes prontas a dar o bote, e quando sei que eles, “pessoas normais” também fingem
ser quem não são, a maioria simplesmente porque se esqueceu de quem era antes de ser subjugada pela “maioria”.
Não que concorde com a subversão sociopata que assola nossa juventude nessa geração. Considero­a hipócrita até, por­
que, embora tentem destruir a todo o custo a sociedade que eles julgam pervertida, não tem escrúpulos em utilizar­se
dela e de seus meios, pasmatório que seja, até para divulgar suas idéias. Nem tomo a bandeira apologética da misantro­
pia, precisamos uns dos outros, e nossa existência não tem sentido na solidão fria desses quartos e dos teclados que acari­
ciam nossos egos. Sem temer o abismo do clichê, cito o Bardo Inglês, numa de suas mais citadas citações:
Ser ou não ser, eis a questão. Qual será o caminho mais nobre? Suportar as pedradas e as flechadas da fortuna cruel ou pe­
gar em armas contra um mundo de dores e terminar com elas resistindo? – Shakespeare, Hamlet, ato III, cena 1.
Não tenho namorada, e nada além das cobertas aquece minhas noites no inverno. Não há mulher que eu ame nesse imen­
so mundo, mas será que só por isso não posso celebrar o amor e fazer dele um norte? “Re”citando o poeta:
O amor quando cala por tolhido, então nos fala melhor que as fátuas veemências. – Sonho de Uma Noite de Verão, Ato V, cena 3.
Nada me enoja e assusta mais que o impulso daqueles mal amados a buscar o par perfeito que o mundo lhes fez acreditar
existir. Nas igrejas, os crentes transformaram o casamento numa espécie de licença para “sexo sem pecado”, basta participar
de uma cerimônia e observar o olhar safado dos noivos, que desejam mais a Lua de Mel que o “sim” no altar. Fora dos
“santuários” a “Sexo Livre S. A.” transformou cada indivíduo num prostíbulo. Na verdade, quase todos trabalham para
essa empresa, como simples funcionários, “colaboradores” do prazer. E pergunto a você, gentil e generoso “namorado”: o
presente comprado para esse ditoso dia é uma expressão sincera da paixão que o atrai para seu par, ou o preço necessário
para um beijo, uma boa transa, mais uma noite de prazer? Se o mimo é sincero, e expressa seu intenso amor, por que não
o entregou ontem? Mês passado? Por que nesse dia?
Para trás filosofia! Se ela não pode fazer uma Julieta, mudar de lugar uma cidade, revogar a sentença dum Príncipe, para
que serve a filosofia? – Romeu e Julieta, ato III, cena 3.
Quando o jovem Montecchio proferiu estas palavras, banido dos muros de Verona e isolado do amor de sua vida, conde­
nou­nos todos que julgamos amar. Porque nesta frase o imortal Romeu renuncia a tudo mais em sua vida, seu nome, sua
honra, a própria razão, pelo amor de uma mulher. Posso não amar ninguém, mas não preciso de alguém para saber o que
é o amor. Acredito até que, se necessitarmos de estímulo externo para exercitar nossas faculdades sentimentais, provamos
uma frieza de coração e incapacidade de sentir, encontrada somente em animais que precisam do cio para procriar. Não,
caros leitores, o amor é intrínseco a alma humana, se admitimos uma Criação, e realmente cremos que Deus caritas est (1ª
João 4.16), não podemos ignorar que a própria essência que move o universo é o elemento fundamental de nossas almas.
Diz a Bíblia que Deus deu seu sopro a Adão, e ele se tornou “Alma vivente” (Gênesis 2.7), se Ele é amor, logo, a mesma
força que faz as marés, que guia a Terra em sua viagem pelo Universo, que torna cada estrela brilhante, o mesmo Amor
que criou o mundo e tudo o que nele há, sopra em nossos corações. E a Bíblia fala de outro sentimento muito interessante:
Para tudo há uma ocasião certa; há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu: [...] tempo de abraçar e tempo de se
conter, tempo de procurar e tempo de desistir, tempo de guardar e tempo de jogar fora, [...] tempo de amar e tempo de odiar, tempo
de lutar e tempo de viver em paz. [...] Tenho visto o fardo que Deus impôs aos homens. Ele fez tudo apropriadamente ao seu
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tempo. Também pôs no coração do homem o anseio pela eternidade; mesmo assim ele não consegue compreender inteiramente o
que Deus fez. – Eclesiastes 3.1,5b,8,10,11.
O amor que Shakespeare pôs nos lábios e no coração de Romeu transcende a trivialidade, o amor que sinto em meu cora­
ção é eterno como a chama divina que flamula na alma humana. Não posso conceber um amor que tenha começo ou fim,
um amor que necessite de impulsos para ser ativado, que precise de sexo para tornar­se agradável. O amor não deve “du­
rar”, ter prazo de validade como um produto qualquer, porque a eternidade está além do tempo. Acredito que os amores
simplesmente se encontram. E quando encontrar o meu, aquilo que está latente em mim vai sinalizar ao coração que a
busca terminou, e finalmente vou entender porque considerei belo cada pôr­do­sol, porque divaguei em meio ao céu es­
trelado, porque cada flor me pareceu especial e única. Finalmente direi:
Oh! Ela deve ensinar as tochas a brilharem esplendidamente! Beleza riquíssima para ser usada e cara demais para a terra!
