Retomada de Terras e Cosmologia Guarani

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Retomada de Terras e Cosmologia Guarani
Retomada de Terras e Cosmologia Guarani/Kaiowá: uma Abordabgem a
Partir de uma História de Vida
Adão Ferreira Benites – Acadêmico do Curso de Licenciatura Indígena Teko Arandu
(UFGD/FAED)
Profº Dr. Protásio Paulo Langer - Orientador
Inicialmente quero registrar, resumidamente, a minha história como Ava Kaiowá
pertencente às famílias extensas guarani-kaiowá Benites e Romero, do tekoha
Jaguapiré-Memby e Jukeri, incluindo a minha trajetória de vida e minha experiência de
professor-indígena em três aldeias distintas (T.I.Jaguapiré, município de Tacuru,
Campestre, município de Antônio João e Bororó, município de Dourados).
Considero fundamental uma parte da minha história pessoal e estudantil para
fundamentar este trabalho de final do curso de Licenciatura Indígena na Universidade
Federal da Grande Dourados. Por essa razão, ao longo deste trabalho procurei relatar as
experiências múltiplas vivida na escola da Terra Indígena Recuperada (T.I.R) JaguapiréTacuru-MS, reserva/aldeia Campestre, (Antonio João) e reserva/aldeia Bororó
(Dourados-MS).
Nasci no dia 02 de setembro de 1977 na aldeia/reserva indígena Sassoró.
Segundo narração da minha mãe, meu nascimento ocorreu de acordo com o ritual de
parto natural e tradicional guarani-kaiowá. Este processo de parto aconteceu sob
cuidado de uma rezadora-parteira experiente, portadora de várias rezas - ñembo’e específicas para a realização do parto e ela era conhecedora de plantas medicinais pohã ñana. Ela assumiu a função importante de observar e acompanhar a minha mãe e a
mim, desde o primeiro mês de gravidez até o parto final. Ou seja, esta parteira
religiosamente cuidou de mim e da minha mãe a partir do primeiro mês de vida até o
meu nascimento (por 09 meses). Esta parteira era parenta da minha família extensa - ore
hente kuera. Além disso, há muito tempo, ela já era parteira/comadre “comare” da
minha mãe e de outras parentas. Sobretudo, ela era conselheira e detinha poder
educativo e sua autoridade legítima é reconhecida por ser uma parteira da família
extensa, tendo boa relação com a minha família nuclear (pai, mãe, filhos e filhas),
visitando-nos com freqüência para observar e monitorar, principalmente nossos estados
de saúde, etc.
A minha mãe e o meu pai narram ainda que com um mês de vida, passei por um
ritual de assentamento de nome/alma no corpo - mitã mongarai -, isto é, fui “batizado”
por um rezador ñanderu que era de confiança da minha família. Este ritual foi realizado
durante a noite na casa deste rezador onde se encontrava os instrumentos rituais
requeridos pelo ritual, denominados de xiru marangatu, trazendo meu nome e/ou alma che ayvu réra - após convocar repetidamente por meio das diversas rezas especiais ñengary ayvu reruhá - para assentar a alma no corpo. Assim, na madrugada, após longo
ritual vital de evocação do nome/alma - ñengary ayvu renoiha-, coordenado por um
rezador – ñanderu-, e seu auxilar - yvyra´ija-, acompanhado do meu pai, minha mãe e
casais convidados, foi recepcionado o meu nome/alma - che ayvu réra - sob a
iluminação de uma vela feita de cera de abelha - jate’i araity.
O nome da minha alma - che ayvu réra – é Ava Rete Rendy que significa
“homem de corpo iluminado”. A minha mãe afirmou-me que este processo preparatório
do ritual de assentamento do nome/alma - mitã mongarai - foi organizado um mês antes
com a realização do ritual de jeroky, também denominado de mitã mongarai, somente
para recepcionar o meu nome/alma - che ayvu réra -, envolvendo a minha família
inteira. Naquele período preparatório, o meu pai teve que procurar o mel e cera de
abelha especial - jate’i. Da cera - araity – da abelha jate’i era feita um tipo de vela. Esta
vela era utilizada para iluminar a chegada do meu nome/alma. Três dias antes do ritual
de assentamento do nome/alma, a minha mãe teve que preparar bebida fermentada xixa - para ser consumida durante este ritual religioso.
