Valores Patrimoniais do Espaço Marítimo

Transcrição

Valores Patrimoniais do Espaço Marítimo
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia
Programa de Engenharia de Produção
Área de Projetos Industriais e Tecnológicos
© 2012 by Editora COPPE/UFRJ
Organizadores: Antônio Marcos Muniz Carneiro, Edilaine Albertino de Moraes e Luiz Fernando
Silva Vieira
Redação: Antônio Marcos Muniz Carneiro, Edilaine Albertino de Moraes, Elisângela Janaína
Trindade, Luiz Fernando Silva Vieira e Paulo Franco
Mapa Google Earth: Marcelo Amaral da Silva
Fotografia: Andre Luiz Cavalcanti de Oliveira, Alexandre Kirosvky, Bruna F. Milhorance,
Elisângela Janaína Trindade, Gustavo Fernando Chiappolini, Jocemar Mendonça, Nicole
Corrêa de Oliveira, Rejane Pereira Castro.
Revisão: Ana Maria Ribeiro Marques
Design e Diagramação: Henrique Carneiro
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
C759
Conhecimentos tradicionais da pesca artesanal para a conservação
sustentável do mar: Valores Patrimoniais do Espaço Marítimo na Reserva
Extrativista Marinha de Arraial do Cabo – RJ [livro eletrônico] /
Organizado por Antônio Marcos Muniz Carneiro, Edilaine Albertino de
Moraes, Luiz Fernando Silva Vieira. – Rio de Janeiro: Editora
COPPE/UFRJ, 2012.
ePUB : il., color.
ISBN: 978-85-285-0224
1. Conservação marinha 2. Conhecimentos ecológicos tradicionais 3.
Pesca artesanal 4. Áreas Marinhas Protegidas 5. Ecodesenvolvimento I.
Carneiro, Antônio Marcos Muniz II. Moraes, Edilaine Albertino de III.
Vieira, Luiz Fernando Silva
CDD 574.52636
12-0442
Índices para catálogo sistemático:
1. Conservação marinha – Etnociência - Pesca artesanal
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ....................................................................................................................................... 4
1. O MAR: IMPORTÂNCIA, VULNERABILIDADE E CONSERVAÇÃO .................................................... 6
1.1 A Importância do Mar e suas Demandas de Proteção ..................................................................... 6
1.2 A Fragmentação dos Conhecimentos do Mar pela Ciência Moderna e suas Limitações ............ 8
1.3 Da Conservação Convencional à Emergência da Conservação Sustentável ................................ 9
2. AS ÁREAS MARINHAS PROTEGIDAS E A PESCA ARTESANAL: NOVAS DIRETRIZES E
ASPECTOS COGNITIVOS ........................................................................................................................ 11
2.1 Áreas Marinhas Protegidas (AMP’s): Desequilíbrio e Novas Diretrizes ....................................... 11
2.2 As Reservas Extrativistas Marinhas: uma Categoria Brasileira Inovadora ................................. 12
2.3 A Pesca Artesanal: Importância Econômica, Ambiental e Social ................................................. 13
2.4 Origens dos Conhecimentos Marítimos Acumulados da Pesca e Navegação ............................ 15
2.5 Conhecimentos Ecológicos Tradicionais (CET) dos Pescadores Artesanais ............................. 16
3. APROPRIAÇÃO TRADICIONAL DO MAR NA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE ARRAIAL
DO CABO ................................................................................................................................................... 22
3.1 A Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo ....................................................................... 22
3.2 A Apropriação Tradicional do Mar pelos Pescadores Artesanais de Arraial do Cabo ............... 28
3.2.1 Origens da pesca artesanal ........................................................................................................................... 29
3.2.2 As espécies: classificação, migrações e épocas de pescarias ....................................................................... 30
3.2.3 Condições naturais (ventos, fases da lua) ..................................................................................................... 30
3.2.4 Áreas de pesca ou pesqueiros (marcações) ................................................................................................... 31
3.2.5 Tecnologia de captura: modalidades, embarcações, instrumentos e inovações técnicas ............................. 32
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................................... 43
Conclusões Preliminares......................................................................................................................... 43
Questões para Reflexão........................................................................................................................... 44
Recomendações ....................................................................................................................................... 45
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................................... 43
GLOSSÁRIO .............................................................................................................................................. 49
ANEXO: DIRETRIZES PARA ATIVIDADES PEDAGÓGICAS ................................................................. 52
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APRESENTAÇÃO
O presente livro de cunho didático é um dos frutos do Projeto “Ferramenta Interativa para a
Implementação de Plano de Manejo Participativo de Reserva Extrativista Marinha” da
Fundação COPPETEC cujo objetivo foi contribuir por meio da educação ambiental na
cooperação ou diálogo entre conhecimentos tradicionais da pesca artesanal marinha e os
conhecimentos científicos do mar para a elaboração e implementação de plano de manejo
participativo de áreas marinhas protegidas do Brasil. A área protegida para a realização das
atividades formativas desse projeto foi a Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo, litoral
do Estado do Rio de Janeiro, criada para assegurar a centenária pesca artesanal do município
como um modo sustentável de extração dos recursos renováveis marinhos para fins de
subsistência e reprodução social. O apoio necessário ao alcance dos objetivos desse projeto
resultou da sua seleção pública do Programa para Conservação das Zonas Costeira e Marinha
sob Influência do Bioma Mata Atlântica da Fundação SOS Mata Atlântica, em 2010,
direcionado à Linha 1: Criação e Consolidação de Unidades de Conservação Marinhas.
Parte da contribuição do projeto consistiu na realização de um curso de extensão de educação
ambiental promovido pelo Programa de Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ, com
ênfase em planejamento interativo de áreas marinhas protegidas Visando à formação de
multiplicadores, o curso, por meio da metodologia pedagógica “educação por projetos”,
proporcionou aos seus participantes o design de algumas ferramentas interativas de auxílio ao
compartilhamento e à conexão de saberes marítimos no planejamento e gestão de áreas
marinhas protegidas, tais como: este livro, maquetes interativas, mapas interativos,
organização de eventos etc. A dimensão interativa dessas ferramentas decorre do
envolvimento de participantes do curso de educação ambiental em suas elaborações e do uso
delas nas atividades de pesquisa, ensino e gestão da conservação sustentável marinha.
O tema do livro versa sobre a importância contemporânea dos conhecimentos tradicionais da
pesca artesanal, acumulados através dos séculos por pescadores profissionais artesanais de
regiões costeiras, para a conservação sustentável do mar. Tal importância é demonstrada pelo
fato de essas populações tradicionais costeiras terem desenvolvido técnicas de manejo de
exploração dos recursos marinhos para a sua subsistência e reprodução social através de
gerações, sem, contudo, degradar a biodiversidade de seus ecossistemas. Em razão desta
compatibilização entre a exploração dos recursos pesqueiros dos recursos naturais e a
conservação da biodiversidade marinha, esses conhecimentos tradicionais têm sido
considerados como imprescindíveis para suprir lacunas e complementar as limitações dos
conhecimentos de ecologia das ciências do mar. O seu principal objetivo é propiciar o
reconhecimento da pesca artesanal como um patrimônio cultural de importância econômica
para a segurança alimentar e de manejo sustentável para a conservação marinha. O seu
público leitor preferencial abrange, concomitantemente, estudantes e profissionais atuantes na
educação escolar do ensino médio ou técnico e na gestão de áreas marinhas protegidas.
Três tópicos constituem a abordagem do tema proposto: 1. O Mar: Importância, Vulnerabilidade
e Conservação; 2. As Áreas Marinhas Protegidas e a Pesca Artesanal: Novas Diretrizes e
Aspectos Cognitivos; e 3. Apropriação Tradicional do Mar na Reserva Extrativista Marinha de
Arraial do Cabo. Inicialmente, chama a atenção para as limitações da especialização dos
conhecimentos científicos para oferecer respostas ao agravamento da degradação dos
ecossistemas marinhos provocada por ações antrópicas e a emergência da conservação
sustentável, alternativa à conservação convencional. Depois, destaca as áreas marinhas
protegidas como instrumentos de excelência à recuperação e à conservação das espécies
marinhas, sendo a pesca artesanal a sua atividade beneficiária imediata e, também, a sua
referência de manejo sustentável. Para isso, descreve a importância econômica, ambiental e
social dessa atividade de pequena escala e baixo impacto ambiental. Por fim, descreve os
conhecimentos ecológicos tradicionais que orientam as tomadas de decisões dos pescadores
artesanais de Arraial do Cabo em suas pescarias no espaço marítimo da Reserva Extrativista
Marinha de Arraial do Cabo. Uma das chaves de leitura dada pelos conhecimentos tradicionais
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da pesca artesanal para a conservação do mar é a correspondência entre o ponto de vista e a
noção percepção/interpretação.
Logo após o final do livro, consta o Anexo “Diretrizes Pedagógicas para uma Leitura Proativa”,
um conjunto de procedimentos ou técnicas de leitura dinâmica do livro em auxílio às atividades
formativas de educação escolar de capacitação de gestores da conservação sustentável
marinha. Essas atividades de leitura têm por objetivo propiciar a educadores e educandos uma
leitura proativa deste livro, isto é, que vincule os seus conceitos e exemplos sobre pesca
artesanal e conservação sustentável do mar à percepção/interpretação da realidade
socioambiental de seus leitores. As atividades de leitura do livro propostas compreendem três
etapas: Compreensão do Texto, Focalização e Contextualização. Respectivamente, os seus
objetivos visam à fixação de conceitos, à releitura ou proposição de enfoque pelo leitor e,
finalmente, a sua reflexão sobre o tema deste livro com base em sua pesquisa ou experiência
em uma área marinha protegida.
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1. O MAR: IMPORTÂNCIA, VULNERABILIDADE E CONSERVAÇÃO
1.1 A Importância do Mar e suas Demandas de Proteção
O mar é definido como uma grande massa e extensão de água salgada que cobre a maior
parte (73%) da superfície da Terra. Subdividido por oceanos, a grandeza destes torna os seus
papéis extremamente importantes na regulação da vida do planeta e suas interações com a
atmosfera condicionam o clima mundial. A água do mar caracteriza-se pela sua salinidade não
uniforme no mundo, tendo em média 35 gramas de sais dissolvidos por litro de água, a maior
parte de cloreto de sódio (NaCl). As suas águas movimentam-se na forma de ondas que são
impulsionadas pelos ventos e, também, por sismos no subsolo submarino, formando os
tsunamis. Com a maior biodiversidade do planeta, os organismos marinhos têm a seguinte
classificação: plânctons – representantes da flora e fauna normalmente microscópicos à deriva
dos movimentos oceânicos; bentos - nos substratos consolidados e não consolidados, estes
podem ser fixos ou não; e os néctons – organismos com boa capacidade natatória, como a
maior parte dos peixes e dos mamíferos marinhos. Sob a influência das águas oceânicas, os
seus principais ecossistemas formados são os seguintes: zona costeira, praias, manguezais,
estuários, lagunas, costões rochosos, lajes submersas/parcéis, ilhas, recifes. Partindo da terra,
as principais divisões consagradas são a costa, a plataforma continental, o talude continental e
o fundo (zona) abissal.
A importância do mar é também atribuída aos seus serviços ecossistêmicos para o bem-estar
das sociedades humanas, além de seu papel de regulação das bases biofísicas da existência
do planeta. Nesse sentido, os ecossistemas marinhos constituem-se de uma inestimável
riqueza de recursos minerais, fontes de energia e recursos vivos. Do fundo do mar, são
extraídos minerais essenciais à indústria moderna (o magnésio para ligas metálicas, o bromo
para as indústrias de alimentos, farmacêutica e fotográfica) e também os hidrocarbonetos
(petróleo e gás). Com a água do mar, pode-se gerar energia elétrica e fazer o arrefecimento de
turbinas. O cloreto de sódio ou sal de cozinha, extraído diretamente da água do mar, é um
importante mineral tanto para alimentação quanto para medicamentos. Hoje, dispõe-se de
tecnologia para a transformação da água do mar em água potável. Com uma produção
pesqueira média mundial de 100 milhões de ton/ano, através da pesca e da maricultura,
obtém-se a melhor proteína animal para a alimentação humana. O espaço marítimo também
propicia condições favoráveis à navegação para o desenvolvimento do turismo, incluindo
atividades de cruzeiros, passeios, excursões, mergulho, pesca esportiva e viagens, que vêm se
fortalecendo e expandindo em grande escala, envolvendo turistas, populações receptoras,
empresas e gestores públicos em todo o mundo. Nas estreitas zonas costeiras são produzidos
cerca de 50% do PIB mundial.
Entretanto, as interações humanas das sociedades industriais têm sido predominantemente
predatórias, ao buscarem a apropriação e a utilização dos serviços de seus ecossistemas sem
o seu manejo adequado (poluição, conflitos entre usuários, bioinvasão, desrespeito às culturas
tradicionais dos pescadores artesanais, perda da biodiversidade, mudanças climáticas). Esse
desequilíbrio tem acarretado impactos severos nos ecossistemas marinhos e costeiros com
ameaças de consequências negativas ao bem-estar das sociedades modernas, principalmente,
das populações tradicionais costeiras, que têm na pesca artesanal a sua fonte de segurança
alimentar e reprodução social. Entre os principais impactos e ameaças, estão o aquecimento
dos oceanos provocado pelo efeito estufa, derivado das emissões de CO2 (dióxido de carbono)
dos combustíveis fósseis, a bioinvasão disseminada pelas águas de lastro dos navios, a
degradação dos ecossistemas costeiros, proporcionada pela ocupação desordenada urbanoindustrial, etc. As principais ameaças geradas por esses impactos antropogênicos nos
ecossistemas marinhos envolvem as mudanças climáticas, a elevação do nível do mar, perda
da biodiversidade com redução dos estoques pesqueiros, aumento do índice de fenômenos
naturais extremo e exacerbação da pobreza em regiões costeiras.
Estudos do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática - IPPC (Intergovernmental
Panel on Climate Change, 2007), o órgão das Nações Unidas que monitora as mudanças
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climáticas desde 1988, indicam que o degelo está acelerado nas áreas de solo
permanentemente congelado (permafrost) nas regiões do Ártico e da Antártida, podendo
desencadear um processo irreversível de liberação de gases de efeito estufa na vasta área de
turfeiras estendida da Sibéria até o Canadá e o Alasca, somando-se aos gases emitidos pela
indústria de matriz energética com base em combustível fóssil (Guidens, 2010). Entre os
efeitos imediatos desse aquecimento global, estima-se a elevação do nível do mar e a
acidificação de suas águas com ameaça à vida marinha. Com a globalização econômica, as
bioinvasões de organismos exóticos – tais como o mexilhão zebra (Dressena polymorpha) e o
mexilhão dourado (Limnoperna fortunei) – são proporcionadas pela intensificação do tráfego
naval, tornando-se um grande problema ambiental e econômico, com possíveis consequências
irreversíveis e desastrosas para os ecossistemas naturais e prejuízos econômicos em milhões
de dólares anuais (Silva e Souza, 2004). Além da degradação ecossistêmica marinha
decorrente da falta de saneamento básico e da gestão dos resíduos em regiões
metropolitanas, da poluição do mar por óleo e de aterramentos de manguezais pela ocupação
desordenada das zonas costeiras, perdas econômicas importantes começam a ser passíveis
de verificação. Um hectare de manguezal preservado vale 600 vezes mais para a pesca do
que, por exemplo, para empreendimentos imobiliários, segundo pesquisa realizada no Golfo da
Califórnia (Aburto-Oropeza et al.,2008). As populações extrativistas tradicionais das zonas
costeiras que têm na pesca artesanal a sua principal fonte de alimento e renda são as mais
vulneráveis a esses impactos antropogênicos nos ecossistemas marinhos, sendo, portanto, as
mais afetadas.
Figura 01: Quadro de Impactos Antropogênicos no Mar
Várias iniciativas internacionais passaram a ser realizadas no sentido de se atingir metas que
minimizem ou revertam a degradação dos ecossistemas dos mares. Além das áreas marinhas
protegidas a serem abordadas no capítulo seguinte, outras também incluem mudanças
tecnológicas e de grande alcance. Antes da Cúpula da Terra – Rio 92, a Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), realizada em 1992 no
Rio de Janeiro, foi celebrada com princípios e propósitos semelhantes a Convenção das
Nações Unidas sobre o Direito do Mar, em 1982. É um tratado multilateral celebrado sob os
auspícios da ONU que define conceitos herdados do direito internacional costumeiro, como
mar territorial, zona econômica exclusiva, plataforma continental e outros, e estabelece os
princípios gerais da exploração dos recursos naturais do mar, como os recursos vivos, os do
solo e os do subsolo. Outra forma de regulação internacional do mar é a Organização Marítima
Internacional (OMI). É a agência especializada das Nações Unidas, constituída por 168 países
membros e 3 associativos, que tem por objetivo instituir um sistema de colaboração entre
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governos em questões técnicas de interesse à navegação comercial internacional, bem como
contribuir para a adoção geral de normas relativas à segurança marítima e à eficácia da
navegação.
Figura 02: Quadro de Eventos Extremos no Mar
1.2 A Fragmentação dos Conhecimentos do Mar pela Ciência Moderna e suas Limitações
Os impactos antropogênicos no mar são em parte decorrentes da visão de mundo criada pela
Ciência Moderna que orientou nos últimos 400 anos a conduta dos indivíduos das sociedades
urbano-industriais. O conhecimento científico, que levou à especialização crescente das
disciplinas principalmente no século XX, proporcionou avanços notáveis no estudo do mar em
diversos campos do saber, como da pesquisa básica (geologia, biologia marinha, oceanografia)
e tecnológica (dessalinização da água do mar, biotecnologia de produção, engenharia naval,
exploração offshore de hidrocarbonetos etc.). As ciências sociais, até então, mantiveram-se
ausentes, passando a desenvolver-se só mais recentemente. Uma das explicações para isso
teria sido o predomínio da visão preservacionista “pura” que considerava como negativa e
desastrosa a intervenção humana no mar. O oceano seria a última fronteira da natureza a ser
