Poesia Reunida, Maria do Rosário Pedreira, Ed. Quetzal (Poesia

Transcrição

Poesia Reunida, Maria do Rosário Pedreira, Ed. Quetzal (Poesia
1
Poesia Reunida, Maria do Rosário Pedreira, Ed. Quetzal (Poesia)
Categoria – Poesia
Grau de Dificuldade - 3
Maria do Rosário Pedreira - nasceu em 1959 em Lisboa. É autora de ficção, poesia,
crónicas e literatura juvenil, procurando neste último género a transmissão de valores
humanos e culturais. É, também, editora e licenciada em Línguas e Literaturas
Modernas, na variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Universidade de Lisboa.
Foi professora de Português e Francês (durante cinco anos), actividade que a
influenciou decisivamente a escrever para um público jovem.
Na sua Poesia preocupa-se em evocar a casa, o lugar íntimo, com tudo o que perdura,
nas memórias e nos sentimentos nostálgicos.
Texto a ler
O Gato Lembra-se
O gato lembra-se de ti nos intervalos. Espera
De olhos acesos as histórias que nos contas.
Passeia-se inquieto sobre o meu parapeito e eriça
O pêlo, cúmplice, quando pressente que regressas.
Chegas sempre de noite. Sei quem és e ao que vens
e ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado,
as sombras das traseiras na minha pele, o tempo
de repetir um gesto inevitável. Ouço-te contar
a mesma lenda com lábios sempre novos. Aprendo-a
e esqueço-a. Nunca a saberemos de cor, o gato ou eu.
Depois partes. Levas contigo a tua voz, mas a música
fica. Eu fecho as portadas devagar. O gato mia baixo
à janela. Ninguém acena: guardamos com os outros
o segredo das tuas visitas. Ambos. O gato e eu.
2
Peregrinação, Fernão Mendes Pinto, versão para português atual, ed. Relógio D'Água
Texto a Ler: Primeiras páginas
Categoria – Prosa. Texto autobiográfico narrativo
Grau de Dificuldade - 4
Fernão Mendes Pinto nasceu cerca de 1510, em Montemor-o-Velho. Veio para Lisboa
e acabou por partir para o Oriente em 1537. Foi um grande viajante, muitas vezes
encarregado de missões diplomáticas em países asiáticos e africanos. No Japão
conheceu S. Francisco Xavier de quem se tornou amigo. Em Goa, entregou toda a sua
fortuna aos pobres e à Companhia de Jesus, na qual ingressou como irmão leigo, para
sair três anos depois. Regressou finalmente a Lisboa em 1558 e retirou-se, com a sua
jovem mulher, trinta anos mais nova, para a sua quinta no Pragal, perto de Almada,
onde se entregou à escrita de Peregrinação, relato das suas aventuras e desventuras.
Em 1583, o então rei Filipe II concedeu-lhe uma tença mas o escritor morreu no
mesmo ano. Peregrinação é um dos textos mais importantes da Literatura portuguesa,
uma vez que dá uma clara e alargada ideia da vida de um homem corajoso e
aventureiro, em pleno século XVI.
Texto a ler
1
Do que passei em minha
Mocidade neste reino
até que me embarquei para a Índia
Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos
e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha
primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da
minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura
que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguirme e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande
nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me pôr na
minha Pátria logo no começo da minha mocidade, em tal estado que
nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns
sobressaltos e perigos de vida, me quis também levar às partes da
Índia, onde em lugar de remédio que eu ia buscar a elas, me foram
crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado,
quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis
Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que tenho
tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanto tenho
de lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a
vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por
herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção
escrevê-la) para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da
vida que passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes
cativo e dezassete vendido, nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz,
China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele
oriental arquipélago dos confins da Ásia, a que os escritores chamam
chins, siameses, guéus, léquios, chamam em sua geografia a pestana
do mundo, como ao adiante espero tratar muito particular e muito
amplamente.
3
A Bagagem do Viajante - Crónicas, José Saramago. ed. Caminho
Texto a Ler - Elogio da couve portuguesa, pág. 51
Categoria – Prosa
Grau de Dificuldade - 3
José Saramago - 1922- 2010 - Foi um escritor, argumentista, teatrólogo, ensaísta,
jornalista, contista, romancista e poeta português. Se é verdade que é conhecido como
o único português, até hoje, que ganhou um Prémio Nobel da Literatura (1998), a
verdade é que a importância da obra de Saramago não se fica por aí. A sua escrita
inovadora, os múltiplos géneros literários que dominou, a sua obra prolífera fazem
dele um marco da nossa literatura. Apesar de ter começado a escrever aos 25 anos,
em 1947, passou outros trinta até voltar à escrita e só conheceu o sucesso merecido
com "O Memorial do Convento" publicado em 1982.