De forma geral, durante o meu crescimento o meu nome/alma e o meu corpo
passaram por diversos processos educativos de tratamento religiosos, através dos rituais
de curas e prevenções tradicionais, um conjunto de cuidados práticos e rituais
denominado de - pohano-ñembo’é rupi. Desse modo, nasci e cresci sob cuidado
especial, conforme a orientação da parteira e do rezador - ñanderu - que assentou o meu
nome/alma, determinando a forma de se comportar comigo e de me educar pelos
membros da minha família extensa (minha mãe, meu pai, meu avô e minha avó, tios e
tias).
A partir de agora, passo narrar sinteticamente a minha trajetória estudantil. Pela
primeira vez, no final da década 80, quando tinha 09 anos de idade e vivia na
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aldeia/Posto Indígena Sassoró, comecei a freqüentar a educação escolar municipal (de 1ª
a 4ª série), instalada no centro desta aldeia onde fui alfabetizado e estudei da 1ª à 4ª
séries do antigo 1º Grau. A minha primeira professora foi uma professora-indígena da
aldeia Sassoró. Esta escola em que estudei ficava a mais ou menos 07 km da casa da
minha mãe. Após ser reformada e ampliada essa escola permanece até hoje, atendendo
as crianças da aldeia.
Antes de continuar a descrição da minha história estudantil, gostaria de registrar
a trajetória e luta fundamental dos membros da minha família extensa (meus bisavôs,
minhas bisavós, meu avô, minha avó, meu pai, minha mãe, meus tios, minhas tias, meus
primos, minhas primas) pelo território – tekoha - tradicional ao qual eles pertencem. A
minha família extensa é originária do tekoha Jaguapiré, do qual foi expulsa de modo
violento por pistoleiros das fazendas na década de 70. Por isso, tiveram que se assentar
em um cantinho da aldeia Sassoró até o final de 1980. A partir da aldeia Sassoró, os
membros da minha família realizaram uma luta intensa junta às famílias extensas
Vargas e Ximenes para retornar e recuperar à Jaguapiré. Essas famílias conseguiram
retomar definitivamente uma parte dessa área somente em maio de 1992. Foi no período
de 1980 a 1992, marcados por intensos conflitos com fazendeiros do município de
Tacuru, que teve início a minha história como aluno da escola da aldeia Sassoró.
Naquele período, ainda criança, freqüentemente ia com meu pai participar do evento
ritual religioso – jeroky - e ritual profano - guachire - que acontecia com freqüência em
Jaguapiré.
Recordo que já naquela época, ou seja, em meados da década de 80, por conta
desse conflito citado, em Jaguapiré ocorria com mais freqüência o ritual religioso jeroky - na casa do líder de parentela – tamõi - de nome Moreno Ximenes e de sua
esposa, também líder de parentela - jaryi – de nome Tomazia Vargas onde tinha os
instrumentos rituais denominados de - xiru marangatu. Lembro ainda que em Sassoró,
na casa do meu bisavô, Catulino Romero e do avô José Benites, tinham também xiru
marangatu, por isso nesses locais também eram realizados rituais religiosos - jeroky nas casas dos meus avôs e bisavôs. Porém o ritual - jeroky - era realizado com menos
freqüência. Isto porque, ao mesmo tempo, os missionários da Missão Evangélica Caiuá
(MEC) realizavam cultos cristãos em todos finais de semana, o que meus avôs
denominavam de - karai crente curto. Tais rituais cristãos eram realizados inclusive na
casa do avô José Benites. Eu era ainda criança, mas recordo que os membros da minha
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família participavam freqüentemente, também dos rituais evangélico cristão desses
missionários, cantando hino evangélico em língua guarani-kaiowá e orando com os
olhos fechados. Por isso, os membros da minha família extensa tinham boa relação de
amizade e respeito com os missionários da Missão Evangelica Caiowá em Sassoró.