pesquisada, não devendo, portanto, ser ultrapassada livremente. À percepção de cientistas
naturais, os oceanos seriam grandes vazios humanos. Os parâmetros para a gestão dos mares
levariam em conta aspectos biofísicos, independentes de variáveis culturais dos seres
humanos, como hábitos alimentares, o mercado etc. Por outro lado, cientistas sociais não
levam em conta as interfaces da relação sociedade e natureza, reduzindo esta a um viés
sociológico desligado das bases materiais da existência. Como se pode deduzir, o
conhecimento do mar tornou-se fragmentado.
A Ciência Moderna, fundada a partir das obras de René Descartes e Bacon no século XVII na
Europa, constituiu a busca por uma conduta racional do Homem em direção à sua libertação
das restrições e limitações impostas pela Natureza. Como ser dotado de Razão, ele poderia,
então, superar a sua condição de “escravo”, submetido às forças imperiosas e ameaçadoras do
mundo natural, à condição de “senhor”, permitindo-lhe, assim, o domínio e a domesticação
dessas forças brutas. O método científico permitiria compreender as regularidades e leis
internas que regeriam os fenômenos naturais a fim de que o cientista pudesse predizê-los e
controlá-los. O que permitira essa conduta racional do conhecimento seria a divisão entre
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“mente” e “corpo” que consistiria na condição da existência humana: o conhecimento científico
seria produzido pela separação entre o “sujeito’ e o “objeto”. Pensar seria sempre uma ação
exercida externa à realidade pensada. O cientista poderia formular suas teorias universais por
meio da sua observação dos fenômenos naturais e sociais da realidade, posicionando-se
externamente a eles. O universo seria como um “relógio” ou “máquina”, onde o todo seria o
resultado da soma de suas partes ou “peças”. Conhecer um objeto seria decompô-lo em suas
partes mínimas e estudá-las isoladamente para fazer deduções ou generalizações.
Essa compartimentalização do conhecimento do mar passou a não dar conta para explicar os
fenômenos ecossistêmicos com suas interconexões entre os seres marinhos e costeiros e
entre eles com as atividades humanas. Como apresentado no item anterior, o modo da
sociedade organizar a sua produção e consumo pode afetar a vida marinha assim como a
dinâmica de suas marés. A noção dos oceanos como grandes “territórios vazios”, apesar da
falta de consideração das demarcações para as pescarias e a preservação de habitats, há
milênios feitas por pescadores artesanais, passou a ser contestada com a criação da Lei do
Mar em 1984. Esta consolida o estabelecimento, acordado entre os Estados dos diversos
países costeiros, do mar territorial e das zonas econômicas exclusivas. A atividade pesqueira
reduzida à extração e reposição dos estoques pesqueiros, através de controles de cotas,
defesos e cálculo de esforço de pesca, tenta tirar dos seus cálculos as demandas de
segurança alimentar das populações humanas e os interesses da lógica de mercado.
Tais idéias, que serviram de base para a primeira revolução industrial no século XVIII e as
revoluções técnico-científicas que se sucederam a partir do século XIX, como também para a
criação do modo de produção capitalista, passariam a alimentar a crença de que os recursos
naturais seriam infinitos. A sociedade urbano-industrial que nascera a partir dessas revoluções
não impunha limites aos seus padrões de produção e consumo. Porém, ela começou a
sensibilizar-se com esses seus excessos na segunda metade do século passado, depois das
duas grandes guerras, do surgimento do risco nuclear, da crescente pobreza no mundo gerada
pelo progresso e da crise ecológica emergente a partir das três últimas décadas. A
compreensão da degradação do mar, em suas múltiplas facetas exemplificadas no item
anterior, não é redutível a estudos de disciplinas isoladas e nem desconectados da vida dos
pesquisadores. Os estudos dos mares e oceanos, cada vez mais, tornam imprescindível a
integração das disciplinas ou a interdisciplinaridade.
1.3 Da Conservação Convencional à Emergência da Conservação Sustentável
A proteção do mar passou a integrar o tema da proteção do mundo natural que se tornou de
interesse crescente por parte da opinião pública e dos governos nas últimas décadas, devido
às ameaças de degradação em escala planetária com prejuízos econômicos provenientes dos
excessos das sociedades modernas. Inicialmente, foi predominante a opção por parques
marinhos, com a exclusão dos pescadores artesanais dessas áreas, onde sempre atuaram
sem degradar os seus ecossistemas,. Segundo Diegues (2004a), essa perspectiva de parques
nacionais para a proteção da vida selvagem é originária dos EUA, que criaram no século XIX o
primeiro parque do mundo, o Parque Yellowstone. A noção de vida natural/selvagem,
subjacente à criação de parques, refere-se a grandes áreas não habitadas, principalmente
depois do extermínio dos índios e da expansão da fronteira agrícola para o oeste. Com o
crescimento das preocupações ecológicas no século seguinte, esse modelo de isolamento
passou a servir também como instrumento ótimo da conservação ecológica para proteger em
“pedaços” a natureza que tinha sobrado da destruição pelo progresso industrial.
Na história da ecologia, as palavras preservação e conservação, apesar de usadas como
sinônimas, designam posturas ideológicas distintas e conflitantes em relação à natureza. A
preservação considera que a natureza tem um valor intrínseco, não se prestando a valor de
uso pelos seres humanos. O preservacionismo, a corrente ecológica originária dos países
industrializados, passou a desenvolver princípios e ações protecionistas para salvar espécies,
áreas naturais, ecossistemas e biomas. Tende a compreender a proteção da natureza,
independentemente do interesse utilitário e do valor econômico que possa conter. Essa postura
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é chamada aqui de conservação convencional ou clássica, que visa à preservação de
fragmentos ou ilhas de natureza genuinamente pura ou intocada por meio de seu isolamento
da ameaça da presença humana.
Para a conservação convencional, o manejo das áreas protegidas deve ser feito somente por
profissionais treinados e qualificados com base no conhecimento científico. Esse modelo de
conservação, criado nos países industrializados do norte, serviu de padrão universal de
preservação ecológica, buscando impor-se de maneira indiscriminada em todos os continentes
e regiões do globo. Ele não se preocupou em modificar ou apresentar alternativas aos padrões
de produção e consumo das sociedades industriais, responsáveis pela degradação das bases
biofísicas do planeta sem precedentes na história da humanidade. E a solução para esse
problema se resumiria em contrapor o homem à natureza, achando ser possível separar a
conservação do desenvolvimento econômico e tecnológico.
Uma nova conservação começou a surgir como alternativa às duas posturas que têm em
comum um enfoque biocêntrico - isto é, abordagem exclusivamente biológica da ecologia e do
manejo - e uma dualidade lógica: natureza e sociedade. Elas admitiriam que a proteção
fragmentada da natureza autêntica, com as demais áreas destinadas à indústria e ao cultivo de
alimentos, teria a seu favor a eterna doação dos recursos naturais não renováveis por um lado
e por outro a produção artificial de alimentos, não dependendo mais das imposições da
natureza. As mudanças que passaram a ocorrer nas últimas décadas relativas às posturas e
enfoques convencionais da conservação foram devido a algumas razões, tais como: a eclosão
de movimentos de ecologismo social em oposição ao ecologismo “puro”, o surgimento de um
novo naturalismo e mudanças científicas da conservação. E essa conservação alternativa é
designada aqui de conservação sustentável. Diegues (2000) chama de etnoconservação uma
ciência e prática da conservação apropriada às necessidades culturais e ambientais dos povos,
por meio de uma nova aliança entre o homem e a natureza, baseada na cooperação entre os
conhecimentos científicos e locais das comunidades tradicionais.
Os movimentos do ecologismo social nasceram em oposição aos modelos de desenvolvimento
concentrador de renda e destruidor da natureza. No Brasil, eles impulsionaram a criação de
áreas protegidas sem a exclusão das populações tradicionais, com a introdução das reservas
de desenvolvimento sustentável e a ampliação das reservas extrativistas. O novo naturalismo
postula que a natureza não pode ser entendida separadamente das sociedades humanas.
Estas, situadas no ambiente natural, transformam a natureza e são dependentes dela. Entre
as mudanças científicas na conservação, a etnociência tem se destacado como um dos
campos interdisciplinares mais promissores com seus vários ramos (etnoconservação,
etnobiologia, etnoictiologia, etnobotância etc.). Esse campo científico, recorrendo às ciências
da linguagem (linguística, semiótica, sociocognição), estuda a lógica subjacente ao
conhecimento das populações tradicionais gerado em suas interações físicas e cognitivas não
degradantes com os recursos naturais ao longo dos séculos, por considerar as suas técnicas
de manejo apropriadas e responsáveis pela manutenção da diversidade biológica.
Vários estudos empíricos contemporâneos da conservação têm demonstrado a existência de
restrições ao uso dos recursos naturais impostas por populações extrativistas tradicionais como
fatores geradores de parte da biodiversidade em áreas protegidas, sugerindo uma apreciação
mais sutil das interações humanas com os ambientes naturais. Ressignificando o conceito de
impacto da ação humana no meio ambiente, ela pode não só reduzir a biodiversidade, como
também conservá-la e aumentá-la. Ou seja, a forma e o grau da diversidade biológica seriam,
na maioria dos ambientes continentais e marinhos, resultantes da combinação de ciclos
ecológicos e climáticos com as ações humanas. Nesse sentido, a elaboração de planos de
manejo de áreas marinhas protegidas com a participação de pescadores artesanais passa a
ser visto como crucial ao funcionamento e à sustentabilidade dessas áreas.
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2. AS ÁREAS MARINHAS PROTEGIDAS E A PESCA ARTESANAL: NOVAS
DIRETRIZES E ASPECTOS COGNITIVOS
2.1 Áreas Marinhas Protegidas (AMP’s): Desequilíbrio e Novas Diretrizes
Estudos de Áreas Marinhas Protegidas (AMP’s) têm demonstrado que elas têm sido
consideradas, na maioria das vezes, ferramentas eficazes para a proteção da biodiversidade
marinha (Berkes et al., 2001; Pomeroy et al., 2006, Prates, 2007)) frente aos impactos das
ações antrópicas. O objetivo comum a todas elas é proteger as espécies-alvo da exploração
para que possam se recuperar e, mais do que isso, cuidar do ecossistema inteiro, conservando
diversas espécies e habitats críticos como áreas de desovas e berçários. Várias pesquisas,
entretanto, se fazem necessárias para uma compreensão melhor sobre o funcionamento
dessas áreas. As AMP’s parecem ser mais eficazes para proteger espécies sedentárias como
os peixes recifais. Já para as espécies que possuem estágios de vida bastante móveis, essas
áreas de proteção poderão servir de zonas de desova, agregações ou berçários. Nem sempre
tem-se obtido aumento das populações das espécies marinhas desejadas (peixes, moluscos,
crustáceos). Muitos conflitos têm sido originados na ocasião em que essas áreas são criadas
sem a participação dos pescadores artesanais, grupos locais das regiões costeiras que
interagem diretamente com o mar através da extração dos recursos vivos marinhos.
Outro problema muito comum na gestão dessas AMP’s é a falta de fiscalização. Um aspecto
emerge consensualmente como fator de sucesso dessa área: é o engajamento e o
comprometimento dos pescadores com o projeto da área de proteção. Eles, além de terem na
exploração dos recursos vivos aquáticos a sua fonte de subsistência e de reprodução social,
são detentores de conhecimentos tradicionais do manejo de peixes e demais espécies
marinhas, acumulados durante séculos, sem, contudo, degradar seus ecossistemas.
Concepções convencionais da conservação têm provocado entraves à ampliação da cobertura
de áreas marinhas protegidas compatíveis com a magnitude do mar. Apesar de este abranger
a maior parte da superfície da Terra e constituir ainda uma nova fronteira para a ciência e
tecnologia, a sua proteção ecológica encontra-se ainda muito aquém, se comparada com a
extensão das áreas continentais de proteção da biodiversidade. Das 5.000 áreas protegidas
existentes no mundo, abrangendo cerca de 10% do planeta, apenas 1.300 incluem
ecossistemas marinhos, correspondendo a menos de 1% dos oceanos (Prates et al., 2007).
As áreas naturais protegidas, de acordo com as normas da IUCN (International Union for
Conservation of Nature), passaram a ser distintas em duas categorias: as áreas de proteção
estrita, representadas por reservas científicas e parques nacionais, caracterizadas pela
ausência de espécies exóticas, de atividades e instalações humanas; e as zonas de extração
protegidas, zonas de pesca e de caça, onde uma exploração limitada e controlada dos
recursos naturais é autorizada. Entretanto, essa concepção de conservação da natureza não
conseguiu evitar o desequilíbrio entre as áreas protegidas continentais e as áreas marinhas
protegidas, como também a degradação dos serviços ecossistêmicos marinhos. Uma das
decisões da sétima Conferência das Partes (COP7) da Convenção da Diversidade Biológica foi
a aprovação de um programa de trabalho para as Áreas Protegidas no mundo, com
especificidades para os ecossistemas marinhos com prazo de implementação até neste ano de
2012.
As novas diretrizes criadas apontam para uma conciliação entre a conservação dos
ecossistemas marinhos e a pesca de pequena escala ou artesanal. Como parte da estratégia
global de conservação da biodiversidade, as AMP’s passaram a ter como principal função a
manutenção da produtividade dos estoques pesqueiros. Essas áreas devem servir de berçários
e fonte de exportação de indivíduos maduros para as áreas adjacentes, ajudando, assim, na
recuperação de estoques colapsados ou ameaçados. Dessa forma, poderão ser protegidos
habitats específicos para larvas e juvenis, com garantia do recrutamento e da manutenção dos
estoques. A transformação das AMP’s em instrumentos de gestão pesqueira deverá contar
12
com o engajamento do pescador artesanal, um aliado natural na proteção da biodiversidade
marinha, na medida em que a efetividade de sua atividade depende de ecossistemas aquáticos
saudáveis.
2.2 As Reservas Extrativistas Marinhas: uma Categoria Brasileira Inovadora
As zonas costeira e marinha do Brasil se estendem por uma área de 4,5 milhões de Km² e
representam mais de 50% do território brasileiro. Elas são formadas por uma notável
diversidade de ecossistemas, onde se destacam manguezais, recifes de corais, brejos, dunas,
restingas, praias, costões rochosos, ilhas, lagoas, falésias e estuários. Somando a distância do
Oiapoque ao Chuí, a costa brasileira totaliza 8 mil km, situando-se entre as mais extensas do
mundo. Uma fauna diversa é abrigada pelo bioma marinho e costeiro, com aproximadamente
1.300 espécies de peixes, 19 delas ameaçadas de extinção e 32 em situação de declínio.
Atualmente, a cobertura de áreas protegidas dos ecossistemas marinhos e costeiros envolve
59 unidades de conservação federais marinhas, totalizando 3.676.840 hectares. Segundo o
órgão federal responsável pela gestão dessas áreas marinhas protegidas, o Instituto Chico
Mendes para Conservação da Biodiversidade – ICMBio (BRASIL, 2012), o Governo Federal
tem como meta a criação entre 20 e 30% de novas Unidades de Conservação, somente nas
zonas costeira e marinha.
Entre essas áreas protegidas a serem expandidas, encontram-se as reservas extrativistas
marinhas (Resexmar’s), uma proposta brasileira inovadora que visa assegurar os meios de
vida e a cultura de populações tradicionais costeiras por meio da gestão do uso sustentável
dos recursos pesqueiros com a manutenção de sua biodiversidade. As Reservas Extrativistas
(Resex’s) são consideradas espaços territoriais destinados à exploração auto-sustentável e à
conservação dos recursos naturais renováveis por populações extrativistas tradicionais. É um
tipo de Unidade de Conservação (UC) regida pela Lei de Nº 9.985 de 18 de julho de 2000, que
instituiu o Sistema Nacional de Unidade de Conservação – SNUC, na qual o maior destaque é
conciliação entre a conservação da natureza e o uso sustentável dos recursos naturais pelos
moradores da área para a sua subsistência. Existem duas modalidades de reservas
extrativistas: florestal e marinha. Os principais instrumentos de gestão de uma Resex são o
Plano de Manejo Participativo, ,o Plano de Utilização, e o Conselho Deliberativo.
Originalmente, concebidas por movimentos sociais de populações extrativistas tradicionais de
recursos florestais da Amazônia, tal proposta de conservação logo passou a integrar a pauta
de reivindicações de pescadores profissionais artesanais de regiões costeiras brasileiras. A
primeira reserva extrativista criada no Brasil foi a Reserva Extrativista Alto Jurá, no Estado do
Acre em 1990, e dois anos depois foi criada a Reserva Extrativista de Pirajubaé, no Estado de
Santa Catarina, a primeira em região do litoral brasileiro. Entretanto, das 20 reservas
extrativistas marinhas criadas até o momento, nenhuma conseguiu elaborar o seu plano de
manejo participativo (BRASIL.MMA/CMBio, 2012). Esse quadro demonstra uma relativa
vulnerabilidade dessas Unidades. Uma exceção é a Reserva Extrativista de Mandira, que teve
o seu plano de manejo participativo oficializado (BRASIL.MMA/ICMBio, 2010), mas, apesar das
suas principais atividades extrativistas serem a pesca artesanal e a extração de moluscos em
uma região estuarina no sul de São Paulo, o seu bioma está categorizado como Mata Atlântica
pelo ICMBio.
Em parte, essa situação reflete a falta de metodologias que incorporem os conhecimentos
ecológicos tradicionais dos pescadores à elaboração e implementação de planos de manejo
participativo. Por outro lado, deve-se a um impasse nacional relacionado com as pressões para
manter o crescimento econômico do país por meio da ampliação da sua matriz energética em
um contexto mundial de depressão das principais economias do mundo e com as demandas
por um ecodesenvolvimento, favoráveis a fontes alternativas de energia renovável e a novos
padrões de produção e consumo sustentáveis. O efeito desse embate tem sido o agravamento
crescente de conflitos com populações tradicionais contrárias às construções de novas
barragens em regiões de bacias hidrográficas e de mega empreendimentos imobiliários e
13
industriais em zonas costeiras e marinhas, com implicações em desapropriação de áreas antes
destinadas à pesca artesanal.
2.3 A Pesca Artesanal: Importância Econômica, Ambiental e Social
A pesca artesanal ou tradicional, ora empregada como sinônimo de pesca costeira ou de
pequena escala, como fonte de produção de alimentos remonta ao período anterior ao
surgimento da agricultura na história da humanidade. Atualmente, ela começou a ter
reconhecimento nos últimos anos pela sua importância para a segurança alimentar no mundo
e, também, para a conservação sustentável da biodiversidade marinha e das águas
continentais. Essa modalidade de pesca, porém, não possui uma definição universal, variando
de significado de acordo com a localização onde ela é praticada. A falta de uma maior
informação sobre a atividade se deve também à sua complexidade. Ela é empregada para um
