Indagações de um regente coral frente às transcrições de Villa

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Indagações de um regente coral frente às transcrições de Villa
Indagações de um regente coral frente às transcrições de Villa-­‐Lobos Marco Antonio da Silva Ramos Uma característica do intérprete é estar em busca de um repertório. É certo que alguns se fixam por quase toda vida em um repertório dado, marcando sua carreira pela associação a um conjunto delimitado de obras, autores ou corrente estética. Mas a notória inquietude de Villa-­‐Lobos, que além de compositor, era também regente e educador, por certo aponta para essa busca da expansão de seu repertório (enquanto intérprete) e do repertório dos coros que regia, assim como dos coros dos professores e regentes envolvidos no gigantesco movimento de canto orfeônico que dirigia e no qual ensinava. Olho para essa fatia de repertório tentado a reger, buscando tanto a transposição para as práticas corais do prazer estético-­‐interpretativo reservado à vida instrumental, quanto um caminho a mais para a compreensão da obra e dos problemas editoriais e interpretativos da performance de Villa-­‐Lobos, seja neste conjunto de transcrições, seja no que ele possa me ensinar para a regência e concepção interpretativa de suas obras. Este é um ponto de vista muito contemporâneo, é claro, mas olhando também para as questões educativas, sabemos que o panorama da formação musical da época estava baseado no estudo do piano e que esse repertório era central naquele momento, como Susana ressalta em seu texto. Hoje, esse panorama mudou substancialmente. O piano perdeu seu lugar quase hegemônico no ambiente musical e esse conjunto de transcrições pode servir de modo muito especial para localizar coralistas e estudantes de música no universo sonoro daquela época. Vejo o trabalho de realização das transcrições (que de resto não foram apenas de Bach) como um retorno à própria maneira de se estudar composição nos tempos de Bach, copiando, transcrevendo a obra de outros autores, como uma forma de se apropriar do métier dos mestres através da cópia. Muito desse hábito chega forte ainda ao século XX, minha geração copiava os textos dos grandes mestres como lição de casa, muitas vezes por horas na sala de aula, nas lições de férias, com a finalidade específica de aprender a língua portuguesa ou mesmo outras línguas, vivas ou mortas. É como se, ao copiar, a arte do outro pudesse se infiltrar nos músculos da mão, estabelecer sinapses técnicas e ainda produzir um olhar detalhista e “de dentro” da obra, produzindo uma análise visceral da obra copiada. Depois, ao compor suas próprias obras, o copista incorporava, transformava, evitava, corroía, variava, citava ou mesmo tomava emprestadas certas passagens ou procedimentos, criando seu próprio estilo em um conjunto de obras que seriam um dia, se reconhecidas como grandes, igualmente copiadas e re-­‐transformadas. Tal padrão de comportamento possivelmente terá servido de forma especial à constante formação que Villa-­‐Lobos parece ter se imposto. Mas há o contraponto desse viés composicional que, como regente coral e professor de regência, me intriga e levanta a maior parte das questões que humildemente tentarei discutir no decorrer deste texto e que se referem à introdução desse tipo de produção no repertório dos coros. Observando o trabalho villalobiano sobre essas obras barrocas há algo que me chama de pronto a atenção: ele não buscava apenas “fazer as notas caberem” no instrumento coral, transpondo alturas, distribuindo as linhas nos naipes do coro. É nítida a busca de uma orquestração vocal. O termo usado na Bachianas Brasileiras no 9, “para orquestra de vozes”, parece denotar uma intenção de Villa-­‐Lobos em lançar novos desafios à prática do canto coral de então. Um comportamento instrumental de tal sorte exige aperfeiçoamento e pesquisa técnica (no melhor e mais estrito sentido), tanto composicional quanto vocal. Certas superposições de oitava ou mesmo de uníssono mostram bem o quanto há nos arranjos esse desejo tímbrico, essa busca de uma fusão especial das vozes. Também no que se refere às articulações, dois mundos se encontram ali: o do teclado e o do coro, pensado como instrumento musical. Articular o coro, instalar um texto, frasear apropriadamente, tudo, sempre, será parte do conjunto de escolhas e aproximações a instrumentos de corda ou sopro, por um lado, mas de registração do órgão ou do cravo, formas de ataque do piano, uso dos pedais, por outro. Esse tipo de desafio permanecerá sempre para quem se lance à performance nos dias de hoje, escolhendo, como comenta Susana, entre utilizar a estética do pianismo do século XX (Mugellini, Casella) que envolve o pensamento de Villa-­‐Lobos, ou inclinar-­‐se mais diretamente para as teorias atuais, a partir do movimento de interpretação historicamente informada. A definição de tempos e andamentos é, necessariamente, um dos principais espaços de interferência dos intérpretes. O aparato crítico inclui este aspecto nas discussões. Outras questões bastante pragmáticas terão sempre que ser também enfrentadas, ainda no papel, antes do tempo de ensaios e preparação vocal das obras: como esse repertório veste em meu coro? Como um coro de câmara, um ensemble vocal ou um coro sinfônico universitário de estudantes de música deve se comportar frente às indicações e modificações realizadas por Villa-­‐Lobos? Cada regente terá suas escolhas para o blend e para a adaptação do coro às obras transcritas. Nesse processo, terá papel definidor a escolha das sílabas a serem utilizadas que afetarão fortemente o equilíbrio dinâmico das vozes do conjunto, tornando-­‐as mais penetrantes ou mais calantes, já que o texto, em canto coral, é sempre parte integrante da articulação e do timbre. A partir dos anos 60, transcrições ganharam espaço em gravações, tomando muitas vezes proporções midiáticas, como foi o caso dos arranjos/transcrições jazzificantes do ensemble Swingle Singers realizados por Ward Swingle, inicialmente sobre a obra de Bach, depois dos românticos. Hoje Laurence Equilbey desenvolve performances de enorme maestria em transcrições com um magnífico coro de câmara, o grupo Accentus. Novamente me pergunto: teriam eles algum laço com a produção villalobiana, ainda que distante, assim como entre os anos 30 e 70 as práticas de transcrição influenciaram fortemente os programas de concertos corais, estimulando compositores e regentes a escrever ou encomendar bonitas transcrições? Villa-­‐Lobos pensava grande e não apenas nos termos de sua criatividade. Os coros podiam ser imensos, e os acertos para o canto coral e os grupos que organizamos hoje representará sempre um enorme desafio. Às vezes, olhando para este lado da obra de Villa-­‐Lobos, me pego imaginando como ele construía seus programas de concerto. Será que ele partia das necessidades do grupo, ou partia de um conjunto determinado de obras e unificava o programa através de obras, transcrições ou arranjos que escrevia? Será que escolhia algum centro de música própria ou de compositores brasileiros e depois adicionava obras do cânone internacional para completar? Ainda: será que partia de um conjunto de obras canônicas internacionais e a elas somava obras brasileiras próprias ou de outros para buscar estabelecer, por comparação, um cânone da Música Brasileira? Villa-­‐Lobos nos desafia sempre a dar mais passos à frente, seja na técnica, na criatividade, na pesquisa ou na qualidade interpretativa. São Paulo, 2015. 

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