Como os missionários dispunham de recursos como remédios e roupas usadas que eram
dadas aos índios, comparecer aos cultos era uma forma de assegurar o acesso a tais
bens.
Por fim, em 1992, ainda adolescente - mitã karia’y - retornei a Jaguapiré com a
minha família extensa. Entre 1995 e 1999 concluí o antigo primeiro grau e também
nesse período substituía, eventualmente, meu irmão Tonico Benites, que era professor
na escola no tekoha Jaguapiré. Depois em 1999, já como professor indígena contratado
pela prefeitura de Tacuru-MS, fui aluno do curso de formação de professores
Guarani/Kaiowá Ara Vera, que concluí em 2003. Finalmente, desde 2006, estou sendo
aluno-pesquisador do Curso Superior de Licenciatura Intercultural -Teko Arandu.
Como professor-indígena, e como aluno do Curso Superior Teko Arandu, entre
2002 a 2008, trabalhei como professor e coordenador da Escola Indígena em duas
aldeias guarani-kaiowá localizadas em distintos municípios.
A partir de 2002, através de casamento, passei fazer parte da organização social
da família extensa da minha esposa. A família extensa da minha esposa é pertencente ao
tekoha Ñanderu Marangatu. Desde a década de 80, os membros desta família, junto à
outra família, já vinham lutando pela recuperação do território Ñanderu MarangatuAntonio João-MS, localizada na faixa de fronteira Brasil com o Paraguai.
No período de 2002 até 2006 fui coordenador da Escola Municipal Marçal de
Souza “Tupã’i” na aldeia Guarani-Kaiowá Campestre, localizada no município de
Antonio João-MS. Aldeia Campestre é uma minúscula área com extensão de 60 ha onde
estão assentadas muitas famílias originárias do tekoha Ñanderu Marangatu. Ao lado
desta pequena área foi instalada uma igreja pela Missão Evangélica Caiua (MEC). Um
casal indígena é responsável pela igreja.
Em 1999, uma parte do território - tekoha guasu - Ñanderu Marangatu foi
reocupada por famílias extensas originárias deste tekoha. Antes de efetivar a retomada
da parte deste tekoha Ñanderu Marangatu foi realizado com freqüência o ritual religioso
- jeroky - por rezadores – ñanderu - locais envolvendo os Membros das famílias do
tekoha Ñanderu Marangatu. Um dos objetivos desses rituais diários - jeroky py’i - era
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para comunicar ao Tupã/ Ñanderu Vussu (deuses) da decisão da retomada, pedindo
acompanhamento espiritual e proteção dos deuses no momento da retomada da terra
tradicional tekoha Ñanderu Marangatu.
Segundo os rezadores envolvidos, este ritual é exclusivamente para alcançar o
objetivo de retomada do território. Depois da retomada da parte do tekoha Ñanderu
Marangatu continuaram realizando diariamente o ritual religioso sagrado - jeroky - que
foi coordenado por um ñanderu prestigioso e reconhecido no amplo território GuaraniKaiowá. Este rezador, - ñanderu tamõi guasu -, é o Ataná Teixera. Há décadas, ele já
vinha acompanhando e realizando diferentes tipos de rituais em todo o território
recuperado no Cone Sul do MS.
Segundo ñamoi1 Ataná, os rituais – jeroky - e as rezas - ñengary - não são
iguais, não têm as mesmas funções. Portanto, há diferente tipo de ritual: cada reza e
ritual é realizado para resolver um determinado “problema” específico do indivíduo e do
coletivo. Por exemplo, um ritual pode ser realizado para verificar o estado do nome/
alma dos doentes. Este ritual tem função de busca e da chamada da alma distanciada do
corpo do paciente e processo de cura, etc. Outro ritual e reza pode ser para convocar os
seres dos espíritos guardiões - ñangarekoha - da defesa e a proteção ao coletivo no
processo de retomada (ritual de defesa e proteção) entre outros. Nesse sentido, os rituais
diversos – jeroky - são acionados de acordo com os contextos e situações específicas.
