tribunal administrativo de círculo de lisboa

Transcrição

tribunal administrativo de círculo de lisboa
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA
Av. D. João II, nº 1.08.01.- Edifício G – 6º Piso, Parque das Nações – 1900-077 Lisboa
Processo: 1232/34.5TACL
CONCLUSÃO – 06-12-2013
=CLS=
CONCL. 06/12/2013
Proc. nº 1232/34.5TACL
I - RELATÓRIO
Noé das Arcas intentou a presente acção administrativa especial contra o Ministério da
Agricultura e do Mar pedindo a impugnação de normas do Regulamento X/2013. Mais
peticiona a impugnação do acto praticado pela Carris por invalidade consequente contra
Companhia Carris de Ferro de Lisboa, S.A.
Legalmente citado o Ministério da Agricultura e do Mar pediu a improcedência da
respectiva acção e a absolvição do réu do pedido.
Legalmente citada a Companhia Carris de Ferro de Lisboa, S.A. veio contestar pedindo
a improcedência do pedido de impugnação do acto administrativo e a consequentemente
a absolvição do réu da instância.
António Antunes, Bernardo Bernardes, Fernanda Fernandes e Gonçalo Gonçalves
vieram contestar considerando improcedente a acção de impugnação de normas
proposta pelo A.
Procedeu-se a julgamento, com observância do legal formalismo, foi proferido despacho
que fixou a matéria de facto apurada, o qual não mereceu reclamação. A validade e a
regularidade da instância não foi afectada e nada obsta, assim, a que se conheça do mérito
da causa.
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É pois este o momento de proferir sentença.
***
No caso em apreço a questão fundamental a decidir reside apenas em saber se as normas
do Regulamento X/2013 são válidas e consequentemente se o acto praticado pela
Companhia Carris de Ferro de Lisboa, S.A era válido.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. DE FACTO:
Resulta provada a seguinte matéria de facto:
a) Noé das Arcas é proprietário de uma fracção autónoma, designada pela letra
Q, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em Lisboa na Rua
da Alegria n.º 1, inscrito na matriz predial urbana da Freguesia do Sacramento,
concelho de Lisboa, sob o n.º 200 “Q” e descrito na Conservatória do Registo
Predial de Lisboa 1, sob o n.º 1000/20012000, da mesma freguesia e concelho –
cf. documentos 1 e 2;
b) Tal fracção autónoma é de duas assoalhadas, com uma área total de 200 m2 e
com um terraço de 50 m2 – cf. documentos 1 e 2;
c) O A. é viúvo e tem a seu cargo um filho de 23 anos, autista – cf. documentos
3;
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d) Noé das Arcas é proprietário 12 mamíferos, 4 periquitos australianos, 4
araras, 4 hamsters, 4 tartarugas, 4 cobras de água da espécie “natrix”, 4 lagartos
da espécie “Dragão-Barbudo” e inúmeros insectos, tais como moscas,
mosquitos, baratas, aranhas e formigas;
e) O surgimento de conflitos entre os animais é sempre possível;
f) Os ruídos provenientes dos animais representam um incómodo para os
vizinhos da fracção autónoma;
g) O referido imóvel não possui condições sanitárias adequadas para o
acolhimento dos animais supra referidos;
h) Apesar do tratamento higiénico providenciado por Noé das Arcas e Zulmira
Limpeza, tratando-se de animais exóticos, são exigíveis técnicas e instrumentos
de limpeza que não foram empregues por estes;
i) A passagem dos animais pelas partes comuns representa um acréscimo de
sujidade;
j) O não isolamento total da fracção autónoma poderá levar à fuga de insectos;
k) O regulamento do condomínio permite a detenção de animais nas fracções
autónomas – cf. documento 24;
l) Foi emitido o Regulamento do Animal Doméstico no dia X;
m) No dia 1 de Novembro de 2013, Noé das Arcas viu a sua entrada vedada no
eléctrico da Carris;
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n) A recusa do condutor da Carris em transportar Noé das Arcas e os animais
deveu-se à possibilidade de colocar em perigo a segurança dos passageiros e por
motivos de sobrelotação do veículo de transporte público;
o) Noé das Arcas tinha outros meios de transporte ao seu dispor na zona da
Baixa de Lisboa.
