Valores Patrimoniais do Espaço Marítimo
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Valores Patrimoniais do Espaço Marítimo
2 Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia Programa de Engenharia de Produção Área de Projetos Industriais e Tecnológicos © 2012 by Editora COPPE/UFRJ Organizadores: Antônio Marcos Muniz Carneiro, Edilaine Albertino de Moraes e Luiz Fernando Silva Vieira Redação: Antônio Marcos Muniz Carneiro, Edilaine Albertino de Moraes, Elisângela Janaína Trindade, Luiz Fernando Silva Vieira e Paulo Franco Mapa Google Earth: Marcelo Amaral da Silva Fotografia: Andre Luiz Cavalcanti de Oliveira, Alexandre Kirosvky, Bruna F. Milhorance, Elisângela Janaína Trindade, Gustavo Fernando Chiappolini, Jocemar Mendonça, Nicole Corrêa de Oliveira, Rejane Pereira Castro. Revisão: Ana Maria Ribeiro Marques Design e Diagramação: Henrique Carneiro Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 C759 Conhecimentos tradicionais da pesca artesanal para a conservação sustentável do mar: Valores Patrimoniais do Espaço Marítimo na Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo – RJ [livro eletrônico] / Organizado por Antônio Marcos Muniz Carneiro, Edilaine Albertino de Moraes, Luiz Fernando Silva Vieira. – Rio de Janeiro: Editora COPPE/UFRJ, 2012. ePUB : il., color. ISBN: 978-85-285-0224 1. Conservação marinha 2. Conhecimentos ecológicos tradicionais 3. Pesca artesanal 4. Áreas Marinhas Protegidas 5. Ecodesenvolvimento I. Carneiro, Antônio Marcos Muniz II. Moraes, Edilaine Albertino de III. Vieira, Luiz Fernando Silva CDD 574.52636 12-0442 Índices para catálogo sistemático: 1. Conservação marinha – Etnociência - Pesca artesanal 3 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ....................................................................................................................................... 4 1. O MAR: IMPORTÂNCIA, VULNERABILIDADE E CONSERVAÇÃO .................................................... 6 1.1 A Importância do Mar e suas Demandas de Proteção ..................................................................... 6 1.2 A Fragmentação dos Conhecimentos do Mar pela Ciência Moderna e suas Limitações ............ 8 1.3 Da Conservação Convencional à Emergência da Conservação Sustentável ................................ 9 2. AS ÁREAS MARINHAS PROTEGIDAS E A PESCA ARTESANAL: NOVAS DIRETRIZES E ASPECTOS COGNITIVOS ........................................................................................................................ 11 2.1 Áreas Marinhas Protegidas (AMP’s): Desequilíbrio e Novas Diretrizes ....................................... 11 2.2 As Reservas Extrativistas Marinhas: uma Categoria Brasileira Inovadora ................................. 12 2.3 A Pesca Artesanal: Importância Econômica, Ambiental e Social ................................................. 13 2.4 Origens dos Conhecimentos Marítimos Acumulados da Pesca e Navegação ............................ 15 2.5 Conhecimentos Ecológicos Tradicionais (CET) dos Pescadores Artesanais ............................. 16 3. APROPRIAÇÃO TRADICIONAL DO MAR NA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE ARRAIAL DO CABO ................................................................................................................................................... 22 3.1 A Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo ....................................................................... 22 3.2 A Apropriação Tradicional do Mar pelos Pescadores Artesanais de Arraial do Cabo ............... 28 3.2.1 Origens da pesca artesanal ........................................................................................................................... 29 3.2.2 As espécies: classificação, migrações e épocas de pescarias ....................................................................... 30 3.2.3 Condições naturais (ventos, fases da lua) ..................................................................................................... 30 3.2.4 Áreas de pesca ou pesqueiros (marcações) ................................................................................................... 31 3.2.5 Tecnologia de captura: modalidades, embarcações, instrumentos e inovações técnicas ............................. 32 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................................... 43 Conclusões Preliminares......................................................................................................................... 43 Questões para Reflexão........................................................................................................................... 44 Recomendações ....................................................................................................................................... 45 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................................... 43 GLOSSÁRIO .............................................................................................................................................. 49 ANEXO: DIRETRIZES PARA ATIVIDADES PEDAGÓGICAS ................................................................. 52 4 APRESENTAÇÃO O presente livro de cunho didático é um dos frutos do Projeto “Ferramenta Interativa para a Implementação de Plano de Manejo Participativo de Reserva Extrativista Marinha” da Fundação COPPETEC cujo objetivo foi contribuir por meio da educação ambiental na cooperação ou diálogo entre conhecimentos tradicionais da pesca artesanal marinha e os conhecimentos científicos do mar para a elaboração e implementação de plano de manejo participativo de áreas marinhas protegidas do Brasil. A área protegida para a realização das atividades formativas desse projeto foi a Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo, litoral do Estado do Rio de Janeiro, criada para assegurar a centenária pesca artesanal do município como um modo sustentável de extração dos recursos renováveis marinhos para fins de subsistência e reprodução social. O apoio necessário ao alcance dos objetivos desse projeto resultou da sua seleção pública do Programa para Conservação das Zonas Costeira e Marinha sob Influência do Bioma Mata Atlântica da Fundação SOS Mata Atlântica, em 2010, direcionado à Linha 1: Criação e Consolidação de Unidades de Conservação Marinhas. Parte da contribuição do projeto consistiu na realização de um curso de extensão de educação ambiental promovido pelo Programa de Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ, com ênfase em planejamento interativo de áreas marinhas protegidas Visando à formação de multiplicadores, o curso, por meio da metodologia pedagógica “educação por projetos”, proporcionou aos seus participantes o design de algumas ferramentas interativas de auxílio ao compartilhamento e à conexão de saberes marítimos no planejamento e gestão de áreas marinhas protegidas, tais como: este livro, maquetes interativas, mapas interativos, organização de eventos etc. A dimensão interativa dessas ferramentas decorre do envolvimento de participantes do curso de educação ambiental em suas elaborações e do uso delas nas atividades de pesquisa, ensino e gestão da conservação sustentável marinha. O tema do livro versa sobre a importância contemporânea dos conhecimentos tradicionais da pesca artesanal, acumulados através dos séculos por pescadores profissionais artesanais de regiões costeiras, para a conservação sustentável do mar. Tal importância é demonstrada pelo fato de essas populações tradicionais costeiras terem desenvolvido técnicas de manejo de exploração dos recursos marinhos para a sua subsistência e reprodução social através de gerações, sem, contudo, degradar a biodiversidade de seus ecossistemas. Em razão desta compatibilização entre a exploração dos recursos pesqueiros dos recursos naturais e a conservação da biodiversidade marinha, esses conhecimentos tradicionais têm sido considerados como imprescindíveis para suprir lacunas e complementar as limitações dos conhecimentos de ecologia das ciências do mar. O seu principal objetivo é propiciar o reconhecimento da pesca artesanal como um patrimônio cultural de importância econômica para a segurança alimentar e de manejo sustentável para a conservação marinha. O seu público leitor preferencial abrange, concomitantemente, estudantes e profissionais atuantes na educação escolar do ensino médio ou técnico e na gestão de áreas marinhas protegidas. Três tópicos constituem a abordagem do tema proposto: 1. O Mar: Importância, Vulnerabilidade e Conservação; 2. As Áreas Marinhas Protegidas e a Pesca Artesanal: Novas Diretrizes e Aspectos Cognitivos; e 3. Apropriação Tradicional do Mar na Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo. Inicialmente, chama a atenção para as limitações da especialização dos conhecimentos científicos para oferecer respostas ao agravamento da degradação dos ecossistemas marinhos provocada por ações antrópicas e a emergência da conservação sustentável, alternativa à conservação convencional. Depois, destaca as áreas marinhas protegidas como instrumentos de excelência à recuperação e à conservação das espécies marinhas, sendo a pesca artesanal a sua atividade beneficiária imediata e, também, a sua referência de manejo sustentável. Para isso, descreve a importância econômica, ambiental e social dessa atividade de pequena escala e baixo impacto ambiental. Por fim, descreve os conhecimentos ecológicos tradicionais que orientam as tomadas de decisões dos pescadores artesanais de Arraial do Cabo em suas pescarias no espaço marítimo da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo. Uma das chaves de leitura dada pelos conhecimentos tradicionais 5 da pesca artesanal para a conservação do mar é a correspondência entre o ponto de vista e a noção percepção/interpretação. Logo após o final do livro, consta o Anexo “Diretrizes Pedagógicas para uma Leitura Proativa”, um conjunto de procedimentos ou técnicas de leitura dinâmica do livro em auxílio às atividades formativas de educação escolar de capacitação de gestores da conservação sustentável marinha. Essas atividades de leitura têm por objetivo propiciar a educadores e educandos uma leitura proativa deste livro, isto é, que vincule os seus conceitos e exemplos sobre pesca artesanal e conservação sustentável do mar à percepção/interpretação da realidade socioambiental de seus leitores. As atividades de leitura do livro propostas compreendem três etapas: Compreensão do Texto, Focalização e Contextualização. Respectivamente, os seus objetivos visam à fixação de conceitos, à releitura ou proposição de enfoque pelo leitor e, finalmente, a sua reflexão sobre o tema deste livro com base em sua pesquisa ou experiência em uma área marinha protegida. 6 1. O MAR: IMPORTÂNCIA, VULNERABILIDADE E CONSERVAÇÃO 1.1 A Importância do Mar e suas Demandas de Proteção O mar é definido como uma grande massa e extensão de água salgada que cobre a maior parte (73%) da superfície da Terra. Subdividido por oceanos, a grandeza destes torna os seus papéis extremamente importantes na regulação da vida do planeta e suas interações com a atmosfera condicionam o clima mundial. A água do mar caracteriza-se pela sua salinidade não uniforme no mundo, tendo em média 35 gramas de sais dissolvidos por litro de água, a maior parte de cloreto de sódio (NaCl). As suas águas movimentam-se na forma de ondas que são impulsionadas pelos ventos e, também, por sismos no subsolo submarino, formando os tsunamis. Com a maior biodiversidade do planeta, os organismos marinhos têm a seguinte classificação: plânctons – representantes da flora e fauna normalmente microscópicos à deriva dos movimentos oceânicos; bentos - nos substratos consolidados e não consolidados, estes podem ser fixos ou não; e os néctons – organismos com boa capacidade natatória, como a maior parte dos peixes e dos mamíferos marinhos. Sob a influência das águas oceânicas, os seus principais ecossistemas formados são os seguintes: zona costeira, praias, manguezais, estuários, lagunas, costões rochosos, lajes submersas/parcéis, ilhas, recifes. Partindo da terra, as principais divisões consagradas são a costa, a plataforma continental, o talude continental e o fundo (zona) abissal. A importância do mar é também atribuída aos seus serviços ecossistêmicos para o bem-estar das sociedades humanas, além de seu papel de regulação das bases biofísicas da existência do planeta. Nesse sentido, os ecossistemas marinhos constituem-se de uma inestimável riqueza de recursos minerais, fontes de energia e recursos vivos. Do fundo do mar, são extraídos minerais essenciais à indústria moderna (o magnésio para ligas metálicas, o bromo para as indústrias de alimentos, farmacêutica e fotográfica) e também os hidrocarbonetos (petróleo e gás). Com a água do mar, pode-se gerar energia elétrica e fazer o arrefecimento de turbinas. O cloreto de sódio ou sal de cozinha, extraído diretamente da água do mar, é um importante mineral tanto para alimentação quanto para medicamentos. Hoje, dispõe-se de tecnologia para a transformação da água do mar em água potável. Com uma produção pesqueira média mundial de 100 milhões de ton/ano, através da pesca e da maricultura, obtém-se a melhor proteína animal para a alimentação humana. O espaço marítimo também propicia condições favoráveis à navegação para o desenvolvimento do turismo, incluindo atividades de cruzeiros, passeios, excursões, mergulho, pesca esportiva e viagens, que vêm se fortalecendo e expandindo em grande escala, envolvendo turistas, populações receptoras, empresas e gestores públicos em todo o mundo. Nas estreitas zonas costeiras são produzidos cerca de 50% do PIB mundial. Entretanto, as interações humanas das sociedades industriais têm sido predominantemente predatórias, ao buscarem a apropriação e a utilização dos serviços de seus ecossistemas sem o seu manejo adequado (poluição, conflitos entre usuários, bioinvasão, desrespeito às culturas tradicionais dos pescadores artesanais, perda da biodiversidade, mudanças climáticas). Esse desequilíbrio tem acarretado impactos severos nos ecossistemas marinhos e costeiros com ameaças de consequências negativas ao bem-estar das sociedades modernas, principalmente, das populações tradicionais costeiras, que têm na pesca artesanal a sua fonte de segurança alimentar e reprodução social. Entre os principais impactos e ameaças, estão o aquecimento dos oceanos provocado pelo efeito estufa, derivado das emissões de CO2 (dióxido de carbono) dos combustíveis fósseis, a bioinvasão disseminada pelas águas de lastro dos navios, a degradação dos ecossistemas costeiros, proporcionada pela ocupação desordenada urbanoindustrial, etc. As principais ameaças geradas por esses impactos antropogênicos nos ecossistemas marinhos envolvem as mudanças climáticas, a elevação do nível do mar, perda da biodiversidade com redução dos estoques pesqueiros, aumento do índice de fenômenos naturais extremo e exacerbação da pobreza em regiões costeiras. Estudos do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática - IPPC (Intergovernmental Panel on Climate Change, 2007), o órgão das Nações Unidas que monitora as mudanças 7 climáticas desde 1988, indicam que o degelo está acelerado nas áreas de solo permanentemente congelado (permafrost) nas regiões do Ártico e da Antártida, podendo desencadear um processo irreversível de liberação de gases de efeito estufa na vasta área de turfeiras estendida da Sibéria até o Canadá e o Alasca, somando-se aos gases emitidos pela indústria de matriz energética com base em combustível fóssil (Guidens, 2010). Entre os efeitos imediatos desse aquecimento global, estima-se a elevação do nível do mar e a acidificação de suas águas com ameaça à vida marinha. Com a globalização econômica, as bioinvasões de organismos exóticos – tais como o mexilhão zebra (Dressena polymorpha) e o mexilhão dourado (Limnoperna fortunei) – são proporcionadas pela intensificação do tráfego naval, tornando-se um grande problema ambiental e econômico, com possíveis consequências irreversíveis e desastrosas para os ecossistemas naturais e prejuízos econômicos em milhões de dólares anuais (Silva e Souza, 2004). Além da degradação ecossistêmica marinha decorrente da falta de saneamento básico e da gestão dos resíduos em regiões metropolitanas, da poluição do mar por óleo e de aterramentos de manguezais pela ocupação desordenada das zonas costeiras, perdas econômicas importantes começam a ser passíveis de verificação. Um hectare de manguezal preservado vale 600 vezes mais para a pesca do que, por exemplo, para empreendimentos imobiliários, segundo pesquisa realizada no Golfo da Califórnia (Aburto-Oropeza et al.,2008). As populações extrativistas tradicionais das zonas costeiras que têm na pesca artesanal a sua principal fonte de alimento e renda são as mais vulneráveis a esses impactos antropogênicos nos ecossistemas marinhos, sendo, portanto, as mais afetadas. Figura 01: Quadro de Impactos Antropogênicos no Mar Várias iniciativas internacionais passaram a ser realizadas no sentido de se atingir metas que minimizem ou revertam a degradação dos ecossistemas dos mares. Além das áreas marinhas protegidas a serem abordadas no capítulo seguinte, outras também incluem mudanças tecnológicas e de grande alcance. Antes da Cúpula da Terra – Rio 92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), realizada em 1992 no Rio de Janeiro, foi celebrada com princípios e propósitos semelhantes a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, em 1982. É um tratado multilateral celebrado sob os auspícios da ONU que define conceitos herdados do direito internacional costumeiro, como mar territorial, zona econômica exclusiva, plataforma continental e outros, e estabelece os princípios gerais da exploração dos recursos naturais do mar, como os recursos vivos, os do solo e os do subsolo. Outra forma de regulação internacional do mar é a Organização Marítima Internacional (OMI). É a agência especializada das Nações Unidas, constituída por 168 países membros e 3 associativos, que tem por objetivo instituir um sistema de colaboração entre 8 governos em questões técnicas de interesse à navegação comercial internacional, bem como contribuir para a adoção geral de normas relativas à segurança marítima e à eficácia da navegação. Figura 02: Quadro de Eventos Extremos no Mar 1.2 A Fragmentação dos Conhecimentos do Mar pela Ciência Moderna e suas Limitações Os impactos antropogênicos no mar são em parte decorrentes da visão de mundo criada pela Ciência Moderna que orientou nos últimos 400 anos a conduta dos indivíduos das sociedades urbano-industriais. O conhecimento científico, que levou à especialização crescente das disciplinas principalmente no século XX, proporcionou avanços notáveis no estudo do mar em diversos campos do saber, como da pesquisa básica (geologia, biologia marinha, oceanografia) e tecnológica (dessalinização da água do mar, biotecnologia de produção, engenharia naval, exploração offshore de hidrocarbonetos etc.). As ciências sociais, até então, mantiveram-se ausentes, passando a desenvolver-se só mais recentemente. Uma das explicações para isso teria sido o predomínio da visão preservacionista “pura” que considerava como negativa e desastrosa a intervenção humana no mar. O oceano seria a última fronteira da natureza a ser pesquisada, não devendo, portanto, ser ultrapassada livremente. À percepção de cientistas