Assim, no tekoha Nanderu Marangatu, em várias conversas comigo, durante alguns
anos, o Ataná deixou claro que os rituais - jeroky - diversos e rezas – ñengary - são para
atender tanto a necessidade e interesses de um indivíduo e quanto de coletividade ou
família extensa.
A palavra ñamoi significa avô. Nesse caso trata-se de um avô ñanderu (rezador).
O ñanderu Ataná ficou morando em tekoha Ñanderu Marangatu por alguns anos,
exercendo uma das importantes funções das lideranças religiosas das famílias desse
tekoha. Em dezembro de 2005 as famílias dessa área reocupada foram despejadas por
ordem judicial. Naquele momento a situação era muito tensa e desesperadora. Esse
episódio foi registrado em vídeo que pode ser visto no site Yuo Tube. Um canal
educativo da Holanda usou essas imagens para denunciar a forma truculenta da atuação
da Polícia Federal no despejo. Nesses dias de aflição os rituais religiosos foram
realizados diariamente para a comunidade se sentir protegida das ameaças adversas e
dos perigos das ações policiais.
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É importante destacar que entre 1999 a 2005, neste território retomado de
Ñanderu Marangatu não foi aceito a instalação de nenhuma igreja e nem a realização de
qualquer ritual não indígena uma vez que, naquele período era realizado com freqüência
o ritual religioso – jeroky -, coordenado em peso por rezadores – ñanderu - e seus
auxiliares - yvyra’ija. Por isso não era permitido o ritual da igreja cristã. Esse ritual está
na base da busca de boas condições de vida, de terra e de moradia. Ou seja, a luta pela
terra está permeada de noção e sentimentos religiosos. Meliá expressou essa concepção
de terra da seguinte maneira:
La buena tierra guarani es tan real porque su fundamento no es la naturaleza en
si, sino el acto religioso que le da principio y la conserva. Cada una de las
naciones guarani tiene una concepción y símbolos propios para significar este
fundamento y este centro de su cosmo, pero todos concuerdan en hacer depender
la bondad de la tierra y su conservación, su perfección y su estabilidad, de la
salvaguard de esse fundamento central. (Meliá, 1991, p. 67).
Como já falei antes, durante a minha permanência na aldeia Campestre entre
2002 a 2006, na condição de professor coordenador da escola, porta-voz e interprete
indicado pelas lideranças das famílias extensas da área tekoha Ñanderu Marangatu
retomada participei freqüentemente das diversas reuniões com as autoridades ligadas
aos órgãos públicos federais, estaduais e municipais (FUNAI, FUNASA, MPF, Direitos
Humanos, etc.) Além disso, passei a participar mais de perto da grande assembléia
Guarani e Kaiowá Aty Guasu, reivindicando os interesses do conjunto das famílias
extensas que retomaram tekoha Ñanderu Marangatu. Esta experiência vivida por 04
anos juntos às lideranças tradicionais do tekoha Ñanderu Marangatu (lideranças e
rezadores) foi extremamente significante e determinante para minha vida pessoal e
acadêmica.
Como já explicitado, durante este conflito das famílias extensas Kaiowá contra
os fazendeiros, pela posse do território Ñanderu Marangatu, acompanhei várias
audiências e viagens de lideranças idosas que eram indagadas por antropólogos,
pesquisadores e autoridades governamentais do Estado. Nessas audiências, minha
função era traduzir e intermediar as entrevistas solicitadas. Em meio a essas reuniões,
elaborei também muitas vezes, a pedido das lideranças indígenas, documentos diversos,
escritos em língua portuguesa, nos quais constavam as decisões e as reivindicações das
lideranças das famílias Guarani e Kaiowá.
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Assim, naquele período, (entre 2002 a 2006) além de professor e coordenador da
Escola Indígena, começou também a minha história como tradutor - interprete
informante e porta-voz político reconhecido no tekoha Ñanderu Marangatu. Mas,
quando me afastei desse tekoha, no segundo semestre de 2006, particularmente senti
que vinha perdendo a legitimidade do papel de representante do tekoha Ñanderu
Marangatu, uma vez que já estava distante do território e da família extensa citada. A
partir dessa minha experiência vivida, pude perceber que o papel do representante
político e porta-voz da família extensa em terra de conflito é mais legítimo quando tal
representante mora e convive cotidianamente no território junto às demais lideranças
políticas - mburuvixa - e religiosas - ñanderu - das famílias extensas envolvidas.