A Bagagem do Viajante foi publicado em 1973. Trata-se de um conjunto de crónicas
que apareceram no jornal a Capital.
Texto a ler
"A notícia correu o país inteiro, provocando o frémito das grandes ocasiões
patrióticas: uma couve portuguesa plantada na Austrália atingiu 2,40
metros de altura (por extenso e para não haver dúvidas: dois metros e
quarenta centímetros) - e continua a crescer. Sob céus e climas estranhos,
rodeada de cangurus, ameaçada certamente pelas tribos primitivas do
interior, ao alcance do terrível boomerang, a couve portuguesa dá uma
lição de constância e de fidelidade às origens, ao mesmo tempo que
mostra ao mundo as nossas raras qualidades de adaptação, o nosso
universalismo, a nossa vocação de grandes viajantes. E continua a crescer.
Nos tempos de antigamente, as naus levavam nos porões rangentes e
cheirosos de pinho aqueles marcos de pedra que tinham gravadas as
armas de Portugal e que representavam sinal de posse e senhorio. Era
obra pesada, dura de trabalhar, difícil de mover e implantar. Hoje, já com
todos os caminhos marítimos abertos, basta ao simples emigrante deitar
mão ao saquinho de pano-cru, retirar umas tantas sementes, lançá-las à
terra e, em menos de uma ano, apresenta ao mundo maravilhado, um
couval que mais parece uma floresta. Faz a sua diferença. O leitor que
tenha retido destas crónicas um certo tom doce-amargo, que é ironia e
negação dela, pensará que eu estou brincando com coisas sérias ou que
como tal são consideradas. Pois não estou, não senhor. O emigrante de
quem falo tem hoje setenta e dois anos, emigrou aos cinquenta e quatro, e
andou com as sementes no bolso durante dezassete anos - à espera de um
quintal para as semear. Se isto não é dramático, não sei onde será hoje
possível encontrar o drama. Durante dezassete anos, as sementes
esperaram pacientemente a sua hora, o quintal prometido, a terra
fertilíssima. Entretanto, o nosso compatriota, cada vez mais cansado, cada
vez mais velho, mas sempre esperançoso, percorria a Austrália de ponta a
ponta, cruzava os desertos, rondava os portos de mar, penetrava nas
grandes cidades, inquiria do preço dos terrenos, numa busca ansiosa. Aos
marinheiros do Gama deu Camões a Ilha dos Amores e o Canto Nono; este
viajante português do século XX declara-se feliz, realizado, pleno, quando,
de metro em punho, com os pés na regueira fresca, bate o recorde de
altura da couve e comunica o feito às agências de informação.
Convenhamos, amigos, que só um coração empedernido se não deixaria
mover a uma lágrima de enternecimento. ( …)"
4
O Físico Prodigioso, Jorge de Sena, Ed. Edições 70
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 3
Jorge de Sena, 1919 — 1978 - poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, que
se exilou primeiro no Brasil e depois nos EUA onde deu aulas na Universidade da
Califórnia, em Santa Bárbara.
O Físico Prodigioso conta uma história fantástica de um jovem que faz um pacto
com o diabo, oferecendo-lhe o corpo em troca de vários poderes. Na posse destes
poderes viaja de castelo em castelo, ajudando damas doentes. Um dia, à beira de
um rio onde toma banho (excerto a ler) aparecem três jovens que o levam à
rainha. Para saber mais, é preciso ler até ao fim.
(Atenção: é um conto erótico.)