naturais, os oceanos seriam grandes vazios humanos. Os parâmetros para a gestão dos mares levariam em conta aspectos biofísicos, independentes de variáveis culturais dos seres humanos, como hábitos alimentares, o mercado etc. Por outro lado, cientistas sociais não levam em conta as interfaces da relação sociedade e natureza, reduzindo esta a um viés sociológico desligado das bases materiais da existência. Como se pode deduzir, o conhecimento do mar tornou-se fragmentado. A Ciência Moderna, fundada a partir das obras de René Descartes e Bacon no século XVII na Europa, constituiu a busca por uma conduta racional do Homem em direção à sua libertação das restrições e limitações impostas pela Natureza. Como ser dotado de Razão, ele poderia, então, superar a sua condição de “escravo”, submetido às forças imperiosas e ameaçadoras do mundo natural, à condição de “senhor”, permitindo-lhe, assim, o domínio e a domesticação dessas forças brutas. O método científico permitiria compreender as regularidades e leis internas que regeriam os fenômenos naturais a fim de que o cientista pudesse predizê-los e controlá-los. O que permitira essa conduta racional do conhecimento seria a divisão entre 9 “mente” e “corpo” que consistiria na condição da existência humana: o conhecimento científico seria produzido pela separação entre o “sujeito’ e o “objeto”. Pensar seria sempre uma ação exercida externa à realidade pensada. O cientista poderia formular suas teorias universais por meio da sua observação dos fenômenos naturais e sociais da realidade, posicionando-se externamente a eles. O universo seria como um “relógio” ou “máquina”, onde o todo seria o resultado da soma de suas partes ou “peças”. Conhecer um objeto seria decompô-lo em suas partes mínimas e estudá-las isoladamente para fazer deduções ou generalizações. Essa compartimentalização do conhecimento do mar passou a não dar conta para explicar os fenômenos ecossistêmicos com suas interconexões entre os seres marinhos e costeiros e entre eles com as atividades humanas. Como apresentado no item anterior, o modo da sociedade organizar a sua produção e consumo pode afetar a vida marinha assim como a dinâmica de suas marés. A noção dos oceanos como grandes “territórios vazios”, apesar da falta de consideração das demarcações para as pescarias e a preservação de habitats, há milênios feitas por pescadores artesanais, passou a ser contestada com a criação da Lei do Mar em 1984. Esta consolida o estabelecimento, acordado entre os Estados dos diversos países costeiros, do mar territorial e das zonas econômicas exclusivas. A atividade pesqueira reduzida à extração e reposição dos estoques pesqueiros, através de controles de cotas, defesos e cálculo de esforço de pesca, tenta tirar dos seus cálculos as demandas de segurança alimentar das populações humanas e os interesses da lógica de mercado. Tais idéias, que serviram de base para a primeira revolução industrial no século XVIII e as revoluções técnico-científicas que se sucederam a partir do século XIX, como também para a criação do modo de produção capitalista, passariam a alimentar a crença de que os recursos naturais seriam infinitos. A sociedade urbano-industrial que nascera a partir dessas revoluções não impunha limites aos seus padrões de produção e consumo. Porém, ela começou a sensibilizar-se com esses seus excessos na segunda metade do século passado, depois das duas grandes guerras, do surgimento do risco nuclear, da crescente pobreza no mundo gerada pelo progresso e da crise ecológica emergente a partir das três últimas décadas. A compreensão da degradação do mar, em suas múltiplas facetas exemplificadas no item anterior, não é redutível a estudos de disciplinas isoladas e nem desconectados da vida dos pesquisadores. Os estudos dos mares e oceanos, cada vez mais, tornam imprescindível a integração das disciplinas ou a interdisciplinaridade. 1.3 Da Conservação Convencional à Emergência da Conservação Sustentável A proteção do mar passou a integrar o tema da proteção do mundo natural que se tornou de interesse crescente por parte da opinião pública e dos governos nas últimas décadas, devido às ameaças de degradação em escala planetária com prejuízos econômicos provenientes dos excessos das sociedades modernas. Inicialmente, foi predominante a opção por parques marinhos, com a exclusão dos pescadores artesanais dessas áreas, onde sempre atuaram sem degradar os seus ecossistemas,. Segundo Diegues (2004a), essa perspectiva de parques nacionais para a proteção da vida selvagem é originária dos EUA, que criaram no século XIX o primeiro parque do mundo, o Parque Yellowstone. A noção de vida natural/selvagem, subjacente à criação de parques, refere-se a grandes áreas não habitadas, principalmente depois do extermínio dos índios e da expansão da fronteira agrícola para o oeste. Com o crescimento das preocupações ecológicas no século seguinte, esse modelo de isolamento passou a servir também como instrumento ótimo da conservação ecológica para proteger em “pedaços” a natureza que tinha sobrado da destruição pelo progresso industrial. Na história da ecologia, as palavras preservação e conservação, apesar de usadas como sinônimas, designam posturas ideológicas distintas e conflitantes em relação à natureza. A preservação considera que a natureza tem um valor intrínseco, não se prestando a valor de uso pelos seres humanos. O preservacionismo, a corrente ecológica originária dos países industrializados, passou a desenvolver princípios e ações protecionistas para salvar espécies, áreas naturais, ecossistemas e biomas. Tende a compreender a proteção da natureza, independentemente do interesse utilitário e do valor econômico que possa conter. Essa postura 10 é chamada aqui de conservação convencional ou clássica, que visa à preservação de fragmentos ou ilhas de natureza genuinamente pura ou intocada por meio de seu isolamento da ameaça da presença humana. Para a conservação convencional, o manejo das áreas protegidas deve ser feito somente por profissionais treinados e qualificados com base no conhecimento científico. Esse modelo de conservação, criado nos países industrializados do norte, serviu de padrão universal de preservação ecológica, buscando impor-se de maneira indiscriminada em todos os continentes e regiões do globo. Ele não se preocupou em modificar ou apresentar alternativas aos padrões de produção e consumo das sociedades industriais, responsáveis pela degradação das bases biofísicas do planeta sem precedentes na história da humanidade. E a solução para esse problema se resumiria em contrapor o homem à natureza, achando ser possível separar a conservação do desenvolvimento econômico e tecnológico. Uma nova conservação começou a surgir como alternativa às duas posturas que têm em comum um enfoque biocêntrico - isto é, abordagem exclusivamente biológica da ecologia e do manejo - e uma dualidade lógica: natureza e sociedade. Elas admitiriam que a proteção fragmentada da natureza autêntica, com as demais áreas destinadas à indústria e ao cultivo de alimentos, teria a seu favor a eterna doação dos recursos naturais não renováveis por um lado e por outro a produção artificial de alimentos, não dependendo mais das imposições da natureza. As mudanças que passaram a ocorrer nas últimas décadas relativas às posturas e enfoques convencionais da conservação foram devido a algumas razões, tais como: a eclosão de movimentos de ecologismo social em oposição ao ecologismo “puro”, o surgimento de um novo naturalismo e mudanças científicas da conservação. E essa conservação alternativa é designada aqui de conservação sustentável. Diegues (2000) chama de etnoconservação uma ciência e prática da conservação apropriada às necessidades culturais e ambientais dos povos, por meio de uma nova aliança entre o homem e a natureza, baseada na cooperação entre os conhecimentos científicos e locais das comunidades tradicionais. Os movimentos do ecologismo social nasceram em oposição aos modelos de desenvolvimento concentrador de renda e destruidor da natureza. No Brasil, eles impulsionaram a criação de áreas protegidas sem a exclusão das populações tradicionais, com a introdução das reservas de desenvolvimento sustentável e a ampliação das reservas extrativistas. O novo naturalismo postula que a natureza não pode ser entendida separadamente das sociedades humanas. Estas, situadas no ambiente natural, transformam a natureza e são dependentes dela. Entre as mudanças científicas na conservação, a etnociência tem se destacado como um dos campos interdisciplinares mais promissores com seus vários ramos (etnoconservação, etnobiologia, etnoictiologia, etnobotância etc.). Esse campo científico, recorrendo às ciências da linguagem (linguística, semiótica, sociocognição), estuda a lógica subjacente ao conhecimento das populações tradicionais gerado em suas interações físicas e cognitivas não degradantes com os recursos naturais ao longo dos séculos, por considerar as suas técnicas de manejo apropriadas e responsáveis pela manutenção da diversidade biológica. Vários estudos empíricos contemporâneos da conservação têm demonstrado a existência de restrições ao uso dos recursos naturais impostas por populações extrativistas tradicionais como fatores geradores de parte da biodiversidade em áreas protegidas, sugerindo uma apreciação mais sutil das interações humanas com os ambientes naturais. Ressignificando o conceito de impacto da ação humana no meio ambiente, ela pode não só reduzir a biodiversidade, como também conservá-la e aumentá-la. Ou seja, a forma e o grau da diversidade biológica seriam, na maioria dos ambientes continentais e marinhos, resultantes da combinação de ciclos ecológicos e climáticos com as ações humanas. Nesse sentido, a elaboração de planos de manejo de áreas marinhas protegidas com a participação de pescadores artesanais passa a ser visto como crucial ao funcionamento e à sustentabilidade dessas áreas. 11 2. AS ÁREAS MARINHAS PROTEGIDAS E A PESCA ARTESANAL: NOVAS DIRETRIZES E ASPECTOS COGNITIVOS 2.1 Áreas Marinhas Protegidas (AMP’s): Desequilíbrio e Novas Diretrizes Estudos de Áreas Marinhas Protegidas (AMP’s) têm demonstrado que elas têm sido consideradas, na maioria das vezes, ferramentas eficazes para a proteção da biodiversidade marinha (Berkes et al., 2001; Pomeroy et al., 2006, Prates, 2007)) frente aos impactos das ações antrópicas. O objetivo comum a todas elas é proteger as espécies-alvo da exploração para que possam se recuperar e, mais do que isso, cuidar do ecossistema inteiro, conservando diversas espécies e habitats críticos como áreas de desovas e berçários. Várias pesquisas, entretanto, se fazem necessárias para uma compreensão melhor sobre o funcionamento dessas áreas. As AMP’s parecem ser mais eficazes para proteger espécies sedentárias como os peixes recifais. Já para as espécies que possuem estágios de vida bastante móveis, essas áreas de proteção poderão servir de zonas de desova, agregações ou berçários. Nem sempre tem-se obtido aumento das populações das espécies marinhas desejadas (peixes, moluscos, crustáceos). Muitos conflitos têm sido originados na ocasião em que essas áreas são criadas sem a participação dos pescadores artesanais, grupos locais das regiões costeiras que interagem diretamente com o mar através da extração dos recursos vivos marinhos. Outro problema muito comum na gestão dessas AMP’s é a falta de fiscalização. Um aspecto emerge consensualmente como fator de sucesso dessa área: é o engajamento e o comprometimento dos pescadores com o projeto da área de proteção. Eles, além de terem na exploração dos recursos vivos aquáticos a sua fonte de subsistência e de reprodução social, são detentores de conhecimentos tradicionais do manejo de peixes e demais espécies marinhas, acumulados durante séculos, sem, contudo, degradar seus ecossistemas. Concepções convencionais da conservação têm provocado entraves à ampliação da cobertura de áreas marinhas protegidas compatíveis com a magnitude do mar. Apesar de este abranger a maior parte da superfície da Terra e constituir ainda uma nova fronteira para a ciência e tecnologia, a sua proteção ecológica encontra-se ainda muito aquém, se comparada com a extensão das áreas continentais de proteção da biodiversidade. Das 5.000 áreas protegidas existentes no mundo, abrangendo cerca de 10% do planeta, apenas 1.300 incluem ecossistemas marinhos, correspondendo a menos de 1% dos oceanos (Prates et al., 2007). As áreas naturais protegidas, de acordo com as normas da IUCN (International Union for Conservation of Nature), passaram a ser distintas em duas categorias: as áreas de proteção estrita, representadas por reservas científicas e parques nacionais, caracterizadas pela ausência de espécies exóticas, de atividades e instalações humanas; e as zonas de extração protegidas, zonas de pesca e de caça, onde uma exploração limitada e controlada dos recursos naturais é autorizada. Entretanto, essa concepção de conservação da natureza não conseguiu evitar o desequilíbrio entre as áreas protegidas continentais e as áreas marinhas protegidas, como também a degradação dos serviços ecossistêmicos marinhos. Uma das decisões da sétima Conferência das Partes (COP7) da Convenção da Diversidade Biológica foi a aprovação de um programa de trabalho para as Áreas Protegidas no mundo, com especificidades para os ecossistemas marinhos com prazo de implementação até neste ano de 2012. As novas diretrizes criadas apontam para uma conciliação entre a conservação dos ecossistemas marinhos e a pesca de pequena escala ou artesanal. Como parte da estratégia global de conservação da biodiversidade, as AMP’s passaram a ter como principal função a manutenção da produtividade dos estoques pesqueiros. Essas áreas devem servir de berçários e fonte de exportação de indivíduos maduros para as áreas adjacentes, ajudando, assim, na recuperação de estoques colapsados ou ameaçados. Dessa forma, poderão ser protegidos habitats específicos para larvas e juvenis, com garantia do recrutamento e da manutenção dos estoques. A transformação das AMP’s em instrumentos de gestão pesqueira deverá contar 12 com o engajamento do pescador artesanal, um aliado natural na proteção da biodiversidade marinha, na medida em que a efetividade de sua atividade depende de ecossistemas aquáticos saudáveis. 2.2 As Reservas Extrativistas Marinhas: uma Categoria Brasileira Inovadora As zonas costeira e marinha do Brasil se estendem por uma área de 4,5 milhões de Km² e representam mais de 50% do território brasileiro. Elas são formadas por uma notável diversidade de ecossistemas, onde se destacam manguezais, recifes de corais, brejos, dunas, restingas, praias, costões rochosos, ilhas, lagoas, falésias e estuários. Somando a distância do Oiapoque ao Chuí, a costa brasileira totaliza 8 mil km, situando-se entre as mais extensas do mundo. Uma fauna diversa é abrigada pelo bioma marinho e costeiro, com aproximadamente 1.300 espécies de peixes, 19 delas ameaçadas de extinção e 32 em situação de declínio. Atualmente, a cobertura de áreas protegidas dos ecossistemas marinhos e costeiros envolve 59 unidades de conservação federais marinhas, totalizando 3.676.840 hectares. Segundo o órgão federal responsável pela gestão dessas áreas marinhas protegidas, o Instituto Chico Mendes para Conservação da Biodiversidade – ICMBio (BRASIL, 2012), o Governo Federal tem como meta a criação entre 20 e 30% de novas Unidades de Conservação, somente nas zonas costeira e marinha. Entre essas áreas protegidas a serem expandidas, encontram-se as reservas extrativistas marinhas (Resexmar’s), uma proposta brasileira inovadora que visa assegurar os meios de vida e a cultura de populações tradicionais costeiras por meio da gestão do uso sustentável dos recursos pesqueiros com a manutenção de sua biodiversidade. As Reservas Extrativistas (Resex’s) são consideradas espaços territoriais destinados à exploração auto-sustentável e à conservação dos recursos naturais renováveis por populações extrativistas tradicionais. É um tipo de Unidade de Conservação (UC) regida pela Lei de Nº 9.985 de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidade de Conservação – SNUC, na qual o maior destaque é conciliação entre a conservação da natureza e o uso sustentável dos recursos naturais pelos moradores da área para a sua subsistência. Existem duas modalidades de reservas extrativistas: florestal e marinha. Os principais instrumentos de gestão de uma Resex são o Plano de Manejo Participativo, ,o Plano de Utilização, e o Conselho Deliberativo. Originalmente, concebidas por movimentos sociais de populações extrativistas tradicionais de recursos florestais da Amazônia, tal proposta de conservação logo passou a integrar a pauta de reivindicações de pescadores profissionais artesanais de regiões costeiras brasileiras. A primeira reserva extrativista criada no Brasil foi a Reserva Extrativista Alto Jurá, no Estado do Acre em 1990, e dois anos depois foi criada a Reserva Extrativista de Pirajubaé, no Estado de Santa Catarina, a primeira em região do litoral brasileiro. Entretanto, das 20 reservas extrativistas marinhas criadas até o momento, nenhuma conseguiu elaborar o seu plano de manejo participativo (BRASIL.MMA/CMBio, 2012). Esse quadro demonstra uma relativa vulnerabilidade dessas Unidades. Uma exceção é a Reserva Extrativista de Mandira, que teve o seu plano de manejo participativo oficializado (BRASIL.MMA/ICMBio, 2010), mas, apesar das suas principais atividades extrativistas serem a pesca artesanal e a extração de moluscos em uma região estuarina no sul de São Paulo, o seu bioma está categorizado como Mata Atlântica pelo ICMBio. Em parte, essa situação reflete a falta de metodologias que incorporem os conhecimentos ecológicos tradicionais dos pescadores à elaboração e implementação de planos de manejo participativo. Por outro lado, deve-se a um impasse nacional relacionado com as pressões para manter o crescimento econômico do país por meio da ampliação da sua matriz energética em um contexto mundial de depressão das principais economias do mundo e com as demandas por um ecodesenvolvimento, favoráveis a fontes alternativas de energia renovável e a novos padrões de produção e consumo sustentáveis. O efeito desse embate tem sido o agravamento crescente de conflitos com populações tradicionais contrárias às construções de novas barragens em regiões de bacias hidrográficas e de mega empreendimentos imobiliários e 13 industriais em zonas costeiras e marinhas, com implicações em desapropriação de áreas antes destinadas à pesca artesanal. 