No final de 2006, prestei um concurso público diferenciado para cargo de
professor-Kaiowá na Prefeitura Municipal de Dourados-MS. Fui aprovado, e para
assumir o novo cargo tive que me mudar da aldeia Campestre, no município de Antonio
João para a aldeia Bororó, no município de Dourados-MS. Já na aldeia Bororó, logo no
começo de 2007 assumi o cargo de coordenador pedagógico da Escola Indígena
Araporã.
Aqui, gostaria de diferenciar o território em conflito, onde morei desde 2002 até
2006, da reserva de Bororó, em que comecei morar em 2007. Esta aldeia/reserva Bororó
é a primeira reserva indígena demarcada pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em
1915 e estão superlotadas com muita interferência externa, disputas internas entre os
próprios líderes e os membros de várias famílias extensas. A meu ver, essas condições
geram diversas formas de violências. Nesta reserva, há décadas estão instaladas e
atuantes diversas igrejas protestantes, católica e neopentecostal, etc. Esta parte do
território indígena não se encontra em conflito e disputa com os fazendeiros locais.
Nesse sentido a aldeia Bororó é totalmente diferente do tekoha Ñanderu Marangatu.
Na aldeia/reserva Bororó nem todos os rezadores ñanderu são idosos
prestigiados pelas famílias kaiowá, mas, rezadores que meramente cuidam do xiru
marangatu (um conjunto de instrumentos sagrados para os Kaiowa e Guarani) e das
casas de reza - oga pysy. Apesar de terem construído algumas casas de reza de modelo
tradicional - oga pysy - com o apoio dos órgãos públicos, internamente são poucos
membros das famílias que se envolvem no ritual - jeroky. Observei que estas casas
grandes oga pysy são utilizadas para eventos múltiplos, reuniões internas e externas,
exposições e venda de artesanatos, etc. Além disso, estas casas de rezas oga pysy em
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Bororó recebem também os políticos locais e estaduais, indigenistas, acadêmicos,
jornalistas, curiosos e visitantes não-indígenas de várias cidades e dos outros estados
brasileiros. De fato observei que diariamente a maioria dos membros das famílias
freqüenta os rituais das igrejas protestantes e neopentecostais existentes nesta aldeia.
Durante a minha permanência na aldeia Bororó entre 2007 a 2008 passei a exercer
apenas o cargo de coordenador da escola de modo isolado, isto é, não acompanhei mais
a luta política e nem a audiência do capitão ou representante desta aldeia nos órgãos
públicos. Atuei somente em nível da Escola Indígena, é totalmente diferente do tekoha
Ñanderu Marangatu em que atuei como representante e porta-voz da família extensa da
área conflito. Assim sendo, morei na casa alugada que ficou sob controle do proprietário
e da autoridade do capitão indígena da aldeia Bororó como qualquer morador desta
aldeia/reserva.
Na Reserva Bororó, cada pedaço de terra ou lote tem proprietário individual.
Portanto para morar, é preciso comprar ou alugar de modo similar ao do centro urbano
ou cidade. Ao efetuar aluguel é necessário comunicar ao capitão da aldeia. Desse modo,
fiquei morando na casa e terreno alugado por dois anos na aldeia Bororó.
No começo de ano de 2009, retornei ao tekoha de origem da minha família que é
tekoha Jaguapiré. No tekoha Jaguapiré, desde 2009 voltei morar no meio da minha
família extensa e passei durante o ano de 2009 me dedicando somente às pesquisas de
campo voltadas aos trabalhos acadêmicos do Teko Arandu. Por fim, em 2010 assumi o
cargo de professor na escola indígena de Jaguapiré.
Este tekoha Jaguapiré está situada neste mesmo território tekoha guasu da bacia
Iguatemi e Ypytã em questão.