***
Dentre os factos controvertidos incluídos na base instrutória, consideram-se não
provados os seguintes:
a) A convivência em harmonia dos animais; [Quesito 1.º da Base Instrutória]
b) Fracção autónoma possua condições sanitárias adequadas; [Quesito 2.º da
Base Instrutória]
c) Os animais se encontrem devidamente tratados; [Quesito 3.º da Base
Instrutória]
d) Zulmira Limpeza assegure convenientemente a limpeza dos espaços comuns;
[Quesito 5.º da Base Instrutória]
e) Zulmira Limpeza possua as devidas qualificações para a limpeza dos animais
exóticos; [Quesito 6.º da Base Instrutória]
f) Noé das Arcas seja proprietário de quatro primatas, da espécie “saguipigmeu”; [Quesito 8.º da Base Instrutória]
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g) Todos os animais tenham sido vacinados; [Quesito 9.º da Base Instrutória]
h) Os macacos tenham as dimensões descritas; [Quesito 10.º da Base Instrutória]
i) Noé das Arcas seja proprietário dos macacos desde 1989 e que tal detenção
tenha sido comunicada em 1990 à entidade competente; [Quesitos 11.º e 12.º da
Base Instrutória]
j) Os insectos se encontrem devidamente guardados; [Quesito 13.º da Base
Instrutória]
l) O eléctrico seja o único meio de transporte à disposição de Noé das Arcas.
[Quesito 16.º da Base Instrutória]
***
2. DE DIREITO:
Relativamente à questão da incompetência regulamentar do Ministério da Agricultura
e do Mar (doravante, MAM) para aprovar o regulamento que se pretende impugnar,
decide-se em favor do Autor, pelos motivos de seguida expostos:
A distribuição das competências entre o Ministério do Ambiente,
Ordenamento do Território e Energia (doravante, MAOTE) e o MAM, em
consequência da separação dos mesmos do até então existente Ministério da
Agricultura e do Mar, Ambiente e Ordenamento do Território, deve ser realizada
por Lei Orgânica para cada um dos Ministérios, de acordo com o artigo 4.º/1 do
Decreto-Lei n.º 119/2013.
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Estas Leis Orgânicas ainda não foram, no entanto emitidas, pelo que o
problema deve ser resolvido com recurso aos fins legalmente estabelecidos para
cada um dos Ministérios, de acordo com o artigos 16.º-A/1 e 17.º do Decreto-Lei
n.º 86-A/2011, de 12 de Julho, actualizado pelo Decreto-Lei n.º 119/2013.
Assim, cabe ao MAOTE, conforme a leitura do artigo 16.º-A do Decreto-Lei
n.º 86-A/2011, de 12 de Julho, a “definição, coordenação e execução das
políticas de (…) ordenamento do território, cidades, habitação (…)”, no qual
entendemos subsumir-se as matérias relativas ao limite máximo de animais por
fracção autónoma, as condições de higiene em que se devem deter os animais e
as obrigações de passeio que assistem aos detentores dos referidos animais.
A tal não obstam os argumentos apresentados pelos réus, no sentido de que a
competência residiria ainda com o MAMAOT, pois o regulamento teria sido
emitido no dia 1 de Abril, e que a competência, não obstante o que foi dito,
caberia ao MAM, porque nele se integra a Direcção-Geral da Alimentação e
Veterinária.
O primeiro dos argumentos improcede, visto que o documento em anexo,
datado de dia 1 de Abril, é o Projecto do e não o próprio do Regulamento, pelo
que, no momento da emissão, já se verificava a situação presente de separação
de Ministérios. Devendo a questão ser colocada nos termos em que foi, e da qual
se deve retirar as conclusões que se tiraram.
O segundo argumento deve ter-se por igualmente improcedente pois, sem
prejuízo de a DGAV se inserir nos serviços do MAM, as suas funções
encontram-se restringidas pelos fins que cabem ao MAM prosseguir, assim
como definidas pelo artigo 17.º/1 do Decreto-Lei n.º 86-A/2011, de 12 de Julho.
Pelo que, a entender-se que o MAM não é competente para emissão do
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regulamento com o objecto que agora se discute, não pode alargar essa
competência a DGAV.
Quanto à competência para aprovar a norma relativa ao transporte de animais
em transportes públicos é competente o Ministério da Economia, nos termos do
artigo 16.º/1 do Decreto-Lei n.º 86-A/2011, de 12 de Julho e não o MAM.
