O material didático atual para viola da gamba

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O material didático atual para viola da gamba
1
O material didático atual para viola da gamba
Uma pesquisa na área da pedagogia musical aplicada ao instrumento histórico
na Alemanha
Liana Pereira1
Resumo:
Esse artigo é um excerto extraído do Projeto de Doutorado na categoria Pedagogia Musical
(Musikpädagogik) sob o título „Método para Viola da Gamba: uma Evaluação sobre fontes
na Alemanha e suas aplicações em um Método Instrumental contemporâneo para Jovens”2.
Nos últimos 10 anos foram publicados alguns métodos para o aprendizado da Viola da
gamba. Em contrapartida, esses trabalhos abordam escassamente elementos essenciais
pesquisados na atualidade da área pedagógica, no que diz respeito à metodologia.
A consequência disso para os professores é a dificuldade em agregar a literatura pedagógica
disponível num contexto de aula instrumental moderno em sua teoria e prática.
Em meu projeto serão ao lado dos parâmetros musicais, influências e aspectos das pesquisas
das ciências do Esporte, da Psicologia e Pedagogia e as possíveis aplicações no contexto
pedagógico instrumental.
Os objetivos desse trabalho são: provar a incoerência existente entre a Literatura
desatualizada que emoldura o processo pedagógico na prática de aula e também, através de
uma pesquisa qualitativa com o tema „Método para Viola da Gamba: uma Evaluação sobre
fontes na Alemanha e suas aplicações em um Método Instrumental contemporâneo para
Jovens“ sugerir um novo caminho interdisciplinar, compondo uma Literatura para as aulas
de instrumento nas instituições alemãs, podendo se aplicada também internacionalmente.
1
Liana Pereira (1981, Jundiaí/SP) possuiu graduação em Música (Bracharelado) pela Universidade de São Paulo,
Diplom Orchestermusikerin (Diploma músico de orquestra), Diplom Musikpädagogin (Diploma em pedagogia
musical), Zusatsqualifikationen Historische Aufführungspraxis (especialização em interpretação histórica) e
Master of Music (Instrumentos históricos, Viola da gamba) pela Hochschule für Musik Nürnberg. Atualmente
trabalha na pesquisa de sua tese de Dr.phil. na Hochschule für Musik und Theater Leipzig sobre metodologia e
didática de diferentes vertentes atuais e seus empregos na escola instrumental de cordas. Foi professora
adjunta na Hochschule für Musik Nürnberg e atualmente é coordenadora do curso de cordas na JohannPachelbel-Realschule Nürnberg. Atua em concertos pela Europa e Américas. É autora do método infantil para
viola da Gamba “Versuch eines Lehrganges für Viola da Gamba”, Editora Akademiker Verlag-2013.
2
Título original: “Lehrgang für Viola da Gamba: Eine Evaluation über Quellen in Deutschland und deren
Umsetzung in ein zeitgemäßes Instrumental-Lehrwerk für Jugendliche.
2
Em comparação com instrumentos como violino, teclados, piano, violão, flauta doce, bateria
entre outros, cuja a literatura pedagógica mantém-se constantemente atualizada, a viola da
gamba3
encontra-se
em
uma
situação
drasticamente
diferenciada.
Tendo em vista que a família das violas permaneceram por séculos como o alicerce da
prática instrumental de cordas na Europa, poderíamos concluir que atualmente uma rica
oferta na área de literatura tanto de repertório quanto pedagógica encontram-se
disponíveis.
Estudos realizados na Alemanha4 apontam porém que nos últimos dez anos apenas dois
novos métodos voltados para o ensino da viola da gamba encontram-se editados, nenhum
deles concebido para o público infanto-juvenil.
Porém, a viola da gamba está intrinsicamente contextualizada no Sistema de ensino escolar
alemão, pertencendo ao grupo de matérias (optativas ou obrigatórias)em colégios no setor
de música instrumental. Também em escolas de música particulares e estaduais a viola da
gamba é oferecida ao lado dos instrumentos de orquestra.
O trato do material didático orienta-se portanto de forma heterogênea e muitas vezes
ineficiente, já que cabe unicamente ao professor a organização completa desse material
para que as aulas sejam ministradas.
A proposta do método “Mein erstes Viola da Gamba-Buch Band I”5 , concebido para alunos
entre oito e dez anos de idade, sugere a possibilidade de um programa sistemático para o
ensino do instrumento orientado no processo de trabalho, proporcionando também um
caminho para o aprendizado autônomo-cognitivo. A integração de elemtos da psicologia e
metodologia do esporte, além dos elementos do Sistema Montessoriano de ensino visam a
interação e emancipação do aluno de forma construtivista, resultando uma vivência musical
completa e formando os domínios epistemológicos e metódicos do aluno de forma coligada.