De acordo com Tonico Benites:
no tekoha guasu da bacia do rio Iguatemi (incluindo os rios Mbarakay, Iguatemi,
Yhovy, Ypyta e demais córregos), viviam, até meado de 1960, diversas famílias
extensas de modo relativamente autônomo, cada qual habitando uma casa grande
oy ngusu e/ou oga pysy . “Cada família extensa era liderada por avô e avó tamõi
e jaryi guasu. A habitação grande oyngusu era localizada na margem dos rios
citados, distante de 10 a 20 km uma casa da outra”. (Benites, 2009, p. 87). Essa
habitação grande se encontrava de forma dispersa no território (tekoha guasu),
onde se dedicavam periodicamente aos rituais religiosos jeroky para controlar,
através da reza ñembo’e-tihã, o espírito maléfico, mba’asy vai jara, evitando
mal-estar e perturbação da alma de cada membro, principalmente das crianças
prevenindo-as das “doenças”. Além disso, um dos rituais de batismo era
realizado para garantir boa colheita. Por isso os membros da família grande se
dedicavam religiosamente à lavoura kokue. Antes de plantar ñemity as muda de
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cana, batata-doce, a rama de mandioca e as sementes de milho eram batizadas no
ritual religioso para serem plantadas na época certa, conforme o calendário
próprio do guarani-kaiowá desse tekoha guasu .(Benites, 2009)
Com a finalidade de explicitar as práticas de rituais religiosos jeroky guarani, a
minha pesquisa de campo centrou-se nas famílias extensas que estão morando nas
micro-regiões de Jaguapiré e Jaguapiré-Memby, focando especificamente os rituais
religiosos diversos tradicionais Kaiowá - jeroky. Gostaria de contextualizar o processo
histórico em que foi realizado freqüentemente o grande encontro dos rituais religiosos jeroky guasu - associado à luta intensa para recuperação de uma parte da Terra Indígena
Jaguapiré. O primeiro grande encontro dos rezadores das famílias, com essa finalidade,
foi desencadeado no final de 1980.
No meado de 1990, no contexto tenso de conflito pela posse da terra de
Jaguapiré, na situação perplexa e aflituosa das famílias muitos rezadores prestigiosos ñanderu kuera- realizaram vários encontros de rituais religiosos tradicionais guaranikaiowá - jeroky guasu - no tekoha Jaguapiré para evitar que acontecesse algo
inesperado, pois pela rezas todos os ñanderu se comunicavam para não acontecer nada
de ruim. Os rituais tinham o seu significado de se unir com os espíritos bons contra os
aña (demônio) e proteger o grupo. Em entrevista informal, em 27/09/2010, o rezador
Luis Velário Borvão falou a respeito do valor da reza, dizendo que ele tem uma
comunicação direta com o espírito de (Tupã) deuses, a tradução do depoimento: “nós
que dança estamos pedindo ao ñanderu tupã que através do nosso ñembo´e que proteja
os mitangueras(se refere ao novas gerações) sobre o poder do maléfico... se nos não
estivéssemos mais pedindo tudo isso a ele ninguém sabe até quando podemos esta
seguro aqui na terra...ai ele entrega a nos a nossa terra” (ñanderu Kaiwá de Jaguapiré)
Entendo que toda a reza tem um significado muito grande para a sobrevivência
do Guarani e do Kaiowá, sobretudo essa colocações na visão de ñanderu atuais. É
importante destacar que essas rezas expressam a cosmologia que vêm de geração em
geração. A esse respeito, Melià afirma que:
La palabra original – es así como caracterizamos la palabra que cuenta los mitos
– es una palabra que significa la reciprocidad de saber dar ese gran don que son
las palabras. Palabras ritualizadas y palabra profetizadas son formas de
comunicación e intercambio de mensajes (Melia El guarani experiência religiosa
p.51).