Em relação à invalidade consequente do acto materialmente administrativo emitido
pela Carris, devemos entender que tal não é o caso, visto que apenas assim o seria se
tivesse sido praticado ao abrigo do regulamento inválido.
Sem prejuízo de o tribunal considerar o referido regulamento inválido, não
podemos
considerar
verificado o segundo
pressuposto
da invalidade
consequente. Assim é porque o acto impeditivo de entrada do Autor no eléctrico
da Carris se encontra justificado ao abrigo de outras normas directamente
aplicáveis ao caso. Assim, o acto encontra-se justificado pelo Decreto-Lei n.º
58/2008, de 26 de Março e pela Portaria n.º 968/2009, de 26 de Agosto, que
admitem a recusa por variados motivos, todos eles provados na audiência de
julgamento. São eles a recusa fundada no acompanhamento por doze animais,
quando o artigos 6.º n.º 2 al. r) e artigo 9.º n.º 3, 4, 5 e 6 do Decreto-Lei
mencionado estipulam que o passageiro se deve fazer acompanhar por apenas
um animal, quer viaje em contentor adequado ou, sendo um cão, seja controlado
por trela, a recusa fundada na sobrelotação do transporte ou na maior afluência,
que se verificou por se tratar de dia de greve, de acordo com a Portaria invocada,
especialmente o seu artigo 5.º.
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Assim se conclui pela incompetência regulamentar do MAM para emitir o
regulamento em discussão, o que gera, no entendimento deste Tribunal, a sua nulidade,
de acordo com o pensamento de alguma doutrina1.
A invalidade que não se projecta na admissibilidade do acto administrativo impugnado
pelo autor pois este não foi praticado ao abrigo do referido regulamento.
Em relação à violação do princípio da legalidade, nas suas vertentes de reserva de lei e
precedência de lei, invocada pelo A., considerou o Tribunal não dar razão a A, tendo
por base os seguintes fundamentos:
O direito à habitação (artigo 65.º CRP) e o direito de propriedade (artigo 62.º
CRP) não são direitos, liberdades e garantias, que constam do Título II da
Constituição, são, antes, direitos económicos, sociais e culturais, constantes do
Título III da Lei Fundamental. Respectivamente, são um direito social e um
direito económico. Nesta medida, a regulação sobre estas matérias não se
encontra sujeita à relativa de competência legislativa da Assembleia da
República, não se subsumindo no artigo 165.º/1 al. b).
Também não se considerou sustentável a aplicação do regime material e formal
dos direitos, liberdades e garantias aos direitos em apreço, com o argumento de
estes serem direitos análogos, o que justificaria a aplicação do mesmo regime
jurídico. Não tem sido entendido pela doutrina nacional2 que o direito de
habitação seja um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, atendendo,
aliás, à circunstância de se tratar de uma norma programática.
1
Marcelo Rebelo de Sousa/ André Salgado Matos, Direito Administrativo Geral – actividade
administrativa, tomo III, 2.ª edição, reimpressão, p. 267 e ss.
2
Sobre este assunto, nomeadamente, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV
(Direitos Fundamentais), 2012
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O mesmo se diga quanto ao direito de propriedade, que assume um conteúdo e
feição próprias enquanto direito fundamental económico. De acordo com
JORGE MIRANDA, quanto aos direitos económicos, sociais e culturais, vai
exigir-se, essencialmente, uma intervenção do Estado no sentido de garantir
minimamente o comando constitucional, devendo o aparelho do Estado
promover políticas orientadas por esse fim. Não é necessário, no entanto,
estender o âmbito das exigências de cariz formal, que assumem finalidades
essencialmente garantísticas, a estes direitos também. A avultada importância
assumida pelos direitos em apreço no quadro normativo constitucional, em
especial a assumida pelo direito de propriedade, que surge como um direito
constitucional de 1.ª geração (provindo das Revoluções Francesa e Americana e
do pensamento político liberal) não invalida a argumentação apresentada. Posto
isto, o regime seguido será o regime geral dos direitos fundamentais, no qual não
se prevê, a título geral, uma reserva, relativa ou absoluta, de lei parlamentar,
nem a necessidade de nova regulação assumir a forma de lei.