A elaboração de um novo método para viola da gamba para adolescentes e jovens adultos
sob a mesma autoria está prevista para o segundo semestre de 2015.6
3
Do italiano: viola „viola“ e gamba „perna“
Pereira, Liana. Pesquisa realizada em: Versuch eines Lehrganges für Viola da Gamba – Ein neuer Weg des
Lernens. Akademiker Verlag 2013
5
Pereira, Liana. Mein erstes Viola da Gamba-Buch Band I. Akademiker Verlag 2013
6
Projeto relacionado a pesquisa de Doutorado na Hochschule für Musik und Theater Leipzig
4
3
A renascença da viola da gamba na Alemanha no século 20.
Christian Döbereiner7 e August Wenziger8 foram pioneiros no importante passo na
reelaboração da música antiga e a prática musical historicamente informada na Alemanha.
Döbereiner escreve seu método para viola da gamba ("Schule für die Viola da Gamba") em
1936, complementando seu mérito de pedagogo em diversos cursos, academias de
formação musical e por fim, a docência no setor de música antiga na Hochschule für Musik
und Theater em Munique, fundado por ele mesmo.
Fig.1."Deutsche Vereinigung für alte Musik", Munique, aprox. 1906.©frei
Contemporâneo de Döbereiner, Wenziger publica em 1935 e 1938 seus métodos para viola
da gamba “Gambeübung” em dois livros e deixa a Alemanha em 1933 para seguir sua
carreira de docente no recém-fundado centro de música antiga Schola Cantorum na Basiléia,
Suíça.9
Contudo, sabemos atualmente que vários parâmetros abordados nessa época por
pesquisadores como Döbereiner e Wenziger, no que diz respeito a pesquisas e o
7
Christian Döbereiner: violoncelista, violista da gamba alemão, 1874-1961
August Wenzinger: violoncelista, violista da gamba suíço, 1905-1996
9
Entre vários músicos que passaram por sua formação encontra-se o violista da gamba e maestro Jordi Savall
8
4
entendimento da técnica da viola da gamba, foram absorvidos de forma tendenciosa e
equivocada.
Exemplo disso são as afirmações que Döbereiner faz em seu discurso sobre o uso dos trastes
e a fricção do arco no instrumento:
„(...)Die Fragestellung, ob mit Bünden oder ohne Bünde, ob mit Ober- oder
Untergriffbogenhaltung zu spielen sei, ist keine künstlerische, als vielmehr eine solche der
Zweckmäßigkeit. Äußerliche Hilfsmittel bestimmen niemals das Wesentliche des
Gambenspiels. (...)“10
„A questão sobre (tocar) com ou sem trastes, com a fricção (do arco) superior ou inferior não
é uma questão artística mas uma utilidade. As ajudas externas não determinan jamais a
maneira de tocar viola da gamba. (…)”
Paradoxalmente, a prática de concertos com endumentárias próprias do período barroco
(Fig.1) , numa tentativa de trazer o público para a forma “original” e diferenciada da música
relativa contemporânea foi protagonizada por Döbereiner e seus conjuntos de câmera.
O resultado musical não está diretamente coligado com tais agentes “teatrais” externos,
mas muito mais com o ideal músico-estético do intérprete. A execução de instrumentos de
época ficaram portanto por muitos anos paerando numa aura de amadorismo e de certa
maneira, criou-se uma sociedade paralela crescente de interessados passivos e ativos por
esse “novo estilo” de interpretação musical.11
Contudo, o movimento da música antiga na Alemanha emancipou-se de forma considerável
a partir de 195012, atingindo um patamar profissional elevado e atualmente possui um
espaço sólido nos programas de concertos na Alemanha em geral.
10
Bayerisches Musik Lexikon Online (BMLO) de 03.05.2015, http://www.bmlo.lmu.de/d0265
Boer, Johannes. “From Output to Impact: the integration os artistic research results into musical training”,
2014
12
Isso se aplica por exemplo à fundacão em 1956 do conjunto “Concertus Musicus Wien“ de Nikolaus
Harnoncourt
11
5
A literatura para viola da Gamba nos tempos atuais na Alemanha
Tendo em vista a situação esboçada acima, conclue-se que o espectro técnico da viola da
gamba ganhou uma nova dimensão desde o início do século 20 até o presente momento.