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Portanto pode-se afirmar que o ñanderu tem uma comunicação direta com os
deuses, por isso as rezas são fundamentais em toda ocasiões. Portanto estou de acordo
com as colocações de Melià e Borvão acima citadas. Também é fundamental a
afirmação do ñanderu falando da comunicação entre os seres espirituais protetores de
cada espécie – jarákuera. Para ele cada ser tem seu regimento na terra, por isso devem
ser respeitados e valorizados. Sobre isso Melia afirma que:
La religion guarani presenta también ciertos caracteres animistas. Están los
“dueños”de los montes, de los cerros y peñascos, de los animales –
especialmente de los animales de caza – de los campos de cultivo y de los
caminos. Son estos “dueños” de la naturaleza los que suelen ser invocados con
frequencia aun que más a nível individual y menos en las grandes celebraciones
comunitárias (Melià, 1991, p. 55).
Volto a abordar sobre o ritual feito com o objetivo de conseguir a recuperação
definitiva da parte do território Jaguapiré. Um dos rituais ainda é feito com freqüência
nas casas dos rezadores ñanderu, na mesma aldeia, para o assentamento do nome/alma
no corpo da criança - mitã ñemongarai -, entre outros. Também em relação a esse ritual
vale a pena lembrar a fala de Melià:
“Su canto está al servicio de la comunidad para hallar el nombre de um recién
nacido, para curar una enfermedad, para dirigir un ritual, para hablar
profeticamente sobre lo que es y lo que há de ser, para recordar míticos
tradicionales” (Melià, 1991, p. 57).
Vale destacar que o rezador ñanderu Ataná coordenou os diversos rituais de
moninação de crianças - mitã ñemongarai -, processo de cura através de reza
denominada vencimiento ou pohano em Jaguapiré desde 1992 até 1998 e em
reconhecimento ao seu dom foi convidado a acompanhar o processo de retomada do
tekoha Ñanderu Marangatu.
Ao longo do século XX, com a constituição de fazendas que se sobrepuseram ao
tekoha Jaguapiré, as duas grandes famílias kaiowá, originárias de Jaguapiré, passaram a
trabalhar para os “patron paraguaios” que antecederam os fazendeiros brasileiros que ali
chegaram, sendo que alguns desses paraguaios nunca deixaram aquela terra. As
lideranças idosas narram que os seus amigos “paraguaios” realizavam periodicamente
evento festivo associado ao ritual religioso, que tinham como propósito o pagamento de
promessas a santos “opaga promessa santo-pe”. Essas festas de santos envolviam a
participação dos integrantes das famílias extensas de Jaguapiré. Os Santos
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comemorados religiosamente pelos paraguaios juntamente com integrantes Kaiowá de
Jaguapiré eram Santo Antônio “Sanatoño,” São Jorge “Sanforhe”, etc.
Observei que alguns dos rezadores - ñanderu - Kaiowá recém-formados (de uma
nova geração) e seus auxiliares - yvyra’ija - de Jaguapiré têm em sua casa diversas
imagens dos Santos (Santo Antonio, São Jorge, Crucifixo, etc), considerando essas
imagens como seus protetores sagrados. É importante observar que o avô - tamõi - José
Benites que tem em sua casa somente os xiru marangatu, mimby, mbaraka e takua. De
modo similar, o Ramóm que é neto do Moreno Ximenes e que cuida do xiru marangatu,
herdado do avô e depositado em sua casa de reza - oga pysy - não tem também as
imagens dos tais Santos citados. Enquanto o novo rezador - ñanderu – Luiz, morador de
Jaguapiré-Memby, têm várias imagens dos Santos juntos ao pequeno xiru kurusu,
mbaraka, mimby, takua. Isso evidencia que os rituais indígenas incorporaram símbolos
de outros sistemas religiosos. Meliá confirma essa experiência intereligiosa na citação a
seguir:
Por estas mismas razones, los Guarani incorporan sin dificuldad elementos de
otros sistemas religiosos, sean ellos objetos sagrados como la cruz, o figuras
religiosas como Noendusu (=el gran Noé), Pa´i Tani (= Jesucristo com el
nombre de San Estanilao), las pruebas de viaje postmortem, con resonancias de
Purgatorio católico, cierto gestos rituales de bautismo, y todavia otros
préstamos.”(Melià, 1991, p. 60)
O tamõi José Benites e a jaryi Emília Romero ministram rituais religiosos juntos
aos filhos (as) nos quais fazem uso de muitas rezas vitais para tratamento de doenças da
alma e do corpo e, sobretudo dialogam religiosamente com o xiru marangatu que estão
assentados em sua casa há décadas. Para isso, este casal realiza o ritual fechado jeroky,
participando do ritual somente ele e ela quase toda a noite, pedindo ao ñanderu guasu
(deuses supremos) a proteção e bem estar de todos os membros da sua família extensa.