Por último, quanto ao direito à reserva da intimidade da vida privada (artigo
26.º/1 CRP) verificar-se-ia uma violação da reserva de lei, constitucionalmente
imposta pelo artigo 165.º/1 al. b), por se tratar de um direito, liberdade e garantia
pessoal. Porém, considerou o Tribunal que a matéria em apreço – a regulação
das condições de detenção e cuidados de higiene relativos a animais domésticos
– não diz respeito à reserva da intimidade da vida privada, que se traduz na
salvaguarda da esfera íntima dos sujeitos e que é respeitante ao direito à saúde
(artigo 64.º CRP), também este um direito fundamental social. Em conclusão, a
reserva de lei foi respeitada.
A precedência de lei exigida pelo artigo 112.º/ 7 CRP não foi respeitada, dando o
Tribunal razão ao A.
Neste âmbito, há que considerar a qualificação do Regulamento x/2013 como
um regulamento de execução, cujo fim é «criar normas particulares para
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matérias já reguladas na lei»3. É-o na medida em que vem executar o DecretoLei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro, cujo objecto é «manter o estatuto de
indemnidade do País relativamente à raiva (…) e regras relativas à posse e
detenção, comércio, exposições e entrada de animais susceptíveis à raiva em
território nacional». Ainda que surja no seguimento de uma lei prévia
disciplinadora da matéria em causa, a sua emissão carece sempre de norma
habilitante, devidamente especificada (no regulamento) e densificada, no sentido
de fornecer critérios concretizadores das matérias a serem regulamentadas, por
imperativo constitucional - artigo 112.º/7. Ora, tal não sucedeu ao caso, não
sendo possível considerar o Decreto-Lei n.º 314.º/2003, de 17 de Dezembro
norma habilitante, por falta de densificação.
Conclui-se que o regulamento x/2013 é nulo, porque inconstitucional, por
violação do princípio da legalidade, na vertente da precedência de lei.
Quanto à preterição da formalidade da consulta prévia, que corresponde à fase da
participação dos interessados no processo de elaboração do regulamento, haveria lugar a
audiência de interessados (artigo 117.º/1 CPA), pronunciando-se os particulares através
de entidades representativas (artigo 267.º/5 CRP) ou apreciação pública (art 118.º/1
CPA).
Porém, por força da aplicação das regras gerais do procedimento administrativo,
em concreto do artigo 103.º/1, não teria que existir, ao caso, audiência dos
interessados, seja pela aplicação da al. b) do preceito – «quando seja
razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a
utilidade da decisão» -, seja pela al. c) do mesmo - «quando o número de
interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne
impraticável (…)».
G. Zanobi, in Corso di Diritto Amministrativo, vol. I, 8.ª edição, p. 67; CPA Anotado e Comentado, p.
522
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Para aplicar o artigo 103.º/1 al. b) há que interpretar devidamente a referência
que é feita no preceito legal a «razoavelmente».
A concretização deste conceito indeterminado far-se-á à luz das regras gerais de
direito aplicáveis, nomeadamente no âmbito do direito civil. Tem-se por
razoável entender que a audiência dos interessados quanto ao aspecto em
questão, pode, com toda a probabilidade, pôr em cheque o próprio fim visado.
É possível alcançar esta conclusão através de um juízo de prognose póstuma, da
teoria da causalidade adequada – é razoável, normal e típico que a realização de
uma diligência de audição de particulares sobre uma matéria tão sensível quanto
a detenção de animais, imposição de regras ao seu tratamento e
acondicionamento e imposição de deveres de passear os animais vá
comprometer o fim visado pelo regulamento.
Isto porque a audiência proporcionaria um debate infrutífero e despiciendo,
considerando que, em regra, as pessoas tomam tais matérias como pertencendo
ao foro particular, no qual podem valer as opiniões, não existindo valores supraparticulares a considerar. Porém, do prisma jurídico, este raciocínio não procede,
primando a necessidade de tutela de interesses públicos (à saúde e ao ambiente)
neste âmbito.
Posto isto, o tribunal considera que os objectivos concretos visados pelo
Regulamento x/2013 não se coadunam, segundo regras de experiência comum e
atendendo ao padrão normativo de conduta do bom pai de família (bonus pater
familias), com a realização de uma diligência de audiência dos interessados,
pelos motivos expostos.