gama muito ampla de espécies-alvo de peixes e com uma tecnologia diversificada, apropriada
à multiplicidade dos ecossistemas aquáticos. As avaliações da produção de pescado têm sido
baseadas em metodologias desenvolvidas para a pesca industrial ou de grande escala de
países de clima temperado, impedindo uma maior visibilidade do setor artesanal. Essas
metodologias possuem um viés exclusivamente biológico, privilegiando o recurso pesqueiro e
deixando de fora os aspectos econômicos, tecnológicos e nutricionais em termos de segurança
alimentar. Além disso, o seu parâmetro é uma atividade de captura monoespecífica, onde a
diversidade das espécies marinhas é menor e possui maior abundância. Entretanto, algumas
características comuns da pesca artesanal observadas têm contribuído para configurá-la em
seus aspectos de manejo, tecnológicos, econômicos, culturais e ambientais.
De um modo geral, as pescarias artesanais comerciais e de subsistência são multiespecíficas e
realizadas predominantemente em águas rasas. Nos ambientes marinhos, a atividade é
exercida junto à costa, em ilhas, baías, costões rochosos, lagoas, lagunas, praias, estuários,
marismas, manguezais. Existem algumas diferenças importantes entre as pescarias de
pequena escala comerciais e de subsistência em relação ao grupo de espécies capturadas e a
tecnologia utilizada. As pescarias comerciais têm como seus grupos de espécies os peixes
demersais profundos de plataformas e taludes tropicais, grandes peixes pelágicos costeiros de
plataformas e baías temperadas, às vezes com exploração dos estoques das pescarias de
grande escala mais distante da costa. Já as pescarias de subsistência exploram também os
grupos das pescarias comerciais e também peixes e invertebrados de recifes de coral, de
lagoas costeiras e estuários. Em relação à tecnologia, as pescarias comerciais de pequena
escala nos países de economia central utilizam predominantemente as mais avançadas e
sofisticadas com embarcações de média autonomia de navegação costeira. A pesca de
subsistência, predominante nos países de economia periférica, vale-se de artefatos de captura
majoritariamente artesanais, com menor dependência tecnológica e econômica da indústria. A
alta biodiversidade do pescado da pesca artesanal é obtida pela grande diversidade
tecnológica da captura, linhas, redes, arpões, armadilhas, iscas, embarcações de pequeno
porte – igual ou menor a 20 toneladas (como canoas, jangadas e outras).
Segundo a FAO (2012), a pesca de pequena escala (ou artesanal) emprega mais de 90% do
total estimado em 53 milhões pescadores e aquicultores no mundo e é de grande importância
como a melhor fonte de proteína animal para a segurança alimentar de cerca de 357 milhões
de pessoas. Além disso, ela é responsável por aproximadamente 50% do total de 154 milhões
ton. da produção mundial de pescado. No Brasil, o setor chega a 70% da produção, ao lado da
pesca industrial e da aqüicultura (Ouvidoria do Mar, 2012). Essa realidade é semelhante aos
setores da indústria e da agricultura, onde o maior número de postos de trabalho e a maior
parte da produção de alimentos são oferecidos, respectivamente, pelas pequenas e médias
empresas no meio urbano e, no meio rural, por organizações familiares, cooperativas e
associações de trabalhos rurais. A produção econômica de larga escala tende ao enrijecimento
da especialização e à monocultura produtiva. Em países de economias centrais e
industrializados, o setor da pesca artesanal tem a sua importância reconhecida.
Segundo Diegues (1983), em diferentes países industrializados as inovações tecnológicas
impulsionadas pela revolução industrial nem sempre foram acompanhadas pela proletarização
14
dos pescadores artesanais como ocorreu na Inglaterra. Na Noruega, a pequena produção
pesqueira conseguiu se firmar e coexistir com a pesca industrial. Os mestres de pesca,
pescadores mais experimentados com profundos conhecimentos das condições físicas dos
fiordes, conseguiram adaptar-se às novas técnicas de captura. Valendo-se da força do trabalho
familiar, eles conseguiram aumentar a
produtividade da pesca por meio da
Figura 03: Vila de Pescadores de Pesca Costeira
integração de inúmeras inovações
no Japão
técnicas em suas unidades de trabalho
sem que se proletarizassem.
A modernização do Japão, iniciada com
a Revolução dos Meiji a partir do século
XIX,
assegurou
os
direitos
consuetudinários de apropriação do
ambiente
marinho
às
famílias
tradicionais
japonesas
de
pesca
costeira ou de pequena escala, através
da criação da lei de pesca em 1901.
Segundo o professor Yamamoto (1995)
da Universidade de Nihon em Tóquio, o
setor da pesca costeira possui
atualmente um bem sucedido sistema
de co-gerenciamento da pesca costeira
de base comunitária, estruturado por
cooperativas de baixo para cima, tendo
Pequena vila de pescadores japoneses em uma
por unidade de base pequenas vilas de localidade da costa da península de Tango no Mar
pescadores localizadas nas regiões do Japão. Foto: Charles Osgood, Chicago Tribune /
costeiras e insulares do Mar do Japão. August 29, 2009.
A importância socioeconômica da pesca
costeira pode ser verificada por seus indicadores econômicos. Ela é responsável por cerca de
73% do total dos pescadores profissionais e por cerca de 30% da produção total de pescado
divida por setores de pesca de grande escala (offshore e oceânica).
No Brasil, a pesca artesanal começou a ter alguma visibilidade somente a partir do final da
década de 80 do século XX. Com a Constituição Federal de 1988, a atividade da pesca
artesanal começou a ter uma conotação de trabalho. As colônias de pescadores deixaram de
ser organizações auxiliares da Marinha de Guerra brasileira e passaram a ter função de
representação profissional ou sindical dos pescadores artesanais. E, com a recém criada Lei
da Pesca 11.959/20091, a pesca profissional artesanal ganhou uma definição oficial: uma
pescaria exercida por pescadores profissionais de forma autônoma e com meios de produção
próprios, individualmente ou em regime de economia familiar, ou ainda com o auxílio eventual
de outros parceiros, sem vínculo empregatício.
Em razão de suas características comuns, a pesca artesanal passou a ser reconhecida
também como um manejo sustentável: captura diversificada das espécies de peixes com
prioridade para a segurança alimentar e em base de conhecimentos tradicionais dos
ecossistemas marinhos acumulados secularmente. Para a conservação sustentável, a
atividade começou a ser vista como sendo de baixo impacto ambiental e um indicador
biossocial, na medida em que a sua efetividade implica na integridade dos ecossistemas
aquáticos. A estreita relação da pesca artesanal com a sustentabilidade do ecossistema
marinho torna essa atividade extremamente vulnerável ante as mudanças ecossistêmicas e
globais produzidas por padrões de produção e consumo das sociedades urbano-industriais.
Entre os impactos antrópicos que mais fragilizam a pesca artesanal em áreas litorâneas
incluem a instalação de indústrias, a ampliação de regiões metropolitanas e a construção de
1
Lei do Ministério da Pesca e da Aqüicultura (MPA) que dispõe sobre a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca,
15
grandes hotéis e resorts. A degradação socioambiental decorrente desses processos abrange
a poluição e o surgimento de grandes favelas às margens de algumas áreas consideradas
berçários da vida marinha (mangues, lagoas, lagunas, baías, estuários), decorrentes,
respectivamente, dos efluentes industriais e da falta de políticas públicas voltadas para a
cidadania.
As pressões globalizadas sobre a pesca artesanal ou de pequena escala têm levado os
pescadores a se mobilizarem em defesa de suas atividades extrativistas. Essas iniciativas
implicam adaptações no manejo e em suas organizações de produção capazes de suportarem
instabilidades socioeconômicas e ambientais. Entre esses novos padrões organizacionais,
encontram-se mobilizações de defesa da proteção dos recursos pesqueiros, cooperativas
autogestionárias, redes de cooperação, reservas extrativistas aquáticas, mercado justo, fóruns
etc. A participação de pescadores artesanais no co-gerenciamento da proteção dos oceanos
como ferramenta de governança para a sustentabilidade dos recursos pesqueiros em todo o
planeta foi uma das 10 (dez) recomendações do evento Diálogo de Desenvolvimento
Sustentável: Oceanos da Rio +20, encaminhadas à apreciação dos Chefes de Estado e de
Governo presentes na Cúpula da Conferência oficial (Ouvidoria do Mar, 2012).
2.4 Origens dos Conhecimentos Marítimos Acumulados da Pesca e Navegação
Este item visa focalizar o mar na perspectiva do conhecimento acumulado por pescadores e
navegadores ao longo dos séculos e distribuído no mundo por diversas culturas e civilizações.
Em relação às espécies marinhas, tal conhecimento permitiu conhecer o comportamento dos
peixes, a época de sua reprodução e a concentração de cardumes. Paralelamente ao saber
desenvolvido pela pesca, foram elaboradas
Figura 04: A Pesca na Era do Paleolítico
técnicas de navegação com base em
conhecimentos relativos aos regimes de
ventos reguladores do clima. Esse enfoque
contribui para uma visão interdisciplinar dos
estudos do mar, que reconhece os avanços
consideráveis sobre o conhecimento
marítimo
das
disciplinas
como
a
oceanografia e biologia marinha, ao lado
dos
conhecimentos
gerados
por
pescadores tanto locais quanto nacionais
ou internacionais – como da baleia, do
bacalhau, do arenque - em suas interações
com o mar, constituindo, de certo modo a
base do conhecimento científico atual. A
partir dessas interações de várias culturas
com o mar durante milênios, sociedades
fenícias e gregas na antiguidade ocidental
passaram a construir uma “maritimidade”,
isto é, entendida como um conjunto de Descobertas arqueológicas recentes revelam
práticas sociais (econômicas, sociais e artefatos de sofisticada tecnologia pesqueira de 13
simbólicas) resultante da interação humana mil anos atrás, encontrados no litoral do Estado da
Califórnia, EUA. Ciência Hoje, 2011
com o espaço marítimo, um espaço
particular e diferenciado do continental (Diegues, 2003). Por esse enfoque, o mundo oceânico
não se restringe a uma entidade física, pois é constituído pela produção social e simbólica.
O mar começou a ser utilizado e conhecido desde os primórdios da civilização humana, a partir
do momento em que passou a servir como fonte de alimento e meio de comunicação, após a
exploração dos rios. Pesquisas revelaram restos de espécies marinhas (cascas de ostras e
mexilhões, peixes) e de artefatos (cerâmicas, arpão, redes) encontrados em período anterior
ao Neolítico, atestando a importância dos moluscos na alimentação humana e demonstrando
ser a pesca uma das atividades mais antigas. O consumo de peixes era comum no Egito
16
Antigo e na Grécia Antiga. Os
Figura 05: Os Fenícios: Maior Potência Marítima da
fenícios, antes da metade do
Antiguidade.
século VIII a. C., exerciam a pesca
do peixe espada, uma pesca que
exigia grandes habilidades do
pescador. Na Europa, a partir do
século VII, o peixe passa a
integrar a alimentação popular,
utilizando-se também para isso, o
manejo da engorda da tainha, a
criação
de
legislação
para
proteção de alevinos do salmão, a
pesca da baleia para alimento e
seu azeite como combustível de
iluminação. E, a partir do século X,
surgem as primeiras organizações
de
pescadores
europeus,
instituindo suas formas de gestão das pescarias nos diferentes mares (Mar do Norte, Báltico).
A pesca começa a ser regulada pela aristocracia europeia ainda na Idade Média e, no século
XV, é iniciada a pesca de grande escala com a captura do bacalhau na América, em Terra
Nova, no Canadá, dando origem às primeiras companhias de pesca. A Revolução Industrial dá
grande impulso à atividade a partir de 1880, com o surgimento dos primeiros barcos de pesca a
vapor. (Apud Diegues, 2003).
Ao lado dos saberes das espécies marinhas relacionados com a pesca, ampliaram-se
conhecimentos necessários às técnicas de navegação, tais como os regimes de ventos, as
características climáticas, as correntes marinhas, o mapeamento dos astros para rotas de
navegação. Na antiguidade, ligações comerciais entre o Egito e a Síria eram feitas por
embarcações em mares povoados por mitos, além de peixes, moluscos, crustáceos e
cetáceos. Na mitologia grega, por exemplo, os mares eram governados pelo poder do deus
Poseidon, conhecido como Netuno pelos romanos. A Odisséia, escrita por Homero, um século
antes de Cristo, é um relato do retorno de Ulisses após o fim da Guerra de Tróia no século VIII
a. C. e que expõe as habilidades náuticas do herói grego ante os grandiosos perigos do mar.
No extremo Oriente, os “juncos”, grandes embarcações chinesas se fizeram notar antes da
chegada do navegante português Vasco da Gama em Malta. Elas, comparativamente com as
caravelas portuguesas, eram bem maiores, chegando a medir 120m de comprimento, 50m de
largura e podiam transportar cerca de 3000 ton. A largura de sua proa lhe dava estabilidade e o
fundo plano, a navegabilidade em águas rasas.
Acredita-se que o Brasil seja um dos países com maior riqueza em embarcações tradicionais
do mundo, em razão da multiplicidade cultural de sua formação de seu povo e da magnitude e
diversidade de seus ecossistemas. A história, as tradições e a diversidade de suas
embarcações ainda são pouco conhecidas. Sabe-se que o país possui uma extensa costa
litorânea e que foi ocupada por meio da atividade náutica constituída por técnicas europeias,
africanas e orientais, trazidas pelos colonizadores e integradas às técnicas indígenas. Dessa
integração, foram gerados diversos modelos adaptados às condições de navegabilidade locais,
com soluções originais e passadas através de gerações de mestres carpinteiros navais. Esses
artesãos detêm inclusive o manejo sustentável das árvores apropriadas às embarcações. O
conhecimento e as tradições da arte da navegação e construção artesanal vêm sendo
preservados por uma significativa parcela da população costeira e ribeirinha, ainda usuária da
embarcação tradicional.
2.5 Conhecimentos Ecológicos Tradicionais (CET) dos Pescadores Artesanais
Conforme visto no item anterior, os conhecimentos cumulativos do mar são gerados a partir
das interações empíricas de pescadores e navegadores com o ambiente marinho, constituindo,
17
assim, a base do conhecimento tradicional marítimo. Essa acumulação cognitiva consiste na
aplicação em situações novas de parcelas de conhecimentos produzidos pelas experiências e
arquivados na memória. A compreensão desse processo requer, porém, uma perspectiva
alternativa ao sentido cronológico da tradição em oposição à modernidade: para ele, a tradição
constituiria uma visão estática do mundo, marcada pela repetição e estabilidade, um ciclo
vicioso, enquanto a modernidade seria a ruptura desse ciclo, caracterizada por mudanças
rápidas e contínuas (Rodrigues, 1994; Cunha, 2000). No sentido etimológico, a tradição - do
verbo latino traditio - é uma ação de entrega ou passagem de algo para outro, contendo,
portanto, a noção de movimento. O tempo deste, porém, não segue o tempo da modernidade
que é ditado pelo “relógio’, mas um “tempo natural” constituído pelos movimentos cíclicos da
natureza. Para o pescador artesanal das regiões costeiras, o ritmo de seu trabalho é regulado
pelos ciclos biológicos das espécies marinhas (reprodução, maturação, migração), pelo
movimento das marés e dos astros, variações atmosféricas e outros. Com base nesses
conhecimentos ecossistêmicos, populações pesqueiras desenvolveram, mediante observação
rigorosa ao longo do tempo, mecanismos de controle ecológico das atividades de captura para
fins de conservação.
Esse corpo de conhecimentos cumulativos dos ecossistemas marinhos que orientam os
pescadores artesanais e evoluem por mudanças adaptativas, sendo repassado a futuras
gerações, define os Conhecimentos Ecológicos Tradicionais – CET (Berkes et al., 2006;
Diegues, 2004b). No contexto da pesca artesanal, o conhecimento tradicional refere-se a “um
conjunto de práticas cognitivas e culturais, habilidades práticas e “saber-fazer” transmitidas
oralmente nas comunidades de pescadores artesanais com a função de assegurar a
reprodução de seu modo de vida” (Diegues, 2004b). É importante rever aqui a noção do ato de
“entrega para o outro” da tradição como sendo repasse ou transmissão na perspectiva das
ciências da comunicação e da linguagem. Para estas, a comunicação não é um simples ato de
transmissão ou transferência de conhecimentos, mas “interação” e “compartilhamento” entre
dois ou mais sujeitos, substituindo, também, a visão passiva da recepção por ativa.
A compreensão da tradição como uma ação interativa de entrega e recepção torna seus
conhecimentos válidos às situações presentes e futuras. Isso explica a utilização do CET na
tomada de decisões pelos pescadores para o êxito da pescaria (Britto, 2004): eles articulam um
complexo conjunto de noções sobre as características e hábitos dos peixes com as condições
do mar, proporcionando-lhes identificar, localizar e selecionar o manejo adequado para a
captura das espécies na imensidão do mar com seus mistérios e incertezas. Para Ruddle
(Apud Begossi; Hens, 2000), este sistema de manejo comunitário é a base das decisões e
estratégias que combina conhecimentos sobre “comportamento dos peixes, taxonomia e
classificação das espécies e habitats, assegurando capturas regulares e, muitas vezes, a
sustentabilidade, a longo prazo, das atividades pesqueiras”.
O conhecimento ecológico tradicional, conforme sugere Diegues (2004b), envolve relações
culturais, econômicas e simbólicas em ambientes territoriais costeiros e marinhos com a
perspectiva de reprodução social e do modo de vida, através de atividades de subsistência,
utilizando-se de “tecnologias patrimoniais relativamente simples, com impacto relativamente
limitado sobre o meio ambiente”. Muito dessas práticas tem como sustentação as relações de
parentescos, oriundos dos grupos familiares ou domésticos, com um senso de identidade
social e cultural que os distingue de outros grupos sociais urbano-industriais, decorrente de
uma visão de mundo e de linguagem própria; da tradição oral capaz de produzir e de transmitir
os saberes, símbolos, mitos, narrativas e “causos” envolvendo o “sobrenatural”, associado à
pesca artesanal, visando coibir degradação dos recursos pesqueiros.
O CET, construído a partir da experiência, é um atributo das sociedades com continuidade
histórica no uso de recursos em um determinado ambiente (Berkes et al., 2006). Em relação às
comunidades de pescadores artesanais, Diegues (2004b) destaca o aspecto cognitivo do CET
e a finalidade de sua transmissão como forma de assegurar a reprodução de seu modo de
vida. A dinâmica desse processo cognitivo consiste, essencialmente, no compartilhamento de
conhecimentos embutidos nas atividades da pesca artesanal - ou arquivados na memória -
18
para cada nova experiência marcada pelas incertezas e instabilidades do mar. Essa
competência adaptativa a situações novas ou imprevisíveis se deve aos modelos cognitivos
que orientam as nossas ações e que são altamente flexíveis e dinâmicos, além de
constantemente atualizáveis ou passíveis de serem complementados e/ou reformulados.
(Varela et al., 1992; Van Dijk, 1989; Lévy, 1994). Essas propriedades inerentes aos
conhecimentos tradicionais dos pescadores artesanais, como socioculturalmente determinados
e adquiridos por suas vivências, podem contribuir para as estratégias conservacionistas
(monitoramento contínuo, co-manejo e gestão adaptativa) no contexto das mudanças dos
ecossistemas marinhos.