2.3 A Pesca Artesanal: Importância Econômica, Ambiental e Social A pesca artesanal ou tradicional, ora empregada como sinônimo de pesca costeira ou de pequena escala, como fonte de produção de alimentos remonta ao período anterior ao surgimento da agricultura na história da humanidade. Atualmente, ela começou a ter reconhecimento nos últimos anos pela sua importância para a segurança alimentar no mundo e, também, para a conservação sustentável da biodiversidade marinha e das águas continentais. Essa modalidade de pesca, porém, não possui uma definição universal, variando de significado de acordo com a localização onde ela é praticada. A falta de uma maior informação sobre a atividade se deve também à sua complexidade. Ela é empregada para um gama muito ampla de espécies-alvo de peixes e com uma tecnologia diversificada, apropriada à multiplicidade dos ecossistemas aquáticos. As avaliações da produção de pescado têm sido baseadas em metodologias desenvolvidas para a pesca industrial ou de grande escala de países de clima temperado, impedindo uma maior visibilidade do setor artesanal. Essas metodologias possuem um viés exclusivamente biológico, privilegiando o recurso pesqueiro e deixando de fora os aspectos econômicos, tecnológicos e nutricionais em termos de segurança alimentar. Além disso, o seu parâmetro é uma atividade de captura monoespecífica, onde a diversidade das espécies marinhas é menor e possui maior abundância. Entretanto, algumas características comuns da pesca artesanal observadas têm contribuído para configurá-la em seus aspectos de manejo, tecnológicos, econômicos, culturais e ambientais. De um modo geral, as pescarias artesanais comerciais e de subsistência são multiespecíficas e realizadas predominantemente em águas rasas. Nos ambientes marinhos, a atividade é exercida junto à costa, em ilhas, baías, costões rochosos, lagoas, lagunas, praias, estuários, marismas, manguezais. Existem algumas diferenças importantes entre as pescarias de pequena escala comerciais e de subsistência em relação ao grupo de espécies capturadas e a tecnologia utilizada. As pescarias comerciais têm como seus grupos de espécies os peixes demersais profundos de plataformas e taludes tropicais, grandes peixes pelágicos costeiros de plataformas e baías temperadas, às vezes com exploração dos estoques das pescarias de grande escala mais distante da costa. Já as pescarias de subsistência exploram também os grupos das pescarias comerciais e também peixes e invertebrados de recifes de coral, de lagoas costeiras e estuários. Em relação à tecnologia, as pescarias comerciais de pequena escala nos países de economia central utilizam predominantemente as mais avançadas e sofisticadas com embarcações de média autonomia de navegação costeira. A pesca de subsistência, predominante nos países de economia periférica, vale-se de artefatos de captura majoritariamente artesanais, com menor dependência tecnológica e econômica da indústria. A alta biodiversidade do pescado da pesca artesanal é obtida pela grande diversidade tecnológica da captura, linhas, redes, arpões, armadilhas, iscas, embarcações de pequeno porte – igual ou menor a 20 toneladas (como canoas, jangadas e outras). Segundo a FAO (2012), a pesca de pequena escala (ou artesanal) emprega mais de 90% do total estimado em 53 milhões pescadores e aquicultores no mundo e é de grande importância como a melhor fonte de proteína animal para a segurança alimentar de cerca de 357 milhões de pessoas. Além disso, ela é responsável por aproximadamente 50% do total de 154 milhões ton. da produção mundial de pescado. No Brasil, o setor chega a 70% da produção, ao lado da pesca industrial e da aqüicultura (Ouvidoria do Mar, 2012). Essa realidade é semelhante aos setores da indústria e da agricultura, onde o maior número de postos de trabalho e a maior parte da produção de alimentos são oferecidos, respectivamente, pelas pequenas e médias empresas no meio urbano e, no meio rural, por organizações familiares, cooperativas e associações de trabalhos rurais. A produção econômica de larga escala tende ao enrijecimento da especialização e à monocultura produtiva. Em países de economias centrais e industrializados, o setor da pesca artesanal tem a sua importância reconhecida. Segundo Diegues (1983), em diferentes países industrializados as inovações tecnológicas impulsionadas pela revolução industrial nem sempre foram acompanhadas pela proletarização 14 dos pescadores artesanais como ocorreu na Inglaterra. Na Noruega, a pequena produção pesqueira conseguiu se firmar e coexistir com a pesca industrial. Os mestres de pesca, pescadores mais experimentados com profundos conhecimentos das condições físicas dos fiordes, conseguiram adaptar-se às novas técnicas de captura. Valendo-se da força do trabalho familiar, eles conseguiram aumentar a produtividade da pesca por meio da Figura 03: Vila de Pescadores de Pesca Costeira integração de inúmeras inovações no Japão técnicas em suas unidades de trabalho sem que se proletarizassem. A modernização do Japão, iniciada com a Revolução dos Meiji a partir do século XIX, assegurou os direitos consuetudinários de apropriação do ambiente marinho às famílias tradicionais japonesas de pesca costeira ou de pequena escala, através da criação da lei de pesca em 1901. Segundo o professor Yamamoto (1995) da Universidade de Nihon em Tóquio, o setor da pesca costeira possui atualmente um bem sucedido sistema de co-gerenciamento da pesca costeira de base comunitária, estruturado por cooperativas de baixo para cima, tendo Pequena vila de pescadores japoneses em uma por unidade de base pequenas vilas de localidade da costa da península de Tango no Mar pescadores localizadas nas regiões do Japão. Foto: Charles Osgood, Chicago Tribune / costeiras e insulares do Mar do Japão. August 29, 2009. A importância socioeconômica da pesca costeira pode ser verificada por seus indicadores econômicos. Ela é responsável por cerca de 73% do total dos pescadores profissionais e por cerca de 30% da produção total de pescado divida por setores de pesca de grande escala (offshore e oceânica). No Brasil, a pesca artesanal começou a ter alguma visibilidade somente a partir do final da década de 80 do século XX. Com a Constituição Federal de 1988, a atividade da pesca artesanal começou a ter uma conotação de trabalho. As colônias de pescadores deixaram de ser organizações auxiliares da Marinha de Guerra brasileira e passaram a ter função de representação profissional ou sindical dos pescadores artesanais. E, com a recém criada Lei da Pesca 11.959/20091, a pesca profissional artesanal ganhou uma definição oficial: uma pescaria exercida por pescadores profissionais de forma autônoma e com meios de produção próprios, individualmente ou em regime de economia familiar, ou ainda com o auxílio eventual de outros parceiros, sem vínculo empregatício. Em razão de suas características comuns, a pesca artesanal passou a ser reconhecida também como um manejo sustentável: captura diversificada das espécies de peixes com prioridade para a segurança alimentar e em base de conhecimentos tradicionais dos ecossistemas marinhos acumulados secularmente. Para a conservação sustentável, a atividade começou a ser vista como sendo de baixo impacto ambiental e um indicador biossocial, na medida em que a sua efetividade implica na integridade dos ecossistemas aquáticos. A estreita relação da pesca artesanal com a sustentabilidade do ecossistema marinho torna essa atividade extremamente vulnerável ante as mudanças ecossistêmicas e globais produzidas por padrões de produção e consumo das sociedades urbano-industriais. Entre os impactos antrópicos que mais fragilizam a pesca artesanal em áreas litorâneas incluem a instalação de indústrias, a ampliação de regiões metropolitanas e a construção de 1 Lei do Ministério da Pesca e da Aqüicultura (MPA) que dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, 15 grandes hotéis e resorts. A degradação socioambiental decorrente desses processos abrange a poluição e o surgimento de grandes favelas às margens de algumas áreas consideradas berçários da vida marinha (mangues, lagoas, lagunas, baías, estuários), decorrentes, respectivamente, dos efluentes industriais e da falta de políticas públicas voltadas para a cidadania. As pressões globalizadas sobre a pesca artesanal ou de pequena escala têm levado os pescadores a se mobilizarem em defesa de suas atividades extrativistas. Essas iniciativas implicam adaptações no manejo e em suas organizações de produção capazes de suportarem instabilidades socioeconômicas e ambientais. Entre esses novos padrões organizacionais, encontram-se mobilizações de defesa da proteção dos recursos pesqueiros, cooperativas autogestionárias, redes de cooperação, reservas extrativistas aquáticas, mercado justo, fóruns etc. A participação de pescadores artesanais no co-gerenciamento da proteção dos oceanos como ferramenta de governança para a sustentabilidade dos recursos pesqueiros em todo o planeta foi uma das 10 (dez) recomendações do evento Diálogo de Desenvolvimento Sustentável: Oceanos da Rio +20, encaminhadas à apreciação dos Chefes de Estado e de Governo presentes na Cúpula da Conferência oficial (Ouvidoria do Mar, 2012). 2.4 Origens dos Conhecimentos Marítimos Acumulados da Pesca e Navegação Este item visa focalizar o mar na perspectiva do conhecimento acumulado por pescadores e navegadores ao longo dos séculos e distribuído no mundo por diversas culturas e civilizações. Em relação às espécies marinhas, tal conhecimento permitiu conhecer o comportamento dos peixes, a época de sua reprodução e a concentração de cardumes. Paralelamente ao saber desenvolvido pela pesca, foram elaboradas Figura 04: A Pesca na Era do Paleolítico técnicas de navegação com base em conhecimentos relativos aos regimes de ventos reguladores do clima. Esse enfoque contribui para uma visão interdisciplinar dos estudos do mar, que reconhece os avanços consideráveis sobre o conhecimento marítimo das disciplinas como a oceanografia e biologia marinha, ao lado dos conhecimentos gerados por pescadores tanto locais quanto nacionais ou internacionais – como da baleia, do bacalhau, do arenque - em suas interações com o mar, constituindo, de certo modo a base do conhecimento científico atual. A partir dessas interações de várias culturas com o mar durante milênios, sociedades fenícias e gregas na antiguidade ocidental passaram a construir uma “maritimidade”, isto é, entendida como um conjunto de Descobertas arqueológicas recentes revelam práticas sociais (econômicas, sociais e artefatos de sofisticada tecnologia pesqueira de 13 simbólicas) resultante da interação humana mil anos atrás, encontrados no litoral do Estado da Califórnia, EUA. Ciência Hoje, 2011 com o espaço marítimo, um espaço particular e diferenciado do continental (Diegues, 2003). Por esse enfoque, o mundo oceânico não se restringe a uma entidade física, pois é constituído pela produção social e simbólica. O mar começou a ser utilizado e conhecido desde os primórdios da civilização humana, a partir do momento em que passou a servir como fonte de alimento e meio de comunicação, após a exploração dos rios. Pesquisas revelaram restos de espécies marinhas (cascas de ostras e mexilhões, peixes) e de artefatos (cerâmicas, arpão, redes) encontrados em período anterior ao Neolítico, atestando a importância dos moluscos na alimentação humana e demonstrando ser a pesca uma das atividades mais antigas. O consumo de peixes era comum no Egito 16 Antigo e na Grécia Antiga. Os Figura 05: Os Fenícios: Maior Potência Marítima da fenícios, antes da metade do Antiguidade. século VIII a. C., exerciam a pesca do peixe espada, uma pesca que exigia grandes habilidades do pescador. Na Europa, a partir do século VII, o peixe passa a integrar a alimentação popular, utilizando-se também para isso, o manejo da engorda da tainha, a criação de legislação para proteção de alevinos do salmão, a pesca da baleia para alimento e seu azeite como combustível de iluminação. E, a partir do século X, surgem as primeiras organizações de pescadores europeus, instituindo suas formas de gestão das pescarias nos diferentes mares (Mar do Norte, Báltico). A pesca começa a ser regulada pela aristocracia europeia ainda na Idade Média e, no século XV, é iniciada a pesca de grande escala com a captura do bacalhau na América, em Terra Nova, no Canadá, dando origem às primeiras companhias de pesca. A Revolução Industrial dá grande impulso à atividade a partir de 1880, com o surgimento dos primeiros barcos de pesca a vapor. (Apud Diegues, 2003). Ao lado dos saberes das espécies marinhas relacionados com a pesca, ampliaram-se conhecimentos necessários às técnicas de navegação, tais como os regimes de ventos, as características climáticas, as correntes marinhas, o mapeamento dos astros para rotas de navegação. Na antiguidade, ligações comerciais entre o Egito e a Síria eram feitas por embarcações em mares povoados por mitos, além de peixes, moluscos, crustáceos e cetáceos. Na mitologia grega, por exemplo, os mares eram governados pelo poder do deus Poseidon, conhecido como Netuno pelos romanos. A Odisséia, escrita por Homero, um século antes de Cristo, é um relato do retorno de Ulisses após o fim da Guerra de Tróia no século VIII a. C. e que expõe as habilidades náuticas do herói grego ante os grandiosos perigos do mar. No extremo Oriente, os “juncos”, grandes embarcações chinesas se fizeram notar antes da chegada do navegante português Vasco da Gama em Malta. Elas, comparativamente com as caravelas portuguesas, eram bem maiores, chegando a medir 120m de comprimento, 50m de largura e podiam transportar cerca de 3000 ton. A largura de sua proa lhe dava estabilidade e o fundo plano, a navegabilidade em águas rasas. Acredita-se que o Brasil seja um dos países com maior riqueza em embarcações tradicionais do mundo, em razão da multiplicidade cultural de sua formação de seu povo e da magnitude e diversidade de seus ecossistemas. A história, as tradições e a diversidade de suas embarcações ainda são pouco conhecidas. Sabe-se que o país possui uma extensa costa litorânea e que foi ocupada por meio da atividade náutica constituída por técnicas europeias, africanas e orientais, trazidas pelos colonizadores e integradas às técnicas indígenas. Dessa integração, foram gerados diversos modelos adaptados às condições de navegabilidade locais, com soluções originais e passadas através de gerações de mestres carpinteiros navais. Esses artesãos detêm inclusive o manejo sustentável das árvores apropriadas às embarcações. O conhecimento e as tradições da arte da navegação e construção artesanal vêm sendo preservados por uma significativa parcela da população costeira e ribeirinha, ainda usuária da embarcação tradicional. 2.5 Conhecimentos Ecológicos Tradicionais (CET) dos Pescadores Artesanais Conforme visto no item anterior, os conhecimentos cumulativos do mar são gerados a partir das interações empíricas de pescadores e navegadores com o ambiente marinho, constituindo, 17 assim, a base do conhecimento tradicional marítimo. Essa acumulação cognitiva consiste na aplicação em situações novas de parcelas de conhecimentos produzidos pelas experiências e arquivados na memória. A compreensão desse processo requer, porém, uma perspectiva alternativa ao sentido cronológico da tradição em oposição à modernidade: para ele, a tradição constituiria uma visão estática do mundo, marcada pela repetição e estabilidade, um ciclo vicioso, enquanto a modernidade seria a ruptura desse ciclo, caracterizada por mudanças rápidas e contínuas (Rodrigues, 1994; Cunha, 2000). No sentido etimológico, a tradição - do verbo latino traditio - é uma ação de entrega ou passagem de algo para outro, contendo, portanto, a noção de movimento. O tempo deste, porém, não segue o tempo da modernidade que é ditado pelo “relógio’, mas um “tempo natural” constituído pelos movimentos cíclicos da natureza. Para o pescador artesanal das regiões costeiras, o ritmo de seu trabalho é regulado pelos ciclos biológicos das espécies marinhas (reprodução, maturação, migração), pelo movimento das marés e dos astros, variações atmosféricas e outros. Com base nesses conhecimentos ecossistêmicos, populações pesqueiras desenvolveram, mediante observação rigorosa ao longo do tempo, mecanismos de controle ecológico das atividades de captura para fins de conservação. Esse corpo de conhecimentos cumulativos dos ecossistemas marinhos que orientam os pescadores artesanais e evoluem por mudanças adaptativas, sendo repassado a futuras gerações, define os Conhecimentos Ecológicos Tradicionais – CET (Berkes et al., 2006; Diegues, 2004b). No contexto da pesca artesanal, o conhecimento tradicional refere-se a “um conjunto de práticas cognitivas e culturais, habilidades práticas e “saber-fazer” transmitidas oralmente nas comunidades de pescadores artesanais com a função de assegurar a reprodução de seu modo de vida” (Diegues, 2004b). É importante rever aqui a noção do ato de “entrega para o outro” da tradição como sendo repasse ou transmissão na perspectiva das ciências da comunicação e da linguagem. Para estas, a comunicação não é um simples ato de transmissão ou transferência de conhecimentos, mas “interação” e “compartilhamento” entre dois ou mais sujeitos, substituindo, também, a visão passiva da recepção por ativa. A compreensão da tradição como uma ação interativa de entrega e recepção torna seus conhecimentos válidos às situações presentes e futuras. Isso explica a utilização do CET na tomada de decisões pelos pescadores para o êxito da pescaria (Britto, 2004): eles articulam um complexo conjunto de noções sobre as características e hábitos dos peixes com as condições do mar, proporcionando-lhes identificar, localizar e selecionar o manejo adequado para a captura das espécies na imensidão do mar com seus mistérios e incertezas. Para Ruddle (Apud Begossi; Hens, 2000), este sistema de manejo comunitário é a base das decisões e estratégias que combina conhecimentos sobre “comportamento dos peixes, taxonomia e classificação das espécies e habitats, assegurando capturas regulares e, muitas vezes, a sustentabilidade, a longo prazo, das atividades pesqueiras”. O conhecimento ecológico tradicional, conforme sugere Diegues (2004b), envolve relações culturais, econômicas e simbólicas em ambientes territoriais costeiros e marinhos com a perspectiva de reprodução social e do modo de vida, através de atividades de subsistência, utilizando-se de “tecnologias patrimoniais relativamente simples, com impacto relativamente limitado sobre o meio ambiente”. Muito dessas práticas tem como sustentação as relações de parentescos, oriundos dos grupos familiares ou domésticos, com um senso de identidade social e cultural que os distingue de outros grupos sociais urbano-industriais, decorrente de uma visão de mundo e de linguagem própria; da tradição oral capaz de produzir e de transmitir os saberes, símbolos, mitos, narrativas e “causos” envolvendo o “sobrenatural”, associado à pesca artesanal, visando coibir degradação dos recursos pesqueiros. O CET, construído a partir da experiência, é um atributo das sociedades com continuidade histórica no uso de recursos em um determinado ambiente (Berkes et al., 2006). Em relação às comunidades de pescadores artesanais, Diegues (2004b) destaca o aspecto cognitivo do CET e a finalidade de sua transmissão como forma de assegurar a reprodução de seu modo de vida. A dinâmica desse processo cognitivo consiste, essencialmente, no compartilhamento de conhecimentos embutidos nas atividades da pesca artesanal - ou arquivados na memória - 18 para cada nova experiência marcada pelas incertezas e instabilidades do mar. Essa competência adaptativa a situações novas ou imprevisíveis se deve aos modelos cognitivos que orientam as nossas ações e que são altamente flexíveis e dinâmicos, além de constantemente atualizáveis ou passíveis de serem complementados e/ou reformulados. (Varela et al., 1992; Van Dijk, 1989; Lévy, 1994). Essas propriedades inerentes aos conhecimentos tradicionais dos pescadores artesanais, como socioculturalmente determinados e adquiridos por suas vivências, podem contribuir para as estratégias conservacionistas (monitoramento contínuo, co-manejo e gestão adaptativa) no contexto das mudanças dos ecossistemas marinhos. A apropriação tradicional do ambiente marinho consiste em um conjunto de práticas culturais de intervenção na natureza por meio da manipulação de componentes orgânicos e inorgânicos, com vistas à reprodução social das comunidades costeiras de pescadores (Diegues, 2004b). Por meio dessa apropriação, os pescadores constroem sistemas de “tenência ou posse marítima”, onde são definidos direitos de acesso aos recursos pesqueiros de todos os identificados como pertencentes à comunidade de usuários (mangue, recifes de coral, etc). Esses sistemas baseiam-se em valores culturais de pertencimento relacionados com a construção e afirmação de identidade social. Por meio do uso de “marcas”, os pescadores estabelecem uma territorialidade marinha de áreas usadas para a pesca, como pesqueiros visíveis ou lajes submersas, mantidos em segredo ou protegidos por “lei de respeito”. Considerando que os recursos explorados são móveis, o estabelecimento e a manutenção de limites e divisas não são tarefas fáceis. Isso leva alguns grupos de pescadores artesanais dividirem o espaço marítimo através de sistemas de sequência de lanço de rede, pesqueiros e “caiçaras”, gerando inevitáveis conflitos entre pescadores e demais usuários dos recursos comuns. A seguir, as relações de algumas áreas e temas da apropriação tradicional do espaço marinho por pescadores artesanais. O conhecimento ecológico tradicional dos pescadores artesanais faz referências à classificação de espécies aquáticas, comportamento dos peixes, taxonomias, padrões de reprodução e migração das espécies, cadeias alimentares. Tal conhecimento engloba também as características físicas e geográficas do habitat aquático, clima (nuvens, ventos, mudança do tempo), as artes de navegação e pesca. Nas origens dos conhecimentos marítimos cumulativos, estes dizem respeito também às relações com o mundo sobrenatural (mitos, lendas, religiosidade). Figura 06: A Taxionomia Tradicional Taxonomias A classificação dos peixes segue atributos e categorias relacionados com a vida humana, incluindo os animais terrestres e aves. Esses critérios associam aspectos físicos e comportamentais das espécies com o mundo vivido dos pescadores (Figura 06). Ou seja, a identificação de uma espécie é feita pela correspondência entre o ponto de vista e a noção percepção/interpretação. Isso torna não estáveis os dados da realidade Peixe galo. Selene setapi. FESCH R. Don, FishBase, 1997. marítima nos sistemas de representação tradicional, deixando de haver homogeneidade entre os pescadores, pois além das diferenciações das propriedades e características de cada ecossistema, há as interveniências culturais com suas linguagens diversificadas das identidades dos grupos ou comunidades tradicionais de pescadores artesanais. 