Métodos para o instrumento como: „Viola da Gamba, Schule für Anfänger“ (Brigitte Gasser,
2008) e „Gambenschule“ (Lorenz Duftschmid, 2010) foram publicados na Alemanha. Esses
métodos possuem claras semelhanças com métodos para instrumentos de cordas concebidos no século 19. até a metade do século 20.13 O caráter indutivo presente nessas obras
limitam a dinâmica do aprendizado de forma que o elemento indutor está presente na
transmissão da mensagem de tal maneira que, a partir de uma regra genérica uma ou mais
afirmações poder ser concluídas pela lógica de raciocínio. Problemático nessa forma
metodológica é a exumação de casos isolados, limitando portanto o aprendizado músicoinstrumental.
Exemplo de raciocínio indutivo: a semicolcheia
Essa figura de tempo é uma semicolcheia
Uma semicolcheia é uma figura de tempo rápida
Todas as semicolcheias são figuras de tempo rápidas
13
Por exemplo: Otakar Sevcik (1852-1934), Bernhard Cossmann (1822-1910).
6
Sabemos portanto, que existem inúmeras exceções para regras musicais. Abaixo, um
exemplo aonde a semicolcheia aparece num contexto dessemelhante ao raciocícino
induzido no exemplo anterior das semicolcheias:
Fig.2.Johann Sebastian Bach, Gambesonate mit Cembalo BWV 1029.Takt 1-2, Adagio München: Urtext Henle Verlag.
Outro paradigma a ser considerado na elaboração atual da literatura pedagógica para a viola
da gamba é a dificuldade de integrar as diversas mensuras 14dos instrumentos. Esse e outros
critérios pedagógicos apresentam um claro deficit no que diz respeito ao trato da
diversidade de registros de afinação das cordas peculiar à família das violas.15
A renovação da literatura educacional para a viola da gamba é portanto de extrema
importância, de forma que esse instrumento seja apresentado para os alunos com uma
linguagem sócio-cultural de fato moderna, apropriada para a idade do público alvo, com
elementos atuais e também para desmistificar o conceito purista de que o repertório para
viola da gamba está restrito apenas ao período da música renascentista e barroca.
A iconografia musical e o desenvolvimento da viola da gamba
A busca sobre o Gênese da viola da gamba é tão antiga quanto praticamente o processo de
transformação que o instrumento vivenciou ao longo dos séculos.16 Silvestro Ganassi dal
Fontego, violista da gamba e flautista do Período Renacentista italiano é autor de duas mais
remotas fontes17 sobre a viola da gamba. Ocupou-se em suas obras “Regola Rubertina”
(Veneza, 1542) e “Lettione Seconda” (Veneza, 1543) com temas fundamentais da técnica
instrumental para o instrumento. Dentre muitas considerações, Ganassi tematiza as origens
do instrumento na antiga Grécia com a justificativa da figura de Orpheus tocando uma viola
14
Do Latim: “medida”.
Família das violas: viola soprano, viola alto, viola tenor, viola baixo, violone.
16
Woodfield, Ian. „The Early History of the Viol“. Cambrige University Press 1984
17
Até o presente momento não se tem conhecimento sobre fontes mais antigas do que os livros de Ganassi,
não excluindo portanto a possibilidade de haver fontes similares ainda não pesquisadas.
15
7
d’arco18 . A crença de que os instrumentos de arco, como por exemplo a viola da gamba e a
lira da braccio19 descendem da Antiga Grécia é uma forma típica de pensamento não só de
Ganassi mas também de seus contemporâneos do século 16.
Misticismo, remetências à figuras alegóricas como anteriormente citado “Orpheus” e outras
evidências arqueológicas subjetivas seguem ao longo dos séculos na forma de descrição
generalizada musical e também da técnica instrumental. Os autores dos tratados para a viola
da gamba da Época Renascentista e Barroca ocuparam-se de forma intensiva sobre o tema
“surgimento do instrumento”,
assim como posteriormente e até os dias atuais muitas
teorias e expeculações sobre o tema foram realizadas na tentativa de esclarecer o
surgimento deste instrumento.
Fig.3 Ornamento da inicial “D” do Salmo 101, MJR 233. 1190-1200. Fonte: St. John´s College University of Cambrige
18
19
Do italiano: „viola de arco“
Do italiano: “lira de braço”
8
Com o renascimento da viola da gamba e o interesse em reconstruir os aspectos técnicos
musicais, a fonte iconográfica fez-se um importante instrumento para a análise do
“musicad”20, suprindo várias lacunas sobre o tema construção e técnica musical dos
instrumentos.