A apropriação tradicional do ambiente marinho consiste em um conjunto de práticas culturais
de intervenção na natureza por meio da manipulação de componentes orgânicos e inorgânicos,
com vistas à reprodução social das comunidades costeiras de pescadores (Diegues, 2004b).
Por meio dessa apropriação, os pescadores constroem sistemas de “tenência ou posse
marítima”, onde são definidos direitos de acesso aos recursos pesqueiros de todos os
identificados como pertencentes à comunidade de usuários (mangue, recifes de coral, etc).
Esses sistemas baseiam-se em valores culturais de pertencimento relacionados com a
construção e afirmação de identidade social. Por meio do uso de “marcas”, os pescadores
estabelecem uma territorialidade marinha de áreas usadas para a pesca, como pesqueiros
visíveis ou lajes submersas, mantidos em segredo ou protegidos por “lei de respeito”.
Considerando que os recursos explorados são móveis, o estabelecimento e a manutenção de
limites e divisas não são tarefas fáceis. Isso leva alguns grupos de pescadores artesanais
dividirem o espaço marítimo através de sistemas de sequência de lanço de rede, pesqueiros e
“caiçaras”, gerando inevitáveis conflitos entre pescadores e demais usuários dos recursos
comuns.
A seguir, as relações de algumas áreas e temas da apropriação tradicional do espaço marinho
por pescadores artesanais. O conhecimento ecológico tradicional dos pescadores artesanais
faz referências à classificação de espécies aquáticas, comportamento dos peixes, taxonomias,
padrões de reprodução e migração das espécies, cadeias alimentares. Tal conhecimento
engloba também as características físicas e geográficas do habitat aquático, clima (nuvens,
ventos, mudança do tempo), as artes de navegação e pesca. Nas origens dos conhecimentos
marítimos cumulativos, estes dizem respeito também às relações com o mundo sobrenatural
(mitos, lendas, religiosidade).
Figura 06: A Taxionomia Tradicional
Taxonomias
A classificação dos peixes segue
atributos e categorias relacionados
com a vida humana, incluindo os
animais terrestres e aves. Esses
critérios associam aspectos físicos e
comportamentais das espécies com
o mundo vivido dos pescadores
(Figura 06). Ou seja, a identificação
de uma espécie é feita pela
correspondência entre o ponto de
vista
e
a
noção
percepção/interpretação. Isso torna
não estáveis os dados da realidade Peixe galo. Selene setapi. FESCH R. Don, FishBase,
1997.
marítima
nos
sistemas
de
representação tradicional, deixando de haver homogeneidade entre os pescadores, pois além
das diferenciações das propriedades e características de cada ecossistema, há as
interveniências culturais com suas linguagens diversificadas das identidades dos grupos ou
comunidades tradicionais de pescadores artesanais.
19
Na base do conhecimento ecológico tradicional, o saber e o fazer constituem uma só unidade
de significação. A identidade dos peixes, por exemplo, não é feita do lado de fora do ambiente
marinho ou pela análise de suas partes, mas pelas interações e associações estabelecidas
pelos pescadores no campo da experiência vivida: peixe > sardinha verdadeira (Sardinella
brasiliensis) > alimento > isca viva; o guriri (Allagoptera arenaria) e o tucum (Bactris setosa) >
palmeiras > fibra > linhas e rede de pesca; ajiru ou ajuru (Chrysobalanus icaco) > chá para
pedras nos rins > frutos para alimento e comercialização.
Classificação de habitats
A diversidade de habitats marinhos (pesqueiros, rochas submersas) frequentemente designada
pelo nome do pescador que as descobriu (Cunha, 2000). O espaço conhecido dos pescadores
é o ambiente marinho. Esses espaços advêm da prática profissional e da apropriação de um
código de saber-fazer permeado pelo aprendizado, experiência e intuição. Este saber
tradicional é continuamente produzido, recriado e acumulado culturalmente na observação e na
vivência singulares da natureza, em constante ciclo de transformação e de mudanças móveis e
imprevisíveis.
Figura 07 Triangulação para a Identificação de
Parceis
Na imensidão do mar, os pescadores
artesanais localizam-se sem o uso de
aparelhos e ferramentas de produção
industrial (bússola, GPS, radar etc.). As
áreas de reprodução e de pesca
(pesqueiros)
são
demarcadas
no
ambiente marinho através da relação de
um espaço duplo: terra – mar. Uma das
técnicas utilizadas para formação de uma
rota ou de um georreferenciamento
marítimo por populações humanas de
diversos povos e culturas é a
“triangulação”:
linhas
imaginárias
traçadas a partir de acidentes geográficos
situados no continente ou pontos
salientes da costa (picos de morros, torre
de igreja, etc.) e o habitat alvo.
Comportamento dos peixes
Os pescadores artesanais da costa brasileira conhecem em detalhes os hábitos alimentares
dos peixes, assim como seus padrões de mobilidade e migração. Com base nesse
conhecimento, eles selecionam suas iscas, as épocas e as técnicas das pescarias. Um dos
exemplos é a tainha (Mugilidae) que com a chegada do inverno no mês de maio desloca-se em
cardumes do litoral sul para se reproduzir no litoral norte do Brasil, sendo uma das principais
pescas das comunidades pesqueiras no sudeste brasileiro. Esse ajuntamento de peixes ou
formação de cardumes associado à reprodução é conhecido pelos pescadores. Os sinais
desse fenômeno são dados pela “ardentia”, um brilho produzido por certos peixes pelágicos
que indica o momento de lançamento da rede de cerco.
As artes de pesca
Considerando a grande diversidade das espécies-alvo da pesca artesanal, os pescadores não
só conhecem como são produtores de uma gama ampla e diversificada tecnologia de captura e
20
também de cultivo. Porém, com a industrialização, a introdução de inovações técnicas por eles
tem aumentado, acarretando, muitas vezes, a perda de seus meios de produção e a
descaracterização do trabalho artesanal. A substituição de linhas de fibras naturais pelo nylon
como também canoas por botes e traineiras motorizados são alguns exemplos dessas
mudanças. Entretanto, mesmo com a introdução de novos materiais na tecnologia da pesca e
da lógica de mercado, modificações são realizadas pelos pescadores artesanais mediante
ajustes e adaptações às mudanças dos ecossistemas aquáticos e da sociedade moderna,
assegurando, assim, as identidades de seus modos de vida e a própria reprodução social.
Organização do trabalho, a “tenência” marítima e a função social
O conhecimento ecológico tradicional diz respeito também à divisão do trabalho e às
regras de delimitação de áreas marinhas para o uso dos recursos pesqueiros e aos
processos de acumulação limitada de capital, decorrentes da comercialização e
beneficiamento do pescado. A utilização desse conjunto de conhecimentos tem por
função assegurar a reprodução social dos pescadores, o que implica, por sua vez, em
processos de comunicação ou interações sociais entre as gerações das suas famílias e
das comunidades formadas pelas pescarias.
3.6 Experiências de Uso dos Conhecimentos dos Pescadores Artesanais em
Áreas Marinhas Protegidas
No Brasil, algumas experiências de uso dos conhecimentos tradicionais da pesca artesanal na
gestão de áreas marinhas protegidas já começam a ser referências de iniciativas exitosas. Elas
têm em comum a cooperação de conhecimentos científicos com vistas à recuperação e/ou à
conservação de espécies de fauna e flora, por meio de ações promissoras à sustentabilidade
do ecossistema marinho: ampliação do conhecimento técnico sobre as espécies, o uso não
letal das espécies, atenuação e adaptação às pressões ambientais, conservação e gestão
sustentável dos recursos pesqueiros e atuação integrada de projetos de conservação da
biodiversidade marinha. Os casos descritos a seguir foram selecionados da série organizada
por Prates (2007): “Áreas Aquáticas Protegidas como Instrumento de Gestão Pesqueira” do
projeto realizado pela equipe do Núcleo de Zona Costeira Marinha - MMA/IBAMA ,.
As informações contidas nessa publicação sobre as experiências de uso de conhecimentos
empíricos de pescadores na conservação sustentável ainda contribuem para o estudo sobre as
potencialidades e os problemas apresentados e servem de subsídios para o planejamento e a
gestão, com a disseminação de conceitos de áreas aquáticas protegidas como ferramentas
fundamentais de conservação da biodiversidade dos ecossistemas aquáticos marinhos e
dulcícolas, essenciais à manutenção da atividade pesqueira sustentável. Vários especialistas e
pesquisadores da temática apontam para a importância da implementação dessas áreas
protegidas, como forma de recuperar os estoques colapsados ou ameaçados de extinção, para
alimentação, desova, berçário, criação e recrutamento, exportando alevinos e espécies
maduras para áreas tróficas adjacentes, com vistas a dar oportunidade aos indivíduos de
fecharem o seu ciclo de vida.
O Projeto Meros do Brasil apresenta resultados promissores em pesquisa e intervenções de
conservação de agregações reprodutivas do Mero (Epinephulus itajara), uma espécie
vulnerável e em risco de extinção. Destaca a crescente importância que vem sendo dada à
conservação de agregações reprodutivas de peixes marinhos. As possibilidades de estudos
destes fenômenos no Brasil são aparentemente grandes, pois poucas agregações são
conhecidas e poucos foram os esforços para pesquisá-las2. O conhecimento ecológico local
2
Cabe ressaltar que para a abordagem feita aqui, serão considerados, somente, os aspectos comuns
entre os conceitos conhecimentos ecológicos tradicionais (CET) e os conhecimentos ecológicos locais
(CEL), não sendo consideradas as suas diferenças. Tanto o CET quanto o CEL constituem, segundo a
literatura especializada, um corpo cognitivo construído de conhecimentos ecológicos a partir de várias
21
(CEL), assim como o CET, se coloca como uma ferramenta imprescindível para iniciar um
processo de pesquisa, monitoramento e gestão destas agregações. Isto advém de sua
potencialidade em viabilizar informações básicas na identificação e caracterização das
agregações. Com base nessas informações, a pesquisa e o monitoramento, através de
metodologias científicas tradicionais, poderão ser iniciados. A experiência Meros do Brasil tem
ainda muito a evoluir no que se refere à efetiva inserção do conhecimento ecológico local em
um sistema de co-gestão de áreas marinhas protegidas. No entanto, as informações e
reflexões aqui construídas fortalecem a ideia de que uma AMP na Baía Babitonga poderá
promover a manutenção da diversidade biológica e cultural local, assim como promover a
integração entre os conhecimentos científicos e locais no processo de co-gestão dos recursos
pesqueiros marinhos.
Na Área de Proteção Ambiental (APA) Marinha Costa dos Corais, em Tamandaré –
Pernambuco, resultados foram obtidos do primeiro experimento de manejo utilizando áreas de
exclusão de uso em recifes de coral no Brasil. Foi observada uma rápida recuperação da
abundância para algumas espécies na área fechada de Tamandaré, indicando o potencial
dessa estratégia para o manejo pesqueiro na região. O que teria contribuído para esses
resultados foi a mudança do comportamento dos peixes nas áreas fechadas. Os peixes
reagem positivamente à ausência da pesca, ficando mais sensíveis e mais visíveis aos
mergulhadores (Kulbrick, 1998). Dentro dos limites da área, as espécies que nos últimos anos
eram raramente encontradas - como meros, sirigados, caranhas e barracudas de grande porte
- passaram a ser avistadas com frequência dentro dos limites da área. Essa tranquilidade do
local tem atraído peixes de outras regiões. A interação entre a pesca e o turismo tem
proporcionado o manejo integrado entre essas duas atividades, através de seu zoneamento
diferenciado para as atividades, e geração de trabalho e renda para a comunidade local de
pescadores.
Experiência exitosa ocorreu com o desenvolvimento do projeto Manejo Comunitário do Pirarucu
(Arapaima gigas) na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM), Amazonas,
Brasil. Nesse caso, após a realização de um processo de consulta junto às comunidades
locais, foi definido um sistema de zoneamento das áreas locais, estabelecendo duas zonas de
preservação permanente, localizadas no interior da RDSM, a serem exploradas através de
Manejo Comunitário da Pesca, programa implementado e inserido nas comunidades
pesqueiras da área. No artigo é relatado o seguinte: A resposta do estoque do pirarucu ao
manejo foi surpreendente para pescadores e técnicos, pois não esperavam que fosse tão
rápida e de tal magnitude. O aumento foi mais de oito vezes na área do setor de Jurauá entre
1999 e 2006, passando de 2.507 (2.149 juvenis e 358 adultos) para 20.648 (12.52 juvenis e
8.596 adultos). O aumento na quantidade de pirarucu começou a ser percebida desde o início
do trabalho de apoio ao manejo comunitário. O retorno do pirarucu trouxe lembranças aos mais
velhos de seus tempos de infância, “quando o peixe não era tão perseguido”, e fez crescer a
auto-estima das comunidades de pescadores do Jurauá.
Outra experiência, o projeto Gestão Pesqueira Participativa no Complexo Estuarino-Laguna de
Cananeia, Iguape e Ilha Comprida, focalizou a sua atuação na regulamentação do uso dos
recursos pesqueiros mediada pelo diálogo entre técnicos e os pescadores artesanais como
principal alicerce para uma efetiva gestão integrada e participativa. Com recursos públicos do
MMA e do PNIUD, esse projeto foi elaborado no âmbito da Câmara Técnica da Pesca do
Conselho Deliberativo da Área de Proteção Ambiental Cananeia-Iguape-Peruíbe – CONAPA
CIP em 2004, sendo a responsabilidade pela sua execução do Instituto de Pesca do Estado de
São Paulo. Entre uma de suas metas constava a consolidação da recém criada Reserva
Extrativista do Mandira e cujo plano de manejo participativo foi oficializado em 2006, 06 anos
após a criação da reserva extrativista (BRASIL.ICMBio/2010). Com isso, essa unidade de
conservação tornou-se a primeira reserva extrativista de recursos costeiros e marinhos, pois
experiências individuais e compartilhadas, acumuladas através do tempo. Essa concepção pressupõe o
diálogo com pescadores como imprescindível para a criação de áreas marinhas, pelo fato de eles terem
suas vidas afetadas diretamente.
22
situada em uma região estuarina no litoral sul de São Paulo, a possuir esse instrumento de
gestão, até o momento.
Cabe ressaltar que a experiência desse projeto implicou em vários acordos de pesca com os
pescadores artesanais do complexo estuarino-lagunar. Por meio de estudos técnicos junto aos
pescadores e em interação com a câmara técnica do órgão gestor do CONAPA como instância
gestora da pesca na região, foram criadas várias instruções normativas de manejo via portarias
do IBAMA para as seguintes modalidades de
Figura 08: Área de Proteção
pesca:
pesca
da manjuba
(Anchoviella
Ambiental Cananéia-Iguape-Peruíbe
lepidenostole) de Iguape (Figura 08), arrasto de
praia na costa da Ilha Comprida e sul da Ilha do
Cardoso, pesca do “iriko” (Anchoa sp.), pesca do
cerco-fixo, pesca de camarão estuarino – sendo
esta sem consenso à época devido a potenciais
riscos à sustentabilidade da atividade pesqueira e
turística.
Com base nas abordagens citadas nos projetos
em tela, conclui-se que é crescente a
disseminação do conceito de que áreas marinhas
protegidas são fundamentais para manutenção e
recuperação
dos
estoques
pesqueiros
e
conservação da biodiversidade que compõe esses
ecossistemas. Metodologias aplicadas apontam a
recuperação da ictiofauna, pautadas na realização
de levantamentos de dados pretéritos, da
distribuição e bioecologia das espécies, da criação
de áreas de exclusão de pesca em tempo integral
ou sazonal, da realização de sensos visuais dos
habitats de ocorrência dos indivíduos, através de
mergulhos periódicos e complementados por
monitoramento e comunicações pessoais por
pescadores (mapas mentais), de manejos Ordenamento do manejo da pesca de
comunitários com base em zoneamentos das áreas manjuba Anchoviella lepidentostole, no
foco e da realização de acordos de pesca. É município de Iguape mediante “acordo
sugerida também a realização de um diagnóstico pesca”. IBAMA, 2007. Foto: Jocemar
das áreas elencadas de ocorrência desses Mendonça
indivíduos, quanto ao seu grau de vulnerabilidade por ações antrópicas, como pesca predatória
e sobre-pesca e a análise da descaracterização dos ambientes, como os substratos de fundo,
dos costões rochosos, parcéis, manguezais, estuários e áreas recifais, visando minimizar
impactos nesses ecossistemas.
3. APROPRIAÇÃO TRADICIONAL DO MAR NA RESERVA EXTRATIVISTA
MARINHA DE ARRAIAL DO CABO
3.1 A Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo
Histórico da criação
As primeiras discussões para a criação desta área marinha protegida tiveram início no ano de
1993, a partir do contato entre a Prefeitura Municipal de Arraial do Cabo e o Centro Nacional de
Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT), vinculado ao IBAMA,
segundo Silva (2002). Naquele ano, a FIPAC (Fundação Instituto de Pesca de Arraial do
23
Cabo), vinculada à prefeitura deste município, e o IBAMA atuaram com pescadores artesanais
contra a invasão de embarcações industriais. De 1994 a 1995, o CNPT realizou estudos de
avaliação e viabilidade de uma reserva extrativista cuja área total seria exclusivamente de zona
marinha. Como parte desse processo de tomada de decisão, um diagnóstico foi realizado para
a identificação do perfil socioeconômico da população extrativista local. Esta pesquisa contou
com o apoio da Prefeitura que forneceu remuneração a alunos do primeiro e segundo graus
das escolas municipais para atuarem na aplicação de questionários.
Em 1997, foi criada a Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo (Resexmar AC) pelo
Decreto Federal s/n. com objetivo de assegurar a manutenção da atividade pesqueira artesanal
com suas técnicas e métodos tradicionais de exploração, contribuindo, assim, para o manejo
sustentável dos recursos pesqueiros locais de um ecossistema marinho avaliado com alta
biodiversidade na costa brasileira. De imediato, buscou-se proibir as pescarias predatórias
como o arrasto de fundo com portas, o uso das redes de tresmalho e as embarcações de
arrasto proibidas na região. O desembarque no município dos barcos industriais foi proibido.
No início de 1998, foi elaborado e aprovado o Plano de Utilização da unidade de conservação
criada.
Arranjo institucional
A atual gestão da Resex-Mar AC conta com um Conselho Deliberativo, criado em 2010,
composto por 25 representantes dos beneficiários e usuários, sendo o poder executivo do
órgão colegiado atribuído ao Chefe da unidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade no município. Em termos de instrumentos de gestão, a Reserva possui, apenas,
o Plano de Utilização instituído pela Portaria N° 17/1999, que, no entanto, está desatualizado.
Assim, esforços são ainda necessários para o planejamento do manejo participativo e
consolidação dessa Unidade de Conservação Marinha, inclusive para atender aos objetivos e
princípios do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), do Plano Estratégico
Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), e da Política Nacional dos Povos e Comunidades
Tradicionais (PNPCT), que privilegiam práticas participativas das populações tradicionais na
gestão sustentável de ecossistemas aquáticos.
Delimitação da área
Na expectativa de reverter os impactos antropogênicos crescentes na região e que vinham
ocorrendo na área, sobretudo por barcos industriais de pesca de arrasto advindos de outros
locais da costa brasileira, a Resex-Mar AC inclui uma faixa marinha de 03 milhas náuticas em