Texto a ler
"Balanceando o erecto corpo ao passo do cavalo, vinha descendo a
encosta. O sol, muito alto ainda, iluminava de crepitações o vale que,
selvático, se abria ante o seu olhar que pervagava abstracto, sem
distinguir o mato que floria, as pedras que rebrilhavam pardas e
cinzentas, os pequenos animais que esvoaçavam, corriam, rastejavam,
ou se ficavam suspensos, sem temor, fitando a mole imensa e
caminhante de cavalo e cavaleiro. No fundo do vale, por entre os
renques de choupos e salgueiros, entrecortada estava a chapa metálica
e estreita de um rio. Foram para ele descendo, o cavaleiro, na mesma
distracção absorta, sofreando o passo, que se apressava agora, do
sedento cavalo, cujas narinas se dilatavam. O manso ruído de águas
entre seixos e o suave dançar das folhas do arvoredo ao sopro de uma
brisa ténue fizeram que o cavaleiro despertasse para o calor que sentia,
o cheiro acre de suor e pó, que dele e do cavalo era mistura, e um
cansaço dos membros e da boca seca. Ele próprio dirigia a descida,
buscando com os olhos uma sombra que estivesse à beira de onde o rio
corresse mais límpido e profundo. E o seu olhar, agora, já não
pervagava, mas fito e dardejante perscrutava os recantos marginais do
rio, que na verdade pareciam desertos; e os ouvidos, igualmente
atentos, habituados a acompanhar os olhos em tais pesquisas, também
não distinguiam, sob o arrulhar das águas e o restolhar macio do
arvoredo, qualquer ruído que humano fosse. Respirou fundo, no
antegosto do banho prolongado, e do repouso à sombra. Depois cearia
e dormiria até de madrugada, quando as aves e o frio do alvorecer o
acordariam para continuar o caminho. Para onde? (…)"
5
Histórias da Terra e do Mar, Sophia de Mello Breyner Andresen, ed. Assírio e
Alvim
Texto a Ler: A Gata Borralheira
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 3
Sophia de Mello Breyner Andresen – 1919 – 2004. Uma das maiores escritoras de
Língua Portuguesa, contista, romancista e poeta. Na sua magnífica escrita
combinam-se a fantasia e a realidade, o sonho e a imaginação. Há sempre muita
coisa para pensar quando se lê Sophia.
A Gata Borralheira - relata tudo o que acontece a Lúcia: não tem uma vida fácil e
aceita ir a uma festa com um vestido que detesta e que era da sua tia e uns sapatos
velhos demasiado grandes. No baile é desprezada, olhada de lado e sente-se feia.
No entanto, alguém lhe mostra que os espelhos podem enganar e que tudo pode
ser visto de maneiras diferentes. É a velha historia da "Gata Borralheira" com um
final bem diferente e actual. Atenção: a escolha de Lúcia não será a mais feliz.
.
Texto a ler
História da Gata Borralheira, (pgs. 19 a 24)
"(…)Como uma rapariga descalça a noite, caminhava leve e lenta sobre a relva do
jardim. Era uma jovem noite de Junho, a primeira noite de Junho. E debruçada sobre o
tanque redondo ela mirava extasiadamente o reflexo do seu rosto.
Do jardim via-se a casa, uma casa grande cor-de-rosa e antiga que, toda iluminada
nessa noite de festa, espalhava no jardim luzes, brilhos, risos, música e vozes. A luz
recortava o buxo dos canteiros e a música misturava-se com o baloiçar das árvores.(…)
Lúcia tinha dezoito anos e era este o seu primeiro baile. Tinha vindo com a tia que
era sua madrinha.
Seguida por Lúcia, a tia atravessou a grande entrada iluminada e, com os brincos a
tilintar, avançou para os donos da casa que estavam de pé à porta da primeira sala.
Falaram-se e beijaram-se e, enquanto se falavam e beijavam, Lúcia, um pouco
entontecida por tantas caras desconhecidas e tantos vestidos de tantas cores e pela
profusão de vozes e flores e luzes e perfumes, tudo para ela confusamente próximo
demais e acumulado demais, só pôde ver que o vestido da dona da casa era azul e que
a cara do dono da casa era encarnada, amável como uma maçã polida.
- Esta é a minha sobrinha Lúcia. É filha do meu primo Pedro – disse a tia.
A dona da casa sorriu com um ar um pouco ausente, beijou Lúcia e respondeu:
- Conheci muito bem o seu Pai. Mas há muito tempo que não o vejo.
- Ah, é a filha do Pedro – exclamou o dono da casa com ar caloroso.
E reafirmou:
- Conhecemos muito bem o seu Pai. Ainda é meu parente, como está ele?
- Agora está bem, muito obrigada. Mas este Inverno esteve doente.
- Doente? Mas que maçada! – comentou o dono da casa, já distraído de Lúcia e
sorrindo a outros convidados que chegavam.
A dona da casa chamou a sua filha que sorriu, deu um beijo a Lúcia e a levou para a
sala de baile.(…)"