19 Na base do conhecimento ecológico tradicional, o saber e o fazer constituem uma só unidade de significação. A identidade dos peixes, por exemplo, não é feita do lado de fora do ambiente marinho ou pela análise de suas partes, mas pelas interações e associações estabelecidas pelos pescadores no campo da experiência vivida: peixe > sardinha verdadeira (Sardinella brasiliensis) > alimento > isca viva; o guriri (Allagoptera arenaria) e o tucum (Bactris setosa) > palmeiras > fibra > linhas e rede de pesca; ajiru ou ajuru (Chrysobalanus icaco) > chá para pedras nos rins > frutos para alimento e comercialização. Classificação de habitats A diversidade de habitats marinhos (pesqueiros, rochas submersas) frequentemente designada pelo nome do pescador que as descobriu (Cunha, 2000). O espaço conhecido dos pescadores é o ambiente marinho. Esses espaços advêm da prática profissional e da apropriação de um código de saber-fazer permeado pelo aprendizado, experiência e intuição. Este saber tradicional é continuamente produzido, recriado e acumulado culturalmente na observação e na vivência singulares da natureza, em constante ciclo de transformação e de mudanças móveis e imprevisíveis. Figura 07 Triangulação para a Identificação de Parceis Na imensidão do mar, os pescadores artesanais localizam-se sem o uso de aparelhos e ferramentas de produção industrial (bússola, GPS, radar etc.). As áreas de reprodução e de pesca (pesqueiros) são demarcadas no ambiente marinho através da relação de um espaço duplo: terra – mar. Uma das técnicas utilizadas para formação de uma rota ou de um georreferenciamento marítimo por populações humanas de diversos povos e culturas é a “triangulação”: linhas imaginárias traçadas a partir de acidentes geográficos situados no continente ou pontos salientes da costa (picos de morros, torre de igreja, etc.) e o habitat alvo. Comportamento dos peixes Os pescadores artesanais da costa brasileira conhecem em detalhes os hábitos alimentares dos peixes, assim como seus padrões de mobilidade e migração. Com base nesse conhecimento, eles selecionam suas iscas, as épocas e as técnicas das pescarias. Um dos exemplos é a tainha (Mugilidae) que com a chegada do inverno no mês de maio desloca-se em cardumes do litoral sul para se reproduzir no litoral norte do Brasil, sendo uma das principais pescas das comunidades pesqueiras no sudeste brasileiro. Esse ajuntamento de peixes ou formação de cardumes associado à reprodução é conhecido pelos pescadores. Os sinais desse fenômeno são dados pela “ardentia”, um brilho produzido por certos peixes pelágicos que indica o momento de lançamento da rede de cerco. As artes de pesca Considerando a grande diversidade das espécies-alvo da pesca artesanal, os pescadores não só conhecem como são produtores de uma gama ampla e diversificada tecnologia de captura e 20 também de cultivo. Porém, com a industrialização, a introdução de inovações técnicas por eles tem aumentado, acarretando, muitas vezes, a perda de seus meios de produção e a descaracterização do trabalho artesanal. A substituição de linhas de fibras naturais pelo nylon como também canoas por botes e traineiras motorizados são alguns exemplos dessas mudanças. Entretanto, mesmo com a introdução de novos materiais na tecnologia da pesca e da lógica de mercado, modificações são realizadas pelos pescadores artesanais mediante ajustes e adaptações às mudanças dos ecossistemas aquáticos e da sociedade moderna, assegurando, assim, as identidades de seus modos de vida e a própria reprodução social. Organização do trabalho, a “tenência” marítima e a função social O conhecimento ecológico tradicional diz respeito também à divisão do trabalho e às regras de delimitação de áreas marinhas para o uso dos recursos pesqueiros e aos processos de acumulação limitada de capital, decorrentes da comercialização e beneficiamento do pescado. A utilização desse conjunto de conhecimentos tem por função assegurar a reprodução social dos pescadores, o que implica, por sua vez, em processos de comunicação ou interações sociais entre as gerações das suas famílias e das comunidades formadas pelas pescarias. 3.6 Experiências de Uso dos Conhecimentos dos Pescadores Artesanais em Áreas Marinhas Protegidas No Brasil, algumas experiências de uso dos conhecimentos tradicionais da pesca artesanal na gestão de áreas marinhas protegidas já começam a ser referências de iniciativas exitosas. Elas têm em comum a cooperação de conhecimentos científicos com vistas à recuperação e/ou à conservação de espécies de fauna e flora, por meio de ações promissoras à sustentabilidade do ecossistema marinho: ampliação do conhecimento técnico sobre as espécies, o uso não letal das espécies, atenuação e adaptação às pressões ambientais, conservação e gestão sustentável dos recursos pesqueiros e atuação integrada de projetos de conservação da biodiversidade marinha. Os casos descritos a seguir foram selecionados da série organizada por Prates (2007): “Áreas Aquáticas Protegidas como Instrumento de Gestão Pesqueira” do projeto realizado pela equipe do Núcleo de Zona Costeira Marinha - MMA/IBAMA ,. As informações contidas nessa publicação sobre as experiências de uso de conhecimentos empíricos de pescadores na conservação sustentável ainda contribuem para o estudo sobre as potencialidades e os problemas apresentados e servem de subsídios para o planejamento e a gestão, com a disseminação de conceitos de áreas aquáticas protegidas como ferramentas fundamentais de conservação da biodiversidade dos ecossistemas aquáticos marinhos e dulcícolas, essenciais à manutenção da atividade pesqueira sustentável. Vários especialistas e pesquisadores da temática apontam para a importância da implementação dessas áreas protegidas, como forma de recuperar os estoques colapsados ou ameaçados de extinção, para alimentação, desova, berçário, criação e recrutamento, exportando alevinos e espécies maduras para áreas tróficas adjacentes, com vistas a dar oportunidade aos indivíduos de fecharem o seu ciclo de vida. O Projeto Meros do Brasil apresenta resultados promissores em pesquisa e intervenções de conservação de agregações reprodutivas do Mero (Epinephulus itajara), uma espécie vulnerável e em risco de extinção. Destaca a crescente importância que vem sendo dada à conservação de agregações reprodutivas de peixes marinhos. As possibilidades de estudos destes fenômenos no Brasil são aparentemente grandes, pois poucas agregações são conhecidas e poucos foram os esforços para pesquisá-las2. O conhecimento ecológico local 2 Cabe ressaltar que para a abordagem feita aqui, serão considerados, somente, os aspectos comuns entre os conceitos conhecimentos ecológicos tradicionais (CET) e os conhecimentos ecológicos locais (CEL), não sendo consideradas as suas diferenças. Tanto o CET quanto o CEL constituem, segundo a literatura especializada, um corpo cognitivo construído de conhecimentos ecológicos a partir de várias 21 (CEL), assim como o CET, se coloca como uma ferramenta imprescindível para iniciar um processo de pesquisa, monitoramento e gestão destas agregações. Isto advém de sua potencialidade em viabilizar informações básicas na identificação e caracterização das agregações. Com base nessas informações, a pesquisa e o monitoramento, através de metodologias científicas tradicionais, poderão ser iniciados. A experiência Meros do Brasil tem ainda muito a evoluir no que se refere à efetiva inserção do conhecimento ecológico local em um sistema de co-gestão de áreas marinhas protegidas. No entanto, as informações e reflexões aqui construídas fortalecem a ideia de que uma AMP na Baía Babitonga poderá promover a manutenção da diversidade biológica e cultural local, assim como promover a integração entre os conhecimentos científicos e locais no processo de co-gestão dos recursos pesqueiros marinhos. Na Área de Proteção Ambiental (APA) Marinha Costa dos Corais, em Tamandaré – Pernambuco, resultados foram obtidos do primeiro experimento de manejo utilizando áreas de exclusão de uso em recifes de coral no Brasil. Foi observada uma rápida recuperação da abundância para algumas espécies na área fechada de Tamandaré, indicando o potencial dessa estratégia para o manejo pesqueiro na região. O que teria contribuído para esses resultados foi a mudança do comportamento dos peixes nas áreas fechadas. Os peixes reagem positivamente à ausência da pesca, ficando mais sensíveis e mais visíveis aos mergulhadores (Kulbrick, 1998). Dentro dos limites da área, as espécies que nos últimos anos eram raramente encontradas - como meros, sirigados, caranhas e barracudas de grande porte - passaram a ser avistadas com frequência dentro dos limites da área. Essa tranquilidade do local tem atraído peixes de outras regiões. A interação entre a pesca e o turismo tem proporcionado o manejo integrado entre essas duas atividades, através de seu zoneamento diferenciado para as atividades, e geração de trabalho e renda para a comunidade local de pescadores. Experiência exitosa ocorreu com o desenvolvimento do projeto Manejo Comunitário do Pirarucu (Arapaima gigas) na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM), Amazonas, Brasil. Nesse caso, após a realização de um processo de consulta junto às comunidades locais, foi definido um sistema de zoneamento das áreas locais, estabelecendo duas zonas de preservação permanente, localizadas no interior da RDSM, a serem exploradas através de Manejo Comunitário da Pesca, programa implementado e inserido nas comunidades pesqueiras da área. No artigo é relatado o seguinte: A resposta do estoque do pirarucu ao manejo foi surpreendente para pescadores e técnicos, pois não esperavam que fosse tão rápida e de tal magnitude. O aumento foi mais de oito vezes na área do setor de Jurauá entre 1999 e 2006, passando de 2.507 (2.149 juvenis e 358 adultos) para 20.648 (12.52 juvenis e 8.596 adultos). O aumento na quantidade de pirarucu começou a ser percebida desde o início do trabalho de apoio ao manejo comunitário. O retorno do pirarucu trouxe lembranças aos mais velhos de seus tempos de infância, “quando o peixe não era tão perseguido”, e fez crescer a auto-estima das comunidades de pescadores do Jurauá. Outra experiência, o projeto Gestão Pesqueira Participativa no Complexo Estuarino-Laguna de Cananeia, Iguape e Ilha Comprida, focalizou a sua atuação na regulamentação do uso dos recursos pesqueiros mediada pelo diálogo entre técnicos e os pescadores artesanais como principal alicerce para uma efetiva gestão integrada e participativa. Com recursos públicos do MMA e do PNIUD, esse projeto foi elaborado no âmbito da Câmara Técnica da Pesca do Conselho Deliberativo da Área de Proteção Ambiental Cananeia-Iguape-Peruíbe – CONAPA CIP em 2004, sendo a responsabilidade pela sua execução do Instituto de Pesca do Estado de São Paulo. Entre uma de suas metas constava a consolidação da recém criada Reserva Extrativista do Mandira e cujo plano de manejo participativo foi oficializado em 2006, 06 anos após a criação da reserva extrativista (BRASIL.ICMBio/2010). Com isso, essa unidade de conservação tornou-se a primeira reserva extrativista de recursos costeiros e marinhos, pois experiências individuais e compartilhadas, acumuladas através do tempo. Essa concepção pressupõe o diálogo com pescadores como imprescindível para a criação de áreas marinhas, pelo fato de eles terem suas vidas afetadas diretamente. 22 situada em uma região estuarina no litoral sul de São Paulo, a possuir esse instrumento de gestão, até o momento. Cabe ressaltar que a experiência desse projeto implicou em vários acordos de pesca com os pescadores artesanais do complexo estuarino-lagunar. Por meio de estudos técnicos junto aos pescadores e em interação com a câmara técnica do órgão gestor do CONAPA como instância gestora da pesca na região, foram criadas várias instruções normativas de manejo via portarias do IBAMA para as seguintes modalidades de Figura 08: Área de Proteção pesca: pesca da manjuba (Anchoviella Ambiental Cananéia-Iguape-Peruíbe lepidenostole) de Iguape (Figura 08), arrasto de praia na costa da Ilha Comprida e sul da Ilha do Cardoso, pesca do “iriko” (Anchoa sp.), pesca do cerco-fixo, pesca de camarão estuarino – sendo esta sem consenso à época devido a potenciais riscos à sustentabilidade da atividade pesqueira e turística. Com base nas abordagens citadas nos projetos em tela, conclui-se que é crescente a disseminação do conceito de que áreas marinhas protegidas são fundamentais para manutenção e recuperação dos estoques pesqueiros e conservação da biodiversidade que compõe esses ecossistemas. Metodologias aplicadas apontam a recuperação da ictiofauna, pautadas na realização de levantamentos de dados pretéritos, da distribuição e bioecologia das espécies, da criação de áreas de exclusão de pesca em tempo integral ou sazonal, da realização de sensos visuais dos habitats de ocorrência dos indivíduos, através de mergulhos periódicos e complementados por monitoramento e comunicações pessoais por pescadores (mapas mentais), de manejos Ordenamento do manejo da pesca de comunitários com base em zoneamentos das áreas manjuba Anchoviella lepidentostole, no foco e da realização de acordos de pesca. É município de Iguape mediante “acordo sugerida também a realização de um diagnóstico pesca”. IBAMA, 2007. Foto: Jocemar das áreas elencadas de ocorrência desses Mendonça indivíduos, quanto ao seu grau de vulnerabilidade por ações antrópicas, como pesca predatória e sobre-pesca e a análise da descaracterização dos ambientes, como os substratos de fundo, dos costões rochosos, parcéis, manguezais, estuários e áreas recifais, visando minimizar impactos nesses ecossistemas. 3. APROPRIAÇÃO TRADICIONAL DO MAR NA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE ARRAIAL DO CABO 3.1 A Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo Histórico da criação As primeiras discussões para a criação desta área marinha protegida tiveram início no ano de 1993, a partir do contato entre a Prefeitura Municipal de Arraial do Cabo e o Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT), vinculado ao IBAMA, segundo Silva (2002). Naquele ano, a FIPAC (Fundação Instituto de Pesca de Arraial do 23 Cabo), vinculada à prefeitura deste município, e o IBAMA atuaram com pescadores artesanais contra a invasão de embarcações industriais. De 1994 a 1995, o CNPT realizou estudos de avaliação e viabilidade de uma reserva extrativista cuja área total seria exclusivamente de zona marinha. Como parte desse processo de tomada de decisão, um diagnóstico foi realizado para a identificação do perfil socioeconômico da população extrativista local. Esta pesquisa contou com o apoio da Prefeitura que forneceu remuneração a alunos do primeiro e segundo graus das escolas municipais para atuarem na aplicação de questionários. Em 1997, foi criada a Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo (Resexmar AC) pelo Decreto Federal s/n. com objetivo de assegurar a manutenção da atividade pesqueira artesanal com suas técnicas e métodos tradicionais de exploração, contribuindo, assim, para o manejo sustentável dos recursos pesqueiros locais de um ecossistema marinho avaliado com alta biodiversidade na costa brasileira. De imediato, buscou-se proibir as pescarias predatórias como o arrasto de fundo com portas, o uso das redes de tresmalho e as embarcações de arrasto proibidas na região. O desembarque no município dos barcos industriais foi proibido. No início de 1998, foi elaborado e aprovado o Plano de Utilização da unidade de conservação criada. Arranjo institucional A atual gestão da Resex-Mar AC conta com um Conselho Deliberativo, criado em 2010, composto por 25 representantes dos beneficiários e usuários, sendo o poder executivo do órgão colegiado atribuído ao Chefe da unidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade no município. Em termos de instrumentos de gestão, a Reserva possui, apenas, o Plano de Utilização instituído pela Portaria N° 17/1999, que, no entanto, está desatualizado. Assim, esforços são ainda necessários para o planejamento do manejo participativo e consolidação dessa Unidade de Conservação Marinha, inclusive para atender aos objetivos e princípios do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), do Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), e da Política Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), que privilegiam práticas participativas das populações tradicionais na gestão sustentável de ecossistemas aquáticos. Delimitação da área Na expectativa de reverter os impactos antropogênicos crescentes na região e que vinham ocorrendo na área, sobretudo por barcos industriais de pesca de arrasto advindos de outros locais da costa brasileira, a Resex-Mar AC inclui uma faixa marinha de 03 milhas náuticas em direção ao mar, com uma lâmina d’água no seu espaço físico de 56.769 ha, fazendo divisas com os municípios de Cabo Frio, na Praia do Pontal, e de Araruama, Praia de Massambaba na localidade de Pernambuca. Entende-se que esta unidade de conservação de uso sustentável foi implementada com o objetivo de preservar a alta taxa de biodiversidade marinha do litoral do município e manter a atividade pesqueira de forma sustentável. Nesse sentido, o futuro zoneamento e ordenamento da mesma, a partir da implementação do seu Plano de Manejo, criarão ferramentas de fiscalização, manejo e gestão dos seus recursos naturais, com vistas a assegurar a conservação dos ecossistemas da área e o modo de vida das atuais e futuras gerações dessa comunidade pesqueira tradicional. Para tanto deverão estar envolvidos nesse mecanismo atores sociais usuários da reserva (stakeholders), tanto do setor público como da sociedade civil organizada. Serão mostradas a seguir outras atividades marítimas, além da pesca artesanal, realizadas na Resex-Mar AC. 24 Figura 09: Mapa da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo Carta Imagem IBAMA, 2006. Multiusuários: beneficiários e usuários Figura 10: Pesca Artesanal e Maricultura Familiar na Resexmar de Arraial do Cabo Apesar da Resexmar AC ter por objetivo institucional assegurar a tradicional pesca artesanal como manejo sustentável, outras atividades são realizadas na área: atividade portuária, turismo e esporte náuticos, pesquisa da Marinha. A pesca artesanal ou de pequena escala, atividade comum desde os primeiros tempos de ocupação humana da região, teria sido mantida até o presente século XXI pela presença de dois fatores interrelacionados: a ocorrência do raro fenômeno marinho da Da esquerda para a direita. 