direção ao mar, com uma lâmina d’água no seu espaço físico de 56.769 ha, fazendo divisas
com os municípios de Cabo Frio, na Praia do Pontal, e de Araruama, Praia de Massambaba na
localidade de Pernambuca. Entende-se que esta unidade de conservação de uso sustentável
foi implementada com o objetivo de preservar a alta taxa de biodiversidade marinha do litoral
do município e manter a atividade pesqueira de forma sustentável. Nesse sentido, o futuro
zoneamento e ordenamento da mesma, a partir da implementação do seu Plano de Manejo,
criarão ferramentas de fiscalização, manejo e gestão dos seus recursos naturais, com vistas a
assegurar a conservação dos ecossistemas da área e o modo de vida das atuais e futuras
gerações dessa comunidade pesqueira tradicional. Para tanto deverão estar envolvidos nesse
mecanismo atores sociais usuários da reserva (stakeholders), tanto do setor público como da
sociedade civil organizada. Serão mostradas a seguir outras atividades marítimas, além da
pesca artesanal, realizadas na Resex-Mar AC.
24
Figura 09: Mapa da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo
Carta Imagem IBAMA, 2006.
Multiusuários:
beneficiários e usuários
Figura 10: Pesca Artesanal e Maricultura Familiar na
Resexmar de Arraial do Cabo
Apesar da Resexmar
AC ter por objetivo
institucional assegurar
a tradicional pesca
artesanal como manejo
sustentável,
outras
atividades
são
realizadas na área:
atividade
portuária,
turismo
e
esporte
náuticos, pesquisa da
Marinha.
A pesca artesanal ou
de pequena escala,
atividade comum desde
os primeiros tempos de
ocupação humana da
região,
teria
sido
mantida até o presente
século
XXI
pela
presença
de
dois
fatores
interrelacionados:
a
ocorrência
do
raro
fenômeno marinho da
Da esquerda para a direita. 1. Pesca de arrasto de praia na Praia
Grande; 2. Pesca noturna da lula (Loligo plei) com uso de lanternas de
luz branca na Praia Grande (Foto: Alexandre Kirovsky). 3. Poitas azuis e
amarelas de maricultura familiar ou de pequena escala de moluscos na
Praia do Forno: mexilhão (Perna perna), ostra (Crassostrea gigas ). (Foto:
Elisângela Trindade,).
25
ressurgência (upwelling) bem junto à costa da região de Arraial do Cabo e a presença em seu
território de uma população extrativista tradicional. O fenômeno consiste no afloramento de
uma massa de água fria e rica em nutrientes da corrente Água Central do Atlântico Sul (ACAS),
devido a fatores oceanográficos e atmosféricos, que fertiliza a camada das águas superficiais,
proporcionando características únicas com o aumento da biodiversidade e da abundância das
espécies (Valentin 1994). A ressurgência contribui para uma maior eficácia da pesca artesanal,
por aumentar os estoques pesqueiros disponíveis em condições mais favoráveis de
previsibilidade, em associação ao conhecimento tradicional dos pescadores.
Na falta de um cadastramento da população extrativista tradicional da Rresex-Mar AC, estimase cerca de 1.500 pescadores profissionais artesanais atuantes em sua área. A pesca
artesanal compreende uma comunidade tradicional estabelecida em um pequeno espaço de
onde retiram os frutos da pesca para a sua sobrevivência. Neste espaço, constroem-se
relações sociais e de trabalho que circulam ente os pescadores. Diante do domínio, o uso e a
manutenção desses espaços é que se identificam a territorialidade destas comunidades que
interagem e dialogam entre si, não só sobre a pesca propriamente dita, mas também sobre a
sobrevivência das espécies, suas identificações com o ecossistema marinho, tais como:
características e classificação dos habitats onde pescam e dão nome aos mesmos, direção das
correntes marinhas, ventos, marés, ciclos lunares, sazonalidade e migração das espécies, ciclo
de vida das espécies, tipos de iscas utilizadas entre outros. Segundo estatística pesqueira da
FIPAC (2010), a média da captura total/ano de pescado tem sido em torno de 2.000 ton/ano.
O Porto do Forno é uma empresa da Prefeitura Municipal que teve o início de sua implantação
em 1924, tendo sido
inaugurado
em
1972,
Figura 11: Porto do Forno
quando passou a ser
operado
pelo
Departamento de Portos e
Vias
Navegáveis.
Posteriormente, passou a
ser
administrado
pela
Companhia Docas do Rio
de Janeiro. Em 1999, foi
criada
a
Companhia
Municipal de Administração
Portuária
(COMAP),
responsável pela gestão do
Porto. Conforme site da
COMAP, a licença de
operação (LO) do Porto foi
emitida pelo IBAMA em 11
de novembro de 2009. Cita
também que estabelece
como prioridade em sua
gestão o mercado offshore,
restabelecendo
sua
vocação para logística de
apoio a este ramo. O porto
encontra-se sob exigências
do IBAMA para a obtenção
Da esquerda para a direita. 1. A unidade do Porto do Forno. 2. A
tecnologia Kugira da empresa espanhola Acciona, responsável pela
fabricação de grandes módulos de concreto armado no Porto do
Forno para o Porto do Açu da empresa EBX do empresário Eike
Batista, em São João da Barra - RJ. 3. Módulo de concreto armado
de 66m de comprimento x 18m de altura, pesando 24 mil ton.,
fabricado com a tecnologia espanhola. (Foto: Elisângela Trindade)
do
seu
licenciamento
ambiental. Apesar disso, a
sua presença na Resexmar
AC continua sendo objeto
de questionamento entre
beneficiários e usuários.
Outros, porém, consideram
26
que, após o Licenciamento Ambiental do Porto, poderá ser uma oportunidade para que seja
tomada uma posição mais compatível entre a economia e a preservação ambiental, interesses
econômicos e de proteção da natureza.
O turismo em Arraial do Cabo inclui serviços de passeios de barco e de mergulho recreativo.
Essas atividades têm sido muito importantes para a economia do município, inclusive como
alternativa de emprego e renda para pescadores. Em razão do crescimento desta atividade,
nas últimas décadas, Arraial do Cabo passou a ser conhecida como a “capital do mergulho” do
Brasil, devido à beleza, transparência e luminosidade de suas águas, que favorecem a prática
dessa atividade. As empresas operadoras de mergulho e os barqueiros prestam serviço no cais
Marinha dos Pescadores, local onde se faz também a maior parte do desembarque do
pescado, além de serviços de ancoragem, de atracação de embarcações e de meios de
hospedagem.
Figura 12: Serviços de Turismo na Resexmar de Arraial
do Cabo
A procura de turistas por
esses serviços chega a 90
mil pessoas no período do
verão, tornando o setor o
maior em arrecadação para o
município. Entretanto, é uma
atividade
que
vem
comprometendo e alterando
as
condições
espaciais,
sociais, culturais e ambientais
da área urbana e marinha,
inclusive em relação à
possibilidade de permanência
da pesca artesanal. Mas a
representação do setor no
Conselho Deliberativo da
Resexmar AC tende a
sensibilizar o fórum para
debate do tema específico,
sob
a
definição
de
Foto: Rose Cintra.
instrumentos
de
planejamento turístico de forma responsável, às vistas dos princípios e diretrizes do Plano de
Utilização e do Plano de Manejo Participativo da Resexmar AC, em processo de construção.
Pelo turismo ser considerado uma das principais atividades produtivas que acontece na área
da Resexmar, esta deve representar uma alternativa potencial para a conservação da natureza
e a melhoria da qualidade de vida das populações locais, o que exige a participação efetiva das
populações envolvidas, no que tange aos benefícios socioeconômicos gerados e na definição
do espaço comum e do destino coletivo. Sendo assim, a Resexmar é uma categoria de manejo
de UC em que o desenvolvimento do turismo tende a ser mais favorável como alternativa de
renda e inserção social para as populações tradicionais que habitam essas áreas protegidas,
que devem ser consideradas protagonistas em todo o processo como ator e gestor da
conservação sustentável da área
A atividade de pesca subaquática é realizada há décadas por mergulhadores profissionais,
inicialmente em forma de apneia e posteriormente através de narguilé (compressor). De acordo
com os mergulhadores profissionais que participaram da oficina realizada pelo ICMBIO/2009,
intitulada “Apoio na Elaboração do Plano de Manejo Participativo – Fase 1 Da Reserva
Extrativista de Arraial do Cabo – RJ, atualmente o número de pescadores que atua nesta
modalidade está entre 12 e 15 pessoas de Arraial do Cabo e 3 mergulhadores profissionais de
Cabo Frio. Este tipo de pesca, por capturar espécies nobres como polvos, lagostas, chernes,
badejos, garoupas e outros de alto valor econômico de mercado, tem potencial risco para levar
27
à queda dos estoques desses indivíduos ocorrentes em costões e parcéis na área da ResexMar AC, demandando sua avaliação de impacto para futuro ordenamento.
Como forma de preservação desses nichos, tem sido sugerido que se criem áreas de exclusão,
metodologia que vem sendo aplicada de forma exitosa sobretudo na Amazônia, onde durante
um certo tempo deixa de se realizar a captura em determinados pesqueiros dando
oportunidade para que espécies consigam fechar o seu ciclo de vida. Os participantes da
oficina de mergulho profissional, composta por beneficiários, usuários e alguns entrevistados,
comentam que a pesca profissional e recreativa representa ameaça, pois a falta de
conhecimento sobre as normas do plano de utilização reflete na captura de espécies proibidas,
de tamanhos reduzidos e na quantidade de pescado capturado. Pescadores, sobretudo de
canoas de cerco de praia das localidades das Prainhas e da ilha do Farol, reclamam que as
embarcações de turismo, além de adentrarem os pesqueiros espantando os peixes e
impedindo que eles, pescadores, realizem suas capturas, praticam também pesca desportiva
com captura de indivíduos fora do tamanho desejável.
Gestão, conflitos e desafios
Como visto anteriormente, a criação de uma área marinha protegida implica conflitos
decorrentes de regimes de apropriação da biodiversidade e dos recursos pesqueiros que a
princípio é de todos (inclusão/exclusão). E, com a falta de engajamento de pescadores
artesanais, esse problema tende a se agravar, acarretando o insucesso da iniciativa. Em
Arraial do Cabo, apesar
Tabela 01: Conflitos diversos existentes na Resex-Mar AC
de conflitos históricos
locais
entre
pescadores da Praia
dos Anjos e da Praia
Grande, a criação da
Resex-Mar AC fez
aumentar e criar novos
conflitos,
segundo
diagnóstico do Projeto
“Apoio na Elaboração
do Plano de Manejo
Participativo da ResexMar AC” do ICMBio
(2009) em sua fase
preliminar
de
preparação.
A não
elaboração
desse
plano desde o ano
2000 inviabilizou a
mitigação
ou
superação
desses
conflitos.
Essa
pesquisa, a última e
mais detalhada sobre
essa
unidade
de
conservação, mapeou
esses conflitos com
propostas
de
Alarcon, 2009.
resolução através de
várias oficinas com a
28
participação dos atores sociais envolvidos, beneficiários (pescadores artesanais) e usuários
(representantes das demais atividades). A tabela abaixo é um quadro parcial dos resultados do
diagnóstico:
Figura 13: Guarda Marítima Ambiental em
Defesa da Pesca Artesanal na Reserva
Extrativista de Arraial do Cabo
Uma das principais causas desses
conflitos, além da falta de ordenamento
e de recursos federais para a
fiscalização da Reserva, estaria na
introdução de um conceito “fixista” de
tradição no projeto da Resex-Mar AC
(Diegues, 2007), com viés cronológico.
Pesquisas
anteriores
já
haviam
chamado a atenção para a falta de
metodologias participativas de pesquisa
socioambiental e a falta de diálogo entre
o conhecimento ecológico científico e o
conhecimento ecológico tradicional na
criação da Resex-Mar AC, dificultando
ou inviabilizando a participação dos
pescadores nesse processo (Diegues,
2007; Carneiro, 2009).
.Apreensão de redes de tresmalho de 3 quilômetros de
comprimento pela Guarda Marítima. Notícias Prefeitura
Uma iniciativa que tende a beneficiar
Municipal de Arraial do Cabo, 2012. Foto: Eduardo
significativamente a pesca artesanal é a
Alves.
criação da Guarda Marítima Ambiental
pela Prefeitura de Arraial do Cabo em janeiro de 2012.,com a missão de coibir crimes
ambientais na Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo em defesa da pesca artesanal.
A guarda teve como critério para a formação de sua equipe ser pescador profissional artesanal.
O
efetivo
tem
atuado,
principalmente, na repressão ao uso
Figura 14: Conflito e Ordenamento
de redes de três malhas, proibidas
no litoral do município, por impedir a
passagem
dos
cardumes,
prejudicando
os
pescadores
artesanais.
E
resultados
imediatos começaram a ser
percebidos: grandes capturas de
pescados
voltaram
a
ser
realizadas como consequência da
atuação da guarda municipal.
3.2 A Apropriação Tradicional
do Mar pelos Pescadores
Artesanais de Arraial do
Cabo
Os pescadores artesanais de
Resex-Mar Arraial do Cabo têm
um amplo conhecimento referente
às espécies de peixes, suas
características
físicas
e A fim de evitar o excesso de barcos de turistas que provocaria
comportamentais, suas migrações, o afastamento dos peixes, os pescadores retiraram imagem de
assim como às condições naturais Nossa Senhora que havia sido achada no mar e colocada por
eles na base da fenda rochosa. Foto: Elisângela Trindade.
que favorecem as ocorrências
delas. Esse conhecimento está distribuído de modo heterogêneo entre os pescadores das
29
diversas artes de pesca, concentrando-se, sobretudo, nos mestres e vigias da pesca – no caso,
da pesca de peixes pelágicos. É com base nesse conhecimento que os pescadores organizam
as suas pescarias, selecionando a tecnologia adequada à captura das espécies-alvo, em
função de variáveis ambientais - fases da lua, correntes marítimas, ventos, qualidade e
temperatura da água. Por sua vez, tal tecnologia pode ser considerada de baixo impacto ao
ecossistema marinho devido, principalmente, ao fato de a sua utilização ser apropriada à
captura de múltiplas espécies-alvo em fase adulta.
Os pescadores deste município, beneficiados pelo fenômeno da “ressurgência”, detêm um
conhecimento de uma grande e rica biodiversidade marinha de espécies de peixes capturados
há séculos no litoral junto à costa do município (praias, costões, ilhas), chegando ao longo de
um ano contabilizar mais de 80 espécies, cada uma delas com seus nomes populares e
científicos (FIPAC, 2010). A abordagem a seguir privilegia o enfoque etimológico da tradição
como uma ação de entrega ou compartilhamento de conhecimentos cumulativos da pesca
artesanal marinha de Arraial do Cabo.
3.2.1 Origens da pesca artesanal
Sítios de sambaquis3 no município de Arraial do Cabo testemunham que a pesca artesanal já
era pratica há mais de 3.000 anos AP (antes do presente) na península, desde a sua ocupação
pelos primeiros grupos humanos, anterior, portanto, à chegada das nações indígenas.
Segundo Tenório et al. (2008), esses grupos possuíam um profundo conhecimento de técnicas
necessárias à exploração do meio aquático marinho. Viviam em grupos no alto dos morros de
onde desciam para buscar alimentos, especialmente peixes e moluscos. Há mais de 1500 AP,
os guerreiros indígenas começaram a conquista do litoral da região (CABO FRIO, s/d). Índios
Tupinambás habitavam toda a área correspondente ao Estado do Rio de Janeiro e, nas terras
onde surgiria Arraial do Cabo,
eram
representados
pelos
Figura 15: Paisagem de Arraial do Cabo na Década de 50
do Século XX.
Tamoios
(TCE/RJ,
2008).
Segundo estudos arqueológicos,
havia cerca de 50 aldeias
Tupinambás na região, estimandose uma população entre 25 e 75
mil habitantes antes da conquista
européia.
A pesca artesanal é, portanto, a
atividade mais antiga dentre os
ciclos econômicos da região das
Baixadas das Litorâneas, ciclo do
pau-brasil,
ciclo
do
sal,
industrialização
e
exploração
offshore de petróleo e gás. Desde
o início da colonização do país,
iniciada no século XVI, até a
Acervo de Luiz de Castro Farias, 1953
instalação da indústria química da
Companhia Nacional de Álcalis
(CNA)4 na metade do século XX, a região do atual município de Arraial do Cabo manteve-se
isolada como uma rústica aldeia de pescadores, por ser um cabo geográfico de clima semiárido
3
Sambaquis (do tupi tamba'kï; literalmente "monte de conchas"). Eles são depósitos de matérias
orgânicas e calcáreas construídos pelo homem há milhares de anos. No Brasil, há sambaquis em todo o
litoral. O homem sambaquiano era, essencialmente, coletor de moluscos e pescador.
4
Companhia Nacional de Álcalis (CNA), fundada por Getúlio Vargas em 1943, teve por objetivo industrial
produzir matérias-primas derivadas do calcário conchífero extraídas da Laguna de Araruama, tais como
soda cáustica (hidróxido de sódio), barrilha (carbonato de sódio) – a mais importante - etc., visando à
auto-suficiência nacional desses produtos de base da indústria moderna.
30
e de difícil acesso. Esse isolamento geográfico e econômico fora mantido por uma interação
iniciada logo após o descobrimento do Brasil entre colonizadores que aprenderam a viver na
nova terra e os índios que nela habitavam, mediante o compartilhamento e o aprendizado de
novas técnicas de pesca e de artesanato de objetos domésticos com recursos naturais,
principalmente, da restinga. Pescadores nativos da região do Cabo se reconhecem como
descendentes de portugueses oriundos da Povoa do Varzim, Açores e Ilha da Madeira, com
tradições marítimas e pesqueiras. Especula-se a descendência de francesa na formação da
população. Um dos pescadores mais antigos de Arraial do Cabo, Seu Doke (Bonino Vicente
José Goulart) com 86 anos, assim descreveu um quadro da vida cotidiana do Arraial de sua
juventude:
Eram poucas famílias, não havia eletricidade, usávamos lamparinas a querosene e lenha para
cozinhar. Os homens se dedicavam à pesca artesanal principalmente, e as mulheres, conhecidas
como “salgadeiras”, se utilizavam do paiol (construções feitas de pau-a-pique com folhas de Guriri
no teto) para salgar os peixes que eram vendidos em outras cidades (Cabo Frio, São Pedro da
Aldeia).Transportados no lombo do burro, após 10 dias o vendedor retornava com o dinheiro das
vendas. A água era retirada das “cacimbas”, que eram poços feitos artesanalmente e de excelente
qualidade. (Fundação COPPETEC, 2009).
3.2.2 As espécies: classificação, migrações e épocas de pescarias
Os critérios de classificações das espécies de peixes utilizados pelos pescadores de Arraial do
Cabo refletem qualidades, atributos, virtudes e categorias de acordo com as suas
percepções/interpretações relacionadas à condição humana e a outras formas de vida da
restinga. Os peixes podem ser classificados como lerdos (trompeta), rápidos (enchova),
,comunicativos (mero), que roncam (tainha e perumbeba) etc. (Cunha, 2000),
Os pescadores de Arraial do Cabo sabem das “moções” (ou “monções”), do conjunto de
condições favoráveis à ocorrência de grandes cardumes (“mantas”) e de suas rotas. São duas
as épocas distintas, o tempo frio – de abril a setembro - e o tempo quente – de outubro a
março. O período frio propício para a pesca da tainha/enchova e o quente, para o xaréu e o
bonito. Em relação aos cardumes migratórios, muitos deles que chegam do sul passam
primeiro pela Praia Grande, entram pelo Boqueirão e chegam às Prainhas, Praia dos Anjos,
Prainha e, por último, à Praia do Pontal (Mapa 01).
3.2.3 Condições naturais (ventos, fases da lua)
Os conhecimentos dos pescadores artesanais sobre os fatores naturais que afetam as
pescarias (vento, correntes, temperatura da água, comportamento das espécies de peixes –
migrações, períodos e locais de aparecimento de cardumes) variam segundo as artes de pesca
e as suas experiências. Esses conhecimentos se diferenciam entre as modalidades das
pescarias.
Ventos
Em Arraial do Cabo, os ventos são conhecidos pelos pescadores como sendo de diversos tipos
e influências na pesca:

Sudoeste ou vento de fora - No verão, este vento pode provocar ressaca ou favorecer a
pesca na Praia Grande e, no tempo frio, favorece a chegada da tainha para todas as
praias.

Nordeste ou vento de dentro - Torna a água tranquila, fria e escura, dificultando a pescaria
na Praia Grande, mas em contrapartida favorece a pesca do bonito nas praias do Norte.
31

Leste ou Vento de cima - Provoca chuva, calmaria e resfriamento das águas do mar. Só a
pesca da lula na Praia Grande é favorecida.

Vento de baixo - Vento no sentido Continente – Mar: Considerado perigoso para
embarque e com frequência de esfriamento e escurecimento do mar.
Essas influências sofrem variações quanto às propriedades dos ecossistemas e o manejo
utilizado na pesca. Depoimentos de pescadores da Praia do Pontal dados a estudantes de
Arraial do Cabo participantes de uma pesquisa sobre conhecimentos ecológicos tradicionais da
pesca artesanal (Fundação COPPETEC, 2009)5, o “mar está para peixe” quando está calmo e
com água ao sul. Dizem que durante o mês de agosto é frequente o vento Leste (“lestada”) e
que a pescaria melhora somente com o vento Sudoeste.
Fases da lua
A combinação das fases da lua com os tipos de vento é decisiva para a decisão de onde,
quando e como pescar. As fases começam e terminam, respectivamente três dias antes e
depois de seus auges. Durante as fases lua nova e cheia, o mar se torna mais agitado (mar
alto ou maresia) e nas de quarto crescente e minguante fica mais manso. O Sudoeste em lua
cheia/nova torna o mar grosso e favorece o aparecimento da tainha. Com o Nordeste, o mar
fica manso e favorece todas as pescarias, mesmo com a maré cheia. A presença das espumas
nas ondas em deslocamento sul-norte, outro indicador das condições naturais para as
pescarias, indica o prenúncio de maresia, inviabilizando a pescaria na Praia Grande, mas
favorecendo a pescaria da lula (Britto, 2004).
3.2.4 Áreas de pesca ou pesqueiros (marcações)
Os pescadores de Arraial do Cabo delimitaram
várias áreas de pesca ou pesqueiros costeiros,
principalmente nos costões, onde são capturadas
diferentes espécies de peixes ao longo do ano,
evitando, com isso, o acaso de suas pescarias.
Para fins de ordenamento de acesso e uso
dessas áreas em um futuro plano de manejo,
foram elaborados alguns mapas digitais desses
pesqueiros com a ferramenta Google Earth:
Prainha, Ilha do Farol e Laguna de Araruama.
Em alguns desses mapas, além de localização,
constam informações das espécies, das
condições naturais (correntes marinhas, ventos,
estação do ano etc.) de suas ocorrências e
também seus conflitos.
5
A PESCA DE ENCHOVA PELAS CANOAS
DE LINHA (CANOAS MENORES) NA ILHA
DO FRANCÊS
Paulo Franco
A pesca de canoas de linha na Ilha do
Francês foi durante muitos anos, aliada a
pescaria de rede, um braço for te da
economia dos pescadores de Arraial do Cabo.
Era praticada durante a noite por
aproximadamente, 30canoas. A pescaria era
tão certa, que tinha um turco em Cabo Frio
chamado Samuel da Razão que perguntava a
dona de casa se o seu marido pescava no
Francês, que funcionava como uma garantia
de pagamento de algum móvel ou utensílio
adquirido.
Depoimentos colhidos por Nicole e Rejane, estudantes do IFRJ e bolsistas da modalidade iniciação
científica júnior do Projeto Ressurgência (Fundação COPPETEC, 2009. Apoio Programa Petrobrás
Ambiental).
32
Figura 16: Mapa de Pesqueiro no Litoral de Arraial do Cabo
Autor Marcelo Amaral.
3.2.5 Tecnologia de captura: modalidades, embarcações, instrumentos e inovações
técnica
Originalmente, a população cabista utilizava vegetação da restinga para aplicações
tecnológicas na atividade pesqueira: conserto de embarcações, linha para pesca, tingimento de
linha de pesca, carpintaria naval de embarcações artesanais, ferramentas para artesanato,
látex utilizado na caça (Fonseca Kruel & Peixoto, 2004). Há várias décadas, as modalidades de
pesca de captura dos pescadores artesanais de Arraial do Cabo passaram por inovações
técnicas e tecnológicas com vistas a aumentar a produtividade, com redução dos esforços de
pesca e com aumento da produção de pescado nos limites da sustentabilidade do ecossistema
marinho da área da reserva. As inovações técnicas que se seguiram devem ter contribuído
para a redução de esforços e maior conforto para o pescador em sua lida no mar, apesar de se
33
desconhecer alguma avaliação integrada sociotécnica e ambiental dessas mudanças em
escala municipal.
O projeto de criação da Resex-Mar AC introduziu um conceito “fixista” ou cronológico de
tradição na pesca, sendo gerador de controvérsias entre pescadores e gestores até hoje. O
pescador tradicional deveria ser nativo de Arraial do Cabo e utilizar técnicas tradicionais da
pesca. Das modalidades de pesca exercidas na Resex-Mar de Arraial do Cabo, a pesca de
arrasto de praia é considerada a mais tradicional. Além desta modalidade, poucos estudos
sobre o conhecimento ecológico tradicional foram realizados.
Modalidades
O conhecimento tradicional da pesca é diferenciado e não aplicável a todas as modalidades da
pesca artesanal, por relacionar-se ao tipo da pescaria. Elas costumam ser classificadas pelos
pescadores de Arraial do Cabo em “costeiras” e “de mar aberto” (Brito, 1989). Para as
primeiras, estão as pescas de arrasto de
praia e de linha; e, para as segundas, as
VIGIAS E MESTRES DE CANOA DE REDE
Por Paulo Franco
pescarias com botes de “boca aberta” com
ou sem casarias e as traineiras, utilizadas
Os Vigias e os Mestres de canoa de redes em
pelos “de fora” ou “caringôs”.
A seguir, as modalidades mais conhecidas:
a) A pesca de arrasto de praia
Arraial do Cabo são partes integrantes da
companha da Canoa de Rede nas nossas
praias.
O Vigia é o responsável por localizar os
cardumes e, através de sinais, com uma toalha
na mão, orientar a companha para a realização
do cerco (ou lanço) e com sinais característicos,
indicava qual o tipo de peixe e a quantidade
aproximada. O seu local de trabalho era sempre
num ponto elevado para avistar melhor os
cardumes. Com dia claro os vigias avistavam
cardumes a uma distância de 5 quilômetros.
Quando era vigia de praia (Praia Grande e
Pontal) o seu sinal para o vigia do morro era
correr na praia de baixo pra cima e vice-versa
por várias vezes até ser notado.
Esta modalidade de pesca consiste de uma
rotação de canoas que arrastam redes de
cerco de praia com 252 a 288 m de
comprimento e 19,8 a 21,6 m de altura. A
sua estrutura física contém os seguintes
componentes (Silva, 2004; Diegues, 2007):
 Copo ou copio – parte central da rede,
com malha miúda, formando um tipo
de saco onde o cardume é
concentrado depois de cercado;
 Encontros – partes laterais
O Mestre é o responsável pelo comando da
intermediárias;
canoa, seguia as orientações do vigia durante a
 Mangas – partes laterais extremas,
realização do cerco ao cardume, orientando os
com malhas maiores do que as
integrantes da companha pelas medidas e
encontradas nos encontros;
cuidados a serem tomadas a bordo. Alguns
 Forcadas ou calões – suportes de
tipos de peixe, os remadores tinham que remar
madeira que prendem as
sem fazer barulho (perú) para não espantar o
extremidades da rede aos cabos;
cardume que estava sendo cercado (xareu,
 Cabos – são presos às forcadas e
graçainha, ubarana e outros).
servem para puxar a rede para a
praia;
 Tralhas – cabos presos às partes superior e inferior da rede, onde as cortiças e as
chumbadas são fixadas respectivamente.
Essa rotação de canoas pode ser realizada de duas maneiras: a pesca de cerco e a pesca de
lanço à fortuna. A pesca de cerco é feita mediante comunicação de um vigia situado em
alguma parte elevada do relevo da costa para a orientação das manobras dos pescadores de
canoa. O cardume é avaliado por ele em relação à dimensão e composição e orienta a
operação da captura por meio de linguagem visual. A pesca de lanço à fortuna é feita sem a
coordenação do vigia: o lanço é feito sem a identificação e locação do “manta” ou cardume.
Principais espécies mais capturadas pelo cerco de praia são as seguintes o Bonito pintado
34
(Enthynnus alleteratus), a Serra (Sarda sarda), o Xaréu (Caranx hippos), a Tainha (Mugil liza) e
o Cação galha preta (Carcharhinus maculipinnis).
Figura 17:Pesca de Arrasto de Praia no Passado e no
Presente
Pesca de arrasto de praia em 1953 (Acervo da Colônia de Pescadores Z5 e, em 2009, pesca de
arrasto de Praia Grande (Bruna f. Milhorance).
A possibilidade de compra do direito à vez
que é passado por herança levou a uma
concentração de propriedade de canoas
com poucos donos. Estes passam a ter o
direito de pescar mais vezes do que o
acordo
formalmente
estabelecido,
chegando a possuir até 10 dos 42 lanços.
Segundo a pesquisadora Pinto da Silva
(2002), cerca de apenas 20% dos
pescadores de Arraial do Cabo dependiam
exclusivamente da renda gerada por essa
modalidade de pesca, a maioria tinha
outros empregos (Prefeitura, Álcalis) ou
eram aposentados.
Figura 18: A Importância do Ponto de Vista
do Vigia para a Pesca Artesanal do Século
XX.
b) A pesca de cerco com traineira
A pesca de traineira é distinta da pesca
com canoa. Ela pode ficar no mar por vários
dias com uma tripulação de 08 pescadores.
Estes têm funções distintas daquelas
existentes na pesca de canoas, com
destaque para o mestre proeiro, o mecânico
responsável pelo motor, o cozinheiro, entre
outros. O sistema de pesca torna o custo
Foto: Nicole Corrêa de Oliveira e
muito elevado para os pescadores de
Rejane Pereira Castro.
canoa. Essa pesca é feita com uma rede
entre 200 a 400 m de comprimento e
abertura de malha igual a 13 mm, podendo ter o tamanho mínimo semelhante ou o dobro da
rede de arrasto de praia. Com maior autonomia de mar do que as canoas, o cardume pode ser
localizado e cercado com a traineira a uma distância maior da costa. A captura do cardume é
35
feita, primeiramente, lançando a rede com uma ponta presa a um caíco e a outra na traineira
que faz uma trajetória circular em direção a esse mesmo caíco.
Essa operação de pesca pode utilizar a ecossonda ou o conhecimento ecológico tradicional
dos pescadores: durante o dia, a visualização da variação de nivelamento do mar ou pela
“mancha”; à noite pela ardentia, o reflexo da bioluminescência, indicando o deslocamento dos
peixes na água. As espécies mais capturadas são a Sardinha verdadeira (Sardinella
brasiliensis), o Xerelete (Caranx latus), a Cavalinha (Scomber japonicus), o Bonito pintado
(Enthynnus alleteratus), o Bonito listrado (Katsuwonus pelamis), a Serra (Sarda sarda), a
Palombeta ou Folha-de-mangue (Chloroscombrus chrysurus), o Galo (Selene setapinnis) e a
Tainha (Mugil liza). O uso de traineira na Resex-Mar AC tem sido ainda controvertido entre
pescadores, por ela competir em condições desiguais com a pesca de canoas.
c) Rede de armar
A pesca com rede de armar é utilizada para pescar lula. Ela tem uma forma cônica com malha
de 15 mm e altura de 3 m aproximadamente. Por meio de seu hasteamento rápido em uma das
bordas da embarcação, a lula, atraída pela luz de lampião ou de lâmpada fluorescente, é
capturada.
d) Pesca de linha
Para a pesca de linha, utilizam-se anzóis de número 14 e 15 para a noite e de 11 a 14 para
mar agitado. Essa pesca é feita com embarcações bote “boca aberta” nos pesqueiros
costeiros, podendo durar 48h com revezamento de pescadores a cada 12h. As iscas podem
ser artificiais ou pedaços de peixe. As espécies mais capturadas são as seguintes: a Enchova
(Pomatomus saltatrix), a Espada (Trichiurus lepturus), o Marimbá (Diplodus argenteus), o Olho
de cão (Priacanthus arenatus), a Raquete (Aluterus monoceros), a Pitangola (Seriola fasciata),
o Olhete (Seriola lalandi) e o Pargo (Pagrus pagrus).
e) Pesca de espinhel
Esta pesca, feita também com embarcações “boca aberta”, é realizada a 3 milhas da costa. O
espinhel consiste de uma linha mestre com um conjunto de anzóis, sustentada por boias na
superfície e esticada por pesos em suas extremidades. O comprimento dos espinhéis pode
variar de 500 a 2.000 m com 150 a 500 anzóis, dependendo do tipo de coluna d‘água das
espécies que se pretende capturar -“matar”, como dizem os pescadores: a) água de superfície
– Dourado (Coryphaena hippurus); b) espinhel de meia água – imersão em 10 m de
profundidade, captura de Espada (Trichiurus lepturus); c) espinhel de fundo – estabilizado no
fundo do mar, serve para a captura de Namorado (Pseudopersis numida), Congro (Conger
orbignyanus), Cherne (Epinephelus niveatus), Garoupa (Epinephelus guaza) e Corvina
(Micropongonias furnieri).
36
A PESCARIA SECULAR DAS CANOAS DE REDE E DE LINHA, DE ARRAIAL DO CABO
Por Paulo Franco
As canoas de rede e de linha (como eram chamadas então) foram as grandes propulsoras da
economia do Arraial do Cabo durante décadas. Presentes em todas as praias da nossa cidade,
mantinham ocupados todos que se dignassem a seguir a pesca como profissão. Para se ter uma
idéia de como eram importantes, só na Praia Grande tinham 56 canoas e hoje estão reduzidas
de 10 a 15. Somando-se as canoas de todas as praias, chegava-se ao total de 80 canoas,
aproximadamente.
As redes eram feitas pelos próprios pescadores com um fio natural chamado de barbantinho de
3 cordões e um fio mais grosso para o cópio, (parte da rede onde os peixes juntavam). Com a
raiz do “Muricy”, planta retirada da restinga, a rede era tingida antes de ser usada. O cabo, com
o qual se puxava a rede era a “beta”, feita com o cipó-imbê, raiz de uma planta retirada da
Restinga e do Morro da Cabocla e a cortiça que mantinha a rede boiada era feita com a raiz do
Areticum, retirada da Restinga.
Por estes exemplos, verificamos uma perfeita integração entre restinga, pescador e mar sem
causar prejuízos ao meio ambiente, muito embora todos os materiais fossem retirados da
natureza. O pescador era um ambientalista por natureza. A cada pescaria que realizava, a rede
tinha que ser colocada ao sol para secar, pois se assim não fizesse, fatalmente apodreceria por
ser feita com fios naturais.
Cada praia seguia uma escala própria na organização dos dias pesca. Assim sendo, na Praia
Grande pescavam 02 canoas por dia, sendo permitido às duas canoas que pescaram no dia
anterior, se houvesse monção de boa pescaria, ficarem de sobreaviso. Por várias vezes, 3 a 4
canoas faziam o cerco num mesmo dia, face a quantidade de peixe, principalmente de Anchova.
Há casos de vários lanços num só dia, totalizar mais de 20 mil Enchovas.
f) Retinida
Esta é modalidade de pesca característica da região para a captura de cação ou tubarão. A
linha utilizada tem a espessura de 8mm com um anzol. Lança-se a linha para uma distância de
4 m da embarcação a partir de uma boia de sustentação. São utilizados para iscas pedaços de
carnes de Dourado, Bonito, Serra ou Tainha . Logo após o cação ser fisgado, o pescador deixa
que ele se abata até esgotar-se.
Embarcações
Apesar da falta de cadastramento, algumas pesquisas estimam que a frota pesqueira de Arraial
do Cabo possua cerca de 550 embarcações de diferentes tipos. Essa diferença tipológica
(Figura 00) se deve à modalidade de pesca, capacidade de número de pescadores e funções
de cada um deles: canoa – pesca de arrasto de praia, 06 a 09 pescadores; bote boca aberta e
meia casaria com motor de centro – pesca de linha, rede de armar e espinhel, com 02 a 03
pescadores; traineira com sondas, GPS e sonares – rede de cerco, com até 10 pescadores;
caícos – pesca de linha nos costões e a pesca luminosa da lula, com 01 a 03 pescadores
(Silva, 2004; ICMBio, 2009). Além da pesca, algumas das embarcações motorizadas, como a
traineira e o bote boca aberta, são utilizadas em turismo náutico (passeio de barco, pesca
esportiva).
37
Os critérios de tradição e artesanal adotados na Resex-Mar de AC para as embarcações ainda
são controvertidos para parte dos pescadores e gestores. Alguns desses critérios são as suas
dimensões de pequena escala (igual
ou abaixo de 20 m comprimento) e a
Figura 20: Canoa - Posições e Funções dos
ausência de sistema de conservação
Pescadores
do pescado (Silva, 2004; IBAMA,
1994). do pescado (Silva, 2004;
IBAMA, 1994). No projeto de criação
da Resex, a modalidade considerada
tradicional é, somente, a pesca de
arrasto de praia, realizada por
pescadores “cabistas” (originários de
Arraial do Cabo) através de uma
rotação de canoas - o sistema de
direito de vez para lançar a rede.
A utilização da canoa no mar para as
pescarias se faz mediante a
habilidade de uso de regras náuticas,
obtidas
pelo
conhecimento
acumulado, minimizando o esforço
Foto: Bruna F. Milhorance
físico. Cada pescador tem papéis
específicos na canoa, tornando
relevante o trabalho de equipe, ao contrário de uma atuação individualista, conforme
estereótipo de pescador. Os papéis mais comuns são os seguintes associados com as
posições na embarcação: mestre – trabalha na popa, proeiro – rema na proa, chumbeiro –
responsável pelo chumbo e a trabalha, meeiro – rema no meio, ré – ao lado do chumbeiro,
contra-ré- rema na ré e no meio da
Figura 21: Bote “Boca Aberta”
popa. Com relação às demais
modalidades de pesca, há poucas
informações e omissões sobre o
conhecimento
tradicional
dos
pescadores
considerados
“não
cabistas” ou “caringôs”. Diegues
(2007) chama atenção para o fato
da pesca de traineira como também
da pesca de linha com bote serem
consideradas tradicionais em outros
lugares, desde que haja participação
do proprietário do barco na pescaria.
Para o IBAMA (1994), o que
caracteriza
tradicional
nessas
embarcações é ausência de um
sistema
de
conservação
do
pescado. Porém, para alguns
pescadores, ainda não há consenso
em relação às traineiras.
38
Instrumentos e Inovações
Figura 22: Traineira e o Caíco em Pesca de Cerco.
Estimadamente, há seis décadas
os pescadores tradicionais de
Arraial do Cabo tiveram acesso a
novos materiais industrializados de
plástico nas redes, o nylon na rede
de cerco, na linha de pesca, nos
cabos, nas tarrafas, substituindo
paulatinamente a cortiça de raiz de
areticum, a rede de fibra vegetal
tingida com raiz de murici, as betas
de cipó imbé e a tarrafa de tucum.
Essa mudança propiciou adaptação
do pescador Cabista a novos tipos
Foto: Gustavo Fernando Chiappolini.
de materiais de pesca, facilitando o
seu modo de vida causado por um menor esforço tanto na confecção dos petrechos quanto a
um aumento substancial na captura do pescado.
Os petrechos utilizados na captura pelos pescadores são de baixo impacto ambiental, entre
eles, destacam-se: rede de lanço (arrasto de praia), rede de lula ou rede de armar, linha de
mão com anzol, currico, bate puxa, zangarejo, rapala, misanga, pargueira, balanço, espinhel
(long-line), rede de traineira, puçá e
Figura 23: Perfuração de Cortiça de Raiz de
tarrafa. A pesca por mergulho
“Areticum” por um Pescador
submarina ainda que de pequena
escala é realizada na área da
Resex. Entre as principais espécies
capturadas destacam-se: dourado
(Caryphaena hipurrus), anchova
(Potamus saltatrix), olhete (Seriola
lalandi), pitangola (Seriola Fasciata),
tainha (Mugil lisa), bonito cachorro
(Auxis thazard), bonito pintado
(Enthynnus
alleteratus),
cavala
(Scomberomurus cavalla), xerelete
(Carans latus), sardinha verdadeira
(Sardinela brasiliensis), espada
(Trichiurus lepturus), namorado
(Pseudopercis numida) e cavalinha
(Scomber japonicus), piruá/raquete
(Aluterus monoceros) (Silva, 2004).
Acervo Colônia de Pescadores Z5, 1953.
39
CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL – REDES E ISCAS
Por Paulo Franco
O Conhecimento Ecológico Tradicional tem por finalidade adicionar à moderna tecnologia, os
conhecimentos das comunidades pesqueiras tradicionais no resgate da memória dos pescadores
artesanais de Arraial do Cabo, aplicando-se ao moderno, o que de fato, era usado, sem causar qualquer
tipo de danos ao meio ambiente.
Entre os materiais usados na pesca artesanal de Arraial do Cabo - antes do uso do nylon e do plástico -,
encontramos os diversos tipos de fios, linhas, cabos. bóias de redes e tingimentos, retirados da Restinga
e do Morro da Cabocla. Apenas o fio para a confecção das redes usadas pelas canoas era comprado no
Rio de Janeiro (de fibras naturais), assim distribuídos:
Linhas de pesca: Primitivamente era usada a linha de tucum para a confecção de linhas de pesca de
mão e de tarrafas. O vegetal usado era retirado da restinga e fiado pelas mulheres. Aos homens cabia a
preparação da linha de mão, que eram torcidas no fuso e a confecção das tarrafas. Mais tarde passou a
ser usada linha de algodão, “encascada” com aroeira para dar maior resistência e ter maior durabilidade
Cabos para puxar a rede: Era usado o cipó-imbê para a confecção das betas. Retirado do Morro da
Cabocla e da Restinga. Esse cipó era colocado ao sol por três dias, que tinha sua casca retirada e torcida
em um engenho rústico que chamavam de carrinho, em pedaços de diversos tamanhos.
A beta, alem da finalidade de puxar a rede, tinha a função de evitar que os peixes fugissem da rede, em
virtude da sua coloração preta.
Bóias para Rede: Era usada a cortiça retirada da raiz do areticum (ou araticum), existente na Restinga.
Depois de alguns dias, era cortada em fatias e furadas com um ferro quente para posteriormente serem
usadas nas redes de pescaria. Deixaram de ser usadas depois que surgiram as bóias de plástico e
isopor.
Raiz de Muricy: Era usada para tingir as redes confeccionadas com barbante de fibra natural. Essa
planta é encontrada na Restinga e o seu uso, além de dar maior durabilidade a rede, tornava-a mais
escura, evitando assim que os peixes de dentes cortantes (anchova, espada, etc) causassem maiores
danos. Tem uma nódoa muito forte.
O uso de iscas e iscas falsas existe até hoje e, existirá sempre. Porém, a moderna tecnologia se adequou
ao que sempre foi usado pelos nossos ancestrais. Foram eles, que observando a maneira peculiar de
cada tipo de peixe, passaram a usar barbantes, pedaços de pano e couro de animais para pescar alguns
tipos de peixes que não pegavam em isca parada.
Foi então inventado o “Currico”, que inicialmente era feito com couro de porco, de boi e até com o lábio
superior de peixes grandes, preso a um anzol de pata, empatado com arame de aço. Quando algum
pescador não tinha o material para o currico, mas estava com camisa branca, tirava um pedaço da
mesma e usava para pescar anchova. Isso sempre acontecia! No passado foi também muito usado o
cardeiro (cactus), que depois de retirado os espinhos, era preparado e preso à linha para atrair o peixe
(geralmente o olho de boi) até a proximidade da pedra, que era arpoado com um tridente.
Atualmente, o uso de iscas artificiais se tornou um fato corriqueiro. O currico de nylon é hoje o mais
usado preso a um anzol de argola, enquanto que outros tipos de iscas (lula, camarão, etc.) são
fabricados em silicone. Foi também usado largamente o sarambê para a pescaria de currico, sendo que
este era usado pelos pescadores, na pedra.
Quanto ao uso de isca parada, pouco mudou da forma tradicional de se pescar. Permanece o mesmo
sistema, com os mesmos materiais, porém com algumas inovações, como o uso de bóias luminosas, as
“pargueiras” feitas de miçangas para a pesca do xarelete e, recentemente, o uso de isca luminosa que
3.2.5sendo
Regras,
Partilha
da Pesca
e Comercialização
está
usada
na pescaria
de espada.
Um fato marcante no surgimento de aparelhos alternativos de
pesca foi da invenção do “zangarejo” para a pesca de lula que só em Arraial do Cabo tira do mar em
torno mais de 100 toneladas de lulas por ano, beneficiando diretamente um elevado número de
pescadores.
40
NOVAS TÉCNICAS
Por Paulo Franco
Muito embora já existissem desde os anos 40
e 50 barcos motorizados na pescaria, de
propriedade de cabistas, como, por exemplo,o
“filequinho” (barco de Hermes Barcellos) eo
“carranca” (barco de Alberto Pinheiro, o
betinho), os primeiros de Arraial do Cabo
construídos em Cabo Frio.Os pescadores
tradicionais tiveram que se adaptar as novas
técnicas industrializadas introduzidas na
pesca.
Passou a usar o nylon na rede, na linha de
pesca, nos cabos, enfim,em tudo que se
relacionava com a pesca substituindo
paulatinamente a rede de fibra vegetal tingida
com a raiz do muricy, a tarrafa de tucum, as
betas de cipó-imbé e a cortiça de raiz de
areticum. Essa mudança tecnológica propiciou
a adaptação do pescador cabista ao novo
modelo de material de pesca.
Figura 24: Reunião de Pescadores para a Partilha do
Quinhão
Acervo Colônia de Pescadores Z5, 1953.
Os pescadores artesanais são usualmente tidos
como desorganizados e individualistas e, no entanto, existem exemplos que mostram
experiências de auto-organização informal na pesca. Em todas as modalidades de pesca de
Arraial do Cabo, o acesso e o manejo dos recursos do mar são realizados mediante a
aplicação de regras estabelecidas pela tradição e, também, pelas organizações atuais dos
pescadores..
Para a distribuição do pescado capturado, há diferenças de sistemas de divisão da produção
entre as modalidades de pesca. Na pesca de arrasto de praia, a divisão do produto é feita de
partes ou “quinhão”, variando segundo a posição ocupada por cada pescador na pescaria
(dono de rede, canoa, vigia, mestre, e demais pescadores. Também é feita a reserva do
quinhão para fins religiosos e para não-pescadores que ajudam na puxada da rede. Com as
traineiras, o sistema de divisão da produção ainda é do quinhão. Já a comercialização se
distingue pelo volume capturado ser maior do que das canoas e maior parte das espécies
capturadas não ser comercializada diretamente no local.
Paulo franco
O produto da pesca era dividido por 14 quinhões, sendo que cada pescador tinha 1 quinhão,a canoa
1 quinhão e a rede 4 quinhões e que algumas canoas ainda tiravam mais um quinhão para a festa de
Santa Therezinha (na Praia Grande, Prainha e Pontal) e Nossa Senhora dos Remédios(Praia dos
Anjos). Os peixes mais capturados eram: Enchova, Xareu, Bonito, Ubarana, Xarelete,Cavala,
Sardinha e outros. Todas as canoas tinham nomes, mas várias deles tinham apelidos, por exemplo:
Santa Fé era apelidada de Preta, que pescava no mesmo dia com a canoa denominada,Carvão.
Não existia nenhum documento oficial que determinasse o dia da pesca de cada canoa. Era um
tratado entre os pescadores que perdurou durante séculos, sem que ninguém, até a derrubada do
“marco”, saísse um centímetro do acordo que existia entre os pescadores e donos de canoas. Os
maiores donos de canoas era Antonio Teixeira, José de André, Guilhermino João Corrêa e
outros.Abaixo, para ilustração, os nomes de algumas canoas e suas parceiras no dia a dia de pesca
na Praia Grande: Mimica, Destreza, Bonito, Cachorro,Onça, Anita, Livremos, Encantada, Santo
Antônio, São Pedro, Sereia, Coco, Veadinha, Galeão, Boa Sorte, Preta, Carvão, Rosinha e
Caracatura, Veada e Varina, Marimbondo, Baronesa, Damiana, Estrela, Aliança e Relampago, Suco
e Maceió, Galiota,Belém, Rombuda, Areia Quente, Pite, Russa, Bacurau, Alvoroço, Brilho, Imbiua,
União e GaleâoPequena.
41
O PEIXE DESDE O INSTANTE EM QUE ERA PESCADO NA PRAIA ATÉ A SUA VENDA
Paulo Franco
Depois que a rede chegava na praia trazendo o resultado do “lanço”, separava-se o peixe para ser
doado aos ajudantes. Do restante, era feito um leilão que depois de arrematado já sabia o valor de
cada “cento” (100 peixes). Depois eram contados, e, conforme a qualidade do peixe, era inicialmente,
embarcado nas embarcações de Fernando Barros que depois de gelado, era transportado para o
mercado do Rio de Janeiro.
Com a construção da estrada de rodagem passou a ser gelado em caixas de madeira e mandado
para o Rio de Janeiro. Nesse caso se enquadravam a enchova, o xarele, o pitangola,o olete, etc.
Quanto aos demais, xareu, bonito,tainha, cavalinha e até sardinha eram “escalados”na praia, lavados
no mar e transportados por cavalos até os paióis onde eram salgados pelas “salgadeiras” e colocados
em tanque de salmoura.
Decorridos 5 dias, a salmoura era escorrida o peixe era novamente salgados (ressalgados)com sal
moído, ensacados e levados para outros municípios em lombo de burros, chegando até Itaboraí, São
Gonçalo e outros municípios.
ALGUMAS DAS PRINCIPAIS ESPÉCIES CAPTURADAS POR PESCADORES ARTESANAIS
DE ARRAIAL DO CABO. 1992 – 2002 ( * )
Pesca de Cerco com Traineira
42
Pesca de Arrasto de Praia
Pesca de espinhel
Pesca de Linha
( * ) Paulo José de Azevedo Silva. Responsável Técnico – Msc.Biólogo Marinho da FIPAC
43
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclusões Preliminares