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A «impraticibalidade» referida no artigo 103.º/1 al. c) deverá ser concretizada
segundo regras de bom senso e de eficiência4. À luz desses mesmos padrões
normativos de decisão, considera o Tribunal que se revela impraticável a
realização de audiência de interessados a propósito que questões relativas à
detenção e cuidados com animais, por indeterminabilidade dos destinatários do
regulamento a priori e por insusceptibilidade de participação de todos os
interessados (maxime, todos os sujeitos detentores de animais). Assim, a
diligência em apreço comprometeria excessivamente, segundo um juízo de
proporcionalidade, o interesse público, nomeadamente ao nível dos custos
associados e da morosidade excessiva do procedimento.
Ainda que não fosse afastada a audiência dos interessados, o regulamento
x/2013 deveria ter sido submetido a apreciação pública, nos termos do artigo
118.º/1 CPA, que é uma fase obrigatória do procedimento. Para além do mais, é
a que revela ser a diligência mais adequada à matéria em causa e que não lesa o
interesse público.
Tendo sido preterida, o regulamento x/ 2013 é ilegal, sendo nulo por preterição
de uma formalidade essencial.
Relativamente à ponderação dos valores subjacentes, essencial para aferir a validade
material da emissão do regulamento, haveria que atender ao direito à habitação e ao
direito de propriedade, em contraposição com o direito à saúde e ao interesse público.
Parece claro para o Tribunal que o direito de propriedade sobre os animais pode
ser restringido nesta situação. Primeiro, há que considerar as inúmeras restrições
já vigentes no ordenamento jurídico quanto ao conteúdo do direito de
propriedade, nomeadamente no Código Civil, no âmbito das relações de
4
CPA Anotado e Comentado, Jurisprudência, 5.ª edição revista e actualizada, 2002, José Manuel Santos
Botelho/ Américo Pires Esteves/ José Cândido Pinho, p. 455
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vizinhança, ou mesmo a nível constitucional, ao nível das expropriações por
utilidade pública (artigo 65.º/2 CRP).
O direito de propriedade é um direito fundamental económico que pode ser
comprimido por via legal ou regulamentar.
O direito à saúde deve prevalecer porque garante, em termos amplos, a
qualidade de vida dos sujeitos, o que se revela um interesse de valor
manifestamente superior ao direito de propriedade privada.
Quanto ao direito à habitação, este surge apenas como uma norma programática,
não aplicável directamente ou absolutamente vinculante. Assim sendo, considera
o Tribunal que pode ser restringido por imperativo de saúde pública.
Quanto à validade da licença de detenção dos animais de Noé das Arcas: o Tribunal
analisou a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora
Selvagem Ameaçadas de Extinção, referida tanto por A. como por R., determina a
obrigatoriedade de licenças para a detenção dos primatas.
Após análise cuidada dos anexos da Convenção sobre o Comércio Internacional
de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção, concluiu
que nenhum dos animais do autor se inserem nas categorias sobre as quais se
versa a Convenção.
Antes, os primatas detidos pelo A. inserem-se no âmbito aplicação da
Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora
Selvagem Ameaçadas de Extinção, os Decretos-Lei 114/90 de 5 de Abril,
211/2009 de 3 de Setembro, o Regulamento (CE) nº 338/97 de 9 de Dezembro e
o Regulamento (CE) nº 865/2006, visto estes se tratarem de desenvolvimentos
desta mesma Convenção.
A Portaria 1229/2009, no artigo 1º conjugado com o anexo I ponto 1.2, proíbe a
posse dos primatas da raça sagui-pigmeu, mas possibilita aos detentores destes
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animais a licenciarem, no prazo de 90 dias, segundo o artigo 4º. Porém, o A. não
requereu estas licenças em tempo útil.
Face ao exposto, tem-se a posse destes animais por ilegal, por violação do
Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro e da Portaria 1229/2009.
***
3. DECISÃO:
Em face do exposto e face às disposições legais citadas, o Tribunal a presente acção
parcialmente procedente, por:
A nulidade do Regulamento x/2003, por incompetência regulamentar do
Ministério da Agricultura e do Mar para a sua emissão, por violação do princípio
da legalidade, na vertente da precedência de lei, e por preterição de audição
pública. Determina, também, a sua desaplicação no caso concreto, sendo
parcialmente procedente o pedido formulado pelo A.
A validade do acto praticado pela Carris;
A invalidade das licenças de detenção dos animais por A.
Lisboa, 6 de Dezembro de 2013
Os Juízes,
Alexandre Carvalho
A. Luísa Pereira
Catarina Silva
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Lourenço Fernandes Tomás
Ricardo Esteves Fernandes
Telma Mota Silva

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