1. Pesca de arrasto de praia na Praia Grande; 2. Pesca noturna da lula (Loligo plei) com uso de lanternas de luz branca na Praia Grande (Foto: Alexandre Kirovsky). 3. Poitas azuis e amarelas de maricultura familiar ou de pequena escala de moluscos na Praia do Forno: mexilhão (Perna perna), ostra (Crassostrea gigas ). (Foto: Elisângela Trindade,). 25 ressurgência (upwelling) bem junto à costa da região de Arraial do Cabo e a presença em seu território de uma população extrativista tradicional. O fenômeno consiste no afloramento de uma massa de água fria e rica em nutrientes da corrente Água Central do Atlântico Sul (ACAS), devido a fatores oceanográficos e atmosféricos, que fertiliza a camada das águas superficiais, proporcionando características únicas com o aumento da biodiversidade e da abundância das espécies (Valentin 1994). A ressurgência contribui para uma maior eficácia da pesca artesanal, por aumentar os estoques pesqueiros disponíveis em condições mais favoráveis de previsibilidade, em associação ao conhecimento tradicional dos pescadores. Na falta de um cadastramento da população extrativista tradicional da Rresex-Mar AC, estimase cerca de 1.500 pescadores profissionais artesanais atuantes em sua área. A pesca artesanal compreende uma comunidade tradicional estabelecida em um pequeno espaço de onde retiram os frutos da pesca para a sua sobrevivência. Neste espaço, constroem-se relações sociais e de trabalho que circulam ente os pescadores. Diante do domínio, o uso e a manutenção desses espaços é que se identificam a territorialidade destas comunidades que interagem e dialogam entre si, não só sobre a pesca propriamente dita, mas também sobre a sobrevivência das espécies, suas identificações com o ecossistema marinho, tais como: características e classificação dos habitats onde pescam e dão nome aos mesmos, direção das correntes marinhas, ventos, marés, ciclos lunares, sazonalidade e migração das espécies, ciclo de vida das espécies, tipos de iscas utilizadas entre outros. Segundo estatística pesqueira da FIPAC (2010), a média da captura total/ano de pescado tem sido em torno de 2.000 ton/ano. O Porto do Forno é uma empresa da Prefeitura Municipal que teve o início de sua implantação em 1924, tendo sido inaugurado em 1972, Figura 11: Porto do Forno quando passou a ser operado pelo Departamento de Portos e Vias Navegáveis. Posteriormente, passou a ser administrado pela Companhia Docas do Rio de Janeiro. Em 1999, foi criada a Companhia Municipal de Administração Portuária (COMAP), responsável pela gestão do Porto. Conforme site da COMAP, a licença de operação (LO) do Porto foi emitida pelo IBAMA em 11 de novembro de 2009. Cita também que estabelece como prioridade em sua gestão o mercado offshore, restabelecendo sua vocação para logística de apoio a este ramo. O porto encontra-se sob exigências do IBAMA para a obtenção Da esquerda para a direita. 1. A unidade do Porto do Forno. 2. A tecnologia Kugira da empresa espanhola Acciona, responsável pela fabricação de grandes módulos de concreto armado no Porto do Forno para o Porto do Açu da empresa EBX do empresário Eike Batista, em São João da Barra - RJ. 3. Módulo de concreto armado de 66m de comprimento x 18m de altura, pesando 24 mil ton., fabricado com a tecnologia espanhola. (Foto: Elisângela Trindade) do seu licenciamento ambiental. Apesar disso, a sua presença na Resexmar AC continua sendo objeto de questionamento entre beneficiários e usuários. Outros, porém, consideram 26 que, após o Licenciamento Ambiental do Porto, poderá ser uma oportunidade para que seja tomada uma posição mais compatível entre a economia e a preservação ambiental, interesses econômicos e de proteção da natureza. O turismo em Arraial do Cabo inclui serviços de passeios de barco e de mergulho recreativo. Essas atividades têm sido muito importantes para a economia do município, inclusive como alternativa de emprego e renda para pescadores. Em razão do crescimento desta atividade, nas últimas décadas, Arraial do Cabo passou a ser conhecida como a “capital do mergulho” do Brasil, devido à beleza, transparência e luminosidade de suas águas, que favorecem a prática dessa atividade. As empresas operadoras de mergulho e os barqueiros prestam serviço no cais Marinha dos Pescadores, local onde se faz também a maior parte do desembarque do pescado, além de serviços de ancoragem, de atracação de embarcações e de meios de hospedagem. Figura 12: Serviços de Turismo na Resexmar de Arraial do Cabo A procura de turistas por esses serviços chega a 90 mil pessoas no período do verão, tornando o setor o maior em arrecadação para o município. Entretanto, é uma atividade que vem comprometendo e alterando as condições espaciais, sociais, culturais e ambientais da área urbana e marinha, inclusive em relação à possibilidade de permanência da pesca artesanal. Mas a representação do setor no Conselho Deliberativo da Resexmar AC tende a sensibilizar o fórum para debate do tema específico, sob a definição de Foto: Rose Cintra. instrumentos de planejamento turístico de forma responsável, às vistas dos princípios e diretrizes do Plano de Utilização e do Plano de Manejo Participativo da Resexmar AC, em processo de construção. Pelo turismo ser considerado uma das principais atividades produtivas que acontece na área da Resexmar, esta deve representar uma alternativa potencial para a conservação da natureza e a melhoria da qualidade de vida das populações locais, o que exige a participação efetiva das populações envolvidas, no que tange aos benefícios socioeconômicos gerados e na definição do espaço comum e do destino coletivo. Sendo assim, a Resexmar é uma categoria de manejo de UC em que o desenvolvimento do turismo tende a ser mais favorável como alternativa de renda e inserção social para as populações tradicionais que habitam essas áreas protegidas, que devem ser consideradas protagonistas em todo o processo como ator e gestor da conservação sustentável da área A atividade de pesca subaquática é realizada há décadas por mergulhadores profissionais, inicialmente em forma de apneia e posteriormente através de narguilé (compressor). De acordo com os mergulhadores profissionais que participaram da oficina realizada pelo ICMBIO/2009, intitulada “Apoio na Elaboração do Plano de Manejo Participativo – Fase 1 Da Reserva Extrativista de Arraial do Cabo – RJ, atualmente o número de pescadores que atua nesta modalidade está entre 12 e 15 pessoas de Arraial do Cabo e 3 mergulhadores profissionais de Cabo Frio. Este tipo de pesca, por capturar espécies nobres como polvos, lagostas, chernes, badejos, garoupas e outros de alto valor econômico de mercado, tem potencial risco para levar 27 à queda dos estoques desses indivíduos ocorrentes em costões e parcéis na área da ResexMar AC, demandando sua avaliação de impacto para futuro ordenamento. Como forma de preservação desses nichos, tem sido sugerido que se criem áreas de exclusão, metodologia que vem sendo aplicada de forma exitosa sobretudo na Amazônia, onde durante um certo tempo deixa de se realizar a captura em determinados pesqueiros dando oportunidade para que espécies consigam fechar o seu ciclo de vida. Os participantes da oficina de mergulho profissional, composta por beneficiários, usuários e alguns entrevistados, comentam que a pesca profissional e recreativa representa ameaça, pois a falta de conhecimento sobre as normas do plano de utilização reflete na captura de espécies proibidas, de tamanhos reduzidos e na quantidade de pescado capturado. Pescadores, sobretudo de canoas de cerco de praia das localidades das Prainhas e da ilha do Farol, reclamam que as embarcações de turismo, além de adentrarem os pesqueiros espantando os peixes e impedindo que eles, pescadores, realizem suas capturas, praticam também pesca desportiva com captura de indivíduos fora do tamanho desejável. Gestão, conflitos e desafios Como visto anteriormente, a criação de uma área marinha protegida implica conflitos decorrentes de regimes de apropriação da biodiversidade e dos recursos pesqueiros que a princípio é de todos (inclusão/exclusão). E, com a falta de engajamento de pescadores artesanais, esse problema tende a se agravar, acarretando o insucesso da iniciativa. Em Arraial do Cabo, apesar Tabela 01: Conflitos diversos existentes na Resex-Mar AC de conflitos históricos locais entre pescadores da Praia dos Anjos e da Praia Grande, a criação da Resex-Mar AC fez aumentar e criar novos conflitos, segundo diagnóstico do Projeto “Apoio na Elaboração do Plano de Manejo Participativo da ResexMar AC” do ICMBio (2009) em sua fase preliminar de preparação. A não elaboração desse plano desde o ano 2000 inviabilizou a mitigação ou superação desses conflitos. Essa pesquisa, a última e mais detalhada sobre essa unidade de conservação, mapeou esses conflitos com propostas de Alarcon, 2009. resolução através de várias oficinas com a 28 participação dos atores sociais envolvidos, beneficiários (pescadores artesanais) e usuários (representantes das demais atividades). A tabela abaixo é um quadro parcial dos resultados do diagnóstico: Figura 13: Guarda Marítima Ambiental em Defesa da Pesca Artesanal na Reserva Extrativista de Arraial do Cabo Uma das principais causas desses conflitos, além da falta de ordenamento e de recursos federais para a fiscalização da Reserva, estaria na introdução de um conceito “fixista” de tradição no projeto da Resex-Mar AC (Diegues, 2007), com viés cronológico. Pesquisas anteriores já haviam chamado a atenção para a falta de metodologias participativas de pesquisa socioambiental e a falta de diálogo entre o conhecimento ecológico científico e o conhecimento ecológico tradicional na criação da Resex-Mar AC, dificultando ou inviabilizando a participação dos pescadores nesse processo (Diegues, 2007; Carneiro, 2009). .Apreensão de redes de tresmalho de 3 quilômetros de comprimento pela Guarda Marítima. Notícias Prefeitura Uma iniciativa que tende a beneficiar Municipal de Arraial do Cabo, 2012. Foto: Eduardo significativamente a pesca artesanal é a Alves. criação da Guarda Marítima Ambiental pela Prefeitura de Arraial do Cabo em janeiro de 2012.,com a missão de coibir crimes ambientais na Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo em defesa da pesca artesanal. A guarda teve como critério para a formação de sua equipe ser pescador profissional artesanal. O efetivo tem atuado, principalmente, na repressão ao uso Figura 14: Conflito e Ordenamento de redes de três malhas, proibidas no litoral do município, por impedir a passagem dos cardumes, prejudicando os pescadores artesanais. E resultados imediatos começaram a ser percebidos: grandes capturas de pescados voltaram a ser realizadas como consequência da atuação da guarda municipal. 3.2 A Apropriação Tradicional do Mar pelos Pescadores Artesanais de Arraial do Cabo Os pescadores artesanais de Resex-Mar Arraial do Cabo têm um amplo conhecimento referente às espécies de peixes, suas características físicas e A fim de evitar o excesso de barcos de turistas que provocaria comportamentais, suas migrações, o afastamento dos peixes, os pescadores retiraram imagem de assim como às condições naturais Nossa Senhora que havia sido achada no mar e colocada por eles na base da fenda rochosa. Foto: Elisângela Trindade. que favorecem as ocorrências delas. Esse conhecimento está distribuído de modo heterogêneo entre os pescadores das 29 diversas artes de pesca, concentrando-se, sobretudo, nos mestres e vigias da pesca – no caso, da pesca de peixes pelágicos. É com base nesse conhecimento que os pescadores organizam as suas pescarias, selecionando a tecnologia adequada à captura das espécies-alvo, em função de variáveis ambientais - fases da lua, correntes marítimas, ventos, qualidade e temperatura da água. Por sua vez, tal tecnologia pode ser considerada de baixo impacto ao ecossistema marinho devido, principalmente, ao fato de a sua utilização ser apropriada à captura de múltiplas espécies-alvo em fase adulta. Os pescadores deste município, beneficiados pelo fenômeno da “ressurgência”, detêm um conhecimento de uma grande e rica biodiversidade marinha de espécies de peixes capturados há séculos no litoral junto à costa do município (praias, costões, ilhas), chegando ao longo de um ano contabilizar mais de 80 espécies, cada uma delas com seus nomes populares e científicos (FIPAC, 2010). A abordagem a seguir privilegia o enfoque etimológico da tradição como uma ação de entrega ou compartilhamento de conhecimentos cumulativos da pesca artesanal marinha de Arraial do Cabo. 3.2.1 Origens da pesca artesanal Sítios de sambaquis3 no município de Arraial do Cabo testemunham que a pesca artesanal já era pratica há mais de 3.000 anos AP (antes do presente) na península, desde a sua ocupação pelos primeiros grupos humanos, anterior, portanto, à chegada das nações indígenas. Segundo Tenório et al. (2008), esses grupos possuíam um profundo conhecimento de técnicas necessárias à exploração do meio aquático marinho. Viviam em grupos no alto dos morros de onde desciam para buscar alimentos, especialmente peixes e moluscos. Há mais de 1500 AP, os guerreiros indígenas começaram a conquista do litoral da região (CABO FRIO, s/d). Índios Tupinambás habitavam toda a área correspondente ao Estado do Rio de Janeiro e, nas terras onde surgiria Arraial do Cabo, eram representados pelos Figura 15: Paisagem de Arraial do Cabo na Década de 50 do Século XX. Tamoios (TCE/RJ, 2008). Segundo estudos arqueológicos, havia cerca de 50 aldeias Tupinambás na região, estimandose uma população entre 25 e 75 mil habitantes antes da conquista européia. A pesca artesanal é, portanto, a atividade mais antiga dentre os ciclos econômicos da região das Baixadas das Litorâneas, ciclo do pau-brasil, ciclo do sal, industrialização e exploração offshore de petróleo e gás. Desde o início da colonização do país, iniciada no século XVI, até a Acervo de Luiz de Castro Farias, 1953 instalação da indústria química da Companhia Nacional de Álcalis (CNA)4 na metade do século XX, a região do atual município de Arraial do Cabo manteve-se isolada como uma rústica aldeia de pescadores, por ser um cabo geográfico de clima semiárido 3 Sambaquis (do tupi tamba'kï; literalmente "monte de conchas"). Eles são depósitos de matérias orgânicas e calcáreas construídos pelo homem há milhares de anos. No Brasil, há sambaquis em todo o litoral. O homem sambaquiano era, essencialmente, coletor de moluscos e pescador. 4 Companhia Nacional de Álcalis (CNA), fundada por Getúlio Vargas em 1943, teve por objetivo industrial produzir matérias-primas derivadas do calcário conchífero extraídas da Laguna de Araruama, tais como soda cáustica (hidróxido de sódio), barrilha (carbonato de sódio) – a mais importante - etc., visando à auto-suficiência nacional desses produtos de base da indústria moderna. 30 e de difícil acesso. Esse isolamento geográfico e econômico fora mantido por uma interação iniciada logo após o descobrimento do Brasil entre colonizadores que aprenderam a viver na nova terra e os índios que nela habitavam, mediante o compartilhamento e o aprendizado de novas técnicas de pesca e de artesanato de objetos domésticos com recursos naturais, principalmente, da restinga. Pescadores nativos da região do Cabo se reconhecem como descendentes de portugueses oriundos da Povoa do Varzim, Açores e Ilha da Madeira, com tradições marítimas e pesqueiras. Especula-se a descendência de francesa na formação da população. Um dos pescadores mais antigos de Arraial do Cabo, Seu Doke (Bonino Vicente José Goulart) com 86 anos, assim descreveu um quadro da vida cotidiana do Arraial de sua juventude: Eram poucas famílias, não havia eletricidade, usávamos lamparinas a querosene e lenha para cozinhar. Os homens se dedicavam à pesca artesanal principalmente, e as mulheres, conhecidas como “salgadeiras”, se utilizavam do paiol (construções feitas de pau-a-pique com folhas de Guriri no teto) para salgar os peixes que eram vendidos em outras cidades (Cabo Frio, São Pedro da Aldeia).Transportados no lombo do burro, após 10 dias o vendedor retornava com o dinheiro das vendas. A água era retirada das “cacimbas”, que eram poços feitos artesanalmente e de excelente qualidade. (Fundação COPPETEC, 2009). 3.2.2 As espécies: classificação, migrações e épocas de pescarias Os critérios de classificações das espécies de peixes utilizados pelos pescadores de Arraial do Cabo refletem qualidades, atributos, virtudes e categorias de acordo com as suas percepções/interpretações relacionadas à condição humana e a outras formas de vida da restinga. Os peixes podem ser classificados como lerdos (trompeta), rápidos (enchova), ,comunicativos (mero), que roncam (tainha e perumbeba) etc. (Cunha, 2000), Os pescadores de Arraial do Cabo sabem das “moções” (ou “monções”), do conjunto de condições favoráveis à ocorrência de grandes cardumes (“mantas”) e de suas rotas. São duas as épocas distintas, o tempo frio – de abril a setembro - e o tempo quente – de outubro a março. O período frio propício para a pesca da tainha/enchova e o quente, para o xaréu e o bonito. Em relação aos cardumes migratórios, muitos deles que chegam do sul passam primeiro pela Praia Grande, entram pelo Boqueirão e chegam às Prainhas, Praia dos Anjos, Prainha e, por último, à Praia do Pontal (Mapa 01). 