A importância do mar é atribuída à magnitude de seus serviços ecossistêmicos para o
bem-estar das sociedades humanas, além de seu papel de regulação das bases biofísicas
da existência do planeta. Entretanto, as sociedades urbano-industriais têm acarretado
impactos severos nos ecossistemas marinhos e costeiros com ameaças de
conseqüências negativas ao bem-estar das sociedades contemporâneas, principalmente,
das populações tradicionais costeiras, que têm na pesca artesanal a sua fonte de
segurança alimentar e reprodução social.

Um novo naturalismo passa a refletir enfoques mais complexos para a conservação
marinha sustentável. Ele postula que a natureza não pode ser mais entendida
separadamente das sociedades humanas. Essa postura levou pesquisadores e gestores a
reconsiderarem a compartimentalização ou especialização do conhecimento científico do
mar. A ciência organizada por disciplinas ou conhecimentos compartimentados tem-se
demonstrado ineficaz para explicar os fenômenos ecossistêmicos que não são analisáveis
em partes mínimas isoladas. Ao contrário, tais fenômenos dos ecossistemas ocorrem nas
interações estabelecidas por interconexões entre os seres marinhos e costeiros e entre
eles e as atividades humanas.

As áreas marinhas protegidas (AMP’s), que são uma das principais ferramentas para a
conservação marinha, estão em desequilíbrio em relação ao número total de áreas
protegidas no mundo e à magnitude do mar: o número de AMP’s corresponde a 1% e fica
abaixo de 1% do total da abrangência dos oceanos. As novas diretrizes internacionais
para superar esse desequilíbrio das AMP’s recomendam a associação do objetivo dessas
áreas para a conservação da biodiversidade marinha com a gestão da pesca. Como
parte da estratégia global de conservação da biodiversidade, as AMP’s passaram a ter
como principal função a manutenção da produtividade dos estoques pesqueiros.

A reserva extrativista marinha (Resexmar) é uma proposta brasileira inovadora de
categoria de área marinha protegida de uso sustentável por pescadores artesanais,
antecipando de certo modo, as diretrizes internacionais de associação da conservação da
biodiversidade marinha e dos recursos pesqueiros. A Resexmar visa assegurar os meios
de vida e a cultura de populações tradicionais costeiras por meio da gestão do uso
sustentável dos recursos pesqueiros com a manutenção de sua biodiversidade. A falta de
planos de manejo participativo em todas as Resexmar têm demonstrado maiores
dificuldades para a sua efetiva implementação. Um dos principais fatores para essas
dificuldades é a não consideração dos conhecimentos ecológicos tradicionais ou locais
dos pescadores artesanais.

A pesca artesanal tem a sua importância reconhecida por seus valores econômico,
ambiental e social. Como atividade humana, o seu surgimento remonta a era paleolítica
em período anterior ao surgimento da agricultura. Mesmo na falta de uma definição
universal, essa atividade pode ser reconhecida por características comuns
independentemente da geografia onde ela é praticada e da diversidade cultural. Ela é e
exercida de modo autônomo para a subsistência e a comercialização do pescado
excedente, com capturas multiespecíficas em águas rasas ou costeiras (no caso da pesca
marinha) de acordo com a sazonalidade de cada espécie, não impactando, por isso, a
cadeia alimentar das espécies, ajudando a manter e criar a biodiversidade marinha. Além
de envolver mais de 90% de pescadores em todo o mundo, a sua produção total é quase
equivalente à produção da pesca industrial. Apesar de representar a principal fonte de
proteína animal para maiores parcelas das populações humanas nas zonas tropicais e
dos países do hemisfério sul, a pesca artesanal goza de maior prestígio em alguns países
industrializados das economias centrais, onde, por sua vez, a prroletarização dos
44
pescadores de pequena escala não chegou a ocorrer com alta intensidade, como nos
países escandinavos e no Japão.

A apropriação tradicional do espaço marinho pelos pescadores artesanais de Arraial do
Cabo consiste em um conjunto de práticas culturais de intervenção no mar acumuladas
secularmente cujas inovações técnicas são realizadas mediante adaptações às
características e dinâmicas dos ecossistemas marinhos e costeiros, com vistas à
reprodução social das comunidades de populações extrativistas costeiras tradicionais. O
fato da pesca artesanal ser hoje no século XXI a mais antiga atividade de produção
primária da região do município de Arraial do Cabo deve-se, em parte, à combinação de
dois fatores: a ocorrência sazonal do fenômeno marinho da ressurgência junto à sua costa
e a presença de uma população pesqueira tradicional cujo patrimônio de cultura imaterial
de conhecimentos marítimos e habilidades de manejo remonta a milhares de anos.

Os pescadores de Arraial do Cabo são detentores de amplos e diversificados
conhecimentos tradicionais dos ecossistemas marinhos e costeiros, acumulados através
de séculos por povos nativos que remontam a era pré-histórica, acrescidos com
descendentes de outras etnias, a partir da colonização portuguesa. Tais conhecimentos
constituem o que se define como conhecimentos ecológicos tradicionais ou locais
(CET/CEL): um corpo de saberes acumulados e resultantes das interações dos
pescadores com o mar, podendo ser ou não transmitidos para as futuras gerações.

A iniciativa de criação da Resexmar de Arraial do Cabo com a finalidade de assegurar a
conservação de uma rica e abundante biodiversidade marinha como fonte de manejo
sustentável para pescadores artesanais da região reflete uma tendência contemporânea
de ressurgimento da tradição para contrabalançar os excessos da modernidade, com
seus efeitos deletérios nos ecossistemas marinhos, assim como na biosfera. Isso implica
em aliar conhecimentos marítimos das populações tradicionais extrativistas das regiões
costeiras, acumulados através de gerações com os conhecimentos das ciências do mar,
envolvendo as ciências naturais e sociais.

A implementação da Resexmar de Arraial do Cabo, entretanto, não chegou a ser
efetivada. Os pescadores não a reconhecem como um instrumento de proteção dos
recursos pesqueiros para a pesca artesanal e de valorização desta atividade. A
interrupção no processo de elaboração do plano de manejo participativo iniciado em 2009
não teve continuidade com a criação do Conselho Deliberativo em 2010, refletindo
resistências à incorporação dos conhecimentos ecológicos tradicionais dos pescadores.
Desde a sua criação, a Resexmar não chegou a implementar um plano ou programa para
a melhoria das condições da pesca artesanal: a otimização da cadeia produtiva da pesca
artesanal (melhoria do sistema de comercialização, da infra-estrutura de desembarque e
agregação de valor ao pescado), promoção do acesso aos direitos básicos do cidadão
aos pescadores profissionais artesanais e às suas famílias, valorização da atividade como
parte do patrimônio cultural da região.
Questões para Reflexão

Tendo em vista a efetiva implementação da Resexmar de Arraial do Cabo com suas
implicações para o futuro do município, a análise comparativa de índices diferentes pode
ser oportuna para uma reflexão. Escolhemos o PIB e do IDH6 e fizemos uma análise
comparativa do município de Arraial do Cabo no contexto de todos os municípios
fluminenses. A posição do município na comparação entre os seus índices de PIB e IDH é
bastante alterada. No ranking dos 46 municípios com os maiores índices do PIB do
PIB – Produto Interno Bruto: o resultado da soma em valores monetários de todos os bens e serviços
produzidos por um município, uma região, um estado ou país; IDH – Índice de Desenvolvimento
Humano: indicador do bem-estar da sociedade, enfatizando a distribuição e o acesso dos bens e
serviços produzidos por uma dada sociedade.
6
45
Estado do Rio de Janeiro, Arraial do Cabo fica abaixo ddeles em um total de 92, sendo
considerado um nível de arrecadação baixo. Mas, ao utilizar o IDH-M (médio), Arraial do
Cabo passa para a 14ª posição com 0,790. E, ao especificarmos o IDH – Educação, ele
alcança a 7ª posição com 0,912, deixando para trás a maioria dos municípios com o maior
PIB estadual. Podemos deduzir que o município desenvolvido não é necessariamente
aquele que tem arrecadação elevada, mas aquele que consegue aplicar os seus recursos
disponíveis para o bem púbico mediante a anuência ou acordo de seus munícipes.

Alguns estudos identificam tipos de barreiras e obstáculos à introdução do co-manejo das
Reservas Extrativistas Marinhas/Costeiras, tais como: histórico de marginalização e
vulnerabilidade extrema em que vivem os pescadores marítimos, relação das colônias de
pescadores marcada pelo paternalismo, dependência dos intermediários da
comercialização do pescado, descrença nos órgãos de governo. Esses entraves, porém,
não seriam exclusivos da realidade marinha/costeira do Brasil. A inexperiência
democrática brasileira tem raízes profundas e se estendem para o interior do país, bem
longe do litoral. Os estudiosos da nossa formação histórico-cultural insistem que a feitura
de nossa sociedade não foi uma obra de “nossas próprias mãos”, resultou da colonização,
um processo de descoberta, sobretudo, uma empreitada de fins comerciais, e não de uma
intenção civilizatória. O mutismo do homem foi o que teria predominado ou a não
participação das soluções de problemas comuns. As leis foram criadas de cima para
baixo, como ocorreu com a Constituição promulgada em 1988 pelo Congresso Nacional e
não por uma Assembléia Constituinte. Enfim, a falta de participação na gestão da
Resexmar de Arraial do Cabo tem implicações locais e que não foram consideradas pelo
Estado brasileiro ao criar essa unidade de conservação em área exclusivamente em zona
marinha.
Recomendações

Pretendemos com este presente livro, mais do que uma fonte de leitura sobre o papel dos
conhecimentos ecológicos da pesca artesanal na conservação sustentável marinha,
motivar seus leitores, principalmente aqueles inseridos no contexto de áreas marinhas
protegidas, a elaborarem novos livros que reflitam outros pontos de vista correspondentes
às percepções/interpretações das experiências de seus autores em suas realidades
vividas. Para isso, consideramos o espaço escolar da educação básica o lugar
privilegiado do ponto de vista institucional para a conscientização da importância dos
conhecimentos tradicionais ou locais para a elaboração do plano de manejo participativo
da Resexmar de Arraial do Cabo com base Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
Médio (PCN/MEC).Do ponto de vista institucional, a escola possui papel preponderante na
formação de atores para mudanças de políticas públicas voltadas para assegurar uma
maior distribuição do poder na gestão dos recursos naturais entre o Estado e os
extrativistas das UC’s em zona costeiro-marinha. Tal instituição é o locus privilegiado para
as relações de ensino-aprendizagem que se abrem para novas visões do mundo, novas
práticas sociais e éticas contribuindo de sobremaneira para as ações estratégicas que
visem suplantar a degradação dos ecossistemas com potenciais riscos irreversíveis,
acompanhados pela exacerbação da pobreza, em especial de grupos sociais tradicionais.