Todavia, este casal não realiza assentamento do nome/alma na criança mitã
ñemongarai. Porém, atendem mais os pacientes dos membros da sua família,
preparando medicamentos artesanais, líquido proveniente do xiru marangatu, etc.
Segundo ele, a água que lavou o xiru complementado por reza especial é um
medicamento que serve para quaisquer doenças. Este líquido do xiru é um tipo calmante
sagrado que esfria o estado quente da alma e do corpo, entre outros.
No que diz respeito à realização do ritual religioso jeroky no tekoha Jaguapiré,
durante o longo litígio, despejo da terra e por fim a retomada e/ou reocupação definitiva
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da tekoha Jaguapiré, foram realizados freqüentemente os rituais religiosos abertos
jeroky liderado por rezador - ñanderu - Atana e seus auxiliares - yvyra’ija. Depois de
retomada definitiva do tekoha Jaguapiré, ou seja, desde 1992 ocorria ritual religioso jeroky - na área exclusiva das famílias extensas Vargas e Ximenes, este era jeroky
aberto. Ao mesmo tempo, periodicamente era também realizado grande ritual de
batismo - jeroky mitã mongarai - na casa de reza - oga pysy -, localizada no centro da
área de jurisdição da família extensa Vargas-Ximenes. Este ritual de batismo de
crianças era coordenado por ñanderu juntos aos seus auxiliares. O ñanderu Ataná na
época era o genro do Moreno Ximenes e Tomazia Vargas, portanto ele pertencia à
família Vargas-Ximenes. É importante ressaltar que naquele período era realizado
jeroky por rezador - ñanderu - tanto para dialogar com os xiru marangatu e se proteger
das ameaças adversas e “doenças” quanto para manter continuamente ativa os rituais –
jeroky – e as rezas – ñengary -, praticando o modo de ser - ñande reko tee - guaranikaiowá.
Ao finalizar este trabalho fica evidente que a abordagem da trajetória de vida
individual aqui apresentada permite notar como as experiências vividas relacionam-se
com os processos de recuperação de território no âmbito da família extensa na qual
ocorreu a socialização. É possível ressalvar ainda que à medida que a maturidade social
avança ampliam-se também as oportunidades da pessoa para expandir suas experiências
político-religiosas, que passam a ser desenvolvida junto a outras famílias extensas e
mesmo junto a outras famílias. Isto permitiu a vivência em comunidades situadas em
diferentes contextos históricos e o acúmulo das experiências em cada uma delas.
Por fim, concluo que a experiência de cada pessoa se torna ainda mais rica pelo
trânsito por diferentes realidades, tais como em áreas em litígio, entre outras. Porém, em
termos de formação da personalidade para o exercício da docência, em escola indígena,
o que mais marcou minha trajetória foi a vivência no interior da minha família extensa e
a participação como interprete dos rezadores, nos processo de retomada de territórios
tradicionais.
Referências Bibliográficas:
BENITES, Tonico. A escola na ótica dos Ava Kaiowá: Impactos e interpretações
Indígenas. Dissertação de mestrado defendida no PPGAS/MN/UFRJ, 112 pp. 2009
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MELIÀ, B. El Guarani experiência religiosa, Biblioteca Paraguaya de Antropología,
Assuncion. Ediciones CEPAG. 126 pp. 1991.
MURA, Fabio. À procura do “bom viver”: território, tradição de conhecimento e
ecologia doméstica entre os Kaiowa. Tese de doutorado defendida no PPGAS/Museu
Nacional/UFRJ.504 pp. 2006.
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