[...] Se profano com minha mão por demais indigna esse santo relicário, a gentil expiação é esta: meus lábios, dois ruborizados
peregrinos, estão prontos a suavizar com um beijo tão rude contato. – Romeu e Julieta, ato I, cena 5.
E ela não será como me disseram que deveria ser. Nem sua beleza será como aquela desejada e exibida pelos homens. Ela
será exatamente quem é: perfeita. Porque é o amor quem determina a perfeição. E cada defeito suprimir­se­á pela grande­
za da paixão. E quando a paixão cessar, nossos corações vão rir das loucuras cometidas, e nossas almas deleitar­se­ão com
os simples momentos de silêncio, quando as mãos se encontram. E o mundo passará mais devagar, como que desfilando
sua beleza a um casal de reis, ao menos, a um casal real.
A realidade não está escrita em livros, nem pode ser expressa pela imaginação dos homens. Ela é real no campo da eterni­
dade, nas dimensões divinas que nos tornam filhos de Deus. Ela é real para os que desejam ir além da obviedade desse
mundo. Nessa realidade, e nesse “Admirável Mundo Novo”, não somos solteiros desperdiçando nossa virgindade numa
utópica espera pelo amor platônico. Somos pares de uma união maior que nós, desenhada e desejada pelo Eterno, e é ape­
nas uma questão de ocasião até que sintamos pulsar dentro de nós uma força tão grande que moverá até mesmo os pila­
res do ceticismo, e nos fará não apenas crer, mas viver o verdadeiro amor.
A pós­modernidade, da qual os homens tanto se orgulham, é pautada pelo efêmero, alimentada pelo trivial, sustentada
pela imoralidade, ostentada pela ignorância coletiva e generalizada como um marco civilizatório da humanidade. Esse
mundo, que marca datas e nos impõe dias para dizer o que sentimos, escravizou a razão e desfigurou o sonho. A única
arma que temos contra ele é a fé, a única maneira de sobrevivermos ao Armagedon da nossa era, quando a própria essên­
cia da civilização for substituída pela ferocidade animal da economia de mercado, é lutar pelos ideais do amor, utópicos
para as massas ignorantes, mas reais nos corações imersos na eternidade.
Essa busca pelo “amor perfeito”, pela alma que completará nossa existência, requer coragem e perseverança. Requer noi­
tes frias e solitárias, quando a única coisa capaz de aquecer nossos corações é a idealização da beleza e da perfeição dese­
jadas. E a atitude mais corajosa que um homem pode tomar na vida é render­se a paixão, que fulmina a razão e abre as
portas da eternidade através do amor. Essa rendição implica em abdicar de tudo que se pensou ser, e entender de uma
vez por todas que a vida foi feita para ser vivida, não discutida em círculos tão restritos por sua ortodoxia que acabam
nos encarcerando dentro de nossas próprias idéias. Essa é a solidão que mais castiga o homem. Acreditar tanto em algo
que acaba por sentir­se sozinho mesmo em meio a multidão, uma vez que não há quem quer que seja capaz de entender e
pensar como ele.
O amor é singular, e aceitar essa singularidade faz parte dos extremos, das tribulações necessárias para adentrar­mos em
Seu Reino. Nós, sonhadores e românticos utópicos, estamos expostos a isto todos os dias. Somos pressionados pelo olhar in­
vejoso de quem não é capaz de ser feliz sozinho, e passa a vida mendigando o carinho de quem mal se importa consigo
mesmo. Somos perseguidos pelo modelo de relacionamento que crucifica a amizade e oferece sacrifícios nos altares do
“Orgasmo Múltiplo”. Somos taxados, apelidados, caçoados. Mas devemos saber pelo que esperamos, e saber encontrar
aquilo que procuramos.
E quando encontrarmos!
Prefiro deixar em branco tal parágrafo. Prefiro esperar, em Deus, com Ele, por Ela. E deixar que a própria vida me ensine
a ler a história que me foi escrita. Deixar de escrever a sós, e permitir que Ela, minha amada, preencha com emoção e deli­
cadeza as entrelinhas de nosso futuro.
Não sei onde procurar, aliás, esse não deve ser o tipo de coisa que encontramos em bares ou igrejas, nem em lojas de con­
veniência. É o tipo de busca que começa dentro de nós mesmos, no belo dia em que olhamos aquele reflexo que por tanto
tempo pareceu estranho no espelho, e descobrimos que aquele ali “sou eu!”. A eternidade então começa dentro de nossos
corações, porque o próprio Deus plantou esse desejo em nós. E alguns começam aí seu tempo de amar, primeiro a vida,
depois os amigos, depois...
O depois começa hoje, começará amanhã, um dia desses. E nesse dia, quando nossos caminhos se cruzarem, quando nos
encontrarmos e a solidão eterna passar a ser plenitude infinita, seremos “para sempre” como deve ser todo o grande amor.
Aí então, finalmente, não existirá mais um “Dia dos Namorados”, porque namoros verdadeiros não precisam de calendá­
rio, amores verdadeiros transcendem a nós mesmos e nos definem como homens.
Essa é a opinião do Aheb sobre o amor.
Soli Deo gloria et gratia. Curitiba, 12 de junho de 2008.
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