Para levar adiante a elaboração do plano de manejo participativo poderiam ser
retomados os resultados do projeto “Apoio na Elaboração do Plano de Manejo
Participativo da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo” do ICMBio/PNUD,
realizado em 2009. Eles apontam para um conjunto ainda atual de lacunas de
conhecimento e necessidades de aprofundamento da Resexmar AC identificadas através
da literatura e/ou das atividades desenvolvidas em campo, demandas de beneficiários e
usuários da Reserva e sugestões de programas de sustentabilidade com a finalidade de
garantir a sustentabilidade da pesca artesanal, melhoria à qualidade de vida da população
beneficiária e demais usuários de Arraial do Cabo. Deve-se juntar a essa retomada a
46
comunicação das resoluções do I Encontro Nacional das Reservas Extrativistas Marinhas,
realizado em Bragança – PA, em outubro de 2009.
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49
GLOSSÁRIO
Antrópico: É um termo usado em ecologia que se refere a tudo aquilo que resulta da atuação
humana. Um exemplo de ação antrópica é a ação do homem sobre o habitat e as
modificações delas resultantes.
Antropogênico: Processo derivado de atividade humana, em oposição àqueles que ocorrem
em ambientes naturais sem influência humana. A pesca predatória e o aumento de dióxido de
carbono na atmosfera são considerados impactos antropogênicos.
Área Marinha Protegida: É um termo que se refere a um largo conjunto de regimes de
proteção territorial em nível de zonas costeiras marinhas, com a definição de restrições à
atividade humana de modo a proteger recursos biológicos, geológicos e culturais.
Biodiversidade: Refere-se á variedade de vida no planeta terra, incluindo a variedade genética
dentro das populações e espécies, da flora, da fauna, de fungos microscópicos e de
microorganismos, ocorrentes nos habitats e ecossistemas formados pelos organismos.
Atualmente, tende-se aceitar que a biodiversidade não é somente produto das interações
naturais, mas também das interações humanas, com seus manejos florestais, marinhos,
fluviais etc., mediadas e diferenciadas pela diversidade cultural.
Co-manejo: O manejo consiste na extração de um recurso vivo ou renovável (floresta, caça,
pesca etc.) para o atendimento de necessidades humanas. Se esse manejo mantiver o ciclo
reprodutivo da espécie explorada, ele será considerado sustentável. O co-manejo refere-se ás
regras de manejo acordadas ou compartilhadas ente extrativistas e o Estado e/ou entre grupos
de extrativistas distintos.
Conhecimento Ecológico Local: Tipo de conhecimento resultante de observações locais
feitas por usuário dos recursos naturais, não sendo necessariamente transmitido através de
gerações. Tem em comum com o conhecimento ecológico tradicional o fato de estar intrínseco
ou embutido nas interações humanas com a natureza.
Conhecimento Ecológico Tradicional: Conjunto cumulativo de saberes, crenças e práticas de
uso dos recursos naturais gerado por populações tradicionais ao longo dos séculos e
transferido de geração a geração.
Conservação: Contempla o compromisso de preservação da natureza de forma associada ao
ser humano.
Conservação Convencional: Visa à preservação de fragmentos ou ilhas de natureza
genuinamente pura ou intocada por meio de seu isolamento da ameaça da presença humana.
Conservação Sustentável: Admite a proteção fragmentada da natureza autêntica e a
destinação das demais áreas à atividade produtiva diversa, mantendo um equilíbrio entre
recursos naturais e necessidades humanas.
Ecodesenvolvimento: É um enfoque de planejamento e gestão com base na pesquisa social
e ecológica de orientação transdisciplinar que inclui a satisfação de necessidades
fundamentais (materiais e imateriais) das populações humanas, equidade, autoconfiança (selfreliance), prudência ecológica e uma economia negociada ajustada tanto às aspirações dos
cidadãos quanto às potencialidades e restrições ambientais, assegurando para isso a
participação de todos os envolvidos.
Ecossistema: É o conjunto formado por interconexões entre fatores bióticos (animais,
vegetais, bactérias), abióticos (água, sol, solo, gelo, vento, fases da lua, marés) e anttrópicos
(ações humanas). Apesar de protegidos pela cultura e tecnologia, os seres humanos são
dependentes dos serviços fornecidos pelos ecossistemas para o seu próprio bem-estar:
50
provisão (alimento, água, fibras), regulação (clima, inundações, doenças), cultural (lazer,
espiritual, estético) e suporte (formação do solo, fotossíntese, ciclo de nutrientes). O conjunto
de todos os ecossistemas do planeta constitui a biosfera.
Instituição: Refere=se à capacidade dos grupos sociais para a elaboração de regras,
convenções e mecanismos de uso dos recursos naturais, elementos mediadores das
interações das sociedades humanas com a natureza.
Mariitimidade: Conceito referente ao mar não restrito às suas propriedades físicas, químicas e
biológicas e nem excludente da presença humana, mas centrado nas atividades marítimas, isto
é, nas intervenções humanas no mar (pesca, navegação, pesquisa, lazer, esporte náutico etc.)
em suas dimensões históricas, culturais, sociais, econômicas, tecnológicas e simbólicas.
Modernidade: Representação ou visão de mundo que dá sentido à experiência humana de
modo diferenciado da tradição. Neste livro, optou-se pelo seu significado etimológico e não
cronológico. Para este, a modernidade seria algo do presente em oposição à Tradição como
algo do passado. Já, segundo a etimologia, moderno da raiz indo-européia modernus significa
um ato inicial ou fundador, que busca restabelecer a objetividade da experiência, perdida pela
herança embotada pelo hábito e pela rotina. O tempo para o pensamento moderno é linear.
Pesca Artesanal: Esta é uma pesca de pequena escala para fins de subsistência de famílias
de regiões costeiras e de águas continentais, com de tecnologia (regras, apetrechos, iscas,
linhas, redes etc.) de baixo impacto no meio ambiente, desenvolvida pelos pescadores com
base em conhecimento ecológico tradicional.
Pesca de Pequena Escala: Sem uma definição universal, o nome é usado às vezes como
sinônimo de tradicional, artesanal, costeira. Há consenso entre vários autores que, apesar da
definição de tal modalidade de pesca variar de acordo com a localidade e a sociedade onde ela
é praticada, algumas características comuns podem ser reconhecidas: atividade de captura
realizada em águas rasas de múltiplas espécies-alvos, para fins de subsistência
prioritariamente e de comercialização do pescado excedente, com uma variedade grande
variedade de artes ou tecnologia de pesca. No mundo, ela envolve mais de 90% dos
pescadores profissionais e chega a ser responsável pela metade da produção de pescado em
comparação com a pesca de grande escala ou industrial.
Pesca Costeira: É uma pesca marinha realizada em águas costeiras, com embarcações com
padrão abaixo de 10 toneladas de arqueada bruta (TAB), para fins de subsistência das famílias
dos pescadores. Ela está bem definida e estabelecida no Japão.
Preservação: Compreende a proteção integral da natureza, independentemente do interesse
utilitário e do valor econômico que possa conter.
Plano de Manejo Participativo: É o documento estruturante de uma Unidade de
Conservação, elaborado com a população tradicional extrativista da Unidade. Ele contém as
definições de seus seguintes elementos: a sua estrutura física e de administração, o
zoneamento, as normas de uso da área e de manejo dos recursos naturais e programas de
sustentabilidade ambiental e sócio-econômica.
População tradicional: Refere-se a grupos que possuem formas próprias de organização
social e se utilizam de territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica. Para isso, fazem usos de conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Reserva Extrativista Marinha: Categoria de manejo de unidade de conservação criada para
assegurar espaços territoriais destinados ao uso sustentável dos recursos pesqueiros e ao
modo de vida tradicional de populações moradoras em zonas costeiras.
51
Ressurgência: Originária do termo inglês upwelling, significa vir á superfície ou ainda,
ressurgir, aflorar. É um fenômeno oceanográfico que consiste na subida de águas profundas,
muitas vezes ricas em nutrientes, para regiões menos profundas dos oceanos, fertilizando as
águas superficiais e criando uma rica cadeia alimentar. As regiões mais importantes do mundo
onde ocorre a ressurgência são: ao largo da Mauritânia e da Namíbia no Oceano Atlântico e na
Califórnia e ao largo do Chile e do Peru no Oceano Pacífico. No sudeste brasileiro ocorre mais
precisamente em Arraial do Cabo.
Tecnologia: No contexto deste livro, o conceito de tecnologia refere-se ao projeto de práticas
sociais por meio de artefatos, não se encerrando, portanto, em artefatos físicos somente. Ela é
conhecimento aplicado, isto é, um “saber-fazer”, união teoria-prática ou conhecimento-ação.
Toda tecnologia consistiria, portanto, de artefatos físicos e simbólicos com propriedades
cognitivas (conceitos, teorias) e normativas (regras, modos de fazer) com duas funções
complementares: econômica - atendimento à satisfação das necessidades materiais e
imateriais das sociedades; criativa – a capacidade de transformação dos objetos em artefatos.
Essa visão afasta-se da noção do senso comum da tecnologia entendida como o projeto e
utilização de técnicas e instrumentos, com base em conhecimento aplicado para fins práticos.
A noção de tecnologia como um projeto de práticas sociais por meio de artefatos retoma o
significado etimológico do grego téchne - a transformação da realidade natural em uma
realidade construída para fins de subsistência e proteção do ser humano, com base na
natureza inteligente do homem.
Tradição: Representação ou visão de mundo diferenciada da Modernidade. De acordo com a
sua etimologia, tradição do verbo latino tradere significa dar ou transmitir algo para o outro.
Para a mentalidade tradicional, o tempo se move em círculo, em um retorno permanente, assim
como os dias e as noites, o movimento dos astros, as marés, a reprodução das espécies etc. A
experiência humana não é separada da natureza e o seu sentido é gerado pela herança
coletiva ou de uma comunidade.
Turismo: Fenômeno social complexo, que envolve o deslocamento voluntário e temporário de
indivíduos ou grupos de pessoas por motivos de lazer, gerando múltiplas inter-relações de
importância social, econômica, ambiental, cultural e política.
Turismo de Base Comunitária: Iniciativa alternativa de turismo promovida e gerida por
populações locais, que prestam serviços receptivos por meio de pequenos empreendimentos,
baseados em geral no associativismo, solidariedade e cooperação; gerando oportunidades de
trabalho, renda e benefícios sociais e fortalecendo as demandas práticas produtivas de
subsistência, como a pesca, artesanato; além de ser uma estratégia de sobrevivência na luta
por direitos a terra contra grandes empreendedores da indústria turística, que abusam do poder
econômico e tentam ocupar seu território e ameaçar o modo de vida local, em nome do
turismo.
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ANEXO: DIRETRIZES PARA ATIVIDADES PEDAGÓGICAS
As atividades que se seguem constituem um conjunto de procedimentos ou técnicas de leitura
dinâmica do livro “Conhecimentos Tradicionais da Pesca Artesanal para a Conservação
Sustentável” a ser aplicada em atividades formativas de ensino médio ou técnico e de
capacitação técnica de gestores da conservação sustentável marinha. Essas atividades de
leitura têm por objetivo propiciar aos educandos uma leitura interdisciplinar e contextualizadora
do tema gerador do livro, orientando-os a buscar contribuições das diferentes disciplinas
escolares e dos conhecimentos marítimos acumulados de sua realidade local.
No contexto escolar, as atividades de leitura da conservação marinha propostas devem
consistir da parte diversificada do currículo destinada a atender às características regionais e
locais do aluno, complementando a Base Nacional Comum, em conformidade com as diretrizes
dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCN/MEC). E, no contexto da gestão
da conservação marinha, tanto o livro quanto as atividades de leitura propostas poderão
integrar programas de cursos e oficinas de pesquisa e planejamento de áreas marinhas
protegidas. Em todos esses casos, é fundamental o apoio didático-pedagógico interdisciplinar
ao educando realizado por meio do diálogo entre professores e facilitadores das disciplinas das
seguintes áreas de conhecimentos PCN/MEC – Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e
suas Tecnologias.
Cabe ressaltar as noções de texto e leitura que norteiam as atividades propostas. O texto, ao
contrário do senso comum de vê-lo como uma unidade estática de “representação” da
realidade, é uma unidade verbal constituída dinamizada por um conjunto de instruções
linguísticas compartilhadas pelo autor com vistas a levar o leitor a apreender o mundo sob um
determinado prisma ou “ponto de vista” (crença, ideologia). A leitura é uma atividade de
atualização do texto pelo leitor, no caso os educandos, através da mobilização de novos
contextos, atribuindo, assim, novos sentidos a ele.
ATIVIDADES DE LEITURA PROATIVA
As atividades de leitura do livro compreendem três etapas: Compreensão do Texto,
Focalização e Contextualização. A primeira refere-se à interpretação proposta pelos autores do
livro, isto é, as contribuições dos conhecimentos tradicionais da pesca artesanal para a
conservação sustentável dos mares e oceanos. A segunda consiste na adequação da
abordagem do tema às situações de interação social por meio de resenhas, propondo, assim,
novas leituras. Por último, a contextualização, a inserção da leitura do texto na realidade dos
educandos. Por meio dessas atividades, o leitor deixa de ter uma posição passiva, sendo
obrigado a aceitar ou não o que lhe é transmitido pelo texto, e passa a ser proativo ou um coprodutor de significados ao apropriar-se do texto para diferentes situações de sua vida social.
1. Compreensão do Texto
a) (Re) elaboração de Glossário
O glossário tem por objetivo explicitar a significação de palavras dada pelo seu contexto, isto é,
o texto em que estão inseridas mais a interação social em que ele é utilizado. A primeira
atividade proposta aos educandos consiste na seleção de palavras do texto com significação
pouca explícita e na descrição de seus significados adequados ao contexto. Poderá também,
se julgar necessário, reescrever os significados das palavras do glossário do livro para fins de
melhor compreensão para o grupo, fazendo para isso a substituição de nomes e/ou verbos por
sinônimos e a alteração da estrutura das frases.
b) Compreensão de Texto
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Com base na leitura do livro, o educando deverá em pequenos grupos de estudo responder as
seguintes perguntas relacionadas aos tópicos do livro:
O MAR: IMPORTÂNCIA, VULNERABILIDADE E CONSERVAÇÃO
a) Qual a Importância do mar? Quais as suas principais demandas de Proteção? Indique casos
de impactos antropogênicos e eventos extremos no mar, semelhantes aos do texto.
b) Que avanços notáveis e que problemas para as sociedades humanas trouxe a fragmentação
dos conhecimentos do mar pela Ciência Moderna? E quais as suas limitações pra enfrentálos? Quais as diferenças de percepção do mar entre os cientistas naturais e sociais?
c) A conservação ecológica deveria proteger os “pedaços” que haviam sobrado da destruição
da natureza feita pelo progresso industrial. Que “pedaços” seriam estes? Quais diferenças
entre conservação convencional e sustentável?
AS ÁREAS MARINHAS PROTEGIDAS E A PESCA ARTESANAL: NOVAS DIRETRIZES E
ASPECTOS COGNITIVOS
a) Qual o objetivo comum das Áreas Marinhas Protegidas? Qual o desequilíbrio que estaria
ocorrendo com elas? O que propõem para as AMP’s as novas diretrizes internacionais da
Convenção da Diversidade Biológica?
b)Qual é a inovação para as categorias de área protegida contida na proposta brasileira de
“reserva extrativista marinha”?
c) Quais os dados que demonstram a importância socioeconômica da pesca artesanal na
atualidade? Porque ela também é vista como uma atividade de baixo impacto no meio
ambiente aquático ou sustentável?
d) Como foram – e são - gerados os conhecimentos marítimos acumulados?
e) O que são conhecimentos ecológicos tradicionais dos pescadores artesanais? Como são
gerados? Dê exemplo.
f) Relacione as experiências indicadas de uso do CET na gestão de suas respectivas Áreas
Marinhas Protegidas.
APROPRIAÇÃO TRADICIONAL DO MAR NA RESERVA EXTRATIVISTA DE ARRAIAL DO
CABO
a) A criação da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo: Qual a principal necessidade
para a sua criação? Qual principal objetivo da Resexmar de Arraial do Cabo? Como foi esse
processo? Em que a introdução do conceito de tradição teria provocado o aumento dos
conflitos? Quais os principais desafios hoje?
b) Que conhecimento amplo tem os pescadores artesanais de Arraial do Cabo? Em que o
fenômeno da “ressurgência” beneficia a pesca artesanal da região? Dê algum exemplo da
tecnologia tradicional da pesca (materiais, modalidade de pesca, instrumentos de captura,
organização da produção).
3.3 O que é “apropriação tradicional do mar”? Destaque alguns aspectos da interação dos
pescadores artesanais de Arraial do Cabo que caracterizam a apropriação tradicional do
ambiente marítimo.
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2. Redação de Resenha
A resenha consiste em um tipo de texto resumido para a divulgação de um produto ou serviço
cultural (filmes, livros, músicas, teatro etc.). No caso de um livro, trata-se de sua apresentação
para futuros leitores, resumindo o seu conteúdo com aspectos que seriam relevantes ou não
para eles.
Cada educando deverá redigir 3 resenhas sobre o livro de, no máximo, 2 páginas cada,
ajustando o texto para três situações de interação social indicadas abaixo:
a) Apresentação do livro para a sua comunidade escolar ou para membros de um conselho de
área marinha protegida.
b) Sensibilização da opinião pública para alguns temas destacados pelo livro.
c) Propor alguma discussão suscitada pelo livro.
3. Contextualização
Nesta etapa, o educando deverá associar a temática do livro à sua realidade vivida em
contextos socioambientais de áreas marinhas protegidas. Para isso, caberá ao educando
realizar as seguintes tarefas:
1o. Formação de grupo de pesquisa interdisciplinar.
2o. Elaboração de plano da pesquisa exploratória, com a previsão seleção de textos sobre a
temática para a leitura e a excursão a uma área marinha e/ou costeira protegida de seu
município ou região.
3o. Elaboração de resumos dos textos selecionados
4o. Participação na excursão à área marinha e/ou costeira protegida.
5o. Redação de relatório da pesquisa, incluindo a leitura dos textos e a excursão realizada.
6o. Comunicação da pesquisa em evento da sua escola com tema correlacionado.