ORLANDO texto de Pedro Sobrado
Transcrição
ORLANDO texto de Pedro Sobrado
ORLANDO 1. Que poder exerce um livro sobre aquele que o lê? Orlando de Sara Carinhas e Victor Hugo Pontes é um acto de leitura. Isto não pressupõe neutralidade, agnosticismo, na transposição do romance de Virginia Woolf para a cena. Aquele que lê, age: interpreta, selecciona, associa. Compõe um texto próprio com a matéria do texto que tem diante de si; cruza-o com o que estudou ou sonhou, viveu ou inventou. Toma posse do texto: faz dele carne da sua carne. Nas mãos da Sara e do Victor, Orlando de Virginia Woolf lembra os objectos transicionais de que fala o psicanalista inglês Winnicott: um cobertor, um urso de peluche de que a criança não se separa, que ama, leva à boca, danifica. Diz Antoine Compagnon que esse é o estatuto do verdadeiro livro de cabeceira: aquele que gostaríamos de ter sempre connosco, que não emprestamos, que cobrimos com as nossas marcas e os nossos sinais. Poderia outra coisa ser mais conforme ao espírito de Virginia Woolf? Ao inserir Orlando no cânone ocidental, Harold Bloom desdenhou da crítica feminista, mas encontrou no “amor à leitura” a melhor expressão do feminismo da escritora. Diz Bloom que é possível que outros grandes escritores do século XX tenham amado a leitura tanto quanto Woolf, mas nenhum “expressou essa paixão de modo tão memorável e proveitoso quanto ela”. 2. Orlando lida com o nascimento e a morte, a criação e a destruição. A estufa em que acontece é um Éden miniatural. Nele, é criado não um casal – um homem e uma mulher – mas um ser andrógino, alguém que é, à vez, homem e mulher. Mas o pequeno jardim suspenso é também sepultura, da qual se exumam cadáveres: não já a caveira de Yorick, mas os ossos de uma mão, ainda que esta nos possa dizer tanto do proprietário de que foi alienada. Beatitude e luto, gravidade e graça. Et in Arcadia ego. Talvez por isso este Orlando nos pareça tchekhoviano, o que não deve surpreender. Um crítico notou que há uma Virginia Woolf antes de ler Tchékhov e uma outra depois. 3. Água, terra, fogo, ar: os quatro elementos compõem a matéria deste Orlando. A água do pequeno lago, a água invisível em que voga o batel da infância, a água de um degelo cardíaco; a terra em que reverdecem plantas, a terra que se cola ao corpo, sinal de uma origem e de um destino; o fogo que queima as páginas de um livro; o ar que a dança desloca, o ar que as palavras de Woolf reclamam. Tudo é elementar, rarefeito: raro. Nenhuma ambição de reproduzir o carrossel imagético do romance. Mas nos escassos centímetros de terra deste jardim, podemos encontrar uma imprevista profundidade; nas águas rasas do laguinho, podemos navegar para longe. Empregamos metáforas – porventura gastas. Como a metáfora, que Virginia Woolf cultivou como um poeta, a dança é uma linguagem de uma poderosa incerteza. 4. “Estou só.” É a primeira frase que Orlando profere no romance. Que outro modo de nos dar a ver Orlando que não na sua radical solidão? Sara Carinhas e Victor Hugo Pontes oferecemnos um solo. Quer dizer: como Novalis, estão sós com tudo aquilo que amam. Pedro Sobrado 8 de Abril de 2015