3.2.3 Condições naturais (ventos, fases da lua) Os conhecimentos dos pescadores artesanais sobre os fatores naturais que afetam as pescarias (vento, correntes, temperatura da água, comportamento das espécies de peixes – migrações, períodos e locais de aparecimento de cardumes) variam segundo as artes de pesca e as suas experiências. Esses conhecimentos se diferenciam entre as modalidades das pescarias. Ventos Em Arraial do Cabo, os ventos são conhecidos pelos pescadores como sendo de diversos tipos e influências na pesca: Sudoeste ou vento de fora - No verão, este vento pode provocar ressaca ou favorecer a pesca na Praia Grande e, no tempo frio, favorece a chegada da tainha para todas as praias. Nordeste ou vento de dentro - Torna a água tranquila, fria e escura, dificultando a pescaria na Praia Grande, mas em contrapartida favorece a pesca do bonito nas praias do Norte. 31 Leste ou Vento de cima - Provoca chuva, calmaria e resfriamento das águas do mar. Só a pesca da lula na Praia Grande é favorecida. Vento de baixo - Vento no sentido Continente – Mar: Considerado perigoso para embarque e com frequência de esfriamento e escurecimento do mar. Essas influências sofrem variações quanto às propriedades dos ecossistemas e o manejo utilizado na pesca. Depoimentos de pescadores da Praia do Pontal dados a estudantes de Arraial do Cabo participantes de uma pesquisa sobre conhecimentos ecológicos tradicionais da pesca artesanal (Fundação COPPETEC, 2009)5, o “mar está para peixe” quando está calmo e com água ao sul. Dizem que durante o mês de agosto é frequente o vento Leste (“lestada”) e que a pescaria melhora somente com o vento Sudoeste. Fases da lua A combinação das fases da lua com os tipos de vento é decisiva para a decisão de onde, quando e como pescar. As fases começam e terminam, respectivamente três dias antes e depois de seus auges. Durante as fases lua nova e cheia, o mar se torna mais agitado (mar alto ou maresia) e nas de quarto crescente e minguante fica mais manso. O Sudoeste em lua cheia/nova torna o mar grosso e favorece o aparecimento da tainha. Com o Nordeste, o mar fica manso e favorece todas as pescarias, mesmo com a maré cheia. A presença das espumas nas ondas em deslocamento sul-norte, outro indicador das condições naturais para as pescarias, indica o prenúncio de maresia, inviabilizando a pescaria na Praia Grande, mas favorecendo a pescaria da lula (Britto, 2004). 3.2.4 Áreas de pesca ou pesqueiros (marcações) Os pescadores de Arraial do Cabo delimitaram várias áreas de pesca ou pesqueiros costeiros, principalmente nos costões, onde são capturadas diferentes espécies de peixes ao longo do ano, evitando, com isso, o acaso de suas pescarias. Para fins de ordenamento de acesso e uso dessas áreas em um futuro plano de manejo, foram elaborados alguns mapas digitais desses pesqueiros com a ferramenta Google Earth: Prainha, Ilha do Farol e Laguna de Araruama. Em alguns desses mapas, além de localização, constam informações das espécies, das condições naturais (correntes marinhas, ventos, estação do ano etc.) de suas ocorrências e também seus conflitos. 5 A PESCA DE ENCHOVA PELAS CANOAS DE LINHA (CANOAS MENORES) NA ILHA DO FRANCÊS Paulo Franco A pesca de canoas de linha na Ilha do Francês foi durante muitos anos, aliada a pescaria de rede, um braço for te da economia dos pescadores de Arraial do Cabo. Era praticada durante a noite por aproximadamente, 30canoas. A pescaria era tão certa, que tinha um turco em Cabo Frio chamado Samuel da Razão que perguntava a dona de casa se o seu marido pescava no Francês, que funcionava como uma garantia de pagamento de algum móvel ou utensílio adquirido. Depoimentos colhidos por Nicole e Rejane, estudantes do IFRJ e bolsistas da modalidade iniciação científica júnior do Projeto Ressurgência (Fundação COPPETEC, 2009. Apoio Programa Petrobrás Ambiental). 32 Figura 16: Mapa de Pesqueiro no Litoral de Arraial do Cabo Autor Marcelo Amaral. 3.2.5 Tecnologia de captura: modalidades, embarcações, instrumentos e inovações técnica Originalmente, a população cabista utilizava vegetação da restinga para aplicações tecnológicas na atividade pesqueira: conserto de embarcações, linha para pesca, tingimento de linha de pesca, carpintaria naval de embarcações artesanais, ferramentas para artesanato, látex utilizado na caça (Fonseca Kruel & Peixoto, 2004). Há várias décadas, as modalidades de pesca de captura dos pescadores artesanais de Arraial do Cabo passaram por inovações técnicas e tecnológicas com vistas a aumentar a produtividade, com redução dos esforços de pesca e com aumento da produção de pescado nos limites da sustentabilidade do ecossistema marinho da área da reserva. As inovações técnicas que se seguiram devem ter contribuído para a redução de esforços e maior conforto para o pescador em sua lida no mar, apesar de se 33 desconhecer alguma avaliação integrada sociotécnica e ambiental dessas mudanças em escala municipal. O projeto de criação da Resex-Mar AC introduziu um conceito “fixista” ou cronológico de tradição na pesca, sendo gerador de controvérsias entre pescadores e gestores até hoje. O pescador tradicional deveria ser nativo de Arraial do Cabo e utilizar técnicas tradicionais da pesca. Das modalidades de pesca exercidas na Resex-Mar de Arraial do Cabo, a pesca de arrasto de praia é considerada a mais tradicional. Além desta modalidade, poucos estudos sobre o conhecimento ecológico tradicional foram realizados. Modalidades O conhecimento tradicional da pesca é diferenciado e não aplicável a todas as modalidades da pesca artesanal, por relacionar-se ao tipo da pescaria. Elas costumam ser classificadas pelos pescadores de Arraial do Cabo em “costeiras” e “de mar aberto” (Brito, 1989). Para as primeiras, estão as pescas de arrasto de praia e de linha; e, para as segundas, as VIGIAS E MESTRES DE CANOA DE REDE Por Paulo Franco pescarias com botes de “boca aberta” com ou sem casarias e as traineiras, utilizadas Os Vigias e os Mestres de canoa de redes em pelos “de fora” ou “caringôs”. A seguir, as modalidades mais conhecidas: a) A pesca de arrasto de praia Arraial do Cabo são partes integrantes da companha da Canoa de Rede nas nossas praias. O Vigia é o responsável por localizar os cardumes e, através de sinais, com uma toalha na mão, orientar a companha para a realização do cerco (ou lanço) e com sinais característicos, indicava qual o tipo de peixe e a quantidade aproximada. O seu local de trabalho era sempre num ponto elevado para avistar melhor os cardumes. Com dia claro os vigias avistavam cardumes a uma distância de 5 quilômetros. Quando era vigia de praia (Praia Grande e Pontal) o seu sinal para o vigia do morro era correr na praia de baixo pra cima e vice-versa por várias vezes até ser notado. Esta modalidade de pesca consiste de uma rotação de canoas que arrastam redes de cerco de praia com 252 a 288 m de comprimento e 19,8 a 21,6 m de altura. A sua estrutura física contém os seguintes componentes (Silva, 2004; Diegues, 2007): Copo ou copio – parte central da rede, com malha miúda, formando um tipo de saco onde o cardume é concentrado depois de cercado; Encontros – partes laterais O Mestre é o responsável pelo comando da intermediárias; canoa, seguia as orientações do vigia durante a Mangas – partes laterais extremas, realização do cerco ao cardume, orientando os com malhas maiores do que as integrantes da companha pelas medidas e encontradas nos encontros; cuidados a serem tomadas a bordo. Alguns Forcadas ou calões – suportes de tipos de peixe, os remadores tinham que remar madeira que prendem as sem fazer barulho (perú) para não espantar o extremidades da rede aos cabos; cardume que estava sendo cercado (xareu, Cabos – são presos às forcadas e graçainha, ubarana e outros). servem para puxar a rede para a praia; Tralhas – cabos presos às partes superior e inferior da rede, onde as cortiças e as chumbadas são fixadas respectivamente. Essa rotação de canoas pode ser realizada de duas maneiras: a pesca de cerco e a pesca de lanço à fortuna. A pesca de cerco é feita mediante comunicação de um vigia situado em alguma parte elevada do relevo da costa para a orientação das manobras dos pescadores de canoa. O cardume é avaliado por ele em relação à dimensão e composição e orienta a operação da captura por meio de linguagem visual. A pesca de lanço à fortuna é feita sem a coordenação do vigia: o lanço é feito sem a identificação e locação do “manta” ou cardume. Principais espécies mais capturadas pelo cerco de praia são as seguintes o Bonito pintado 34 (Enthynnus alleteratus), a Serra (Sarda sarda), o Xaréu (Caranx hippos), a Tainha (Mugil liza) e o Cação galha preta (Carcharhinus maculipinnis). Figura 17:Pesca de Arrasto de Praia no Passado e no Presente Pesca de arrasto de praia em 1953 (Acervo da Colônia de Pescadores Z5 e, em 2009, pesca de arrasto de Praia Grande (Bruna f. Milhorance). A possibilidade de compra do direito à vez que é passado por herança levou a uma concentração de propriedade de canoas com poucos donos. Estes passam a ter o direito de pescar mais vezes do que o acordo formalmente estabelecido, chegando a possuir até 10 dos 42 lanços. Segundo a pesquisadora Pinto da Silva (2002), cerca de apenas 20% dos pescadores de Arraial do Cabo dependiam exclusivamente da renda gerada por essa modalidade de pesca, a maioria tinha outros empregos (Prefeitura, Álcalis) ou eram aposentados. Figura 18: A Importância do Ponto de Vista do Vigia para a Pesca Artesanal do Século XX. b) A pesca de cerco com traineira A pesca de traineira é distinta da pesca com canoa. Ela pode ficar no mar por vários dias com uma tripulação de 08 pescadores. Estes têm funções distintas daquelas existentes na pesca de canoas, com destaque para o mestre proeiro, o mecânico responsável pelo motor, o cozinheiro, entre outros. O sistema de pesca torna o custo Foto: Nicole Corrêa de Oliveira e muito elevado para os pescadores de Rejane Pereira Castro. canoa. Essa pesca é feita com uma rede entre 200 a 400 m de comprimento e abertura de malha igual a 13 mm, podendo ter o tamanho mínimo semelhante ou o dobro da rede de arrasto de praia. Com maior autonomia de mar do que as canoas, o cardume pode ser localizado e cercado com a traineira a uma distância maior da costa. A captura do cardume é 35 feita, primeiramente, lançando a rede com uma ponta presa a um caíco e a outra na traineira que faz uma trajetória circular em direção a esse mesmo caíco. Essa operação de pesca pode utilizar a ecossonda ou o conhecimento ecológico tradicional dos pescadores: durante o dia, a visualização da variação de nivelamento do mar ou pela “mancha”; à noite pela ardentia, o reflexo da bioluminescência, indicando o deslocamento dos peixes na água. As espécies mais capturadas são a Sardinha verdadeira (Sardinella brasiliensis), o Xerelete (Caranx latus), a Cavalinha (Scomber japonicus), o Bonito pintado (Enthynnus alleteratus), o Bonito listrado (Katsuwonus pelamis), a Serra (Sarda sarda), a Palombeta ou Folha-de-mangue (Chloroscombrus chrysurus), o Galo (Selene setapinnis) e a Tainha (Mugil liza). O uso de traineira na Resex-Mar AC tem sido ainda controvertido entre pescadores, por ela competir em condições desiguais com a pesca de canoas. c) Rede de armar A pesca com rede de armar é utilizada para pescar lula. Ela tem uma forma cônica com malha de 15 mm e altura de 3 m aproximadamente. Por meio de seu hasteamento rápido em uma das bordas da embarcação, a lula, atraída pela luz de lampião ou de lâmpada fluorescente, é capturada. d) Pesca de linha Para a pesca de linha, utilizam-se anzóis de número 14 e 15 para a noite e de 11 a 14 para mar agitado. Essa pesca é feita com embarcações bote “boca aberta” nos pesqueiros costeiros, podendo durar 48h com revezamento de pescadores a cada 12h. As iscas podem ser artificiais ou pedaços de peixe. As espécies mais capturadas são as seguintes: a Enchova (Pomatomus saltatrix), a Espada (Trichiurus lepturus), o Marimbá (Diplodus argenteus), o Olho de cão (Priacanthus arenatus), a Raquete (Aluterus monoceros), a Pitangola (Seriola fasciata), o Olhete (Seriola lalandi) e o Pargo (Pagrus pagrus). e) Pesca de espinhel Esta pesca, feita também com embarcações “boca aberta”, é realizada a 3 milhas da costa. O espinhel consiste de uma linha mestre com um conjunto de anzóis, sustentada por boias na superfície e esticada por pesos em suas extremidades. O comprimento dos espinhéis pode variar de 500 a 2.000 m com 150 a 500 anzóis, dependendo do tipo de coluna d‘água das espécies que se pretende capturar -“matar”, como dizem os pescadores: a) água de superfície – Dourado (Coryphaena hippurus); b) espinhel de meia água – imersão em 10 m de profundidade, captura de Espada (Trichiurus lepturus); c) espinhel de fundo – estabilizado no fundo do mar, serve para a captura de Namorado (Pseudopersis numida), Congro (Conger orbignyanus), Cherne (Epinephelus niveatus), Garoupa (Epinephelus guaza) e Corvina (Micropongonias furnieri). 36 A PESCARIA SECULAR DAS CANOAS DE REDE E DE LINHA, DE ARRAIAL DO CABO Por Paulo Franco As canoas de rede e de linha (como eram chamadas então) foram as grandes propulsoras da economia do Arraial do Cabo durante décadas. Presentes em todas as praias da nossa cidade, mantinham ocupados todos que se dignassem a seguir a pesca como profissão. Para se ter uma idéia de como eram importantes, só na Praia Grande tinham 56 canoas e hoje estão reduzidas de 10 a 15. Somando-se as canoas de todas as praias, chegava-se ao total de 80 canoas, aproximadamente. As redes eram feitas pelos próprios pescadores com um fio natural chamado de barbantinho de 3 cordões e um fio mais grosso para o cópio, (parte da rede onde os peixes juntavam). Com a raiz do “Muricy”, planta retirada da restinga, a rede era tingida antes de ser usada. O cabo, com o qual se puxava a rede era a “beta”, feita com o cipó-imbê, raiz de uma planta retirada da Restinga e do Morro da Cabocla e a cortiça que mantinha a rede boiada era feita com a raiz do Areticum, retirada da Restinga. Por estes exemplos, verificamos uma perfeita integração entre restinga, pescador e mar sem causar prejuízos ao meio ambiente, muito embora todos os materiais fossem retirados da natureza. O pescador era um ambientalista por natureza. A cada pescaria que realizava, a rede tinha que ser colocada ao sol para secar, pois se assim não fizesse, fatalmente apodreceria por ser feita com fios naturais. Cada praia seguia uma escala própria na organização dos dias pesca. Assim sendo, na Praia Grande pescavam 02 canoas por dia, sendo permitido às duas canoas que pescaram no dia anterior, se houvesse monção de boa pescaria, ficarem de sobreaviso. Por várias vezes, 3 a 4 canoas faziam o cerco num mesmo dia, face a quantidade de peixe, principalmente de Anchova. Há casos de vários lanços num só dia, totalizar mais de 20 mil Enchovas. f) Retinida Esta é modalidade de pesca característica da região para a captura de cação ou tubarão. A linha utilizada tem a espessura de 8mm com um anzol. Lança-se a linha para uma distância de 4 m da embarcação a partir de uma boia de sustentação. São utilizados para iscas pedaços de carnes de Dourado, Bonito, Serra ou Tainha . Logo após o cação ser fisgado, o pescador deixa que ele se abata até esgotar-se. Embarcações Apesar da falta de cadastramento, algumas pesquisas estimam que a frota pesqueira de Arraial do Cabo possua cerca de 550 embarcações de diferentes tipos. Essa diferença tipológica (Figura 00) se deve à modalidade de pesca, capacidade de número de pescadores e funções de cada um deles: canoa – pesca de arrasto de praia, 06 a 09 pescadores; bote boca aberta e meia casaria com motor de centro – pesca de linha, rede de armar e espinhel, com 02 a 03 pescadores; traineira com sondas, GPS e sonares – rede de cerco, com até 10 pescadores; caícos – pesca de linha nos costões e a pesca luminosa da lula, com 01 a 03 pescadores (Silva, 2004; ICMBio, 2009). Além da pesca, algumas das embarcações motorizadas, como a traineira e o bote boca aberta, são utilizadas em turismo náutico (passeio de barco, pesca esportiva). 37 Os critérios de tradição e artesanal adotados na Resex-Mar de AC para as embarcações ainda são controvertidos para parte dos pescadores e gestores. Alguns desses critérios são as suas dimensões de pequena escala (igual ou abaixo de 20 m comprimento) e a Figura 20: Canoa - Posições e Funções dos ausência de sistema de conservação Pescadores do pescado (Silva, 2004; IBAMA, 1994). do pescado (Silva, 2004; IBAMA, 1994). No projeto de criação da Resex, a modalidade considerada tradicional é, somente, a pesca de arrasto de praia, realizada por pescadores “cabistas” (originários de Arraial do Cabo) através de uma rotação de canoas - o sistema de direito de vez para lançar a rede. A utilização da canoa no mar para as pescarias se faz mediante a habilidade de uso de regras náuticas, obtidas pelo conhecimento acumulado, minimizando o esforço Foto: Bruna F. Milhorance físico. Cada pescador tem papéis específicos na canoa, tornando relevante o trabalho de equipe, ao contrário de uma atuação individualista, conforme estereótipo de pescador. Os papéis mais comuns são os seguintes associados com as posições na embarcação: mestre – trabalha na popa, proeiro – rema na proa, chumbeiro – responsável pelo chumbo e a trabalha, meeiro – rema no meio, ré – ao lado do chumbeiro, contra-ré- rema na ré e no meio da Figura 21: Bote “Boca Aberta” popa. Com relação às demais modalidades de pesca, há poucas informações e omissões sobre o conhecimento tradicional dos pescadores considerados “não cabistas” ou “caringôs”. Diegues (2007) chama atenção para o fato da pesca de traineira como também da pesca de linha com bote serem consideradas tradicionais em outros lugares, desde que haja participação do proprietário do barco na pescaria. Para o IBAMA (1994), o que caracteriza tradicional nessas embarcações é ausência de um sistema de conservação do pescado. Porém, para alguns pescadores, ainda não há consenso em relação às traineiras. 38 Instrumentos e Inovações Figura 22: Traineira e o Caíco em Pesca de Cerco. Estimadamente, há seis décadas os pescadores tradicionais de Arraial do Cabo tiveram acesso a novos materiais industrializados de plástico nas redes, o nylon na rede de cerco, na linha de pesca, nos cabos, nas tarrafas, substituindo paulatinamente a cortiça de raiz de areticum, a rede de fibra vegetal tingida com raiz de murici, as betas de cipó imbé e a tarrafa de tucum. Essa mudança propiciou adaptação do pescador Cabista a novos tipos Foto: Gustavo Fernando Chiappolini. de materiais de pesca, facilitando o seu modo de vida causado por um menor esforço tanto na confecção dos petrechos quanto a um aumento substancial na captura do pescado. Os petrechos utilizados na captura pelos pescadores são de baixo impacto ambiental, entre eles, destacam-se: rede de lanço (arrasto de praia), rede de lula ou rede de armar, linha de mão com anzol, currico, bate puxa, zangarejo, rapala, misanga, pargueira, balanço, espinhel (long-line), rede de traineira, puçá e Figura 23: Perfuração de Cortiça de Raiz de tarrafa. A pesca por mergulho “Areticum” por um Pescador submarina ainda que de pequena escala é realizada na área da Resex. Entre as principais espécies capturadas destacam-se: dourado (Caryphaena hipurrus), anchova (Potamus saltatrix), olhete (Seriola lalandi), pitangola (Seriola Fasciata), tainha (Mugil lisa), bonito cachorro (Auxis thazard), bonito pintado (Enthynnus alleteratus), cavala (Scomberomurus cavalla), xerelete (Carans latus), sardinha verdadeira (Sardinela brasiliensis), espada (Trichiurus lepturus), namorado (Pseudopercis numida) e cavalinha (Scomber japonicus), piruá/raquete (Aluterus monoceros) (Silva, 2004). Acervo Colônia de Pescadores Z5, 1953. 