Muitos luthiers na Europa21 ocupam-se atualmente com a análise iconográfica e suas fontes
no intuito de reconstruir o instrumentarium direcionado para a interpretação historicamente
orientada. Na tentativa de criar um objeto idêntico à figura, o resultado esperado é a
aproximação em seus múltiplos fatores como: sonoridade, articulação, dimensão expressiva,
ressonância, estética, entre outros elementos. Porém, a substância sonora e todo o contexto
holístico determinante para a reprodução musical não é relatada somente através da fonte
iconográfica, tendo em vista que esta concretiza uma representação simbólica de um
momento e revela assima de tudo, a concepção do artista (e do intérprete) sobre o motivo
iconográfico.
Análise de fontes iconográficas musicais: pragmatismos e considerações
holísticas
Tendo em consideração que a técnica da viola da gamba caminhou paralelamente junto ao
desenvolvimento da literatura e esta por sua vez, ao desenvolvimento da construção do
instrumento, devemos analisar as relações de interação entre si e seus resultados para a
formulação de uma técnica coerente baseada na metodologia moderna pedagógica com os
elementos da interpretação histórica.
Em „The Division Viol, or the Art of Playing upon a ground“ publicado em 1659 , Christopher
Simpson organisa os múltiplos temas técnicos musicais do instrumento em três livros. A
figura acima está inclusa no primeiro compêndio da coleção e apresenta um texto com
instruções sobre como por exemplo ”§5. Como segurar e mover o arco, §6. A postura da
mao esquerda”. 22
20
Do latim: „através da música“
Como por exemplo Eduardo Angel Gorr, Cremona-Itália
22
Do original: §5. How to hold and move the Bow, §6. The posture of the Left Hand”.
21
9
Fig.4. Christopher Simpson (1610-1669)
A análise iconográfica pode ser nesse caso contraditória com o texto desenvolvido por
Simpson em seu tratado:
“When you are to set your fingers upon the Strings, you must not grasp the Neck of your Viol,
like the Violin; but rather (as those that Play on the Lute) keep your Thumb on the back of the
Neck, opposite to your fore-finger; so as your Hand may have liberty to remove up and down,
as occasion shall require.”
“Quando você está a colocar seus dedos sobre as cordas, você nao deve agarrar o pescoço da
sua Viola como o Violino; mas (como os que tocam Alaúde) deve manter o seu polegar na
parte de trás do pescoço, em frente ao seu dedo (da frente); assim terá sua mao a liberdade
de se mover para cima e para baixo, conforme a ocasião exigir.”
10
Como a figura assima relata, trata-se de uma incoerência entre a posição da mão esquerda
da figura e sua explicação textual sobre a técnica sugerida.
Outra vasta discussão, ainda com relação à figura (Fig.4) tem como o tema a mão direita e o
arco. A região do arco aonde a mão está situada é bem próxima ao talão do arco. Sendo
assim, podemos concluir que a técnica de arco descrita por Christopher Simpson não leva
em consideração o ponto de equilíbrio do arco – o que determinaria uma posição
diferenciada (alguns centímetros de distância do talão em direção à ponta do arco).
Esses e outros pontos são axiomas decisivos para a elaboração de uma literatura moderna
baseada em princípios da música historicamente orientada.
Na figura abaixo (Fig.5) são ilustrados quatro músicos, três deles com violas da gamba
tocadas com arco. Em comparação com a Fig.4, podemos constatar que as formas das mãos
esquerdas são relatadas de forma dessemelhante.
Fig5. Regola Rubertina
Os arcos na Fig.5 não deixam claro se os arcos possuem ou não talões, gerando mais uma
vez várias hipóteses sobre a construção dos instrumentos e a relativa interpretação musical.
Para a concepção de uma literatura pedagógica para a viola da gamba que aborde os temas
atuais de metodologia e suas várias vertentes, é primordial o cuidadoso trato com as fontes
iconográficas e objetos mediais como por exemplo figuras, fotos, etc.
11
Como base de orientação para o aluno, a fonte iconográfica pode ser contraproducente.
A comunicação de um ícone faz-se presente somente pela sua informação visual, podendo
gerar uma interpretação imprecisa, resultando um axioma inverídico.
Por essa razão, a renovação da literatura educacional para a viola da gamba faz-se também
nesse ponto necessária. O objetivo dessa renovação visa o aprendizado de forma eficaz e
autônoma do aluno, oferecendo para os professores do instrumento viola da gamba um
material didático coerente com o contexto atual dos jovens e adolescentes. Além disso, os
professores podem fundamentar o emprego da metodologia pedagógica resultantes desta
pesquisa empírica23 de forma comprovada cientificamente.
23
Pesquisas quantitativas e qualitativas realizadas em mais de 56 instituições musicais na Alemanha

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