39 CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL – REDES E ISCAS Por Paulo Franco O Conhecimento Ecológico Tradicional tem por finalidade adicionar à moderna tecnologia, os conhecimentos das comunidades pesqueiras tradicionais no resgate da memória dos pescadores artesanais de Arraial do Cabo, aplicando-se ao moderno, o que de fato, era usado, sem causar qualquer tipo de danos ao meio ambiente. Entre os materiais usados na pesca artesanal de Arraial do Cabo - antes do uso do nylon e do plástico -, encontramos os diversos tipos de fios, linhas, cabos. bóias de redes e tingimentos, retirados da Restinga e do Morro da Cabocla. Apenas o fio para a confecção das redes usadas pelas canoas era comprado no Rio de Janeiro (de fibras naturais), assim distribuídos: Linhas de pesca: Primitivamente era usada a linha de tucum para a confecção de linhas de pesca de mão e de tarrafas. O vegetal usado era retirado da restinga e fiado pelas mulheres. Aos homens cabia a preparação da linha de mão, que eram torcidas no fuso e a confecção das tarrafas. Mais tarde passou a ser usada linha de algodão, “encascada” com aroeira para dar maior resistência e ter maior durabilidade Cabos para puxar a rede: Era usado o cipó-imbê para a confecção das betas. Retirado do Morro da Cabocla e da Restinga. Esse cipó era colocado ao sol por três dias, que tinha sua casca retirada e torcida em um engenho rústico que chamavam de carrinho, em pedaços de diversos tamanhos. A beta, alem da finalidade de puxar a rede, tinha a função de evitar que os peixes fugissem da rede, em virtude da sua coloração preta. Bóias para Rede: Era usada a cortiça retirada da raiz do areticum (ou araticum), existente na Restinga. Depois de alguns dias, era cortada em fatias e furadas com um ferro quente para posteriormente serem usadas nas redes de pescaria. Deixaram de ser usadas depois que surgiram as bóias de plástico e isopor. Raiz de Muricy: Era usada para tingir as redes confeccionadas com barbante de fibra natural. Essa planta é encontrada na Restinga e o seu uso, além de dar maior durabilidade a rede, tornava-a mais escura, evitando assim que os peixes de dentes cortantes (anchova, espada, etc) causassem maiores danos. Tem uma nódoa muito forte. O uso de iscas e iscas falsas existe até hoje e, existirá sempre. Porém, a moderna tecnologia se adequou ao que sempre foi usado pelos nossos ancestrais. Foram eles, que observando a maneira peculiar de cada tipo de peixe, passaram a usar barbantes, pedaços de pano e couro de animais para pescar alguns tipos de peixes que não pegavam em isca parada. Foi então inventado o “Currico”, que inicialmente era feito com couro de porco, de boi e até com o lábio superior de peixes grandes, preso a um anzol de pata, empatado com arame de aço. Quando algum pescador não tinha o material para o currico, mas estava com camisa branca, tirava um pedaço da mesma e usava para pescar anchova. Isso sempre acontecia! No passado foi também muito usado o cardeiro (cactus), que depois de retirado os espinhos, era preparado e preso à linha para atrair o peixe (geralmente o olho de boi) até a proximidade da pedra, que era arpoado com um tridente. Atualmente, o uso de iscas artificiais se tornou um fato corriqueiro. O currico de nylon é hoje o mais usado preso a um anzol de argola, enquanto que outros tipos de iscas (lula, camarão, etc.) são fabricados em silicone. Foi também usado largamente o sarambê para a pescaria de currico, sendo que este era usado pelos pescadores, na pedra. Quanto ao uso de isca parada, pouco mudou da forma tradicional de se pescar. Permanece o mesmo sistema, com os mesmos materiais, porém com algumas inovações, como o uso de bóias luminosas, as “pargueiras” feitas de miçangas para a pesca do xarelete e, recentemente, o uso de isca luminosa que 3.2.5sendo Regras, Partilha da Pesca e Comercialização está usada na pescaria de espada. Um fato marcante no surgimento de aparelhos alternativos de pesca foi da invenção do “zangarejo” para a pesca de lula que só em Arraial do Cabo tira do mar em torno mais de 100 toneladas de lulas por ano, beneficiando diretamente um elevado número de pescadores. 40 NOVAS TÉCNICAS Por Paulo Franco Muito embora já existissem desde os anos 40 e 50 barcos motorizados na pescaria, de propriedade de cabistas, como, por exemplo,o “filequinho” (barco de Hermes Barcellos) eo “carranca” (barco de Alberto Pinheiro, o betinho), os primeiros de Arraial do Cabo construídos em Cabo Frio.Os pescadores tradicionais tiveram que se adaptar as novas técnicas industrializadas introduzidas na pesca. Passou a usar o nylon na rede, na linha de pesca, nos cabos, enfim,em tudo que se relacionava com a pesca substituindo paulatinamente a rede de fibra vegetal tingida com a raiz do muricy, a tarrafa de tucum, as betas de cipó-imbé e a cortiça de raiz de areticum. Essa mudança tecnológica propiciou a adaptação do pescador cabista ao novo modelo de material de pesca. Figura 24: Reunião de Pescadores para a Partilha do Quinhão Acervo Colônia de Pescadores Z5, 1953. Os pescadores artesanais são usualmente tidos como desorganizados e individualistas e, no entanto, existem exemplos que mostram experiências de auto-organização informal na pesca. Em todas as modalidades de pesca de Arraial do Cabo, o acesso e o manejo dos recursos do mar são realizados mediante a aplicação de regras estabelecidas pela tradição e, também, pelas organizações atuais dos pescadores.. Para a distribuição do pescado capturado, há diferenças de sistemas de divisão da produção entre as modalidades de pesca. Na pesca de arrasto de praia, a divisão do produto é feita de partes ou “quinhão”, variando segundo a posição ocupada por cada pescador na pescaria (dono de rede, canoa, vigia, mestre, e demais pescadores. Também é feita a reserva do quinhão para fins religiosos e para não-pescadores que ajudam na puxada da rede. Com as traineiras, o sistema de divisão da produção ainda é do quinhão. Já a comercialização se distingue pelo volume capturado ser maior do que das canoas e maior parte das espécies capturadas não ser comercializada diretamente no local. Paulo franco O produto da pesca era dividido por 14 quinhões, sendo que cada pescador tinha 1 quinhão,a canoa 1 quinhão e a rede 4 quinhões e que algumas canoas ainda tiravam mais um quinhão para a festa de Santa Therezinha (na Praia Grande, Prainha e Pontal) e Nossa Senhora dos Remédios(Praia dos Anjos). Os peixes mais capturados eram: Enchova, Xareu, Bonito, Ubarana, Xarelete,Cavala, Sardinha e outros. Todas as canoas tinham nomes, mas várias deles tinham apelidos, por exemplo: Santa Fé era apelidada de Preta, que pescava no mesmo dia com a canoa denominada,Carvão. Não existia nenhum documento oficial que determinasse o dia da pesca de cada canoa. Era um tratado entre os pescadores que perdurou durante séculos, sem que ninguém, até a derrubada do “marco”, saísse um centímetro do acordo que existia entre os pescadores e donos de canoas. Os maiores donos de canoas era Antonio Teixeira, José de André, Guilhermino João Corrêa e outros.Abaixo, para ilustração, os nomes de algumas canoas e suas parceiras no dia a dia de pesca na Praia Grande: Mimica, Destreza, Bonito, Cachorro,Onça, Anita, Livremos, Encantada, Santo Antônio, São Pedro, Sereia, Coco, Veadinha, Galeão, Boa Sorte, Preta, Carvão, Rosinha e Caracatura, Veada e Varina, Marimbondo, Baronesa, Damiana, Estrela, Aliança e Relampago, Suco e Maceió, Galiota,Belém, Rombuda, Areia Quente, Pite, Russa, Bacurau, Alvoroço, Brilho, Imbiua, União e GaleâoPequena. 41 O PEIXE DESDE O INSTANTE EM QUE ERA PESCADO NA PRAIA ATÉ A SUA VENDA Paulo Franco Depois que a rede chegava na praia trazendo o resultado do “lanço”, separava-se o peixe para ser doado aos ajudantes. Do restante, era feito um leilão que depois de arrematado já sabia o valor de cada “cento” (100 peixes). Depois eram contados, e, conforme a qualidade do peixe, era inicialmente, embarcado nas embarcações de Fernando Barros que depois de gelado, era transportado para o mercado do Rio de Janeiro. Com a construção da estrada de rodagem passou a ser gelado em caixas de madeira e mandado para o Rio de Janeiro. Nesse caso se enquadravam a enchova, o xarele, o pitangola,o olete, etc. Quanto aos demais, xareu, bonito,tainha, cavalinha e até sardinha eram “escalados”na praia, lavados no mar e transportados por cavalos até os paióis onde eram salgados pelas “salgadeiras” e colocados em tanque de salmoura. Decorridos 5 dias, a salmoura era escorrida o peixe era novamente salgados (ressalgados)com sal moído, ensacados e levados para outros municípios em lombo de burros, chegando até Itaboraí, São Gonçalo e outros municípios. ALGUMAS DAS PRINCIPAIS ESPÉCIES CAPTURADAS POR PESCADORES ARTESANAIS DE ARRAIAL DO CABO. 1992 – 2002 ( * ) Pesca de Cerco com Traineira 42 Pesca de Arrasto de Praia Pesca de espinhel Pesca de Linha ( * ) Paulo José de Azevedo Silva. Responsável Técnico – Msc.Biólogo Marinho da FIPAC 43 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclusões Preliminares A importância do mar é atribuída à magnitude de seus serviços ecossistêmicos para o bem-estar das sociedades humanas, além de seu papel de regulação das bases biofísicas da existência do planeta. Entretanto, as sociedades urbano-industriais têm acarretado impactos severos nos ecossistemas marinhos e costeiros com ameaças de conseqüências negativas ao bem-estar das sociedades contemporâneas, principalmente, das populações tradicionais costeiras, que têm na pesca artesanal a sua fonte de segurança alimentar e reprodução social. Um novo naturalismo passa a refletir enfoques mais complexos para a conservação marinha sustentável. Ele postula que a natureza não pode ser mais entendida separadamente das sociedades humanas. Essa postura levou pesquisadores e gestores a reconsiderarem a compartimentalização ou especialização do conhecimento científico do mar. A ciência organizada por disciplinas ou conhecimentos compartimentados tem-se demonstrado ineficaz para explicar os fenômenos ecossistêmicos que não são analisáveis em partes mínimas isoladas. Ao contrário, tais fenômenos dos ecossistemas ocorrem nas interações estabelecidas por interconexões entre os seres marinhos e costeiros e entre eles e as atividades humanas. As áreas marinhas protegidas (AMP’s), que são uma das principais ferramentas para a conservação marinha, estão em desequilíbrio em relação ao número total de áreas protegidas no mundo e à magnitude do mar: o número de AMP’s corresponde a 1% e fica abaixo de 1% do total da abrangência dos oceanos. As novas diretrizes internacionais para superar esse desequilíbrio das AMP’s recomendam a associação do objetivo dessas áreas para a conservação da biodiversidade marinha com a gestão da pesca. Como parte da estratégia global de conservação da biodiversidade, as AMP’s passaram a ter como principal função a manutenção da produtividade dos estoques pesqueiros. A reserva extrativista marinha (Resexmar) é uma proposta brasileira inovadora de categoria de área marinha protegida de uso sustentável por pescadores artesanais, antecipando de certo modo, as diretrizes internacionais de associação da conservação da biodiversidade marinha e dos recursos pesqueiros. A Resexmar visa assegurar os meios de vida e a cultura de populações tradicionais costeiras por meio da gestão do uso sustentável dos recursos pesqueiros com a manutenção de sua biodiversidade. A falta de planos de manejo participativo em todas as Resexmar têm demonstrado maiores dificuldades para a sua efetiva implementação. Um dos principais fatores para essas dificuldades é a não consideração dos conhecimentos ecológicos tradicionais ou locais dos pescadores artesanais. A pesca artesanal tem a sua importância reconhecida por seus valores econômico, ambiental e social. Como atividade humana, o seu surgimento remonta a era paleolítica em período anterior ao surgimento da agricultura. Mesmo na falta de uma definição universal, essa atividade pode ser reconhecida por características comuns independentemente da geografia onde ela é praticada e da diversidade cultural. Ela é e exercida de modo autônomo para a subsistência e a comercialização do pescado excedente, com capturas multiespecíficas em águas rasas ou costeiras (no caso da pesca marinha) de acordo com a sazonalidade de cada espécie, não impactando, por isso, a cadeia alimentar das espécies, ajudando a manter e criar a biodiversidade marinha. Além de envolver mais de 90% de pescadores em todo o mundo, a sua produção total é quase equivalente à produção da pesca industrial. Apesar de representar a principal fonte de proteína animal para maiores parcelas das populações humanas nas zonas tropicais e dos países do hemisfério sul, a pesca artesanal goza de maior prestígio em alguns países industrializados das economias centrais, onde, por sua vez, a prroletarização dos 44 pescadores de pequena escala não chegou a ocorrer com alta intensidade, como nos países escandinavos e no Japão. A apropriação tradicional do espaço marinho pelos pescadores artesanais de Arraial do Cabo consiste em um conjunto de práticas culturais de intervenção no mar acumuladas secularmente cujas inovações técnicas são realizadas mediante adaptações às características e dinâmicas dos ecossistemas marinhos e costeiros, com vistas à reprodução social das comunidades de populações extrativistas costeiras tradicionais. O fato da pesca artesanal ser hoje no século XXI a mais antiga atividade de produção primária da região do município de Arraial do Cabo deve-se, em parte, à combinação de dois fatores: a ocorrência sazonal do fenômeno marinho da ressurgência junto à sua costa e a presença de uma população pesqueira tradicional cujo patrimônio de cultura imaterial de conhecimentos marítimos e habilidades de manejo remonta a milhares de anos. Os pescadores de Arraial do Cabo são detentores de amplos e diversificados conhecimentos tradicionais dos ecossistemas marinhos e costeiros, acumulados através de séculos por povos nativos que remontam a era pré-histórica, acrescidos com descendentes de outras etnias, a partir da colonização portuguesa. Tais conhecimentos constituem o que se define como conhecimentos ecológicos tradicionais ou locais (CET/CEL): um corpo de saberes acumulados e resultantes das interações dos pescadores com o mar, podendo ser ou não transmitidos para as futuras gerações. A iniciativa de criação da Resexmar de Arraial do Cabo com a finalidade de assegurar a conservação de uma rica e abundante biodiversidade marinha como fonte de manejo sustentável para pescadores artesanais da região reflete uma tendência contemporânea de ressurgimento da tradição para contrabalançar os excessos da modernidade, com seus efeitos deletérios nos ecossistemas marinhos, assim como na biosfera. Isso implica em aliar conhecimentos marítimos das populações tradicionais extrativistas das regiões costeiras, acumulados através de gerações com os conhecimentos das ciências do mar, envolvendo as ciências naturais e sociais. A implementação da Resexmar de Arraial do Cabo, entretanto, não chegou a ser efetivada. Os pescadores não a reconhecem como um instrumento de proteção dos recursos pesqueiros para a pesca artesanal e de valorização desta atividade. A interrupção no processo de elaboração do plano de manejo participativo iniciado em 2009 não teve continuidade com a criação do Conselho Deliberativo em 2010, refletindo resistências à incorporação dos conhecimentos ecológicos tradicionais dos pescadores. Desde a sua criação, a Resexmar não chegou a implementar um plano ou programa para a melhoria das condições da pesca artesanal: a otimização da cadeia produtiva da pesca artesanal (melhoria do sistema de comercialização, da infra-estrutura de desembarque e agregação de valor ao pescado), promoção do acesso aos direitos básicos do cidadão aos pescadores profissionais artesanais e às suas famílias, valorização da atividade como parte do patrimônio cultural da região. Questões para Reflexão Tendo em vista a efetiva implementação da Resexmar de Arraial do Cabo com suas implicações para o futuro do município, a análise comparativa de índices diferentes pode ser oportuna para uma reflexão. Escolhemos o PIB e do IDH6 e fizemos uma análise comparativa do município de Arraial do Cabo no contexto de todos os municípios fluminenses. A posição do município na comparação entre os seus índices de PIB e IDH é bastante alterada. No ranking dos 46 municípios com os maiores índices do PIB do PIB – Produto Interno Bruto: o resultado da soma em valores monetários de todos os bens e serviços produzidos por um município, uma região, um estado ou país; IDH – Índice de Desenvolvimento Humano: indicador do bem-estar da sociedade, enfatizando a distribuição e o acesso dos bens e serviços produzidos por uma dada sociedade. 6 45 Estado do Rio de Janeiro, Arraial do Cabo fica abaixo ddeles em um total de 92, sendo considerado um nível de arrecadação baixo. Mas, ao utilizar o IDH-M (médio), Arraial do Cabo passa para a 14ª posição com 0,790. E, ao especificarmos o IDH – Educação, ele alcança a 7ª posição com 0,912, deixando para trás a maioria dos municípios com o maior PIB estadual. Podemos deduzir que o município desenvolvido não é necessariamente aquele que tem arrecadação elevada, mas aquele que consegue aplicar os seus recursos disponíveis para o bem púbico mediante a anuência ou acordo de seus munícipes. Alguns estudos identificam tipos de barreiras e obstáculos à introdução do co-manejo das Reservas Extrativistas Marinhas/Costeiras, tais como: histórico de marginalização e vulnerabilidade extrema em que vivem os pescadores marítimos, relação das colônias de pescadores marcada pelo paternalismo, dependência dos intermediários da comercialização do pescado, descrença nos órgãos de governo. Esses entraves, porém, não seriam exclusivos da realidade marinha/costeira do Brasil. A inexperiência democrática brasileira tem raízes profundas e se estendem para o interior do país, bem longe do litoral. Os estudiosos da nossa formação histórico-cultural insistem que a feitura de nossa sociedade não foi uma obra de “nossas próprias mãos”, resultou da colonização, um processo de descoberta, sobretudo, uma empreitada de fins comerciais, e não de uma intenção civilizatória. O mutismo do homem foi o que teria predominado ou a não participação das soluções de problemas comuns. As leis foram criadas de cima para baixo, como ocorreu com a Constituição promulgada em 1988 pelo Congresso Nacional e não por uma Assembléia Constituinte. Enfim, a falta de participação na gestão da Resexmar de Arraial do Cabo tem implicações locais e que não foram consideradas pelo Estado brasileiro ao criar essa unidade de conservação em área exclusivamente em zona marinha. Recomendações Pretendemos com este presente livro, mais do que uma fonte de leitura sobre o papel dos conhecimentos ecológicos da pesca artesanal na conservação sustentável marinha, motivar seus leitores, principalmente aqueles inseridos no contexto de áreas marinhas protegidas, a elaborarem novos livros que reflitam outros pontos de vista correspondentes às percepções/interpretações das experiências de seus autores em suas realidades vividas. Para isso, consideramos o espaço escolar da educação básica o lugar privilegiado do ponto de vista institucional para a conscientização da importância dos conhecimentos tradicionais ou locais para a elaboração do plano de manejo participativo da Resexmar de Arraial do Cabo com base Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCN/MEC).Do ponto de vista institucional, a escola possui papel preponderante na formação de atores para mudanças de políticas públicas voltadas para assegurar uma maior distribuição do poder na gestão dos recursos naturais entre o Estado e os extrativistas das UC’s em zona costeiro-marinha. Tal instituição é o locus privilegiado para as relações de ensino-aprendizagem que se abrem para novas visões do mundo, novas práticas sociais e éticas contribuindo de sobremaneira para as ações estratégicas que visem suplantar a degradação dos ecossistemas com potenciais riscos irreversíveis, acompanhados pela exacerbação da pobreza, em especial de grupos sociais tradicionais. Para levar adiante a elaboração do plano de manejo participativo poderiam ser retomados os resultados do projeto “Apoio na Elaboração do Plano de Manejo Participativo da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo” do ICMBio/PNUD, realizado em 2009. Eles apontam para um conjunto ainda atual de lacunas de conhecimento e necessidades de aprofundamento da Resexmar AC identificadas através da literatura e/ou das atividades desenvolvidas em campo, demandas de beneficiários e usuários da Reserva e sugestões de programas de sustentabilidade com a finalidade de garantir a sustentabilidade da pesca artesanal, melhoria à qualidade de vida da população beneficiária e demais usuários de Arraial do Cabo. Deve-se juntar a essa retomada a 46 comunicação das resoluções do I Encontro Nacional das Reservas Extrativistas Marinhas, realizado em Bragança – PA, em outubro de 2009. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABURTO-OROPEZA, Octavio et al.. Mangroves in the Gulf of California increase fishery yields. PNAS July 25, 2008. ALARCON, Daniela Trigueirinho. Apoio na Elaboração do Plano de Manejo Participativo Fase 1 Da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo - RJ. 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Área Marinha Protegida: É um termo que se refere a um largo conjunto de regimes de proteção territorial em nível de zonas costeiras marinhas, com a definição de restrições à atividade humana de modo a proteger recursos biológicos, geológicos e culturais. Biodiversidade: Refere-se á variedade de vida no planeta terra, incluindo a variedade genética dentro das populações e espécies, da flora, da fauna, de fungos microscópicos e de microorganismos, ocorrentes nos habitats e ecossistemas formados pelos organismos. Atualmente, tende-se aceitar que a biodiversidade não é somente produto das interações naturais, mas também das interações humanas, com seus manejos florestais, marinhos, fluviais etc., mediadas e diferenciadas pela diversidade cultural. Co-manejo: O manejo consiste na extração de um recurso vivo ou renovável (floresta, caça, pesca etc.) para o atendimento de necessidades humanas. Se esse manejo mantiver o ciclo reprodutivo da espécie explorada, ele será considerado sustentável. O co-manejo refere-se ás regras de manejo acordadas ou compartilhadas ente extrativistas e o Estado e/ou entre grupos de extrativistas distintos. Conhecimento Ecológico Local: Tipo de conhecimento resultante de observações locais feitas por usuário dos recursos naturais, não sendo necessariamente transmitido através de gerações. Tem em comum com o conhecimento ecológico tradicional o fato de estar intrínseco ou embutido nas interações humanas com a natureza. Conhecimento Ecológico Tradicional: Conjunto cumulativo de saberes, crenças e práticas de uso dos recursos naturais gerado por populações tradicionais ao longo dos séculos e transferido de geração a geração. Conservação: Contempla o compromisso de preservação da natureza de forma associada ao ser humano. Conservação Convencional: Visa à preservação de fragmentos ou ilhas de natureza genuinamente pura ou intocada por meio de seu isolamento da ameaça da presença humana. Conservação Sustentável: Admite a proteção fragmentada da natureza autêntica e a destinação das demais áreas à atividade produtiva diversa, mantendo um equilíbrio entre recursos naturais e necessidades humanas. Ecodesenvolvimento: É um enfoque de planejamento e gestão com base na pesquisa social e ecológica de orientação transdisciplinar que inclui a satisfação de necessidades fundamentais (materiais e imateriais) das populações humanas, equidade, autoconfiança (selfreliance), prudência ecológica e uma economia negociada ajustada tanto às aspirações dos cidadãos quanto às potencialidades e restrições ambientais, assegurando para isso a participação de todos os envolvidos. Ecossistema: É o conjunto formado por interconexões entre fatores bióticos (animais, vegetais, bactérias), abióticos (água, sol, solo, gelo, vento, fases da lua, marés) e anttrópicos (ações humanas). Apesar de protegidos pela cultura e tecnologia, os seres humanos são dependentes dos serviços fornecidos pelos ecossistemas para o seu próprio bem-estar: 50 provisão (alimento, água, fibras), regulação (clima, inundações, doenças), cultural (lazer, espiritual, estético) e suporte (formação do solo, fotossíntese, ciclo de nutrientes). O conjunto de todos os ecossistemas do planeta constitui a biosfera. Instituição: Refere=se à capacidade dos grupos sociais para a elaboração de regras, convenções e mecanismos de uso dos recursos naturais, elementos mediadores das interações das sociedades humanas com a natureza. Mariitimidade: Conceito referente ao mar não restrito às suas propriedades físicas, químicas e biológicas e nem excludente da presença humana, mas centrado nas atividades marítimas, isto é, nas intervenções humanas no mar (pesca, navegação, pesquisa, lazer, esporte náutico etc.) em suas dimensões históricas, culturais, sociais, econômicas, tecnológicas e simbólicas. Modernidade: Representação ou visão de mundo que dá sentido à experiência humana de modo diferenciado da tradição. Neste livro, optou-se pelo seu significado etimológico e não cronológico. Para este, a modernidade seria algo do presente em oposição à Tradição como algo do passado. Já, segundo a etimologia, moderno da raiz indo-européia modernus significa um ato inicial ou fundador, que busca restabelecer a objetividade da experiência, perdida pela herança embotada pelo hábito e pela rotina. O tempo para o pensamento moderno é linear. Pesca Artesanal: Esta é uma pesca de pequena escala para fins de subsistência de famílias de regiões costeiras e de águas continentais, com de tecnologia (regras, apetrechos, iscas, linhas, redes etc.) de baixo impacto no meio ambiente, desenvolvida pelos pescadores com base em conhecimento ecológico tradicional. Pesca de Pequena Escala: Sem uma definição universal, o nome é usado às vezes como sinônimo de tradicional, artesanal, costeira. Há consenso entre vários autores que, apesar da definição de tal modalidade de pesca variar de acordo com a localidade e a sociedade onde ela é praticada, algumas características comuns podem ser reconhecidas: atividade de captura realizada em águas rasas de múltiplas espécies-alvos, para fins de subsistência prioritariamente e de comercialização do pescado excedente, com uma variedade grande variedade de artes ou tecnologia de pesca. No mundo, ela envolve mais de 90% dos pescadores profissionais e chega a ser responsável pela metade da produção de pescado em comparação com a pesca de grande escala ou industrial. Pesca Costeira: É uma pesca marinha realizada em águas costeiras, com embarcações com padrão abaixo de 10 toneladas de arqueada bruta (TAB), para fins de subsistência das famílias dos pescadores. Ela está bem definida e estabelecida no Japão. Preservação: Compreende a proteção integral da natureza, independentemente do interesse utilitário e do valor econômico que possa conter. Plano de Manejo Participativo: É o documento estruturante de uma Unidade de Conservação, elaborado com a população tradicional extrativista da Unidade. Ele contém as definições de seus seguintes elementos: a sua estrutura física e de administração, o zoneamento, as normas de uso da área e de manejo dos recursos naturais e programas de sustentabilidade ambiental e sócio-econômica. População tradicional: Refere-se a grupos que possuem formas próprias de organização social e se utilizam de territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica. Para isso, fazem usos de conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. Reserva Extrativista Marinha: Categoria de manejo de unidade de conservação criada para assegurar espaços territoriais destinados ao uso sustentável dos recursos pesqueiros e ao modo de vida tradicional de populações moradoras em zonas costeiras. 51 Ressurgência: Originária do termo inglês upwelling, significa vir á superfície ou ainda, ressurgir, aflorar. É um fenômeno oceanográfico que consiste na subida de águas profundas, muitas vezes ricas em nutrientes, para regiões menos profundas dos oceanos, fertilizando as águas superficiais e criando uma rica cadeia alimentar. As regiões mais importantes do mundo onde ocorre a ressurgência são: ao largo da Mauritânia e da Namíbia no Oceano Atlântico e na Califórnia e ao largo do Chile e do Peru no Oceano Pacífico. No sudeste brasileiro ocorre mais precisamente em Arraial do Cabo. Tecnologia: No contexto deste livro, o conceito de tecnologia refere-se ao projeto de práticas sociais por meio de artefatos, não se encerrando, portanto, em artefatos físicos somente. Ela é conhecimento aplicado, isto é, um “saber-fazer”, união teoria-prática ou conhecimento-ação. Toda tecnologia consistiria, portanto, de artefatos físicos e simbólicos com propriedades cognitivas (conceitos, teorias) e normativas (regras, modos de fazer) com duas funções complementares: econômica - atendimento à satisfação das necessidades materiais e imateriais das sociedades; criativa – a capacidade de transformação dos objetos em artefatos. Essa visão afasta-se da noção do senso comum da tecnologia entendida como o projeto e utilização de técnicas e instrumentos, com base em conhecimento aplicado para fins práticos. A noção de tecnologia como um projeto de práticas sociais por meio de artefatos retoma o significado etimológico do grego téchne - a transformação da realidade natural em uma realidade construída para fins de subsistência e proteção do ser humano, com base na natureza inteligente do homem. Tradição: Representação ou visão de mundo diferenciada da Modernidade. De acordo com a sua etimologia, tradição do verbo latino tradere significa dar ou transmitir algo para o outro. Para a mentalidade tradicional, o tempo se move em círculo, em um retorno permanente, assim como os dias e as noites, o movimento dos astros, as marés, a reprodução das espécies etc. A experiência humana não é separada da natureza e o seu sentido é gerado pela herança coletiva ou de uma comunidade. Turismo: Fenômeno social complexo, que envolve o deslocamento voluntário e temporário de indivíduos ou grupos de pessoas por motivos de lazer, gerando múltiplas inter-relações de importância social, econômica, ambiental, cultural e política. Turismo de Base Comunitária: Iniciativa alternativa de turismo promovida e gerida por populações locais, que prestam serviços receptivos por meio de pequenos empreendimentos, baseados em geral no associativismo, solidariedade e cooperação; gerando oportunidades de trabalho, renda e benefícios sociais e fortalecendo as demandas práticas produtivas de subsistência, como a pesca, artesanato; além de ser uma estratégia de sobrevivência na luta por direitos a terra contra grandes empreendedores da indústria turística, que abusam do poder econômico e tentam ocupar seu território e ameaçar o modo de vida local, em nome do turismo. 52 ANEXO: DIRETRIZES PARA ATIVIDADES PEDAGÓGICAS As atividades que se seguem constituem um conjunto de procedimentos ou técnicas de leitura dinâmica do livro “Conhecimentos Tradicionais da Pesca Artesanal para a Conservação Sustentável” a ser aplicada em atividades formativas de ensino médio ou técnico e de capacitação técnica de gestores da conservação sustentável marinha. Essas atividades de leitura têm por objetivo propiciar aos educandos uma leitura interdisciplinar e contextualizadora do tema gerador do livro, orientando-os a buscar contribuições das diferentes disciplinas escolares e dos conhecimentos marítimos acumulados de sua realidade local. No contexto escolar, as atividades de leitura da conservação marinha propostas devem consistir da parte diversificada do currículo destinada a atender às características regionais e locais do aluno, complementando a Base Nacional Comum, em conformidade com as diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCN/MEC). E, no contexto da gestão da conservação marinha, tanto o livro quanto as atividades de leitura propostas poderão integrar programas de cursos e oficinas de pesquisa e planejamento de áreas marinhas protegidas. Em todos esses casos, é fundamental o apoio didático-pedagógico interdisciplinar ao educando realizado por meio do diálogo entre professores e facilitadores das disciplinas das seguintes áreas de conhecimentos PCN/MEC – Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias. Cabe ressaltar as noções de texto e leitura que norteiam as atividades propostas. O texto, ao contrário do senso comum de vê-lo como uma unidade estática de “representação” da realidade, é uma unidade verbal constituída dinamizada por um conjunto de instruções linguísticas compartilhadas pelo autor com vistas a levar o leitor a apreender o mundo sob um determinado prisma ou “ponto de vista” (crença, ideologia). A leitura é uma atividade de atualização do texto pelo leitor, no caso os educandos, através da mobilização de novos contextos, atribuindo, assim, novos sentidos a ele. ATIVIDADES DE LEITURA PROATIVA As atividades de leitura do livro compreendem três etapas: Compreensão do Texto, Focalização e Contextualização. A primeira refere-se à interpretação proposta pelos autores do livro, isto é, as contribuições dos conhecimentos tradicionais da pesca artesanal para a conservação sustentável dos mares e oceanos. A segunda consiste na adequação da abordagem do tema às situações de interação social por meio de resenhas, propondo, assim, novas leituras. Por último, a contextualização, a inserção da leitura do texto na realidade dos educandos. Por meio dessas atividades, o leitor deixa de ter uma posição passiva, sendo obrigado a aceitar ou não o que lhe é transmitido pelo texto, e passa a ser proativo ou um coprodutor de significados ao apropriar-se do texto para diferentes situações de sua vida social. 1. Compreensão do Texto a) (Re) elaboração de Glossário O glossário tem por objetivo explicitar a significação de palavras dada pelo seu contexto, isto é, o texto em que estão inseridas mais a interação social em que ele é utilizado. A primeira atividade proposta aos educandos consiste na seleção de palavras do texto com significação pouca explícita e na descrição de seus significados adequados ao contexto. Poderá também, se julgar necessário, reescrever os significados das palavras do glossário do livro para fins de melhor compreensão para o grupo, fazendo para isso a substituição de nomes e/ou verbos por sinônimos e a alteração da estrutura das frases. b) Compreensão de Texto 53 Com base na leitura do livro, o educando deverá em pequenos grupos de estudo responder as seguintes perguntas relacionadas aos tópicos do livro: O MAR: IMPORTÂNCIA, VULNERABILIDADE E CONSERVAÇÃO a) Qual a Importância do mar? Quais as suas principais demandas de Proteção? Indique casos de impactos antropogênicos e eventos extremos no mar, semelhantes aos do texto. b) Que avanços notáveis e que problemas para as sociedades humanas trouxe a fragmentação dos conhecimentos do mar pela Ciência Moderna? E quais as suas limitações pra enfrentálos? Quais as diferenças de percepção do mar entre os cientistas naturais e sociais? c) A conservação ecológica deveria proteger os “pedaços” que haviam sobrado da destruição da natureza feita pelo progresso industrial. Que “pedaços” seriam estes? Quais diferenças entre conservação convencional e sustentável? AS ÁREAS MARINHAS PROTEGIDAS E A PESCA ARTESANAL: NOVAS DIRETRIZES E ASPECTOS COGNITIVOS a) Qual o objetivo comum das Áreas Marinhas Protegidas? Qual o desequilíbrio que estaria ocorrendo com elas? O que propõem para as AMP’s as novas diretrizes internacionais da Convenção da Diversidade Biológica? b)Qual é a inovação para as categorias de área protegida contida na proposta brasileira de “reserva extrativista marinha”? c) Quais os dados que demonstram a importância socioeconômica da pesca artesanal na atualidade? Porque ela também é vista como uma atividade de baixo impacto no meio ambiente aquático ou sustentável? d) Como foram – e são - gerados os conhecimentos marítimos acumulados? e) O que são conhecimentos ecológicos tradicionais dos pescadores artesanais? Como são gerados? Dê exemplo. f) Relacione as experiências indicadas de uso do CET na gestão de suas respectivas Áreas Marinhas Protegidas. APROPRIAÇÃO TRADICIONAL DO MAR NA RESERVA EXTRATIVISTA DE ARRAIAL DO CABO a) A criação da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo: Qual a principal necessidade para a sua criação? Qual principal objetivo da Resexmar de Arraial do Cabo? Como foi esse processo? Em que a introdução do conceito de tradição teria provocado o aumento dos conflitos? Quais os principais desafios hoje? b) Que conhecimento amplo tem os pescadores artesanais de Arraial do Cabo? Em que o fenômeno da “ressurgência” beneficia a pesca artesanal da região? Dê algum exemplo da tecnologia tradicional da pesca (materiais, modalidade de pesca, instrumentos de captura, organização da produção). 3.3 O que é “apropriação tradicional do mar”? Destaque alguns aspectos da interação dos pescadores artesanais de Arraial do Cabo que caracterizam a apropriação tradicional do ambiente marítimo. 54 2. Redação de Resenha A resenha consiste em um tipo de texto resumido para a divulgação de um produto ou serviço cultural (filmes, livros, músicas, teatro etc.). No caso de um livro, trata-se de sua apresentação para futuros leitores, resumindo o seu conteúdo com aspectos que seriam relevantes ou não para eles. Cada educando deverá redigir 3 resenhas sobre o livro de, no máximo, 2 páginas cada, ajustando o texto para três situações de interação social indicadas abaixo: a) Apresentação do livro para a sua comunidade escolar ou para membros de um conselho de área marinha protegida. b) Sensibilização da opinião pública para alguns temas destacados pelo livro. c) Propor alguma discussão suscitada pelo livro. 3. Contextualização Nesta etapa, o educando deverá associar a temática do livro à sua realidade vivida em contextos socioambientais de áreas marinhas protegidas. Para isso, caberá ao educando realizar as seguintes tarefas: 1o. Formação de grupo de pesquisa interdisciplinar. 2o. Elaboração de plano da pesquisa exploratória, com a previsão seleção de textos sobre a temática para a leitura e a excursão a uma área marinha e/ou costeira protegida de seu município ou região. 3o. Elaboração de resumos dos textos selecionados 4o. Participação na excursão à área marinha e/ou costeira protegida. 5o. Redação de relatório da pesquisa, incluindo a leitura dos textos e a excursão realizada. 6o. Comunicação da pesquisa em evento da sua escola com tema correlacionado.